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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FERNANDA MENDES CABRAL ALBUQUERQUE COELHO
CRIANÇAS, INFÂNCIAS E CULTURAS INFANTIS: EPISTEMOLOGIAS E
SUBJETIVIDADES EM NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS
JOÃO PESSOA-PB
2018
FERNANDA MENDES CABRAL ALBUQUERQUE COELHO
CRIANÇAS, INFÂNCIAS E CULTURAS INFANTIS: EPISTEMOLOGIAS E
SUBJETIVIDADES EM NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal da Paraíba, na Linha de Pesquisa Políticas
Educacionais, como um dos requisitos para
obtenção do título de Doutora em Educação.
Orientadora: Profª. Dr.ª Adelaide Alves Dias
JOÃO PESSOA-PB
2018
Sempre ouvi dizer que lá no céu vivem pessoas que viraram
estrelas, mas, isso nunca foi fácil de entender. Será que não
seria, justamente, o contrário? As estrelas cadentes virariam
pessoas quando caíssem aqui na terra? Bem... hoje, o que
sei é que tenho uma estrelinha que vive comigo o tempo
todo e todo o tempo, e, é a esta pequena princesa brilhante
Ingrid, minha Ink, que dedico essa tese. Obrigada filha,
por ter sido minha inspiração. Em cada momento dessa
caminhada, senti mais forte e vivo o nosso amor.
Estendo também esta dedicatória, a todas as crianças que
iluminaram as narrativas fotoetnográficas deste estudo.
Suas infâncias, me ensinaram que as crianças são,
excentricamente, plurais, divertidas e cheias de vontade de
vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, toda honra e glória, por ter me dado esta oportunidade e condição de chegar até aqui.
Obrigada por Sua generosidade e grandioso amor, sem Seu consolo e direcionamento, nada teria sido possível.
A minha mãe, Maria das Graças Mendes Lira, obrigada por sempre estar ao meu lado, és a
minha fortaleza, tudo que sou devo aos seus sábios conselhos, é por ti que continuo caminhando. Ao meu pai, Antônio Fernando Cabral de Carvalho, de quem herdei toda a ousadia, teimosia, e
sem dúvida, a habilidade com textos e falas. Meu grande exemplo de honestidade e dedicação à família, obrigada por estar sempre disposto a me ajudar.
A minha filha, Yasmin Cabral Coelho. Obrigada por ser tão maravilhosa. Durante esses anos sua (in)dependência sempre me surpreendia, desde o nível de compreensão em relação a minha
ausência (na presença), até sua independência nos estudos. Minha filha, você é meu orgulho, meu tudo. Obrigada pelo seu amor, carinho e paciência, agora viveremos outras e melhores
aventuras!
Ao meu esposo, Herbet Albuquerque Coelho, que aguentou firme mais este desafio, enfrentou minhas ausências, angústias e enfim, compartilha esta vitória. Juntos desbravaremos novos
horizontes.
A minha família, que ao longo desses anos têm estado presente, incondicionalmente. Obrigada
por cada palavra de incentivo, cada abraço, cada ajuda que vocês dispenderam a mim. Não poderia deixar de destacar alguns nomes, Juliana e Romualdo (meus irmãos), Mônica (prima)
e é claro, Nicole Júlia (sobrinha), quem passou meses ao meu lado, virando noites e noites em claro, e ainda, me acompanhou nas pesquisas de campo, não tenho palavras para descrever sua
importância para a realização deste trabalho. Também agradeço a minha sogra Josélia Coelho e toda sua família (nossa), pela torcida e carinho de sempre.
Aos que partiram, Vovó Neném, seu sorriso estampa meus pensamentos. Sr. José Coelho, meu
sogro, gostaria muito que estivesse aqui, sei que estaria orgulhoso. Minha Tia Bebé, com certeza teria lido cada linha deste trabalho, seu entusiasmo e apontamentos me fizeram muita falta.
A princesa “blogueirinha” Maria Clara, que me encantou com seu jeitinho carinhoso e
surpreendente de ser. Obrigada minha linda por ter feito deste trabalho uma aventura maravilhosa! À Neyângela Oliveira de Freitas, mãe de Clarinha, obrigada por tudo, pela
confiança, respeito e contribuição com a minha pesquisa, seu apoio foi imprescindível, muito obrigada. Ao pai de Clarinha, João Pereira Soares e ao querido João Pedro, seu irmão, obrigada
pelo apoio, pelas brincadeiras e participação.
Ao meu amigo filósofo Daniel Figueiredo. Desde aquela tarde de defesa do projeto de doutorado eu já sabia que você era “o cara”, uma mistura híbrida de máquina e humano
programado para ser bom. Não tenho como agradecer a parceria desses anos, mas o universo acabou de agradecer por mim e Deus te deu o melhor dos presentes, o dom de ser pai. Parabéns
amigo e obrigada por tudo, você foi fundamental!
A minha estimada orientadora, Adelaide Alves Dias. Tem sido uma honra conviver e aprender com você durante todos esses anos (desde o mestrado), você é um exemplo de vida, de mãe, de
amiga, de profissional e de mulher política e guerreira, obrigada pela sua generosidade, compreensão, respeito e principalmente, pela paciência que teve comigo. Parabéns pela sua
incansável luta em defesa da criança e da Educação Infantil.
Aos professores Mariângela Momo, Rita Porto, Mauro Koury e Jorge Hermida, obrigada por fazerem parte deste momento tão significativo, é uma grande honra para mim. Suas histórias de
vida são marcadas por preciosas contribuições à educação brasileira, além de profissionais e cidadãos, são seres humanos essencialmente, amorosos. Desde o trato com as palavras até o
modo de lhe darem com o outro. Buscam dentro de si aquilo de mais belo para ofertar ao próximo, é dessa essência que falo, da educação com amor, assim como Freire (1992) outrora
afirmou.
À minha ex-coordenadora e querida amiga professora Maria Cacilda Marques de Souza Rêgo, a quem tenho grande admiração e apreço por tudo que representa para a educação na Paraíba.
Uma pessoa muito especial para mim, um exemplo de educadora e ser humano.
À querida professora Otaviana Maroja Jales Costa, minha primeira orientadora, uma inspiração, quem me ensinou a amar esta profissão.
Às amigas de longas jornadas, Patrícia Gondim, Fabrícia Medeiros, Cristhiane Cavalcanti,
Norma Lima, Da Luz Olegário, Thaís Vasconcellos, Érika Souza, Valquíria Villas, Lindsay Darlany e Aricellys Lopes. Cada uma de vocês e em momentos diferentes, teve um papel
importante para minha vida e para a realização deste trabalho, foram dias e noites de muita reflexão, debate, leituras e mão na massa. Muito bom saber que podemos contar umas com as
outras.
Aos estimados Coronel Alexandre Sobreira, Coronel Carlos Eduardo, Coronel Onivan e Capitão Fábio França e amiga Iris Oliveira do Centro de Educação e Pós-Graduação e Pesquisa
da Polícia Militar da Paraíba e demais Capitães e discentes dos Cursos de Especialização em Segurança Pública, pelo apoio, amizade e trocas de experiências acadêmicas.
Na pessoa do Professor Wilson Honorato Aração, agradeço a todos os professores, funcionários
e coordenadores do Centro de Educação - CE e demais departamentos; à Escola de Educação Básica – EEBAS; ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da
Universidade Federal da Paraíba – PPGE-CE-UFPB, por toda contribuição direta e indireta para minha formação acadêmica e profissional.
Ao Grupo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança – GRUPEC, pela parceria, amizade e
incentivo ao longo dessa jornada. Obrigada por me incentivarem, por estarem do meu lado sempre que precisei e por acreditarem no meu trabalho.
Enfim, também agradeço a todos os interlocutores, desde os que já contribuíram com palavras, imagens, fotografias e olhares, até os que estão lendo estas linhas agora, que hão de contribuir
ainda mais com novas formas de se perceber, relacionar, compreender e narrar as muitas infâncias que nos encantam. Convido-os, portanto, através desta leitura, a despertar a criança
que ainda está aí, dentro de você.
Agradecimento Especial
Peço licença aos ilustres colegas acadêmicos, para acrescer esta lauda em minha tese.
Nasci numa família de trabalhadores que sonhavam um dia ver seus filhos formados e
numa condição melhor de vida. Hoje, esse sonho se torna realidade. Cheguei ao nível
de escolaridade mais alto da academia, tenho um dos empregos mais desejados da
minha classe trabalhadora, mas esse feito só foi possível porque outro trabalhador teve
de pagar, e ainda paga o preço por acreditar que a igualdade de oportunidades deveria
ser para todos.
Obrigada Luiz Inácio Lula da Silva. Obrigada por lutar por meu futuro, obrigada por
lutar contra a privatização das universidades públicas, obrigada por segurar a
economia brasileira nos momentos mais cruciais de subsistência da minha família,
obrigada por assegurar e ampliar o acesso de estudantes em pós-graduações públicas
no Brasil e no exterior, e ainda mais, por garantir milhões de empregos através de
concursos públicos, em um deles a vaga foi minha. Obrigada por não desistir de um
povo que tem memória fraca e muitas vezes se deixa manipular por armadilhas
midiáticas e articulações partidárias de golpistas. Desculpa essa gente alienada, isso é
falta, justamente, do que era prioridade no seu governo – EDUCAÇÃO.
E, aproveitando a conjuntura polícia atual, após um golpe à democracia, quero
reafirmar neste trabalho que: Eleições sem Lula, é fraude.
Estudar as crianças – para que?
Eis a nossa resposta:
Para descobrir mais.
Descobrir sempre mais, porque, se o não fizermos,
alguém acabará por inventar.
De fato, provavelmente já alguém começou a inventar,
e o que é inventado afecta a vida das crianças;
afecta o modo como as crianças são vistas
e as decisões que se tomam a seu respeito.
O que é descoberto desafia as imagens dominantes.
O que é inventado perpetua-as.
(GRAUE; WALSH, 2003, p. 12)
CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Crianças, Infâncias e Culturas Infantis: epistemologias e subjetividades em narrativas fotoetnográficas.
João Pessoa, 2018. 503f. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.
RESUMO
Esta pesquisa investiga as imagens e fotografias que revelam concepções sobre crianças e
infâncias construídas e propagadas pelas Ciências Sociais e Humanas pertencentes à estudos e
pesquisas científicas relacionadas às culturas infantis contemporâneas e suas singularidades,
bem como, discute as concepções de crianças e infâncias presentes na indústria cultural e
midiática digital que repercutem diretamente na formação das culturas infantis. Assim, trava
uma discussão no âmbito das abordagens clássicas da Sociologia, Antropologia Visual e
Fotoetnografia em diálogo com as perspectivas epistemológicas atuais da Sociologia da
Infância que desbrava um novo paradigma social na Ciência moderna para os estudos da
criança. Metodologicamente se caracteriza como uma pesquisa transdisciplinar de abordagem
interpretativa e método fotoetnográfico, que combinou diferentes estratégias de geração,
tratamento e análise de dados. Em vista disso, inicialmente foi proposto o movimento de análise
e interpretação memento, que foi confrontado e discutido à luz do rigor interpretativo,
transdisciplinar multireferencial e crítico-cultural da Cultura Visual tendo suas implicações
discorridas em três campos investigativos: a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia; a História,
a Sociologia da Infância e a Cultura Visual; a Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica
e o protagonismo infantil. Cada campo exigiu estratégias metodológicas específicas, desde
pesquisa documental, pesquisa fotoetnográfica e pesquisa fotoetnográfica autobiográfica que
teve como sujeito 1 criança, com 6 anos de idade, residente em João Pessoa. A produção de
narrativas fotoetnográficas em cada campo de análise permitiu o conhecimento,
aprofundamento e desvelamento interpretativo da realidade da infância refletida na imagem da
criança legitimando-se, assim, como uma estratégia metodológica potencial para estimular a
interpretação e compreensão das identidades, subjetividades e alteridades da criança produzidas
nos entre-lugares e entre-culturas da infância. Em vista disso, foi constatado que as narrativas
fotoetnográficas de crianças, em cada tempo histórico e contexto cultural desvelam e legitimam
um protagonismo criativo e subversivo nas relações de alteridade constituídas durante a
infância, desse modo, as crianças têm desenvolvido formas de participação e enfrentamento
das circunstâncias culturais e sociais das quais participa, o que consiste numa nova imagem
sociológica - a da criança protagonista, um criança que subverte os limites e imposições das
culturas visuais e de forma criativa reinventa modos de ser e de viver na contemporaneidade.
PALAVRAS CHAVES: Imagem. Fotoetnografia. Crianças. Infâncias. Culturas Infantis. Fotoetnografia autobiográfica.
CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Children, Infants and Children's Cultures: epistemologies and subjectivities in photoetnographic narratives. João
Pessoa, 2018. 503f. Doctoral Thesis. Graduate Program in Education, Federal University of Paraíba.
ABSTRACT
This research promotes epistemological and empirical interlocutions on the conceptions of
children, childhood and children's cultures through photoetnographic narratives. It holds discussions within the classical approaches of Sociology, Visual Anthropology and
Photoetnography in dialogue with the current epistemological perspectives of the Sociology of Childhood that breaks a new social paradigm in modern Science for the studies of the child.
Methodologically it is characterized as a transdisciplinary research of interpretative approach and photoetnographic method, that combined different strategies of generation, treatment and
data analysis. In view of this, the memento analysis and interpretation movement was initially proposed, which was confronted and discussed in the light of the interpretive, transdisciplinary
and critical-cultural rigor of Visual Culture, having its implications discussed in three complementary analytical fields: the first one comprises the image, photography and
Photoetnography; the second relates to the Social History of Childhood, the Sociology of Childhood and Visual Culture; and the third presents Photoetnography in an autobiographical
perspective as a research strategy with children. Each analytical field required specific methodological strategies, ranging from documentary research, photonnographic research and
autobiographical photoetnographic research, the latter of which had as subject one 6-year-old children living in João Pessoa. Thus, the production of photoetnographic narratives in each field
of analysis allowed the knowledge, deepening and interpretive disclosure of the reality of childhood reflected in the image of the child thus legitimizing itself as a potential
methodological strategy to stimulate the interpretation and understanding of identities, subjectivities and alterities of the child produced in the inter-places and between-cultures of
childhood. In view of this, it was found that the photoetnographic narratives of children, in each historical time and cultural context reveal and legitimize a creative and subversive protagonism
in the relationships of otherness constituted during childhood, thus, children have developed forms of participation and coping with cultural and social circumstances in which he
participates, which is the defense of a new sociological image - that of the child protagonist, a child who subverts the limits and impositions of visual cultures and creatively reinvents ways
of being and living in the contemporary world.
KEYWORDS: Child. Childhood. Child Cultures. Image. Photoetnography. Autobiographical photoetnography. Sociology of Childhood. Child Protagonist.
CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Niños, Infancias y Culturas Infantiles: epistemologías y subjetividades en narrativas fotoetnográficas. Y en el
caso de las mujeres. Programa de Postgrado en Educación, Universidad Federal de Paraíba.
RESUMEN
Esta investigación investiga las imágenes y fotografías que revelan concepciones sobre niños e infancias construidas y propagadas por las Ciencias Sociales y Humanas pertenecientes a
estudios e investigaciones científicas relacionadas a las culturas infantiles contemporáneas y sus singularidades, así como, discute las concepciones de niños e infancias presentes en la
industria cultural y mediática digital que repercuten directamente en la formación de las culturas infantiles. En este sentido, se plantea una discusión en el ámbito de los enfoques clásicos de la
Sociología, Antropología Visual y Fotoetnografía en diálogo con las perspectivas epistemológicas actuales de la Sociología de la Infancia que desbraba un nuevo paradigma
social en la Ciencia moderna para los estudios del niño. Metodológicamente se caracteriza como una investigación transdisciplinaria de enfoque interpretativo y método fotoetnográfico, que
combinó diferentes estrategias de generación, tratamiento y análisis de datos. En vista de ello, inicialmente se propuso el movimiento de análisis e interpretación recuerdo, que fue
confrontado y discutido a la luz del rigor interpretativo, transdisciplinario multireferencial y crítico-cultural de la Cultura Visual teniendo sus implicaciones discursivas en tres campos
investigativos: la imagen; la fotografía y la fotoetnografía; la historia, la sociología de la niñez y la cultura visual; la Fotoetnografía en una perspectiva autobiográfica y el protagonismo
infantil. Cada campo exigió estrategias metodológicas específicas, desde investigación documental, investigación fotoetnográfica e investigación fotoetnográfica autobiográfica que
tuvo como sujeto a 1 niños de 6 años de edad residente en João Pessoa. La producción de narrativas fotoetnográficas en cada campo de análisis permitió el conocimiento, profundización
y desvelamiento interpretativo de la realidad de la infancia reflejada en la imagen del niño legitimándose, así como una estrategia metodológica potencial para estimular la interpretación
y comprensión de las identidades, subjetividades y alteridades del niño producido en los entre-lugares y entre-culturas de la infancia. En vista de ello, se constató que las narrativas
fotoetnográficas de niños, en cada tiempo histórico y contexto cultural, desvelan y legitiman un protagonismo creativo y subversivo en las relaciones de alteridad constituidas durante la
infancia, de modo que los niños han desarrollado formas de participación y enfrentamiento las circunstancias culturales y sociales de las que participa, lo que consiste en una nueva imagen
sociológica - la del niño protagonista, un niño que subvierte los límites e imposiciones de las culturas visuales y de forma creativa reinventa modos de ser y de vivir en la contemporaneidad.
PALABRAS-CLAVES: Imagen. Photoethnography. Los niños. Infancias. Culturas Infantiles.
Photoethnography autobiográfica.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Esquema 1 Organização da tese. 57
Esquema 2 Sistematização do Campo Analítico I. 58
Esquema 3 Sistematização do Campo Analítico II. 62
Esquema 4 Sistematização do Campo Analítico III. 67
Esquema 5 Movimento de interpretação da imagem – memento. 120
Esquema 6 Processo de exposição da imagem fotográfica. 131
LISTA DE QUADROS
Quadro 01 Levantamento de Pesquisas em Fotoetnografia (1997-2017). 141
Quadro 02 Pesquisas selecionadas para análise fotoetnográfica dispostas em
ordem de narração
142
Quadro 03 Cronograma de encontros executados – janeiro a julho de 2017 427
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
BVO Brasil Vale Ouro
CAPES Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior
CE Centro de Educação
CETIC Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONAR Conselho Nacional de Autorregulamentação
EC Estação Conhecimento
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EEBAS Escola de Educação Básica
FNPETI Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil
GRUPEC Grupo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança
IBICT Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
ISO International Standards Organization
JP João Pessoa
NUPEC Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre a Criança
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização Não Governamental
PB Paraíba
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação
QRcode Código Quick Response
RD Repositório Digital
SciELO Scientific Electronic Library On-line
SEGAT Secretaria Geral e de Apoio Técnico-administrativo
TA Termo de Assentimento
TAI Termo de Autorização do Uso de Imagem
TCC Trabalho de Conclusão de Curso
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UFGRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFPA Universidade Federal do Pará
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
ULBRA Educação pela Universidade Luterana do Brasil
UnB Universidade de Brasil
UNCRC Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
UVA Universidade Estadual Vale do Acaraú
LISTA DE QRCODE
QRcode 01 Comercial dos brinquedos Estrela. 32
QRcode 02 Para conhecer a história da empresa de brinquedos Estrela. 32
QRcode 03 Comercial Melissinha. 33
QRcode 04 Jornal Nacional (04/07/2017). 34
QRcode 05 Folha de São Paulo (30/07/2017). 34
QRcode 06 Matéria: O fim dos programas de infantis na TV. 35
QRcode 07 Canal no YouTube Master Chef Junior. 35
QRcode 08 Fundação Vale/Estação Conhecimento. 39
QRcode 09 Selo Amazônia, Município Aprovado. 40
QRcode 10 Martins Filho e Ferreira Martins (2012). 51
QRcode 11 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989. 67
QRcode 12 Trailer do filme Memento - YouTube filmes. 82
QRcode 13 Resumo on-line da dissertação de Achutti (1997). 138
QRcode 14 Trois (2012). 146
QRcode 15 Villas Boas (2016). 146
QRcode 16 Organização Internacional do Trabalho no Brasil (on-line). 150
QRcode 17 Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008). 150
QRcode 18 Convenção da Idade Mínima para Admissão no Trabalho (nº
138/1973).
150
QRcode 19 Plano Nacional de Prevenção e Erradicação Trabalho Infantil e
Proteção ao Adolescente Trabalhador (nº 138/1973).
150
QRcode 20 Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho
Infantil (FNPETI, 2015).
150
QRcode 21 Estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil. 151
QRcode 22 Aprato (2016). 156
QRcode 23 Menezes (2016). 160
QRcode 24 Reportagem intitulada: “Sexualização de Mc Melody reacende
discussão sobre funkeiros mirins”.
195
QRcode 25 Texto: Retórica Distintiva no Funk Ostentação (BRAGA,
2014).
196
QRcode 26 Matéria jornalística on-line intitulada: “Mc Melody, de 8 anos, 197
fatura até R$ 40 mil ao mês com carreira polêmica”.
QRcode 27 Silva R. (2016). 198
QRcode 28 Ver “The Principles of Psychology” de Willian James (1890)
sobre estudo o self como sujeito (subjetivo) e self como objeto
(materiais e corporais).
199
QRcode 29 Camargo e Stefaniczen (2016). 200
QRcode 30 Tese: Jogos, brinquedos e brincadeiras - Trajectos
Intergeracionais (2010).
200
QRcode 31 Madonna do Goldfinch (1506). 221
QRcode 32 Chicangana-Bayona (2013). 222
QRcode 33 Biografia Franz Hals. 225
QRcode 34 Biografia Le Nain. 225
QRcode 35 Biografia Jan Steen. 225
QRcode 36 Dossier de presse Philippe de Champaigne (FRANCE, 2007). 256
QRcode 37 Jan Steen, Feast of St. Nicholas. Dr. Wendy Schaller. 231
QRcode 38 Pão doce tradicional holandês, apreciado na Festa de São
Nicolau, no Natal e no Ano Novo. (SCHALLER, 2017).
231
QRcode 39 Texto de Loic Chalmel (2004). 232
QRcode 40 Miller (2016, on-line). 232
QRcode 41 Monografia: “Rosa e azul em terra verde-amarela: a trajetória
do quadro de Renoir e sua presença no acervo do Museu de
Arte de São Paulo (1881-1967)” (MARTINS, A. 2013).
235
QRcode 42 Becker (2010). 235
QRcode 43 Versão em português publicada na Revista Pró-Posições sob o
título: “Apresentação Nove teses sobre a “infância como um
fenômeno social” Jens Qvortrup” (NASCIMENTO, 2011).
241
QRcode 44 Visibilidade Social e Estudo da Infância (SARMENTO, 2007). 244
QRcode 45 Políticas Públicas e Participação Infantil (Sarmento, Fernandes
e Tomás, 2007).
245
QRcode 46 Sarmento (2008). 253
QRcode 47 Tisott (2008). 262
QRcode 48 Abramowicz, et al. (2011). 265
QRcode 49 Silva, R. (2015). 267
QRcode 50 Kern et al. (2010). 272
QRcode 51 “5 campanhas publicitárias que foram censuradas”. Blog Rafaela
Maia (16 de agosto de 2015).
275
QRcode 52 “A infância roubada na publicidade da Couro Fino”. Site Carta
Capital. Natasha Cruz e Raquel Dantas (24 de maio de 2013).
275
QRcode 53 “Governo do Amazonas lança campanha de combate à
erotização de crianças e ganha adesão imediata e espontânea de
usuários de redes sociais de todo o Brasil”. Portal do
Amazonas. (10 de abril de 2017).
276
QRcode 54 Tese: Mídia e consumo na produção de uma infância pós-
moderna que vai à escola (MOMO, 2007).
288
QRcode 55 Coelho e Dias (2013). 291
QRcode 56 Barbosa R. e Gomes (2012). 291
QRcode 57 Barbosa R. (2013). 292
QRcode 58 Propaganda Comercial: “Porque nós somos mamíferos!” em
duas versões, a original com crianças pequenas (1995) e a
última versão com as mesmas crianças crescidas, após 12 anos
de campanha.
296
QRcode 59 Blog Mundo das Marcas. 297
QRcode 60 Propaganda comercial da Claro “A vida em sua mão”,
veiculada em 2012 no canal de Mariano Bolado no YouTube.
(2012).
298
QRcode 61 Instituto Alana (on-line). 299
QRcode 62 Propaganda Comercial da Grendene: “Nessa aventura o herói é
você” (2010), veiculada em 2012 no canal WMcCann BR no
YouTube. (2012).
299
QRcode 63 Conanda (on-line). 300
QRcode 64 Diário do Nordeste. Mc Melody. 306
QRcode 65 Página oficial de Mc Melody no Facebook. 307
QRcode 66 Site extra.globo. Mc Melody. 308
QRcode 67 Silva, P. (2016). 309
QRcode 68 Clipe “Deu Onda versão Falsete”. YouTube/Melody oficial. 310
QRcode 69 Clipe “Metralhadora – Versão Falsete - Melody”. 310
YouTube/Melody oficial.
QRcode 70 “Bang – Annita versão Melody. YouTube/Pânico oficial. 310
QRcode 71 Fashionkids. 312
QRcode 72 Facebook.com/kardashiankids. 312
QRcode 73 Matéria Revista Caras. 314
QRcode 74 Site Oficial da pesquisa EUKidsOnline. 318
QRcode 75 Site Oficial do CETIC/Kids Online Brasil. 318
QRcode 76 Canal Fran Nina e Bel para Meninas. 321
QRcode 77 Canal Juliana Baltar. 321
QRcode 78 Canal Julia Silva. 321
O Código QR é um código de barras bidimensional que é utilizado para codificar informações digitais e sua leitura pode ser realizada através de aplicativos para aparelhos celulares
equipados com câmera. Para acessar estes QRcodesé preciso baixar o aplicativo “Leitor de
QRcode” e escanear com a câmera do celular o código indicado nas notasde rodapé desta
pesquisa, imediatamente, o leitor abrirá o link do qual a informação foi retirada.
SUMÁRIO
CENÁRIOS INVESTIGATIVOS: subjetividades, epistemologias e
aportes metodológicos
23
Aproximações 23
Reminiscências: “Falo de mim” 31
Delineamentos Metodológicos 45
Dos Ensaios às Narrativas Fotoetnográficas 75
ENSAIO 1 - O HISTOGRAMA DA TESE: por uma Fotoetnografia da
Infância
81
PRÓLOGO: Sobre o memento... 82
1 DA CULTURA VISUAL À NOVA EPISTEMOLOGIA DA IMAGEM 89
1.1 Fotografia, um instantâneo da realidade? Reflexões antropofilosóficas sobre
a “pele-magia”
104
1.2 Memento: reviver, sentir e compreender como devir criador 113
1.3 Desvelando fotografias em high key e low key 124
2 A FOTOETNOGRAFIA NA OBJETIVA DA PESQUISA CIENTÍFICA 136
3 NARRATIVA FOTOETNOGRAFICA: Infâncias em fotoetnografias 167
3.1 O Privilégio de Estar com as Crianças: o currículo das infâncias (TROIS,
2012).
167
3.2 {Per[for(mar)]} Imagens das Crianças no Nêgo Fugido, Acupe/B (VILLAS
BOAS, 2016).
167
3.3 Crianças e Objetos: Narrativas Fotoetnográficas sobre Infâncias
Contemporâneas (APRATO, 2016).
168
3.4 Cultura Estética Indígena Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da
pintura corporal Parkatêjê (MENEZES, 2016).
168
3.5 Saberes Culturais Tentehar e Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral
(SÁ, 2014).
168
4 1º CLICK – INFÂNCIAS EM FOTOETNOGRAFIAS 169
EPÍLOGO 192
ENSAIO 2 - AS CULTURAS INFANTIS NAS MULTIMAGENS DE
CRIANÇAS: uma Fotoetnografia Panorâmica Conceptual
194
PRÓLOGO - ...Sobre uma infância estetizada 195
1 CULTURA E IMAGEM: ZONAS DE CONTATO NAS ENTRE-
CULTURAS E ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA
202
2 A I/MA(R)GEM DA CRIANÇA NAS PRIMEIRAS CONCEPÇÕES DE
INFÂNCIA
215
3 SOB A ÓTICA DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA: A EMERGÊNCIA
DOS NOVOS SUJEITOS SOCIAIS
240
3.1 Culturas Infantis em peles magicizadas: mementos em devir 255
4 A CULTURA VISUAL SOB OS HOLOFOTES DA ERA DIGITAL: A
REFLEXIVIDADE DA VIDA SOCIAL
278
4.1 Publicidade e Consumo: a estetização da infância contemporânea 287
4.2 NegAtivos em evidência: adultização e erotização 304
4.3 A imagem da criança protagonista: novas identidades para criança
sociológica na contemporaneidade
317
5 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: DO HOMÚNCULO À
CRIANÇA SOCIAL
323
5.1 A criança na I/MA(r)GEM 323
5.2 Pequenos Trabalhadores: infância e industrialização em Caxias do Sul - fim
do Séc. XIX e início do Séc. XX (TISOTT, 2008).
323
5.3 Imagens de Crianças e Infâncias: a criança na iconografia brasileira dos
séculos XIX e XX” (ABRAMOWICZ, et al. 2011).
323
5.4 Criança e Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação
Infantil (SILVA R., 2015).
324
5.5 A moda infantil no século XX: representações imagéticas na revista do globo
- 1929-1967 (KERN et al., 2010).
324
5.6 Crianças de Revistas - 1930/1950 (BRITES, 2000). 324
5.7 Dia das Crianças - Calçados Couro Fino (2015). 324
5.8 Mídia e consumo na produção de uma infância pós-moderna que vai à escola
(MOMO, 2007).
325
5.9 Bichinhos da Parmalat - Campanha “Mamíferos” (1995). 325
5.10 Mc Melody (2014-2017). 325
5.11 Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:
perspectivas para uma Escola da Infância”.
326
5.12 Fashionistas 326
6 2º CLICK - DO HOMÚNCULO À CRIANÇA SOCIAL: INFÂNCIAS
EM PELES MAGICIZADAS
327
EPÍLOGO 351
ENSAIO 3 - O PROTAGONISMO DA CRIANÇA NA ALTERIDADE
DA INFÂNCIA: da fotografia à voz
354
PRÓLOGO - Sobre a princesa “blogueirinha” Maria Clara no reino
encantado da Luz
355
1 CANTOS, CONTOS E ENCANTOS DE MARIA CLARA: UMA
FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA
361
1.1 Para início de conversa: os “magníficos” livros “leitura-imagem” de Maria
Clara
362
1.2 Cantos... Um reino encantado chamado Luz 373
1.3 Contos... Câmera, Flash e Clicks: diários de uma Fotoetnografia
389
1.4 Encantos... A princesa “blogueirinha” dos @achadinhosdemariaclara 397
2 A FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA NA PESQUISA COM
CRIANÇA
406
2.1 Abertura, Velocidade e Sensibilidade: a ação do pesquisador em foco 415
2.2 Seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito 423
2.3 Produção da Fotoetnografia Autobiográfica: mementos em devir 429
2.4 Produção do diário fotoetnográfico 433
3 3º CLICK: “- OI PESSOAAAL! EU SOU A BLOGUEIRINHA MARIA
CLARA!”: MANHAS E ARTIMANHAS DE UMA PRINCESA
“BLOGUEIRINHA”
436
EPÍLOGO 464
POR UMA IN/CONCLUSÃO... Afinal, o que desvelam as
fotoetnografias?
467
REFERÊNCIAS 476
ANEXOS 501
23
CENÁRIOS INVESTIGATIVOS:
epistemologias, subjetividades e aportes metodológicos
APROXIMAÇÕES
Uma criança sempre pode ensinar três coisas a um adulto: a
ficar contente sem motivo, a estar sempre ocupado com alguma
coisa, e a saber exigir - com toda força - aquilo que deseja
(COELHO, P., 1996, p. 152).
Se escutar essa criança que carrego na minha alma, meus olhos
tornarão a brilhar. Se não perder o contato com esta criança,
não perderei o contato com a vida (COELHO, P., 2015b, n.p.).
Antes de anunciar a pesquisa, optei por iniciar o texto acentuando justamente o que ela
não é. Não se trata de mais um estudo que tenta estabelecer conceitos lineares de criança e/ou
infância contemporânea destacando concepções teóricas e situações empíricas que expressam
formas e vivências que se assemelham, diferem e/ou descrevem os modos de ser e viver das
crianças atualmente. Nem de outra pesquisa que busca, na ausência de um conceito, descrever
as múltiplas formas em que as infâncias se constituem e são constituídas através das interações
sociais e culturais que permeiam as relações humanas sob influências das mudanças e
transformações advindas dos processos de globalização, dos adventos tecnológicos ou das
novas formas de comunicação humana, mesmo considerando a legitimidade e necessidade de
estudos como estes. Tampouco, se trata de uma pesquisa que procura os “vilões” da
contemporaneidade, apontando os “culpados” de um possível “desaparecimento da infância”,
pois, não acredito que tal façanha seja possível.
A priori, a intenção aqui, foi encontrar estratégias que pudessem possibilitar o
desvelamento crítico da realidade de forma a promover conexões epistemológicas e teórico-
metodológicas que permitissem não só investigar as situações singulares e subjetivas das
culturas infantis construídas, desconstruídas e discutidas histórica e socialmente no campo das
Ciências Humanas e Sociais, mas, sobretudo, conexões que tivessem a capacidade de me fazer
e de fazer o leitor/espectador, “reviver”, “sentir” e “compreender” as configurações culturais
da infância constituídas ao longo de diferentes épocas e contextos. Dessa forma, me desafiei a
24
produzir um texto que, além de abarcar conhecimentos epistemológicos e empíricos, fizesse
emergir as sensibilidades e subjetividades que envolvem o tema infância face à sua
familiaridade e complexidade. Assim, a partir destas três dimensões - “reviver”, “sentir” e
“compreender”, traço as reflexões que inspiraram os percursos metodológicos adotados nesta
tese.
Neste sentido, parto da premissa de que a infância, enquanto estrutura social
(QVORTRUP, 2010) precisa ser compreendida em sua integralidade e a Ciência, enquanto
campo de conhecimento que abrange a racionalidade, não deve negar a imaginação
metodológica (SARMENTO, 2007, p. 45) que, necessariamente, este campo de pesquisa
requer, e consequentemente, não deve desconsiderar também, as emocionalidades e
subjetividades que estão direta e indiretamente, envolvidas nos processos de investigação
empírica. Mas, como seria possível promover novas impressões acerca das concepções de
criança e infância de forma sólida e rigorosa na pesquisa científica e ao mesmo tempo,
considerar as emoções, subjetividades e criatividades que, “inevitavelmente”, envolvem (e
devem envolver) esse tema?
Afinal, todos nós já fomos criança, e em nosso dia-a-dia também testemunhamos outros
modos de ser e de viver a infância, com isso, irremediavelmente, armazenamos na memória
lembranças e impressões dessa fase da vida. No entanto, essas lembranças por vezes, foram
abandonadas, quando nos deparamos com as condições em que as crianças foram tratadas ao
longo da história, como quando são submetidas à fome, ao trabalho infantil, à violência, aos
abusos, à exploração, entre outros problemas que ainda atingem a atualidade. Diante de tais
circunstâncias, penso que a transformação social e política, consequentemente, educacional da
infância, precisa partir de uma perspectiva ontológica, ou seja, de uma consciência introspectiva
que traga à tona a sensibilidade dessa fase da vida (vivida, sentida, compreendida) reverberando
assim, posteriormente, em empatia no trato com a criança, seja em que espaço e circunstância
for.
Partindo dessas reflexões, proponho uma aventura ao mundo da imagem, das imagens
de crianças, infâncias e culturas infantis. Das imagens mais longínquas às mais próximas,
esquecidas e/ou guardadas em velhas caixinhas de sapatos. Das imagens de crianças que
marcaram a história social da infância nas pesquisas científicas e as imagens de crianças que
marcaram as “nossas” próprias histórias de vida. Neste sentido, durante a leitura desta tese,
pretendo estimular memórias, sensibilidades e reflexões acerca da criança que fui, das crianças
que “conheci” nas entrelinhas da “ciência” e das crianças com que tive o prazer de conviver e
de aprender a ser novamente “criança” para poder entender a realidade da infância.
25
Assim como na epígrafe desta introdução, nas palavras de Paulo Coelho, convido o
leitor/espectador1 a ouvir a criança que temos na alma, convido a se encantar sem motivo, a se
ocupar “ainda mais”, só que dessa vez, com as coisas simples da vida e a, novamente, sonhar,
sonhar os sonhos da imaginação infantil, pois, somente assim, poderemos descobrir o que a
criança que pretendemos conhecer, tem a nos dizer.
Destarte, há através da imagem a possibilidade de promover esse diálogo entre passado
e presente, considerando as dimensões ontológicas, empíricas e epistemológicas que cabem a
este estudo. Portanto, convoco as imagens como testemunhas da realidade, como estimuladoras
de memórias, lembranças e conhecimentos. Desse modo, considerando as imagens como
reflexos da realidade que materializam discursos (MARTÍNEZ, I., 2011, p. 16; MITCHELL,
1994, p. 23; SARDELICH, 2006, p.468) e demonstram nuances de presença para além de uma
recordação (KOURY, 1998, p. 72-73; ACHUTTI, 2004, p. 85; ROSE, 2007, p. 12; FLUSSER,
2007, p. 111; CARVALHO, C., 2011, p. 124; SAMAIN, 2012, p. 158-160; AUMONT, 2016,
p. 8), as imagens constituíram-se como elos fundamentais para a construção desta tese. Porém,
antes de anunciar os caminhos metodológicos da pesquisa, traço algumas considerações iniciais
nesse capítulo introdutório, que considero fundamentais para a compreensão do todo.
Nesta perspectiva, entendo que “as imagens, sejam do mundo físico, das representações,
do imaginário simbólico, sejam da virtualidade, constituem-nos sem nos darmos conta do
quanto elas formulam nossos modos de ver o mundo” (CUNHA, 2008, p. 129). Ou seja, através
da imagem, a realidade é representada, a memória é acionada, as emoções estimuladas e as
interpretações evocadas. Portanto, recorro à imagem enquanto um fenômeno, logo,
As imagens pertencem à ordem das coisas vivas, ao mesmo título que os
problemas de beleza, os caranguejos do mar, as orquídeas e os seres humanos.
Explico-me. Se admitirmos que a imagem (toda imagem) é um fenômeno, isto é, “algo que vem à luz [phanein]”, “algo que advém”, um “acontecimento”
(um “advento” como melhor se dizia, outrora), entender-se-ia que ela é, ainda,
uma “epifania”, uma “aparição” [epiphanein], uma “revelação”, no sentido até fotográfico do termo (SAMAIN, 2012, p. 157, grifos do autor).
De acordo com Samain (2012) se admitirmos a imagem a partir da dimensão de
fenômeno, ela passará a ser mais que um objeto, passará a ser um “lugar de um processo vivo”,
1 Uma tese é escrita para ser lida, compreendida e criticada, mas isso, não significa que precise apresentar
uma linguagem sisuda, situada apenas no carácter racional do conhecimento, dessa forma, quando teço
as narrativas deste texto, procuro oferecer uma linguagem que possa não só ser lida, mas também,
contemplada pelo leitor, por isso, faço uso do termo espectador, considerando o carácter emocional da
imagem. Importante ressaltar que, quando utilizo estes termos, estou me referindo também, às leitoras e espectadoras, no entanto, apenas por questões práticas e estéticas, não reescrevo os termos no gênero
feminino.
26
parte integrante de um sistema de pensamento, daí a ideia de imagens pensantes, posto que:
A imagem, assim entendida, é longe de ser uma abstração. Ela é a eclosão de
significações, num fluxo, amplo e contínuo, de pensamentos que sabe
carregar. É por essa razão que a imagem pode-se tornar um clarão numa noite profunda, a aparição de uma espécie fantasmal esquecida, que, de repente, se
desvela por um curto instante, se revela, nos lembra de outros tempos e de
outras memórias. O tempo das imagens é um pouco como o tempo dos rios e das nuvens. Ele rola, corre, murmura, quando não se cala. O que faríamos sem
as imagens? (SAMAIN, 2012, p. 158).
Para Carvalho, C. (2011, p.116) através das imagens contemplamos afetos porventura
esquecidos, tendo em vista que a imagem se encontra entre a dissolução inexorável do tempo e
àquilo que se buscou preservar ante a ansiedade e o remorso que o desaparecimento poderia
causar, pois, evidentemente, “a realidade fixada deixou de existir um segundo após sua
cristalização”. Em outras palavras, registra-se através de imagens o que não se quer esquecer.
Nesta dimensão, a imagem não é só uma pseudopresença, mas, também se torna símbolo
de uma ausência estimada, ou seja, “Está-se diante do processo de ‘congelamento do tempo’,
tratando-se de realizar o inventário da mortalidade e do envelhecimento de quem aparece nas
fotos” (CARVALHO, C., 2011, p. 116, grifo do autor). Nestes termos, é possível afirmar que
através da imagem, a ausência, supostamente, se faz presença – como uma revivescência2.
O conceito de revivescência compreendido a partir da teoria da Reminiscência em Platão
é fundamental para entender a perspectiva epistemológica adotada neste estudo. Para este
filósofo, a alma humana vivia anteriormente no mundo inteligível ou das ideias, tendo acesso e
domínio da verdade, ou seja, a alma possuía a ciência absoluta. Ao vir para o mundo sensível,
perdeu a noção de ciência absoluta e passou a ter acesso ao conhecimento através de
rememoração, de “revivescências”, que significa voltar a viver trazendo à tona as memórias já
vivenciadas no mundo das ideias, o que fundamenta o conceito de reminiscência em Platão, que
assume o conhecimento como um processo de anamnese, isto é, uma forma de recordação
(PLATÃO, 1972, p. 72e-77a).
As concepções ontológicas do processo de reminiscência em Platão, constituiu a base
epistemológica para se pensar as dimensões do “reviver”, “sentir” e “compreender”, assim,
busquei “reviver” alguns momentos históricos, “sentir” as emoções e singularidades desses
momentos e “compreender” as realidades e transformações culturais da infância a partir das
trajetórias e evoluções históricas e conceptuais de criança e infância em diferentes épocas e
contextos. Quando me refiro ao “reviver”, penso as imagens como forma de recordação do
2 Cf. “Fédon” de Platão (1972, 72e-77a).
27
passado para compreensão do presente, ao “sentir” como o conjunto de conexões emocionais
que interligam a imagem à sua representação, produzindo assim, sensações, expectativas,
sentimentos e interpretações acerca do representado, o que leva a “compreender” a imagem.
Esse movimento cíclico de rememorar, gerar emoções e reflexões através das imagens,
me inspirou a optar pelo uso de narrativas visuais, dado o potencial representativo e expressivo
das imagens para a compreensão da realidade. Situação a qual remontei a ideia de memento3,
utilizado nesta tese sob o influxo do conceito de reminiscência4 que é abordado nas obras de
Platão - “Fédon” (1972, 70c-77a) cujo tema central era a imortalidade da alma e “Mênon”
(2001, p. 79e7-86c6)5 na qual o filosófico consagra o imagético-metafórico na relação com a
aprendizagem como um ato de rememoração, de recordação (CARNEIRO, 2008), implicando
assim, no conceito de reminiscência. O processo dialético da anamnese junto ao escravo de
Mênon comprova a pedagogia socrática ao pôr em evidência “a sincronicidade harmônica
almejada para a relação mestre-discípulo quando mediatizada por uma dinâmica de
conhecimento” (CARNEIRO, 2008, p, 17).
Partindo dessas premissas, as narrativas visuais construídas através de perspectivas
fotoetnográficas, tornaram-se reminiscências, e aqui, memento, ou seja, lembranças vivas. A
categoria “memento” refere-se ao processo de percepção e interpretação da imagem ao envolver
de forma cíclica e interdependente três movimentos: o reviver – como reminiscências que
trazem à tona as memórias e experiências do sujeito; o sentir – como expressões emocionais e
subjetivas; e o compreender – como movimento de análise interpretativa e reflexiva acerca da
imagem e a partir das conexões estabelecidas entre elementos racionas e emocionais disparados
pelo acionamento da memória frente à imagem6.
Na perspectiva maffesoliana, razão e sentimento detêm relação na compreensão dos
fenômenos sociais, em vista disso, a integração dos sentidos à progressão intelectual
“atualizaria a exigência platônica que impõe a elevação do sensível ao inteligível. Entendendo-
3 Memento é uma categoria empreendida nesta tese para a análise e compreensão das narrativas
fotoetnográficas. Será abordado no ensaio 1, subitem 1.2. 4 De acordo com Carneiro (2008, p. 64) o termo em espanhol, significa reminiscencia ou rememoración,
em italiano reminiscenza, em inglês recollection ou reminiscence e em alemão rückerinnerung. “Em
língua vernácula, anamnese ou anamnésia, reminiscência ou rememoração, recordação, lembrança e memória. Em síntese, grosso modo, o vocábulo reminiscência nomeia o ato de algo entrar de novo na
memória”. 5 Platão concebe seu texto em longos e metafóricos diálogos entre quatro personagens: Sócrates, Mênon,
escravo de Mênon e Ânitos. Desse modo, Sócrates levara seus interlocutores a parirem a verdade,
comprovando assim, sua tese de que “não há ensinamento, mas sim rememoração” (PLATÃO, 2001, 82a3). 6 Abordado no ensaio I, seção 1.2.
28
se que tal ‘elevação’ reconhece o sensível como parte integrante da natureza humana e,
evidentemente, os efeitos sociais que isso pressupõe” (MAFFESOLI, 1998, p. 27, grifo do
autor).
Nesta direção, por meio de narrativas escritas e visuais, tentei tornar esta pesquisa uma
leitura atrativa, prazerosa e, principalmente, contributiva para o desenvolvimento de novas
possibilidades investigativas no campo das Ciências Humanas e Sociais, sobretudo, voltadas às
pesquisas com crianças e sobre infâncias e culturas infantis. Conforme ressaltou Emmanuel
Garrigues7, a forma narrativa que aproxima texto escrito e imagem é uma das abordagens mais
apaixonantes para trabalhos de pesquisa, pois:
[...] inventar uma linguagem que una a linguagem-imagem e a linguagem-
texto abre perspectivas experimentais tanto científicas quanto artísticas,
permite recorrer a encontros entre pesquisadores e criadores e articular também o sensível e o racional aprofundando essa necessidade cada vez mais
evidente de ter uma abordagem científica não-mutilante do emotivo e do
subjetivo como portadores de conhecimento da realidade (GARRIGUES, 1997, p. 171).
Nesta perspectiva, esta pesquisa aponta novas possibilidades de pesquisa com crianças
que avançam em direção a uma compreensão holística da realidade e, principalmente,
contribuem com a visibilidade e participação da criança nos assuntos relacionados a ela. Além
disso, sinalizo direcionamentos e vias de interpretações para a compreensão das multiplicidades
infantis em suas dimensões e complexidades culturais, sociais e subjetivas lançando mão de
propostas metodológicas que estabelecem conexões ontológicas, epistemológicas e empíricas
através do diálogo entre conhecimento (razão) e emoção (sensibilidade). Assim, faço minhas
as extensas e necessárias palavras de Duarte Jr. (2000):
Amor, beleza, encantamento: quantas palavras proibidas em nosso rigoroso meio acadêmico, sempre cioso por definir seus objetos de estudo em termos
de qualidades objetiváveis, isto é, mensuráveis - coisa que, definitivamente,
não parece possível com estas três, dentre tantas outras aqui empregadas. Contudo, é preciso ousar; é preciso furar a crosta cientificista que vem
tornando as reflexões acadêmicas impermeáveis à vida que realmente importa:
aquela levada a efeito em nosso dia-a-dia, semelhante às dos cientistas e luminares de conhecimentos parciais - na verdade, a única vida que se tem,
em que pese as abstrações conceituais com as quais se escrevem teorias, tratados e teses. A vida é exercida, antes de tudo, valendo-se desses saberes
sensíveis e conhecimentos que o arrogante intelectual apressa-se logo em
classificar como “não-científicos” ou próprios do “senso comum”, feito este não contivesse qualquer verdade ou validade prática (DUARTE JR., 2000, p.
32-33).
7 Pesquisador e fotógrafo francês, destacado por Achutti (2004, p. 86) em seu trabalho “Fotoetnografia da
Biblioteca Jardim”.
29
É desse “saber da vida” que estou a falar, ou seja, desses conhecimentos culturais e
saberes sensíveis que muitas vezes são descredibilizados pela supremacia da academia dura e
seu ‘suposto’ absolutismo científico. O que significa afirmar que, para refletir sobre a trajetória
conceptual de criança, infância e culturas infantis, considero necessário, sobretudo, reconhecer
as implicações sociais e subjetivas que se constituem no “interior da representação, através da
cultura, não fora delas” (HALL, 1997, p.26).
Neste prisma, àquilo que foi narrado, registrado, dito, investigado, afirmado, refutado,
entre outros discursos que circulam nos escritos das Ciências Humanas e Sociais, estão
permeados não só de conhecimentos teóricos, mas, de olhares e imagens que refletem
experiências cotidianas de sujeitos sociais que carregam em si memórias, reminiscências,
sentidos e emoções que não podem mais ser negados na práxis investigativa, pois, constituem
suas identidades sociais, e estas são, de acordo com Hall (1997):
[...] o resultado de um processo de identificação que permite que nos
posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas
subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo discursivo e
dialógico. Portanto, é fácil perceber porque nossa compreensão de todo este processo teve que ser completamente reconstruída pelo nosso interesse na
cultura; e por que é cada vez mais difícil manter a tradicional distinção entre
“interior” e “exterior”, entre o social e o psíquico, quando a cultura intervém (HALL, 1997, p. 27, grifos do autor).
Este desafio exigiu uma perspectiva teórico-metodológica que ainda não havia me
deparado como pesquisadora em Educação, o que me fez caminhar em outros campos
científicos como Sociologia, Filosofia, Semiótica, Antropologia e, mais especificamente, a
Antropologia Visual, onde encontrei na Fotoetnografia do antropólogo brasileiro Luiz Eduardo
Robinson Achutti (1997)8, a inspiração que eu precisava. De acordo com Achutti (1997, p. 14)
a Fotoetnografia consiste “no uso da fotografia como uma narrativa imagética capaz de
preservar o dado e convergir para o leitor uma informação cultural a respeito do grupo
estudado”. O termo foi difundido no Brasil em sua dissertação de mestrado intitulada
“Fotoetnografia: um estudo de Antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho”, defendida
no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que consiste
no uso da fotografia como uma narrativa imagética integral (ACHUTTI, 1997, p. 87).
A abordagem fotoetnográfica procura construir através de imagens uma forma narrativa
da realidade, aproximando as linguagens visuais do universo da escrita, possibilitando ao
8 O ano de defesa de dissertação é 1996, mas o ano de publicação é 1997.
30
pesquisador e leitor uma “escritura por inteiro, [isso ocorre] quando se para de recorrer às
palavras para se deixar levar em uma viagem visual reveladora, abrigando o inefável que
igualmente encerra conhecimento e sentido” (ACHUTTI, 2004, p. 87, grifo meu), o que de
certa forma, tornou possível a rememoração, reflexão e compreensão histórica, social e cultural
das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis abordadas nesta pesquisa.
Portanto, a partir de um olhar curioso, sensível, porém, sistemático e apurado, estabeleço
um diálogo com a construção histórico-social e cultural das concepções de criança e infância a
partir de uma perspectiva fotoetnográfica, em que a principal forma de narrar foi o uso de
imagem, através de um exercício de antropologia visual (ACHUTTI, 1997, p. 12).
Destarte, ao produzir esta tese tive o cuidado de dar ênfase às representações imagéticas
acerca da trajetória e evolução das concepções de criança e infância em diferentes épocas,
destacando os contextos históricos e significados sociais que constituem e são constituídos
pelas culturas infantis, com o intuito de possibilitar ao leitor não só conhecer as particularidades
e pluralidades culturais da infância, mas, sobretudo, provocar o diálogo reflexivo em relação ao
que lhe proporcionarei a ver (considerando o meu próprio entendimento e sensibilidade).
Tal gesto, corrobora com a percepção de Koury (2011) ao afirmar que, o olhar sensível
do leitor passa a debruçar-se nas evocações racionais e sentimentais já provocadas no autor,
não para contraporem-se, mas, para “deliciarem-se” na emoção e revelação da produção, dessa
maneira, “autor e leitores dialogam, em entendimentos variados da narrativa proposta”, para,
[...] só depois sonhar, no estranho e necessário diálogo entre a proposta
enredada e os diversos enredos possíveis de serem propostos, no constructo simultâneo de vários fatos sobre os mesmos atos que se não são seus,
observadores, mas a eles foram oferecidos como produção em ato que gerou o fato enredado [...] (KOURY, 2011, p. 34).
Esses breves apontamentos anunciam a exposição dos caminhos que trilhei, das
reminiscências que tive, das imagens que levo nas memórias de infância, das experiências de
formação e profissão docente, das crianças que “conheci” nas entrelinhas da ciência, inclusive
até dos momentos de conflito epistemológico e metodológico que passei durante esses últimos
quatro anos de percurso produtivo e analítico. Experiências estas, que marcaram minha
biografia de maneira bastante significativa e que me direcionaram a empreender esta tão
enriquecedora etapa de formação acadêmica.
31
REMINISCÊNCIAS: “FALO DE MIM...”
Falo de uma infância vivida, inventada, sentida;
Falo de uma menina criativa, engraçada, desinibida;
Falo de um olhar curioso, teimoso e corajoso;
Falo de uma criança cheia de histórias para contar
e que acabou se tornando uma professora;
Falo de mim...
As questões relacionadas às infâncias e culturas infantis sempre fizeram parte de minhas
inquietações e motivações pessoais, principalmente, no que se refere ao protagonismo da
criança frente aos desafios impostos pela indústria cultural moderna, mais especificamente
relacionada às novas culturas visuais reconfiguradas pelas mídias digitais. Quando penso na
infância contemporânea, inevitavelmente, remeto às reminiscências da minha própria
experiência como criança.
Em 1984, por volta dos 7 anos de idade, eu e minha irmã mais nova de 5 anos,
brincávamos com várias miniaturas de móveis de madeira que reproduziam uma casa de
“verdade”, presente da nossa tia que morava no interior da Paraíba. Tentávamos imitar as
rotinas da família utilizando bonecas e utensílios de brinquedo. Fazíamos de conta que éramos
vizinhas e que cada uma havia construído sua própria família, mas, sempre parecida com a
nossa da “vida real”. Neste mesmo período, também brincávamos na rua com as coleguinhas
da vizinhança, sempre ao final da tarde, quando chegávamos da escola. Brincadeiras como
“amarelinha”, “pega-pega”, “toca-gelo”, “esconde-esconde”, “pula corda”, “batatinha-frita
1,2,3”, “pula-elástico”, entre outras. Além é claro, de brincar com a imaginação assumindo
vários papéis sociais como: “cientista” - fazendo perfumes com folhas e flores dos jardins,
misturando cores e cheiros; “padeiro” – fazendo pães e biscoitinhos com farinha de trigo e água
e outras comidinhas com alguns grãos que conseguíamos pegar “escondido” na cozinha e de
“professora” - fazendo de conta que estávamos na escola com todas as rotinas de uma sala de
aula.
Até os 9 anos, brincávamos com uma réplica da tradicional boneca Barbie e também,
com a boneca “Meu Bebê” da marca Estrela, uma empresa multinacional que dominava o
mercado econômico de brinquedos infanto-juvenis da época. Lembro-me que essas bonecas
eram muito caras e meus pais não tinham condições de comprá-las, só depois de algum tempo,
com muito sacrifício, o “Papai Noel” nos presenteou na noite de Natal. Logo, eu e minha irmã,
batizamos asbonecas “gêmeas” de Ana Cristina e Ana Paula, pois vinham com pulseirinhas de
32
identificação, aquelas de maternidade. Essas bonecas eram as nossas prediletas, pois por muito
tempo já sonhávamos em tê-las, acredito que parte dessa vontade era decorrente dos inúmeros
comerciais de TV9 que nos envolviam com lindas canções e imagens de crianças felizes
brincando com seus “bebês”. Guardei essa boneca até os 14 anos, mas cedi às minhas primas
que ainda eram pequenas e também não tinham condições de adquirir10.
Em 1986, entre 9 e 10 anos de idade, as atenções voltaram-se para a chegada do
programa de TV, “Xou da Xuxa”, a programação infantil de maior repercussão midiática da
época, comandado pela apresentadora Maria das Graças Xuxa Meneguel, mundialmente
conhecida como Xuxa. As lembranças desse tempo são bastante significativas. Eu e as mesmas
amigas reproduzíamos o programa com frequência. Nossa brincadeira envolvia mais de 30
crianças, entre meninos e meninas de todas as idades que moravam na vizinhança, algumas
estavam sempre acompanhadas de seus familiares. Lembro-me de cada detalhe minimamente
organizado, o cenário decorado, as brincadeiras, as músicas, os sorteios de cartinhas em cada
suposto “intervalo comercial”, (algumas confeccionadas por nós, outras por crianças da
vizinhança), líamos dezenas dessas durante o “xou”. Mas, a recordação mais interessante era
como nos preocupávamos em nos vestir igual a Xuxa, principalmente com botas compridas,
acessórios nos cabelos e muita maquiagem no rosto, lógico!
Buscávamos manter a mesma organização do programa original, inclusive cada uma de
nós exercíamos papéis referentes a cada personagem: a Xuxa, as Paquitas, o Praga, o Dengue,
o Moderninho e até o cameraman11, que fazia de conta que filmava todo o programa. Quando
não estávamos no “xou”, também procurávamos parecer exatamente iguais à Xuxa, as roupas
do cotidiano, os penteados e como sempre, a maquiagem. Não recordo quanto tempo isso durou,
mas sei que em muitas tardes todo esse processo se repetiu.
Outra forte lembrança refere-se aos intervalos comerciais que ocorriam durante o
9 QRcode 01: Comercial dos brinquedos Estrela. A boneca Bebezinha aparece logo na abertura da mídia.
10 Os brinquedos Estrela eram veiculados na mídia televisiva e se tornavam o sonho de consumo de meninas
e meninos que vivenciaram a infância nos anos 80. QRcode 02: Para conhecer a história da empresa de
brinquedos Estrela.
11 Palavra inglesa que significa operador de máquina de filmar (PRIBERAN, 2016).
33
programa, mostravam produtos alimentícios, brinquedos, vestuários como as sandálias da
Melissinha12 que vinham com pochete e relógio. Sem querer aprofundar as lembranças, ainda
destaco os desenhos animados, os musicais infantis e outras programações televisivas como
Show Maravilha, Sítio do Pica-pau Amarelo, Castelo Ra-tim-bum, Turma do Chaves, e muitas
outras programações específicas para crianças.
Essas recordações demonstram que a mídia televisiva já era bem presente no cotidiano
das culturas infantis nos anos 1980, no entanto, isso não limitava as interações infantis nem
substituía as brincadeiras de rua, como tem sido visto nos dias de hoje. De acordo com pesquisas
que discutem as relações da infância na contemporaneidade relacionadas às mídias, tecnologias
e culturas é possível afirmar que fatores como a violência urbana, as alterações nos modos de
vida familiar, a saída da mulher para o mercado de trabalho, a institucionalização da infância,
a apropriação dos saberes científicos sobre a infância, a demanda da educabilidade e proteção
das crianças, o aumento do uso das tecnologias nas rotinas domésticas como a própria televisão,
o computador, o celular, os jogos eletrônicos, a Internet, as redes sociais, entre outras mudanças
culturais, sociais e econômicas decorrentes da modernidade, desencadearam outras formas de
vivenciar a infância, consequentemente, as crianças tiveram de se adaptar às novas
possibilidades do brincar e com isso, as brincadeiras de rua foram sendo substituídas pelas
brincadeiras eletrônicas e virtuais (AMARAL, 2010; CABRAL, 2008; DORNELLES, 2005;
DUARTE JR, 2000; FISCHER, 2008; GIRADELLO, 2005; PACHECO, 2004; SARMENTO,
2003).
Atualmente, já não se veem mais crianças nas ruas brincando como antes, as cidades
foram se modificando, as casas passaram a ter grades, portões eletrônicos, câmeras de
segurança; as famílias já não se sentem seguras em deixar seus filhos e brincando em ambientes
públicos sem a supervisão de adultos, a procura por condomínios horizontais e verticais é cada
vez maior dada à segurança que oferecem. Além de tudo que já foi dito, a “rua” foi proibida, o
que em minha opinião, contribuiu bastante com a reconfiguração das culturas infantis na
atualidade, conforme, profeticamente, ressaltou Amaral (2010, p. 55) “[...] estamos
constituindo uma sociedade em que os indivíduos vivem enclausurados em condomínios,
apartamentos, shoppings e escolas, na maioria das vezes, vigiados 24 horas por dia”. Conforme
havia ressaltado Duarte Jr. (2000, p. 87):
12 QRcode 03: Comercial Melissinha.
34
[...] às crianças não se oferecem mais oportunidades de contato com a natureza, com a cidade e os seus iguais, em situações mais desprendidas e
abertas do que aquelas verificadas nos parcos espaços livres de nossos
edifícios. As crianças, tanto quanto os adultos, não contam mais com espaços e locais amorosos e sensíveis para caminhar e correr em nossas cidades
modernas. Cidades cujo propósito vem se restringindo ao estritamente econômico, ao estritamente prático, funcional e utilitarista. Cidades
desprovidas de alma e apelos à sensibilidade de todos nós, a não ser no modo
inverso e negativo. Assim, hoje, como caminhar e brincar nesses nossos neuróticos centros urbanos? (DUARTE JR., 2000, p. 87).
A realidade de crianças pobres, moradoras de comunidades carentes, não é muito
diferente, pois a violência entre facções criminosas e entre polícia e traficantes, muitas vezes
criam pânico na população, restando o enclausuramento também a essas crianças. Dois
exemplos dessa violência puderam ser verificados recentemente, em dois trágicos desfechos na
cidade do Rio de Janeiro, um no Complexo do Lins, onde uma menina de 10 anos foi morta por
bala perdida13, e outro em Duque de Caxias, onde um bebê foi baleado ainda dentro do útero
da mãe, vindo a falecer um mês depois.14
Todavia, não significa que as crianças de hoje não gostem mais de brincadeiras de “rua”,
mas, significa que principalmente elas, sofreram as consequências da modernidade tardia que
caminha para uma sociedade de relações líquidas, superficiais e instáveis (BAUMAN, 1998).
Segundo o estudo “O auge e o declínio da programação infantil na TV comercial
brasileira” realizado por Borges, Arreguy e Souza (2012, p. 90), o período entre 1984 e 2000
pode ser considerado o auge da programação infantil em TV aberta no Brasil, considerando a
segunda geração de programas feitos exclusivamente para crianças, o que gerou grandes
investimentos em publicidades de marcas e produtos, assegurando significativa audiência
inclusive fora de horário nobre. A partir de 2001, iniciou o que os autores chamaram de declínio,
destacando algumas dificuldades que as emissoras tiveram de enfrentar como: denúncias,
críticas e avaliações sobre o target15 infantil e a propaganda publicitária voltada para esse
público, realizadas por organizações não governamentais (ONGs) Instituto Alana, a Agência
13 QRcode 04: Jornal Nacional (04/07/2017).
14 QRcode 05: Folha de São Paulo (30/07/2017).
15 Termo em inglês usado para designar o público alvo de um produto ou serviço filmar (PRIBERAN,
2016).
35
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Conselho Nacional de Autorregulamentação
(CONAR), perda de receita publicitária e redução do espaço dos programas para crianças.
Notadamente, ainda é bem presente esse declínio na TV brasileira, por exemplo, quando
paro para pesquisar a programação infantil dos canais abertos de televisão me deparo com uma
grande lacuna, lacuna esta, preenchida com programações que parecem ser infanto-juvenis, mas
que nada oferecem como entretenimento propriamente direcionado à criança, não há mais
programas de auditório, apresentadoras como Xuxa, Angélica, Mara-maravilha, os grupos
musicais para o público infantil desapareceram, as mídias tratam as crianças como pré-
adolescentes, restando apenas a imensa indústria comercial, que ainda explora espaços na mídia
televisiva com publicidades que tentam abarcar a nova infância, agora, ainda mais consumidora
(MOMO, 2007), mesmo após a implementação da Resolução Nº 163 do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que dispõe sobre a abusividade do
direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente16
(CONANDA, RESOLUÇÃO Nº 163, 2014).
Para destacar alguns exemplos atuais de programação que se dizem voltadas ao público
infantil na TV aberta cito o “The Voice Kids” na Rede Globo e o “MasterChef Junior”, na Rede
Band, programas de curta temporada com altos índices de audiência, que têm como seus
principais participantes, crianças. No entanto, partindo de uma breve avaliação, no primeiro
caso, é possível observar crianças com repertórios musicais que destoam das particularidades
do universo linguístico infantil, a exemplo da música “Can't remember to forget you” da cantora
Shakira, com forte tendência à erotização e a música “Inútel” da Banda Ultraje a Rigor, de
cunho extremamente crítico, político e ideológico17, poucas crianças cantam musicais infantis.
No segundo caso, trata-se de um programa de culinária onde crianças entre 9 e 13 anos
competem entre si como se fossem chefes de cozinha profissionais, tendo de produzir pratos
complexos e diferenciados que vão desde massas italianas até frutos do mar à francesa18. Os
dois programas são releituras de produções internacionais que consistem em eliminatórias e
16 Tratarei, especificamente, dessa discussão no ensaio 2. 17 QRcode 06: Matéria: O fim dos programas de infantis na TV.
18 QRcode 07: Canal no YouTube Master Chef Junior.
36
competições com premiações em dinheiro e/ou contratos de trabalho.
Hoje, essas memórias me fazem refletir sobre alguns pontos que considero importante
para compreender as muitas infâncias atuais que a todo o momento me surpreendem. O primeiro
corresponde ao poder de persuasão e dominação (FERRÉS, 1998; POSTMAN, 1999) que a
indústria cultural, “a gigantesca maquinaria econômica” e suas várias ramificações exercem na
sociedade (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 119); o segundo relaciona-se às imagens e
representações sobre crianças e infâncias que são absorvidas, reproduzidas e construídas a partir
dos modelos efêmeros impostos pela mídia e seus variados segmentos (PACHECO, 2004;
MOMO, 2007; ALANA, 2009; CARLOS, FAHEINA, 2010; BECKER, 2010) reconfigurados
na/pela era digital e terceiro no que diz respeito à importância de discernir as subjetividades e
peculiaridades da imaginação infantil a partir das próprias narrativas e experiências culturais da
criança, mesmo partindo de um olhar, de uma consciência e de uma formação adulta
(SARMENTO, 2007; CORSARO, 1997; MÜLLER, 2010). Essas reflexões repercutiram
diretamente na minha trajetória acadêmica e profissional, o que, consequentemente, me levou
a desenvolver estudos e pesquisas nessas áreas, culminando também, na própria tese em
questão.
Em 2001, ao final do curso de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) realizei estudo monográfico sobre os jogos e as brincadeiras como elementos
fundamentais do processo ensino-aprendizagem na Educação Infantil. Este estudo partiu do
princípio de que o brincar constitui uma característica fundamental do imaginário da criança,
logo, o jogo e a brincadeira ganham espaço como recursos estimuladores para a aprendizagem
na medida em que se propõe estímulo ao interesse da criança. Constatei que a brincadeira
possibilita à criança justamente o prazer de se sentir atuante frente à situação não dominada por
ela, ou seja, através do brincar a criança resolve as situações de difíceis enfrentamentos, como
medo, insegurança ou inibição, para isso, ela recria as situações combinando modos de
compensação dos aspectos menos facilmente assimiláveis. Conclui que quanto mais difícil de
ser assimilada uma situação, mais a criança a modificará do seu jeito, até que, frente às situações
penosas e desagradáveis, ela assimilará progressivamente, revivendo as situações em contextos
mais acessíveis (CABRAL, 2001).
Em 2004, já trabalhando como professora de Educação Infantil em escola privada,
ingressei no curso de Especialização em Psicopedagogia, e como trabalho de conclusão realizei
o estudo monográfico intitulado “O uso de jogos como subsídio para o atendimento às crianças
com dificuldades de aprendizagem no Ensino Fundamental”. Os resultados apontaram que
através dos jogos de memorização e de montagem as crianças conseguem estabelecer ligações
37
cognitivas que permitem a compreensão de conteúdos de leitura, escrita e raciocínio
matemático, diminuindo as dificuldades de aprendizagem relacionadas à dislexia (deficiência
na área de leitura), disgrafia (deficiência na área da escrita física) e discalculia (deficiência na
área da matemática).
Ao concluir a especialização, recebi o convite da professora Maria Cacilda de Souza
Marques Rêgo (a quem tenho como inspiração e agradeço imensamente seus ensinamentos e
sábios conselhos), coordenadora pedagógica da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
para exercer a função de professora em nível superior no Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Uma experiência que me permitiu conhecer professores da Educação Infantil de várias cidades
da Paraíba. Na UVA permaneci por 4 (quatro) anos, fazendo parte da equipe de Prática de
Ensino e Estágio Supervisionado, grupo responsável pela orientação dos trabalhos de conclusão
de curso (TCC), experiência que me rendeu significativas aprendizagens, principalmente, em
relação às peculiaridades da docência em escolas públicas paraibanas, e dos modos de ser
criança e de se vivenciar a infância na contemporaneidade dentro do espaço escolar.
Durante este mesmo período (2004-2005), iniciei o Mestrado em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação na UFPB e passei a fazer parte do Grupo de Pesquisa
e Estudos sobre a Criança - GRUPEC vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Estudo sobre a Criança
- NUPEC e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) do Centro de Educação na
UFPB, coordenado pela pesquisadora e orientadora desta tese, Dr.ª Adelaide Alves Dias. O
grupo tem o objetivo de desenvolver atividades de pesquisa, ensino e formação de recursos
humanos em nível de graduação e de pós-graduação. As discussões se baseiam nas concepções
de criança, infância e culturas infantis a partir das bases teóricas da Sociologia da Infância, da
Antropologia da Criança, da Psicologia da Infância e da Pedagogia. Promove investigações
relacionadas à formação do educador infantil, políticas públicas, currículos, metodologias e
práticas educacionais mais especificamente na área de Educação Infantil, além de discutir
também sobre o lugar da infância nos Direitos Humanos (ABREU, 2005; MACÊDO, 2005,
DIAS, 2007; ESCARIÃO, 2009; LEMOS, 2009; AMORIM, 2011; NÓBREGA, 2012; LIMA,
2015; SILVA, T. 2015; MEDEIROS 2015). O GRUPEC/NUPEC também tem desenvolvido
estudos sobre as culturas midiáticas no contexto da Educação Infantil, mais especificamente,
direcionadas à mídia televisiva e desenhos animados (CABRAL, 2008; SILVA, M., 2010).
Em 2008, ao concluir o Mestrado acadêmico, defendi a dissertação intitulada:
“Representações infantis sobre desenhos animados televisivos: um estudo com crianças entre 4
e 5 anos”, com o objetivo de investigar a mídia televisiva e suas implicações nas culturas
infantis, contextualizando e discutindo a relação das crianças com a televisão e os desenhos
38
animados sob enfoque das abordagens psicossociais da educação. A intenção surgiu de
observações que realizadas junto às crianças em seus horários de “recreio”19, pois
constantemente percebia suas imitações e referências aos seus personagens prediletos da TV,
tais imitações constituíam também suas linguagens e brincadeiras. Isso me chamou atenção e
me fez questionar até que ponto esta relação poderia influenciar e/ou interferir no
desenvolvimento cognitivo, cultural e social infantil.
Esta referida pesquisa revelou que as crianças investigadas passavam cerca de 4 horas
diárias assistindo televisão, especificamente, desenhos animados da programação aberta ou
assistiam filmes em DVD de seus personagens prediletos. Além disso, de acordo com relatos
das próprias crianças e de suas mães, as crianças costumavam imitar o comportamento dos
personagens animados diariamente e buscavam adquirir produtos com as imagens desses
personagens, comprovando como isso, que a indústria cultural impõe modelos e estimula o
consumo na infância influenciando suas escolhas e consumos.
Dessa forma, foi constatado que a criança formula concepções do real a partir do
imaginário e vivencia suas fantasias e experiências ampliando seus repertórios culturais a partir
das relações que também estabelece com os desenhos animados e personagens prediletos. Além
disso, foi verificado que os recursos midiáticos fazem parte das culturas infantis, apoiando o
pensamento, a imaginação e os significados da criança, ajudando-a a desenvolver a linguagem,
memorização e aprendizagem, ou seja, constituindo-se como elementos presentes e atuantes
para sua formação cultural e cognitiva. Destarte, a pesquisa evidenciou a importância de
promover diálogos entre educação e mídia televisiva para ampliar as possibilidades
imaginativas, criativas, reflexivas e críticas das crianças em relação ao que assistem e
reproduzem (CABRAL, 2008).
Logo que concluí o Mestrado acadêmico, parti (junto com a família) em busca de
“melhores condições de vida”, assim seguimos para uma região que estava despontando no
cenário econômico como uma área promissora para profissionais qualificados20, já que em João
Pessoa as oportunidades eram mais escarças e a concorrência mais acirrada. Fixamos residência
no município de Tucumã, localizado na região sudeste do estado do Pará, pertencente à
microrregião de São Félix do Xingu, distante cerca de 980 km da capital Belém. Lá permaneci
por 5 anos, período em que tive a oportunidade de exercer a docência em cursos de graduação
19 Recreio - forma popularmente conhecida na Paraíba como o período de pausa entre as aulas, momento
em que as crianças lancham e brincam. 20 Profissionais com formação em nível superior. No caso, minha formação - mestrado em educação, e a do
esposo - cirurgião-dentista.
39
e pós-graduação em educação e de ocupar um cargo de gestão21, mais especificamente como
coordenadora pedagógica em um dos maiores projetos de atuação da Fundação Vale - a Estação
Conhecimento (EC)22.
A Estação Conhecimento foi idealizada para atuar nas áreas de esporte, cultura, geração
de renda, educação, saúde e proteção social, sendo inaugurada sua primeira unidade em 2008
em Tucumã- PA. Em se tratando de esporte, a EC está vinculada a outro programa de atuação
da Fundação Vale, o Brasil Vale Ouro (BVO)23 que é voltado para crianças e adolescentes entre
6 e 17 anos e tem o objetivo de ensinar práticas esportivas de alto rendimento estimulando o
desenvolvimento da convivência social, a promoção da saúde e o aprimoramento da consciência
crítica e cidadã. A base da proposta pedagógica da EC e do BVO foi inspirada nos conceitos
que fundamentaram o relatório enviado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI (1999), coordenado por Jacques Delors, os chamados pilares da educação - aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. A partir destes fundamentos,
elaborávamos as atividades teóricas e práticas da EC, contemplando todas as suas modalidades
de atendimento à comunidade.
Esta experiência foi um grande desafio para minha carreira profissional, talvez a mais
significativa e prazerosa de todas, em função da responsabilidade de ser a primeira
coordenadora pedagógica deste empreendimento e pela dimensão social e política desta missão,
que envolvia tanto o caráter educacional quanto as concepções de participação democrática,
conscientização da população em relação ao exercício da cidadania e os princípios de saúde e
bem-estar necessários à qualidade de vida.
Apesar de funcionar em Tucumã, tudo que era pensado e produzido in loco, visando a
sistematização de um modelo padrão de funcionamento a ser implementado nas demais
unidades, desse modo, as reuniões de planejamento e avaliação eram realizadas em São Paulo,
no escritório central da fundação e contava com a participação de inúmeros profissionais e
21 A gestão democrática da EC é desenvolvida por uma equipe formada por um coordenador administrativo,
um coordenador esportivo, uma coordenadora pedagógica e uma psicóloga. 22 A Fundação Vale tem o objetivo de promover o desenvolvimento territorial integrado (econômico,
ambiental e social) em áreas de operação da Vale, visando o fortalecimento do capital humano nas
comunidades por meio de iniciativas sociais voluntárias e de caráter estruturante. O projeto visa a
instalação de 33 unidades no Brasil, porém, apenas 6 foram inauguradas até agora. 23 QRcode 08: Fundação Vale/Estação Conhecimento.
40
consultorias referentes a cada área de atuação, inclusive com a participação de atletas
profissionais do esporte brasileiro24. Desse modo, como coordenadora, fui corresponsável pela
implantação, sistematização e funcionamento da Estação Conhecimento, onde tive a
oportunidade de conviver com mais de 700 crianças e adolescente em programas regulares de
esporte, cultura e lazer (natação, atletismo de alto rendimento, futebol, informática, mídia,
teatro, xadrez) e mais de 900 jovens e adultos em cursos técnicos profissionalizantes regulares
com certificação (elétrica, hidráulica, alvenaria, informática, biojóias, recepcionista, camareira,
garçom, vendas, dentre outros).
Na EC participei diretamente da produção de materiais didáticos, formação de
profissionais, sistematização de ações voluntárias, implementação de cursos profissionalizantes
desde a elaboração curricular até o acompanhamento pedagógico junto aos professores, ações
integradas entre família e comunidade, ações culturais e esportivas junto às crianças e jovens
atendidas pelo projeto, entre outras atividades de gestão e ação social comunitária, sendo
representante da EC em solenidades municipais como no I Fórum Comunitário UNICEF -
Fundo das Nações Unidas para a Infância - “Selo UNICEF Município Aprovado” 25 que visou
o monitoramento e a avaliação do município a partir de 3 eixos temáticos: Impacto Social,
Gestão de Políticas Públicas e Participação Social das crianças e adolescentes, com o objetivo
de contribuir para que os direitos da criança e do adolescente no Brasil sejam protegidos,
respeitados e garantidos, principalmente em se tratando de reunir esforços para a redução das
desigualdades e a melhoria da vida de crianças e adolescentes em situação vulnerável.
Esta experiência na Estação Conhecimento mostrou outra dimensão da minha profissão
- a do compromisso social. Ser professora hoje, para mim, tem um peso maior. Tem o peso da
responsabilidade com o outro e o compromisso de promover mudança, de provocar a
transformação da realidade de pessoas que, assim como eu, sonham com uma oportunidade de
viver melhor. Durante esse período, convivi com muitas crianças e adolescente, em sua maioria
24 Apesar de buscar um modelo de implementação e funcionamento, cada Estação Conhecimento era
pensada a partir de um estudo piloto sobre as características locais e particularidades culturais de cada
região, buscando promover a produção econômica da região a partir de suas peculiaridades e produções
econômicas, por exemplo: em Tucumã, há uma frente para produção de biojóias, peças produzidas a partir
do beneficiamento de sementes da região que foram comercializadas no Brasil e no exterior por incentivo da Fundação Vale. Na unidade de Brumadinho, há o incentivo e apoio aos produtores rurais nas ações de
extensão rural. 25 QRcode 09: Selo Amazônia, Município Aprovado.
41
de baixa renda, algumas não tinham nem o que comer em casa, e faziam suas refeições na
própria EC, muito menos tinham dinheiro para comprar roupas e brinquedos.
Lembro-me que um dos destaques do atletismo, era uma menina chamada Rosilane
Cavalcante da Silva (Laninha) com 14 anos na época, ela obteve por duas vezes o segundo lugar
na Corrida de São Silvestrinha (2009 e 2010) e era uma grande promessa para representar o
Brasil em Olimpíadas. No entanto, ela vivia em condições precárias de moradia e alimentação,
situação que sensibilizou a Fundação Vale, a ponto de promover a construção de sua casa,
disponibilizando também um auxílio financeiro, inicialmente oriundo da EC e posteriormente,
assumido pelo Programa Bolsa Atleta, uma iniciativa do Ministério do Esporte pela Secretaria
Nacional de Esporte de Alto Rendimento. Não entrarei na discussão que engendra interesses
aristocratas das grandes corporações públicas e privadas brasileiras, apenas quero demonstrar
com esse exemplo que, através de uma iniciativa como esta, foi possível transformar a realidade
e o futuro de uma adolescente que não tinha nenhuma perspectiva de se tornar uma atleta
profissional, foi através da educação e pela pedagogia do esporte que ela pode sonhar com uma
vida melhor.
Essa ideia de que “a educação é o caminho para melhorar de vida” incorporada pela
classe trabalhadora de baixa renda se materializou no meu discurso e no discurso de tantos
outros que conheci. Por isso, não hesito em afirmar que através da educação é possível sonhar
com uma sociedade mais equânime, mais consciente de sua potência crítica, enquanto força
política. Foi a educação que me possibilitou chegar até aqui, promovida por grandes mestres e
pelas oportunidades que tive, e são estas oportunidades que quero oferecer, em qualquer espaço
em que eu atue, convicta de que,
A leitura crítica do mundo é um que-fazer pedagógico-político
indicotomizável do que-fazer político-pedagógico, isto é, da ação política que envolve a organização dos grupos e das classes populares para intervir no
reinventar da sociedade. A denúncia e o anúncio criticamente feitos no
processo de leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos (FREIRE, 2000, p. 21).
Em 2012, a mineração Vale, situada em Ourilândia do Norte, cidade vizinha de Tucumã,
passa por uma reestruturação gerencial devido a problemas administrativos e técnicos na
extração de níquel, o que acarreta numa paralisação de quase 2 anos da produção, e com isso,
provocando uma série de consequências para a região: súbita queda no volume de funcionários,
passando a operar com aproximadamente 40% do quadro; “esvaziamento” nas duas cidades;
aumento do desemprego e falência de muitas micro e pequenas empresas, em virtude disso, a
decisão de retornarmos para João Pessoa.
42
Logo que retornei, voltei a trabalhar na UVA onde permaneci por mais 2 (dois) anos,
ministrando disciplinas na Licenciatura em Pedagogia (2013 e 2015). Concomitantemente,
iniciei o curso de Doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade
Federal da Paraíba e assumi, nesta mesma instituição, o cargo de professora substituta pelo
Departamento de Habilitações Pedagógicas da UFPB, Campus I, ministrando disciplinas nas
áreas de Currículo, Política e Planejamento Educacional (2013-2015). Já no final de 2014, fui
aprovada em concurso público na Prefeitura Municipal de João Pessoa e assumi a função de
professora de Educação Básica em 2015 uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental na Escola
Municipal David Trindade situada em Mangabeira (JP/PB), onde permaneci por apenas um
semestre letivo, pois ainda em 2015, fui aprovada em outro concurso público na UFPB, desta
vez em dedicação exclusiva, lotada como professora na Escola de Educação Básica vinculada
ao Departamento de Educação Básica, Técnica e Tecnológica no CE-UFPB, onde estou tendo
a oportunidade de exercer a docência e perceber a complexidade do universo infantil,
descobrindo como as crianças se relacionam com os fenômenos a sua volta e como usam a
criatividade para elaborar estratégias e soluções para contornar as realidades econômicas e
sociais nas quais estão inseridas, mantendo-se “antenadas”26 com as novidades e artefatos do
mundo contemporâneo como tablets, jogos eletrônicos, computadores e principalmente com o
uso de celulares cada vez mais sofisticados e práticos, que permitem a produção e reprodução
de imagens através de vídeos e fotografias digitais, além da possibilidade de acesso à Internet
e toda a rede de informações que dispõe.
As experiências na condição de professora, aluna e pesquisadora proporcionaram a
ampliação das minhas convicções sobre Educação Infantil, ao entender a criança a partir das
singularidades culturais que permeiam o universo infantil que se constituem nas interações
sociais estabelecidas com o universo adulto, porém, nas especificidades das culturas infantis,
as crianças vão resistindo, transgredindo, dando sentidos e significados ao mundo a sua volta e
desconstruindo conceitos que as inferiorizam e as desqualificam como sujeitos protagonistas
de suas histórias.
O desafio de ser aluna e professora ao mesmo tempo não me fez desistir, pois, minha
maior motivação sempre foi a qualidade no trabalho docente que exige acima de tudo
conhecimento, qualificação e o compromisso social em busca da transformação da realidade
dos indivíduos em que pese principalmente a desigualdade econômica, levando-os a refletir
26 O significado cultural desta expressão significa estar atualizada com determinados artefatos tecnológicos
da geração ciber. Cf. Amaral (2010) e Dornelles (2005).
43
sobre suas condições de vida, sobre como é possível superar as dificuldades através do
conhecimento e da educação, e sobre como esta superação pode e deve fortalecer nossas
convicções abrindo portas para uma vida mais digna e autônoma.
São reminiscências que afloram sentimentos de pertencimento social que foram dando
formas e significados à minha identidade pessoal, política e profissional. Emoções que me
ligam à importância das imagens que construo como narrativas autobiográficas que me ajudam
a compreender o espaço que ocupo, as relações que estabeleço e as construções epistemológicas
das quais compartilho. Lembranças que me direcionaram a perceber que, mesmo considerando
as particularidades e singularidades das muitas infâncias que conheci, é possível perceber certa
sintonia em aspectos que universalizam as concepções de infância como: a essência da
criatividade da criança em modificar, criar, transformar, e “re”produzir situações culturais; a
capacidade de lidar com a imaginação no enfrentamento de condições adversas; a
potencialidade de subverter padrões e imposições culturais; a facilidade com que a criança
exerce sua alteridade entre pares e com os adultos. Estas e outras impressões me fazem crer que
o protagonismo infantil está presente na realidade da criança e essa conquista é, principalmente,
mérito dela. Esta afirmação, um tanto que presunçosa, está implicada na ação da criança em seu
cotidiano social, tendo em vista que ela marca seus territórios e contextos com suas identidades
culturais de criança como protagonista de sua própria história de vida.
Como a pouco revelado nas reminicencias de minha própria infância, onde não só revivi
as singularidades das experiências de criança, mas, sobretudo, compreendi as formas de
enfrentamento com que eu, minha irmã e algumas amigas, enfrentávamos a realidade social e
econômica na qual estávamos inseridas e que, em certa medida, não nos dava condições de
usufruir de todas “aquelas formas perfeitas” de ser e de viver das crianças que víamos
magicizadas nas imagens televisivas.
Entretanto, isso não nos impediu de sonhar, imaginar e “fazer-de-conta”. Não éramos
perfumistas, mas criávamos linhas inteiras de fragrâncias florais, herbais e cítricas; não éramos
padeiras, mas fabricávamos os melhores pães e biscoitos da vizinhança; não trabalhávamos em
escolas, mas nossos/as “alunos/as” eram os mais inteligentes e “bagunceiros” que se poderia
imaginar; Não tínhamos as Barbies originais da Mattel e seus castelos encantados que
apareciam nos comerciais de TV, mas as nossas “Barbies” eram as mais “descoladas’ e
elegantes do bairro; Nunca participamos do Programa “Xou da Xuxa” no Rio de Janeiro, na rua
“Saturnino de Brito” (o restante do endereço, não lembro mais), nem sequer conseguimos
conhecer a Xuxa pessoalmente, mas todos os dias “ela” chegava em sua nave espacial para
apresentar seu “xou” no quintal das nossas casas; não tínhamos celular, computador, tablet,
44
Internet, mas haviam dois artefatos que nunca nos deixava entediados: a televisão e sua imensa
variedade cultural, e a “rua” que era o palco das nossas grandes “invenções”.
São estas percepções que direcionam neste processo de doutoramento, investigações
mais aprofundadas acerca das singularidades da criança, das pluralidades da infância e da
complexidade das culturas infantis, que, embora pareçam tratar de uma mesma temática,
constituem-se em perspectivas distintas entre si, como almejo evidenciar mais adiante.
Interessou-me perceber também, como a criança vem sendo representada histórica e
socialmente através da Ciência, da Cultura Visual e da sociedade para reflexionar seus modos
de ser e de viver em cada época e compreender suas formas de enfrentamento, resistência e
subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido a ela (criança) como
informação e cultura.
Para além de tais elucubrações, dou continuidade ao capítulo introdutório, elucidando a
sistematização teórico-metodológica adotada neste estudo. Sendo assim, apresento alguns
aspectos conceituais à medida que contextualizo o objeto, indicando sua relevância para
academia, e mais especificamente, para as novas possibilidades de intervenção em pesquisas
com crianças. Nesta mesma direção, destaco o cenário transdisciplinar que constitui os três
campos de análise empreendidos na tese e discorro sobre os elementos fundamentais que
conduziram a pesquisa: objetivo, problema, referencial teórico e metodológico, sumariando
procedimentos e instrumentos utilizados ao longo da investigação.
45
DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS
O que se preconiza, em alternativa, é uma mudança de
perspectiva no campo interdisciplinar dos estudos da criança,
em especial no campo sociológico. A investigação das crianças
com base na infância como categoria geracional própria, o
reconhecimento crítico da alteridade da infância (a par do
esclarecimento dos diversos sentidos em que essa alteridade
se exprime, no quadro de um reconhecimento das crianças
como os múltiplos-outro, perante os adultos, por efeito da
variedade de condições sociais) e ainda o balanço crítico das
perspectivas teóricas que construíram o objecto infância como
a projecção do adulto em miniatura ou como o adulto
imperfeito em devir, tudo isso é o que aqui se preconiza, num
esforço simultaneamente desconstrucionista de constructos
pré-fixados e de investigação empírica. Esta mudança de
perspectiva – ou, se preferirmos esta “mudança
paradigmática” (James et al., 1998) – constitui o esforço
teórico principal da sociologia da infância (SARMENTO,
2005, p. 372-373, grifos do autor).
Criança e Infância, palavras aparentemente sinônimas, no entanto, complexamente
diferentes e complementares. Em que se diferem, em que se aproximam ou como são
aproximadas? São questões como estas que me acompanham e estão presentes em vários
trabalhos de pesquisa acadêmica e científica nas Ciências Humanas e Sociais. No entanto,
quando tento elaborar uma síntese conceptual, me deparo com inúmeras possibilidades de
representação, o que torna essas questões ainda mais provocativas, pertinentes e atuais.
Dos “sem-fala”27 à “ciberinfância28”, pensar a questão da infância na atualidade requer
uma postura teórica transdisciplinar que contemple as multiplicidades do ser criança, além
disso, é preciso ter ciência de que cada criança tem sua própria história e que as relações que
elas estabelecem entre pares, delineiam os contornos do que se conhece hoje como infância29,
27 De acordo com a própria etimologia da palavra “in-fans”, “infância é a idade do “não-falante”, o que
transporta simbolicamente o lugar do detentor do discurso inarticulado, desarranjado ou ilegítimo”
(SARMENTO, 2005, p. 368). 28 Termo cunhado por Dornelles (2005) que corresponde à infância on-line, conectadas à esfera digital, que
utilizam computadores, internet, games, controles-remoto, joysticks, ou seja, a infância da modernidade
líquida - da multimídia e das novas tecnologias da informação e comunicação. 29 O termo infância aqui não é dito e entendido na origem lexical da palavra escrita no singular, tampouco
numa unicidade de representação, mas na pluralidade conceptual que esse termo carrega, então, quando
tomo o termo infância no singular, refiro-me também ao seu léxico plural, de forma que infância
corresponde também às várias infâncias em suas multiplicidades culturais especificamente heterogêneas.
46
assim, não é possível formular um único conceito de criança e/ou infância, pois elas são
múltiplas, plurais e, surpreendentemente criativas para mostrar outros modos de ser, antes
mesmo que seja possível conhecê-las e apreendê-las (DORNELLES, 2005).
Neste cenário, não tive a intenção de formular conceitos para os termos, mas sim,
promover aproximações e ideias que ajudem a entender melhor as transformações históricas e
sociais pelas quais estes conceitos foram sendo construídos nas ciências modernas, o que
culminou nas perspectivas atuais da nova Sociologia da Infância que consagrou a criança como
ator social integrante da categoria infância.
Contrariando a orientação do senso comum, que aborda os termos com o mesmo
significado, a Sociologia da Infância faz uma distinção semântica e conceptual entre infância e
criança. O sentido etimológico da palavra infância apresenta uma ideia de ausência de
capacidade de expressão, a partícula latina “in” usada como prefixo significa “não; negação;
negativo”, agregada ao prefixo particípio presente de “fãri” - “falar”, e seus derivados “fans”
ou “fantis”, passa a configurar “ter a faculdade da fala”, o agrupamento das expressões forma
o adjetivo latino “infans” ou “infantis”, que significa “aquele que não fala”, ou seja, que “tem
pouca idade” e que “ainda é criança”. O adjetivo “infantilis” diz respeito à criança infantil e o
substantivo “infantia”, caracteriza a incapacidade de falar, dificuldade em se exprimir. Na
tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter
conhecimento, não ter racionalidade. Etimologicamente o termo “criança” vem do latim
“creare” que significa “produzir, erguer”, está implicado no termo “crescere” que significa
“crescer, aumentar” decorrente do indo-europeu “ker” - “crescer”. Nesse sentido, de acordo
com a origem das palavras, fica evidente que a criança é vista como um ser menor, como alguém
que precisa ser moralizada, protegida e educada (VANTI, 2004, p.13).
De acordo com Sarmento (2005, p. 371) o termo infância constitui uma categoria social
do tipo geracional e criança refere-se ao indivíduo concreto que integra essa categoria
geracional como sujeito ativo e social que interpreta e age no mundo, consequentemente,
estruturando e estabelecendo suas culturas, as culturas da infância. Em vista disso, a construção
conceptual de infância vem passando por inúmeras transformações, potencializadas sobretudo,
pela cultura em toda sua complexidade e multiplicidade, uma das principais vertentes de
inteligibilidade humana. Seguindo a mesma tendência, o conceito de cultura tem sido palco de
[continuação] Da mesma maneira, a palavra criança é representa na particularidade de cada sujeito e na
pluralidade dos modos de ser e viver das crianças, dessa maneira, nesta pesquisa, criança e crianças
assumem significados que integram tanto o caráter lexical singular quanto plural para designar o/s sujeito/s criança/s em suas especificidades.
47
sistemáticos debates nas Ciências Humanas e Sociais, tornando-se um grande divisor de águas
em estudo e pesquisas científicas de todas as áreas de conhecimento.
Neste contexto, para adentrar no universo de sentidos e significados da criança torna-se
necessário compreender o contexto cultural, histórico e social que marcaram as sociedades ao
longo dos séculos repercutindo direta e indiretamente na formação das culturas infantis
contemporâneas. Sarmento (2007) propõe um novo paradigma social atento à complexidade
das condições de existência das crianças, capaz de combinar os vetores da socialização com os
da subjetivação, realizada entre pares e com os adultos. Para este autor, a infância como grupo
geracional na sua existência histórica concreta é construída pela criança, ator e autor da sua
história singular de vida. Portanto, “as culturas infantis constituem, com efeito, o mais
importante aspecto na diferenciação da infância” (SARMENTO, 2007, p. 36).
Reconhecer a infância como construção cultural, considerando-a como categorial social
e geracional (SARMENTO, 2005, p. 372), significa perceber a criança como agente de
transformação, produtora de cultura, intérprete e biográfica de sua história. Neste caso, pensar
a infância como fenômeno social é reconhecer a criança como um sujeito histórico em interação
com o meio e com o contexto cultural no qual está vivendo, em pleno e constante
desenvolvimento de suas habilidades e inteligibilidades.
Sendo assim, a pluralidade das infâncias precisa ser compreendida em sua conexão com
a diversidade das realidades históricas e sociais, bem como, das culturas e das socializações
humanas, por conseguinte, às ciências cabe investigar a criança pelo que ela é e pelo que ela
faz, ouvir suas vozes, dar visibilidade social às suas formas de ver e interagir com/no mundo,
perceber como vão desconstruindo e produzindo sentidos, reproduzindo e transgredindo
padrões sociais, intervindo e organizando suas formas de participação na sociedade e nas
culturas dos mundos adultos (KRAMER, 2002; TREVISAN, 2007; SARMENTO, 2007).
O estudo das concepções da infância chama a atenção para a diversidade de formas de
relacionamento das crianças entre pares e com os adultos, em função da sua pertença cultural,
isto é, sustenta que a infância constitui e é constituída pela cultura e fatores como classe social,
grupo étnico ou nacional, religião predominante, nível de instrução da população, fazem variar
a concepção de infância no interior do mesmo espaço cultural (SARMENTO, 2007). E assim
acrescento, que as transformações políticas, econômicas e tecnológicas da sociedade na era
digital também têm gerado significativas mudanças nas condições de vida das crianças na
contemporaneidade30.
30 Tratarei dessas questões no ensaio 2.
48
Nesta perspectiva, a Sociologia da Infância vem propondo mudanças paradigmáticas na
direção do reconhecimento da criança como sujeito social que constrói suas próprias culturas
nas relações de alteridade que estabelece entre pares e entre adultos. Conforme dito na epígrafe
que inicia esses caminhos metodológicos, trata-se de um esforço “desconstrucionista de
constructos pré-fixados e de investigação empírica [...]”, o que constitui o principal objetivo da
Sociologia da Infância (SARMENTO, 2005, p. 373). Com esta tese, assumo essa
responsabilidade e compromisso.
Müller (2010) com base nos aportes teóricos de James, Jenks e Prout (1998) ressaltam
que o novo paradigma social da infância rompe com a perspectiva de analisar a cultura infantil
como um fenômeno único e universal, mas, reconhece que as culturas infantis se apresentam
de formas múltiplas, inserida em contextos sociais amplos e complexos, nesse sentido, as
relações sociais das crianças e suas culturas são dignas de estudo em seu próprio direito, as
crianças são e devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas próprias
vidas sociais, inclusive da vida de todos aqueles que convivem na mesma sociedade da qual
participam (MÜLLER, 2010).
Na investigação dos mundos da criança, os dados culturais não são constituídos por
valores ou crenças, mas, por “[...] aquilo que os conforma. E o que os conforma é uma lógica
particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada momento para dar sentido
a suas experiências”, ou seja, é o sistema simbólico produzido na e pela sociedade que dá
sentido à cultura (COHN, 2005, p. 19). Deste modo, a cultura sobressai às mudanças e
transformações impostas pela modernidade porque a cultura se produz no conjunto das relações
sociais humanas, nos sentidos e significados produzidos constantemente pelas interações.
Como consequência, urge a necessidade de entender a cultura em sua pluralidade, na
compreensão dos sistemas simbólicos instituídos pelos diferentes grupos sociais, e, neste caso
em particular, a infância.
Para James e Prout (2003, p. 8) “proclamar um novo paradigma da Sociologia da
Infância é também engajar-se e responder pelo processo de reconstrução da infância na
sociedade”. Isso significa afirmar que, para compreensão da infância como estrutura social,
torna-se imprescindível contextualizar, problematizar e discutir as categorias história,
sociedade e cultura, sendo instaurada uma nova ruptura conceptual no entendimento da criança
em sua alteridade e em suas próprias expressões culturais, gerando com isso, repercussões
significativas na própria prática de pesquisa.
Para tanto, às Ciências Humanas e Sociais cabe a responsabilidade de explicar,
compreender, prever e potencializar os fenômenos e fatos sociais que permeiam a vida humana
49
em todas as suas relações com a sociedade, com o meio ambiente e com a cultura, independente
do grupo geracional a que investiga. Neste cenário, o paradigma social da infância amplia
conceitos e ressalta novas formulações, identificando valores estruturantes que constroem e
constituem as culturas infantis e sistematizam informações empíricas acerca dos modos de ser
e de viver da criança.
Visando esboçar um panorama geral da Sociologia da Infância no cenário das Ciências
Humanas e Sociais, sintetizo a seguir algumas considerações elaboradas a partir de produções
divulgadas em repositórios digitais31 junto à: Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd); Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); publicados na Scientific Electronic
Library On-line (SciELO); e em parte da literatura teórica selecionada para fundamentar esta
pesquisa. No entanto, essa breve explanação literária também estará contextualizada junto aos
campos analíticos dos demais contextos da tese, de modo que, nesta introdução, destaco apenas
parte do “corpus” que foi investigado.
Neste momento, priorizo duas pesquisas que apresentaram revisões de literatura
realizadas durante as últimas três décadas, o que compreende o período de maior emergência
da Sociologia da Infância no cenário das Ciências Humanas e Sociais no Brasil e em Portugal
(MARTINS FILHO e FERREIRA MARTINS, 2012; CUNHA e FERNANDES, 2012). Para
seleção das produções utilizei o indexador “Sociologia da Infância”, em seguida, foram feitas
leituras minuciosas para mapear informações e lacunas que pudessem justificar o avanço da
temática, bem como, para identificar as principais bases teóricas e metodológicas que têm
fundamentado as pesquisas nesta área.
O passeio on-line pelo banco de dados ratificou que as produções têm sido marcadas
por variadas concepções e representações acerca do conceito de criança que ao longo dos
séculos foram sendo modificadas em função, principalmente, das necessidades específicas de
cada fase de desenvolvimento e em relação com os fatos históricos, sociais e culturais de cada
época. Desse modo, há uma convergência em relação aos pressupostos teórico-metodológicos
utilizados em pesquisa com crianças que se distanciam de uma visão adultocêntrica e buscam
dar voz32 e visibilidade à criança na sua alteridade e participação crítica, política, social e
31 Os repositórios digitais (RDs) são bases de dados on-line que reúnem de maneira organizada a produção
científica de uma instituição ou área temática (IBICT, 2017). 32 Na perspectiva da Sociologia da Infância, “dar a voz” às crianças “[...] não é simplesmente ou apenas
deixar as crianças falarem, é, sobretudo, explorar a contribuição única para nossa compreensão e teorização sobre o mundo social que a perspectiva das crianças pode fornecer”. Cf. James, A. (2007, p.
262); Graue e Walsh (2003); Trevisan (2007).
50
cultural nos diversos espaços ocupados por ela.
O campo da Sociologia da Infância apresenta influência de vários segmentos científicos
como a Antropologia, a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia e a Educação, além de outras
ramificações teóricas que se desmembraram dessas áreas clássicas do conhecimento. Florestan
Fernandes (1979) e Philippe Ariès (1981) geralmente, pioneirizam as discussões sobre infância,
além de autores mais contemporâneos como Corsaro (1997); Fernandes (2009); James, Jenks
& Prout (1998); Montandon (2001); Prout (2005); Sarmento (2002, 2007); Sirota (2001);
Trevisan (2007); Qvortrup (1994; 2010; 2015). Pesquisadores estes, que problematizam a
infância em sua integralidade como estrutura social geracional híbrida e complexa,
reconhecendo a criança como protagonista de sua história, produtora de cultura, capaz de se
expressar de forma inteligível, crítica e emancipatória.
Dentre os autores brasileiros, os de maior evidência são Kuhlmann Jr. (2004),
Rosemberg (1989), Martins, J. (1993), Kramer (1999), Freitas (1997), Gusmão (1997),
Quinteiro (2005), Demartini (2002), Müller (2010), Dornelles (2005; 2007), que consolidaram
a Sociologia da Infância no rol das Ciências Humanas e Sociais e influenciaram mudanças
significativas nas políticas públicas direcionadas à infância no Brasil. Vale ressaltar também,
alguns autores que contribuíram com o estado da arte acerca das pesquisas em Sociologia da
Infância como Delgado e Müller (2005), Müller e Carvalho (2009), Martins Filho e Dias Prado
(2011), Dornelles e Fernandes (2012).
A maioria desses autores fundamentam suas concepções em estudos empíricos
realizados em contextos educacionais, salvo alguns realizados em espaços públicos
direcionados ao estudo de determinados grupos e fenômenos culturais. Algumas contribuições
resultam também de estudos teóricos que reconhecem e ressaltam a importância dos métodos
de pesquisa com criança que priorizam a escuta da voz infantil em contextos educacionais e
científicos (MARTINS FILHO e DIAS PRADO, 2011; DORNELLES e FERNANDES, 2012).
Em se tratando de metodologia de pesquisa, os trabalhos se organizam a partir de
abordagens qualitativas e interpretativas, métodos empíricos, etnográficos, participativos,
estudos de caso, com uma variedade significativa de instrumentos como observações,
entrevistas, desenhos, brincadeiras, jogos, rotinas escolares, produções interculturais e
midiáticas produzidas para e pela infância, músicas populares e/ou tradicionais da cultura
infantil, observação das culturas de pares, rodas de conversa, entre outros, cujos registros foram
feitos através de cadernos de campo, gravadores de voz, fotografias e/ou vídeos.
Em meio às produções referenciadas, a pesquisa de Martins Filho e Ferreira Martins
(2012) intitulada “A complexidade da Infância: balanço de uma década das pesquisas com
51
crianças apresentadas na ANPEd/Brasil” foi realizada junto a 25 trabalhos apresentados na
Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/ANPEd,
especificamente, no Grupo de Trabalho Educação de Crianças de zero a seis anos/GT07, entre
1999 e 2009. A investigação examinou as pesquisas realizadas com crianças na área da
Sociologia da Infância, destacou as metodologias utilizadas e as concepções de criança e
infância subjacentes às escolhas dos pesquisadores33. Os resultados indicam que as pesquisas
em geral, utilizam métodos empíricos de abordagem qualitativa e interpretativa, onde a opção
do estudo de caso realizado em contextos de educação coletiva em creches e/ou pré-escolas é,
praticamente, unânime nas intervenções. E em menor número, foram encontrados registros de
pesquisas realizadas junto a crianças indígenas no contexto de suas respectivas tribos.
Dos 25 trabalhos analisados por Martins Filho e Ferreira Martins (2012), 22 ressaltam
a importância de “dar a voz” às crianças nas pesquisas, ou seja, ouvir o que elas têm a dizer,
desse modo, o registro etnográfico, registro fotográfico, filmagens em vídeo, uso de desenhos
das crianças e a observação participante foram utilizados como procedimentos de recolha de
dados. Os autores concluíram o texto destacando que a concepção de infância e de criança
consiste em afirmar que a infância é uma condição da criança, mas, não se pode negar a
imaturidade biológica desses sujeitos. Finalizam levantando um questionamento que bastante
pertinente: “[...] com a renovação conceptual da categoria infância é possível ou não falarmos
da existência de uma autonomia conceptual das culturas infantis?” (MARTINS FILHO e
FERREIRA MARTINS, 2012, p.11).
Outro importante texto de revisão intitulado “Participação infantil: a sua visibilidade a
partir da análise de teses e dissertações em Sociologia da Infância” foi desenvolvido por Cunha
e Fernandes (2012) sobre as produções científicas defendidas entre 2003 e 2011 nos programas
de mestrado em Sociologia da Infância e Doutoramento em Estudos da Criança, ambos
oferecidos pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho em Portugal. Nesse texto, os
autores ressaltam as tensões e contradições que se colocam no desenvolvimento de pesquisas
que defendem a participação das crianças. Uma delas é o fato de que dos 53 trabalhos que
analisaram (41 dissertações e 12 teses), apenas 9 (sendo 5 dissertações e 4 teses) tratam da
participação infantil. Esse fato revela que mesmo em se tratando de um dos principais centros
de referência mundial em estudos da criança, ainda eram poucas as produções acadêmicas que
33 QRcode 10: Martins Filho e Ferreira Martins (2012).
52
mobilizam a participação das crianças na pesquisa, para tanto, Cunha e Fernandes (2012, p. 10)
alertam à necessidade de manter uma cautela epistemológica e metodológica acerca dos estudos
da infância e citam três aspectos anunciados por Fernandes e Tomás (2011) quanto às técnicas,
métodos e procedimentos de pesquisa:
i.Não podem ser planas nem lineares, porque os mundos da infância são complexos e plurais; ii. Não podem ser herméticas e estandardizadas, porque
as características cognitivas, sociais, culturais e emocionais das crianças são
diversas e heterogêneas; iii. Não podem ser, em síntese, assumidas como adquiridas, exigindo uma constante prudência metodológica de forma a
adequar os processos de investigação às crianças, aos seus contextos e ao investigador (CUNHA e FERNANDES, 2012, p. 10).
Ainda de acordo com a revisão de literatura realizada por Cunha e Fernandes (2012),
dentre os 9 trabalhos analisados que apresentaram metodologias participativas, predominaram
as abordagens críticas e interpretativas e o estudo de caso com orientação etnográfica,
sobressaindo as técnicas de observação participante, entrevista, análise documental, métodos e
técnicas visuais, o desenho, o vídeo, fotografia, registros escritos da criança, diários de campo,
organização de grupos de interesse e pequenos grupos de discussão. Segundo as autoras, é
preciso o investimento por parte do pesquisador em considerar outras formas de fazer
investigação sobre os mundos sociais e culturais das crianças, outros modos mais genuínos,
mais democráticos e mais éticos, chamando assim, a atenção para outro importante desafio:
O desafio que se coloca a essas pesquisas converge na medida em que cada uma delas, a seu modo, potencializa, ratifica, valoriza e valida a urgência de
um olhar diferenciado para as crianças como sujeitos pensantes, atores sociais
criativos e competentes, a importância de as envolver substantivamente na construção de conhecimento acerca de si mesmo e dos seus mundos, bem
como a importância de reconhecer modos alternativos de pensamento e ação
investigativa com elas (CUNHA e FERNANDES, 2012, p.11).
Na pesquisa realizada por Siqueira (2011) cujo título: “Do Silêncio ao Protagonismo:
por uma leitura crítica das concepções de infância e criança”, foram investigadas as produções
dos grupos de pesquisa ligados à área de Educação e Psicologia, que apresentam em seu escopo,
pesquisas relacionadas aos campos criança e infância, cadastrados no Diretório de Pesquisa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). A pesquisa abrangeu
os anos de 2007 a 2010 e apontou que as concepções de criança se pautam principalmente na
ideia de sujeito de direito, no entanto, a criança tem sido nomeada de fora para dentro e de cima
para baixo, conforme designam os marcos legais/institucionais, reafirmando com isso, uma
identidade marcada por discursos psicológicos e sociológicos nos quais as crianças e suas
53
subjetividades também estiveram, por vezes, subsumidas. Cabendo agora, a necessidade
desconsiderá-la como sujeito da História. Surge então, a necessidade do resgate histórico
conceptual de categoria criança para entender a trajetória social da concepção de infância,
visibilizando assim, os momentos de conflito epistemológico desde a ideia do “homúnculo” até
a concepção de “criança social”.
Considerando os indicadores de publicação dos grupos de pesquisa, Siqueira (2011)
revela que as produções na área da Sociologia da Infância no Norte e no Nordeste do Brasil
correspondem a cerca de 10 investigações anuais por grupo de pesquisa, enquanto em outras
regiões brasileiras, o número de investigações chega a 25 trabalhos por grupo de pesquisa
(SIQUEIRA, 2011, p.18). Apontamentos que Macêdo (2014) corroborou em sua pesquisa
doutoral intitulada “A infância resiste à Pré-escola?”, onde a autora fez uma leitura crítica sobre
a consolidação da Sociologia da Infância no Brasil, chegando à conclusão de que as produções
na área ainda são bastante restritas a três regiões do país: Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Com
base nisso, a autora também acentua que a infância é o grupo geracional mais atingido pelas
mazelas sociais, nesta perspectiva, “o status de minoria, impetrado socialmente às crianças, em
especial as oriundas dos rincões mais pobres carrega com ele a exclusão social, política e até
mesmo científica” (MACÊDO, 2014, p. 65).
Estes dados preocupantes comprovam que ainda é preciso promover estudos e pesquisas
nas regiões Norte e Nordeste para erigir e firmar as perspectivas teóricas e metodológicas da
Sociologia da Infância junto às instituições e segmentos direcionados à criança, garantindo
assim, produções científicas que promovam a participação das crianças nas investigações, o
rigor epistemológico e metodológico e a ética na pesquisa com crianças (KRAMER, 2002;
DELGADO e MÜLLER, 2005; PROUT, 2005; CARVALHO e MÜLLER, 2009; MARTINS
FILHO e PRADO, 2011).
Nesse escopo, quero destacar um ponto fundamental que dialoga diretamente com meu
tema de investigação, a saber - as concepções de crianças e infâncias expressas em narrativas
fotoetnográficas. Ao analisar a presença de imagens nas pesquisas analisadas, particularmente,
as fotográficas, identifiquei que seu uso ainda se resume ao registro dos contextos e cotidianos
da pesquisa, ou seja, como registro imagético das intervenções de campo e como fonte de
informação acerca do objeto de análise. Em vista disso, a fotografia não vem sendo utilizada
com status de narrativa integral, em que a linguagem visual adquire a mesma importância da
linguagem escrita no texto acadêmico, como é o caso da Fotoetnografia, caracterizada como
uma “escritura por inteiro, quando se para de recorrer às palavras para se deixar levar em uma
viagem visual reveladora, abrigando o inefável que igualmente encerra conhecimento e
54
sentido.” (ACHUTTI, 2004, p. 87).
Nesta perspectiva, a Fotoetnografia aparece como uma possibilidade metodológica
profícua para promover a interlocução acerca das culturas infantis, haja vista que a linguagem
visual passou a ter a mesma importância da linguagem escrita, por isso, a ideia de
Fotoetnografia como forma narrativa integral (ACHUTTI, 1997, p. 87). Desse modo,
considerando a importância da fotografia como um meio de interpretação da realidade, Achutti
(2004, p. 73) defende que é preciso desenvolver o potencial narrativo da imagem fotográfica e
ressalta a necessidade de sua legitimação no cenário científico para preencher a lacuna existente
na área das Ciências Sociais e pontua:
É chegada a hora da conquista e da legitimação de um espaço para que a
fotografia possa ser aceita como mais um meio de produção de ideias,
produção de sentido, para contar o cotidiano do Homem e a vida no mundo contemporânea (ACHUTTI, 1997, p. 73).
As imagens fotográficas fazem parte do universo infantil, seja no convívio familiar, na
escola ou nos diversos espaços de convívio social, no entanto, a utilidade deste artefato tem
variado significativamente, principalmente, em se tratando de uma Cultura Visual efêmera e
multicultural como a que estamos vivenciando na contemporaneidade. Ante tal contexto, torna-
se oportuno discorrer sobre alguns exemplos, com base inclusive em experiências do cotidiano,
as quais me incluem.
Nas escolas, as fotografias registram os eventos culturais, as práticas pedagógicas, as
atividades lúdicas, servem como recordações de eventos e processos educacionais, etc.; Nos
livros, as fotografias revelam informações acerca dos fenômenos abordados em qualquer
assunto ou área do conhecimento, sendo instrumentos capazes de contribuir para o
entendimento dos conteúdos de forma mais acessível e objetiva; Em espaços públicos e
privados em meios urbanos e/ou rurais, as fotografias são exibidas em painéis de lojas, outdoors
nas ruas e avenidas, em publicidades plotadas em veículos, nas praças, bancas de revista,
vestuários, restaurantes e lanchonetes, shopping centers, igrejas, teatros, cinema, centros de
cultura, e tantos outros lugares; Na publicidade midiática, nas redes sociais da Internet, as
fotografias se espalham no universo da cibercultura de maneiras inimagináveis. Mas, sobretudo,
é no seio familiar que a fotografia tem ganhado espaços significativos como expressão
linguística visual, cultural e histórica, tanto no meu contexto34, quanto no contexto de outras
34 Já não é possível saber, ao certo, quantas imagens fotográficas guardamos em celular, computador, HD
externo, e mais recentemente, nas chamadas “memórias em nuvens”, como Dropbox, Google Drive e
55
famílias.
Com o avanço tecnológico e midiático decorrente da globalização e influenciado pelo
barateamento e popularização dos equipamentos de geração de imagens (SANTOS, 2002;
GIDDENS, 1991; PEIXOTO, 1998), a fotografia ultrapassou os limites da tradição familiar,
desde a produção restrita ao acesso às imagens, alcançando um patamar de “presença” cultural
e social que modificou muitas formas de convívio, “acompanhando transversalmente todos (ou
quase todos) os grupos e classe sociais” (CARVALHO, C., 2011, p. 109, grifo do autor). Por
consequência, as famílias passaram a registrar ocasiões cada vez mais pormenorizadas e
cotidianas, como uma saída para caminhar, um lanche na esquina, um passeio na praia, almoços
em família, visita a parentes, brincadeiras com animais de estimação, reuniões de amigos,
situações domésticas, etc., incluindo os famosos “selfies” que já fazem parte do dia-dia de
muitas famílias, e principalmente, de muitas crianças.
Atualmente, com o impacto das tecnologias digitais, a imagem de si passou a fazer parte
do cotidiano dos indivíduos de forma mais intensa e significativa, reconfigurando algumas
formas de linguagem visual, por conseguinte, as culturas contemporâneas adaptaram ao
conceito de self o ato de retratar-se através de autofotografias (fotografia realizada pelo próprio
fotografado), fazendo exibições de várias situações de seu cotidiano, assim, o self na linguagem
da hipermídia passou a representar o “selfie” – o autorretrato de um indivíduo ou de um grupo,
um fenômeno de expressão e reforço da identidade em que pessoas fazem registros digitais de
si mesmas, podendo ser tratada na perspectiva de uma autoimagem. Sem contar também, com
as tradicionais fotos de nascimentos, aniversários, casamentos, batizados, festas populares e
folclóricas, entre outras ocasiões.
Além dessa cotidianidade, os progressos tecnológicos não somente fizeram aumentar o
número de imagens oferecidas, como também facilitaram o acesso do público à sua produção e
visualização. Assim, a fotografia também deixou de ser algo privado, guardado para posteridade
da família e passou a ser uma fonte de informação pública, o que pode ser facilmente observados
em redes sociais como Facebook, Instagram e WhatsApp, onde milhares de famílias expõem e
socializam quase em tempo real suas fotografias. No entanto, concordo com Peixoto (2011)
que:
Embora essas novas tecnologias de publicização individual e familiar (blogs, Facebook, Orkut, home page, webs, etc.) tenham se expandido
aceleradamente nos últimos anos, o que me interessa aqui é muito menos a
relação das imagens de família com o mundo virtual, mas como os filmes ou
[continuação] Onedrive, realmente, não dá para contar... Nuvem ou disco virtual é um sistema de dados on-line que permite o armazenamento e compartilhamento de arquivos e pastas de maneira segura, pois,
elimina o risco de perder o material por vírus, quebra de equipamentos, entre outros.
56
vídeos podem ser apropriados enquanto fragmentados da história social
(PEIXOTO, 2011, p. 14-15).
Essa visão aponta que estamos imersos num mundo de imagens e cada vez mais
dependentes das visualidades que consumimos e produzimos. O uso de artefatos tecnológicos
de última geração como celulares, computadores, câmeras digitais que fotografam e filmam
com qualidade e precisão nas imagens, consequentemente, o visual e a mídia passaram a
desempenhar papéis importantes na vida social, política e econômica. Eles se tornaram ‘fatos
sociais’, no sentido de Durkheim35, e como fatos sociais, precisam ser discutidos e considerados
nas pesquisas científicas como elementos,
[...] fundamentais para os registros históricos da humanidade, fornecem informações e representações acerca dos cotidianos vivenciados em cada
cultura, tendo em vista a realização intencional de conservação da memória,
transmissão de ideias, valores e saberes, localização no espaço e no tempo, constituição de determinados tipos de padrão de conduta e de sujeitos,
identificação de classes, de grupos sociais e de indivíduos na hierarquia social (CARLOS, 2010, p. 11).
Entre os registros, se incluem as fotografias, com o poder de “eternizar” pessoas e
momentos que de algum modo são importantes para serem lembrados/as na posteridade
configurando os registros antigos como resgates imediatos de memória. Em outras palavras, a
fotografia revela a história que a memória esqueceu, ou seja, trata-se de uma “antiguidade
instantânea” (SONTAG, 1981) que gera informações, emoções e reflexões acerca da realidade.
Nesse sentido, através da fotografia, instantaneamente é possível rememorar, sentir e
compreender os contextos e as subjetividades que permeiam os elementos implícitos e
explícitos contidos na imagem.
A fotografia traz consigo, como forma de perceber e apresentar, toda a
tradição imbricada na sua própria criação somada à interferência daquele que a produziu no tempo, no espaço e na cultura na qual estava imersa e em
relação. É, portanto, o resultado de várias forças construtivas. A imagem
fotográfica integra o cenário dos dispositivos imagéticos contemporâneos e nele propõe novas subjetividades, adaptando-se aos regimes de visão e de
subjetividade, e neles interferindo (GONÇALVES, 2013, p. 16).
Pensando nessa polissemia imagética e nas múltiplas possibilidades de narrativas
visuais, a Fotoetnografia surge como via teórica e caminho metodológico para a implementação
desta pesquisa, tendo em vista o potencial das imagens para “reviver, sentir e compreender”
35 Para Durkheim (2002), o conceito de fatos sociais abrange a percepção do indivíduo, sua maneira de agir
e pensar o mundo e seu funcionamento.
57
situações históricas e culturais das trajetórias conceptuais de crianças, infâncias e culturas
infantis como fenômenos sociais que influenciam e são influenciados pela cultura,
principalmente, pela Cultura Visual no contexto da sociedade contemporânea.
Considerando a importância da imagem como elemento fundamental para o
conhecimento, análise e compreensão da realidade das culturas infantis, as concepções de
crianças e infâncias expressas em narrativas fotoetnográficas constituíram-se como objeto de
estudo desta tese. Nesta perspectiva, o problema de pesquisa buscou responder a seguinte
questão: como a Fotoetnografia contribui para a produção de conhecimento e a compreensão
histórica, social e cultural das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis? No entanto,
outras questões foram sendo levantadas e contextualizadas em momentos oportunos e
necessários à elucidação do problema, as quais estão discutidas na sequência do texto.
Portanto, esta pesquisa teve o objetivo geral de promover interlocuções epistemológicas
e empíricas sobre as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de narrativas
fotoetnográficas. Em vista disso, esteve atrelada a três campos analíticos diferentes, porém,
complementares: I - a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia; II - a História, a Sociologia da
Infância e a Cultura Visual; III - a Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica e o
protagonismo infantil. Conforme organizado a seguir, no esquema 1.
Esquema 1 - Organização da tese.
Fonte: Elaboração própria (2017).
58
Com base no esquema 1, o primeiro campo analítico compreende a relação entre três
fenômenos: a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia. Neste sentido, as seguintes questões
serviram de norteamento para a organização e geração de dados: como ampliar as perspectivas
teórico-metodológicas da Fotoetnografia a partir de uma epistemologia da imagem
fundamentada em princípios antropológicos, filosóficos e educacionais? Como as infâncias têm
sido contempladas pela Fotoetnografia nas Ciências Humanas e Sociais?
Tendo em vista a forte influência das imagens para a compreensão e construção das
narrativas que compõem a História das Civilizações e, principalmente, o patamar de
importância que a imagem conquistou na atualidade, procurei promover interlocuções
antropofilosóficas de educação através da imagem, com o designo de estabelecer um percurso
epistemológico e empírico para a sistematização metodológica da tese sob a óptica da
Fotoetnografia. A seguir, no esquema 2, apresento a sistematização do primeiro campo
analítico.
Esquema 2 - Sistematização do Campo Analítico I.
Fonte: Elaboração própria (2017).
Parto do princípio de que as imagens revelam um registro narrativo que materializa o
discurso e demonstra nuances da realidade que permitem além de uma descrição, sua
59
compreensão. Nesse contexto, ciente de que a metodologia deve ser capaz de discutir relações
abstratas e empíricas entre fatos, fenômenos, conceitos e processos; organizar, ordenar e
sistematizar o pensamento articulando-o com o real e interagir de forma inteligível com
questões práticas, abordo a Fotoetnografia como forma narrativa integral (ACHUTTI, 1997, p.
87) e através de metáforas, explicito as propostas metodológicas adotadas neste estudo. De
acordo com Umberto Eco (1994, p. 20) as metáforas podem ser representadas a partir de
elementos como: “símbolo, ideograma, modelo, arquétipo, sonho, desejo, delírio, rito, mito,
magia, criatividade, paradigma, ícone, representação – e também, como é óbvio, linguagem,
signo, significado, sentido”. Na perspectiva da semiótica, a metáfora é considerada um tipo de
representação icônica que é determinada pela sua semelhança ao objeto, tal representação é
capaz de compartilhar das “mesmas convencionalidades do símbolo e de sua representação”
(PEIRCE, 1990, p. 64).
Dito isto, a metáfora aqui é entendida como representação associativa, ou seja, uma
conotação de sentidos e significados correlatos que oferece possibilidades de interpretação a
partir do código e do contexto em que opera. Portanto, uma imagem oferecida à interpretação
terá mais implicações simbólicas do que no próprio ato de sua criação, logo, a metáfora é
compreendida como a “imagem” das ideias criadoras de percepções e sensibilidades. Para
Marcuschi (2000, p. 73) a metáfora deve ser entendida como estrutura de conhecimento que
formado a partir da intersubjetividade do sujeito com a realidade, ou seja, a metáfora é um
conhecimento específico acerca da realidade que busca reestruturar o conhecimento a partir de
uma perspectiva criativa e nova. As próprias metáforas platônicas são exemplos de uma
linguagem criativa que objetiva ser inteligível a seus interlocutores, cuja metodologia
imagística colabora também para a produção do conhecimento filosófico que se faz realidade
intersubjetiva e ontológica.
Nesse escopo, na primeira metáfora proponho um olhar epistemológico sobre a
fotografia a partir da junção de duas concepções antropofilosóficas - “pele” (SAMAIN, 2012,
p. 160) e “magia” (FLUSSER, 1985, p. 5) dialogando com as bases teóricas fundamentais para
se pensar uma nova epistemologia da imagem a partir da Filosofia da Fotografia (ACHUTTI,
1997; AUMONT, 2016; BAUDRILLARD, 1981; BURKE, 2004; FLUSSER, 1985, 2007;
KOSSOY, 2012; KOURY, 1998; PENN 2002; SAMAIN, 2012).
Na segunda metáfora, me inspiro na produção norte-americana “Memento”, traduzido
para o Brasil como “Amnésia”, um filme que apresenta um drama relacionado à memória,
percepção e vingança, vivido por um personagem que perde parte de suas memórias a cada 10
ou 15 minutos, que recorre a estratégias de rememoração utilizando registros fotográficos e
60
tatuagens em seu corpo, que para ele, são as únicas evidências de verdade em relação à sua
realidade. No contexto da pesquisa, o memento foi adaptado ao processo de construção e
interpretação das narrativas fotoetnográficas, para tanto, se estabeleceu a partir de três
movimentos simultâneos: o “reviver” as imagens fazendo leituras contextualizadas e em
conexão com as concepções teóricas problematizadas; o “sentir” considerando os elementos
significantes provenientes da imagem que produzem sentidos e emoções no sujeito que
contempla, que é contemplado e que produz a Fotoetnografia, e, consequentemente, “atraem”
a selecioná-las e compreendê-las em suas dimensões históricas, sociais e culturais. Em vista
disso, estabeleço o diálogo com a Filosofia clássica, revisitando as bases epistemológicas de
Platão sobre a Teoria do Conhecimento e da Reminiscência (PLATÃO, 2001, p. 81a1-d5, p.51-
53; PLATÃO, 1972, p. 72e-77a) para explicitar o processo de rememoração, e aqui o memento.
E na terceira metáfora abordo o processo de sistematização técnica e de análise das
narrativas fotoetnográficas a partir da linguagem fotográfica utilizando as características e os
componentes necessários à sua produção técnica como expressões simbólicas correlatas aos
procedimentos metodológicos empreendidos na tese, desde os primeiros passos como
sensibilidade, abertura e velocidade, até os componentes específicos necessários à obtenção da
imagem esperada, como: o foco, o diafragma, a objetiva e a exposição. Para tanto desenvolvo
a ideia de descrição em high key e low key36 como estratégia de leitura e compreensão integral
da imagem, sobretudo para o desvelamento das infâncias magicizadas37 em narrativas
fotoetnográficas. Desse modo, estabeleço um diálogo entre a Antropologia Visual e a Filosofia
da Fotografia e suas ramificações críticas e transdisciplinares no campo da Cultura Visual e da
educação estética (HERNÁNDEZ, 2000; MARTINS, 2007; MARTINS e TOURINHO, 2010;
MIRZOEFF, 2003; SANTAELLA, 1989, 2009; SARDELICH, 2006).
Após a apresentação da sistemática epistemológica e metodológica da tese, discorro
sobre a emergência da Fotoetnografia no contexto da pesquisa científica e sumarizo as
produções a partir dos registros evidenciados junto aos repositórios digitais da CAPES, ANPEd
e SciELO, nos quais existem: 26 (vinte e seis) pesquisas registradas na CAPES desde 1996,
mas apenas 4 (quatro) especificamente relacionadas à crianças e infâncias; 9 (nove) pesquisas
registradas na SciELO, sendo apenas 1 (uma) na área de Educação e Gênero. E apenas 2 (dois)
registros relacionados à Fotoetnografia junto à ANPEd.
36 Procedimentos de análise da imagem sistematizados para esta pesquisa em particular. Será melhor
esboçado na seção 1.2 do ensaio 1. 37 Este termo será retomado no ensaio 1. Cf. Flusser (2007).
61
Desse modo, a seleção iconográfica para a composição da pesquisa Fotoetnografia em
questão, partiu das imagens de crianças discutidas no âmbito de 5 (cinco) trabalhos relacionados
ao objeto desta tese, priorizando o de Trois (2012) que discute o currículo das infâncias no
contexto das ações e interações escolares; e o de Villas Boas (2016) que investigou a construção
de si das crianças que participam da manifestação Nêgo Fugudo em Acupe-BA, a escolha se
deu por tratarem, especificamente, de questões relacionadas à criança, infâncias, cultura e
educação e por apresentarem em seu corpus um acervo rico em imagens fotográficas.
O segundo campo analítico promove uma interlocução entre a História, a Sociologia
da Infância e a Cultura Visual. Refere-se ao estudo das concepções de crianças, infâncias e
culturas infantis presentes nas Ciências Humanas e Sociais que dialogam mais especificamente
com os pressupostos da História Social da Criança, da Sociologia da Infância e da Cultura
Visual. Tendo em vista a importância dos registros históricos e dos debates científicos para a
compreensão da evolução das civilizações humanas, suas tensões e contradições sociais,
culturais, políticas e econômicas e suas implicações nas condições de vida infantil, visando
responder os seguintes questionamentos: que imagens de crianças e infâncias têm sido
discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências Humanas e Sociais? Que imagens
de crianças e infâncias têm repercutido na Cultura Visual e implicado diretamente nos modos
de ser e de viver da criança na contemporaneidade?
Desse modo, este campo analítico buscou discutir as principais concepções de crianças
e infâncias histórica e socialmente constituídas a partir do pressuposto de que as culturas visuais
permeiam o universo infantil de modo significativo ampliando seus modos de ser e viver como
criança. Em função disso, direcionei o olhar para as imagens de crianças expressas através de
imagens técnicas fixas (fotografias) e em movimento (audiovisuais), dispostas em pesquisas
científicas e nas visualidades presentes em mídias televisivas, redes sociais, sites de moda e de
entretenimento que dialogam com assuntos relacionados ao público infantil e que estão
diretamente, associados às realidades culturais da infância projetando modelos e padrões de
comportamento que precisam ser tensionados no campo científico. Conforme apresento no
esquema 3.
62
Esquema 3 - Sistematização do Campo Analítico II.
Fonte: Elaboração própria (2017).
Neste sentido, interessou-me investigar como a criança vem sendo representada
histórica e socialmente através da Ciência e da Cultura Visual para reflexionar as concepções
acerca dos significados sociais e culturais que fundamentam as imagens de crianças em
diferentes épocas e contextos, visando, sobretudo, compreender suas formas de enfrentamento,
resistência e subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido a ela (criança)
como cultura e projeções sociais.
Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental junto a livros impressos
pertencentes ao acervo pessoal e à biblioteca pública da UFPB, além de textos dispostos em
repositórios digitais do banco de teses e dissertações da CAPES e em artigos publicados na
SciELO e na ANPEd.
No primeiro momento, utilizei como principal critério de seleção o indexador
“Sociologia da Infância”, em seguida, outros indexadores foram necessários para a seleção das
pesquisas: “História da criança”, “História da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”;
“culturas infantis”; “Fotoetnografia”; “imagem de criança”; “infância Idade Média”; “infância
Idade Moderna”. O cruzamento dos indexadores foi realizado a partir da leitura dos títulos,
resumos e das palavras-chaves de cada pesquisa, respectivamente.
63
Importante ressaltar que o recorte histórico foi codependente das revisões de literatura
teórica e empírica realizadas, assim, o movimento de seleção iconográfica partiu das teorizações
promovidas e não das imagens em si, ou seja, as imagens de crianças e as cenas de infância
foram surgindo à medida que emergiam as discussões e eram estabelecidas conexões de
sentidos e significados entre concepções e imagens. Em outras palavras, as imagens eram
selecionadas a partir dos diálogos epistemológicos estabelecidos no âmbito dos estudos e
pesquisas científicas referentes ao objeto de estudo, em seguida, através de uma leitura
flutuante, as pesquisas que apresentavam em seu corpus imagens de crianças nas discussões,
eram revisitadas e analisadas conforme a problematização do campo.
No segundo momento, com base no caráter transdisciplinar da tese, o corpus se
constituiu a partir dos seguintes debates: a criança na Cultura Visual contemporânea;
visibilidades publicitárias direcionadas ao público infantil; formas de expressão da criança em
redes sociais, suas alteridades e subversões potencializadas pela efemeridade e multiplicidade
de tecnologias visuais; e em contrapartida, situações de risco à criança e suas infâncias como
adultização e erotização; abuso da condição de criança frente à crescente demanda do consumo
e da estetização da cultura. Tal intento foi pensado a partir das visualidades evidenciadas pela
Cultura Visual na era digital que compõe o cenário da sociedade atual, principalmente, em se
tratando de publicidade televisiva e Internet, tendo em vista o papel social e cultural do visual
e da mídia na vida das crianças para a in/formação de suas culturas.
Neste sentido, a partir do indexador “Cultura Visual”, fiz outras intersecções utilizando
os seguintes termos: “Sociologia da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”; “culturas
infantis”; “mídia televisiva”; “mídias digitais” “Internet”; “Fotoetnografia”; “imagem de
criança”; “infância contemporânea”; “ciberinfância”. No entanto, além desta revisão literária,
adicionalmente, foram utilizados alguns indexadores relativos à infância visibilizada na Cultura
Visual com o intuito de tencionar as discussões acerca do objeto de investigação ampliando o
corpus de imagens que iriam compor a narrativa fotoetnográfica do ensaio em questão, como:
“moda infantil”; “consumo infantil”; “consumismo infantil”; “adultização infantil”; “erotização
infantil”; “publicidade infantil”; “políticas de proteção e cuidado à infância”, mesclando-as
entre si. Temas estes que, surgiram em meio à própria revisão de literatura, prioritariamente,
empreendida.
Neste segundo momento, o recorte histórico compreendeu os acontecimentos
relacionados às últimas três décadas marcadas pela passagem do século XX ao século XXI
(1990-2017) em que ocorreram consideráveis transformações acerca do conceito de infância e
de criança, principalmente, no que se refere aos direitos civis e à proteção (DIAS, 2007;
64
SILVEIRA, 2007), a exemplo do emergente campo da Sociologia da Infância (CORSARO,
1997) no hall das Ciências Humanas e Sociais. Entretanto, para pensar sobre as concepções de
infância na contemporaneidade também foi necessário refletir sobre as imagens de crianças que
estão em evidência na mídia televisiva, na publicidade e nas redes sociais da Internet como
Facebook, YouTube e Instagram38, porém, frente à extensão de visualidades disponíveis,
selecionei três cartografias que ajudam a pensar os mapas da infância na contemporaneidade: i.
a crescente demanda do consumo para a formação de crianças consumidoras, a publicidade
televisiva para crianças e a resolução nº163 do CONANDA (2015) sobre publicidade infantil.
ii. os processos de adultização e erotização da criança considerando a trajetória da funkeira
mirim Mc Melody e a moda veiculada pela Internet direcionada à infância; iii. a pesquisa TIC
KIDS on-line Brasil (2015) que discorre sobre o uso de Internet por crianças e adolescentes e a
participação dos youtubers mirins e suas implicações para a construção das culturas infantis.
Todos estes indexadores serviram de parâmetro para o levantamento da literatura sobre
o tema proposto a fim de ampliar as discussões acerca do objeto de investigação e angariar, por
meio das pesquisas selecionadas, o corpus de imagens que faria parte da composição
fotoetnográfica do ensaio em questão. Após leitura flutuante, foram selecionadas fontes e
informações iconográficas referentes às concepções de crianças, infâncias e culturas infantis na
contemporaneidade.
Desse modo, a Fotoetnografia foi construída a partir do diálogo epistemológico e
empírico estabelecido entre imagens do passado (pinturas e fotografias), versus imagens do
presente, agora produzidas através de novos artefatos midiáticos digitais disponibilizados em
redes on-line, buscando oferecer uma fotografia panorâmica acerca da trajetória conceptual das
imagens de crianças e infâncias ao longo do tempo, para em seguida, compor uma narrativa
imagética integral com sentidos e significados em si, mesmo tendo sido construídos de maneira
interdependente.
Portanto, as análises empreendidas pautaram-se em obras seminais no campo da História
Social da Criança (ABRAMOWICZ, 2011; ARIÈS, 1981; BECKER, 2010; BURKE, 2004;
HEYWOOD, 2004; KUHLMANN Jr., 2004; LOIC CHALMEL, 2004), da Sociologia da
Infância que surge quebrando paradigmas sociais e desconstruindo conceitos rígidos que
desconsideram as culturas infantis em suas especificidades como uma categoria social própria
(CORSARO, 1997; JAMES, JANKS e PROUT, 1998; KRAMER, 1999; MONTANDON,
2001; MÜLLER, 2010; PROUT, 2005; QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2004, 2005, 2007;
38 Os detalhes pormenorizados dessas escolhas serão apresentados no ensaio 2.
65
SIROTA, 2001; TREVISAN, 2007) e da Antropologia da Criança que discute a condição social
da criança como autora e produtora de cultura (COHN, 2005; MATTOS, 2011).
Da mesma forma, em contribuições epistemológicas que tratam das mudanças
paradigmáticas e transformações culturais, econômicas e sociais decorrentes de processos
macroestruturais como a globalização (SANTOS, 2002); indústria cultural (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985); hipercapitalismo (LIPOVETSKY, 2004; LIPOVETSKY e SERROY,
2011); consumismo (MOMO, 2010; SCHOR, 2009); virtualização da comunicação na
cibercultura (LEVY, 1999), que marcam a sociedade em tempos de segunda modernidade, que
historicamente correspondente à idade contemporânea (BAUMAN, 1998; BECKER, 1997;
BHABHA, 2013; GEERTZ, 1989; GIDDENS, 1991; LASH, 1997; SARMENTO, 2004), e
neste contexto, as contribuições relacionadas às concepções de crianças e infâncias,
considerando as visualidades promovidas e propagadas pelas mídias digitais (CABRAL, 2008,
2015; DORNELLES e BUJES, 2012; BUCKINGHAM, 2006, 2012; GIROUX, 1995, 2003;
MOMO, 2010; POSTMAN, 1999; SCHOR, 2009; STEINBERG e KINCHOLOE, 1997).
Em síntese, o referido corpus discursivo contribuiu para a rememoração (reminiscência)
e compreensão (memento) histórica, social e cultural da vida infantil em sociedade no bojo das
transformações da segunda modernidade (SARMENTO, 2004).
O terceiro campo analítico da pesquisa, aborda a Fotoetnografia numa perspectiva
autobiográfica e aponta para a importância do protagonismo infantil. Em outras palavras,
consiste no uso da Fotoetnografia como uma possibilidade narrativa autobiográfica para
pesquisas com crianças.
A intenção surgiu da necessidade de conhecer as culturas da infância a partir de
percepções ontológicas39 e interpretativas da própria criança, ou seja, da necessidade de
produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil, desde a seleção
de imagens até a descrição narrativa dos significados relativos à sua própria história de vida.
Dessa forma, os seguintes questionamentos serviram de parâmetros para a sistematização deste
campo analítico: quais as concepções de criança e infância na perspectiva da própria criança,
ou seja, como ela se vê e se reconhece nas relações culturais e sociais que estabelece com seus
pares e com os adultos? Como se relaciona com a Cultura Visual e quais as implicações dessa
relação para a construção de sua identidade? Sobretudo, como a Fotoetnografia autobiográfica
pode evidenciar o protagonismo da criança e a alteridade da infância ao promover sua
39 Etimologicamente, a palavra ontologia “οντολογία” vem do grego, resultado da combinação entre o
prefixo “ontos” que significa “ser” e do sufixo “logoi” que significa “ciência do ser”. Na perspectiva
platônica, a ontologia corresponde à natureza do argumento que dá suporte à interpretação da realidade.
66
participação na construção de conhecimento científico?
Nessa perspectiva, busquei identificar nos modos de ser e de viver da criança, evidências
de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica, visando
perceber como as culturas infantis aproximam-se e/ou distanciam-se das imagens
im/dis/postas40 nas culturas visuais investigadas.
Este campo analítico justifica-se pela importância da participação da criança em exercer
seu papel social como sujeito ativo e crítico em assuntos relacionados a ela, dessa forma,
contraria os “ditos” homogeneizadores e limitadores da participação da criança em pesqu isas
científicas que desconsideram a subjetividade da criança e sua condição de interpretar a
realidade e de produzir sua própria cultura.
Neste entendimento, a Sociologia da Infância defende a participação da criança nos
âmbitos histórico, cívico e científico da sociedade (SARMENTO, 2007), o que reforça a
coerência em incluir este campo analítico para demonstrar que a Fotoetnografia como narrativa
autobiográfica pode ser um recurso metodológico adequado à pesquisa com criança ao permitir
o reconhecimento das culturas infantis a partir das subjetividades infantis expressas nas
percepções e significações da própria criança.
Nesta direção, o esquema 4 apresenta os elementos que estruturaram o terceiro campo
analítico.
40 Essa fragmentação lexical indica que as imagens estão tanto dispostas quanto são impostas na/pela
Cultura Visual, se projetam como padrões e modelos de condutas e/ou comportamentos. Neste sentido,
algumas imagens também são ‘impostas’ às crianças de forma incisiva e , portanto, torna-se incoerente
afirmar com precisão se as imagens ‘postas’ estão ‘dispostas’ ou são ‘impostas’ à criança como modelos
de comportamento social, tendo em vista que é uma questão muito subjetiva, porém, importante a ser
investigada.
67
Esquema 4 - Sistematização do Campo Analítico III.
Fonte: Elaboração própria (2017).
De acordo com Passeggi et al. (2016, p. 114) a narrativa autobiográfica parte do “[...]
reconhecimento da legitimidade da criança, do adolescente, do adulto, enquanto sujeitos de
direitos, capazes de narrar sua própria história e de refletir sobre ela”, envolve a complexidade
das relações humanas na medida em que as crenças, os valores, as identidades e as percepções
vão sendo estabelecidas com a realidade, num movimento constante de reflexividade
autobiográfica. No contexto das pesquisas com criança, Passeggi (2016, p. 114) chama atenção
para a importância da participação da criança em assuntos relacionados a ela, o que corrobora
com visibilidade da criança nos cenários políticos e científicos, nos quais a Sociologia da
Infância também tem defendido esta participação (SARMENTO, 2007).
A participação da criança requerida pela Convenção sobre os Direitos da Criança é
assegurada pelo decreto nº 99.710de 21 de novembro de 1990 em seu Art. 12, que resguarda a
todas as crianças, em função da idade e maturidade, o direito de expressar suas opiniões
68
livremente e, sobretudo, o direito de serem ouvidas, sobre assuntos que lhes dizem respeito.41
Essa participação se estende à infância como uma forma de evidenciar o protagonismo
da criança e seus modos de ser e viver a vida a partir das relações de alteridade que estabelece
na sociedade. Pensando nisso, percorri um caminho metodológico pautado no respeito às
especificidades e inteligibilidades da criança. Desse modo, procurei elaborar estratégias que
promovessem a participação da criança na produção da Fotoetnografia da infância
contemporânea, visando reconhecer como os fenômenos da Cultura Visual se manifestam nas
experiências cotidianas da criança, fazendo um contraponto com as Fotoetnografias
desenvolvidas tanto no primeiro, quanto no segundo campo analítico, bem como, para mostrar
que a Fotoetnografia autobiográfica é uma estratégia promissora para a produção do
conhecimento no campo da Sociologia da Infância, no que tange ao desvelamento das
realidades culturais e identidades sociais da criança.
Assim, o movimento de interpretação memento novamente me inspirou, dessa vez a
pensar sobre a participação da criança nesse processo de investigação, pois, não fazia sentido
promover conhecimento sobre infância sem dialogar com a própria criança, sem ouvir o que ela
tinha a dizer sobre si e sobre suas relações com a cultura e a sociedade. Ou seja, minha intenção
foi dar vez e voz à criança (MÜLLER; CARVALHO, 2009), para entender suas próprias
concepções e subjetividades em relação a sua história de vida contada a partir de imagens42.
Neste contexto, o memento envolveu duas dimensões, ambas implicadas no movimento
cíclico de interpretação: “reviver”, “sentir” e “compreender” a imagem: primeiro, na percepção
do sujeito que investiga (pesquisador) - durante o processo de análise das narrativas
fotoetnográficas à luz das concepções teóricas que pautaram as interpretações; segundo, na
percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - quando a criança elabora sua compreensão
no processo de reprodução interpretativa dos fatos (CORSARO, 1997) dando sentidos e
significados às narrativas visuais. Segundo Aumont (2016, p. 8) no campo das teorias da
imagem, percepção visual é uma atividade complexa que não se pode, na verdade, separar das
grandes funções psíquicas, a intelecção, a cognição, a memória, o desejo.
Porém, para além dessas dimensões, o memento também possibilita ao leitor/espectador,
uma viagem no tempo, na história, nas memórias e reminiscências de sua própria infância, tendo
41 QRcode 11: Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989. Nações Unidas do Brasil.
42 Os pormenores dos procedimentos metodológicos empreendidos neste campo estarão no ensaio 3.
69
em vista a potencialidade das imagens fotográficas em promover conexões de sentidos e
significados ontológicos e imaginativos, conforme realça Achutti (1997b):
A fotografia é uma espécie de gesto, a explicitar uma intenção. Com ela
arbitra-se uma porção de espaço e de tempo que devem ser realçados e oferecidos a público. Uma fotografia guardada não é nada. Ela veio para ser
contemplada, para evocar a memória e instigar a sensibilidade. É quando a
humanidade olha para si própria. São vários os olhares. Ela não deve ser aleatória, nem mistificadora, não precisa ser espetacular ou ameaçadora.
Construída pelo gesto mínimo, pelo olhar franco, a fotografia é cotidiano
(ACHUTTI, 1997b, p. 5).
Entretanto, no contexto das pesquisas com crianças, Demartini (2002, p. 14) alerta que
o maior desafio do pesquisador é captar os relatos infantis com uma construção teórico-
metodológica de adultos e analisar o material empírico coletado também por adultos, nas
palavras da autora “como entender o que as crianças falam, com seu mundo de fantasias, com
suas construções próprias e entendê-las a partir da nossa visão, de quem não é mais criança?”.
Neste prisma, compreender as representações infantis não significa interpretá-las sob as nossas
próprias formas de pensar o mundo, mas respeitar as subjetividades e construções intelectuais
da criança, dando a elas o poder e a autonomia da voz social.
Dornelles e Bujes (2012, p. 27) advertem que essas práticas de escuta e interpretação
devem, necessariamente, ser feitas a partir de formas específicas de narração produzidas dentro
de um conjunto de possibilidades de subjetivação previamente estabelecidas nos limites e
controles exercidos pelas relações de poder nas/das quais as crianças participam. Desse modo,
o autogoverno se dá,
[...] quando as crianças são instadas a fazer escolhas, a tomar decisões, a
construir regras, isso não é feito ao acaso, mas a partir de um repertório previamente estabelecido, balizado por uma lógica normativa, que define
limites e “critérios racionais” para o que é dela esperado, e que funciona como um conjunto de princípios para a regulamentação da conduta (DORNELLES
e BUJES, 2012, p. 27).
Nesta perspectiva, Sarmento (2007, p. 44) enfatiza que na investigação dos mundos
sociais da infância, é preciso utilizar procedimentos que permitam uma efetiva escuta da voz
das crianças, no quadro de uma reflexibilidade metodológica que recusa o etnocentrismo
adultocêntrico. Para esse autor, as crianças são sujeitos do conhecimento, parceiras na
investigação.
Portanto, através da Fotoetnografia foi possível trazer à tona a referida reflexividade
metodológica por meio do olhar antropológico de Achutti (1997, p. 95), o qual defende a
70
fotografia como prática etnográfica ao estabelecer um diálogo com o campo de conhecimento
da Antropologia Visual. Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua totalidade,
partindo da compreensão de fenômenos particulares e dialogando com a teoria selecionada,
bem como, com as vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais. Por esse motivo,
a inspiração etnográfica abarca a perspectiva dialética, assim como, a comparação, a densidade
descritiva, o significado, sua organização e variações (GEERTZ, 1989; MATTOS, 2011).
Etimologicamente, a palavra etnografia deriva do grego “graphein” significa escrever
sobre um tipo particular, um “etn(o)” ou uma sociedade em particular, remete à descrição de
um povo “ethnos”. A etnografia desenvolve-se no final do século XIX e início do século XX,
como a “escrita do visível” que dependerá “das qualidades de observação, de sensibilidade ao
outro, do conhecimento sobre o contexto estudado, da inteligência e da imaginação científica
do etnógrafo” (MATTOS, 2011, p. 54).
Para Geertz (1989) o método etnográfico representa um risco elaborado para uma
descrição densa da realidade, pois, envolve uma observação intensiva no ambiente natural e a
imersão do pesquisador na situação para permitir a compreensão do fenômeno estudado.
Corroborando com essa visão, Mattos (2011) afirma que a etnografia busca uma descrição mais
completa possível sobre a ação do sujeito e o significado das percepções imediatas que eles têm
acerca do que ele faz, esta descrição é sempre realizada com a comparação etnológica em mente,
pois constitui a escrita do visível.
Diante deste desafio, foi preciso fazer algumas adaptações ao método fotoetnográfico
adequando-o ao entendimento infantil, facilitando, assim, seu manuseio e compreensão. Assim,
seguindo essas premissas fundamentais, integrei às perspectivas fotoetnográficas a
reflexividade autobiográfica, construída através do uso combinado de narrativas imagéticas e
autobiográficas agregadas a estratégias etnográficas desenvolvidas junto à criança-sujeito.
Neste arranjo ensaístico, a pesquisa fotoetnográfica de caráter autobiográfico foi
realizada durante os meses de janeiro a julho de 2017, junto a uma criança de 6 anos, do sexo
feminino, de classe média, nascida em pleno século XXI e que participa ativamente da cultura
virtual através de redes sociais como Facebook e Instagram, de desfiles de moda, concursos de
beleza e programa de TV local, onde divulga seus vídeos e fotografias. O processo de geração
de dados43 intercalou diferentes procedimentos, desde observações participantes, conversas
informais, diário fotoetnográfico, narrativas autobiográficas, seleção de fotografias dispostas
fisicamente em álbuns de família e disponíveis digitalmente em pen-drives, além de imagens
43 Serão especificadas no ensaio 3 deste estudo.
71
publicadas em redes sociais como Facebook, YouTube e Instagram. Como processo etnográfico
integrado à metodologia fotoetnográfica, também foram realizadas saídas externas em espaços
públicos como shoppings e eventos sociais que faziam parte das rotinas da criança-sujeito, na
tentativa de registrar através de fotografias e filmagens44 situações do cotidiano e conhecer suas
particularidades culturais.
A seleção das imagens para compor a narrativa fotoetnográfica autobiográfica foi
realizada pela própria criança, desde escolha à contextualização histórica e cultural da imagem
a partir da estratégia de interpretação memento. Retomei, neste aspecto, a perspectiva heurística
e metodológica do memento, como movimento de interpretação para aproximação e
compreensão do objeto de investigação, onde a criança pôde reviver cenas de sua própria
infância dando novos sentidos e interpretações aos fatos e experiências, levando-a, em seguida,
a compreender a realidade retratada de forma crítica e reflexiva.
Portanto, o corpus imagético selecionado serviu de base para composição da narrativa
fotoetnográfica produzida, narrada e interpretada pela própria criança-sujeito. Concomitante a
essa etapa, também analisei a Fotoetnografia produzida pela criança a partir do olhar ético,
crítico e analítico de pesquisadora, estabelecendo para tanto, o diálogo transdisciplinar entre as
bases epistemológicas da Sociologia da Infância e as demais ciências que integraram a pesquisa.
Tendo em vista a complexidade metodológica deste ensaio, foi necessário desenvolver
outros caminhos investigativos, principalmente, relacionados à geração de dados durante a
pesquisa empírica junto à criança, desse modo, retomarei no próprio contexto do ensaio 3, os
fundamentos teóricos e metodológicos elaborados e empreendidos, especificamente, para este
fim.
Em suma, como investigadora, busquei compreender o objeto de estudo a partir desses
três campos analíticos, clarificando não somente o resultado, mas o processo e suas implicações
para a compreensão da criança, de suas infâncias e culturas. Neste diapasão, esta tese
caracteriza-se como uma pesquisa transdisciplinar de abordagem interpretativa (GRAUE;
WALSH, 2003)45 e método fotoetnográfico, que combinou diferentes estratégias de geração,
tratamento e análise de dados. Em vista disso, inicialmente, as análises foram realizadas a partir
do movimento de interpretação memento, em seguida, confrontadas e discutidas à luz do rigor
44 As gravações em vídeo serviram apenas como recurso de apoio às descrições e análises dos dados. 45 Graue e Walsh (2003, p. 34, grifo do autor) preferem a denominação interpretativa à qualitativa dada à
sua amplitude e por “evitar a conotação de não quantitativa que o termo ‘qualitativa’ adquiriu. Os autores
fazem uma releitura do termo proposto para designar de forma mais abrangente as abordagens “alternativamente designadas por etnográficas, qualitativas, com observação dos participantes, estudos de
caso, interaccionisto-simbólicas, fenomenológicas, construtivistas ou interpretativas”.
72
interpretativo (GRAUE; WALSH, 2003), transdisciplinar multireferencial (SARDELICH,
2006) e crítico-cultural da Cultura Visual (HERNANDEZ, 2000; MIRZOEFF, 2003;
KELLNER, 2013; CARLOS; FAHEINA, 2010).
O tratamento transdisciplinar surge do questionamento do modelo firmado de ciência
cartesiana que estabelecia a investigação do fenômeno a partir de limites nítidos entre
disciplinas, em contraposição, assume uma racionalidade holística do conhecimento onde o
processo de construção do conhecimento passa a ser dinâmico, complexo e híbrido, no entanto,
“não se trata da velha interdisciplinaridade, cujo objetivo consiste apenas em cruzar dados e
procedimentos de vários ramos do saber moderno, de modo a produzir um discurso sobre o
objeto de estudo a partir de vários ângulos ou diversos pontos de vista” (DUARTE JR., 2000,
p. 34). Essa mudança de visão de conhecimento científico ocorre em decorrência das
modificações culturais da sociedade atual marcada pela globalização e pelas novas formas de
conhecimento, comunicação e informação.
Portanto, o projeto de uma transdisciplinaridade parece ter seu ponto de
partida num estágio anterior ao da constituição mesmo da razão pura. Ou seja,
antes de esta razão criar as normas para a sua atuação dentro de um rigor científico que ela mesma engendra, há que se construir um entendimento mais
amplo do mundo, no qual os dados sensíveis da realidade não sejam elididos.
O conceito de transdisciplinaridade deve, pois, começar na atitude humana perante a vida, em que estejam presentes tanto a abstração generalizante
quanto a percepção concreta de particularidades (DUARTE JR., 2000, 36).
Em diálogo com as concepções transdisciplinares de produção de conhecimento, as
pesquisas interpretativas assumem necessariamente, a dimensão qualitativa para descrever a
complexidade de uma determinada hipótese ou problema, analisam a interação de certas
variáveis, compreendem e classificam processos dinâmicos experimentados por grupos sociais,
apresentam contribuições no processo de criação ou formação de opiniões de determinado
grupo e permitem, em maior grau de profundidade, a interpretação das particularidades dos
comportamentos ou atividades individuais (BOGDAN; BIKLEN, 1994).
À exemplo do caráter transdisciplinar, a abordagem qualitativa, assumida nesta tese
como interpretativa, permitiu descrever a complexidade do problema e compreender os
processos dinâmicos experimentados durante a pesquisa, tal perspectiva, contribuiu para o
processo de criação e sistematização das análises, e em maior grau de profundidade, possibilitou
a interpretação das particularidades do objeto e do sujeito investigado (BOGDAN; BIKLEN,
1994; GRAUE; WALS, 2003).
Para Graue e Walsh (2003) o estudo interpretativo tem o objetivo de investigar a
73
realidade manifestada nas experiências e comportamentos humanos em seus contextos reais,
descreve consubstancialmente as situações do cotidiano para melhor compreender as
particularidades do objeto, daí a necessidade de criar estratégias e procedimentos rigorosos
quanto ao registro e à condução da pesquisa.
Portanto, partindo da concepção sociocultural de construção do conhecimento, a leitura
da realidade foi feita de forma interpretativa, baseada na interação entre pesquisador-objeto e
sujeito-objeto, através de uma prática relacional e dialógica.
O ato de ler um texto ou uma imagem é, pois, um processo interpretativo. O
sentido é gerado na interação do leitor com o material. O sentido que o leitor vai dar vai variar de acordo com os conhecimentos a ele(a) acessíveis, através
da experiência e da proeminência cultural. Algumas leituras poderão ser bastante universais dentro de uma cultura, outras serão mais idiossincráticas
(PENN, 2002, p. 324).
De acordo com Martins (2012, p. 73) “na perspectiva da cultura visual a interpretação
se constitui como prática social que mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da
memória social construída pelo sujeito”, deste modo, as interpretações são representações
decorrentes do imaginário social do qual o sujeito faz parte, consequentemente,
A interpretação é um ato complexo que se realiza a partir da interpelação de várias práticas sócio-ideológicas e, por esta razão, está implicada em relações
de concordância, resistência ou crítica a algo já valorado e de alguma maneira
organizado, algo diante do qual se adota, de modo responsável, uma posição valorativa (MARTINS, 2012, p. 75).
Nesta mesma perspectiva, a análise transdisciplinar multireferencial da Cultura Visual
direciona o olhar para a compreensão integral da imagem, desde os aspectos valorativos até os
significados culturais que dão sentido ao representado, identificando sentimentos,
subjetividades e identidades do representante, ou seja, daquele que vê (SARDELICH, 2006, p.
465).
Com base no método fotoetnográfico, o caráter descritivo no tratamento das narrativas
visuais à luz de concepções históricas, culturais e sociais estabelecidas sobre as categorias
crianças, infâncias e culturas infantis ao longo dos séculos, possibilitou a análise interpretativa
referente a cada campo de análise. Dessarte, a interlocução entre concepções de crianças e
infâncias remeteu a este movimento dialógico em que a qualidade dos resultados estava sempre
em vias de se transformar, sempre em direção a um novo começo, por outro lado, condicionava-
se, reciprocamente, pelos fenômenos que as rodeavam. Nessa perspectiva, os aspectos da
realidade foram analisados do ponto de vista das condições que os determinavam e, assim, os
74
explicavam em cada situação singular refletida.
Portanto, através da perspectiva interpretativa que exige do investigador a descrição
precisa das informações sobre os fatos e fenômenos de determinada realidade (TRIVIÑOS,
1987) busquei retratar quem são essas crianças e compreender como as concepções de infância
e culturas infantis foram sendo histórica e socialmente constituídas para perceber em que
circunstâncias a criança exerce sua alteridade sendo protagonista da sua própria história.
Por fim, cumpridas todas as etapas éticas como: submissão do projeto ao Comitê de
Ética em Pesquisa do Centro de Ciência da Saúde da UFPB; coleta das assinaturas nos Termo
de Assentimento (TA); Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), Termo de
autorização do uso de Imagem (TAI), foi dado prosseguimento à pesquisa.
A seguir, sistematizo a estrutura da tese que está dividida em três ensaios e quatro
narrativas fotoetnográficas.
75
DOS ENSAIOS ÀS NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS
A composição da tese foi pensada como uma tentativa de exploração da imagem como
narrativa integral, desse modo, inicialmente, os capítulos foram intitulados de “ensaios” 46,
fazendo alusão à linguagem fotográfica. No ensaio fotográfico, “as escolhas devem responder
aos próprios interesses e critérios do autor, sendo extremamente pessoais”, portanto, o fotógrafo
tem maior autonomia sobre sua produção e em todos os seus estágios (FIUZA e PARENTE,
2008, p. 173). Portanto, esta tese, inicialmente, assumiu a ideia do ensaio fotográfico para
estruturação de seus capítulos, onde as escrituras imagéticas corresponderiam às narrativas
fotoetnográficas produzidas a partir do diálogo entre a problematização e a análise das
produções epistemológicas e empíricas dispostas nas escrituras textuais que comporiam cada
ensaio.
De acordo com Parente e Fiuza (2008, p.164) a ideia de ensaio tem suas origens no
campo da Filosofia, mas logo ganhou força, experiência e novo significado na arte e na cultura,
ajustando-se ao campo da fotografia, e neste se destaca o aspecto experimental, ou seja, está
relacionado ao treino, teste, podendo ser utilizado em diversos seguimentos. Nesta óptica, o
ensaio não tem a obrigatoriedade de ser composto por fotografias profissionais de alta
qualidade, produzidas por equipamentos de última geração, pelo contrário, poderia assumir
formas livres e criativas de exploração da imagem através de esboços e delineamentos
produzidos em diferentes circunstâncias, deixando a critério do fotógrafo as escolhas, as
criações e as apresentações de sua composição.
No entanto, o aprofundamento da metodologia me direcionou a novas acepções acerca
desta estrutura, desta vez, caminhei pelas ciências literárias, onde a escrita ensaística, enquanto
forma e estilo de linguagem escrita, aproxima-se do método buscando construir e enunciar a
ciência (RODRÍGUEZ, 2012, p. 11). Parente e Fiuza (2008, p.164) argumentam que o ensaio
configura um estudo “menor que um tratado formal e acabado” e o ensaísta, refere-se a algum
“escritor autor de ensaios”, nos dois casos, há uma ligação com a literatura. E assim, fui tecendo
novos caminhos para apresentação da tese.
Segundo Rodríguez (2012, p. 32) escrever uma tese através de ensaios possibilita novas
“interpretações em vez de construir a sua própria, sobre um objeto definido”, pois a escrita
46 Ensaio. [do lat. Tardio Exagiu.] Significados: 1. Prova, experiência; 2. Exame, estudo; 3. Tentativa,
experiência; 4. Treino, treinamento; Ensaio [do fr. essai] Estudo sobre determinado assunto; Ensaísta [do
fr. essayiste] Escritor, autor de ensaios (FERREIRA, 1999, p. 765).
76
ensaísta é transitória, revela um “[...] conjunto de ideias que nasce para ser superado”, assim
como “no jargão dos fotógrafos, é apenas ‘um olhar’” (RODRÍGUEZ, 2012, p. 33, grifo do
autor). Neste sentido, o texto que narro imprime minhas próprias marcas, porém, se coloca
como uma narrativa que desafia novas interpretações,
E a tese, por sua vez, tem o mesmo status da narrativa: também é a representação de um conceito principal que assume no início uma missão, a
de interagir, combinar-se e sobreviver, como um protagonista de histórias
antigas, aos extremados desafios que lhe serão impostos, aos desafios da dialética (RODRÍGUEZ, 2012, p. 77).
Ao tecer esta tese, intencionei não só a legitimidade científica, mas, a produção de um
texto narrativo harmônico que motivasse a sua própria escrita, e consequentemente, sua leitura.
Dessa forma, manter o diálogo com o leitor foi um dos motivos que me fizeram optar pela
escrita da tese como ensaio, pois, o ensaio abre espaço para o diálogo e para uma narrativa
criativa. Assim, conduzi a narrativa através do ensaio-tese, que conforme Rodríguez (2012, p.
58) traz uma vantagem, a de “[...] assumir a existência de um narrador e, daí, de todas as suas
limitações”.
Nesta óptica, estou ciente de que as lacunas que nela [a tese] se formam, serão
preenchidas em seu processo de compreensão a partir do olhar do Outro. Dito isto, o texto que
narro, pretende ser:
[...] um espaço de criação e desenvolvimento [...] porque devolve ao leitor seu
raciocínio, suas lembranças. Não é mentira que o bom texto científico leia ao
leitor, amarrado por esses elementos amplos de subjetividade e remissão intertextual: aquela imagem de que à roda da bicicleta não são tão importantes
os raios de alumínio quanto o espaço que há entre eles (RODRÍGUEZ, 2012, p. 95).
Nesta perspectiva, estes espaços também me interessam. E “Se posso demonstrar tal
aproximação, justifico que o ensaio seja um modo mais realista de expor a ciência humana”
(RODRÍGUEZ, 2012, p. 58). No entanto, chegar ao enquadramento do método exigiu não só
esforço intelectual, como também certo esgotamento emocional, em que a solidão da escrita
dava vazão às incertezas, dúvidas e o medo de errar. Incertezas, pela escolha metodológica - a
fotoetnografia, por se tratar de uma abordagem recente que se arquiteta principalmente, no
campo da Antropologia Visual mirando seus olhares para o estudo de determinados grupos
étnico-culturais e fenômenos sociais com foco nas experiências etnográficas direcionadas
principalmente à geração adulta. Dúvidas - quando me questionava sobre a construção das
narrativas imagéticas, no que concerne à seleção de imagens para compor as fotoetnografias,
77
se eu poderia utilizar imagens não produzidas por mim que estavam dispostas em estudos e
pesquisas científicas ou em acervos familiares, tendo em vista que a intenção da revisão de
literatura era justamente selecionar imagens em trabalhos com fotografias produzidas pelo/a
pesquisador/a durante a pesquisa empírica. Ou quando me ocorria pensar na possibilidade de
mesclar as imagens desses acervos com fotografias produzidas por mim durante a pesquisa
empírica no intuito de compor a fotoetnografia e consequentemente, como manter a coerência
e o rigor da Fotoetnografia nas interações junto às criança-sujeitos e nessa construção utilizar
fotografias de forma mesclada. E o medo de errar – quando após muitos momentos de profunda
reflexão, monólogos e “diálogos” epistemológicos, optava por uma ou outra decisão. Ah, como
eu queria uma conversa com Achutti!
Como isso não foi possível, o que me restou foi a intuição e com ela a ousadia de criar.
Arrisquei-me a aventurar por mares nunca antes navegados e permaneci (não só por teimosia),
com o desafio de cumprir a pretensiosa, e até audaciosa, missão de manter a amplitude do tema.
Assim, neste trabalho de tese, tento seguir o rigor acadêmico da pesquisa científica, mas, faço
alguns ‘contornos’ metodológicos necessários à aplicabilidade dos procedimentos e,
consequentemente, à sua inteligibilidade. Neste sentido, as próximas páginas pretendem ser
apenas uma síntese reflexiva de uma estudante de doutorado em educação comprometida com
os estudos da criança, que pretende contribuir com a visibilidade da Sociologia da Infância nos
cenários educacionais, políticos e científicos no Brasil, sobretudo, na região Nordeste do país.
E, principalmente, contribuir com outras formas de reflexionar a criança, reconhecendo o papel
da Cultura Visual na in/formação das culturas infantis, bem como, a importância da
fotoetnografia como estratégia metodológica viável e eficaz aos estudos e pesquisas
relacionados à infância a partir de um diálogo transdisciplinar.
Feitos esses esclarecimentos, a tese que ora intento defender está organizada em três
ensaios, onde apresento as discussões e análises das narrativas fotoetnográficas referentes aos
determinados campos analíticos. Cada ensaio é precedido de um prólogo, que dá início à
discussão introduzindo o tema com o qual os demais elementos dialogam. E sucedido de um
curto epílogo que resume a discussão empreendida e aponta direcionamentos para os próximos
textos.
Para facilitar a leitura e compreensão das narrativas fotoetnográficas, os ensaios se
apresentam subdivididos em capítulos e subcapítulos. As narrativas que possuem intenções
visuais em si, possuem uma sequência lógica e necessária que abriga conhecimento e sentido
(ACHUTTI, 2004, p. 87) dialogando, diretamente, com os textos anteriormente escritos, por
conseguinte, se oferecem, novamente, ao olhar, como reminiscências e projeções que se
78
entrecruzam com a realidade e a subjetividade de quem as vê.
Em se tratando da disposição das imagens, Achutti (2004, p. 109) também sugere que
as narrativas sejam compostas por uma sequência de fotografias relacionadas entre si, sem
nenhum texto intercalado, desse modo, a narrativa “deve ocorrer unicamente pelas imagens que
apresentem, em si e entre si, uma construção de sentido” (BIAZUS, 2006, p. 304). No entanto,
isso não significa afirmar que as informações escritas percam seus espaços e importância para
a composição narrativa visual, pois,
Essa precaução não impede que certas informações escritas possam ter sido
anteriormente dadas àqueles que vão mergulhar na narrativa visual, isto é, a justaposição dessas duas formas narrativas é possível e mesmo desejável, mas
é importante notar que o ideal seria que cada tipo de escritura fosse oferecido ao leitor separadamente, de forma que cada uma conservasse todo o seu
potencial. Trata-se de escrituras diferentes que devem ser então oferecidas e
abordadas de maneiras diferentes (ACHUTTI, 2004, p. 109).
Nesta perspectiva, o que Achutti (2004) propõe não é uma ruptura, mas, uma análise
que demonstre o potencial narrativo de cada escritura, favorecendo o enriquecimento da
descrição do fenômeno em toda sua complexidade. Porém, conforme alertou Achutti (2004, p.
85), para não “cair na armadilha do estetismo e do puro espetáculo” a disposição das duas
escrituras deve dar atenção particular aos contextos culturais, históricos e sociais de cada
detalhe empírico da vida cotidiana, neste caso, da realidade social das crianças, que muitas
vezes permanecem invisíveis à primeira vista, mas logo são descobertos “por detrás das
aparências”, ou seja, são os “não-ditos” da imagem que também “expressam a realidade e que,
escapando do discurso verbal [...] podem ser captados e restituídos por meio da fotografia”.
Portanto esta tese apresenta-se dividida em 3 ensaios.
No ensaio 1, “O Histograma da Tese: por uma Fotoetnografia da Infância”, discuto as
bases epistemológicas e metodológicas que fundamentaram a pesquisa, enfatizando as
construções metafóricas nas quais as análises foram empreendidas. Neste sentido, reflexiono a
fotografia enquanto fenômeno, ação da memória capaz de (des)velar a realidade a partir dos
conceitos de “pele” (SAMAIN, 2012, p. 160) e “magia” (FLUSSER, 1985, p.5) e à luz das
perspectivas antropofilosóficas da imagem; Na sequência, destaco o memento como movimento
de interpretação da imagem através do reviver, sentir e compreender como devir criador,
empreendido durante a análise de dados da pesquisa e complemento descrevendo a
sistematização da leitura e compreensão das imagens a partir da descrição em high key e da
contextualização em low key. Após a caracterização das bases epistemológicas e metodológicas,
discorro sobre a Fotoetnografia no cenário acadêmico, ressaltando, principalmente, as pesquisas
79
relacionadas à infância. Por fim, exponho a narrativa visual construída a partir da realidade das
infâncias magicizadas em peles que performatizaram as culturas infantis nas pesquisas
fotoetnográficas empreendidas no Brasil.
No ensaio 2, “As culturas infantis nas multimagens de crianças: uma fotoetnografia
panorâmica conceptual”, problematizo as concepções e representações de crianças, infâncias e
culturas infantis sob perspectivas históricas e sociais, evidenciando os marcos paradigmáticos
da História Social da Criança, da Sociologia da Infância e da Cultura Visual. Em seguida,
adentro no universo das visualidades, procurando estabelecer conexões teóricas e empíricas
sobre as concepções de crianças e infâncias presentes na Cultura Visual em contraponto com o
que se narra e se discute sobre infância contemporânea, considerando três eixos: publicidade e
consumo; adultização e erotização da infância e as novas e atuais identidades infantis. Na
sequência, apresento as concepções de participação e protagonismo infantil a partir da imagem
da criança sociológica e finalizo com uma narrativa visual que abrange pinturas e fotografias
de crianças que expressam suas culturas e realidades através de olhares que permeiam desde as
invisibilidades ao protagonismo da criança, ou seja, do homúnculo à criança social.
No ensaio 3, “O protagonismo da criança na alteridade da infância: da fotografia à voz”,
desenvolvo a Fotoetnografia como uma estratégia narrativa autobiográfica para pesquisa com
criança. Desse modo, sistematizo os procedimentos metodológicos da pesquisa empírica em
quatro passos: seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito; sistematização dos
encontros domiciliares e externos; produção do diário fotoetnográfico e produção da
Fotoetnografia Autobiográfica – memento. Por conseguinte, ressalto algumas evidências do
protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica e reflito sobre as
implicações da Cultura Visual para a construção da identidade da criança na
contemporaneidade. Neste ensaio, apresento narrativas visuais que intercalam fotografias do
acervo familiar e fotografias realizadas durante a pesquisa de campo. Trata-se de uma
fotoetnografia autobiográfica construída pela criança sujeito da pesquisa, em que ela discorre
sobre sua história de vida a partir de imagens selecionadas e narradas sob suas próprias
percepções. Desvela também o cotidiano da pesquisa empírica realizada junto à criança,
destacando seus modos de ser e de constituir sua cultura. Intencionei com este ensaio, defender
uma nova imagem para a criança sociológica na perspectiva da Sociologia da Infância – a
imagem da criança protagonista, que exerce sua participação na sociedade de forma ativa,
criativa e reflexiva.
Por fim, tendo em vista que o conhecimento científico é um processo que está sempre
sujeito a refutações e ampliações discursivas e conceptuais, não seria pertinente encerrar a tese
80
com uma conclusão “fechada” em argumentos fixos, portanto, retomo os resultados dos três
ensaios para compor o que intitulo de “Por uma in/conclusão”, pois, considerando a
complexidades das infâncias em suas variadas manifestações culturais, em suas relações de
alteridade e em suas potencialidades criativas, participativas e autênticas, será preciso olhar
para elas com,
[...] os olhos de Alice e ver que tudo que se vive nela, se vive com os olhos
fechados e que basta abri-los para que a vida desponte a sua frente. Olhar para
estas infâncias, quem sabe, com os olhos cheios de vida que queremos para todas as crianças, porque só as crianças conseguem espelhar a vida no seu
olhar. Olhar [...] olhar as infâncias com óculos dos sonhos infantis. E, como
Alice, viver de novo toda a astúcia de jogo de cada uma das infâncias e dos dias passados nos verões e invernos, não só de seu futuro, mas acima de tudo
do seu presente. Talvez assim cada criança possa jogar o jogo da vida sem que seja preciso que um Rei ou uma Rainha continue gritando: cortem a cabeça
daquele! Cortem a cabeça daquele! (DORNELLES, 2005, p. 102).
E cada olhar é único.
81
ENSAIO 1
O HISTOGRAMA DA TESE…
Por uma Fotoetnografia da Infância
Na linguagem fotográfica, o histograma é um gráfico
produzido pela câmera que representa o nível de exposição
da imagem. Nele se encontram as informações técnicas
adequadas à luminosidade necessária para a obtenção de
uma imagem ideal. O histograma mede o equilíbrio entre
luzes e sombras, determina a estabilidade perfeita entre as
cores buscando, juntamente com a percepção do olhar do
fotógrafo, obter o resultado esperado para a fotografia.
Portanto, o histograma é um componente fundamental
para a produção da imagem técnica e sua leitura
indispensável para a compreensão da realidade congelada
no click fotográfico. Nesta perspectiva, o histograma da
tese foi organizado com o objetivo de apresentar a
sistematização da pesquisa, destacando os elementos que
compõem o trabalho teórico e metodológico que dão
sustentação e equilíbrio à tese que intento defender. Com
isso, neste espaço, procuro facilitar a leitura e compreensão
global da tese como ensaios fotoetnográficos orquestrados
mediante a harmonia de palavras e imagens que propõe o
diálogo entre si, mas, que em cada situação particular,
refletem e promovem novas narrativas e interpretações
mediante outros e novos olhares...
82
PRÓLOGO
...Sobre o Memento
Certa ocasião, o grande amigo filósofo Daniel Figueiredo, da mesma turma de
doutorado, leu um pequeno trecho da minha tese e disse: “essa parte que você coloca como
reviver, sentir e compreender, me lembra um filme chamado “Memento”, assista que você vai
gostar, pois dialoga exatamente com o que você está tentando elaborar”. Essas palavras,
inicialmente, soaram como uma simples e interessante indicação, mas, não me parecia ser uma
ideia legal para tese, pois eu já tinha um “corpus” bastante diversificado e acrescentar filme à
discussão me traria outras problematizações necessárias que, infelizmente, não daria tempo de
cumprir. No entanto, assim que cheguei em casa, imediatamente localizei o filme na Internet e
assisti, não só uma vez, duas vezes, dada a sua complexidade. E a todo o momento cada cena
me fazia perceber que meu amigo tinha razão.
O filme “Memento” 47, traduzido para o Brasil como “Amnésia48”, é uma produção
norte-americana escrita e dirigida por Chistopher Nolan que trata de questões relacionadas à
memória, percepção e vingança. O drama vivido por Leonard (Guy Pearce), também chamado
de Lenny por alguns personagens, gira em torno de sua perda de memória causada por uma
pancada que recebeu na cabeça por ocasião de um assalto, que resultou no estupro e possível
assassinato de sua esposa. Neste ensejo, ele consegue matar um dos dois assaltantes, mas o
outro consegue escapar. E assim começa a saga de Lenny: encontrar e matar o outro assaltante.
O filme se inicia pelo final da história, isso cria certa nostalgia, mas, as narrativas que
acontecem em seguida dão todo sentido à trama. O filme é apresentado em cenas súbitas,
algumas em preto e branco, outras coloridas, e por vezes desconexas, levando-nos a falsas
47 Ficha técnica do filme Memento (2000): Origem: EUA; Gênero: drama suspense; Duração: 113 minutos.
Elenco: Guy Pearce, Carrier-Anne Moss e Joe Pantolian. QRcode 12: Trailer do filme Memento - YouTube
filmes.
48 “Amnésia” refere-se à ausência de memória ou perda de memória constante ou episódica, temporária ou
permanente, é classificada em: amnésia anterógrada que ocorre após a lesão causando deficiência em
formar novas memórias e amnésia retrógada também ocasionada após uma lesão acarretando a perda da memória anterior ao trauma (ZIMERMAN, 2012). O filme tenta caracterizar a perda de memória de
Lenny como anterógrada, no entanto, o próprio Lenny não assume seu problema como amnésia.
83
impressões. Desse modo, as cenas decorrentes mostram a difícil situação de Lenny em enfrentar
a perda de memória para conseguir atingir seu objetivo. Tendo em vista que ele não consegue
armazenar mais do que 10 ou 15 minutos de novas memórias, ou seja, a cada intervalo, ele
recomeça todo o processo de rememoração e investigação, duas das poucas memórias que
permanecem são as vividas com sua esposa antes do crime e uma em que ela aparece ferida no
chão do banheiro.
Para superar o problema da falta de memória, Lenny registra os acontecimentos através
de fotografias que ele guarda sempre consigo e faz inúmeras tatuagens em várias partes do seu
próprio corpo. Estas situações acarretam uma série de consequências na trama, por isso, o
enredo é construído de forma fragmentada, como se o espectador estivesse com a mesma
síndrome (ironicamente falando). Por isso, a necessidade acompanhar cada detalhe das cenas
para não perder nenhuma pista desse curioso mistério. Minha intenção aqui não é resenhar o
filme, mas, destacar a importância dos registros imagéticos na perspectiva do Memento, para a
interpretação das reminiscências (memória). Ainda darei alguns spoiles49 do filme, mesmo
assim, vale a pena assistir, surpreendam-se.
Mas, voltando à questão, como eu poderia articular e fundamentar o Memento à
perspectiva do “reviver, sentir e compreender” na minha tese? E como estabelecer esse diálogo
com a Fotoetnografia?
As respostas estavam justamente nas estratégias que Lenny utilizava como artefatos
acionadores de memória, ou seja, as fotografias e as tatuagens. Nas imagens ele registrava suas
rotinas e investigações e nelas colocava algumas anotações como lembrete, e nas tatuagens ele
gravava as principais pistas e as futuras ações que ele deveria realizar. Para Lenny, a verdade
estava naquilo que ele mesmo havia registrado como fato. Neste sentido, as fotografias e
tatuagens adquiriam poder de verdade, por mais que surgissem novas situações, ele só confiava
em seus registros imagéticos e no que seu corpo o fazia lembrar. Desse modo, o corpo (matéria)
sofria ação da memória (alma) e, consequentemente, a memória deixava de ser apenas uma
abstração, materializando-se através das imagens.
Da relação entre corpo-matéria e alma-memória muito já foi dito, mas, este assunto está
longe de ser esgotado. Não pretendo fazer nesse ponto do texto, um diálogo aporético sobre
estes dilemas, o qual será realizado nos ensaios a seguir, mas, considero importante revisitar
alguns conceitos da Filosofia clássica que são bem representativos para ressignificar o conceito
49 Spoiler é um termo de origem inglesa que deriva do verbo spoil, significa estragar, desse modo, dar
spoiler significa revelar informações sobre o conteúdo de algum filme ou livro para alguém que ainda
não o tenha visto.
84
de memento, assim, remeto às reminiscências do idealismo platônico como bases para inspirar
novas possibilidades metodológicas de se trabalhar as visualidades, considerando tanto os
aspectos da racionalidade científica quanto às abordagens ontológicas e reflexivas da imagem
através do “reviver, sentir e compreender” empreendido nesta pesquisa.
O conceito de reminiscência em Platão assume o conhecimento como um processo de
anamnese, isto é, uma forma de recordação (PLATÃO, 2001, 81a1-d5, p.51-53).
Para o filósofo a alma humana vivia anteriormente no mundo inteligível ou das ideias
tendo acesso e domínio da verdade, possuía uma ciência absoluta. Ao vir para o mundo sensível,
perdeu a noção de ciência absoluta, tornando-se necessário uma rememoração, uma
“revivescência”, que significa voltar a viver trazendo à tona as memórias já vivenciadas no
mundo das ideias (PLATÃO, 1972, p.72e-77a). Portanto, para este filósofo, a imortalidade da
alma coloca a reminiscência no centro do conhecimento, de modo que despertam as lembranças
adormecidas/esquecidas.
Na óptica do filme, o conceito memento significa a ação de recordar, lembrar,
rememorar fatos e informações do passado e do presente a partir de elementos visuais, ou seja,
o memento se inicia num processo de identificação imagética, em que através das fotografias e
tatuagens as memórias são acionadas e o conhecimento rememorado. Deste processo, decorrem
lembranças, reminiscências do passado que se entrecruzam a elementos do presente e do futuro,
gerando outras sensações que reforçam e/ou modificam as concepções ontológicas e subjetivas
do sujeito, com isso, o passado é constantemente submetido a novas interpretações que
direcionam e projetam o pensamento em ações.
Esse processo pode ser entendido a partir da concepção flusseriana sobre pensamento
imagético e pensamento conceptual. Para Flusser (2007, p. 117) pensamento imagético é a
tradução do fato em imagem e pensamento conceptual a tradução da imagem em conceito, e
nesse movimento de retroalimentação, se elabora um modelo de pensamento adequado a
determinado fato. Ou seja, “o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos.
Ele é capaz de transformar o conceito em seu ‘objeto’ e pode, portanto, tomar-se um
metapensamento de um modo de pensar conceptual” (FLUSSER, 2007, p.118).
Por exemplo, no caso do filme, as fotografias e tatuagens são traduções do pensamento
imagético de Lenny que representam situações reais que ele mesmo registrou como verdade.
Ao formular explicações sobre as imagens que vê, ele traduz a imagem em pensamento
conceptual, o que resultará, necessariamente, em pensamento imagético, que, novamente serão
traduções dos fatos em outras imagens. Considerando que “os filmes são fotografias que
‘falam’" (FLUSSER, 2007, p. 109, grifo do autor), eles também podem ser entendidos a partir
85
deste processo de retroalimentação.
Portanto, na sequência explicito algumas conexões que foram fundamentais para este
processo de ressignificação conceptual da categoria memento para tese. No entanto, estou ciente
de que as relações inteligíveis que estabelecemos entre assistir um filme e ver uma imagem são
diferentes, porém, em muitos pontos se convergem e se complementam, bem como ressaltou
Samain (2012):
Pois, é verdade, não olhamos da mesma maneira uma fotografia ou as imagens
que um filme desenrola. Nossas posturas são fenomenologicamente diversas.
Ver um filme não é olhar para uma fotografia. São atos de observação, posições do olhar, distintas. “Assiste-se” a um filme, “mergulha-se” numa
fotografia. De um lado, um olhar horizontal, do outro, um olhar vertical,
abissal. Enquanto as imagens projetadas levam o espectador num fluxo temporal contínuo, que procura seguir e entender, as fotografias, por sua vez,
o fixam num congelamento do tempo do mundo e o convidam a entrar na espessura de uma memória. Diante da tela, somos viajantes e navegadores;
diante da fotografia, tornamo-nos analistas e arqueólogos (SAMAIN, 2012, p.
159).
O reviver - conhecimento que retorna, revivesce, rememora (mimese). São
reminiscências, lembranças, mementos em busca da verdade, do discernimento. Nesta
perspectiva, “sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar
de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante”
(SAMAIN, 2012, p. 158).
A vida de Lenny é constituída de recomeços, cada vez que ele esquece e todo o processo
de recordação se reinicia, ele passa a estabelecer novas conexões entre seu corpo e sua alma,
não que essas conexões o levem de fato à verdade, mas para ele, a verdade sempre estará nesses
pequenos flashes de memória que, ora sentidos na alma, ora visíveis no corpo. Quando Lenny
recorre às fontes imagéticas, ele está à procura de significados, para tanto, aciona na memória
as lembranças que foram esquecidas, assim, ele revive cada cena na transição entre o real, o
imaginário, a consciência e a razão, o pensamento e o sentimento, despertando assim, em sua
alma as lembranças adormecidas.
Esse movimento constante entre ignorar e saber, tal como compreendido na
revivescência do pensamento platônico, remete à ideia do “reviver” aqui empregado como
trazer à tona as informações que permeiam determinada imagem, desde sua descrição semiótica
até a contextualização histórica, cultural e social da representação.
Neste aspecto, as imagens tornam-se reminiscências, memórias de um passado vivido
que desencadeiam novas concepções do real, evidenciando formas de comportamento e de
86
relações sociais da vida cotidiana e com isso dão “pistas seguras para a compreensão de
aspectos fundamentais daquilo que se encontra guardado no mais impenetrável dos materiais,
o ser humano” (GURAN, 1998, p. 90).
O sentir - contemplação do belo. A contemplação da beleza não busca a forma estética,
mas, a essência do conhecimento. O belo, nesse contexto, torna-se a própria reminiscência
contemplada pelo olhar da alma, “é, pois, o Belo um resplandecer, um esplendor, uma cintilação
com que o supra-sensível Bem se revela na dimensão do sensível, atraindo-nos” (NOUGUÉ,
2013, p. 4).
As reminiscências que a memória de Lenny trazia no Memento desdobravam-se em
dilemas cognitivos e conflitos emocionais que inicialmente o confundiam, mas, logo em
seguida, o conformavam, à medida que as imagens iam compondo os cenários do pensamento
e transformando o cérebro (memória) de Lenny em uma nova tela para imagem (DELEUZE,
2003, p.264), permitindo ao protagonista dar outros contornos e interpretações aos fatos. Neste
contexto, pensar o Memento a partir das ideias de Platão significa afirmar que as imagens
provocam reminiscências carregadas de sensações e supostos discernimentos (verdades), sendo
necessário a reorganização do conhecimento/pensamento a partir de um diálogo inteligível e
contemplativo com a realidade (passado, presente, futuro).
Partindo desse olhar, as imagens são fenômenos, memórias, arquivos e desejos
(SAMAIN, 2012), a memória tem lugar na imagem, assim como a imagem tem lugar na
memória, é neste processo de retroalimentação que se manifesta o memento, sem começo, sem
fim, como rizomas que conectam múltiplas cadeias semióticas ramificadas em revivescências,
saberes, sentidos e emoções. Neste sentido, a perspectiva heurística e metodológica do “sentir”
no memento está implicada na chamada “civilização da imagem” que corresponde à
[...] essa chuva de imagens que, ao mesmo tempo, nos provoca, nos ensina,
nos inunda e nos satura. Imagens que chegam a nos fazer descobrir, é verdade, cantinhos de nossa aldeia planetária até que envesguemos. Imagens que, por
outros motivos e segredos (de estado) nos mentem ou nos foram, de antemão,
confiscadas [...]. Temos, assim, que redescobrir não apenas as funcionalidades heurísticas diversas das imagens, mas seus profundos e necessários valores de
uso (SAMAIN, 2012, p. 155).
O compreender - discernir a verdade à luz da sabedoria. A partir do dimensionamento
platônico, isto significa possuir a sabedoria de distinguir o bem, o verdadeiro, àquilo que
Sócrates chamou de “inteligência do bem” (PLATÃO, 1988, p. 215). Pensar o “compreender”
no conjunto da categoria memento, é estabelecer conexões epistemológicas com o
87
conhecimento aplicado à ciência, à cultura e à sociedade. Nesta acepção, o compreender, passa
a significar a transformação do conhecimento sensível em conhecimento inteligível, ou seja, as
ações de questionar, interpretar e confrontar as reminiscências com o que já foi refutado,
refletido e desvelado, ou seja, com àquilo que já está “bem” conhecido. Para Paviani (2012,
p.79), o termo “bem” assume distintos significados:
[...] se, de um lado, o bem é necessário para entender a justiça, de outro, a justiça não pode existir sem o bem. É nessa elasticidade e coerência dialética,
feita de divisões e sínteses, que a verdade da questão tende a se mostrar. As
ideias ou formas são alcançadas de modo processual nos debates em que as crenças dão lugar à ciência.
Lenny, tomado pelo desejo de vingança, não conseguia discernir o verdadeiro
conhecimento, a lembrança real. Tudo que ele construía a partir das imagens se transformavam
em flashes de memória que ele mesmo se fazia acreditar. Inclusive, suas próprias anotações
junto às fotografias eram equivocadas e enganadoras, tendo em vista a sua condição de
“amnésia”, pois, ele podia ser manipulado por falsas percepções, caindo em contradição com
suas próprias memórias. Como nas cenas em que Lenny contracenou com Natalie (Carrie-Anne
Moss), uma personagem intrigante que teve seu namorado assassinado e que também buscava
se vingar. Natalie se envolve com Lenny tanto para ajudá-lo, quanto para usá-lo na própria
vingança. Em uma das cenas, ela fica irritada com a perda de memória de Lenny e começa a
humilhá-lo, ele corresponde às provocações e a agride com um soco, ela continua com as
provocações, mas logo em seguida, se afasta por alguns minutos à espera que ele esqueça tudo.
Ele consciente de que vai esquecer tudo, tenta fazer alguma anotação sobre ela, mas não
encontra meios de fazer o registro. Após alguns minutos, ele esquece tudo e ela dá outra versão
aos fatos. Ele, novamente, acredita no que ela diz, e no que vê em suas fotografias.
Para Lenny, as imagens continham a “verdade”, no entanto, essa suposta verdade,
poderia também ser a manipulação de sua própria realidade. Ou seja, mesmo partindo do
princípio de que as imagens têm poder de verdade, não se pode dar a elas o status de verdade
absoluta. Daí a necessidade do discernimento – da compreensão. Nesta perspectiva, a teoria da
reminiscência invoca a consciência, o sentimento e a ação de maneira racional, pois, a razão é
o atributo da alma, em outras palavras, a razão é a conciliação da alma para sua ascensão e/ou
transição.
Este processo de compreensão me faz também dialogar com as contribuições freireanas
sobre conhecimento, pois se fundamentam no princípio do estímulo à reflexão e ação verdadeira
dos sujeitos sobre suas próprias realidades, onde o conhecimento e o saber constituem fontes
88
de libertação, esclarecimento e autonomia. Dessa maneira, priorizando a reflexão sistemática e
crítica dos sujeitos a partir do autoconhecimento, o ser humano torna-se capaz de perceber e
reconhecer seus limites e desafios, tornando-se capaz de passar de uma consciência ingênua
para uma consciência crítica (FREIRE, 2002, p. 34).
Destarte, o memento50 é assim entendido como um processo estimulador de
interpretações, que através de uma abordagem heurística e transdisciplinar consegue ser
aplicado ao contexto da Fotoetnografia na perspectiva do reviver, sentir e compreender as
imagens.
Portanto, sendo as imagens constituídas de sentidos e significados, o que as imagens de
crianças revelam sobre suas infâncias? E ainda, é possível reconhecer o protagonismo infantil
nas imagens de crianças e infâncias que apoiam os conceitos e concepções que pautam a
Sociologia da Infância nas Ciências Humanas e Sociais?
Com essas provocações, encerro esse prólogo, ciente dos limites de um trabalho
audacioso e cheio de labirintos imagéticos em que os/as convido a contemplar para “reviver”,
“sentir” e “compreender” essas infâncias que nos desafiam em suas enigmáticas e contagiantes
culturas. Desse modo, ofereço através desta pesquisa, desde a produção à apreciação, em cada
situação do olhar, uma narrativa e a possibilidade de várias significações. Todavia, destas
narrativas, sou apenas a “contadora de histórias”, onde o protagonismo é, e sempre será, das
crianças.
50 A sistematização do memento, enquanto processo metodológico, será retomada, categoricamente, na
seção 1.2 deste ensaio.
89
1 DA CULTURA VISUAL À NOVA EPISTEMOLOGIA DA IMAGEM
“A Cultura Visual é uma velha ideia pintada com tintas novas”
(TAVIN, 2008, p. 11)
Investigar as concepções sobre crianças e infâncias requer reflexionar as experiências e
comportamentos humanos em seus contextos reais, considerando as situações do cotidiano
social e cultural das culturas infantis manifestadas nas relações de alteridade e protagonismo
infantil. Neste sentido, a defesa da tese aqui empreendida, promove uma releitura crítica no
quadro estrutural funcionalista das perspectivas epistemológicas historicamente constituídas
sobre a infância, “que leva não só a considerar a criança como um ator social, mas a despir de
‘naturalidade’ e ‘desinteresse’ a visão moderna” na qual se pautou a ideia de infância e,
consequentemente, de sua educação (MARCHI, 2011, p, 392, grifos da autora).
Embora a Sociologia da Infância tenha contribuído, e ainda contribua, contínua e
significativamente para a elucidação e problematização das causas relacionadas à criança,
considero a Cultura Visual como um campo teórico indispensável para reflexionarmos as
tensões, evoluções e reconfigurações conceptuais sobre crianças, infâncias e culturas infantis.
Assim, pensar a infância enquanto fenômeno social inclui discutir sua relação com a Cultura
Visual e a Educação, tendo em vista as implicações diretas e indiretas que estas duas estruturas
ideológicas exercem no cotidiano da criança.
Para uma melhor compreensão da Cultura Visual e suas implicações na vida cotidiana,
considerei necessário flexionar os conceitos de cultura e visual a partir de uma visão crítica,
heurística e ontológica. O conceito de cultura, na Antropologia, origina-se nos princípios da
semiótica peirceana com o objetivo de investigar e apreender os significados e a densidade
simbólica que a cultura representa, considerando o contexto histórico cultural no qual foram
produzidos, assim, a cultura se constrói como um sistema simbólico, construtor de sentidos e
significados acerca das coisas, assumindo diferentes configurações. O campo da semiótica teve
como um de seus precursores o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989)
considerado desde 1945 como fundador da teoria moderna dos signos (SANTAELLA, 1989).
Para Geertz (1989, p. 135) cultura “são as estruturas de significado através das quais os homens
dão forma à sua experiência [...] e a política [...] uma das principais arenas na qual tais estruturas
se desenrolam publicamente”. Tal conceito implica diretamente na concepção e entendimento
da realidade.
O termo semiótica origina-se do grego “semeiotikos” e significa “a ótica dos sinais”,
90
portanto, é a ciência que estuda os signos e seus significados. Aplica-se ao sistema sígnico as
artes visuais, música, fotografia, cinema, vestuário, gestos, religião, entre outros signos que
estão disseminados na cultura. O campo da semiótica difere-se do campo da semiologia
(SAUASSURE, 2001), “a semiótica forma um todo do qual a semiologia é uma parte”
(DEELY, 1990, p.23). Enquanto a semiologia preocupa-se com a união do sentido com a
imagem acústica da tradição linguística, a semiótica refere-se à tradição filosófica dos signos
(SANTAELLA, 1989).
De acordo com Santaella (1989, p. 2) a semiótica norte-americana de Charles Peirce se
funda na criação de conceitos e dispositivos de indagação permitem descrever, analisar e
interpretar linguagens, porém, não substituem em si, a atividade de leitura e desvendamento da
realidade e tem como objeto de investigação “todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem
por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno
de produção de significação e de sentido”.
Peirce (2005) fundamenta a análise semiótica através de três instâncias de categorias
universais que partem da compreensão dos signos e significados inter-relacionados, podendo
se constituir como uma ciência interpretativa ou obter conceitos mais definidos de cultura e
imagem. Fenomenologicamente, a semiótica peirceana divide-se em três categorias:
primeiridade que consiste na representação do signo tal qual ele se apresenta, ou seja, momento
em que a consciência imediata experiência a realidade pura, não há organização, a
representação é espontânea, não há inter-relação com outros signos; secundidade que
corresponde à reação e/ou conflito diante do que a consciência imediata reconhece da realidade
cotidiana, ou seja, a consciência julga o existente relacionando o signo e seu objeto; e
terceiridade, materializa-se na inteligibilidade a partir da correlação entre o objeto e
interpretante, a interpretação da realidade, compreende o processo de mediação interpretativa,
signo de generalidade. Isso significa que, dependendo do contexto social, as ideias e os
conceitos são instituídos e culturalmente adotados por determinados grupos sociais.
De acordo com a tríade semiótica de (PEIRCE, 2005) o signo corresponde à imagem
imediata de qualquer coisa perceptível, o signo representa o sentido do objeto. O objeto é a
configuração do signo, pode ser perceptível ou imaginável, o objeto determina o signo a partir
da percepção da realidade, o signo é o próprio significado. O sujeito interpretante elabora o
signo através do pensamento inteligível, qualquer interpretante poderá lançar novos signos ao
mesmo objeto.
Geertz (2008, p. 3) avança e preconiza outros modos de conceber a análise semiológica
da cultura acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de
91
significados que ele mesmo teceu e assume “a cultura como sendo essas teias e a sua análise;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado”, dessa forma, o conceito de cultura para Geertz (2013,
p.4) é essencialmente semiótico, abrange os sistemas de signos e significados,
[...] como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria
símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos
com densidade (GEERTZ, 2013, p. 10, grifos do autor).
Com isso, Geertz (2013, p. 20) ressalta que a abordagem semiótica auxilia o diálogo
com o sujeito na busca de compreender seus atos simbólicos através do diálogo e da análise do
discurso social produzido na/pela cultura, portanto, “as formas da sociedade são a substância
da cultura”. Em síntese, parto da ideia de cultura como o conjunto de experiências e
comportamentos expressos nas formas de vida humana associado diretamente aos contextos e
momentos históricos, políticos e sociais pelos quais a sociedade se constitui e é constituída.
O termo visual deriva do latim “visuālitā” [visuālis] refere-se ao “sentido da vista, a
faculdade de ver”, ou seja, compreende àquilo que pertence ou que é relativo à visão, comporta
o sentido humano da visão, corresponde a percepção do olhar em relação ao que se vê51. Essa
percepção, numa perspectiva semiótica, é a representação dos sentidos e significados dados aos
signos imagéticos num movimento de compreensão crítica e contextualização da própria
linguagem ou representação visual (SANTAELLA, 2005). Porém, a representação visual muda
de acordo com a sua relação com a realidade externa e em determinados momentos da história
e da cultura, portanto, não é estável, mas, torna-se um lugar de criação e significação
epistemológica (MIRZOEFF, 2003).
Nesse sentido, cultura e visual estão intrinsecamente interligados e retroalimentados
pelas subjetividades e diversidades humanas. As culturas compõem as visualidades e as
visualidades compõem as culturas, essa composição se dá de forma complexa, diversa e fluida,
consequentemente, subjetiva. Assim, a junção dos termos – Cultura e Visual - representa a
composição do processo inteligível e interpretativo das visualidades manifestadas nas
polissemias das culturas humanas. De acordo com Martínez, I. (2011), vista por este ângulo, a
51 As palavras em latim utilizadas ao longo da tese foram retiradas do Dicionário Latino Português
(TORRINHA, 1942) e do Dicionário Escolar Latino-Português (FARIA, 1962), em concordância com
outros sites on-line na área de linguística.
92
Cultura Visual é muito mais do que um conjunto de artefatos, imagens e leituras de superfície,
e passa a ser,
[...] el conjunto de discursos capaces de construir y desbaratar
posicionamientos acerca del modo en que estas imágenes se crean, presentan
y repercuten en las prácticas sociales. No obstante, lo que se sabe acerca de lo visual, proviene de saberes académicos, en muchos casos, ajenos al mundo
real y a las prácticas cotidianas que los jóvenes desarrollan con el mundo de
las tecnologías y los medios. Esto permite constatar que los modos y los médios de circulación de las imágenes y sus atributos han cambiado
radicalmente. Consecuentemente con ello se ha evidenciado y desposicionado la hegemonia de la academia respecto de la forma de construir y circular los
saberes. Dicho de otro modo, al nivel experiencial masivo de los usuários ante
lo visual, no es proporcional a la restringida elite dedicada al estúdio de los mismos. Evidentemente se ha re-colocado el nivel experiencial y el nivel
teórico (MARTÍNEZ, I., 2011, p. 16).
Desse modo, a Cultura Visual amplia o olhar da ciência para as imagens do cotidiano,
reivindicando o mesmo espaço e valoração dado às belas artes nos estudos das civilizações
humanas. Trata-se de uma outra forma de reflexionar a realidade visual na qual se imprimem
modos de ser, de viver e de representar as culturas e relações humanas em seus contextos
diversos, conforme destacou Mirzoeff (2003):
Una de las principales labores de la cultura visual consiste en comprender de qué modo pueden asociarse estas complejas imágenes que, al contrario de lo
que sostendrían las exactas divisiones académicas, no han sido creadas en un
medio o en un lugar. La cultura visual aleja nuestra atención de los escenarios de observación estructurados y formales, como el cine y los museos, y la
centra en la experiencia visual de la vida cotidiana (MIRZOEFF, 2003, p.
25).
Como consequência, a emergência de uma nova epistemologia da imagem, justamente
por considerar os ícones imagéticos presentes na Cultura Visual como lugares de criação e
discussão de significados (MIRZOEFF, 2003), nesta perspectiva, a importância da imagem não
está apenas no seu valor estético, mas, sobretudo, no papel social que exerce na formação das
culturas humanas (MARTINS, 2007, p. 26). De acordo com Mirzoeff (2003) não se trata de
reconfigurar o objeto de estudo da Cultura Visual, mas de ampliar sua dimensão analítica na
contemporaneidade, tendo em vista que “ahora surge la necessidad de interpretar a
globalización posmoderna de lo visual como parte de la vida cotidiana” (MIRZOEFF, 2003,
p. 19).
Em outras palavras, os estudos da Cultura Visual problematizam a forma como os tipos
93
de imagem perpassam a vida cotidiana constituindo e sendo constituída pelas experiências e
complexidades das relações humanas procurando compreender de que maneira os indivíduos
dão sentido aos acontecimentos visuais. Portanto, a Cultura Visual passa a investigar como as
experiências do cotidiano produzem, criam e disputam significados culturais que, direta ou
indiretamente, exercem forte poder de verdade, “um poder intervencionista que acaba
transformando o mundo imagético na própria vida” (MARTINS; TOURINHO, 2010, p. 138).
As pesquisas sobre Cultura Visual apresentam uma variedade conceptual que
inicialmente e de forma isolada limitavam seus estudos às disciplinas voltadas para História da
Arte e da Imagem, no entanto, com a profusão dos suportes imagéticos decorrente das
transformações tecnológicas da modernidade (GIDDENS, 1991; SANTOS, 2001) ou 2ª
modernidade (LASH, 1997; SARMENTO, 2004) em tempos de globalização (SANTOS,
2001), de expansão da indústria cultural (ADORNO, 2009; ADORNO e HORKHEIMER,
1985), eclosão da cibercultura (LEVY, 1999) e efervescência da publicidade e da moda
(LIPOVETSKY, 2009) [1] os elementos visuais passaram a ser utilizados de maneiras
inimagináveis na vida cotidiana, seja em espaços sociais e/ou científicos (BAUDRILLARD,
1991; FLUSSER, 2007; SAMAIN, 2007; KOSSOY, 2012). Este impacto tecnológico e
imagético repercutiu diretamente no campo conceptual da Cultura Visual, que passou a ser vista
como “una disciplina táctica y no acadêmica”, ou seja, “una estructura interpretativa fluida,
centrada en la comprensión de la respuesta de los individuos y los grupo a los medios visuales
de comunicación” (MIRZOEFF, 2003, p. 21-22).
Como um campo emergente, recebeu diferentes denominações. Pegoraro (2011) em
artigo esclarecedor resume os principais: Estudos Visuais (MITCHELL, 1994), Cultura Visual
(MIRZOEFF, 2002) e Estudos da Cultura Visual (SMITCH, 2008).
Mitchell (1994) compreende os Estudos Visuais como o campo de estudo e Cultura
Visual como o objeto de estudo, logo, “Estudos Visuais são o estudo da Cultura Visual”. Em
sua obra “Teoría de la Imagen”, cuja abordagem está situada na percepção da dimensão cultural
da imagem, sugere que a Cultura Visual deve ser pensada na combinação de significados e
temas historicamente específicos tendo em vista que o campo visual é constantemente
transformado pelas diversas possibilidades de ação interpretativa, as quais se constituem de
forma variada e específica inaugurando uma nova relação entre o espectador/intérprete e o
objeto do seu olhar. Nesta perspectiva Pegoraro (2011, p. 42) reafirma que Mitchell “[...] centra
suas análises na crítica à construção cultural do visual em artes, mídia e até mesmo da
experiência na vida cotidiana, enfocando a formação social do campo visual ou a sociabilidade
visual”.
94
Prerrogativas, estas, que marcaram a emergência do que Mitchell chamou de “virada
pictórica”, assim, o autor apresenta uma teoria da visualidade que concebe os estudos em sua
dimensão cultural suscetíveis à percepção e interpretação do sujeito que olha. Portanto,
[...] se trata más bien de un redescubrimiento poslingüístico de la imagen
como un complejo juego entre la visualidad, los aparatos, las instituciones, los discursos, los cuerpos y la actividad del espectador (la visión, la mirada,
el vistazo, las prácticas de observación, vigilancia y placer visual) puede
constituir un problema tan profundo como las varias formas de lectura (deciframiento, decodificación, interpretación, etc.) y que puede que no sea
posible explicar la experiencia visual, o el ‘alfabetismo visual’, basándose
sólo en un modelo textual (MITCHELL, 1994, p. 23).
Nicolas Mirzoeff (2003) na obra “Una introducción a la cultura visual” concebe a
perspectiva crítica dos Estudos Culturais, porém, dá maior ênfase à questão da cultura. Destaca
a genealogia e a condição da visualidade global/local a partir dos pressupostos dos Estudos
Culturais, assim prefere o termo Cultura Visual expandindo os objetos de estudo para o campo
das visualidades dispostas no cotidiano em suas diferentes expressividades.
Segundo Sardelich (2006), o fato de Mirzoeff (2003) afirmar que o mundo
contemporâneo é caracterizado pela visualização, não significa que, necessariamente, as
pessoas conheçam aquilo que observam. É no campo da reflexividade que os sentidos e
significados sociais se re/estabelecem.
Mirzoeff (2003) ressalta que as pesquisas desenvolvidas na perspectiva dos Estudos
Culturais buscam, em sua maioria, compreender as formas pelas quais as pessoas dão sentido à
cultura, pelo viés da Cultura Visual. Além disso, examinam como as experiências cotidianas
com o universo visual, dos vídeos às obras de arte, produzem, criam e disputam os significados
culturais. Neste sentido, as novas possibilidades de narrativas imagéticas foram os pontos de
partida para uma rede epistemológica multidimensional que buscou nos pressupostos
antropológicos e sociológicos uma redefinição conceptual e paradigmática do campo de
investigação da Cultura Visual, onde “la distancia entre la riqueza de la experiencia visual en
la cultura posmoderna y la habilidad para analizar esta observación crea la oportunidad u la
necesidad de convertir la Cultura Visual en un campo de estúdio” (MIRZOEFF, 2003, p. 19),
o que rendeu uma significativa importância para a dimensão cultural (JENKS, 1995), política
(MIRZOEFF, 2003) e crítica (HERNANDÉS, 2000) das narrativas imagéticas.
Na visão de Smith (2008) os Estudos da Cultura Visual adquirem uma perspectiva
“híbrida e inter ou multidisciplinar” prefere essa denominação para defender o potencial de
criar novos objetos de estudo, dada a “[...] convergência, ou empréstimo, de uma variedade de
95
disciplinas e metodologias” (PEGORARO, 2011, p. 42). Essa visão reforça o que outrora
Mitchell (2003) afirmou:
Los estudios visuales no son meramente una “indisciplina” o un suplemento
peligroso para las disciplinas que abordan el asunto de la visión desde una
óptica tradicional, sino que, más bien, exigen ser contemplados como una “interdisciplina” que se vale de sus fuentes y de aquellas otras disciplinas
para construir un nuevo objeto de investigación específico (MITCHELL,
2003, p. 39-40).
Ante o exposto, opto pelo termo Cultura Visual52 por desafiar as práticas do sistema das
belas artes e estender o seu foco para as visualidades produzidas socialmente ou localizadas
culturalmente na contemporaneidade e, por convergir, diretamente, com o objeto de estudo da
tese, as Fotoetnografias de crianças, infâncias e culturas infantis em suas diferentes expressões.
Assim, conforme Mirzoeff (2003), assumo a Cultura Visual como a interface entre todas as
disciplinas que dialogam com a visualidade no contemporâneo.
Sob as reconfigurações crítica e interdisciplinar, a Cultura Visual teve grande
repercussão principalmente nos Estados Unidos e Canadá a partir de estudos e pesquisas que
desenvolveram modos particulares de análise da realidade através das imagens produzidas
na/pela visualidade (FREEDMAN, 2001; 2003; DUNCUM, 2002; KINDLER, 2003, ROSE,
2007). Ramifica-se no Brasil na virada do século tornando-se uma literatura sólida
fundamentada em autores nacionais e internacionais (HERNÁNDEZ, 2000,2005; FRANZ,
2003; MITCHELL, 2003, 2009; MIRZOEFF, 2003; BARBOSA, 2005; DIAS, B., 2008;
MARTINS e TOURINHO 2009). Consolidando-se como um campo transdisciplinar ou pós-
disciplinar (MARTINS, 2008) e trans-metodológico (DIAS, B., 2008), considerado
“extraordinariamente fluido, um conceito mutável sujeito a múltiplos conflitos” (MARTINS,
2008, p. 38).
A Cultura Visual congrega discussões sobre vários aspectos da visualidade em
confluência com outros campos de estudo como a Sociologia, a Antropologia, a Semiótica, os
Estudos Culturais e Feministas e da História Cultural da Arte, sob diferentes perspectivas
teórico-metodológicas que problematizam e contextualizam os fenômenos que perpassam a
vida cotidiana e suas visualidades
Martins (2008, p. 32, grifo do autor) ressalta a volatilidade do deslocamento das imagens
e suas peculiaridades simbólicas ao afirmar que as imagens “oferecem conexões rizomáticas
52 Porém, para melhor entender a complexidade do campo de estudo, este posicionamento não
desconsidera o diálogo junto a outras perspectivas teóricas.
96
que articulam a dissolução de espaços ‘originários’ e de identidades ‘autênticas’, noções
herdadas da modernidade com a pretensão de carregar verdades insondáveis sobre arte, ciência,
história, realidade, etc.”. Como rizomas53, as imagens entrelaçam-se em conhecimentos
empíricos, estabelecem relações holísticas e interculturais com o entorno e se manifestam de
forma híbrida e complexa.
Para Jenks (1995) a Cultura Visual oferece uma teoria social da visualidade que à
vincula de maneira mais dinâmica ao contexto da cultura e da sociedade a que pertence, onde
os conceitos e concepções são construídos socialmente a partir das interpretações do ato de ver
e não de atos miméticos ou apenas perceptíveis. Já Mirzoeff (2003) amplia a discussão e destaca
a função política da Cultura Visual como elemento fundamental para o processo de
conhecimento, reflexão e compreensão da vida humana em toda sua complexidade. Assim, para
Mirzoeff (2003) a Cultura Visual não depende das imagens em si mesmas, “sino de la tendencia
moderna a plasmar en imágenes o visualizar la existencia” (MIRZOEFF, 2003, p. 19), ou seja,
parte da captura imagética das realidades que, conjecturadas e contextualizadas, transmitem
sentidos e dão significados aos fenômenos, possibilitando a compreensão da própria existência.
A partir de uma leitura crítica da Cultura Visual, Hernández (2000, p. 128) defende que
a cultura surge como um "sistema organizado de significados e símbolos que guiam o
comportamento humano, permitindo-nos definir o mundo, expressar nossos sentimentos e
formular juízos”, caracterizando assim, o papel interpretativo e reflexivo das narrativas
imagéticas. Em outras palavras, “trata-se de compreender o que se representa para compreender
as próprias representações” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 136).
Sardelich (2006, p. 465) concorda com Hernandez quando ele assume o vocábulo
“crítica” como avaliação e juízo, os quais resultam de diferentes modos de análise, como o
semiótico, estruturalista, desconstrucionista, intertextual, hermenêutico e discursivo, bem como
das ideias provenientes do pós-estruturalismo e do feminismo pós-estruturalista. Neste sentido,
ambos assumem a Cultura Visual como um campo de estudo transdisciplinar multireferencial
que transita entre:
[...] referentes da arte, da arquitetura, da história, da psicologia cultural, da
psicanálise lacaniana, do construcionismo social, dos estudos culturais, da antropologia, dos estudos de gênero e mídia, sem fechar-se nessas ou somente
sobre essas referências. Essa proposta ampla e aberta enfatiza que o campo de
estudos não se organiza a partir de nomes de artefatos, fatos e ou sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à noção de mediação de
53 Na concepção deleuziana, rizomas são sistemas conceituais abertos, que se ramificam entre si num
processo contínuo de retroalimentação. Cf. Deleuze (1995, p. 17).
97
representações, valores e identidades (SARDELICH, 2006, p. 465).
Para Hernández (2006, 2007) as imagens são mediadoras das relações sociais, derivam-
se e interagem-se reciprocamente nas formas de socialização e aculturação humanas, nas quais
cada um/a se encontra imerso, desse modo, constituem-se e são constituídas de/pelas
identidades e subjetividades que estão permeadas de efeitos de poder, saber e controle. Nas
palavras do autor: “as representações visuais contribuem, assim como os espelhos, para a
constituição de maneiras e modos de ser” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 31).
Neste sentido, torna-se necessário pensar as implicações da Cultura Visual no campo
das Ciências Humanas e Sociais, mais especificamente, no campo de uma pedagogia
intercultural. Em convergência com tal perspectiva, Sardelich (2006) sumariza algumas “pistas
de caminhos possíveis em um trabalho para a compreensão crítica da cultura visual” com base
nas contribuições de Hernandez (2000, 2002):
i. Explorar os discursos sobre os quais as representações constroem relatos do mundo social e favorecem determinadas visões sobre ele e sobre nós mesmos;
ii. Questionar a tentativa de fixar significados às representações e como isso afeta nossas vidas;
iii. Discutir as relações de poder que se produzem e se articulam por meio das
representações, e que podem ser reforçadas pela maneira de ver e produzir essas representações;
iv. Elaborar representações por procedimentos diversos, como forma, resposta e
modo de diálogo com as representações existentes; v. Construir relatos visuais utilizando diferentes suportes relacionados com a
própria identidade e contexto sociocultural que ajudem a construir um posicionamento (SARDELICH, 2006, p.468).
Gillian Rose (2007, p. 12)54 corroborando com a compreensão crítica da Cultura Visual
acrescenta três instâncias que devem preceder à análise: a primeira corresponde à “takes images
seriously” (levar a sério as imagens), ou seja, considerar o caráter legítimo da imagem para
além do contexto no qual foram produzidas, pois as representações visuais têm seus próprios
efeitos55; a segunda consiste em “thinks about the social conditions and effects of visual
objects” (pensar sobre as condições sociais e os efeitos dos objetos visuais), sendo assim, as
produções culturais são representações visuais que produzem e reproduzem inclusões e
exclusões sociais, consequentemente, é preciso refletir sobre o processo de produção da
54 QRcode 14: Gillian Rose (2007). 55 Texto original: “It is necessary to look very carefully at visual images, and it is necessary to do so because
they are not entirely reducible to their context. Visual representations have their own effects” (ROSE,
2001, p. 12).
98
imagem, as condições, os meios e as consequências sociais dessa produção56, “as
representações visuais têm seus próprios efeitos”. E a terceira "considers your own way of
looking at images” (considere sua própria maneira de olhar as imagens), neste ponto, ressalta
que as formas de ver são historicamente, geograficamente, culturalmente e socialmente
peculiares ao próprio sujeito que olha. Disto, implica a importância da reflexividade do olhar57,
em outras palavras, é preciso considerar a subjetividade de quem olha (tradução própria).
Partindo dessas premissas, esta tese considera a imagem como objeto cultural,
linguagem imagética da realidade, fonte histórica e narrativa de acontecimentos e experiências
humanas, capaz de desvelar significados e provocar sentimentos em quem registra, foi ou é
registrado, visualiza, foi ou é visualizado, sente ou é sentido através do olhar.
De maneira transversal, as imagens solidificam emoções, histórias, narrativas e
experiências que, para além de um ícone, revelam intensas características, peculiaridades e
contextos da realidade retratada, a saber, a intencionalidade da produção dessas imagens, ou
seja, por quem, para quem e sobre o que essas dialogam. Dessa forma, as imagens se tornam
“fragmentos de comunicação, memória e marca identificatória” (CARVALHO, 2011, p. 124).
Como um desmembramento do campo de estudos da Antropologia Visual, a Cultura
Visual estuda as representações que os indivíduos constroem da realidade segundo suas
características sociais, culturais e históricas refletidas em registros imagéticos. Nas palavras de
Cunha (2007, p. 138) as imagens, editadas pelos meios de comunicação ou mesmo as
fotografias amadoras familiares, “definem realidades, quem somos e quem são os outros,
levando-nos a vê-las como sendo verdadeira”, desse modo, “a função da Cultura Visual é dar
sentido a variedade infinita da realidade exterior mediante a seleção, interpretação e
representação da dita realidade” (MIRZOEFF, 2003, p.65).
Conforme a vertente transdisciplinar multireferencial, Sardelich (2006, p. 465) alerta
para o fato de que a Cultura Visual “não se organiza a partir de nomes de artefatos, fatos e ou
sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à noção de mediação, de
representações, valores e identidades”, assim, a perspectiva crítica da Cultura Visual se
direciona para a compreensão dos significados a partir da reflexão intrapessoal do sujeito que
observa e é observado, que representa e é representado, que produz conhecimento e é
56 Texto original: “Cultural practices like visual representations both depend on and produce social
inclusions and exclusions, and a critical account needs to address both those practices and their cultural
meanings and effects” (ROSE, 2007, p. 12, et. seq). 57 Texto original: “Considers your own way of looking at images. […] to this issue of reflexivity” (ROSE,
2007, et seq.).
99
conhecido, que identifica valores, sentimentos e significados e é identificado por estes mesmos
sentidos, nesta perspectiva,
O diferencial da Cultura Visual, em relação a outras propostas para o trabalho
com as imagens, seja da arte ou não, é focalizar a interpretação daquele que
vê e não o objeto que é visto, nem o produtor desse objeto. A Cultura Visual privilegia a interpretação daquele que vê, os significados que aquele que vê
constrói na medida em que se relaciona com os artefatos visuais, fala e é
escutado, sobre a relação que estabelece entre aquilo que vê e seu próprio contexto (SARDELICH e PAIVA, 2015, p 6).
Sardelich (2006) sugere que a compreensão crítica desses significados culturais implica
considerar quatro aspectos não sequenciais e interconectados: histórico-antropológico; estético-
artístico; biográfico e crítico-social. Em relação ao aspecto crítico-social, Sardelich (2006)
ressalta a importância de estabelecer conexões entre as representações e artefatos visuais e suas
significações, tendo em vista que são produzidos e legitimados no contexto das relações sociais
tradicionais que envolvem costumes, crenças, ideias políticas e religiosas. Sobre o aspecto
estético-artística, Sardelich (2006) refere-se aos sistemas de representação compreendidos no
cerne da cultura de origem da produção e não em sua universalidade.
Quanto ao aspecto biográfico, ela defende que as representações e artefatos fomentam
através dos processos identitários, a construção de valores, crenças e visões sobre a realidade.
E o aspecto crítico-social corresponde à contribuição das representações e artefatos visuais para
configuração atual das políticas da diferença e das relações de poder na sociedade.
No contexto do século XXI a Cultura Visual se re/configura na multiplicidade das
tecnologias e mídias digitais e seus artefatos visuais que transformaram completamente as
formas de comunicação, linguagem e informação, penetraram na vida humana de maneira
irreversível, mudando as formas de consumo e comercialização, influenciando e direcionando
interesses e interessados. Apresentam-se na contemporaneidade como “vetores das interações
dos grupos que se diferenciam culturalmente e que transformaram radicalmente as experiências
sociais nos últimos tempos com a difusão da conexão e do acesso à Internet” (PEREIRA, E.,
2013, p. 58).
Nesse sentido, a Cultura Visual contemporânea além de ampliar sua dimensão crítica,
também experimenta uma expansão nos modos de expressão e produção das visualidades
através das tecnologias visuais que, segundo Mirzoeff (2003, p.19) se caracterizam como
“cualquier forma de aparato diseñado ya sea para ser observado o para aumentar la visión
natural, desde la pintura al óleo hasta la televisión e Internet”.
100
A palavra tecnologia tem sido amplamente utilizada e seu conceito, consequentemente,
evoluiu ao longo do desenvolvimento da humanidade. Etimologicamente a palavra tecnologia
tem origem no grego "tekhne" que significa "técnica, arte, ofício" juntamente com o sufixo
"logia" que significa "estudo", portanto, pode-se afirmar que originalmente a tecnologia é um
conjunto de técnicas, métodos e instrumentos que tem o objetivo de estudar os fenômenos em
benefício da humanidade.
Para Castells (2007) a tecnologia é parte integrante da sociedade, porém não determina
a sociedade, influencia direta e indiretamente a construção de sentidos, significados e
comportamentos dos indivíduos. Neste mesmo sentido Bunge (2006) define tecnologia como
o:
O ramo do conhecimento interessado em projetar artefatos e processos, e em
normatizar e planejar a ação humana. [...] A tecnologia não deve ser
confundida com a ciência aplicada que é, na realidade, a ponte entre ciência básica e tecnologia, uma vez que ela busca novo conhecimento com potencial
prático (BUNGE, 2006, p. 275).
Dito de outra forma, a tecnologia seria uma aplicação prática do conhecimento científico
em diversas áreas da pesquisa em função de promover recursos para sobrevivência e melhoria
das condições de vida humana. Consequentemente, a Cultura Visual ampliada pelas tecnologias
e mídias digitais está diretamente relacionada a eventos visuais (MIRZOEF, 2003), cujas
informações, significados e emoções são registrados por variados artefatos tecnológicos que
permitem sua visualização, reprodução e representação imagética, tornando possível a
acumulação e multiplicação de imagens em todos os setores da sociedade.
A produção e proliferação de imagens têm recebido forte impacto dessas tecnologias
tornando-se cada vez mais acessíveis e sofisticadas, sendo utilizadas principalmente nas redes
midiáticas e nas chamadas redes sociais58. De acordo com Carlos (2010, p. 15) “[...] a imagem
aparece com uma presença pujante, mediando o jogo de força e de interesses que pautam os
cenários sociais mundiais”.
Para Mcluhan (1969, p. 36) “[...] As sociedades sempre foram moldadas, mais pela
natureza dos meios que os homens usam para comunicar-se que pelo conteúdo da
comunicação”. Então, como perceber as nuances culturais no contexto das visualidades que se
58 As redes sociais são comunidades virtuais que congregam interesses diversos e servem como espaço de
socialização, interrelação e comunicação entre pessoas de todas as partes do mundo. As redes sociais mais utilizadas por crianças e adolescentes no Brasil são: Facebook, WhatsApp, Instagram, Snapchat e Twitter
(TICS KIDS BRASIL, 2016).
101
expandem e penetram em todos os espaços do cotidiano?
Os artefatos, e as imagens estampadas neles, cumprem a função de representar, apresentar, nomear, situar, identificar, etiquetar e traduzir tanto os
sujeitos quanto grupos sociais, para outros grupos. Muito mais do que
representar os sujeitos e os grupos, os artefatos e imagens instituem os modos de vermos os outros e de nos relacionarmos com o mundo (CUNHA, 2010, p.
135).
De acordo com Flusser (1985) os objetos culturais são aparelhos59 que portam
ontologias, desse modo, são objetos trazidos da natureza para satisfazer os desejos humanos.
Neste sentido, pensar uma nova epistemologia da imagem a partir da filosofia é entender os
artefatos como objetos culturais. Para este autor, existem dois tipos de objetos culturais:
[...] os que são bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que são
bons para produzirem bens de consumo. (instrumentos). Todos os objetos culturais são bons, isto é: são como devem ser, contêm valores. Obedecem a
determinadas intenções humanas (FLUSSER, 1985, p.13).
Consequentemente, as imagens se vinculam às práticas culturais, às experiências do
desejo e às formas de socialização nas quais os indivíduos compartilham significados
fundamentais para a construção das subjetividades e identidades humanas.
Dito isto, imagem e mídia como artefatos culturais, passam a configurar contextos e
significados ideológicos que ao se projetarem nas visualidades do cotidiano produzem sentidos
e subjetividades, o que posteriormente podem se tornar objetos de investigação da Cultura
Visual na qual se buscam tencionar e compreender as práticas sociais de modo complexo,
híbrido e crítico (HERNÁNDEZ, 2007; MARTINS, 2007).
Nesse cenário da mediação cultural proporcionado pela mídia, a imagem
aparece como ímpeto de sua singularidade, submetendo a população local e global a um regime de verdade enquadrado na visão e na particularidade da
coisa vista. Nessa ordem epistêmica cultural, ela não somente confere visibilidade aos produtos e as concepções de mundo dominantes, a fim de que
devam ser consumidos, assumidos e experimentados no solo do cotidiano,
mas também atribui visualidade ao que se quer circular, sugerindo e imprimindo um modo reticular e espetacular de conhecer as coisas, o mundo,
as pessoas, os lugares, os acontecimentos, enfim, a vida. A mídia assume, portanto, o ver como saber, instalando e consolidando uma espécie de
epistemologia: a da visualidade (CARLOS e FAHEINA, 2010, p.30).
59 As imagens são produzidas por aparelhos técnicos e esses aparelhos sob a óptica da Cultura Visual,
correspondem aos artefatos culturais.
102
Destarte, a sociedade contemporânea não pode mais ser pensada numa perspectiva de
totalidade estática, como se os fenômenos, as pessoas, os objetos, os comportamentos e as
identidades pudessem ser classificados e/ou compreendidos igualitariamente.
As características dos fenômenos contemporâneos são complexas, múltiplas,
momentâneas, flexíveis e voláteis, não se manifestam e não se reproduzem da mesma maneira
nos indivíduos, ainda que ocorram no mesmo período/tempo e espaço/lugar, bem como, as
visualidades postas no cotidiano sublimam relações de poder, influenciam os modos de vida e
estabelecem padrões sociais de conduta.
Uma vez que as subjetividades são produzidas e transitam de maneiras reflexivas e corporificadas, a relevância das representações visuais adquire um
papel fundamental. Não apenas por sua onipresença, mas pelo seu forte poder
persuasivo: associam-se a práticas culturais (o que significa que fazem parte do que está acontecendo), vinculam-se experiências de prazer (apresentam-se
de forma agradável, com uma retórica visual e narrativa atrativa e trazendo satisfação) e estão relacionadas a formas de socialização (os sujeitos sentem-
se como parte do grupo com o qual se identificam) (HERNÁNDEZ, 2007, p.
31-32, grifos do autor).
Portanto, há que se questionar o que está sendo visibilizado no cotidiano e de que forma
essa visualidade é recebida pelos sujeitos, conforme alertaram Sardelich e Paiva (2015, p. 6-7)
“Mais do que pensar em representações e artefatos, a Cultura Visual explora os discursos sobre
os quais as representações constroem relatos do mundo que habitamos e favorecem
determinadas visões sobre o mundo e nós mesmos”.
Neste diapasão, para pensar sobre as culturas da infância na contemporaneidade é
preciso estabelecer relações dialógicas com o campo da Cultura Visual, tendo em vista que as
crianças absorvem das visualidades, conhecimentos e representações que podem repercutir,
consideravelmente, em seus comportamentos, seja no modo de falar, vestir, se relacionar com
o outro, interagir, produzir e consumir, entre outros.
Conforme ressaltou Dias, B. (2008), estamos inseridos num universo tecnológico e
visual onde as imagens se transformaram no produto mais essencial de nossa informação e
conhecimento, desta feita, o autor se refere ao aspecto da visualidade, considerando que o nosso
próprio modo de,
[...] olhar, ver, contemplar, fitar, mirar, observar, testemunhar, examinar,
vislumbrar, olhar de relance, espiar, espreitar, e entrever o mundo, é particularmente relevante para a construção da representação do
103
conhecimento e revela a necessidade de uma exploração adicional dos
conceitos da comunicação e de representação cultural (DIAS, B.., 2008, p. 282).
Nesta perspectiva, a Cultura Visual passa a ser um importante meio para representar as
mudanças e significações sociais de diferentes épocas e culturas, consequentemente, torna-se
um dos principais campos de análise científica ara interpretar e refletir sobre a realidade da
infância e sobre como a cultura visual têm repercutido na vida das crianças na sociedade
contemporânea. Parto do pressuposto de que a Cultura Visual oferece à infância uma infinidade
de informações visuais que, em algumas circunstâncias desconsideram suas especificidades de
criança e por isso, precisam ser questionadas em sua complexidade, desde a dimensão política
até seus impactos sociais na infância, o que posteriormente trataremos com afinco no ensaio II.
Após essa breve explanação, destaco a seguir um dos artefatos visuais mais significantes
da Cultura Visual contemporânea, a saber, a fotografia. De acordo com Flusser (1985, p. 13) o
aparelho fotográfico produz imagens técnicas e serve de modelo para todos os aparelhos
característico da atualidade e do futuro imediato, desse modo,
Analisá-lo é método eficaz para captar o essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) até os minúsculos (como os chips),
que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente supor que todos os traços aparelhísticos já estão prefigurados no aparelho fotográfico,
aparentemente tão inócuo e “primitivo” (FLUSSER, 1985, p. 13, grifos do
autor).
Portanto, entender a complexidade antropofilosófica da fotografia como imagem magia
(FLUSSER, 1985) torna-se fundamental para a compreensão das representações e concepções
de crianças e infâncias no contexto da Cultura Visual na contemporaneidade. Em vista disso,
abordarei não só a técnica em si, mas, sobretudo, o que a fina camada de nitratos de prata, pele
e película (SAMAIN, 2004) tem representado para a ciência, para as relações humanas e para
a cultura na atualidade.
104
1.1 Fotografia, um instantâneo da realidade? Reflexões antropofilosóficas sobre a
“pele-magia”
[...] as imagens são nossos olhos passados, presentes e futuros,
olhos da história, roupas, nudezas e paredes da história.
Roupagens e montagens de tempos heterogêneos. De vivências
presentes, de sobrevivências, de ressurgências, de tantas outras
memórias (individuais e coletivas) (SAMAIN, 2012, p. 162, grifo do autor).
Para os homens que estão programados pelas imagens, o
tempo flui no mundo assim como os olhos que percorrem a
imagem: ele diacroniza, ordena as coisas em situações. É o
tempo do retorno, de dia e noite e dia, de semente e colheita
e semente, de nascimento e morte e renascimento, e a magia
é aquela técnica introduzida para uma determinada experiência
temporal. Ela ordena as coisas do modo como elas devem se
comportar dentro do circuito do tempo. E o mundo desse modo
codificado, o mundo das imagens, o "mundo imaginário",
programou e elaborou a forma de existência (Daseinsform) de
nossos antepassados durante inúmeros milhares de anos: para
eles o "mundo" era um amontoado de cenas que exigiam um
comportamento mágico (FLUSSER, 2007, p. 132, grifos do autor).
De natureza semelhante à escrita, a fotografia surgiu como linguagem e expressão.
Desde a sua invenção na Idade Moderna, mais, especificamente, no início do século XIX
(1826), evocou para si a responsabilidade verossímil de ser um simulacro do real, capaz de
evidenciar e legitimar a existência. Partindo dessa premissa, dou início neste subcapítulo, a uma
sequência dialógica que se pretende metafórica, no sentido de explicitar as propostas
metodológicas adotadas nesta tese. A opção pelo uso de metáforas partiu da proximidade que
esta figura de linguagem tem com a vida cotidiana, nesta perspectiva, assim como Marcuschi
(2000), abordo a metáfora não como:
[...] propriedade de eleitos e eruditos, mas como o fato mais normal da vida cotidiana. Ela é inclusive o estado normal da criança, que convive com a
palavra do mesmo modo que convive com os objetos. Uma convivência com
o mundo muito aproximada daquela dos poetas. Sob este aspecto, seguindo o psicólogo russo Vygotsky, diríamos que a metáfora é anterior à razão e serve
de meio para aferir a capacidade criativa natural do homem (MARCUSCHI,
2000, p. 77).
Para além de um simples fenômeno linguístico de natureza semântica, Marcuschi (2000,
p. 73-75) define a metáfora como modo de conhecimento específico que comunica
intersubjetivamente uma realidade. Desse modo, ela não é uma simples comparação, ela
105
funciona como apoio para a “análise de capacidade criativa espontânea do indivíduo”, na óptica
operacional, é uma “transposição de significado” e na perspectiva genética e psicológica, é a
“criação de novos universos de conhecimento”, a metáfora é potencialmente criadora de novas
realidades.
A metáfora não se esgota, pois, nos limites da linguagem nem no âmbito das
relações lógicas. Ela é, em certo sentido, a dimensão mais radical da linguagem, uma vez que é a convivência direta da linguagem com o mundo e
não uma convivência com o mundo pela razão. Com isto, tornamo-nos infiéis aos propósitos iniciais de resgatar a metáfora para o plano da teoria do
conhecimento, pois tudo indica que o conhecimento por ela gerado tem
estruturas que as usuais teorias do conhecimento ainda desconhecem (MARCUSCHI, 2000, p. 87).
A possibilidade criativa e inteligível da metáfora abre possibilidades para se pensar a
relação da fotografia com a realidade na medida em que o olhar epistemológico é lançado sobre
as concepções antropofilosóficas da imagem como expressões ontológicas e subjetivas do
humano, buscando nelas [as concepções], a inspiração para compreensão da realidade que se
reflete no documento fotográfico. Assim, caminho na história da fotografia para entendê-la
como fenômeno, memória, “pele” [existência] e “magia” [eterno retorno]. Segundo Flusser
(1985, p. 7) no tempo da magia, um elemento da realidade explica o outro, e este explica o
primeiro, sucessivamente, assim, “o significado das imagens é o contexto mágico das relações
reversíveis”.
Segundo o fotógrafo e historiador Boris Kossoy (2012) a fotografia surgiu no contexto
da Revolução Industrial, mais, especificamente, no momento em que a sociedade passava por
um conjunto de transformações sociais, culturais e econômicas, fato que repercutiu também no
cenário científico, contribuindo na elaboração de conhecimentos, análises documentais,
elucidação de fatos Históricos, entre outros. Mas, foi como registro imagético do cotidiano
social que a fotografia se consagrou como uma das maiores invenções da modernidade, tendo
em vista a crescente facilidade de acesso e produção de imagens. Assim, a fotografia passou a
fazer parte de todas as instâncias da sociedade como expressão cultural:
A expressão cultural dos povos exteriorizada através de seus costumes,
habitação, monumentos, mitos e religiões, fatos sociais e políticos passou a ser gradativamente documentada pela câmera. O registro das paisagens urbana
e rural. A arquitetura das cidades, as obras de implantação das estradas de
ferro, os conflitos armados e as expedições científicas, a par dos convencionais retratos de estúdio – gênero que provocou a mais expressiva
demanda que a fotografia conheceu desde seu aparecimento e ao longo de toda a segunda metade do século XIX, são alguns dos temas solicitados aos
106
fotográficos do passado (KOSSOY, 2012, p. 27-28).
Kossoy (2012) ressalta que a partir da década de 1860, com a enorme aceitação que a
fotografia teve na sociedade, surgiram verdadeiros impérios industriais e comerciais,
consequentemente, o desenvolvimento da indústria gráfica, tornou mais emergente a
divulgação de fontes iconográficas por meio da imprensa. E a partir do início do século XX “o
mundo tornou-se, assim, portátil e ilustrado” (KOSSOY, 2012, p. 29, grifos do autor). Foi neste
cenário que a “fotografia de fato se tornou uma linguagem, ela não é mais o resultado de uma
prática ingênua, mas o resultado de um ato intencional e que, portanto, carrega a marca de seu
autor" (ACHUTTI, 2004, p.80). Nesta concepção, o historiador e fotógrafo Kossoy (2012, p.32)
acrescenta que a fotografia como fonte documental utilizada no contexto da pesquisa científica
deve ser questionada e criticada em diálogo com outras fontes históricas (orais e escritas).
Para os estudiosos da história social, da história das mentalidades e dos mais diferentes gêneros de história, assim como para os pesquisadores de outros
ramos do conhecimento, são as imagens documentos insubstituíveis cujo
potencial deve ser explorado. Seus conteúdos, entretanto, jamais deverão ser entendidos como meras “ilustrações ao texto” (KOSSOY, 2012, p. 34, grifo
do autor).
No entanto, Kossoy (2012, p. 32) também ressalta que a fotografia enfrentou certo
preconceito na sua utilização como fonte histórica ou instrumento de pesquisa por duas razões
principais: a primeira de ordem cultural, pois mesmo a sociedade estando imersa em imagens
“[...] existe um aprisionamento multissecular à tradição escrita como forma de transmissão do
saber, como bem esclareceu Pierre Francastel décadas atrás; nossa herança livresca predomina
como meio de conhecimento científico”. E a segunda, decorrente da primeira refere-se à
expressão registrada visualmente, como um obstáculo para o pesquisador, tendo em vista que
há uma forte “resistência em aceitar, analisar e interpretar a informação quando esta não é
transmitida segundo um sistema codificado de signos em conformidade com os cânones
tradicionais da comunicação escrita” (KOSSOY, 2012, p. 32). Sobre isso, Peter Burke,
historiador inglês afirma que para utilizar as evidências que a imagem apresenta de maneira
segura e eficaz, “[...] é necessário, como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente das
suas fragilidades.” (BURKE, 2004, p.18).
Apesar dessa resistência, a fotografia como fonte de pesquisa associou-se às ciências
antropológicas e trouxe para a humanidade uma possibilidade de registrar o passado e resgatar
a história (BONI e MORESCHI, 2007, p. 142), processo que foi fundamental para sua
107
legitimação nas Ciências Sociais. Alguns estudos se tornaram clássicos para a fotografia como
o trabalho de Bronislaw Malinowski intitulado “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922),
o trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson, a obra “Balinese Character” (1942), os
pioneiros na utilização de fotografias como recurso principal para o levantamento de dados
etnográficos, trabalhos que abriram as portas para o que se denomina hoje de Antropologia
Visual (ACHUTTI, 1997, p. 25; 2004, p. 79). No campo da História, o trabalho de Philippe
Ariès (1981) que utilizou imagens para discorrer sobre as bases conceptuais e as condições
históricas da infância em obras como “Séculos de Infância” (1960), traduzida no Brasil como
“História Social da Criança e da Família” (1973) tornando-se uma referência mundial.
Achutti (1997, p. 94) destaca que a fotografia surgiu num momento bastante propício,
pois nesse período os teóricos estavam preocupados em estudar a evolução humana, do ponto
de vista das variedades culturais e etnológicas. Conforme levantamento realizado por Kossoy
(2012) sobre dissertações e teses no Brasil em diversas áreas de aplicação da fotografia, a partir
de 1990 há um aumento considerável de trabalhos acadêmicos, até fevereiro de 1999 foram
defendidos 73 trabalhos, um número significativo se comparado à produção da década de 1980,
com 12 trabalhos e da década de 1970, com apenas 4 trabalhos (KOSSOY, 2012, p.33).
Portanto, a fotografia foi conquistando cada vez mais seu espaço nas ciências modernas
contribuindo para a produção e elucidação do conhecimento antropológico e historiográfico da
humanidade, considerando seu potencial para desvelar a realidade.
Como bem destacou Achutti (2004, p. 71) a matéria-prima da fotografia é a realidade
refletida, em vista disso,
Se fotografar é dar a ver, fotografar é também, a priori, uma forma de pensar e olhar o real. Nesse sentido, todos aqueles que abordam a realidade, artistas,
fotógrafos, escritores, cientistas, poetas e, certamente os etnógrafos,
encontram-se na mesma situação: ver e pensar a realidade. O que os diferencia verdadeiramente são apenas as diferentes linguagens utilizadas, linguagens
que com o tempo vão se inspirar mutuamente na incansável busca por melhor compreender e expressar, ou seja, restituir o real (ACHUTTI, 2004, p. 99).
Na contemporaneidade, quase onipotente, a fotografia chega para revolucionar o
paradigma da comunicação humana e consequentemente, demandar à ciência, uma nova
epistemologia da imagem, o que impulsionou essa discussão para outras áreas do conhecimento,
como no caso, a Filosofia.
O filósofo e antropólogo, especialista em fotografia e comunicação humana, Etienne
Samain (2012) em seu emblemático artigo: “As peles da fotografia: fenômeno,
108
memória/arquivo, desejo” discute a fotografia como um evento, uma revelação, um lugar de
memórias vivas. Para este autor, enquanto fenômeno, “o que as imagens mostram nunca será
um pensamento único e definitivo” (SAMAIN, 2012, p. 158), assim, em cada olhar, uma nova
percepção. Nesta perspectiva, as imagens não se limitam a figuras planas e mudas, elas se
convergem em conceitos em movimento, “lugares de questionamentos, lugares dentro dos
quais, escrevemos, também, nossa história.” (SAMAIN, 2012, p. 163).
Conforme outrora afirmou Koury (1998, p. 75) “Entre o olho e a memória, entre a
visibilidade e a latência, bate a foto”, é na fotografia que se é possível encontrar abrigo para
alma, morada para as lembranças, respostas para as questões mais improváveis, nela a solidão
já não é sentida e a memória se apresenta como um permanente devir. Portanto, a fotografia
não é um símbolo de ausência, mas, sobretudo, ela é pseudopresença, são memórias, arquivos
e confidências (SAMAIN, 2012, p. 160). Símbolo da personificação da alma, as fotografias são
reminiscências.
Eis que o cérebro – como assinala justamente Gilles Deleuze (2003, p.264) – é a “tela da imagem”. É com este cérebro – suas lembranças, suas memórias
e esquecimentos nele contidos – que toda imagem se choca, arrebentando uma
espiral de novas e outras operações sensoriais, cognitivas e afetivas (SAMAIN, 2012, p. 158).
Para Samain (2012), a fotografia, assim como outros artefatos que vão desde “pastas,
relatórios, diários de campo [...]” até “um chapéu de palha e um lenço de pescoço pendurados
numa parede clara” constituem arquivos de memória, registros vivos que se manifestam em
visualidades e estão sempre à disposição de novas histórias, novas interrogações, desse modo,
“O arquivo, penso, é uma memória em latência, uma memória que cochila, que, encoberta,
poderá ser, amanhã, descoberta, re-aberta. [...]. Memórias que não morrem, que viajam,
inquietas.” (SAMAIN, 2012, p. 160). Samain, conclui que as fotografias enquanto fenômenos,
arquivos de memória, desejam ser contempladas em suas histórias e desveladas em seus
segredos. Em seus devires, as fotografias se oferecem aos nossos olhares e subjetividades como
um memento à espera de ser revivido, sentido e compreendido.
Neste contexto, pensar o “real” a partir da fotografia não é algo simples, um conjunto
de questões deve ser levado em consideração, pois, ao mesmo tempo em que a fotografia se
mostra clara, decifrável e revelativa, ela também poderá camuflar, enganar e omitir a realidade,
levando nossa mente a cair em suas armadilhas,
[...] ela pode ser este instantâneo, congelado, cravado para sempre no tempo
109
e no espaço, resta que esta superfície lustrada como um lago no inverno,
petrificada, mumificada e lisa, apenas o é parcialmente. Nosso olhar a desmantela e a reconstrói a cada captura. Nosso espírito não sabendo
geralmente por que lado prendê-la e, sobretudo, compreendê-la, pulveriza-a a
cada vez num mosaico de signos luminosos rolando sob os prismas/espelhos de um caleidoscópio vivo: nosso olho, tanto olhar quanto pensamento. A
fotografia que, metaforicamente, é uma "forma que pensa" (Aumont 1996),
gosta de frequentar e de viajar nos corredores da mente humana, quando nossa memória gosta, por sua vez, de caçar na escuridão dos seus signos (SAMAIN,
2003, p.51, grifo do autor).
Na mesma vertente filosófica, Vilém Flusser (2007) avança e discute as implicações da
fotografia no contexto das civilizações contemporâneas. Segundo este autor, para além de
aparelhos técnicos, as fotografias transcodificam conceitos em cena, são materializações do
pensamento humano em “superfície” 60 (2007, p. 111). Transformadas em cenas, readquirem o
caráter mágico da imagem técnica, fundamental para a compreensão das suas mensagens. Nas
palavras do autor,
Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas.
Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas.
E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de
forma incomparável (FLUSSER, 2007b, p.7).
Para Santaella (2005) a fotografia aporta três paradigmas: pré-fotográfico-relacionado
ao conjunto das imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de
sua habilidade e imaginação para plasmar o visível; o fotográfico-diz respeito às imagens
produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível com a
mediação de um aparato ótico-mecânico: a câmera fotográfica (a caixa-preta), de vídeo ou de
TV; pós-fotográfico-que se refere às imagens sintéticas e infográficas (virtuais), pré-
modelizadas e matematicamente elaboradas através do computador (SANTAELLA, 2005, p.
295-304).
Flusser (2007) ressalta que, devido ao avanço tecnológico da mídia de superfície61
(surfasse media), as ciências e outras articulações do pensamento linear, tais como a poesia, a
literatura e a música, cada vez mais se apropriam das imagens - “pensamento-em-superfície”,
60 Para Flusser a atual cultura oferece três tipos de mídia, as lineares que são as escritas, as de superfícies
que são imagens, e mais recentemente, as de superfícies em movimento que são os filmes, a TV e a tela de computador. Cf. Flusser (2007)
61 De acordo com Flusser (2007) as fotografias, bem como, as inscrições rupestres, os vitrais, os tapetes, as
pinturas, as telas de tv e cinema, os cartazes, as páginas de revistas ilustradas, os anúncios publicitários, entre outras formas de comunicação visual da atualidade, são exemplos de mídias de superfícies que
representam o mundo com o mesmo potencial e importância que as superfícies em linhas (escrita).
110
isto significa que “[...] o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos.”
(FLUSSER, 2007, p. 118). Essa discussão tem sido bastante intensa no pensamento flusseriano
que aponta para uma suposta “crise dos textos”. Para entender tal posicionamento, torna-se
necessário retomar um pouco do seu raciocínio:
A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a
consciência mágica caracteriza a História toda. E terá consequências imprevistas. [...]. Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do
mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aquém das imagens e não de um passo em direção ao
mundo. Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de
imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função
dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros
termos: a escrita é meta-código da imagem (FLUSSER, 1985, p. 30).
Nesta perspectiva, Flusser (1985) chama atenção para a ambiguidade histórica dos
textos em tentar desmagicizar as imagens, ou seja, refere-se à busca excessiva pela conceituação
e explicação dos fenômenos através dos textos, a “textolatria”62. Porém, a própria trajetória
científica, inclusive nas ciências exatas, consagrou a potencialidade das imagens em se
tornarem cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos, consequentemente,
“a hierarquia dos códigos vai se perturbando: embora os textos sejam metacódigo de imagens,
determinadas imagens passam a ser metacódigo de textos”, desse modo,
A relação texto-imagem é fundamental para a compreensão da história do
Ocidente. Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e
as ideologias imaginísticas. A luta, porém, é dialética. À medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele próprio vai absorvendo
imagens e se paganizando; à medida que a ciência vai combatendo ideologias,
vai ela própria absorvendo imagens e se ideologizando. Por que isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens são capazes de
ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação e
conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando (FLUSSER, 1985, p. 30).
No entanto, para Flusser o derradeiro significado dos conceitos são imagens,
consequentemente, “Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a
62 Flusser chama de textolatria a exagerada “fidelidade ao texto”, em outras palavras ele define como a
incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, não obstante a capacidade de lê-los, portanto, adoração ao texto. Como exemplo de cita as ideologias (cristã, marxista) e as ciências exatas. Cf. Flusser,
1985.
111
história para. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da
atualidade” (FLUSSER, 1985, p.31), nesse instante, novamente surgem as imagens, na tentativa
de ultrapassar essa suposta “crise”. Portanto, segundo o autor, a crise dos textos implica “o
naufrágio da História toda, que é, estritamente, processo de recodificação de imagens em
conceitos”, logo, surgem as imagens técnicas a fim de superar a crise dos textos, sendo a
fotografia, uma das primeiras e mais significantes invenções.
Assim como nas referidas epígrafes dispostas no início deste subcapítulo, a imagem
técnica perpassa o tempo e a vida em cenas magicizadas que foram programadas e elaboradas
para mediar e direcionar o comportamento humano, são representações, mapas, caminhos
traçados, peles de existência humana repletas de memórias e histórias que se dão ao olhar, à
contemplação e a transcodificação dos sentidos e significados que damos ao mundo. Porém, a
partir da visão flusseriana, a aparência objetiva da imagem técnica poderá ser ilusória, à medida
que são tão simbólicas quanto abstratas suas codificações, isto significa afirmar que, para captar
seus significados é preciso decifrá-las a partir dos conceitos que carregam, é preciso
compreender a imagem como metacódigos de textos. Desse modo, ao contemplar as imagens
técnicas, não vemos ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo, tendo em vista
a automaticidade da impressão do mundo que se materializa sobre a superfície da imagem,
consequentemente,
[...] as imagens técnicas, longe de serem janelas, são imagens, superfícies que
transcodificam processos em cenas. Como toda imagem, é também mágica e
seu observador tende a projetar essa magia sobre o mundo. O fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno.
Vivemos, cada vez mais obviamente, em função de tal magia imaginística:
vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia é essa (FLUSSER, 1985, p. 31).
Portanto, a linguagem fotográfica exerce fascínio, não só pelo que comunica, mas
também pelo que toca a alma humana. Neste sentido que penso a nova epistemologia da
fotografia (e toda a imagem) como uma reminiscência, que ressignifica o passado aos olhos do
presente, que busca no olhar contemplativo, a essência do conhecimento que se faz narrativo.
Como ressaltou Aumont (2016, p. 205) a imagem só existe para ser vista, por um espectador
historicamente definido, desse modo, segundo este autor, a imagem representativa tende a ser
uma imagem narrativa, “mesmo que o acontecimento contado seja de pouca amplitude” e para
saber o que a imagem representa é preciso “que se comece por indagar qual é sua relação com
a narratividade em geral” (AUMONT, 2016, p. 254).
112
Sendo assim, a fotografia é ação, ação da memória, uma ação que se comunica
diretamente com a subjetividade e as emoções, ação que aflora no pensamento sensibilidades e
reflexões que estão permeadas de concepções circunstanciadas por diferentes e particulares
visões do real, construídas a partir da realidade de quem a produziu, de quem dela participou e
de quem a contempla. Daí o caráter camaleônico do universo fotográfico, aquele em que,
[...] sua coloração cambiante, não passa de fenômeno da “pele”. Quanto à sua estrutura profunda, o universo fotográfico é um mosaico. Muda
constantemente de aspecto e cor, como mudaria um mosaico onde as
pedrinhas seriam constantemente substituídas por outras. Toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico: superfície clara e diferente das outras
(FLUSSER, 1985, p. 34, grifo do autor).
Destarte, as ideias um tanto quanto apocalípticas de Flusser (1985) assumem a filosofia
da fotografia enquanto reflexão sobre a autonomia humana em um mundo programado por
aparelhos, onde só através de uma conscientização da práxis fotográfica é possível apontar para
o caminho da liberdade, neste sentido,
Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais,
expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas. Que
significam tais fotografias? Segundo as considerações precedentes, significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de
seus receptores. Mas não é o que se vê quando para elas se olha. Vistas
ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies. Mesmo um observador ingênuo admitiria que as cenas se
imprimiram a partir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento não
lhe convém. O fato relevante para ele é que as fotografias abrem ao observador visões do mundo. Toda filosofia da fotografia não passa, para ele, de ginástica
mental para alienados (FLUSSER, 1985, p. 22).
Partindo dessas premissas, como instrumento de pesquisa científica, a fotografia mostra
todo seu potencial inquisidor, ela é ao mesmo tempo o “ponto de partida e o resultado final”
(GURAN, 1998, p. 90). Nesta perspectiva, as discussões heurísticas que o pensamento em
superfície provoca são caminhos interpretativos que permitem desvelar as realidades
investigadas, e no contexto da Fotoetnografia empreendida nesta tese, a fotografia como “pele-
magia”, assume o caráter de narrativa integral capaz de criar, preservar, informar e representar
determinada realidade, tendo em vista que as relações estabelecidas entre os sujeitos –
fotógrafo, fotografado, espectador – estão permeadas de concepções, subjetividades e emoções
(AUMONT, 2016), pois, “fotografar não é apenas refletir a realidade, é também reflexionar
sobre ela e nela refletir-se” (ACHUTTI, 2004, p. 71).
113
1.2 Memento: reviver, sentir e compreender como devir criador
Memórias são imagens,
Armazenadas no pensamento.
Revelam quem fomos,
E o que nos tornamos.
São fragmentos de ‘nós’ nos outros,
E dos outros em ‘nós’.
Preservam nosso reflexo,
E eternizam nossas histórias.
A imagem narra a memória,
Que sente, saudosamente,
Através do olhar.
Imagens são memórias. Souvenires de um tempo, um lugar, um contexto vivido, há
muito tempo ou em um minuto atrás. Imagens que produzimos, que são produzidas e que se
produzem a todo instante através dos olhares humanos. Imagens nas quais nos refletimos, que
são refletidas por nós, que refletem os outros e que nos outros se refletem. Temos vivido em
tempos de imagens, elas nos interpelam (MARTINS, 2012), nos provocam, nos põe à prova,
assim como outrora afirmou Samain (2012, p. 155): “Imagens que nos iludem, nos fazem perder
a visão e, mais gravemente, a consciência, isto é, o discernimento e a responsabilidade face à
nossa própria história”.
Memórias são imagens. Concepções da alma que se convertem em cenas. Nelas
contemplamos o belo, o trágico e o nostálgico, a realidade e a ilusão. Da alegoria à pareidolia63,
da cultura às mitologias, do cenográfico à cotidianeidade, as imagens reproduzem cenas que
são elaboradas a partir de determinadas referências e percepções. Em cada imagem, uma
memória, uma história, uma recordAção, uma rememoração, ou até mesmo, imaginAção.
Ressalto em maiúsculo, não de forma aleatória, mas para mostrar que no ato de recordar ou
rememorar está implícita a ação. Ação que se revela e é revelada na imagem, e ação que aciona
e é acionada no pensamento, na imaginação. São atos reflexivos, racionais, intuitivos, sensíveis,
perceptíveis e inteligíveis. Como ressaltou Samain (2012, p. 162) “A imagem não é um objeto,
não é uma coisa, Ela é um ato posto diante de nós, oferecido aos nossos destinos.”.
Não há como separar imagem-ação-história-memória, esses fenômenos estão
63 Etimologicamente derivado do grego espectro “εἴδωλον” que representa “figura” ou “imagem” que
podem ser percebidas de várias maneiras e com variados sentidos dependendo do funcionamento do
cérebro humano. Por exemplo, ver rostos em manchas na parede, dragões, cavalos, anjos em nuvens, monstros em florestas, entre outras. Hawkins e Blakeslee (2005) desenvolve essa discussão a partir da
Neurociência em sua teoria da previsão de memória.
114
entrelaçados de tal maneira que devemos admitir: toda imagem é produzida na ação da memória
e toda memória é construída na ação das imagens, nas palavras de Delgado, L. (2003, p. 19):
A memória, em sua extensa potencialidade, ultrapassa, inclusive, o tempo de
vida individual. Através de histórias de famílias, das crônicas que registraram
o cotidiano, das tradições, das histórias contadas através de gerações e das inúmeras formas de narrativas, constrói-se a memória de um tempo que
antecedeu ao da vida de uma pessoa. Ultrapassa-se a cronologia atual e o
homem mergulha no seu passado ancestral. Nessa dinâmica, memórias individuais e memórias coletivas encontram-se, fundem-se e constituem-se
como possíveis fontes para a produção do conhecimento histórico (DELGADO, L., 2003, p. 19).
Acrescento ainda, toda imagem “[...] é um advento/evento estruturado, um ‘fenômeno’
(aparição, manifestação) estruturado, uma estrutura que conecta um conjunto de elementos e de
formas que se pensam entre si” (SAMAIN, 2003, p. 56, grifos do autor). Nesta percepção,
Se admitirmos que a imagem (toda imagem) é um fenômeno, isto é, “algo que vem à luz [phanein]”, “algo que advém”, um “acontecimento” (um “advento”
como melhor se dizia, outrora), entender-se-ia que ela é, ainda, uma
“epifania”, uma “aparição” [epiphanein], uma “revelação” (SAMAIN, 2012, p. 157).
Através dos sentidos do corpo, as imagens se formam em nosso pensamento, criam e
acionam memórias e sensibilidades, nos ajudam a entender os caminhos e as curvas sinuosas
da vida, armazenam conhecimentos e histórias, constituem-se de culturas e subjetividades
humanas, desse modo, dialogam com o corpo e a alma. Têm o dom de nos fazer rememorar - o
amor, a dor, a solidão, a imensidão da vida. São essas imagens: vivências, afetos, reflexões da
alma, que se materializam no corpo, no nosso corpo, no corpo do outro, no corpo da imagem,
no corpo da Fotoetnografia que vão inspirar a categoria memento empreendida nesta tese.
As metáforas do pensamento dialético que iluminam os diálogos socráticos nos escritos
de Platão assumem o ser humano a partir da dualidade entre corpo e alma, e, afirmam que a
essência dos seres é um fenômeno imortal.
Essas concepções, acrescidas das contribuições filosóficas acerca da imagem, ajudaram-
me a compor a categoria memento, a qual pode ser considerada a espinha dorsal da tese, pois
toda a estrutura se ramifica a partir dos três movimentos que o compõe, a saber - reviver, sentir
e compreender. Etimologicamente, a palavra memento origina-se do latim, palavra
substantivada do verbo “meminisse” que significa “lembra-te” e deriva de “memor”, “aquele
que se lembra”. De raiz indo-europeia “men” passa a significar “pensar”, essa relação entre
115
lembrar e pensar me fez caminhar pelas filosofias platônicas sobre a Teoria das Reminiscências,
na qual fundamentei a categoria memento empreendida nesta tese.
Platão explica que, anteriormente ao corpo, a alma vive no mundo das ideias, inteligível,
da perfeição, do conhecimento pleno, inato, possuindo a verdade absoluta. No entanto, ao vir
para o mundo sensível numa vida terrena e adquirir um corpo corruptível, a alma passa por um
processo de esquecimento e essa situação se prolonga até novamente alcançar a sabedoria.
Assim, segundo a filosofia platônica, para reascender ao mundo das ideias, o ser humano
precisa ter acesso novamente ao conhecimento perfeito e esse processo se dá por rememoração,
lembrança, recordação, e revivescência, implicando no que ele define como reminiscência.
A alma é imortal. Renasceu repetida vez na existência e contemplou todas as coisas, existentes tanto na terra como no Hades, e por isso não existe nada que
ela não conheça. Não é de espantar que ela seja capaz de evocar a memória a
lembrança de objetos que viu anteriormente e que se relacionam tanto com a virtude quanto com as outras coisas existentes. Toda a natureza, com efeito, é
uma só, é um todo orgânico, e o espírito já viu todas as coisas. Logo, nada impede que, ao nos lembrarmos de uma coisa (o que nós, homens, chamamos
de saber), todas as outras coisas ocorram imediata e maquinalmente é nossa
consciência. A nós, compete unicamente o esforço, a procura sem descanso (PLATÃO, 2001, 81, p. 79).
Nas obras “A República” (Livro X), “Fédon” (1972) e “Mênon” (2001), Platão
desenvolve a ideia da imortalidade da alma e nelas também fundamenta o conceito de
reminiscência. A metapsicologia platônica se fundamenta no argumento de que a alma possui,
desde sempre, a verdade (PLATÃO, 2001, 82a-86c), é incorruptível e imortal (Fédon, 72e-78a)
e todo saber é em sua essência uma reminiscência (PLATÃO, 2001, 81d). A Teoria da
Reminiscência, invocada por Sócrates em seus diálogos, busca afirmar a,
[...] convicção de que pesquisar e aprender não é mais do que recordar, ou
seja, reencontrar um saber que já existe; o conhecimento é definido como reconhecimento ou anamnese, significa um esforço para recordar aquilo que
a alma já sabia antes de habitar o corpo, visto que as almas eram dotadas de conhecimentos, revelando a imortalidade da alma. Sócrates procurou
demonstrar a existência da alma antes do nascimento, convicção imbuída pela
crença platônica de que os homens já teriam alcançado a sabedoria suprema quando contemplavam o Mundo das Ideias, resultando que a alma é imortal e
renasce várias vezes (JARDIM, 2015, p.27).
Nesta perspectiva, a pedagogia socrática se fundamenta na ideia de que não existe
ensinamento, e sim, rememoração (PLATÃO, 2001, 82a3), ou seja, através de estratégias
imagéticas e questionadoras o sujeito faz emergir o conhecimento que possuía no mundo
116
perfeito. Dessa forma, as concepções filosóficas de educação socráticas e platônicas
fundamentam a aprendizagem como um ato de reminiscência, um processo de anamnese64,
recordação. Sobre isso, Paviani (2008, p. 23) destaca que:
Platão possui a vocação de escritor e de professor. Quem observa o estilo
e os processos dialéticos de seus textos, os procedimentos das perguntas e das respostas não têm dúvidas sobre essas características marcantes do
escritor e do professor. Por isso, e também por outros aspectos intrínsecos
ao pensamento dos diálogos, ele nos oferece uma filosofia e uma pedagogia indissolúveis. Não se trata de duas dimensões arbitrariamente
unidas, mas a unidade de uma face de múltiplos aspectos.
Em um dos diálogos presente no livro Mênon (PLATÃO, 2001, p. 79e7-86c6), Platão
discorre sobre a teoria da reminiscência a partir de uma experiência vivida entre quatro
personagens: Sócrates, Mênon, escravo de Mênon e Ânitos. A narrativa apresenta Sócrates
interrogando um escravo sobre o princípio pitagórico da duplicação do quadrado, no entanto,
este escravo nunca havia sido letrado, mesmo assim, através das provocações de Sócrates, o
escravo demonstrava sua sabedoria, a qual existia desde sempre na alma deste indivíduo
(PLATÃO, 2001, 86b). Dessa maneira, Sócrates consegue provar que através de reminiscências
é possível a rememoração do conhecimento, o que pode ser entendido a partir de suas próprias
palavras:
SO. [...] Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto tanto as coisas <que estão> aqui quanto as <que estão> no Hades, enfim
todas as coisas, não há o que não tenha aprendido; de modo que não é de
admirar, tanto com respeito à virtude quanto aos demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já antes conhecia. Pois, sendo a
natureza toda congênere e tendo a alma aprendido todas as coisas, nada
impede que, tendo <alguém> rememorado uma só coisa – fato esse precisamente que os homens chamam aprendizado –, essa pessoa descubra
todas as outras coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar. Pois, pelo visto, o procurar e o aprender são, no seu total, uma rememoração (PLATÃO,
2001, p. 81a1-d5, p.51-53, grifos meu).
Essas premissas filósofo-metafóricas serviram de inspiração pensar a categoria
memento como um processo de pesquisa que se articula a três ações que compõem o movimento
interpretativo de sistematização e análise das Fotoetnografias: o reviver – como reminiscências
do passado refletido no registro imagético (o que as imagens pensam e me fazem rememorar?);
64 Na dialética socrática representada como Anámnêsis ou seja, reminiscências que corresponde à memória,
recordação, relembrança, revisão, anamnese (JARDIM, 2015).
117
o sentir – como emocionalidades e subjetividades (o que isso representa para mim? E o que tem
haver com o outro? O que sinto com essas reminiscências?); e o compreender – como
interpretação e reflexão da imagem, aqui vista como cena (como isso que vejo dialoga com a
realidade da qual faço parte? Quais são seus devires?). Entretanto, apesar de estarem descritas
numa sequência, esses movimentos ocorrem de forma integrada e cíclica, quase inseparáveis65.
De acordo com Aumont (2016, p. 79) a relação da imagem com a realidade deve ser
entendida a partir de três dimensões: como um valor de representação das coisas concretas;
como um valor de símbolo que representa as coisas abstratas; e como um valor de signo cujo
significante visual tem uma relação totalmente arbitrária com seu significado. Desse modo, as
imagens serviram de símbolos, de representação epistemológica e narrativa (AUMONT, 2016,
p. 80), e por que não, como objeto estético dado à contemplação de seu leitor/espectador?
O memento assumiu um papel fundamental para o processo de interpretação tendo em
vista suas implicações diretas e indiretas na formulação das ideias. Primeiro, na percepção do
sujeito que investiga (pesquisador) - durante todo o processo de seleção e análise das narrativas
fotoetnográficas à luz das concepções teóricas que pautaram as representações em high key e
low key; segundo, na percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - neste caso, a criança,
ao elaborar sua compreensão num processo de reflexão interpretativa de si (CORSARO, 1997),
dando novos sentidos e significados à sua própria história de vida através de narrativas
autobiográficas visuais; e terceiro, na percepção do leitor/espectador - à medida que as
narrativas fotoetnográficas novamente se oferecem ao olhar, à espera de outras reminiscências
e interpretações, como um devir criador. Neste sentido, no memento, “História e narrativa, tal
qual História e memória, se alimentam” no entrelaçamento de “Narrativas, sujeitos, memórias,
histórias e identidades”, nesta compreensão, as reminiscências são “olhares que permeiam
tempos heterogêneos. São a História em construção. São memórias que falam.” (DELGADO,
L., 2003, p. 23).
Em se tratando de Culturas Infantis, as imagens também passam a representar
lembranças, comportamentos, situações “eternizadas”, como “pedaço de vida” que precisam
ser pensadas a partir de um “conceito ampliado de infância que leva em conta as
temporalidades, práticas e visões, impossíveis de serem reduzidas a uma única perspectiva”
(MARTINS; TOURINHO, 2010, p. 10). Portanto, as imagens surgem como registros
fundamentais para reflexões sobre a realidade da criança e da infância, seus sentidos e
65 Refiro-me aqui ao memento empregado nesta tese. Pois, se o considerarmos fora desse contexto, há
movimentos do olhar que não necessariamente estão pré-condicionados a estas circunstâncias.
118
significados sociais e culturais construídos a partir de uma longa trajetória de negação, de
ausência e de (in)visibilidades histórica, cívica e científica. Mas, que tem conquistado seu
espaço como sujeito social crítico e participativo no atual cenário (SARMENTO, 2007).
A partir da óptica do memento, as imagens são acionadoras de reminiscências. Através
das imagens as lembranças são imediatamente trazidas à memória, são revividas, e, por
conseguinte, estão conectadas às nossas emoções e subjetividades, dando sentido ao imagético.
As imagens provocam sensações, interpretações e reflexibilidades, além disso,
prospectivamente, estimulam a compreensão “daquilo" que foi refletido. Logo, deste
movimento heurístico, emergem novas reminiscências, sensações, concepções e emoções.
Ariano Suassuna (2007) no texto “Teoria Platônica da Beleza” ressalta que o caráter de
conhecimento atribuído à fruição da Beleza em Platão - entendida como Verdade, causava,
[...] antes de mais nada, enlevo, prazer, arrebatamento, deleitação. E se alguma
dúvida houvesse, seria antes sabre a caráter de deleitação, também emprestado no texto platônico citado, é sabedoria, é Verdade, a qual, segundo suas
palavras, “despertaria amores veementes”, coma se fosse também uma espécie
de bem a ser fruído e não somente conhecido. Isto leva Maritan a afirmar que “a sabedoria é amada par sua beleza, enquanto que a beleza é amada par si
mesma”, distinguida ele que “a beleza é essencialmente deleitável: par isso,
par sua própria essência e enquanto beleza, move a deseja e produz a amar, enquanto que a verdade, coma tal, faz somente iluminar” (SUASSUNA, 2007,
p. 48).
Portanto, no contexto da Fotoetnografia, um conjunto de imagens deve ser apreciado
lentamente e, para bem apreciar, é preciso saber se dar tempo e se deixar tocar pela emoção.
(ACHUTTI, 2004, p. 108). Nesta perspectiva, o memento à luz da teoria da reminiscência
revisitada pelo debate contemporâneo da Cultura Visual, pode ser pensado como:
[...] um ato complexo que se realiza a partir da interpelação de várias práticas
sócio-ideológicas e, por esta razão, está implicada em relações de concordância, resistência ou crítica a algo já valorado e de alguma maneira
organizado, algo diante do qual se adota, de modo responsável, uma posição valorativa (MARTINS, 2012, p. 75).
A partir desta reflexão, o conhecimento - enquanto beleza, verdade, entendido sob a
óptica da Cultura Visual, compreende o memento, ou seja, a interpretação - vista como prática
social que "mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da memória social
construída pelo sujeito. [nessas circunstâncias] Influenciadas pelo imaginário do lugar social,
as interpretações configuram processos de construção de sentidos e significados” (MARTINS,
119
2012, p. 73). Desse ângulo, a interpretação da memória, acionada através da imagem e,
posteriormente, analisada à luz dos contextos de produção, desvelam conhecimentos subjetivos
e reflexivos que permitem compreender o fenômeno em suas dimensões epistemológicas e
empíricas66.
Para Baudrillard (1981, p.13) as imagens podem ser: reflexo de uma realidade profunda;
podem mascarar e/ou deformar uma realidade profunda; podem mascarar a ausência de uma
realidade profunda; e ainda, podem não ter nenhuma relação com qualquer realidade, ou seja,
a imagem pode ser seu próprio simulacro puro.
No primeiro caso, a imagem é uma boa aparência - a representação é do
domínio do sacramento. No segundo, é uma má aparência - do domínio do malefício. No terceiro, finge ser uma aparência - é do domínio do sortilégio.
No quarto, já não é de todo do domínio da aparência, mas da simulação (BAUDRILARD, 1981, p. 13).
Nesta perspectiva, as imagens em high key correspondem aos elementos visíveis da
imagem, o que foi superexposto propositadamente na cena, preparado para refletir o que se quer
representar em sua síntese real. Em low key, estão os elementos subexpostos que podem tanto
mascarar, deformar ou simular uma realidade. Cabe ao olhar a capacidade de discernir,
desvelar, reflexionar e compreender a imagem em sua complexidade, ou seja, cabe ao meu olhar
de pesquisadora, ao olhar do sujeito refletido, ao olhar do sujeito que faz refletir, ao olhar do
sujeito contemplativo, ao olhar do sujeito leitor/espectador. Para Aumont (2016, p. 82),
reconhecer algo em alguma imagem, “é identificar, pelo menos, em parte, o que nela é visto
com alguma coisa que se vê ou se pode ver no real. É pois um processo, um trabalho, que
emprega as propriedades do sistema visual” em duas dimensões: o reconhecimento das
características visuais do mundo real e o prazer do reconhecimento proporcionado pelo
“reencontrar” uma experiência visual em uma imagem.
E esse reconhecimento está ligado à rememoração (AUMONT, 2016, p. 84), às
reminiscências, memórias, histórias e representações, que partem do “princípio de equivalência
do signo e do real (mesmo se esta equivalência é utópica, é um axioma fundamental)”, no
entanto, as imagens também podem ser simulação, que “[...] ao contrário da utopia, do princípio
de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e
aniquilamento de toda a referência” (BAUDRILARD, 1981, p. 13, grifo do autor). No entanto,
66 O compreender aqui é entendido sob o sentido atribuído por Max Weber, onde o pesquisador explora o
caráter subjetivo que é atribuído ao fenômeno, interpretando-o a partir das relações interdependentes que
este mesmo fenômeno faculta em seu meio.
120
Aumont (2016, p. 103) alerta para o fato de que,
É preciso também distinguir a imagem ilusionista do simulacro. O simulacro não provoca, em princípio, ilusão total, mas ilusão parcial, forte o suficiente
para ser funcional; o simulacro é um objeto artificial que visa ser tomado por
outro objeto para determinado uso – sem que, por isso, lhe seja semelhante (AUMONT, 2016, p. 103).
Neste sentido, para a compreensão da imagem sugeri, inicialmente, “revivê-la” em suas
descrições primárias, destacando os elementos superexpostos que refletem a realidade objetiva
equivalente ao real, rememorado, experienciado, reconhecido e reencontrado. Em seguida,
“senti-la” em sua dimensão emocional, valorativa, sensitiva, ressaltando os elementos
subexpostos que permeiam as subjetividades, as percepções e as sensibilidades do olhar
humano. E consequentemente, “compreendê-la” em suas dimensões epistemológicas e
empíricas a partir do contexto de produção, contemplação e análise da realidade e/ou a
simulação em diálogo com as interpretações e reflexões empreendidas. Conforme estruturado
no esquema 5, a seguir.
Esquema 5 - Movimento de interpretação da imagem – memento.
Fonte: Elaboração própria (2017).
121
Portanto, através das Fotoetnografias construídas sob o influxo do memento, tornou-se
possível conhecer histórias de vida e reflexionar-se nelas (ACHUTTI, 2004, p. 71), tendo em
vista que “toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si fragmento
determinado da realidade registrada fotograficamente” (KOSSOY, 2012, p.47). Entretanto,
deve-se ter a consciência de que,
As fontes fotográficas são uma possiblidade de investigação e descoberta que
promete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações,
estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para a decifração de seus conteúdos e, por consequência, da realidade que os originou
(KOSSOY, 2012, p. 32).
Nesse sentido, as Fotoetnografias revividas, sentidas e compreendidas, tomaram para si,
efeitos de veracidade e de subjetividade, intercruzando-se de forma dialógica com o hibridismo
cultural e a transdisciplinaridade científica na produção/construção do conhecimento, desse
modo,
No processo de construção/produção do conhecimento há uma valorização do
ato criador e, consequentemente, da percepção, também entendida como intuição e compreensão existencial, como sendo o que pode disparar o
processo de compreensão intelectual, também denominada racional, que
envolve fantasia, imaginação, comparação, categorização, relações diversas como todo-parte, configuração do percebido que é expressa em diversas
linguagens possíveis, como gráfica, mítica, da pintura com suas formas e cores, da música, da ciência e que caminha em direção à interpretação e
comunicação do produzido (BICUDO, 2008, p.147).
Partindo dessas premissas, as imagens tornam-se reminiscência, e aqui, memento67, ou
seja, lembranças vivas, devires criadores de conhecimento, de modos de ver, sentir e
compreender a si ao outro. Pensar o memento como devir no contexto do objeto da tese - as
concepções de crianças e infâncias expressas em narrativas fotoetnográficas – é tomar a ideia
de infância como um espaço de socialização, alteridade, construção de sentidos e significados
antropológicos, filosóficos, sociais, políticos e culturais, é reconhecer a criança em seu próprio
modo de agir, de exercer seu protagonismo e de enfrentar com criatividade os desafios da vida
cotidiana, ou seja, é preciso considerar também a infância como um devir-criança, não no
sentido do que ela “não é”, mas, no sentido do que “ela é” e do que ela “faz” como um incessante
67 Abordado no ensaio I, seção 1.2.
122
“vir a ser” imaginativo e criativo, ou seja, deve-se considerar a capacidade da criança em estar
sempre em processo de criação incessante, como visto na perspectiva deleuziana. Segundo
Macedo, R. (2013, p. 28) esse “vir a ser” é “apanhado na sua virtualidade ineliminável sem que
uma lógica etapista do desenvolvimento infantil seja a última palavra [...]”, neste sentido, o
autor complementa que,
A positividade do Ser-criança em incessante auto-organização, em incessante criação (poiesis), chega primeiro, sem se desconsiderar obviamente, o que a
criança tem de espécie humana, mas essa não emerge sem aquela, é uma
impossibilidade na emergência própria humanidade do Ser-criança. Vir a ser significa, concordando com Deleuze, [...] a emergência poiética inarredável
de toda criança (MACEDO, R., 2013, p. 28).
Em síntese, o memento como movimento de interpretação do/no universo infantil não é
uma questão de reprodução no sentido de simples imitação, mas é a “captura de código, mais-
valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p.18).
Portanto, em se tratando da imagem, o memento refere-se ao movimento de percepção
e interpretação que envolve de forma cíclica e interdependente três processos em devir criador:
o reviver – como reminiscências que trazem à tona as memórias e experiências do sujeito; o
sentir – como expressões emocionais e subjetivas; e o compreender – como movimento de
análise interpretativa e reflexiva acerca da imagem e a partir das conexões estabelecidas entre
elementos racionas e emocionais disparados pelo acionamento da memória frente à imagem.
Neste cenário, do ponto de vista científico, todo esse processo de interpretação
estabeleceu conexões epistemológicas entre o visível e o escrito, não necessariamente nesta
ordem, mas, submeteu as subjetividades magicizadas nas imagens técnicas a uma análise
interpretativa à luz das concepções teóricas que pautaram a investigação, pois, a linguagem
visual é um meio de conhecimento e interlocução com a realidade pela qual,
[...] visualizamos microcenários do passado; contudo, ela não reúne em si o
conhecimento do passado. O exame das fontes fotográficas jamais atingirá sua finalidade se não for continuamente alimentado de informações iconográficas
(necessárias aos estudos comparativos) e das informações escritas de
diferentes naturezas contidas nos arquivos oficiais e particulares, periódicos da época, na literatura, nas crônicas, na história e nas ciências vizinhas. De
outra forma, jamais trataremos elementos sólidos de apoio e as pistas necessárias para a correta identificação dos assuntos apresentados. É um
engano pensar-se que o estudo da imagem enquanto processo de
conhecimento poderá abdicar do signo escrito (KOSSOY, 2012, p.82).
123
O sentido do memento reforça a ideia de que não se trata da busca de interpretações
técnicas da imagem, que somente um grupo seleto (do qual não faço parte) que se apresenta
como “detentor” de determinados conhecimentos, seria capaz de realizar, mas sim, trata-se de
oferecer a oportunidade de “voarmos nas asas do imagético” à procura de novas
“reminiscências”, e com elas, novas interpretações. É como o “voo” dos versos de Rubem Alves
(2008, p. 29) que “já nasce dentro dos pássaros” e, exatamente por essa razão, “não pode ser
ensinado. Só pode ser encorajado”.
A Fotoetnografia, como campo metodológico, ainda é movediço em minha própria
capacidade de investigar, tendo em vista que, quando uma nova possibilidade metodológica
surge, ela está aberta a muitas outras ações, tanto de ordem teórica quanto empírica, se constitui
um território do saber que se pretende ainda sedimentar e se retroalimentar de novos olhares e
possibilidades, portanto, este trabalho está sujeito a erros, indagações e transformações. No
entanto, assumo os riscos de minhas prováveis lacunas e deslizes e, novamente, me faço
aprendiz, mas, ainda prefiro a dúvida que alimenta, à certeza que poda.
Afinal, como outrora afirmou Santaella (2005) “o peso das certezas é sempre mais forte
que o das dúvidas. [...]. Por que haveremos nós de cruzar os braços, ficando à espera dos restos
de sopa científica que os outros poderão, porventura, nos deixar de sobra?".
A tarefa que assumi pode parecer ousada - desenvolver um caminho metodológico
transdisciplinar para a sistematização interpretativa do método Fotoetnográfico aplicado ao
contexto da infância, no que tange ao desvelamento das culturas infantis - que por ocasião,
cognominei de memento, mas faço como a “Pantera Cor-de-rosa” de Deleuze e Guattari (1995,
p. 19), nada imito, nada reproduzo; pinto o mundo com minha cor, rosa sobre rosa, esse é o meu
devir-mundo, meu devir-criador, o devir-memento da Fotoetnografia.
124
1.3 Desvelando fotografias em high key e low key
As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos.
Precisam de nós para que sejam desdobrados seus segredos.
As fotografias são memórias, histórias escritas nelas, sobre
elas, de dentro delas, com elas. É por essa razão, ainda, que
as fotografias se acumulam como tesouros, dentro de pastas,
de caixinhas, de armários, que elas se escondem dentro de
uma carteira. Elas são nossos pequenos refúgios, os
envelopes que guardam nossos segredos. As pequenas
peles, as películas, de nossa existência (SAMAIN,
2012, p. 160, grifo meu).
A compreensão das imagens, sobretudo, as fotográficas utilizadas para compor esta tese,
partiu de um movimento heurístico e transdisciplinar guiado pelo imperativo de reflexionar as
concepções de crianças, infâncias e culturas infantis. Desde a localização e seleção das fontes,
busquei traçar um panorama geral da imagem de criança nas pesquisas científicas e na Cultura
Visual para compreender a trajetória histórica, cultural e social da infância a partir das imagens
de crianças do passado em diálogo com as imagens do presente, contudo, perspectivando a
condição da infância no futuro próximo.
Nessa intenção, este estudo fotoetnográfico oferece ao leitor/espectador um
mapeamento dos modos de vida infantil em épocas e contextos diferenciados que desvelam
olhares de crianças que protagonizam suas histórias mesmo no silêncio, na submissão, na
opressão; que subvertem as condições de desigualdade sociais e, criativamente, inventam
modos de ser e de viver suas culturas, que exercem sua participação social marcando
subjetivamente e de forma autônoma suas relações de alteridades entre pares e entre adultos.
O contexto discursivo da tese seguiu uma perspectiva interpretativa da realidade
(GRAUE; WALSH, 2003) a partir dos elementos que compuseram os campos analíticos da
pesquisa, constituídos em duas diferentes formas de narrativa: a escrita e a visual, desse modo,
cada tipo de escritura apresentou uma sequência narrativa que buscou desvelar as concepções
de crianças, infâncias e culturas infantis expressas e magicizadas em concepções teóricas e
imagens técnicas, procurando, sobretudo, desnaturalizar a infância e desconstruir as imagens
historicamente formuladas sobre a infância, reforçando assim, a ideia de infância como
categoria social e da criança como produtora de cultura.
Concomitantemente, o processo de análise partiu do diálogo entre: os pressupostos
crítico, transdisciplinar e multireferencial da Cultura Visual na direção de uma antropofilosofia
125
da imagem; os aportes epistemológicos e ontológicos do memento à luz das contribuições
platônicas do conhecimento como reminiscências, buscando “reviver, sentir e compreender” a
imagem a partir de sua contextualização descritiva, interpretativa e reflexiva; bem como, das
bases conceptuais que fundamentaram cada campo analítico da tese.
Portanto, este subcapítulo destaca, principalmente, a sistematização do processo
descritivo, interpretativo e reflexivo no qual o referido movimento de análise se constituiu.
Após lançar um olhar epistemológico sob as perspectivas antropofilosóficas da fotografia como
“pele” (SAMAIN, 2012) e “magia” e de caracterizar o movimento de interpretação memen to,
componho os passos da descrição em high key e da contextualização em low key, tomando como
empréstimo termos próprios da linguagem fotográfica como figura metafórica, promovendo,
assim, outras possibilidades de análise interpretativa da imagem no conjunto de uma narrativa
fotoetnográfica. Segundo Marcuschi (2000, p. 75) magia e metáfora têm muito em comum, no
entanto,
A magia é um modo de conhecer o mundo a fim de agir sobre ele, influenciando-o, ao passo que a metáfora é um modo novo de conhecer e
comunicar o mundo assim conhecido. Ela é, de certa forma, um recurso
reestruturador da realidade, criando novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo restrito à realidade puramente factual. É em parte isso que leva todas
as correntes linguísticas e filosóficas de cunho positivista a não tratarem a metáfora ou simplesmente a descartá-la (MARCUSCHI, 2000, p. 75-76).
De modo contrário às concepções positivistas, reconheço as metáforas como linguagens
potencialmente disparadoras de conhecimento, reminiscências, memórias. As metáforas
legitimam a criatividade e a habilidade humana em fazer-se entender, comunicar-se, tornar-se
inteligível, promover o diálogo entre a epistemologia e a ontologia do conhecimento através do
desvelamento da realidade, visto pelo prisma da fenomenologia existencial heideggeriana que
estabelece o conceito de verdade como “aletheia” – “unverborgenheit” (desvelamento),
diferente da concepção platônica de verdade como adequação – “paidéia” (essência).
Embora, reconheça a adequação e importância da filosofia platônica na teoria da
reminiscência e no contexto do memento elaborado para o processo de análise das narrativas
visuais, remeto à perspectiva fenomenológica de Heidegger (1960) como inspiração
epistemológica e ontológica para descobrir, refletir e compreender o fenômeno a partir da
concepção de desvelamento (unverborgenheit). Tendo em vista que, a fenomenologia “[...] é o
método que permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o. [consequentemente] A
ontologia somente é possível como fenomenologia” (HEIDEGGER, 2012, p. 123, grifo meu).
126
Na perspectiva heideggeriana (1960, p. 28) a fenomenologia torna possível descobrir a
essência do fenômeno - “phainomenon”, também identificado como “o ente”, em outras
palavras, seu desvelamento “aletheia” busca conduzir o fenômeno à luz, trazer à tona seu
sentido oculto. Nessa dimensão conceptual, Heidegger (1960, p. 35, tradução minha) define
fenômeno por “[...] aquilo que primeiramente, e o mais das vezes, não se manifesta, ainda que
pertença ao mesmo tempo e essencialmente àquilo que primeiramente e, o mais das vezes, se
manifesta, e de tal maneira que constitua seu sentido e fundamento”.
No entanto, esta inspiração aplica-se apenas ao contexto de análise interpretativa que
busca o desvelamento das imagens numa perspectiva heurística e transdisciplinar na medida
em que dialoga com outros campos epistêmicos e ontológicos. De acordo com Holanda (2006,
p. 368) a palavra “heurística” decorre do verbo grego “heuriskein”, que significa “encontrar”,
“descobrir”. A abordagem heurística na pesquisa científica rompe com os padrões tradicionais
de pesquisa científica que desprezam a criatividade e a intrínseca participação do pesquisador
na pesquisa, isto é, “na efetiva colocação da subjetividade do pesquisador no ato de pesquisar”,
desse modo,
Refere-se a um processo de pesquisa interna através do qual se descobre a
natureza e o significado da experiência, e desenvolve métodos e procedimentos para investigações futuras. Neste modelo o self do pesquisador
está presente ao longo de todo o processo, ou seja, o pesquisador experiencia
self-awareness (auto-consciência) e auto-conhecimento (HOLANDA, 2006, p. 368, grifo do autor).
Desse modo, procurei “desocultar” àquilo que se encontra magicizado nas imagens
técnicas da Fotoetnografia partindo primeiro, das minhas próprias percepções de pesquisadora
à luz das concepções teóricas que pautam a tese e das descrições em high key e low key
elaboradas segundo as dimensões e contextualizações dos respectivos campos analíticos.
A Fotoetnografia propõe uma narrativa que integra memória, história e imagem, situada
nas traduções da realidade fixada nas peles magicizadas da fotografia, onde o fotógrafo delimita
em suas margens, recortes arbitrários do tempo e do espaço através de “um gesto último e
definitivo, aquele de apertar o disparador; é um ato intencional determinado pelo ponto de vista
particular daquele que olha e adota certa posição frente à realidade” (ACHUTTI, 2004, p. 111).
Assim como Flusser (1985), Achutti (2004, p. 111) concebe a fotografia como a “materialização
de um olhar”, ela “é o discurso de um olhar”. Da mesma forma, Samain (2012) reafirma a
imagem como lugar de história, de questionamento, de vivências e de criação.
127
Pelo viés da semiótica, o signo fotográfico é tanto ícone da realidade que o representa
quanto um é índice de ligação física da realidade indexicável, ou seja, a indexicalidade é a
existência e a iconicidade uma lembrança de algo (PEIRCE, 2005). Essa visão foi prenunciada
por Barthes (1964, p.28) ao afirmar que "a imagem faculta imediatamente uma mensagem, cuja
substância é linguística", porém, foi evoluída por Flusser ao tratar do deciframento das
fotografias através de duas intencionalidades - a do emissor e a do receptor.
O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um
golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o
significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela
superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning. O
traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas também impulsos no íntimo do observador (FLUSSER, 1985, p. 7, grifos do autor).
Dar à imagem o patamar de linguagem no contexto da ciência é reafirmar seu caráter
epistemológico e ontológico. De acordo com Dubois (2010, 25) o documento fotográfico
adquiriu credibilidade singular devido à sua fidelidade em reproduzir o real, processo que ele
chamou de automatismo de sua gênese técnica, em seu modo específico de constituição e
existência, referindo-se ao processo mecânico de produção da imagem fotográfica.
Por um lado, a fotografia veio responder a uma demanda crescente de imagens
e de autorrepresentação da burguesia em ascensão, buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas fiéis aos seus referentes. De
outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de
controlar e disciplinar um contingente diversificado de sujeitos em uma sociedade de massas, criando a foto de identificação (MONTEIRO, 2012, p.
11).
Conforme também ressaltou Gonçalves (2013) há uma relação muito intensa entre o real
e o virtual na fotografia, o signo construído se torna real, subvertendo a totalidade espacial e
temporal, dessa forma, o signo que a fotografia gera pode ser considerado a materialização da
realidade. Nesta perspectiva, Carvalho, C. (2011, p. 114) acentua a imagem como uma invenção
socialmente construída que se tornou um importante instrumento de registro, memória ou
simples diversão na contemporaneidade. Conforme foi dito, vivemos no mundo da imagem,
estejam elas fixas ou em movimento, as imagens acompanham quase cada instante de nosso
quotidiano, são fenômenos permeados de subjetividade e memória.
Ao evocar a memória, a imagem transforma-se em um lugar de processo vivo, torna-se
testemunha de um sistema de pensamento em que ela própria se desvela pensante (SAMAIN,
128
2012, p. 158). Partindo da perspectiva heurística e metodológica do memento, as imagens
promovem conexões de sentidos e significados entre reminiscências e experiências visuais do
passado e do presente, que incidem diretamente no futuro. Ao articular conhecimentos abstrato
e real, cada instante imagético fixado pela objetiva da câmera fotográfica, registra, representa e
“personifica” pessoas, lugares, situações que ultrapassam as fronteiras do tempo e do espaço.
Desse modo, na imagem, o passado se torna pseudopresença, o presente vira lembrança e o
futuro uma nova simulação mental que se constrói na ação do real no presente que se quer
magicizar no instante do click fotográfico, a ser contemplado no futuro, como assevera Flusser
(1985, p.38):
[...] o universo fotográfico não é apenas um evento relativamente inócuo do funcionamento, mas pelo contrário, é o modelo de toda vida futura. E que a
filosofia da fotografia pode vir a ser o ponto de partida para toda disciplina,
que tenha como objeto a vida do homem futuro.
Consequentemente, as técnicas fotográficas em high key e low key permitem, além de
uma decodificação visual, o diálogo com a subjetividade, emocionalidade e o conhecimento
humano para o desvelamento da realidade magicizada em imagens técnicas fotográficas que
apontam direcionamentos e projeções futuras. Neste contexto, Flusser (1985) ressalta que a
realidade pode ser significada a partir de três deslocamentos temporais: o pré-histórico, o
histórico e pós-histórico. No período pré-histórico as imagens significavam a realidade
magicizadas em pinturas e figuras pictóricas. No período histórico, surge a escrita e com ela, a
idolatria aos textos, que passa a significar a realidade por meio de conceitos, teses e pela
Ciência, desmagicizando, assim, as imagens. A atualidade, segundo o filósofo, é o tempo pós-
histórico, no qual surgem as imagens técnicas na tentativa de (re)magicizar e (re)significar a
realidade através das imagens, outrora negada pela textolatria do tempo histórico, portanto, “o
caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens” (FLUSSER,
1985, p. 7).
O período atual marca uma revolução na função e no sentido das imagens para a
humanidade, passando a mediar a relação homem-mundo. Nesta perspectiva a imagem adquire
o significado de “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente” e
essa magia é a própria “existência no espaço-tempo do eterno retorno” (FLUSSER, 1985, p. 5).
Tempo e memória se comunicam para magicizar o mundo em cenas, a imagem técnica que
inaugurou esse tempo foi a fotografia, e ela própria nos programou para pensar assim.
129
A estrutura pós-histórica do nosso pensamento pode ser encontrada em vários
outros terrenos: biologia, psicologia, linguística, informática, cibernética, para citar apenas alguns. Em todos, estamos já, de forma espontânea, pensando
informaticamente, programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente.
[...]. Penso que estamos pensando de tal maneira porque a fotografia é o nosso modelo, foi ela que nos programou para pensar assim (FLUSSER, 1985, p.
39-40, grifos meu).
Pensar imageticamente, eis a ideia flusseriana central de representação da realidade
magicizada em cenas. Vista por Aumont (2016, p. 275), “A imagem representativa, sempre, foi
também imagem abstrata”. Sob a mesma percepção, penso que, ora as imagens se formulam no
pensamento a partir da realidade perceptível e, ora o pensamento se materializa em realidade
através da imagem. Neste sentido, antes de materializar-se em imagens técnicas, os
pensamentos são formulados no imaginário humano, como se a mente registrasse a cada
percepção, uma nova fotografia mental, ao mesmo tempo em que as imagens visuais da
realidade se constituem, por si próprias, a materialização do pensamento humano.
No entanto, segundo a “apocalíptica” visão de Flusser (1985, p. 40-41), as sociedades
contemporâneas têm vivido em função das imagens, o próprio mundo passou a se constituir
como conjuntos de cenas, esses processos, se, não entendidos a partir de uma postura crítica e
reflexiva, tornam-se um meio de idolatria e consequentemente, de alienação dos homens em
relação a seus próprios instrumentos68. Disto, a necessidade de uma filosofia da fotografia,
porque no mundo programado por aparelhos, ela vai “apontar o caminho da liberdade” perdida
no tempo histórico em que a textolatria dominou o conhecimento,
No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a
própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade. Não se trata, nesta
revolução fundamental, de se substituir um modelo pelo outro. Trata-se de saltar de um tipo de modelo para outro (de paradigma em paradigma). Sem
circunlocuções: a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos (FLUSSER, 1985, p. 40).
Neste diapasão, torna-se necessário agora, explicitar o processo combinatório de aportes
variados necessários para a produção de uma imagem técnica – a fotográfica. Para tanto,
subscrevo as palavras de Samain (2012, p. 157, grifos do autor):
68 Flusser (1985, p. 13-14) define instrumentos como simulações dos órgãos do corpo humano que
prolongam. São exemplos desta analogia: a enxada prolonga o alcance do dente; a flecha prolonga o
alcance do dedo; o martelo prolonga o alcance do punho, e “como prolongações, alcançam mais longe e
fundo a natureza, são mais poderosos e eficientes”. Nesta perspectiva, o autor entende o aparelho fotográfico enquanto prolongamento do corpo humano por simular o olho.
130
A imagem é um fenômeno na medida em que torna sensível todo um processo
que combina aportes dos mais variados. Tomemos como exemplo a imagem fotográfica. A que processo combinatório ela deve sua existência? Para se
moldar, precisou de um suporte: uma máquina captadora de luz, jogos de lentes, diafragma e obturador, uma placa sensível. Para se construir, precisou
de uma pessoa, do seu talento, de sua maneira de observar, de pensar e de
expressar o que viu, de enquadrar, de retocar, de manipular. Para emergir, ela precisou da existência do tempo, do espaço, da luz e da sombra, das cores, das
linhas, dos volumes, das formas, do ambiente... Em poucas palavras, a
fotografia precisou da longa história de uma “aventura” icônica. Para viver enquanto imagem, foi necessária a existência de espectador(es), isto, de seres
vivos, “aptos a saberem olhar uma imagem [...], capazes de discernir ‘lá onde ela arde’” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 33, grifo do autor).
De forma prática, Samain (2012, p. 157) resume quatro elementos necessários: o
suporte técnico, o fotógrafo, a película icônica e o espectador. Com base em seus
argumentos, farei um breve panorama desses elementos e suas implicações para o entendimento
da gênese fotográfica no contexto da Fotoetnografia.
O suporte técnico corresponde ao equipamento fotográfico, é um instrumento óptico
que comporta espelhos, primas, lentes e sensor. Para funcionar é preciso a harmonia em três
processos: a abertura do diafragma – estrutura responsável pelo controle de entrada de luz no
sensor para produzir a imagem, funciona como a íris das câmeras e se encontra dentro da lente;
a velocidade do obturador – o obturador é o elemento responsável por proteger o sensor e
controlar a entrada de luz no sensor, sua velocidade determina a abertura do diafragma; e o ISO
(International Standards Organization) – que indica a sensibilidade do sensor da câmera em
capturar a luz. (Ver esquema 6). Esses processos são fundamentais para controlar a exposição
da imagem, neste sentido, é preciso combinar cada elemento para obter a imagem desejada, a
alteração de um deles, implica em mudanças diretas no resultado da imagem.
131
Esquema 6 - Processo de exposição da imagem fotográfica.
Fonte: Elaboração própria (2017).
Conforme o esquema 6, o controle da exposição da imagem envolve a quantidade de luz
que incide diretamente no obturador, combinando à velocidade do diafragma ao tempo de
abertura, e a decisão de apertar o disparador deve ser tomada mediante o equilíbrio desses
elementos. O controle da exposição é realizado junto ao histograma da fotografia que apresenta
o nível de exposição da luz através de um gráfico. O histograma funciona como um termômetro
da imagem, nele identificam-se os pontos de equilíbrio, iluminação, contrates da foto. No
entanto, importante destacar que cada fotografia é única, como também é seu histograma, em
outras palavras, o histograma é a identidade do documento fotográfico, sua representação é a
alma da fotografia, esta, por sua vez, torna-se o corpo, a pele magicizada na imagem técnica.
Evidentemente, o controle do aparelho depende de alguém que o manipule, portanto,
para que a imagem se materialize, a ação do sujeito, fotógrafo/pesquisador, é fundamental.
Segundo Achutti (2004, p. 96) no contexto da Fotoetnografia, para se ter êxito é preciso além
de dominar essas técnicas, ter clareza do objeto escolhido, “seja por meio de objetivas e de
aberturas determinadas”, seja por “movimentos de aproximação ou de distanciamento”, sempre,
“aquele que fotografa é constantemente submetido a escolhas”.
É por isso que o pesquisador deve saber “jogar com o foco seletivo, a velocidade de
obturação, as objetivas, definir a abertura desejável, tudo isso em razão de uma profundidade
ISO Sensibilidade
(incidência de luz)
VELOCIDADE Diafragma
(tempo de abertura)
FOTOGRAFIA Exposição da
imagem
ABERTURA Profundidade de
campo (entrada da luz)
132
de campo determinada pelo enquadramento almejado” (ACHUTTI, 2004, p. 97). E como diriam
Graue e Walsh (2003, p. 94) “O objetivo da investigação enquadra a sua natureza”, ou seja, o
enquadramento é definido pelo próprio objetivo da pesquisa.
Retomando os elementos combinatórios necessários à produção da imagem fotográfica,
Samain (2012, p. 157) destaca que para emergir, a fotografia precisou de uma aventura icônica
que, segundo o autor, compreende o jogo de linhas, o contraste das cores, o volume e as formas
que comunicam pensamentos “[...] não apenas visual, e sim, sensorial, na medida em que todos
os nossos cinco sentidos participam, em graus variáveis, de tais (re-) elaborações cognitivas”.
Nesta mesma perspectiva, Recuero (2008, p. 45) ressalta que,
O esboço fotográfico é sempre repleto de significância e permite uma análise atenta e diversas leituras, assim como o scanner faz ao ler e copiar um
trabalho, com idas e vindas sobre a matriz. Este processo permite ler os
elementos que compõem aquele fragmento. Os registros intencionais capturados pelo olhar atento do fotógrafo e aqueles que apenas se tornarão
perceptíveis a partir de uma leitura mais atenta por parte do observador.
E, a última condição - para sobreviver, a imagem precisa de um observador, um
espectador, alguém que a contemple em sua profunda relação ontológica, que mergulhe em
suas próprias subjetividades, percepções e emoções. Como ressalta Samain (2012, p. 56)
qualquer imagem na sua essência, é um signo de recepção, é um fenômeno estruturado, uma
manifestação, “uma estrutura que conecta um conjunto de elementos e de formas que se pensam
entre si”.
Ante tais elucubrações, o desvelamento da fotografia permeou a “desocultação” das
partes claras - superexpostas na imagem, que corresponde à descrição dos elementos em
primeiro e segundo plano enquadrados pela objetiva; e das áreas escuras - subexpostas, que se
refere à contextualização dos elementos ocultos da imagem, vistos pelo olhar de quem
fotografou, pelo meu olhar como pesquisadora ou pelo olhar da criança-sujeito, portanto,
desvelando a fotografia a partir do diálogo entre o visível e o oculto, as aparências e as
(dis)simulações, o racional e o sensível, o simulacro e o real, a pele e a magia, ou seja, buscando
nela (fotografia) sua descrição em high key (chave alta) e sua contextualização em low key
(chave baixa).
Dito isto, adentro na particularidade da fotografia produzida em high key e low key,
técnicas de manipulação e exposição da luz para obtenção de resultados extremamente claros
ou escuros na fotografia. As imagens em high key concentram suas informações em tons claros
nas áreas superexpostas (muito clara) da fotografia, e em low key as informações se concentram
133
em tons escuros nas áreas subexpostas (muito escura) da fotografia69.
Portanto, em alusão à linguagem fotográfica, a descrição em high key no contexto
particular da pesquisa, refere-se àquilo que Aumont (2016, p. 79) entende por valor de
representação das coisas concretas na relação da imagem com a realidade, acrescentamos
também, a percepção das características primárias e secundárias da fotografia, os elementos que
foram enquadrados por esse ângulo, àquilo que se encontra magicizado na pele, no corpo da
fotografia.
Importante, ressaltar que a imagem representativa também se caracteriza como imagem
narrativa, independente da dimensão do “acontecimento contado”, desse modo, quando se
deseja interpretar o que imagem representa, “é lógico que se comece por indagar qual é sua
relação coma narratividade em geral” (AUMONT, 2016, p. 255).
A contextualização em low key compreende um valor de símbolo que representa as
coisas abstratas. De acordo com a abordagem semiológica, a codificação da imagem fornece
diversos códigos determinados pelo contexto que são mobilizados universalmente,
relativamente e socialmente pelos sujeitos, por isso “o domínio desses diferentes níveis de
códigos será desigual segundo os sujeitos e sua situação histórica, e as interpretações resultantes
serão proporcionalmente diferentes” (AUMONT, 2016, p. 262). Desse modo, a fotografia
enseja,
Um mesmo olhar direcionado para dois pontos de fugas: o do estudo e o do
imaginário. São, efetivamente, dois portos de embarque e duas viagens
complementares. A fotografia permite e favorece esta confluência de significações e de desdobramentos. Para quem olha para ela, nunca será
apenas o que ela mostra (SAMAIN, 2003, p.63).
Além disso, tanto a descrição em high key quanto a contextualização em low key
possuem representação valorativa de signo, cujo significante visual tem uma relação totalmente
arbitrária com seu significado (AUMONT, 2016, p. 79). Desse modo, as duas leituras da
imagem ocorrem de forma interdependentes, porém, complementares.
As dimensões descritivas (high key e low key), estéticas (sensitivas) e interpretativas
(epistemológica e empírica) realizadas através do memento, serviram de símbolos, de
representação epistemológica e ontológica, bem como, de objeto estético dado à contemplação
de seu leitor/espectador.
69 Algumas informações acerca da linguagem fotográfica podem ser verificadas junto aos sites
www.fotodicasbrasil.com.br; www.tecmundo.com.br; www.cameraneon.com.
134
Em vista disso, o conjunto de significados produzidos por esse método resultou da
síntese entre duas “intencionalidades” que se retroalimentaram: a do emissor e a do receptor
(FLUSSER, 2007, p.21). Assim, as narrativas fotoetnográficas constituíram-se de
representações, símbolos e significantes visuais carregados de sentidos, significados, histórias
e memórias (AUMONT, 2016, p. 80). O desafio, portanto, passa a ser decifrá-las, como bem
alertou Flusser (1985, p.25).
Decifrá-las é descobrir o que os conceitos significam. Isto é complicado,
porque na fotografia se amalgamam duas intenções codificadoras: a do
fotógrafo e a do aparelho. O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das
fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se. A
fotografia é, pois, mensagem que articula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir crítica fotográfica que revele essa ambiguidade do
código fotográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a intenção humana.
Dado o exposto, a leitura das imagens fotográficas em high key efetuou-se a partir das
seguintes dimensões: i. Descrição das informações e análises originais encontradas na fonte em
que a imagem foi encontrada; ii. Identificação dos elementos perceptíveis, os pontos claros, as
áreas planas, àquilo que primeiro apreende o olhar, ou seja, os “ditos” da fotografia. iii.
Percepção das intencionalidades explícitas da fotografia segundo sua fonte original.
Em relação à leitura das imagens em low key, ampliam-se as dimensões do olhar,
considerando os seguintes elementos: i. Contemplação subjetiva e ontológica do belo na
fotografia para encontrar sua verdade; ii. Scanning da imagem em busca dos “não-ditos”; iii.
Desvelamento dos elementos ocultos na fotografia que emergiram através de reminiscências,
memórias, subjetividades e emocionalidades do olhar. iii. Contextualização crítica e
interpretativa à luz dos pressupostos teóricos adotados no estudo.
Desse modo, essas técnicas foram fundamentais para perceber nas áreas claras, as
infâncias expostas nas imagens fotográficas construídas como fruto direto das intervenções
midiático/culturais e desvelar as áreas escuras e escondidas das infâncias veladas em cenas
magicizadas, que despertaram reminiscências e reflexões acerca das concepções de crianças,
infâncias e culturas infantis discutidas ao longo da tese.
Em síntese, o movimento de análise interpretativa das narrativas fotoetnográficas
empreendidas na tese, seguiu, consecutivamente, as seguintes etapas: i. Seleção das fontes de
pesquisa, bem como, das respectivas fotografias; ii. Contemplação e interpretação das imagens
– memento; iii. Seleção das fotografias para compor a narrativa fotoetnográfica; iv.
135
Organização da narrativa textual em diálogo com a narrativa visual; v. Descrição em high key;
vi. Contextualização em low key; vii. Análise interpretativa e reflexiva sob perspectivas
transdisciplinares, heurísticas e críticas.
Entretanto, importante relembrar que todo o movimento empreendido em função das
análises foi desenvolvido a partir de diálogos epistemológicos, ontológicos e antropofilosóficos
com os campos da Fotografia, Fotoetnografia, História Social da Infância, Sociologia da
Infância, da Cultura Visual e da Educação Estética.
Após contextualizar os delineamentos metodológicos empreendidos na tese, sintetizo a
seguir, trajetória da Fotoetnografia como campo de pesquisa científica, destacando,
principalmente, suas implicações para os estudos na área da infância e da Educação.
136
2 A FOTOETNOGRAFIA NA OBJETIVA DA PESQUISA CIENTÍFICA
Fotografia - junção do original grego φως (fós) que
refere-se à "luz", à γραφις (grafis) que aplica-se à
"estilo", "pincel" ou γραφη (grafê), que refere-se a
"desenhar com luz e contraste. Etnografia - junção
do original grego έθνος (ethno) que significa “nação,
povo” e γράφειν (graphein) que refere-se a
“escrever”. Recursos seculares que desdenham,
eternizam, interpretam e comunicam os emaranhados
da realidade humana. Desse entrelaço - a
Fotoetnografia.
Achutti (1997, p. 13) defende a fotografia como prática etnográfica estabelecendo
assim, um diálogo com o campo de conhecimento da Antropologia Visual. Neste sentido, a
Fotoetnografia evoca o potencial narrativo da imagem fotográfica para falar da realidade.
“Trata-se de uma nova forma narrativa concebida na perspectiva de uma antropologia
interpretativa tendo como uma de suas características a de se oferece como escrita, “construção
das construções dos outros” 70, aos esforços interpretativos do leitor/espectador” (ACHUTTI,
2004, p.72).
Para isso, Achutti (1997, p. 12) utilizou uma abordagem descritiva, associada às técnicas
antropológicas de pesquisa de campo, em que a imagem fotográfica foi sua principal forma de
narrar, assim, buscou investigar os elementos com os quais a população construía seus traços
identitários.
A Antropologia tem crescido, gradativamente, para outros campos de produção de
conhecimento e seu desafio não está em reconhecer o papel do visual na pesquisa científica,
mas, em saber o que fazer com ele, como problematizar e contextualizar as imagens na análise
da investigação, nesse contexto, a Fotoetnografia propõe uma interlocução entre os métodos
antropóligos da pesquisa etnográfica aos métodos de análise dialético, holístico,
transdisciplinar e subjetivo das Ciências Humanas. Para Cavedon (2005, p. 21) “a fotografia e
a etnografia requerem a capacidade de lidar com a emoção e de saber utilizar a mesma para o
descortinamento de elementos recônditos no cerne do fazer científico”.
De acordo com Achutti (2004, p. 81) “apesar de a fotografia ser a mãe das técnicas
modernas de registro e de reprodução de imagens tomadas da realidade, não é ela, mas o cinema,
70 Aqui, Achutti faz referência à Geertz (ACHUTTI, 1989, p. 79).
137
que se encontra na origem daquilo que chamamos de antropologia visual”. Desse modo,
Antropologia, fotografia e cinema dialogam sobre formas e conceitos que se pretendem fontes
de interpretação da realidade e devem ser aprofundados no contexto científico, “não porque
estas tecnologias nos permitiriam registrar e salvar cultura em extinção, como queria Margaret
Mead em meados dos anos 70, mas porque fotografia e cinema nos ajudam a pensar e a fazer
Antropologia” (NOVAES, 2009, p. 22-23).
Achutti (2004, p.95) destaca que o cinema etnográfico adquire valor científico em 1952,
na ocasião do segundo Comitê Francês do Filme Etnográfico na Sala de aula de Cinema do
Museu do homem, em Paris, quando um seleto grupo de antropólogos ao definir filme
etnográfico, estabeleceram o diálogo entre o rigor científico e a arte cinematográfica. Neste
contexto, o uso da imagem passou a ter o status de Ciência sendo considerado como técnica
metodológica no campo das Ciências Sociais a partir das interlocuções entre Antropologia e
fotografia, quando os antropólogos passaram a ir pessoalmente ao encontro dos povos de
diferentes culturas, marcando assim, o início do trabalho de campo etnográfico na
Antropologia, onde o uso da fotografia é conhecido principalmente como técnica de pesquisa
aplicada ao trabalho de campo.
De acordo com Achutti (2004, p. 105) a pesquisa etnográfica de Malinowski “Os
Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922) foi pioneira na Antropologia a utilizar a fotografia
como técnica de pesquisa aplicada ao trabalho de campo, desde então, outros trabalhos também
contribuíram para a consolidação da Antropologia Visual no campo científico, como os de
Gregory Baterson e Margaret Mead (1942), John e Malcolm Collier (1967), Pierre Verger
(1999), Samain (1995), Garrigues (1997), dentre outros. Daí em diante as imagens adquiram
maiores implicações na pesquisa em Antropologia Visual, o que culminou também em outras
possibilidades teórico-metodológicas como é o caso da Fotoetnografia.
Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua totalidade, porém, partindo
da compreensão de fenômenos particulares, dialogando com a teoria selecionada e com as
vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais. Apesar de o método ter sido
empreendido para investigar comportamentos adultos e no campo da Antropologia, aos poucos
foi tomando proporções em outras áreas das Ciências Humanas e Sociais, tendo em vista sua
adequação transdisciplinar teórica e metodológica para estudos dos vários grupos humanos.
Quando uma narração visual que utiliza a fotografia é articulada com um texto
escrito que, por sua vez, já alcançou sua legitimidade, ela só tem a contribuir
[...] para enriquecer e facilitar as interpretações dos dados, particularmente quando estes resultam de universos sociais cuja densidade e complexidade
138
crescem a cada dia e nos quais as imagens se impõem cada vez mais como
elementos próprios à sociabilidade, como reveladores das diferentes práticas culturais (ACHUTTI, 1997, p. 83).
Para Cavedon (2005, p. 22) a Fotoetnografia surge da união entre a fotografia com a
etnografia. Tal junção exige a capacidade de dominar dois aspectos: o primeiro refere-se ao ato
de fotografar, que exige conhecimento técnico relativo ao uso de equipamentos adequados e
domínio da percepção visual e o segundo corresponde à imersão do pesquisador no universo
pesquisado de modo a participar da realidade cultural investigada. A combinação desses dois
saberes exige habilidade e disposição do/a pesquisador/a em produzir a narrativa pela via do
imagético. Desse modo, a fotografia se torna elemento principal de descrição em pesquisas
antropológicas para a obtenção dos dados e interpretação da realidade. Ondina Leal71, citada
por Achutti (1996, n.p.) no resumo de seu trabalho de dissertação, ressalta:
A fotografia é um aprendizado de observação paciente, de elaboração
minuciosa de diferentes estratégias de aproximação com o objeto, de
desenvolvimento de uma percepção seletiva, de uma vigilância constante e de prontidão para captar o acontecimento no momento do acontecimento. A
dupla capacidade da câmara de subjetivar e objetivar a realidade, a constante consciência de que se é responsável por este processo, por uma técnica de
apreensão da realidade, de que se é sujeito deste conhecimento, é um
ensinamento epistemológico e uma forma de fazer antropologia (ACHUTTI, 1996, n.p.).
Portanto, a pesquisa fotoetnográfica abrange o caráter etnográfico da Antropologia,
quando a fotografia é utilizada como instrumento principal na realização de um trabalho de
campo (BONI e MORESCHI, 2007). O que requer uma descrição densa e legítima do fenômeno
abordado, no entanto, a fotografia ganha outra valoração na pesquisa científica que até então,
não havia sido dada pelos etnólogos fundadores da Antropologia Visual, que mesmo tendo
utilizado a fotografia em suas pesquisas, sempre a relegaram um lugar secundário (ACHUTTI,
2004, p. 109).
O método etnográfico representa um risco elaborado para uma descrição densa da
realidade (GEERTZ, 1973), envolve uma observação intensiva no ambiente natural e a imersão
do pesquisador no contexto para permitir a compreensão do fenômeno estudado. De acordo
71 QRcode 13: Resumo on-line da dissertação de Achutti (1997).
139
com Matos (2008) através da etnografia busca-se uma descrição mais completa possível, sobre
o que um grupo particular de pessoas faz e o significado das percepções imediatas que eles têm
acerca do que eles fazem. Esta descrição é sempre escrita com a comparação etnológica em
mente, constitui a “escrita do visível”. Dessa forma, a pesquisa etnográfica abarca a perspectiva
dialética, assim como a comparação, a densidade descritiva, o significado, sua organização e
variações (MATTOS, 2011). Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua
totalidade, porém partindo da compreensão de fenômenos particulares, dialogando com a teoria
selecionada e com as vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais.
Neste sentido, a Fotoetnografia caracteriza-se como método de descrição e interpretação
cultural, tendo em vista que, utiliza a imagem, mais especificamente, a fotografia, como recurso
narrativo para a obtenção dos dados e interpretação da realidade e tem o objetivo de mostrar
visualmente os conceitos que estão sendo investigados. Dessa forma, uma narrativa
fotoetnográfica deve se apresentar “[...] na forma de uma série de fotos que estejam relacionadas
entre si e que componham uma sequência de informações visuais.” (ACHUTTI, 2004, p. 109).
A Fotoetnografia, como perspectiva teórico-metodológica, permite não só examinar as
narrativas imagéticas que compõem os discursos e as teorias que fundamentam e
fundamentaram estudos e pesquisas científicas, como também, amplia as possibilidades de
investigação empírica, tendo em vista seu potencial narrativo imagético para compreensão da
realidade, o que de certa forma, torna possível rememorar momentos históricos, narrar e
ressignificar as singularidades desses momentos e compreender a evolução dos conceitos de
criança, infância e culturas infantis em épocas e contextos diferenciados. Além disso,
A fotografia ajuda da mesma forma e a recolher mais rapidamente certos detalhes próprios a rituais ou a cultura material – adornos, vestimentas,
ferramentas de trabalho etc. Ela pode também representar uma grande fonte
de inspiração para o pesquisador, após ter deixado seu trabalho de campo, permitindo-lhe chegar a novas conclusões (ACHUTTI, 2004, p. 95).
No entanto, cabe ressaltar que, diferente dos primeiros trabalhos etnográficos com
imagens que eram produzidos durante anos de incursão do pesquisador no campo, as pesquisas
fotoetnográficas não são determinadas pela quantidade de tempo empreendida na observação e
coleta junto ao fenômeno, mas sim, pela intensidade das relações estabelecidas entre
pesquisador-sujeito-objeto durante a realização da observação e coleta (não necessariamente
nesta ordem). Nesse sentido, trabalhos fotoetnográficos podem apresentar variedade no tempo
de duração da pesquisa, isso vai depender do que será determinado como o objeto de
investigação. O que não significa afirmar que a Fotoetnografia perde sua propriedade
140
etnográfica, pelo contrário, evidencia que a antropologia nos dias de hoje, tem ampliado seu
campo de abordagem e intervenção nas pesquisas científicas, contribuindo com novas formas
e contextos de se fazer registros descritivos da cultura na atualidade, nesta perspectiva, a
preocupação de ordem epistemológica dos antropólogos não está apenas direcionada “[...] à
teoria e aos problemas de ética e da palavra de pesquisa que ocorrem em campo, mas também
se interessam pela questão da restituição e dos diferentes estilos e possibilidades de escritura”
(ACHUTTI, 2004, p.103).
Por conseguinte, Achutti (2004, p. 96-97) ressalta que a Fotoetnografia requer o domínio
da técnica fotográfica a fim de se proporem textos antropológicos utilizando a linguagem visual
como forma de transcrever dados obtidos na pesquisa de campo. Porém, trata-se de uma
perspectiva ainda recente que aos poucos vai se estabelecendo nas Ciências Sociais e agora,
mais recentemente, com algumas tímidas produções em Ciências Humanas.
Com base no levantamento de literatura realizado junto aos repositórios digitais da
CAPES, SciELO e ANPEd, a Fotoetnografia ainda é uma metodologia pouco explorada nas
pesquisas científicas brasileiras, fato que me leva a afirmar que, apesar da sua densidade
epistemológica e empírica, ainda se trata de um campo em emergência que precisa ser ampliado
e aprofundado nas Ciências Humanas e Sociais.
A partir do indexador “Fotoetnografia”, totalizam-se até o corrente ano, 37 trabalhos,
sendo, 8 teses, 18 dissertações e 11 artigos. Destes, 26 pesquisas foram registradas junto à
CAPES desde 1996, sendo apenas 5 relacionadas direta e indiretamente à crianças e infâncias;
9 pesquisas encontradas junto ao banco de dados da SciELO, nenhuma dessas sobre infância.
Junto à ANPEd, foram encontrados 2 registros, um sobre a exposição fotográfica "Olhares e
Vozes do Cárcere", apresentada na ANPEd Sul 2016, onde socializou o resultado da tese de
Liviski (2016) intitulada “Retratos de detentas na etnografia do espaço prisional: trajetórias,
imagens e representações fotografias das próprias detentas de presídios do Paraná” e um recorte
de tese em andamento na área de Educação e Infância, intitulado “Crianças e Objetos: narrativas
fotoetnográficas sobre infâncias contemporâneas”. O quadro 1 esboça as pesquisas separadas
por categorias de trabalho acadêmico e áreas de conhecimento.
141
Quadro 1 - Levantamento de Pesquisas em Fotoetnografia (1997-2017).
Programas CAPES SciELO ANPEd
Teses Dissertações Artigos
Administração - 6 2 -
Ciências Sociais 1 2 - -
Multimeios 1 - -
Antropologia 2 4 -
Sociologia Política 1 - 1
Educação 4 3 1 1
Estudos Culturais - 1 - -
Letras 1 - -
Comunicação e
Cultura
- 2 - -
Performances
Culturais
- 1 - -
Dinâmicas
Territoriais
- 1 - -
Saúde - - 1 -
Antropologia em
novas mídias
- - 1 -
Total 8 18 9 2
Fonte: Elaboração própria (2017).
Após a leitura de todos os respectivos resumos das pesquisas categorizadas por área,
foram selecionados para análise e produção da narrativa fotoetnográfica apenas 5 trabalhos
relacionados direta e indiretamente com as categorias criança, infância e culturas infantis, sendo
4 junto à CAPES - 1 dissertação em Antropologia Social (VILLAS BOAS, 2016); 1 dissertação
em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (MENEZES, 2016); 1 teses e 1 pesquisa
em Educação (TROIS, 2012; SÁ, 2014). E junto à ANPEd apenas 1 recorte de pesquisa em
andamento foi analisado por abranger um estudo fotoetnográfico (APRATO, 2016).
Neste capítulo, a seleção iconográfica para a composição da narrativa fotoetnográfica,
partiu das imagens de crianças discutidas no âmbito destes trabalhos, lidos na íntegra, porém,
priorizando duas pesquisas diretamente relacionadas às culturas da infância, tais trabalhos
apresentaram em seus corpus um maior número de imagens de crianças, são eles: a tese de
Trois (2012) que discute o currículo das infâncias no contexto das ações e interações escolares;
e a dissertação de Villas Boas (2016) que investigou a construção de si das crianças que
participam da manifestação Nêgo Fugudo em Acupe-BA. No entanto, das demais produções
também foram selecionadas informações e imagens referentes às culturas infantis de cada
contexto investigado. Conforme quadro 2:
142
Quadro 2 - Pesquisas selecionadas para análise fotoetnográfica dispostas em ordem de narração.
Autor (ano) Título Tipo/Área
Instituição
Palavras-chave
TROIS (2012) O privilégio de estar com
as crianças: o currículo
das infâncias.
Tese.
Pós-Graduação em
Educação, UFGRS.
Infância;
Educação Infantil;
Fotoetnografia;
Currículo;
Currículo das
Infâncias.
VILLAS BOAS
(2016)
{Per[for(mar)]} Imagens
das crianças no Nêgo
Fugido, Acupe/B.
Dissertação.
Pós-Graduação em
Antropologia Social,
UnB.
Criança; Performance;
Cultura Popular;
Recôncavo;
Baiano.
APRATO (2016) Crianças e objetos -
narrativas
fotoetnográficas sobre
infâncias contemporâneas
Recorte de Dissertação
em andamento na
Universidade Luterana do
Brasil, ULBRA,
apresentado no XI
Seminário de Pesquisa em
Educação da Região Sul
(ANPEd SUL).
Não apresenta
palavras-chave em seu
escopo, mas se trata de
pesquisa com criança
no contexto escolar.
MENEZES
(2016)
Cultura Indígena Híbrida:
uma abordagem
interdisciplinar acerca da
Pintura Corporal
Parketêjê.
Dissertação.
Pós-Graduação em
Dinâmicas Territoriais e
Sociedade da Amazônia.
UNIFESSPA.
Cultura estética
indígena;
Hibridismo cultural
indígena; Pintura
corporal
Parkatêjê.
SÁ (2014) Saberes Culturais
Tentehar e Educação
Escolar Indígena na
Aldeia Juçaral
Dissertação.
Pós-Graduação em
Educação, UFPA.
Educação Indígena.
Saberes culturais
Tentehar.
Saberes escolares.
Interculturalidade.
Fonte: Elaboração própria (2017).
Os demais 29 não foram analisados, mas a partir da leitura de seus resumos, sintetizo
alguns temas abordados: cultura, urbanismo, turismo, lugares históricos, festas e religiosidades,
sociedade, estudos sobre cotidianos sociais, identidades, fronteiras culturais,
fotoetnotextografia, mídias e marketings, culturas indígenas, teatro e performance,
apresentando em seus corpus imagens fotográficas como escritas narrativas.
Na sequência, discorro sobre os trabalhos analisados a partir do memento como
143
movimento de interpretação empreendido nesta tese, à luz da Sociologia da Infância e da
perspectiva crítica, transdisciplinar e multireferencial adorada nesta tese, assim, o corpus
imagético e discursivo foi constituído pelos trabalhos de: Trois (2012), Villas Boas (2016) e
Aprato (2016) que abordam diretamente a infância a partir da perspectiva fotoetnográfica; e
pelas pesquisas de Sá (2014) e Menezes (2016) que discutem culturas humanas e indiretamente
lançam olhares sobre as infâncias que se constituem nos territórios investigados.
A tese de Trois (2012), intitulada: “O privilégio de estar com as crianças: o currículo
das infâncias” 72 desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) é o primeiro trabalho em Educação
Infantil que utiliza a Fotoetnografia como estratégia metodológica para pesquisas com crianças
no Brasil. A tese teve o objetivo de refletir, compreender e interrogar sobre como acontece a
participação das crianças na escola e quais as marcas que registram e produzem o currículo da
infância, sendo realizada em uma escola infantil da rede municipal de Porto Alegre. Evidencia
a importância da fotografia como narrativa visual que ajuda a ver, registrar e pensar as infâncias
e suas pluralidades, pois, para a autora, “Toda fotografia é um olhar sobre o mundo, levado pela
intencionalidade de uma pessoa procurando dar significado a este mundo” (TROIS, 2012, p.
35).
Através da Fotoetnografia, narrada em 123 imagens, Trois (2012) apresenta narrativas
visuais que permeiam os espaços escolares revelando as brincadeiras no pátio, as linguagens e
expressões em momentos de leitura e em interações na horta da escola, nas relações entre
crianças e a professora e em momentos de socialização. O trabalho é rico em imagens
fotográficas, revela as singularidades das infâncias nas margens do processo educativo e
demonstra o potencial narrativo da Fotoetnografia para o trabalho etnográfico com crianças.
Segundo a autora, o registro fotográfico já não causa estranhamento, tampouco, encantamento
nas crianças, pois já está imerso no cotidiano escolar. A autora conclui que o currículo da
infância é atravessado pela emergência de uma “infância plural que pulsa, que vibra, que
silencia, que interroga e que, sobretudo, age” (p. 161).
Trois (2012) abre sua pesquisa com uma imagem que transmite a “liberdade infantil”.
Crianças correm livremente no pátio da escola, sem regras, sem medo, sem cobranças, mas,
com muita, muita pressa! Exibem em seus lábios, sorrisos infinitos e em seus olhares, um
72 QRcode 14: Trois (2012).
144
universo de significados que só sendo criança para entender! Esta cena em high key, é composta
por uma imagem ampla, clara e repleta de vida. Nela, é possível visualizar 11 crianças, na faixa
etária entre 3 e 5 anos, meninas e meninos vivendo a plenitude de uma infância colorida cheia
de sonhos e muita “correria”! Quando penso no que esta cena reflete em low key algumas
perguntas me vêm à memória como provocações: por que correm sem parar? Qual direção e
propósito tem essa forma “aligeirada” de se expressar? O que estão sinalizando com essa
cinesia? Talvez, não consiga responder agora, mas formulo algumas percepções sobre isso,
como um memento inspirado em minhas próprias reminiscências de infância e experiências de
“observadora”, e convido o leitor/espectador a experimentar este mesmo movimento.
Quando “correm”, um misto de diversão e alegria toma conta dessa suposta “pressa”,
como se houvesse uma constante “competição” - a da criança mais rápida, mais esperta, a que
consegue “chegar”, “tocar”, “pegar” ou “ser” a “primeira”! Mas a “primeira” em que? Pois tudo
ocorre ao mesmo tempo e em todo lugar! Será que é possível saber o que de fato significa ser
“a primeira”? Creio que essa “pressa em ser a primeira” significa a vontade de viver e ser feliz.
Ter pressa para viver cada momento com intensidade e ser a primeira a conseguir a tão sonhada
felicidade. Ser criança é ter pressa, muita pressa em ser feliz e ser a primeira a “chegar”!
As crianças são ávidas por movimento, essa inquietude, mesmo no silêncio, permitem-
nas experimentar, descobrir, inventar e compreender o mundo a sua volta. É nas relações de
alteridade que as crianças elaboram suas próprias “explicações” e “percepções” da vida, e
exercem seu protagonismo ao subverter situações e recriarem soluções para os problemas e
conflitos que surgem no cotidiano de suas experiências, e assim, vão construindo e inventando
passo a passo suas culturas e identidades infantes.
Os novos agrupamentos das crianças podem ser entendidos como a
constituição de um espaço em que a diversidade e as diferenças das crianças
são potencializadas. As interações ocorridas no hall da escola ou nos pátios deflagram esta ‘mistura’ das crianças (TROIS, 2012, p.59).
Esse espaço de liberdade e alteridade precisa ser garantido no contexto escolar, assim
como essa “vontade de felicidade” que está, principalmente, relacionada ao brincar, precisa ser
entendida como processo fundamental para se pensar práticas, rotinas e currículos pedagógicos
que priorizem uma educação estética.
A filosofia platônica introduz o caráter estético à educação ao apontar que “a boa
educação é aquela que oferece toda beleza e perfeições possíveis ao corpo e à alma”
(ORMEZZANO, 2008, p. 16). É nesta perspectiva, que a educação estética deve ser pensada
145
no contexto da Educação Infantil, como um processo estimulador de percepções, emoções,
sensibilidades e criatividades na infância, com isso a importância da liberdade no brincar.
Conforme apontou Trois (2012, p. 58-59):
A brincadeira é a cultura da infância, produzida por aqueles que dela
participam e ativada pelas próprias atividades lúdicas. Brincar não é uma preparação para nada, é fazer o que se faz em total aceitação, o brincar conduz
aos relacionamentos grupais, à comunicação consigo mesmo e com os outros,
favorece o crescimento, o desenvolvimento de habilidades e produz desafios à razão e à imaginação (TROIS, 2012, p. 58-59)
Outras imagens presentes no trabalho de Trois (2012) foram produzidas em uma área
externa da escola onde estão localizados os parques (de ferro e madeira) e um jardim. Destas
selecionei mais imagens para compor a narrativa fotoetnográfica.
Em high key, a primeira fotografia apresenta uma imagem em profundidade, dividida
em três planos: no primeiro plano duas crianças de aproximadamente 3 anos brincam de
gangorra, se olham e exibem um enorme “bocão”, como expressões de entusiasmo e diversão.
Em segundo plano, duas crianças da mesma faixa etária, brincam de balanço, dando a ligeira
impressão de que uma criança (de pé) está balançando a outra (que está sentada no balanço), as
crianças demonstram concentração na brincadeira. E em terceiro plano, ao longe dá para
perceber mais duas crianças, uma subindo no escorrego 73 e a outra correndo na mesma direção
do referido brinquedo.
Em high key, a segunda imagem corresponde à captura de um momento em que uma
das meninas “inventa” uma maneira diferente de descer no escorrego. Aparentemente, com 3
anos, ela senta com os joelhos dobrados e coloca as pernas para trás se preparando para a
descida. Sua expressão demonstra segurança e tranquilidade. Com uma das mãos segura no
apoio do escorrego e com a outra, ainda procura como apoiar-se. Ela analisa as condições para
em seguida, “se jogar” na descida.
Em high key, a terceira imagem é composta por 8 crianças, de faixa etária entre 1 e 2
anos. Sentadas no chão de areia de um coreto com grades de ferro coloridas e alguns detalhes
em coração, interagem entre si e com brinquedos específicos para este tipo de atividade como
baldinhos, pás, peneiras, entre outros. Todas concentradas e juntinhas.
Em high key, a quarta imagem mostra um cenário predominantemente natural, com
árvores, gramados, canteiros e caixotes cheios de plantas. Em primeiro plano, duas crianças
73 Também conhecido como escorregador em outras regiões no Brasil.
146
com aproximadamente 4 anos estão “trabalhando”, digo, brincando de trabalhar. Enquanto uma
observa, a outra junta com um ciscador, as folhas caídas no canteiro do pátio coberto da escola,
como se estivesse preocupado com a limpeza do lugar. Ao longe, à esquerda, duas crianças
maiores, brincam de bola.
Segundo Trois (2012) essas cenas envolvem cuidado e exploração do meio ambiente.
As crianças experimentam o mundo e se sentem parte dele, desse modo, “Ser sensível à infância
é não infantilizá-la, mas assumir uma atitude de confiança em seu poder de enfrentar a vida”
(p. 71). Esse enfrentamento capturado pela autora revela autonomia, subversão e criatividade
das crianças nas relações de protagonismos e alteridades estabelecidas durante a infância que
se constituem e são construídas em espaços escolares, domésticos e culturais,
[...] ao subir no escorregador mais alto, nas mãos que seguram os degraus para
conseguir atingir seu objetivo, nos ajustes lentos do corpo que se equilibra, na
posição das mãos que firmes enfrentam o desafio e buscam que a segurança se reestabeleça. Ou ainda quando os joelhos se dobram inventando um modo
outro de descer do escorregador, um modo que avalia com cautela as
exigências necessárias implicadas neste ato. [...] São crianças, são sujeitos que vivem suas vidas. Nesse sentido, a criança produz mudanças no sistema que
está inserida, altera rumos, indaga os pares, os adultos. É preciso sermos capazes de entender a criança e seu mundo a partir de seu ponto de vista, do
que fazem e como fazem (TROIS, 2012, p. 72).
Assim como demonstrou a recente pesquisa fotoetnográfica de Villas Boas (2016) 74,
um trabalho de cunho etnográfico intitulado “{Per[for(mar)]} Imagens das crianças no Nêgo
Fugido, Acupe/BA” desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de Brasília (UnB), apresenta uma fantástica narrativa fotoetnográfica que trata da
construção de si das crianças que participam da manifestação popular Nêgo Fugido em uma
pequena vila chamada Acupe, no distrito de Santo Amaro, localizado no Recôncavo Baiano.
Trata-se de um evento cultural em que adultos e crianças encenam a história de luta pela
libertação escrava durante todos os domingos do mês de julho. Villas Boas (2016) buscou
investigar como as crianças vivenciam suas infâncias localmente, como constroem suas
relações entre pares e intergeracionais e como performatizam essa manifestação cultural
formando a si mesmas nessa conjuntura.
A dissertação de Villas Boas (2016) mostra performatividades que são profundamente
74 QRcode 15: Villas Boas (2016).
147
enraizadas em construções sociais, onde as crianças, no ato de “{per[for(mar)]}”, “formam a si
mesmas através da performance e expressam essa formação de si, contínua e ciclicamente”
(p.191). A autora ressalta que a experiência da criança é culturalmente estabelecida no
cotidiano, e isso garante performatividades que são profundamente enraizadas em construções
sociais, o que a faz afirmar também, que, “a relação intergeracional garante que essas crianças
sejam atrizes chave na manutenção da cultura afro-brasileira” (p. 192).
Villas Boas (2016) identificou que as infâncias em Acupe se constituem através de um
número intenso de atividades que envolvem brincadeiras e responsabilidades. Quando não estão
na escola, as crianças passam maior parte do tempo pelas ruas em longas tardes de atividades
diversas que vão desde brincadeiras ao trabalho pesqueiro, onde, “[...] adultos e crianças se
lançam rio adentro para mariscar”, uma atividade que marca a cultura e a economia da região.
As crianças menores ajudam realizando algumas atividades como “[...] tirar água da canoa ou
segurar baldes e sacos. Tudo com muitas histórias e brincadeiras, risos e birras, a seguir os
passos de seus pais, avôs, tataravôs” (VILLAS BOAS, 2016, p. 28-30).
Desse modo, a autora chama atenção para o fato de que as crianças “acompanham
familiares e amigos na atividade econômica”, ao mesmo tempo em que também “realizam
práticas lúdicas, compartilham o lugar e se apropriam dele” (VILLAS BOAS, 2016, p. 27),
além disso, as crianças mais velhas passam a ter responsabilidades com os irmãos mais novos
e assumem papéis no cotidiano doméstico. Conforme descreve a autora:
[...] a maioria das crianças gostava da rua, e que muitas de suas brincadeiras
estavam associadas ao ambiente externo ao de suas casas, ainda que, em algumas situações, principalmente entre as meninas menores, nunca se
distanciassem muito delas. Algumas vezes elas estavam inseridas no mundo
adulto, acompanhando e ajudando os pais na pescaria e na mariscagem, contribuindo com a limpeza da casa ou do estabelecimento comercial da
família, cuidando dos irmãos mais novos, limpando os mariscos junto aos pais
e/ou avós nas calçadas. Em outros momentos, elas constituíam suas próprias realidades, conhecendo e apreendendo o mundo de um modo particular:
brincavam no atracadouro das canoas, nadavam no rio do Pavão, iam à praia de Itapema, brincavam com suas bonecas e de comidinhas de areia,
empinavam pipa, jogavam futebol e bolinhas de gude, brigavam na rua, etc.
(VILLAS BOAS, 2016, p. 111).
Trata-se de infâncias que emergem de profundos laços tradicionais de uma cultura
intergeracional, que, “constrói gente dotada de espírito de luta em defesa de si, de seus corpos
e de sua cultura” (VILLAS BOAS, 2016, p. 193). Assim, as imagens que selecionei para
compor a narrativa fotoetnográfica revelam quem são essas crianças e como elas vivem suas
infâncias. Desse modo, das 195 fotografias dessa dissertação, revivi 11 cenas que serão narradas
148
na sequência. Priorizei situações que dialogavam, diretamente, com os modos de vida das
crianças e seus protagonismos nas experiências de infância.
O primeiro conjunto de fotografias é formado por 3 imagens que dão foco à ação das
crianças em seus ofícios de “pescador" e de “rotina doméstica”. Em high key a primeira
fotografia mostra 2 crianças na faixa etária de 10 anos, sendo um menino e uma menina,
navegando numa jangada para “mariscar”. A cena, um tanto quanto poética, exibe uma extensa
paisagem, onde as águas do rio, as árvores, o mangue e o céu azul com nuvens brancas,
transmitem calmaria e beleza. E a jangada, abre caminho neste cenário, como se estivesse
“cortando” a cena ao meio. Nas palavras da autora,
Pai, filhos e noras partem para mariscar numa região que eles chamam de Alagados, uma parte do mangue mais distante da costa que quase sempre está
encoberta de água. A menina, neta, carrega um pote de plástico e uma colher.
Dentro do recipiente já há minúsculos siris tentando sobreviver à brincadeira de fazer comidinha. O menino, um pouco mais velho, não faz parte da família.
É um vizinho que costuma acompanhar o grupo na mariscagem. Ele tem medo de siri, por isso fica incumbido de tirar uma água da embarcação com a
concha- garrafa improvisada, feita de garrafa de plástico verde de água
sanitária, cuja alça facilita o manuseio. Ainda assim, ele tem que lidar com os pequenos crustáceos vivos que a menina joga nele, numa brincadeira sem
piedade: nem do siri, nem do menino (VILLAS BOAS, 2016, p.109-110).
A segunda fotografia mostra em high key uma cena do cotidiano das famílias de Acupe.
Trata-se de uma atividade rotineira que é vista em várias ruas da cidade. A fotografia é composta
por três pessoas, uma mulher aparentemente com idade acima de 40 anos e duas meninas com
idade acima de 10 anos. Elas estão sentadas na calçada de uma rua movimentada, em que
circulam alguns moradores. Com faquinhas nas mãos e bacias cheias de crustáceos, elas
“limpam” os pescados que serão comercializados. A terceira imagem mostra outra menina,
aparentemente com 12 anos, descendo uma ladeira situada em um estreito “beco” com uma
grande bacia nas mãos, cheia do frango temperado que, segundo a sequência das imagens, ela
havia “limpo” e temperado em momentos antes.
Em low key essas imagens mostram uma infância, particularmente, incomum, se
comparada às infâncias dos grandes centros urbanos. São crianças que desde cedo adquirem
comportamentos que exigem, além de esforços físicos, responsabilidades próprias do universo
adulto. Seus olhares, seus corpos e suas mãos em movimento, me fizeram refletir sobre os
limites da condição cultural em que essas infâncias se encontram. Ao mesmo tempo, pensei em
como essas mesmas crianças gostariam de viver suas infâncias, quais seus sonhos e “vontades
de felicidade”? Fico curiosa em saber o que elas próprias pensam quando ajudam seus pais na
149
subsistência da família ou quando preparam suas refeições. Será que se sentem crianças em
papéis de adultos ou adultos em corpos de crianças? Ou, até mesmo, será que não mudariam
nada em suas vidas por serem felizes assim.
Diante dessas provocações, cabe fazer um pequeno parêntese. Se, passo a discutir tais
práticas como diferença cultural (BHABHA, 2013, p. 69-76) e objeto de reflexão
epistemológica, preciso questioná-las radicalmente em seus fundamentos colonizadores de
autoridade dos adultos em relação à criança, contrapondo tais fundamentos à luz das políticas
de proteção à infância. Neste sentido, as relações entre trabalho e infância necessitam ser
investigadas para além de uma diferença cultural, mas como um problema social e político, que
de acordo com Bhabha (2013, p. 69, grifos do autor) trata-se de um “processo de significação
através do qual, afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam
a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade”,
A enunciação da diferença cultural problematiza a divisão binária de passado
e presente, tradição e modernidade, no nível da representação cultural e de sua interpelação legítima. Trata-se do problema de como, ao significar o presente,
algo vem a ser repetido, relocado e traduzido em nome da tradição, sob a aparência de um passado que não é necessariamente um signo fiel da memória
histórica, mas uma estratégia de representação da autoridade em termos do
artifício do arcaico. Essa iteração nega nossa percepção dos efeitos homogeneizadores dos símbolos e ícone culturais, ao questionar nossa
percepção da autoridade da síntese cultural em geral (BHABHA, 2013, p. 71).
No entanto, por hora, não entrarei neste debate crítico e complexo, dada as limitações e
delimitações do objeto de investigação desta tese. Mas, como proposição, para futuras
pesquisas, deixo as seguintes questões: até que ponto essas tradições, respeitam as
particularidades do ser criança? Que concepções de infância esses modos de vida legitimam?
Como assegurar o respeito à integralidade da infância em um contexto de fortes tradições e
diferenças culturais que atribuem às práticas de trabalho infantil à “suposta” identidade
cultural? Essas e outras questões precisam ser tensionadas e refletidas nas Ciências Humanas e
Sociais para além de uma visão magicizada.
À criança, sujeito de direito, entendida nos discursos oficiais das Nações Unidas e seus
documentos internacionais - Declaração dos Direitos da Criança (1924); Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Crianças (UNCRC, 1989), bem como, em documentos nacionais
- Constituição Brasileira (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1992), é resguardada
o desenvolvimento pleno; a integridade física, psíquica e moral; e a efetivação dos direitos
facultados à infância no que tange à saúde, educação, cultura, liberdade, convivência familiar e
150
comunitária, entre outros aspectos relativos à vida. No entanto, tais iniciativas políticas ainda
enfrentam sérias situações na realidade da criança brasileira, principalmente, em se tratando de
questões relacionadas ao trabalho infantil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD, 2015) em 2014 cerca de 70 (setenta) mil crianças de 5 a 9 anos foram
submetidas a algum tipo de trabalho infantil, passando para 79 mil em 2015, o que equivale a
um aumento de 12,3%.
Atualmente 187 países, sob a direção da Organização Internacional do Trabalho (OIT)75
estão engajados no combate a este problema através da implementação de políticas
internacionais - Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008)76; Convenção da Idade
Mínima para Admissão no Trabalho (nº 138/1973)77; Convenção das Piores Formas de
Trabalho Infantil (nº 182/1999), e políticas nacionais - Plano Nacional de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2011)78, além das
iniciativas do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (FNPETI,
2015)79.
Vale ressaltar que, a OIT considera trabalho infantil o trabalho realizado por crianças e
adolescentes abaixo da idade mínima de admissão ao emprego/trabalho estabelecida no país de
origem, desse modo, no Brasil, considera-se trabalho infantil aquele realizado por crianças ou
adolescentes com idade inferior a 16 (dezesseis) anos de acordo com o Art. 7º, XXXIII da
Constituição Federal (1988), que corresponde à “[...] atividades econômicas e/ou atividades de
75 QRcode 16: Organização Internacional do Trabalho no Brasil (on-line).
76 QRcode 17: Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008).
77 QRcode 18: Convenção da Idade Mínima para Admissão no Trabalho (nº 138/1973).
78 QRcode 19: Plano Nacional de Prevenção e Erradicação Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente
Trabalhador (nº 138/1973).
79 QRcode 20: Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (FNPETI, 2015).
151
sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou
adolescentes [...].” (OIT-BRASIL, 2017, on-line). Portanto, o trabalho doméstico e o trabalho
pesqueiro estão inseridos na lista TIP80, e precisam ser discutidos sob tal perspectiva, pois, sob
uma suposta “diferença cultural” de tradição histórica e familiar, pode estar escondido formas
de violência e opressão contra a criança.81
Apesar das concepções críticas que sustento contra o trabalho infantil, compreendo que
o olhar de Villas Boas (2016) tinha outras pretensões - a de revelar o protagonismo da criança
ao se relacionar com a cotidianidade do lugar, como em suas palavras:
Percebi o quanto as imagens revelavam que as crianças estavam mostrando
estar integradas em um grupo no qual fazem parte, ou no qual gostariam de participar, compartilhando elementos que acreditam caracterizá-las enquanto
coletivo, seja geracional, racial, local e de gênero (VILLAS BOAS, 2016, p. 180).
Portanto, partindo desta perspectiva, ao buscar os elementos em low key subexpostos
nas películas magicizadas deste mosaico, tentei compreender essas atividades a partir das
rotinas próprias da cultura local, como parte da tradição histórica e geracional deste povo.
Assim, o memento partiu de reminiscências relacionadas a papéis culturais assumidos pelos
atores sociais identificados nos relatos da autora quando descrevia cenas do cotidiano, como os
momentos em que famílias ensinavam as crianças rotinas que envolviam a profissão que
desempenhavam, quando ensinavam as tarefas domésticas, quando solicitavam o auxílio dos
irmãos mais velhos no cuidado com os menores, quando se preocupam em manter tradições
religiosas que ultrapassam gerações familiares, o cuidar da alimentação, do marisco, das
performatividades do Nêgo Fugido, entre outras nuances específicas de cada núcleo familiar
narrado.
O segundo conjunto de fotografias é composto por 4 cenas que remetem ao brincar em
Acupe. A liberdade e independência das infâncias vividas em Acupe também são visíveis nas
fotografias que revelam crianças brincando nas ruas da pequena cidade, “pulando e cantando
musiquinhas em seus elásticos”, “jogando futebol com bolas de borracha ou feitas saco
plástico”, “assistindo outras crianças brincarem ou jogarem joguinhos virtuais em seus
80 Cf. Conferir Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (LISTA TIP). 81 QRcode 21: Estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil.
152
aparelhos”, “subindo nos muros e lajes para arrancar pipas e plantas emaranhadas, entrando e
saindo de bares, casas, mercados e lan houses” (VILLAS BOAS, 2016, p. 61). Ou
simplesmente, andando pelas ruas em busca de aventuras, como na fotografia de uma menina
de 4 anos que caminha com um tipo “improvisado” de carrinho, feito com um velocípede 82
(quebrado) e uma corda que foi amarrada para puxá-lo. A menina descalça, com os cabelos
amarrados para o alto, encontra um gato na rua e logo, o coloca em seus braços, em seguida,
tranquilamente, continua sua caminhada. Para a autora, cenas como estas, demonstram a
capacidade criativa das crianças, ao exercerem pequenos papéis sociais com autonomia e
liberdade:
Em diferentes contextos, as crianças de Acupe assumem protagonismos e realizam atividades de várias ordens com significativa autonomia. Desde as
experiências de aprendizagem até as brincadeiras e relações com outros
espaços, seres e coisas, elas se expressam com certa liberdade e alguma independência (VILLAS BOAS, 2016, p. 114).
Siqueira (2011, p. 171) ao tratar sobre o protagonismo e as subjetividades da criança
afirma que “[...] nenhuma nomeação de infância e de criança pode se constituir como produto
psicológico, mas como processo interno que envolve as manifestações da vida objetiva e
subjetiva”. Neste sentido, a cultura da infância é construída no pleno exercício do protagonismo
da criança que é manifestado na subjetividade, autonomia e reprodução interpretativa de sua
cultura.
O que determina, então, a infância e a criança é a relação entre indivíduo-sociedade, mediada pela objetividade das condições sociais, históricas e
concretas. Nesse campo, a subjetividade se faz pelo exercício da razão
crítica, pela autonomia do pensamento, pela capacidade de estranhamento-diferenciação e pela tensão dialética entre passado-presente, todo-parte,
universal-singular (SIQUEIRA, 2011, p. 171).
As contribuições significativas do sociólogo norte-americano William A. Corsaro83
ajudam a entender as formas de socialização que as crianças estabelecem na sociedade em
decorrência de sua ação nas relações institucionais grupais, entre crianças e seus pares e entre
crianças e geração adulta, para tanto, o conceito de reprodução interpretativa compreende a
82 Também conhecido como “triciclo” em outras regiões no Brasil. 83 Bacharel em Sociologia pela Universidade de Indiana (1970); Doutor pela Universidade da Carolina do
Norte (1974). Seus principais estudos e pesquisas abordam a Sociologia da Infância, as culturas de pares,
as relações entre adultos e crianças e entre crianças, os métodos etnográficos e o processo de socialização
na infância (MÜLLER, 2007). Cf. Corsaro, 1997, 2002.
153
infância a partir da ideia de criança como produtora de cultura, não numa perspectiva de
imitação do adulto, mas, de recriação, reelaboração e modificação de suas próprias
representações.
Nesta perspectiva, Corsaro (1997) entende que o processo de socialização das crianças
na construção das culturas da infância se dá mais como um processo reprodutivo do que como
um processo linear, tendo em vista que, ao internalizarem individualmente a cultura adulta de
maneira interpretativa e criativa, passam também, a fazer parte dela. Portanto, as crianças
apropriam-se ativamente das informações do mundo adulto para criarem suas próprias formas
de viver e de se relacionar.
De acordo com Corsaro (1997, p. 95) o termo cultura de pares significa “um conjunto
estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e
compartilham na interação com seus pares”, sendo a brincadeira um espaço primordial para a
formação das culturas infantis e para o desenvolvimento da criança em sua integralidade.
Segundo Corsaro (1997) as crianças usam as brincadeiras para expressar suas opiniões
e vontades, se apropriam de novos conhecimentos necessários à vida em sociedade e nas
relações que estabelecem na cultura de pares e com os adultos, produzem suas culturas.
Portanto, através da brincadeira, as crianças se apropriam das informações dos mundos adultos
de maneira interpretativa, não por simples imitação, mas, pela criatividade com que se relaciona
com a informação, desse modo, “Tal apropriação é criativa na medida em que, tanto expande a
cultura de pares (transforma a informação do mundo adulto de acordo com as preocupações do
mundo dos pares), como simultaneamente, contribui para a reprodução da cultura adulta”. A
esse processo de apropriação criativa, Corsaro (1997) deu o nome de reprodução interpretativa,
tendo como argumento a Teoria da Estruturação de Giddens (1984, p. 67) que consiste no
conjunto de regras e recursos gerados de modo recursivo na reprodução social.
Para Giddens as estruturas auxiliam na construção e regulação das atividades a partir de
elementos normativos e códigos de significação organizados no fluxo contínuo da conduta
humana, nesta direção, “analisar a estruturação de sistemas sociais significa estudar os modos
como tais sistemas, fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localizados que se
apoiam em regras e recursos na diversidade de contextos de ação, são produzidos e
reproduzidos em interação” (GIDDENS, 1984, p. 30).
A festa popular do Nêgo Fugido 84 é um exemplo de reprodução interpretativa em que
as crianças se apropriam das tradições culturais étnico-raciais e das histórias de escravidão e
84 Cf. Villas Boas (2016, p. 73, et seq.).
154
sofrimento de seus antepassados. O terceiro mosaico mostra a performance das crianças em
cenas magicizadas que emocionam e revelam a coragem de um povo que lutou e ainda luta por
sua liberdade. O Nêgo Fugido manifesta-se como expressão da cultura popular que,
[...] re-presentifica (o que não quer dizer representar, mas apresentar de novo,
no sentido de comportamento restaurado) identidades negras na luta pela autoafirmação do povo negro em uma sociedade racializada que expressa a
desigualdade em suas estruturas, contra o risco de ser subjugado, seja cultural,
social, política e economicamente, tanto quanto psicologicamente, pela supremacia branca e pela ideologia de mestiçagem embranquecida (VILLAS
BOAS, 2016, p. 104, grifo da autora).
Em high key, o terceiro conjunto de imagens mostra, as crianças sendo preparadas para
participar da performance do Nêgo Fugido, elas se arrumam entre si e com a ajuda dos adultos,
pintam seus rostos com “óleo e carvão, boca ensanguentada de anilina vermelho sangue” (p.
75) para só assim, adentrar em suas personagens. Em outras duas fotografias, “Calor, cheiro de
suor e carvão. A efervescência é potencializada pelos sons dos tambores. As crianças começam
os movimentos, as falas de cada performance” (p. 44), as crianças em roda, cantam, dançam e
iniciam as encenações que intercalam “pedidos de clemência aos caçadores, pedidos de ajuda
aos deuses, golpes de maculelê, capoeira e evocam o trabalho nas lavouras, na pesca e outras
situações cotidianas vividas pelos escravos e guardadas na memória local” (p. 51).
As cenas revelam em low key a potencialidade das crianças em “{per[for(mar)]}” os
personagens, introjetam medos, dores, sofrimentos, sonhos e esperança. Em seus olhos
expressões que variam da profunda tristeza à exaltação emocional que embala as batidas do
tambor com o pulsar do coração. Dá para sentir a vibração dos seus corpos, as marcas históricas
de violência, ameaça e medo que envolve as memórias do Nêgo Fugido. Um misto de prisão e
liberdade toma conta do lugar, caçadores apontam suas espingardas ameaçadoras e caçam as
“nêgas” 85 de forma impiedosa.
A manifestação aponta para a direção de um fenômeno ritualístico de
preparação para uma vida de adversidades enquanto sociedade pós-colonial cujas máculas configuram-se concretamente como constrangimentos sociais à
existência plena dos grupos que foram e continuam no lugar de oprimidos e de minorias. Conjecturo que os membros elaboram a si mesmos de modo
particular através da manifestação. Mesmo não sendo uma iniciação
tradicional, engessada, o Nêgo Fugido apresenta uma forma da comunidade reinventar as identidades de seus membros, atualizando-as (VILLAS BOAS,
2016, p. 114).
85 Nêgas é o nome dado à personagem do escravo negro fujão que é aprisionado, sofre e agoniza após sua
captura pelo caçador, a mando do capitão do mato (VILLAS BOAS, 2016, p. 44).
155
Villas Boas (2016) conclui que as crianças em Acupe contribuem com a organização do
dia-a-dia, participam do cotidiano dentro e fora de casa de maneira ativa, dessa forma, definem
seus protagonismos nas experiências que compartilham. As brincadeiras estão por todo lado,
seja na rua, em casa ou nas manifestações do Nêgo Fugido, desde muito pequenas, as crianças
dão sentidos às suas culturas por meio das relações de alteridade que estabelecem com seus
pares e com os adultos, no entanto,
Esses sentidos tem uma particularidade, e não se confundem nem podem ser
reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural frente ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida e também
relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural.
Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos (COHN, 2005, p. 35).
Na perspectiva da Sociologia da Infância, Corsaro (2002, p. 131) afirma que as crianças
se apropriam de forma ativa das informações do mundo adulto e assim, criam “rotinas
interativas estáveis e coerentes na cultura de pares”. As brincadeiras são o palco dessas
apropriações. O autor contextualiza o brincar como rotina cultural a partir de três componentes:
o enquadre – princípio de organização que abrange o reconhecimento dos elementos que
constituem a brincadeira; a contextualização – os elementos imaginativos que se estruturam na
comunicação verbal e não-verbal da brincadeira; e o embelezamento - como a estética do
brincar, forma criativa de apropriação e empoderamento de sub-rotinas que prolongam ou
ressaltam aspectos importantes da brincadeira, ou seja, as crianças produzem sentidos através
de repetições e/ou formas criativas no jogo de representação de papéis. Assim, as crianças de
Acupe, se apropriam das rotinas sociais e familiares, internalizam e reproduzem suas culturas
ressignificando e dando novos sentidos às suas brincadeiras.
Para Corsaro (2009) este movimento socializador na infância compreende uma
reprodução interpretativa da realidade, na qual a criança ege de maneira ativa na sociedade,
considerando o fato de que “[...] as crianças criam e participam de suas culturas de pares
singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos
seus interesses próprios enquanto crianças” (CORSARO, 2009a, p. 31). Desse modo, não é uma
questão de simples imitação, mas, sobretudo de apropriação criativa das informações do
universo adulto para produzir suas culturas próprias.
Outra pesquisa fotoetnográfica que está sendo realizada com foco nas culturas infantis
foi apresentada no XI Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul (ANPEd SUL) que
156
ocorreu em julho de 2016 na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Trata-se de um recorte
de dissertação em andamento, empreendida por Aprato (2016) 86, no curso de mestrado em
Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). O artigo “Crianças e Objetos:
narrativas fotoetnográficas sobre infâncias contemporâneas” apresenta de forma sucinta, três
narrativas visuais produzidas junto a crianças que frequentam o 1º, 2º e 3º ano do Ensino
Fundamental da Escola Estadual Fortaleza em Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul. Os
objetivos da pesquisa caminharam em direção à construção de narrativas fotoetnográficas sobre
a relação contemporânea entre crianças e objetos relacionada a espaços intra e extraescolares,
fartamente explorados nas representações imagéticas sobre a infância através dos tempos,
dando ênfase às questões do consumo na produção das infâncias pós-modernas. Como
fundamento, Aprato (2016) sumariza as recomendações de Achutti (2004) acerca da
composição de uma Fotoetnografia em 10 pontos:
[...] domínio da técnica fotográfica; consideração da fotografia para além de
um simples instrumento técnico de trabalho; preservação das condições usuais de iluminação do ambiente; preservação de um ritmo sem atropelos; retorno
frequente ao campo para conhecer melhor as pessoas e o ambiente; familiaridade e proximidade com o campo da pesquisa; adoção de um caderno
de campo para anotações sobre as singularidades, detalhes, curiosidades;
opção por uma narrativa composta de uma série de fotos relacionadas entre si, para serem olhadas calmamente e proporcionar uma leitura pessoal e
subjetiva; ausência de legendas abaixo das fotografias, assim como de textos
teóricos entre as imagens (APRATO, 2016, p. 7-8).
A pesquisa de Aprato revela que as questões do consumo na infância repercutem de
forma incisiva na relação das crianças com os objetos que as conectam com seu tempo, gerando
consequências nas relações interpessoais e sociais que estabelecem entre si e com o outro no
contexto escolar e doméstico. Segundo a autora, “o que consumimos diz muito sobre quem
somos”, neste sentido, o consumo é traço cultural contemporâneo, que invade o espaço escolar
e as mais variadas instâncias da vida em sociedade, nessa perspectiva, “comportamentos de
consumo e condutas consumistas são vistos quase em sua totalidade como resultante de
interpelações midiáticas que capturam e inebriam sujeitos, em alguns casos, acabando também
por consumi-los.” (APRATO, 2016, p.10-11).
86 QRcode 22: Aprato (2016).
157
Das 23 imagens dispostas no trabalho de Aprato (2016), selecionei 6 (seis) fotografias
para composição da narrativa fotoetnográfica. A escolha das fotografias teve relação direta com
a discussão sobre o brincar, priorizando o contexto da infância, sobretudo na Educação Infantil.
Deste modo, o primeiro conjunto de fotografias, apresenta em high key, 6 crianças de
aproximadamente 7 a 8 anos posicionadas em cima de camas elásticas individuais, fotografadas
em movimento (pulando) durante uma aula de Educação Física87. As crianças não usam
uniforme escolar e estão vestidas com calça e camisetas, duas delas também usam casacos com
estampas xadrez. As crianças demonstram entusiasmo através de sorrisos e olhares em direção
a quem faz o registro. A falta de informação acerca do contexto de produção da imagem limita
a descrição, porém, em se tratando dos pontos superexpostos da imagem, cabe fazer uma
observação. Um dos meninos interage com seu celular ao mesmo tempo em que pula na cama-
elástica, essa cena chama atenção, principalmente, em dois pontos: primeiro para o fato de que
a criança executa as duas ações ao mesmo tempo – cumprir a atividade solicitada pelo professor
e usar o celular (aparentemente, a criança está jogando); e a segunda, para o fato da criança
estar utilizando este aparelho durante uma atividade pedagógica (na escola).
Para problematizar em low key estas questões, abordo a concepção de ciberinfância
estudada por Dornelles (2010) que trata da infância globalizada contemporânea afeta às novas
tecnologias. As crianças na atualidade fazem parte de uma geração que nasceu em contato com
diferentes recursos tecnológicos e descobriu o mundo por meio de diversas mídias,
consequentemente, adquirem habilidades precocemente que nos surpreendem constantemente.
E são estas crianças que, segundo Momo (2007, n.p.) 88 tem desestabilizado as pedagogias
tradicionais, pois elas, as crianças, “[...] causam inquietações, minam o pensamento binário, porque
não é mais possível classificá-las, cartografá-las, enquadrá-las nos lugares tradicionalmente designados
para infantis e para escolares”.
Assim, as crianças têm subvertido as normas tradicionais de ensino bancário e apontado
para a necessidade de uma nova pedagogia que a entenda como autora e construtora de
conhecimento e cultura, que ofereça formas outras de comunicação, interação e socialização,
que potencialize a criatividade infantil através das múltiplas linguagens escritas e imagéticas
provenientes dos artefatos visuais, culturais e midiáticos dispostos na Cultura Visual
contemporânea, “é preciso compreender o que essa nova geração de criança traz para as escolas
87 A composição desta imagem dispõe de duas fotografias lado-a-lado, do lado esquerdo duas meninas e
dois meninos; do lado direito uma menina e um menino permanecem na cena e surgem mais duas meninas.
88 Trecho retirado do resumo (MOMO, 2007).
158
e como os professores podem aliar-se as potencialidades das redes e dos softwares sociais”
(DORNELLES, 2010, p. 10).
O segundo conjunto de imagens, apresenta 4 fotografias registradas durante um
espetáculo teatral realizado em dezembro de 2015, no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora
do Rosário em Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul. De acordo com Aprato (2016)
trata-se do “show Disney Frozen89, uma adaptação dos personagens Anna, Elsa (Frozen),
Kristoff e Olaf, da Walt Disney Animation Studios” (2016, p. 14). Em high key a primeira
fotografia, mostra uma encenação em que aparecem 3 personagens – Elsa (Frozen), Kristoff
(Homen rude, vendedor de gelo) e Olaf (um boneco de neve), e várias crianças de pé assistindo
a cena, atenciosamente. O registro foi feito de frente para o cenário, deste modo, todas as
crianças estão de costas para a fotógrafa (pesquisadora). A segunda imagem mostra uma criança
que olha fixamente na direção do espetáculo, ela aparenta ter entre 3 ou 4 anos e está vestida
com a roupa da personagem Frozen. Na terceira fotografia, uma menina de aproximadamente
2 anos segura um balão inflável com a estampa da personagem Frozen que acabara de
“comprar” numa lojinha improvisada para o evento. E a quarta fotografia mostra em primeiro
plano, uma criança apanhando “flocos de neve”, feitos de isopor, que estão espalhados pelo
chão. Ao lado direito da criança, alguns adultos de pé, e mais acima, outras crianças também
“aparecem” apanhando a “neve” 90.
Apesar das poucas informações acerca dessas imagens, algumas reflexões em low key
são possíveis. Os ícones imagéticos dos personagens animados da Disney e sua influência
mercantil na indústria cultural, principalmente, em relação às implicações dos significados
culturais para a formação do imaginário infantil. Ao projetar modelos de personagens animados,
as crianças podem legitimar culturas globais da “memória popular que aparece sob o disfarce
de um anseio por inocência infantil e aventura saudável” que se organizam através de apelos
afetivos e ideológicos de interpelação e de consumo (GIROUX, 2013b, p. 134). Esta discussão
tem sido bastante efusiva nas teorias críticas (ADORNO; HORKHEIMER, 1985; GIROUX
2013; KELLNER, 2001), porém, longe de ser esgotada, é fundamental para se pensar as culturas
infantis contemporâneas, sobretudo, no que diz respeito ao controle ideológico hegemônico e
mercadológico que a grande indústria Disney exerce em sua totalidade nas construções
conceptuais de infância, sob as quais se esconde “o poder de um conglomerado multinacional
89 Maiores detalhes sobre o filme Frozen na página 378. 90 Devido ao enquadramento da fotografia, das crianças posicionadas no canto superior da imagem só é
possível visualizar seus membros inferiores (pernas) e superiores (braços), do mesmo modo, os adultos
posicionados ao lado direito da criança ao centro, só aparecem seus membros inferiores (pernas).
159
que tem pouco respeito pela liberdade de expressão e pela crítica pública” (GIROUX, 2013b,
p. 137). Portanto, é preciso analisar criticamente as representações da Disney nos contextos
discursivos sobre infância na atualidade.
O “Maravilhoso mundo da Disney” é mais que uma logomarca. Ele demonstra
como o terreno do popular tornou-se central ao processo de mercantilização da memória e de reescrita de narrativas de identidade nacional e expansão
global. O poder e o alcance da Disney na cultura popular combinam uma
desinteressada ludicidade com a fantástica possibilidade de fazer com que os sonhos da infância tornem-se verdadeiros, mas isso ocorre apenas através de
papéis escritos de gênero, de um nacionalismo questionável e de uma noção
de escolha que está ligada à proliferação de mercadorias (GIROUX, 2013b, p. 136, grifo do autor).
Giroux (2013) afirma que por trás do apelo inocente e nostálgico das produções da
Disney como o “lugar mais feliz do globo”, existe o poder institucional e ideológico de um
conglomerado multinacional que exerce uma enorme influência social e política que repercute
diretamente na questão do poder cultural e da autoridade de seus discursos para a construção
de uma identidade nacional e ideológica. Como resultado, a noção de “pedagogia da inocência”
que o autor atribui às das narrativas históricas, das representações e práticas culturais
particulares que a Disney reinventa como instrumentos pedagógicos e políticos para assegurar
seus próprios interesses mercadológicos, sua autoridade e poder (GIROUX, 2013b, p. 134). E
propõe como processo de resistência e ativismo político, a “pedagogia crítica” capaz de
construir uma visão contra hegemônica ao poder de persuasão dos meios mercadológicos e
midiáticos, tendo em vista que,
A pedagogia representa um modo de produção cultural implicado na forma como o poder e o significado são utilizados na construção e na organização de
conhecimento, desejos, valores. A pedagogia, neste sentido, não está reduzida ao domínio de habilidades ou técnicas. Em vez disso, ela é definida como uma
prática cultural que deve ser responsabilizada ética e politicamente pelas
estórias que produz, pelas asserções que faz sobre as memórias sociais e pelas imagens do futuro que considera legítimas (GIROUX, 2013a, p. 97).
Kellner (2013, p. 108) ao tratar das questões relacionadas à pedagogia crítica destaca
que a publicidade tem papel importante no contexto da educação, “A própria publicidade é uma
pedagogia que ensina os indivíduos o que eles precisam e devem desejar, pensar e fazer para
serem felizes, bem-sucedidos e genuinamente americanos [...]”, daí a ideia psicologizante da
pedagogia da inocência nas mensagens e modelos sociais dos personagens da Disney que
através de apelos emocionais, ditam padrões de consumo e de comportamento a partir uma
160
ideologia dominante que, segundo Giroux (2013b, p. 136), incansavelmente, ressalta um
modelo de sociedade branca, de classe média e heterossexual, assim, “A aparência de aventura
feliz e inocência infantil, embora atraente, encobre, neste caso, um universo cultural
amplamente conservador em seus valores, colonial em sua produção de diferenças raciais e
classe média em sua descrição dos valores de família.”.
Adorno e Horkheimer (1985, p. 128), um dos pioneiros na discussão sobre o poder
ideológico da indústria cultural, afirmam que o controle sobre os consumidores é mediado pela
diversão e pela identificação com a necessidade produzida, as mensagens não exigem esforço
intelectual, ao sujeito é dada apenas a condição de espectador e potencial consumidor.
A pedagogia crítica vem desconstruir essas práticas hegemônicas a partir de uma visão
política e reflexiva que visa criar condições alternativas que permitam reconhecer nos discursos
ideológicos da Disney, formas de dominação, controle e manipulação cultural que objetivam,
quase que exclusivamente, formar consumidores passivos e fiéis. Retomarei este tema no ensaio
2 quando discuto a “nova” indústria cultural a partir das transformações tecnológicas do século
XX, sobretudo no diz respeito à Internet.
Retomando a Fotoetnografia no contexto das pesquisas científicas, destaco agora duas
pesquisas realizadas em programas de Pós-Graduação em Educação que investigaram mais
especificamente a cultura indígena como tradição e saberes culturais, porém, não abordaram
diretamente as questões relacionadas à infância.
O trabalho de dissertação de Menezes (2016) intitulado “Cultura Estética Indígena
Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da pintura corporal Parkatêjê”91 desenvolvido
junto ao Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade da Amazônia,
vinculado à Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), teve o objetivo de
apontar as dimensões das fronteiras culturais entre cultura indígena e cultura não indígena que
se entrelaçam na tradição da pintura corporal Parkatêjê, ressaltando as narrativas que definiram
por muito tempo e ainda continuam à influenciar a imagem estereotipada dos “índios do Brasil”.
Para tanto, a autora mergulha no universo cultural dos “Gaviões Parketêjê” para conhecer os
costumes, crenças, tradições familiares que estão estampadas nas pinturas corporais que
atravessam gerações. As imagens presentes no estudo revelam cenas do cotidiano social, das
91 QRcode 23: Menezes (2016).
161
paisagens naturais, das expressões estéticas da pintura corporal e suas representações culturais
e ideológicas. A autora parte da premissa de que,
Se a beleza remete ao entendimento que brota do uso da sensibilidade e
racionalidade ao mesmo tempo, o corpo humano é o veículo propulsor do belo,
pois essa relação se afirma porque dispomos de sentimentos, emoções, sensações, percepções e pensamentos que se apresentam por meio dos
sentidos [...] Nessa perspectiva, percebe-se que a arte corporal Parkatêjê
apresenta imagens visuais que vinculam a sabedoria desse povo frente ao contexto físico, cósmico, material e imaterial das territoriedades que os
rodeiam, tanto geográfica quanto cultural. É nessa dimensão que os Parkatêjê definem os elementos de suas pinturas corporais, as técnicas, os materiais
utilizados e os saberes estabelecidos (MENEZES, 2016, p. 15).
De acordo com Menezes (2016, p. 131) a pintura corporal faz parte de uma encenação
estética, filosófica, social e histórica à medida que se concretiza a partir de rituais que
entrelaçam cultura e educação, pois o grafismo e a estética corporal “[...] exercita, educa e
constrói os valores culturais que conduzem às identidades culturais, coletivas e individuais dos
sujeitos que compõem essa forma de organização social [...]”, isso implica em ver a arte
corporal Parkatêjê como práticas sociais que conjugam as tradições culturais desse grupo.
Em termos de fotografia, o trabalho de Menezes apresenta em seu corpus apenas 43
imagens, destas, só foi possível destacar 4 fotografias, dada a quantidade ínfima de imagens
relacionadas às crianças. Todavia, as imagens destacadas revelaram percepções, emoções e
reflexões acerca da essência infantil, sua simplicidade, singularidade, subjetividade e
expressividade. As imagens fazem emergir reminiscências sobre como as crianças exercem seu
protagonismo na liberdade de viver suas vidas na floresta, a ‘floresta’ que encanta o imaginário
infantil através de tantos contos-de-fadas.
A primeira imagem selecionada desvela, justamente, essa infância que é feliz e livre,
que vive intensamente suas emoções. Duas crianças aproximadamente de 8 anos, mergulhadas
nas águas límpidas do rio, pousam para a pesquisadora com enormes sorrisos que envolvem
toda sua corporeidade. Em low key, demonstram alegria, diversão, cumplicidade. Tocam a
nossa alma com vontade de liberdade através da imagem de uma infância sem pressa e sem
cobranças, que se contenta apenas com a natureza e as aventuras que ela pode oferecer.
São olhares que me interpelam com tamanha beleza, essa beleza que busco encontrar,
enquanto pesquisadora e educadora de infância. A beleza que se revela na criatividade, na
imaginação, no faz-de-conta, no brincar infantil, a beleza que produz conhecimento e que se
faz e se refaz na cultura da criança e na alteridade da infância. Junto à imagem, Menezes (2016)
convoca Nietzsche para explicitar essa ‘tal’ beleza:
162
Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas
coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo
acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!
(MENEZES, 2016, p. 18).
A segunda fotografia em high key, apresenta 3 meninas indígenas sentadas, uma ao lado
da outra, em um objeto que parece um pneu. A cena é realizada junto à natureza exibida em
verde exuberante. Duas crianças demontram em seus olhares certa timidez e uma delas, a maior,
tem seu corpo pintado e olha, desenvolta, diretamente para a fotógrafa. As três vestem roupas
cheias de detalhes cor-de-rosa, o que remete à represetação de gênero e a influência pós-
colonial, assim, a autora chama atenção para o fato de que a infância dos Parkatêjê se constitui
em construções culturais pós-coloniais que se dão no entre-lugar da cultura do urbano com a
floresta.
O pirulito na mão da menina da esquerda, o vestuário não indígena que se
interpela com o indígena que neste caso é a pintura corporal, a vergonha em falar com estranhos nos confirma que essas crianças nascem e se criam entre
as ambivalências do passado com o presente. A maior parte das brincadeiras
das crianças da aldeia, ainda se conserva na liberdade da vida na floresta, os brinquedos industrializados não dominam o imaginário infantil, e assim, a
pintura corporal é sempre uma grande e prazerosa experiência estética que
instiga o imaginário infantil porque é um objeto estético zoomórfico (MENEZES, 2016, p. 113-114).
Desse modo, Menezes (2016, p. 139) destaca que a pintura corporal é um processo de
hibridismo cultural, “[...] de construção e desconstrução identitária, que está na dependência do
deslocamento das fronteiras culturais [...]”, no entanto, sua tradição é uma forma de resistência,
de pertencimento e valorização da cultura Parkatejê. O que pode ser observado na terceira
imagem fotográfica que apresenta em high key o momento de criação da experiência estética
do trabalho da pintora corporal Parkatêjê, chamada Kwyiapa. Segundo Meneszes (2016) nesta
imagem, a pintora Kwyiapa grafita o corpo da filha, que será posteriormente, pintado. A cena
se passa em sua casa, sentada numa cadeira desenha, cuidadosamente, os traços na altura da
cintura de sua filha que está com os braços levantados e apoiados na cabeça. A criança aparenta
ter 6 ou 7 anos, seu olhar compenetrado demonstra a seriedade com que a tradição da pintura
corporal é mantida e renovada na cultura.
A quarta fotografia registra 2 crianças de, aproximadamente, 10 anos, uma pinta o corpo
163
da outra, a que pinta está agachada com a mão na perna da que está sendo pintada, olha para a
pesquisadora e sorri para a fotografia. A outra está de costas e mantém a postura ereta. Segundo
Menezes (2016), na tradição Parkatêjê, as mães, avós, tias ou pintoras, ensinam às meninas a
arte da pintura corporal ainda quando são crianças. Vale ressaltar que, as crianças dessa imagem
vivem na aldeia, mas não são biologicamente indígenas, isso prova que a etnicidade dos
Parkatêjê não se resume à questão genética, mas à prática e ao respeito dos valores culturais
dos Parkatêjê, assim elas [as meninas da fotografia] são consideradas como membros do grupo.
Menezes (2016) conclui que a pintura corporal compõe as dimensões estética, filosófica,
social e histórica da cultura, a medida que envolve rituais do grafismo e da estética corporal,
tais dimensões estão diretamente relacionadas com a educação dos Parkatêjê, pois, segundo a
autora, a pintura corporal exercita, educa e constrói valores culturais e identidades sociais em
diálogo com a estética e a arte.
Nesta mesma vertente empírica, a dissertação de Sá (2014) intitulada “Tentehar e
Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral” teve o objetivo de analisar como ocorre o diálogo
intercultural entre saberes e práticas culturais Tentehar e os saberes escolares (técnicos/
científicos) na escola da aldeia Juçara. A pesquisa apresenta um acervo fotográfico
diversificado que revela cenas do cotidiano da aldeia, seus costumes e tradições que estão
presentes nas práticas socioeducativas que compõem o núcleo diversificado do currículo da
escola indígena Santarena Kapi. De acordo com os achados da pesquisa, apesar da escola ter
sido criada como um espaço de fortalecimento da cultura local onde as disciplinas são
trabalhadas com o objetivo de contribuir para o fortalecimento dos saberes culturais locais e
valorização da língua Tentehar, ainda persistem práticas descontextualizadas e colonizadoras.
Nas palavras de Sá (2014):
[...] a prática educativa da escola da aldeia Juçaral, ao invés de promover o
fortalecimento das práticas socioculturais locais colabora mais no sentido de enfraquecê-las, porque o saber disciplinar e livresco do modelo escolar
tradicional, a base do currículo com sete disciplinas, permanece a ser ensinado
na escola, com raríssimas exceções com o saber local (SÁ, 2014, p. 206).
Desse modo, a autora ressalta a necessidade de pensar a escola como espaço de
valorização e fortalecimento dos saberes da vida dos diferentes universos culturais indígenas,
rompendo com a uma educação bancária, formal, rígida, fechada como a que constatou através
de sua pesquisa, onde crianças Tentehar são alfabetizadas em português e os professores dos
demais componentes do núcleo comum, em sua maioria não-indígenas, desenvolvem uma
prática de ensino tradicional, também em português, que mantém uma concepção convencional
164
que minimiza os saberes e práticas culturais locais.
Das 67 imagens, selecionei apenas 3 que apresentavam referências às culturas infantis.
A primeira fotografia revela uma infância que reproduz um modelo de comportamento adulto.
Ela com aproximadamente 9 anos, caminha numa estradinha de barro e carrega uma pequena
panela na cabeça. Em low key seu sorriso discreto mostra uma face da infância que desde cedo
exerce papéis e responsabilidades sociais que extrapolam o limite das suas especificidades de
criança, em que o brincar perde espaço para o auxílio com as tarefas domésticas, sobretudo para
as meninas, em quem as questões de gênero são bastante marcadas pela identidade da mulher
pacata, cuidadora do lar, dos filhos e do esposo. Em contrapartida, a autora posiciona outra
imagem ao lado desta que mostra 4 crianças sentadas no chão brincando com gravetos e areia,
a qualidade da imagem dificulta um pouco a identificação de 2 das crianças, mas,
provavelmente, se trata de 4 meninos. Em seguida, a autora tece o seguinte comentário:
O valor de levar uma vida tranquila é refletido na liberdade que as crianças
Tentehar têm para brincar no espaço dos grandes quintais, na frente das casas, a exceção da hora em que estão na escola, o dia é livre para que possam
brincar. [e complementa] no decorrer do dia as crianças são apenas colaboradores dos adultos, na maioria das vezes apenas ajudam, buscam ou
levam comida para os animais criados em chiqueiros, como os porcos, ou
ainda para dar um recado ou trazer algum objeto de empréstimo de uma casa para outra (SÁ, 2014, p. 68-69).
Mas, por que será que a autora ao tratar do brincar, selecionou uma menina ajudando
nas tarefas domésticas e os meninos brincando no quintal? Pelo que pude compreender em high
key, a intenção da autora foi de demonstrar formas de brincadeira infantil, obviamente, não
tendo foco nas questões de gênero e de trabalho doméstico, mas ao “reviver, sentir e
compreender” a fotografia através do memento, minhas percepções caminharam em direção a
apreensão do visível em diálogo com a função simbólica das imagens (AUMONT, 2016).
Assim, reflito sobre como as situações de “colaboração” nas tarefas do lar, no dia-dia de
crianças pertencentes, principalmente, dos grupos sociais minoritários, podem simular
ocorrências de trabalho doméstico infantil e como as identidades de gênero instituídas em
culturas sexistas podem engendrar formas sociais de discriminação, exclusão, violência e
preconceito contra as mulheres desde a infância.
Conforme discutido anteriormente, é preciso refletir para além do que se vê magicizado
nas imagens técnicas. É preciso compreender as formas visuais a partir de uma concepção
reflexiva que também considere as implicações históricas, políticas, ideológicas e sociais de
uma representação imagética. Através de uma educação conscientizadora (FREIRE, 1992)
165
torna-se possível garantir que no âmbito das tradições culturas, estejam resguardadas a saúde e
o bem-estar das crianças como requerido pela Sociologia da Infância e pelas políticas públicas
para infância no Brasil. Esse é o verdadeiro papel e compromisso social da educação, a garantia
dos direitos de cidadania da infância.
Em síntese, a Fotoetnografia na pesquisa científica relacionada à crianças e infâncias
ainda se mostra um campo em evolução, não por sua indefinição teórica, mas pelo caráter
transdisciplinar e transmetodológico que abarca. O passeio teórico e visual empreendido neste
subcapítulo junto aos 35 trabalhos visitados, revela uma diversidade de métodos e técnicas de
utilização, disposição e composição de narrativas visuais que deixa claro a possibilidade de
criação e autonomia do pesquisador, o que coloca a Fotoetnografia como conhecimento
científico e estratégia metodológica aplicada a todas as áreas que compreendem as Ciências
Humanas e Sociais.
Dentre os trabalhos analisados, as pesquisas de Menezes (2016) e Sá (2014) ainda se
mostram tímidas ao utilizarem a Fotoetnografia como fundamento metodológico. Apesar de
mencionarem o indexador “Fotoetnografia” em seus resumos, não apresentam em seu escopo
quaisquer fundamentação acerca do método, tampouco, empreendem as narrativas imagéticas
como escritura independente, consequentemente, utilizam as imagens de forma ilustrativa e
representativa, assim como nos trabalhos pioneiros da Antropologia Visual. O trabalho de
Aprato (2016) apresenta uma perspectiva mais aproximada das concepções teóricas e
metodológicas da Fotoetnografia como narrativa imagética, porém, também deixa um pouco a
desejar informações mais precisas sobre o contexto em que as imagens foram realizadas e sobre
quem são os sujeitos que estão sendo magicizados na imagem técnica.
As pesquisas de Villas Boas (2016) e Trois (2012) seguem com rigor as premissas da
Fotoetnografia elaborada por Achutti (1997) sob perspectivas de uma narrativa imagética
integral, dispondo em seus trabalhos textos e imagens que falam entre si e por si, fotografias
que encantam, interpelam, silenciam, calam e trazem à tona reminiscências da alma que a
memória esqueceu; fotografias que desvelam infâncias plurais, divertidas e cheias de vontade
de felicidade. São em suas estruturas escritas e imagéticas, grandes exemplos de uma
Fotoetnografia que segue o rigor epistemológico e metodológico da proposta e, sobretudo,
tratam da realidade de forma ética e, esteticamente, bela, tanto no sentido platoniano quanto no
sentido de uma educação estética.
A Fotoetnografia, portanto, se mostra um campo fecundo para o re/conhecimento das
crianças, seus lugares, seus modos de vida, suas subjetividades e culturas. Abre caminhos para
a imagem, enquanto escrita narrativa de memórias, histórias e reminiscências, bem como,
166
possibilita a interpretação da realidade a partir do movimento memento – reviver, sentir e
compreender a imagem em suas dimensões históricas, culturais, ontológicas e sociais,
consequentemente, indica sua potencialidade para o campo educacional numa perspectiva de
educação estética que visa promover o conhecimento através das visualidades que compõem a
Cultura Visual em diálogo com uma pedagogia crítica e emancipatória pautada no amor, no
diálogo, no encantamento, na beleza e na criatividade humana, pressupostos estes, que defendo
nesta tese.
Assim, neste trabalho ofereço novas possibilidades de narração fotoetnográfica ao
ampliar suas dimensões descritivas (high key e low key), estéticas (sensitivas) e interpretativas
(epistemológica e empírica) através do memento, com a intenção de propor não uma luta entre
as duas formas de escritura: textos e imagens, mas sim, uma interlocução que facilite a
compreensão dos fenômenos a partir de abordagens heurísticas e transdiciplinares. Desse modo,
as duas leituras ocorrem de forma interdependentes, porém, complementares.
167
3 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: INFÂNCIAS EM
FOTOETNOGRAFIAS
3.1 O Privilégio de Estar com as Crianças: o currículo das infâncias (TROIS, 2012).
3.2 {Per[for(mar)]} Imagens das Crianças no Nêgo Fugido, Acupe/B (VILLAS BOAS, 2016).
168
3.3 Crianças e Objetos: Narrativas Fotoetnográficas sobre Infâncias Contemporâneas (APRATO, 2016).
3.4 Cultura Estética Indígena Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da pintura
corporal Parkatêjê (MENEZES, 2016).
3.5 Saberes Culturais Tentehar e Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral (SÁ, 2014).
169
1° Click
A fotografia é um clic tecnológico que desencadeia fenômeno
químico-físico [...] eternizando uma imagem.
(MILLÔR FERNANDES, prefácio ACHUTTI, 2011, p.23).
Infâncias em Fotoetnografias
170
“Era uma tarde de sol, as crianças corriam pelo pátio livremente, muitas risadas,
barulhos preenchiam o espaço da escola. Ao cruzar o portão de entrada pude perceber
que ali habitavam muitas e diversas crianças”
(TROIS, 2012, p. 28)
176
“Em Acupe, cada brincadeira tem seu tempo. O modo de brincar se
aperfeiçoa na repetição e na permanência delicada na memória e corpo
das crianças.”
(VILLAS BOAS, 2016, p. 36)
182
“O feitiço se inicia. Óleo, anilina vermelho sangue, carvão em pó também são
ingredientes da transformação. Tudo para as crianças serem vivamente as nêgas do Nêgo
Fugido. Elas se preparam juntas, são pintadas por adultos ou por elas mesmas. Assim
como as nêgas, outras personagens também se preparam em algum canto da rua.”
(VILLAS BOAS, 2016, p. 48)
184
“Desde cedo, as crianças começam a aprender que o que vestem, os objetos
que carregam, os programas que assistem, os jogos que preferem, etc., agregam
significados às suas identidades, repercutindo nos modos como são valorizadas e
aceitas nos grupos de que fazem parte.”
(APRATO, 2016, p. 2)
192
EPÍLOGO
Conhecer a infância é reviver a criança.
Falar de criança é rememorar a infância.
Entender a infância é sentir-se criança.
É mergulhar em suas culturas,
para poder compreender,
o que elas têm a nos dizer
E tudo começou pelas fotografias e tatuagens de Lenny...
Afinal, como eu poderia articular e fundamentar o memento à perspectiva do “reviver,
sentir e compreender” na minha tese? E como seria possível estabelecer esse diálogo com a
Fotoetnografia? A resposta pode até parecer simples, mas seu percurso foi bem complexo.
Parti do princípio de que a Cultura Visual oferece uma infinidade de suportes imagéticos
que direcionaram a ciência a estabelecer uma nova epistemologia para a imagem, nesta direção,
a filosofia da fotografia protagonizou outras reflexões que conduziram a investigação a entender
a fotografia como pele e magia. “Pele”, porque nela se imprime a realidade, a existência ou até
o simulacro. “Magia”, porque a fotografia em sua essência é um eterno retorno, tem o poder de
magicizar a vida ao transformar conceitos em cena e materializar o pensamento humano. Visto
por esse ângulo, as fotografias são imagens cheias de memória, de história, de vida. Assim
como as fotografias e tatuagens de Lenny, as imagens evocam lembranças, reminiscências de
um passado-presente, desvelam emoções, sentimentos e percepções que formulam e direcionam
o pensar, o agir e o ser do ser humano. Neste contexto, o memento ajuda a trazer à tona o que
a pele magicizou da vida, o que nela se esconde, o que dela se pensa e o que ela nos quer dizer.
Ao longo desse capítulo metodológico, o que era intenção tornou-se constatação. O
memento como movimento de interpretação adquiriu teoria e técnica. Através de interlocuções
transdisciplinares e heurísticas, o memento trilhou um caminho próprio. Inspirado em
fundamentos fenomenológicos, epistemológicos e ontológicos, foi possível estabelecer o
diálogo com procedimentos e instrumentos da Antropologia, da Filosofia e da Cultura Visual.
Mas, foi na Fotoetnografia que o memento fez morada - como procedimento de análise
interpretativa das narrativas fotoetnográficas.
193
Para não cansar o leitor/espectador, não me deterei, novamente, em caracterizar o
memento, mas quero apenas apontar para sua importância no contexto das pesquisas
fotoetnográficas em Ciências Humanas e Sociais, principalmente, nos campos da Infância, da
Cultura Visual e da Educação Estética, que foram trabalhados ao longo da tese.
O memento envolve, basicamente, três movimentos de interpretação da imagem: o
reviver - fazer emergir as informações em high key do contexto original da realidade magicizada
e as reminiscências que envolvem o instante fixado na pele da fotografia; o sentir - buscar em
low key, os elementos velados da imagem seus elementos significantes considerando as
percepções, subjetividades e emoções que acompanham o sujeito que contempla, que é
contemplado e que produz a Fotoetnografia; e o compreender – que nada mais é, se não, a
própria interpretação epistemológica e empírica da fotografia.
Dada a sua dimensão transdisciplinar e heurística, o memento se aplica a contextos de
pesquisas que envolvam a leitura de imagens fotográficas que priorizem a subjetividade, a
criatividade e a reflexão do sujeito, no caso específico deste estudo, o memento serviu para
facilitar o desvelamento das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis que permeiam
as imagens dispostas em pesquisas científicas, na Cultura Visual, na Cultura Infantil e na
Educação. É nesta direção que ressalto a sua importância. Por sua flexibilidade, adaptabilidade
e principalmente, por priorizar o olhar humano, suas subjetividades, emoções e interpretações.
As imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: são
símbolos “conotativos”. O tempo projectado pelo olhar sobre a imagem é o do
eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imagética por ciclos. Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para os elementos
preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais
do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico:
tempo de magia. [...] O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis (FLUSSER, 1985, p. 28, grifos do autor).
Portanto, as bases teóricas que fundamentaram o memento em narrativas escritas, agora
se traduzem em narrativas visuais, para que, com o olhar sensível e atento, se possa vaguear
nas superfícies mágicas da Fotoetnografia. Deixemo-nos embalar nas reminiscências de
infância para poder nos aproximarmos do que é ser criança.
194
ENSAIO 2
AS CULTURAS INFANTIS NAS MULTIMAGENS DE CRIANÇAS:
Uma Fotoetnografia panorâmica conceptual
Pele e Magia
Não mais sombras projetadas em paredes de cavernas,
Não mais reflexos monocromáticos, desfocados e surreais,
Não mais fogueiras e frestas de luz.
As projeções ganharam cores, linguagens, vida.
Viraram imagens.
Imagens produzidas por aparelhos mágicos
Que conseguem transformar cenas da realidade
em peles fotográficas magicizadas.
Peles de memória, sentimentos e racionalidades.
Pele e magia, assim são as fotografias.
195
PRÓLOGO
...Sobre uma infância estetizada
Fale bem ou fale mal
Mas fale de mim
Eu não tenho culpa se você não é feliz
Eu entendo as recalcada
Que me ofendeu
Se eu fosse elas também queria ser eu
Pra ser a top das top
A famosa Cinderela
Arlequina é estilosa
Matando as outras de inveja
Para todas as recalcada
Aí vai minha resposta
Enquanto tu fala mal
Eu tô ficando mais famosa.
(Mc Melody, 2015) 92
Este ensaio chama atenção para um problema que considero central aos debates sobre a
infância na contemporaneidade: a desqualificação conceptual de um tipo de infância nas
multimagens de crianças dispostas na Cultura Visual. Especialmente, refiro-me ao perigo da
“adultização” e, consequentemente, da “erotização” de crianças expressos nas visualidades
im/dis/postas em mídias digitais93 que permeiam os espaços sociais e educacionais das culturas
infantis na atualidade, que desrespeitam as condições de direito, proteção e educação da criança
92 Letra da Música “Fale de mim” da funkeira mirim Mc Melody. O clipe da música apresenta em um trecho
a seguinte afirmação: “[...] se é bonito ou se é feio, mas é foda ser gostosa”. Valendo-se de direitos
autorais, o clipe original foi retirado do ar por ordens judiciais em 2016, porém ainda é possível ver partes deste vídeo na reportagem do Domingo Espetacular. QRcode 24: Matéria: “Sexualização de Mc Melody
reacende discussão sobre funkeiros mirins” postada em: 28 de abril de 2015.
93 Imagens produzidas pelas mídias digitais em seus diversos formatos textual, fotográfico, audiovisual e
compartilhadas nas redes digitais presentes na cultura contemporânea, marcada pelas interações com as
tecnologias comunicativas digitais que promove a Cibercultura (LEVY, 1999).
196
de forma tão sutil e “naturalizada” que, muitas vezes, passa despercebido em nossas próprias
rotinas sem que possamos dimensionar as consequências desses fenômenos na realidade da
criança e para a constituição de suas infâncias.
Pensando nisso, as questões referentes às concepções de crianças e infâncias que
emergem, sobretudo, na contemporaneidade, me inquietam a ponderar sobre que valores e
sentimentos permeiam as culturas infantis, levando as crianças a seguirem padrões de conduta
que expõem sua intimidade e extrapolam os limites da sexualidade em função de uma
autoimagem narcisisticamente desejada para satisfazer os impulsos do que passei a chamar de
cultura do exibicionismo94. Mas, que imagens são essas? O que as crianças têm buscado como
inspiração? É preciso tencionar as construções conceituais históricas e culturais de criança e
infância que ainda persistem na ideia do “homúnculo” impondo comportamentos que ferem e
desrespeitam a dignidade da criança.
Essa tendência à auto apreciação inspira a letra deste funk ostentação que selecionei
como ponto de partida para esse prólogo, porém, não dá para imaginar que quem o interpreta é
uma criança de 10 anos95, chamada Gabriella Abreu Severino, mais conhecida como Mc
Melody, cantora de música pop e funk ostentação96, que tem chamado atenção nas redes sociais
como YouTube97 onde possui mais de 517.179 mil inscritos no seu canal oficial, alcançando a
marca de 75.069.567 milhões de visualizações98, considerando todos os vídeos postados. Além
do YouTube, Mc Melody possui 19,8 mil seguidores no Twitter, 1.937,327 seguidores e
1.942,336 curtidas em sua página no Facebook e 309 mil seguidores no Instagram. Além desta
repercussão nas redes sociais, a pequena artista também é notícia em programas televisivos e
94 Cultura do exibicionismo, termo cunhado para referir-se à manifestação de padrões de conduta que
objetivam expor uma autoimagem narcisisticamente perfeita, nem que para isso, a realidade deixe de
existir e passe a ser simulacros e simulações. “Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real.” (BAUDRILARD, 1981, p. 9). Será
discutido ao longo do ensaio. 95 Quando a música foi utilizada na pesquisa em 2015, Mc Melody tinha apenas 8 anos. 96 Funk Ostentação é um termo criado em 2008 em São Paulo que trata de um estilo musical brasileiro
proveniente do funk carioca, aborda temas como consumo e ostentação, geralmente usam carros,
motocicletas, bebidas, objetos de valor, mulheres, bens materiais para exaltar a ambição de sair da favela e conquistar objetivos. Faz apologia explícita do consumo de bens distintivos, de modo a enaltecer os
adeptos de dado padrão de consumo (p. 23). QRcode 25: Texto: Retórica Distintiva no Funk Ostentação
(BRAGA, 2015).
97 No canal de internet YouTube é possível visualizar uma série de vídeos e reportagens sobre essa criança
e sobre as polêmicas que envolvem seu comportamento e carreira. 98 Dados atualizados em 08 de janeiro de 2017, diretamente nas páginas oficiais de cada rede social citada.
197
alvo de polêmicas que envolvem seu comportamento e carreira, como na reportagem que foi ao
ar pelo programa Domingo Espetacular produzido pela Rede Record, onde foram apresentadas
histórias de “funkeiros mirins” enfatizando, justamente, a tendência precoce à sexualidade
infantil, erotização precoce, consumismo e riscos à dignidade humana, entre outros fatos sobre
a carreira artística e as consequentes polêmicas na justiça.
De acordo com o Jornal Extra on-line, a menina já faturava em 2015 cerca de R$ 40 mil
ao mês decorrentes de apresentações em matinês e eventos, tornando-se o ícone de sua
geração99. Na perspectiva da Sociologia da Infância, geração é um “constructor sociológico”
(SARMENTO, 2005, p. 366) que se constitui a partir das interações dinâmicas entre crianças,
e entre crianças e adultos, que vão sendo historicamente produzidos e elaborados nas relações
estruturais e simbólicas que são continuamente reinvestidas de estatutos, papéis e práticas
sociais diferenciadas e ocorridas em cada período histórico. Se Mc Melody é considerada pela
mídia televisiva como ícone de uma geração - a infância, significa que temos um grave
problema para refletir. O fato é que as músicas, as danças, as roupas, a linguagem e o
comportamento da artista mirim estão longe de ser considerados adequados à criança.
Em fotografias, a menina aparece usando roupas minúsculas, sutiã com enchimento para
destacar os seios, maquiagem forte e vários adereços que remetem à adultização da criança.
Além disso, nos videoclipes de suas músicas ela sempre erotiza o corpo, rebolando e fazendo
poses sensuais. Uma de suas aparições mais polêmicas foi durante o show de seu pai, Thiago
Abreu, 27 anos, também funkeiro conhecido por Mc Belinho, principal incentivador da carreira
da filha. Durante o evento, a criança canta e faz poses sensuais bem perto do público, ficando
exposta à violência física e moral (Ver figura 9).
Em uma busca no YouTube é possível visualizar outros clipes da menina que contém
cenas que violam o direito ao respeito e à dignidade infantil, conforme Estatuto da Criança e
do Adolescente:
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
99 QRcode 26: Matéria jornalística on-line intitulada: “Mc Melody, de 8 anos, fatura até R$ 40 mil ao mês
com carreira polêmica”, datada em 19 de abril de 2015. A reportagem refere-se ao termo “geração” para
indicar um grupo etário de pessoas de várias idades que compõem a infância contemporânea.
198
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais (BRASIL, ECA, 2013).
Este caso já está sendo investigado, em segredo de justiça, desde 2015 pela Promotoria
de Justiça de defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude de São Paulo,
sendo resultado de denúncias e representações encaminhadas para Ouvidoria do Ministério
Público sobre a exposição de funkeiros mirins. As denúncias apontam a violação dos direitos
das crianças e adolescentes tendo em vista a exploração da imagem, identidade, autonomia,
valores, crenças e integridade física, psíquica e moral desses artistas.
De acordo com uma das representações do inquérito, Mc Melody “canta músicas
obscenas, com alto teor sexual e faz poses extremamente sensuais [...]”. Tal exploração precisa
ser amplamente discutida nos cenários das Ciências Sociais, pois coloca em cheque os avanços
da categoria infância nos cenários políticos, civis e científicos atuais relacionados diretamente
aos direitos sociais das crianças criados nas últimas décadas através de esforços legislativos
consubstanciados em documentos como a Declaração de Genebra (1923), a Declaração
Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção dos Direitos da Criança (1989) e o
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
A letra da música ressalta com ênfase a expressão popular “Fale bem ou fale mal, mas
fale de mim”, muito utilizada como justificativas para autoafirmação de posturas e atitudes em
relação a um determinado fenômeno social, no caso desta música de Mc Melody, a expressão
indica que a repercussão gerada em função da forma de vida que ela leva, enquanto cantora,
que é mais importante do que os sentidos e significados sociais deste tipo de comportamento.
Ou seja, o fato dela ser uma criança, não a impede de sensualizar, erotizar e “adultizar” seu
comportamento em função de atingir a “sonhada” fama, consequentemente, ou por influência,
a criança “encantada” com as possibilidades emergentes desse universo, personifica uma
identidade social egocêntrica e esnobe, e de forma ousada, protagoniza cenas que supostamente,
elevam ainda mais sua autoestima ao ponto de achar (ou querer) que seu modelo de vida cause
inveja e a infelicidade de outrem, sendo explicitamente, uma intenção hostil.
Para Silva, C. (2016, 51) o consumo cultural das músicas pop com conteúdos eróticos
contribui na constituição de uma identidade infantil erotizada, nessa perspectiva, “crianças
pequenas consomem esse tipo de música e criam uma cultura infantil [...] caracterizada por
práticas discursivas que estabelecem um jogo de disciplinamento, definindo modos de ser
199
criança, de ser menino e de ser menina”100. No entanto, segundo a autora, as crianças não
recebem passivamente e de modo inocente esses conteúdos, pelo contrário, elas reagem a essas
pedagogias e “em alguma medida, adequam e delineiam as suas identidades”, portanto,
Compreender a rede de relações que se estabelece entre o consumo cultural de
músicas pop com conteúdos eróticos e a constituição das identidades infantis – como a identidade infantil erotizada - significa articular pontos de uma rede
que tem como base as cenas da vida real que nutre, sustenta e constitui as
práticas culturais (SANTOS, R., 2016, p. 54).
Lipovetsky e Serroy (2011, p. 46-48) afirmam que na escala da história, somos
testemunhas de uma nova era - a do individualismo acabado, extremo - “um
hiperindividualismo centrado na primazia da realização de si e, especialmente condicionada a
uma relação narcisista com o corpo, “cada vez mais voltada para si mesma, à busca de um bem-
estar pessoal e consumidor”.
Essa relação de alteridade conflituosa entre o “eu” famoso e feliz, e o “outro” invejoso
e infeliz, entendida a partir da construção das identidades nacionais, que não são coisas com as
quais nós nascemos, mas, são formadas e transformadas no interior da representação (HALL,
2006), tal circunstância, me direciona a refletir sobre os símbolos e discursos que permeiam as
representações do “eu” (self)101 e sua autoimagem no contexto da fama que é mitizada pelo
poder econômico e pelo sucesso social, principalmente, em se tratando de crianças.
As culturas midiáticas digitais do século XXI, ao atribuir novos sentidos para o “self”,
readaptaram esse conceito ao ato de retratar-se através de imagens (CAMARGO,
STEFANICZEN, 2016), ou seja, há uma tendência à auto apreciação através da imagem
autoproduzida individual ou coletivamente, o que ficou conhecido culturalmente como
100 QRcode 27: Silva, R. (2016).
101 Willian James (1890), um dos fundadores da Psicologia Moderna, afirma que o self representa uma
consciência reflexiva a respeito do conhecimento de si, da sua autoimagem e autoestima. QRcode 28: Ver “The Principles of Psychology” de Willian James (1890) sobre estudo o self como sujeito (subjetivo) e
self como objeto (materiais e corporais).
200
“selfie”102. Dito de outra forma, as pessoas passaram a se autorretrar, estando sozinhas ou
acompanhadas, e ao retratarem-se, expõem suas identidades e projeções sociais; buscam o
anúncio de suas convicções; e ao mesmo tempo, esperam a apreciação e aceitação do outro em
relação a si. Este não é um comportamento apenas do mundo adulto, é uma tendência que se
tornou universal, basta observar as imagens dispostas em redes sociais como Facebook e
Instagram, os grandes palcos desse espetáculo.
O selfie é uma das características marcantes das culturas midiáticas emergentes da
segunda modernidade, onde a cultura veiculada pela mídia digital tornou-se uma força
dominante de socialização e uma potente vitrine de exibição de rostos e corpos que se tornaram
(ou pretendiam se tornar) “[...] modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e
comportamento”, substituindo inclusive, “a família, a escola e a igreja como árbitros de gosto,
valor e pensamento [...]” (KELLNER, 2001, p. 27). Para Camargo e Stefaniczen (2016, p. 36-
37, grifo do autor) “O conceito de ‘experiência do selfie’ carrega a ideia de identidade em
processo de composição, uma busca constante pela experimentação visual, cênica,
narratológica, performática. A experiência do selfie significa performance identitária, isto é,
identidade em constante processo de construção, obra eternamente inacabada”103.
Neste diapasão, o universo social urbano contemporâneo, marcado pela efemeridade da
imagem e pelas novas formas de expressões culturais, onde tudo parece ser permitido e as
censuras se desmistificaram nos “sem limites” da Internet, torna-se fundamental para a
construção e compreensão das concepções de crianças e infâncias, discutir as culturas infantis
visibilizadas na cultura visual e estigmatizadas em redes sociais na Internet. Ou seja, até que
ponto essa cultura “selfie” narcisista, egoísta e consumista atinge as culturas infantis na
contemporaneidade? E o que seria ainda mais grave: é justo sensualizar, erotizar e adultizar a
infância em nome da liberdade cultural, da moda e da fama? Neste sentido, não cabe fazer aqui
posicionamentos precoces quanto à imagem da criança na contemporaneidade, visto que, esta
102 O termo selfie deriva da palavra inglesa self-portrait e significa um autorretrato produzido por celular,
webcam ou câmera digital e compartilhado pelas mídias sociais (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016,
p. 35). De acordo com Wikipédia, o selfie é a agregação do substantivo “self” (eu) de origem inglesa ao prefixo “ie” que representa o termo em diminutivo “euzinho(a)”, significa “uma fotografia, geralmente
digital, que uma pessoa tira de si mesma (autorretrato)”, podendo ser realizada também em grupo. 103 QRcode 29: Camargo e Stefaniczen (2016).
201
é uma discussão complexa que está apenas começando, por isso, neste ensaio, opto pela reflexão
e maturação deste assunto que considero relevante, polêmico e intrigante.
De acordo com Del Priore (1999) considerando a realidade da infância descrita pelas
organizações governamentais brasileiras e internacionais, “[...] o mundo no qual a ‘criança
deveria ser’ ou ‘ter’ é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes sobrevive” (DEL
PRIORI, 1999, p. 8). As crianças continuam a reproduzir culturas sociais adultas, e o que é pior,
os próprios adultos estão convivendo com este retrocesso sem perceber as graves consequências
que isso pode gerar na vida da criança, pelo contrário, há uma total permissividade em relação
às práticas de reprodução, os adultos, até familiares, acham comum e engraçado, o que também
caracteriza um processo de adultização da infância.
Comparando com o que Ariès (1981, p. 100) apontou sobre a condição da infância no
século XVII, os comportamentos infantis, por serem ingênuos e engraçados, viravam
“distrações” para os adultos nas sociedades medievais. Neste contexto, deixo ao
leitor/espectador a seguinte provocação: será que as marcas da sociedade medieval que
consideravam a criança como um adulto em miniatura, desrespeitando suas especificidades e
limites, ainda estão presentes nas relações sociais estabelecidas em pleno século XXI?
202
1 CULTURA E IMAGEM: ZONAS DE CONTATO NAS ENTRE-CULTURAS E
ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA
As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo
genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções
políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a
criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu
desejo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21).
A infância é uma fase de descobertas, sonhos, imaginações, criticidades, representações
e subjetividades para a criança. O universo infantil está repleto de significações e concepções
de mundo. Sobre isso, Pinto e Sarmento (1997, p. 22) afirmam que “as culturas infantis não
nascem no universo simbólico exclusivo da infância, este universo não é fechado-pelo
contrário, é mais do que qualquer outro, extremamente permeável-nem lhes é alheia à
reflexibilidade social global”. Apesar de sofrerem influências das culturas adultas, possuem
características e ações próprias. As crianças constroem suas culturas, a partir de cenas já
vivenciadas no seu dia-dia que vão dando possibilidades imaginativas e concretas de
racionalização:
O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento
da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece
no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem
perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o
controle da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua dimensão
simbólica nas culturas da infância (SARMENTO, 2003, p. 2).
A Sociologia da Infância concebe as crianças como corresponsáveis por suas infâncias,
afetam e são afetadas pelo mundo adulto e como parte da sociedade, são agentes ativos que
constroem suas próprias culturas (CORSARO, 1997; MÜLLER e CARVALHO, 2009).
Conforme ressaltou Sarmento (2007), as crianças são atores e agentes sociais de pleno direito
que interpretam seus mundos e modos de viver a vida nas múltiplas interações simbólicas
estabelecidas entre si e com os adultos, desse modo, as culturas infantis,
[...] vivem do vai-vém das representações do mundo feitas pelas crianças em
interação com as representações adultas dominantes. As duas culturas – a
especificamente infantil e as da sociedade – que se conjugam na construção das culturas da infância, na variedade, pluraridade e até contradição que
internamente enforma uma e outra, referenciam o mundo de vida das crianças e enquadram a sua ação concreta (SARMENTO, 2007, p. 23).
203
Para discutir este problema, é fundamental voltar um pouco na história da infância para
entender o que significa “adultização”. Como já dito, Ariès (1981, p. 50) compreende a infância
como uma construção histórica que surge da necessidade de submissão e adestramento das
crianças em decorrência das influências escolásticas na Idade Média, período em que não havia
um sentimento de infância compartilhado, a criança convivia na sociedade como um homúnculo
- pequeno homem, termo que designava a criança como um projeto de homem futuro, ou seja,
as crianças tinham as mesmas condições de vida dos adultos, consequentemente, não existia
um tratamento diferenciado para adultos e crianças, pelo contrário, as crianças acompanhavam
e realizavam as mesmas atividades dos adultos, trabalhavam, participavam de festas, reuniões
sociais, e tantas outras situações que desconsideravam suas limitações e entendimentos.
Entretanto, Ariès (1981, p. 99) faz uma ressalva “na sociedade medieval, que tomamos como
ponto de partida, o sentimento de infância não existia – o que não quer dizer que as crianças
fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas”.
Mas, ao reduzir a infância a uma única visão sobre suas condições históricas, Ariès
(1981, p. 50-55) sucumbiu à ideia de pluralidade das condições próprias de vida de cada criança
e em cada contexto social, negando, com isso, as singularidades, as especificidades, as
necessidades e as vozes das crianças. Contudo, não se trata agora de negar a ideia do
“homúnculo”, mas, de reconhecer nela, elementos que ainda continuam sendo reproduzidos na
sociedade atual que precisam ser tencionados nos âmbitos acadêmicos, para que através da
educação, se criem estratégias de enfrentamento e solução.
As sociedades dos séculos XX e XXI têm testemunhado fenômenos que impactaram
diretamente as formas de civilização como a revolução industrial, o advento da indústria
cultural, o processo de globalização, a multiplicidade e a diversidade cultural, a chegada das
tecnologias digitais de informação e comunicação, a Internet, os avanços científicos, novas
formas e constituições dos núcleos familiares, as reconfigurações nos âmbitos da civilidade, da
escolarização e da profissionalização dos indivíduos, entre outros104.
A pesquisa de doutoramento de Silva, A. (2010)105, realizada no Instituto de Educação
da Universidade do Minho traz uma consistente explanação sobre a condição social da infância
104 Tais fenômenos serão abordados ao longo dos capítulos da pesquisa. 105 QRcode 30: Tese: Jogos, brinquedos e brincadeiras - Trajectos Intergeracionais (2010).
204
e destaca a falta de atenção às crianças pelas próprias famílias em espaços determinantes para
sua formação, mas que lhes são negados em função da falta de tempo:
Na verdade, passamos o tempo a dizer que queremos e gostamos muito de
crianças, mas ou as temos cada vez menos e mais prisioneiras dum tempo e
dum espaço que não é o delas ou abandonadas à sua (má) sorte algures; proclamamos a necessidade de uma maior presença dos pais junto dos filhos
e, em troca, damos-lhes a tristeza da nossa persistente ausência; exaltamos a
sua espontaneidade, mas formatamos as suas vidas até ao mais ínfimo dos pormenores; afirmamos que as crianças deviam estar em primeiro lugar, mas
nem as temos ou achamos para ouvir num pequeno contributo sequer que seja para a tomada de uma decisão, por muito que com elas tenha a ver (SILVA
A., 2010, p.118).
Nessa ausência, as culturas infantis se aproximam e são aproximadas cada vez mais das
culturas adultas, seja nas formas de se comportar, nas maneiras de vestir, dançar ou cantar,
mesmo situações que expõe seu corpo e sua sexualidade, sobretudo, as imagens impostas nas
mídias televisivas, nas publicidades e nos estigmas da indústria cultural (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985). Estes foram alguns dos argumentos que levaram Baudrillard (1997, p.
68-69), de forma bem pessimista, a declarar o “contingente negro da infância” que radicaliza a
“exorcização e eliminação” da criança enquanto ser natural para emergir a infância “anormal”,
geneticamente fabricada e condenada à obsolescência acelerada do tempo. Em relação à
condição da criança na contemporaneidade Baudrillard (1981) foi assertivo ao afirmar que:
Estamos em face deste sistema numa situação dupla e insolúvel «double
bind»*106 - exatamente como as crianças perante as exigências do universo adulto. São simultaneamente intimidados a constituir-se como sujeitos
autónomos, responsáveis, livres e conscientes, e a constituir-se como objectos submissos, inertes, obedientes, conformes. A criança resiste em todos os
planos, e a uma exigência contraditória responde também com uma estratégia
dupla. A exigência de ser objecto opõe todas as práticas da desobediência, da revolta, da emancipação, em suma, toda uma reivindicação de sujeito. À
exigência de ser sujeito opõe, de maneira igualmente obstinada e eficaz, uma
resistência de objecto, isto é, exactamente o oposto: infantilismo, hiperconformismo, dependência total, passividade, idiotia. Nenhuma das suas
estratégias tem mais valor objetivo que a outra (BAUDRILLARD, 1981, p.110, grifo do autor).
Apesar de Baudrillard (1981) não se debruçar, especialmente, no tema, esse impasse a
que ele se refere, permite-nos entender a complexidade particular das múltiplas infâncias que
se constituem em tempos históricos e espaços sociais com diferenças significativas em relação
106 Tradução em português: impasse.
205
às condições em que a criança se encontra, infâncias que surgem e ressurgem entre referências
do passado e do presente, infâncias que criam suas próprias estratégias de relacionamento com
o mundo, infâncias construídas nas singularidades de crianças que, mesmo compartilhando de
tempo e espaço semelhantes, não manifestam jamais comportamentos similares, de modo que
não é possível reduzi-las a um discurso histórico linear, homogeneizado em etapas e/ou fases
pré-definidas, tampouco, capturá-las em conceitos universais, e foram, principalmente, nessas
lacunas, que se manifestaram as críticas aos contributos de Ariès (1981).
Já Postman (1999, p.93) ao considerar a condição da criança na contemporaneidade,
destaca alguns aspectos alarmantes em relação aos segredos revelados sobre sexo, violência,
morte, incentivo ao consumismo (entre outros), veiculados diariamente pela mídia, o que o leva
a defender o declínio da concepção de um determinado tipo de infância na atualidade. Para esse
autor, a nova concepção de infância na modernidade é análoga ao aprendizado da linguagem,
tal mudança decorre das transformações culturais relacionadas à necessidade de alfabetização
provocada pelo aparecimento da tipografia, e posteriormente, pelo desenvolvimento do
telégrafo, da fotografia, do telefone, do cinema, do rádio e da televisão, o que provocou uma
ruptura entre os universos adulto e infantil. Essa ruptura desencadeou transformações radicais
na estrutura familiar e nas relações culturais e sociais da modernidade, sobretudo, considerando
os avanços tecnológicos midiáticos decorrentes do século XX, em que os mistérios do sexo, da
violência e da morte foram revelados, nesta concepção, sem a linha divisória, a mídia eletrônica
não retém segredos e “Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância”
(POSTMAN, 1999, p. 94). Há nesse movimento, a base de argumentação da tese do
“desaparecimento da infância” com a destruição da “linha divisória” entre a infância e a idade
adulta, argumento muito polêmico e criticado por estudiosos e especialistas em infância
(KUHLMANN JR., 1998; SIROTA, 2001; SARMENTO, 2002).
Corroborando com as críticas, defendo que essa linha divisória é, e sempre foi uma
ilusão, uma utopia que muitos ainda insistem em defender. Porque, em se tratando de culturas,
não há como separar. As crianças desde sempre viveram e conviveram nessa suposta “linha
divisória”, não através de rupturas, ora no mundo dos adultos, ora no mundo das crianças, mas,
numa condição de prolongamentos e deslocamentos no “entre” culturas e lugares, nesta
perspectiva, não se trata de uma linha que divide, que separa, e sim, de uma linha que une, que
conecta, que se comunica em fluxos contínuos, portanto, a criança se encontra sempre no meio,
entre as coisas. Suas culturas constituem e são constituídas no intermezzo, ou seja, nos “entre
lugares” e nas “entre-culturas”.
Embora não compartilhando da ideia de desaparecimento, considero pertinente o alerta
206
proferido por Postman (1999, p. 94) sobre os riscos das imposições midiáticas para a construção
das culturas infantis, principalmente, quando se refere à adultização das crianças explicitamente
apresentada nas maneiras de vestir, nas atitudes mentais e emocionais refletidas em cada gesto
representado ou na erotização precoce exposta na aparência física (como no caso da Mc
Melody), o que nessas condições, segundo o autor, as crianças estão se tornando cada vez mais
indistinguíveis dos adultos, e necessariamente, “sem um conceito claro do que significa ser um
adulto, não pode haver conceito claro do que significa ser uma criança” (POSTMAN, 1999, p.
112).
Tal qual Ariès (1981) e Baudrillard (1997), Postman (1999) me direciona a pensar não
o “desaparecimento da infância”, mas, o “desaparecimento das fronteiras culturais” que por
muito tempo “tentaram” fixar contornos definidos do que seria pertencente ao mundo adulto e
ao mundo infantil, por conseguinte, esse esforço desconstrucionista sinaliza para a concepção
de culturas infantis que se constituem no “entre” como espaços interstícios fluxos,
desterritorializados, que se cruzam em linhas rizomáticas que conectam de forma inseparável
estes dois universos.
Nesta perspectiva, se as culturas infantis contemporâneas manifestam concepções de
crianças e infâncias formadas a partir das culturas visuais impostas pela indústria cultural
moderna, onde as fronteiras culturais adultas e infantis se penetram, se confundem e em
algumas situações, não existem. As crianças permanecem vulneráveis aos modelos imagéticos
midiáticos que apresentam concepções adultizadas de crianças, estimulam o consumismo, o
exibicionismo, a erotização precoce e a inversão de valores culturais gerando conflitos
identitários em que adultos “se infantilizam” e crianças “se adultizam” (POSTMAN, 1999).
Com os conflitos identitários, a indústria cultural moderna fere os direitos políticos e
sociais constituídos através de esforços legislativos circunscritos em documentos como a
Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção dos Direitos da Criança
(1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), gerando uma série de
consequências na vida das crianças. Nesse contexto, outra questão se torna pertinente: as
infâncias ao constituírem seus territórios, transgredirem padrões e reinventarem modos de ser
e de viver, se dispersam ou resistem às imposições presente nas visualidades midiáticas da
contemporaneidade?107
No fazer científico, é preciso levar em consideração as expressões singulares de cada
107 Embora não seja o objeto de estudo desta tese, implica, diretamente, nas problematizações que serão
discutidas ao longo do ensaio 2.
207
criança, suas condições particulares de vida e suas próprias produções culturais. As crianças
são únicas, como também são seus pensamentos e comportamentos. Nesta perspectiva, é
necessário reconhecer as particularidades da criança e considerar que, para além das condições
históricas, há uma construção social e cultural que contribui, direta e indiretamente, para a
in/formação dessas infâncias, bem como, para a construção de narrativas e concepções que
explicam, caracterizam e perpetuam ideias sobre crianças e infâncias, gerando com isso, uma
série de implicações nas condições em que sobre/vivem essas crianças.
Desse modo, só é possível pensar a infância enquanto categoria social, resultado de um
processo de reflexividade moderna108 (SARMENTO, 2015, p. 35) que se constitui e é
constituída no limiar das relações de alteridade da criança, mas, sobretudo, são dirigidas e
conduzidas pelos adultos, é nessa interdependência que surgem os mundos culturais da infância,
em sua pluralidade de conceitos e significados que se configuram na medida em que as
transformações sociais se tornam cada vez mais complexas e efêmeras.
A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas
societais atravessadas por relações de classe, de género e de proveniência
étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a ‘marca’ da geração
torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais para
além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção
cultural (SARMENTO, 2002, p. 4).
Entretanto, as ideias de “exorcização e eliminação da infância” e de “desaparecimento
da infância”, realmente são um tanto quanto inadequadas, pode-se dizer que, até exageradas.
Etimologicamente, na tradução grega a palavra “exorcismo”, significa “exorkizein”, formada
pelo prefixo “ex”, que significa “fora” e pelo sufixo “horkos”, que representa “juramento”;
traduzido para o latim como “exorcismus”, que significa “afastamento de espíritos maus” e a
palavra “eliminação”, na tradução latina “eliminare”, que representa “excluir, expulsar, matar”,
o que preconiza a morte da infância. Numa mesma direção, o termo “desaparecimento”,
derivado do latim “abitus”, significa desaparição, partida, saída; forma-se do oposto de
“apparere”, que significa “surgir, aparecer”, nesse sentido, desaparecer é sumir, ou seja, a
108 Abordo o conceito de reflexividade moderna apontado nas contribuições do filósofo social britânico
contemporâneo Anthony Giddens em “As consequências da Modernidade” (1991) e em Giddens; Lash;
Beck (2012) e suas interlocuções em “Modernização Reflexiva” (2012). No entanto, essa perspectiva não contradiz as considerações da Sociologia da Infância ao configurar a sociedade moderna a partir das
contribuições de Lash (1997) e Sarmento (2002; 2004; 2005; 2007) ao denominarem de 2ª modernidade.
208
criança chegaria a idade adulta sem passar pela infância, já que esta estaria “sumida”. Utilizar
estes argumentos, sem as devidas críticas, seria o equivalente a afirmar que a ideia de infância,
surgida na modernidade, tornava-se a inexistir na segunda modernidade, tal qual em épocas
medievais, o que não seria uma verdade, evidentemente.
O leitor/espectador, brevemente, há de convir que estes termos não condizem com as
variadas infâncias desveladas nas multimagens deste ensaio, desse modo, prefiro a ideia de
“invisibilidade da infância” sugerida por Sarmento (2005) para indicar a ausência da criança
nos âmbitos cívico, político e científico, revelando assim, uma visão de infância mais
apropriada para entender as condições em que se constituíram e constituem as narrativas e
concepções de crianças e infâncias na literatura e na sociedade. A palavra “invisibilis” em latim
representa “o que não pode ser visto”, deriva-se de “neuter invisibile” que significa “não
visível”. Neste prisma, a infância não desaparece, mas vive à margem da sociedade, torna-se
invisível, desconsiderada, fica fora do alcance do olhar. No entanto, a infância, enquanto
fenômeno social continua existindo nas entrelinhas da cultura e das relações que estabelece no
meio, nos “entre”, neste sentido, o que vai determinar as concepções sobre crianças e infâncias
é o contexto no qual “essas” ou “aquelas” infâncias se constituem. Portanto, proponho
pensarmos essa “invisibilidade” também na perspectiva da cultura, que talvez, seja um caminho
para problematizarmos a infância contemporânea. Inclusive, ressignificando os próprios termos
“adultização” e “desaparecimento”.
Destarte, este ensaio foi direcionado pelos seguintes questionamentos: que imagens de
crianças e infâncias têm sido discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências
Humanas e Sociais? Que imagens de crianças e infâncias têm repercutido na Cultura Visual e
implicado diretamente nos modos de ser e de viver da criança na contemporaneidade? Nesta
direção, objetivou discutir as principais concepções de crianças e infâncias histórica e
socialmente constituídas a partir de determinados momentos históricos.
Para tanto, foram utilizadas imagens técnicas fixas (fotografias) e em movimento
(audiovisuais) de crianças dispostas em pesquisas científicas e nas visualidades presentes em
mídias televisivas, redes sociais, sites de moda e de entretenimento diretamente associados às
questões culturais da infância. O recorte histórico desta etapa da pesquisa compreende aos
acontecimentos relacionados às transições seculares entre a idade moderna (séc. XVIII) e a
contemporaneidade (séc. XX - XXI) em que ocorreram consideráveis transformações acerca
das formas de representação da infância e de criança, principalmente, no que se refere aos
direitos civis e à proteção (DIAS, 2007; SILVEIRA 2007), a exemplo do campo da Sociologia
da Infância (CORSARO, 1997) que aborda o estudo da infância como construção cultural,
209
considerando a criança e seus saberes, suas possibilidades de criação e recriação da realidade
social em que está inserida.
O estudo da infância tem sido marcado por variadas concepções e representações acerca
do conceito de criança que ao longo dos séculos foi sendo modificado em função principalmente
das necessidades específicas dessa fase de desenvolvimento. Teóricos como Sarmento (2007);
Qvortrup (2010; 2015); James; Jenks & Prout (1998); Sirota (2001); Montandon (2001);
Corsaro (1997) contribuíram, significativamente, com o avanço desta literatura no mundo.
Também podemos destacar o estudo clássico de Florestan Fernandes (1979), o pioneiro na
discussão científica sobre infância, não só no sentido de ouvir o que as crianças tinham para
falar, mas também para ouvi-las criticar as observações que ele fazia. Além das contribuições
de Rosemberg (1989); Martins, J. (1993); Kramer (1999); Gusmão (1997); Quinteiro (2005);
Qvortrup (1994); Demartini (2002); Müller (2010) e Dornelles (2007).
Neste sentido, para compreender como se constituem as infâncias e suas representações
tornou-se primordial resgatar a trajetória histórico-social desta categoria no campo das Ciências
Sociais e Humanas, considerando, principalmente, os aspectos culturais que estão entrelaçados
na construção destas infâncias. Neste intento, as contribuições de Ariès (1981), Sarmento
(2007) e Corsaro (1997) são indispensáveis para desconstrução das concepções que
desconsideram a infância e a criança em suas especificidades para dar lugar às concepções de
criança como sujeito social que possui suas próprias formas de vida, de desenvolvimento e de
significações, e de infância como categoria social do tipo geracional ‘e cultural’. Desse modo,
a cultura torna-se o ponto fulcral de todo o processo narrativo, partindo do princípio de que,
A infância é, simultaneamente, uma categoria social do tipo geracional, e um grupo social de sujeitos ativos, que interpretam e agem no mundo. Nessa ação
estruturam e estabelecem padrões culturais. As culturas infantis constituem,
com efeito, o mais importante aspecto na diferenciação da infância (SARMENTO, 2007, p. 36).
A contemporaneidade tem recebido várias configurações lexicais que buscam através
da perspectiva da cultura, explicar as abruptas mudanças e transformações da sociedade
contemporânea. Em meio a tensões e distintas concepções que vão desde a concepção de
modernidade tardia (GIDDENS, 1991), modernidade reflexiva (BECK, 1997), modernidade
líquida (BAUMAN, 2001), 2ª modernidade (LASH, 1997; SARMENTO, 2004) até a
hipermodernidade (LIPOVETISKY e SERROY (2011), não é possível determinar e reconhecer
um único modelo de sociedade, mas sim, reafirmar sua multiplicidade. Consequentemente, cada
concepção revisitada discute os impactos decorrentes, principalmente, do advento da
210
globalização (SANTOS, 2002) e dos fenômenos que impactaram novos paradigmas políticos,
econômicos e culturais que permeiam as formas de vida e as relações sociais deste novo
milênio, como o crescimento exponencial da Indústria Cultural e suas novas mídias digitais
audiovisuais (ADORNO, 2009; ADORNO; HORKHEIMER, 1985; LIPOVETSKY e
SERROY, 2011), bem como, a eclosão da Internet como novo espaço de comunicação e
socialização humana, constituído na/pela cultura-ciber ou cibercultura (LEVY, 1999).
De acordo com Hall (1997, p.2) desde o século XX vem ocorrendo uma “revolução
cultural” 109 que expandiu o domínio e as práticas culturais para além das fronteiras. Segundo
o autor, nem as Ciências Sociais e Humanas deu à cultura a centralidade e valorização que se
tem dado hoje para a compreensão das relações humanas na sociedade e nunca o acesso, a
informação e a comunicação entre os diferenciados e mais distantes povos e culturas tiveram à
disposição tamanha facilidade de produção, circulação e trocas culturais.
Essas novas condições de espaço e tempo gerados a partir das tecnologias e da revolução
da informação deram à cultura um significado público e global, “a cultura se torna pública
porque seu significado o é” (GEERTZ, 1978, p. 23). Neste sentido, a cultura já não é mais vista
como um território fixo, determinado e impenetrável, está sempre em transformação, mesmo
que os mecanismos de reprodução e reificação garantam a permanência de elementos
identificatórios de determinada cultura. Assim, a cultura contemporânea existe para além das
dicotomias, alta cultura/baixa cultura, cultura Europeia/Americana, cultura Arte/cotidiano,
cultura ideológica/material, e precisa ser entendida em toda sua complexa e cíclica extensão
estrutural, desse modo,
Ao mundo de ontem, no qual a cultura era um sistema de signos comandados pelas lutas simbólicas entre grupos sociais e organizava-se em torno de pontos
de referência sagrados, criadores de um universo estável e particular, sucede
o da economia política da cultura, da produção cultural, proliferante, indefinidamente renovada. Não mais o cosmo fixo da unidade, do sentido
último, das classificações hierarquizadas, mas o das redes, dos fluxos, da moda, do mercado sem limites nem centro de referência. Nos tempos
hipermodernos, a cultura tornou-se um mundo cuja circunferência está em
toda parte e o centro em parte alguma (LIPOVETISKY e SERROY, 2011, p. 9).
109 Stuart Hall (1997, p. 2) refere-se ao impacto que as novas tecnologias em escala e escopo globais
causaram nos modos de vida da sociedade acarretando mudanças na consciência popular e gerando uma rápida transformação social, principalmente em se tratando de “circuitos globais de trocas econômicas
dos quais depende todo o movimento mundial de informação, conhecimento, capital, investimento,
produção de bens, comércio de matéria prima e marketing de produtos e ideias [...]. É, especialmente,
aqui, que as revoluções da cultura a nível global causam impacto sobre os modos de viver, sobre o sentido que as pessoas dão à vida, sobre suas aspirações para o futuro — sobre a “cultura” num sentido mais
local”.
211
No contexto da cultura-mundo (LIPOVETISKY e SERROY, 2011), as culturas visuais
permeiam o universo infantil de modo significativo ampliando suas relações sociais e
estabelecendo novas formas de expressão e diálogo na contemporaneidade, consequentemente,
é preciso considerar a potência criadora da criança em produzir sua própria cultura a partir das
significações que estabelece frente às informações presentes nas pluralidades culturais que
constituem seu cotidiano.
Nesta direção, Sarmento (2007, p.36) reforça a ideia de que não há uma cultura infantil
pura, mas, uma “entre-cultura”, em que cada criança vive seu espaço social administrado por
sistemas simbólicos em que são permitidos ou não determinados comportamentos, nessa
perspectiva, as crianças criam estratégias para incorporar, interpretar e re/construir
“continuamente informações culturais, constituídas por valores, normas sociais, ideias, crenças
e representações sociais [...]”.
A partir da crítica pós-colonial (BHABHA, 2013, p. 29) a cultura é compreendida como
um lugar híbrido construído através de deslocamentos sociais projetados nas identidades que se
formam a partir das relações de alteridade. Nesta perspectiva, a criança vive também no “‘entre-
lugar’ de uma condição geracional em transformação, combinando em cada momento concreto
um passado e um futuro que se fundem, por vezes de forma caótica e através de impulsos
contraditórios” (DELGADO; MULLER, 2006, p. 19, grifo das autoras). Nas palavras de
Sarmento (2005):
O lugar da infância é um entre-lugar (Bhabha, 1998) o espaço intersticial entre
os dois modos – o que é consignado pelos adultos e o que é reinventado nos mundos de vida das crianças – e entre dois tempos – o passado e o futuro. É
um lugar, um entre-lugar, socialmente construído, mas existencialmente renovado pela acção coletiva das crianças (SARMENTO, 2005, p. 10).
As concepções de “entre-cultura” e “entre-lugar” remetem ao reconhecimento de
fronteiras110 culturais complexas e contingenciais que se entrelaçam nas relações estabelecidas
entre crianças e seus pares e entre crianças e adultos. Nesta perspectiva, as culturas infantis se
constituem nos espaços interstícios das fronteiras, aqui considerados como zonas de contato ou
contágio entre diferentes culturas, ou seja, a “entre-cultura” vista como intermezzo orquestrado
110 Do ponto de vista conceptual, fronteiras representam não só marcos divisórios, mas, uma realidade
transcendente, móvel, uma construção simbólica passível de ressignificações que ultrapassam limites geopolíticos. Na concepção de cultura, a dimensão de fronteira abrange a ideia de pertencimento,
identidade definida pela diferença e alteridade com relação a outros (BHABHA, 2013).
212
sob a regência infantil e o “entre-lugar” como o tempo e o espaço em que essa regência se
orquestra. Portanto, o “entre” significa o espaço intermediário, um intermezzo, localizado entre
as margens fronteiriças, assim,
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não
seja parte do continnum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e
interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver” (BHABHA, 2013, p. 29, grifo do
autor).
Disso decorre a noção de “entre-cultura” e “entre-lugar” como zonas de contato. Pensar
como se contactam, interagem e estabelecem trocas nas fronteiras é entender que as culturas
enquanto processos sociais e históricos, são contingenciais e híbridas, “mesmo que possuam
sofisticados mecanismos de reprodução e reificação; elas se transformam no tempo, assimilam,
rejeitam, reelaboram, recriam e mesclam coisas e ideias de outras culturas” (CARVALHO, C.,
2006, p. 55).
Nessa concepção, as crianças constroem suas culturas e criam possibilidades
imaginativas e concretas de racionalização, neste movimento, “a condição comum da infância
tem a sua dimensão simbólica nas culturas da infância” (SARMENTO, 2003, p. 2), no entanto,
“este universo não é fechado - pelo contrário, é mais do que qualquer outro, extremamente
permeável - nem lhes é alheia à reflexibilidade social global” (PINTO; SARMENTO, 1997,
p.22).
As tendências da sociedade moderna são globalizantes e abrangem a complexidade do
local e do global, numa constante adaptação entre a tradição e as mudanças e experiências da
vida cotidiana. Para Giddens (2012, p. 91) o reverso da medalha é menos evidente, tendo em
vista que as ações cotidianas de um indivíduo produzem consequências globais, portanto,
globalização e tradição se entrelaçam no contexto da sociedade contemporânea e estão
interligados ao caráter multidimensional da modernidade, caracterizando assim uma
“modernização reflexiva” (BECK, 2012, p. 12). O termo foi proposto para acentuar as ideias
de individualização e destradicionalização em que a tradição muda seu status e é contestada nas
experiências humanas constantemente, alterando o equilíbrio entre tradição e modernidade
(GIDDENS, 2012, p. 148). Tendo em vista que,
A experiência global da modernidade está interligada – e influência, sendo por
ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos acontecimentos
213
da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as características
intimas da vida pessoal e do eu tornam-se interligadas a relações de indefinida extensão no tempo espaço. Estamos todos presos às experiências do cotidiano,
cujos resultados, em um sentido genérico, são tão abertos quanto aqueles que
afetam a humanidade como um todo (GIDDENS, 2012, p. 94, grifo do autor).
Optei por dialogar com o campo da Cultura Visual por contemplar todas essas mudanças
em que se constituem as novas perspectivas culturais da infância na atualidade e por se tratar
de um campo aberto ao diálogo epistemológico transdisciplinar, crítico e interpretativo,
fundamentais para compreensão dos modos de ser e de viver das crianças e o desvelamento de
suas culturas. As visualidades são artefatos culturais que compõe o cenário da infância
moderna, exercem forte poder de persuasão, constituem e são constituídos nas diversas formas
de interação que estabelecem no ambiente social cotidiano. Partindo de uma visão crítica da
Cultura Visual, o que vai determinar a representação da imagem é o próprio sentido que cada
sujeito dará, e, em cada contexto, tendo em vista que a imagem tem caráter subjetivo,
multicultural e contingencial. Por isso, não se pode reificar a dimensão sociocultural da atenção
dada pelas crianças aos artefatos culturais, sobretudo, midiáticos, disponíveis em seus
cotidianos. Aliás, ignorar tal fato seria incorrer no erro de visualizar uma manifestação
importante e significativa da cultura infantil como se fosse algo comum e sem relevância,
A ausência de um olhar crítico e sem sentido de responsabilidade, pode deixar as pessoas vulneráveis à manipulação da crescente e inesgotável diversidade
de imagens - de arte, publicidade, ficção e informação - que, de múltiplas maneiras nos interpelam, invadem e sitiam nosso cotidiano. Imagens têm vida
cultural e exercem poder psicológico e social sobre os indivíduos. Este é o
princípio que fundamenta e orienta a cultura visual (MARTINS, 2008, p.34).
A indústria cultural no contexto da Cultura Visual em tempos de globalização e
cibercultura, apresenta um vasto repertório de representações e significados que individualizam
e ao mesmo tempo pluralizam a tradição no prisma de modernização, ainda assim, os novos
artefatos culturais do mundo globalizado que potencializam as estratégias econômicas,
tomaram proporções irredutíveis que impactam diretamente e indiretamente as formas de vida
e de convivência social, o local e o global se comunicam e se integram incessantemente ao
fluxo de visualidades, informações e realidades múltiplas e cada vez mais incertas.
Consequentemente, as culturas infantis contemporâneas convivem neste fluxo e precisam
estabelecer relações críticas e de resistência aos impulsos e imposições midiáticas inadequadas
à sua condição de criança.
Dado o exposto, a problemática da vida social moderna retoma a importância de
214
reflexionar as concepções de criança, infância e culturas infantis presentes na
contemporaneidade tanto no campo da Sociologia da Infância quanto na Cultura Visual e
entender como se estabelecem as zonas de contato fronteiriças nas entre-culturas e entre-lugares
da infância. Considerando que a “fronteira” é um lugar de produção de culturas e de negação
da unicidade, linearidade e homogeneidades e o “lugar” compreende o espaço social, cultural e
político no qual a criança se faz presente e é presença. Destarte, pensar no universo das culturas
infantis na perspectiva da Cultura Visual requer um movimento constante de reflexão sobre que
espaços e territórios pertencem às crianças e como estes espaços são ou não respeitados nas
visualidades midiáticas.
Tais reflexões me direcionaram a outros questionamentos relevantes: Como as crianças
e as infâncias estão sendo representadas na indústria cultural moderna e como essas
representações repercutem nos modos de ser e viver das crianças ao constituírem suas culturas?
Como reconhecer o que é próprio de cada cultura? É possível falar de fronteiras quando se trata
de Cultura Visual?
Parto do princípio de que as culturas infantis estão entrelaçadas ao conceito geral de
culturas, assim, nossa pretensão não é separar esses conceitos, mas, especificar, contextualizar
e relacioná-los entre si. Afinal, um depende diretamente do outro e ambos se constroem
mutuamente. Neste sentido, as culturas infantis são constituídas e constituem o contexto mais
amplo de realidade cultural das crianças, ou seja, emergem nas entre-culturas e entre-lugares
das infâncias que surgem do entrelaçamento de várias culturas e no contexto de vários lugares.
Ante o exposto, este ensaio oferece uma visão panorâmica sobre as principais
concepções histórico-sociais de crianças e infâncias narradas em textos escritos e imagéticos
que circulam nos entre-lugares da Ciência e da Cultura Visual, convidando o leitor/espectador
a novamente mergulhar em reminiscências, memórias, histórias e realidades nas quais a criança
marcou sua passagem.
215
2 A I/MA(r)GEM DA CRIANÇA NAS PRIMEIRAS CONCEPÇÕES DE
INFÂNCIA
A conhecida história é contada por Watter Benjamin:
um bêbado procurava afanosamente sob um candeeiro uma
moeda que perdera. Perguntado onde a tinha deixado cair,
respondeu que havia sido algures sob a sombra; mas
procurava-a ali, sob o candeeiro, não porque ela lá estivesse,
mas porque' só aí havia luz e esta era condição para a achar.
Demasiada luz encandeia; a possibilidade de encontrar a
moeda sob uma luz que exclui para a sombra o espaço que não
atinge é altamente remota. Nesta relação, entre uma luz que
aumenta a escuridão do que não atinge e uma sombra que
aumenta a sua inacessibilidade pela vizinhança de uma área
iluminada, encontramos um dos efeitos perversos do
conhecimento constituído. O que é iluminado pela ciência torna
duplamente desconhecido tudo aquilo que a ciência (ainda?)
não pôde alcançar: desconhece-se o que está oculto e não é
susceptível de ser procurado, porque não está previsto o seu
achamento, mesmo que esteja ali ao lado, como a moeda,
escondida péla escuridão redobrada pela luz vizinha
(SARMENTO, 2007, p. 25).
Esta saudosa história transcrita por Sarmento (2007, p. 25) em seu texto “Visibilidade
Social e Estudo da Infância” problematiza, justamente, a invisibilidade da criança nos âmbitos
histórico, cívico e científico. Faço essa escolha para corroborar com a ideia de marginalidade
social da criança que venho discorrer nas páginas subsequentes. Para Sarmento, as concepções
historicamente construídas sobre as crianças e os modos como elas foram representadas em
imagens sociais, ora esclarecem, ora ocultam a realidade dos mundos sociais e culturais das
crianças, na complexidade da sua existência social, como consequência, as vivências, culturas
e representações das crianças “escapam ao conhecimento que delas temos”, pois são produzidos
a partir de uma perspectiva “adultocentrada” (SARMENTO, 2007, p. 25). E apesar das
inúmeras iniciativas científicas em qualificar, classificar e homogeneizar a criança e seu
desenvolvimento, as ciências não conseguiram descobrir e conhecer de fato quem são essas
crianças, porque longe de etapas e níveis, elas (as crianças) não se enquadram em modelos,
padrões ou conceitos fechados.
216
Portanto, assim como a moeda perdida na escuridão, aumentada pela luz do candeeiro
que não a atinge, a infância permaneceu por muito tempo à margem da vizinhança iluminada
que redobrava a escuridão na qual, logo ali ao lado, ela se encontrava. Desse modo, este
movimento de “iluminação-ocultação exprime-se nos saberes constituídos sobre as crianças e
a infância” que se conhece, há tempos, nos livros. Neste sentido,
Uma ruptura epistemológica no conhecimento sobre a infância e sobre as crianças - que tem vindo a ser defendida no interior do campo dos "estudos da
infância" em plena constituição - é condição essencial para procurar a luz que
nos permita ir tacteando as sombras (SARMENTO, 2007, p. 25, grifo do autor, grifo do autor).
Neste capítulo procuro responder a seguinte questão que imagens de crianças e infâncias
têm sido discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências Humanas e Sociais? Para
tanto, evidenciei as principais concepções de crianças e infâncias histórica e socialmente
constituídas a partir de determinados momentos históricos. As concepções de criança e infância
vinculam-se à construção social que se desenrola de acordo com cada período histórico, cujos
acontecimentos constroem suas respectivas facetas. Logo, a dicotomia “passado versus
presente”, já anunciada pelo positivismo, se re/estabelece num processo ad infinitum
repercutindo diretamente numa mudança dialética paradigmática, agora, conjugada na
inseparabilidade desses fenômenos. Nesta perspectiva, para pensar as culturas infantis na
contemporaneidade torna-se necessário revisitar o lugar da criança na história, reestabelecendo
diálogos epistemológicos entre infância, cultura e sociedade, para só então, compreender as
concepções atribuídas à criança ao longo de diferentes épocas e contextos.
Nesta perspectiva, este capítulo rememora fatos históricos relacionados às crianças,
infâncias e culturas infantis que foram representados através da imagem, à medida que os
modos de ser e de viver das crianças em cada época, eram representados através do olhar
artístico e discutidos à luz das Ciências Humanas e Sociais. Fatos esses que nos ajudam a
reviver o processo de construção histórica e social da infância, à medida que esta discussão
reapresenta imagens que foram retratadas a partir de fontes históricas e científicas,
possibilitando assim, reflexionar as concepções, as condições em que viviam, os lugares, o
tempo e espaço ocupados pela criança na sociedade.
Desse modo, a partir de uma interlocução transdisciplinar entre História, Sociologia e
Cultura Visual e seus segmentos nas Ciências Humanas e Sociais, destaquei a trajetória
conceptual de infância considerando as implicações históricas e sociais dos modos de vida das
crianças em diferentes épocas e contextos a partir da História Social da criança e da Sociologia
217
da Infância sob perspectivas fotoetnográficas, adaptadas à perspectiva do memento que, neste
contexto em particular, consistiu em “reviver” os momentos históricos, “sentir” as emoções e
singularidades desses momentos e “compreender” a infância a partir dos modos de ser e viver
das crianças em cada época retratada.
A presente investigação foi desenvolvida a partir de referências teóricas e iconográficas,
ora de fontes escritas, e ora de fontes imagéticas. Foram consultados os principais estudos
clássicos que fundamentaram a História da Criança e a Sociologia da Infância, cruzando
informações com as fontes iconográficas da Cultura Visual europeia. Tanto as já discutidas nas
fontes escritas quanto as que foram encontradas em coleções de museus e de historiadores em
particular, inventariadas e catalogadas em acervos digitais CAPES, ANPEd e SciELO.
As imagens estão dispostas ao longo da narrativa escrita, porém, seguindo a dimensão
conceptual de uma narrativa visual. Apesar de estarem fixas, indicam um movimento sequencial
e dinâmico revelando que a infância passou por várias concepções e situações que não cabem
em um único conceito, mas aproximam-se de concepções e construções teóricas produzidas a
partir de cada contexto histórico e social no qual as imagens foram produzidas. Entretanto, a
ideia sequencial não obedece necessariamente um tempo cronológico determinado, mas aponta
para a trajetória conceptual da categoria infância à luz das teorias abordadas, na tentativa de
mostrar visualmente os conceitos empregados (ACHUTTI, 2004), desse modo, as imagens
caminharam entre os séculos XV e XX, centrando-se, principalmente, no século XVII, em que
ocorreram as principais mudanças conceptuais e iconográficas na perspectiva de Ariès (1981,
p. 65).
Neste contexto, a influência da Cultura Visual pode ser vista sob dois ângulos: o
primeiro como expressão cultural que tenta reproduzir contextos, costumes, crenças, cotidianos
e imaginários que compõem cada realidade retratada; o segundo como fonte documental direta
e/ou indireta que influenciou e ainda influencia, a construção de narrativas sobre história,
cultura e sociedade, e em particular, sobre a infância. Portanto, nesta Fotoetnografia tentei
contemplar esses dois aspectos.
A iconografia da criança tem sido muito pesquisada no campo das Ciências Sociais. As
contribuições de teóricos internacionais como Ariès (1981), Del Priore (1999), Rice e Rice
(1998), Sirota (2001), Sarmento (2002), Loic Chalmel (2004) e Heywood (2004), além de
nacionais como Freitas (1997), Kuhlmann jr. (1998), Abramowicz (2011), entre outros, foram
fundamentais para a consolidação histórica e social destas categorias. Destes contributos, dois
autores se destacam veemente na literatura: Philippe Ariès (1981), importante historiador
francês que contribuiu com os estudos sobre criança e infância, descrevendo a evolução
218
histórica desses conceitos em obras como “Séculos de Infância: História Social da Criança e da
Família”, publicado originalmente na França e Inglaterra em 1960, nos Estados Unidos em 1962
e em 1973 no Brasil (contando atualmente com várias reedições), tornando-se referência
mundial para a compreensão das transformações culturais vivenciadas por crianças em épocas
medievais; e Manuel Jacinto Sarmento (2007), sociólogo português, precursor da nova
Sociologia da Infância, tem sido o grande interlocutor entre pesquisadores brasileiros e
europeus na contemporaneidade. Ambos indispensáveis para a investigação das concepções de
criança, infância e culturas infantis em diversas áreas do conhecimento. Porém, outros autores
também servirão de aporte teórico para problematização desta temática.
A trajetória conceptual de crianças e infâncias decorre de um longo percurso histórico-
social de inferioridade e marginalidade construídos a partir da ausência do sentimento de
infância, dada sua inferioridade em relação aos adultos e sua exclusão social, quer seja familiar,
moral ou econômica (ARIÈS, 1981, p. 156). Tais circunstâncias relegara à infância um não-
lugar na sociedade e a condição de não-falante, daí a nomenclatura infância (in-fans – sem fala)
que define o conceito de criança em períodos medievais. Etimologicamente o termo origina-se
do Latim “infantia” que corresponde a junção de “in” que significa negação de um verbo e
“fari” que significa “falar”, onde sua conjunção “fan” significa “falante”, portanto, “infans”
refere-se aos indivíduos que ainda não possuem a linguagem, o infante é aquele sem fala
(SIROTA, 2001). A infância durante os séculos XII até meados do século XVIII era uma fase
da vida anônima e as crianças eram consideradas como adultos em miniaturas “homúnculo”
(ARIÈS, 1981, p. 51).
A cultura europeia exerceu significativa influência nos primeiros registros iconográficos
de crianças sobre como viviam e eram representadas pela sociedade medieval. Ariès (1981) foi
o “pioneiro da história da infância, bem como no uso de imagens como evidência” (BURKE,
2004) para referenciar a criança através das concepções histórica e cultural estabelecidas sobre
a imagem do “homúnculo111”, ou seja, do “adulto em miniatura”.
Para tanto, Ariès (1981, p. 51-52) dá ênfase à pintura barroca e renascentista da arte
europeia para referenciar a representação da criança e designar a ausência do sentimento de
infância, destaca as obras de pintores famosos para evidenciar que “no mundo das fórmulas
românticas, e até o fim do século XVIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão
particular, e sim homens de tamanho reduzido”. Para chegar a esta conclusão, Ariès (1981)
111 Em latim, "homúnculus” palavra derivada no plural que se origina de “homullus” que significa “pequenos
humanos”.
219
estudou escritos da época, observou a representação das crianças e da infância na arte pintura
europeia, atentando para seus modos de vestir e de conviver com o adulto, em particular,
também olhou para a história dos jogos e passatempos. Fundamenta seus achados através de 26
pinturas, em que crianças eram retratadas como uma projeção do adulto.
De acordo com o historiador, a família, como estrutura social paradoxalmente não tinha
lugar na sociedade dos séculos XII ao XV, tampouco existia sentimento que lhes conferisse
status e valor. Até o final do século XVI e início do século XVII a sociabilidade se restringia
aos indivíduos das classes abastadas, das famílias ricas do campo ou da cidade, da aristocracia
ou da burguesia e sem distinção geracional. Num contexto de ausência de sentimento de família,
as crianças misturavam-se aos adultos e após a 1ª idade aos 7 anos ingressavam, imediatamente,
na grande comunidade dos homens, participando de todas as atividades públicas sociais e de
trabalho.
Na cultura europeia a identificação de criança era baseada em características físicas
entre o nascimento e a aparição dos dentes, conforme descrição de Le Grand Propriétaire, citado
na obra de Ariès (1981):
A primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando
a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não-falante, pois nessa idade a
pessoa não pode falar bem nem tomar perfeitamente as palavras, pois ainda
não tem seus dentes bem ordenados nem firmes (ARIÈS, 1981, p. 36).
As crianças só recebiam tratamentos diferenciados até o desmame, quando não mais
dependiam da mãe ou das amas de leite, passavam a conviver em sociedade com os adultos
participando ativamente das rotinas familiares, das reuniões sociais e das jornadas de trabalho,
inclusive não eram poupadas nem de assuntos íntimos, sendo expostas à cenas libidinosas em
festividades. Essa falta de atenção específica, explica o alto índice de mortalidade da época, por
isso, as famílias eram numerosas e não tinham muito apego às crianças (ARIÈS, 1981, p. 56-
57).
De acordo com Ariès (1981, p. 9-27) quando as crianças apareciam em pinturas e
esculturas tinham uma musculatura adulta, não se considerava idade biológica, apenas o
tamanho remetia à altura de uma criança. Outra forte evidência eram as vestimentas, pois os
trajes apenas indicavam a condição social dos indivíduos, não havia distinção nítida entre
roupas infantis e adultas, femininas e masculinas de crianças, o que levou o autor a afirmar a
ausência da “consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (ARIÈS, 1981, p. 156). De acordo com o
220
autor, as etapas da vida humana estão divididas em seis fases: a 1ª idade - do nascimento até 7
anos; a 2ª idade - dos 7 anos até 14 anos; e a 3ª idade - dos 14 aos 21 anos; 4ª idade - dos 21
anos até 45 anos; a 5 ª idade (a senectude) - considerava a pessoa que já tinha passado pela
juventude e que não era velha; a 6ª idade (a velhice) - a partir dos 60 anos. As três primeiras
idades não eram valorizadas somente a partir da 4ª idade as pessoas eram reconhecidas
socialmente. Até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância, sendo as duas
palavras ambíguas.
Em se tratando da representação iconográfica, Ariès (1981, p. 50-51) afirma que as
crianças raramente eram retratadas no período medieval, que compreende o período entre o
século V ao século XV, havia uma indiferença generalizada em relação às crianças,
principalmente relacionada à sua morte precoce e frequente. As famílias não se apegavam às
crianças, pois era muito comum perdê-las logo cedo. Nesta perspectiva, a infância era uma fase
sem importância e a morte de crianças era considerada uma perda eventual, portanto as crianças
não eram dignas de lembranças.
Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil,
em que a possibilidade de perda é muito grande, no fundo não está muito longe
da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas, que praticavam o abandono das crianças recém-nascidas. Compreendemos então o abismo que
espera a nossa concepção da infância anterior à revolução demográfica ou a
seus preâmbulos (ARIÈS, 1981, p. 57).
Isto explica a falta de registros na Idade Média e a iconografia tardia, limitando assim,
as informações e demonstrando principalmente a influência dos ‘modos de vida adulto’ na vida
das crianças, essa influência se materializou nas imagens que revelam comportamentos e
sentimentos de uma ‘não infância’.
De fato, tornou-se difícil até mesmo imaginar quão poucas imagens estavam em circulação geral durante a Idade Média, uma vez que manuscritos
ilustrados que hoje nos são familiares em museus ou em reproduções
encontravam-se geralmente nas mãos de particulares, deixando apenas retábulos de altar ou afrescos em igrejas visíveis para o público em geral
(BURKE, 2004, p. 21).
Desse modo, as imagens selecionadas para análise se referem à Idade Moderna, esta
escolha se deu em função da discussão empreendida na obra de Ariès (1981, p. 156) que defende
a ideia da infância como uma invenção moderna e sua possibilidade de emergência relaciona-
se ao desenvolvimento da escrita e da escola, além de outros fatores, tais como o decréscimo
221
da mortalidade infantil, a influência do cristianismo e as novas formas de vida familiar. Porém,
dialogamos também com outros corpus investigativos, como artigos científicos, livros de
História relacionados aos aspectos sociais e culturais da infância nesta época, além de sites e
blogs de Arte.
Ariès (1981, p. 54) assevera que entre os séculos XII e XV, a criança foi representada
na imagem a partir de uma forte influência religiosa, caracterizada pela tríade: imagem do “anjo
adolescente” (aparência de um rapaz jovem para designar a criança); a imagem do “menino
Jesus” (a infância aparece relacionada aos mistérios da maternidade), com um acento de ternura
e ingenuidade, onde o menino Jesus nunca aparecia despido, um reflexo da ideologia religiosa
e sagrada que envolvia a representação de Cristo como Salvador; E a imagem da “criança nua”,
a primeira referência na arte medieval da consciência da particularidade infantil (ARIÈS, 1981,
p. 64). Os artistas exploravam imagens de crianças nuas como uma pequena versão de adulto,
com rostos e características “crescidas” e corpos alongados. Na arte medieval francesa a alma
era representada por uma criancinha nua e geralmente assexuada. Entretanto, o menino Jesus
nunca aparecia despido, “era castamente enrolado em cueiros ou vestido com uma camisa ou
camisola” (ARIÈS, 1981, p. 53).
Já na Idade Moderna, durante o século XVI surge à imagem do “putto”, a representação
de uma criancinha nua, que lembra um querubim, representa uma revivescência do Eros
helenístico. Nesta representação, a nudez foi bastante acentuada na Europa em pinturas de
Madonna, crianças e inclusive do menino Jesus. No entanto, o putto nunca foi uma criança real
e histórica, segundo Ariès: “Não se imaginava a criança histórica, mesmo muito pequena, com
a nudez da criança mitológica e ornamental, essa distinção persistiu durante muito tempo”
(ARIÈS, 1981, p. 63).
Na tela “Madonna do Goldfinch” (1506) 112 de Raffaello Sanzio, um dos ícones da
pintura Renascentista do início do século XVI, muito conhecido pelas suas Madonnas (quadros
que remetiam à imagem da Santíssima Virgem e narravam histórias bíblicas), é possível
observar em high key que o artista apresenta uma figura feminina em momento devocional junto
a duas crianças que interagem entre si, uma que remete à imagem da criança nua e a outra à
figura de um putto, características da transição entre o século XV e o século XVI. Ariès relata
112 QRcode 31: Madonna do Goldfinch (1506).
222
que as figuras do putto invadiram a iconografia do século XVI, se tornando um motivo
decorativo repetido “ad náuseam” (ARIÈS, 1981, p. 62).
O foco principal da imagem está na relação afetiva entre a figura materna e às crianças.
Em low key as vestes da Madonna lembram a imagem religiosa da mãe de Jesus, porém, dá tons
mais acentuados como azul e vermelho. Em high key, a mão esquerda da Madonna segura um
pequeno livro aberto, provavelmente contendo assuntos religiosos. E com a mão direita apoia
suavemente uma das crianças (a real) o que também a faz direcionar seu olhar, desviando assim,
a atenção da leitura devocional, no entanto, esse olhar é delicado e de admiração, esta criança
veste um traje próprio da sua idade. A outra criança (mitológica) está representada como um
putto e tem seu corpo nu.
Raffaello Sanzio desenha os traços do corpo infantil com contornos bem acentuados,
quase musculosos. Ao comparar a expressão facial das crianças, percebe-se em low key que
umas delas (putto) tem um olhar denso, quase perverso, diferente do olhar da outra criança
(real) que tem feições mais angelicais. Nesta perspectiva, é visível a referência à ideologia
religiosa, inclusive, o próprio cenário da imagem mostra-se como parte do Jardim do Éden,
onde foi narrada a história de Adão e Eva presente no Livro de Gêneses (Gen., 2;3), pois é
composto por algumas árvores, um riacho, nuvens em um céu azulado, pequenas flores pelo
chão, gramas, rochas e montanhas ao fundo.
O Éden frequentemente fez parte da arte europeia, inspirando muitas lendas e mitos em
relação ao bem e ao mal, ao pecado do homem e ao fruto proibido113. Desta forma, a leitura
sensível desta cena permite idealizar quatro aspectos: o paraíso através dos tons clássicos da
natureza celeste; a inocência do putto em contraponto com um olhar mais endurecido das
feições adultas presentes no desenho da criança desta época; a necessidade da purificação da
alma adulta em busca de sua salvação e a interação afetiva entre as crianças com a natureza,
considerando que ambas acariciam uma espécie de ave. As cenas de cunho religioso geralmente
apresentam contradições entre o puro e o profano, o sagrado e mitológico, o bem e o mal, essas
contradições dialogam com as perspectivas do arbítrio humano, no qual tenciona-se a essência
da alma humana em permanecer ou desviar-se do caminho da purificação.
Em síntese, a iconografia referente à infância na Idade Média limita as informações e
113 QRcode 32: Chicangana-Bayona (2013).
223
demonstra principalmente a influência dos modos de vida adulta na vida da criança. Essa
influência se materializava nas imagens que expressavam comportamentos e sentimentos de
uma “não-infância”. No entanto, se considerarmos que a infância retratada por Ariès tinha um
tempo e um modo próprio daquele contexto e daquela cultura, não se pode aplicar, portanto,
tais representações a todas as crianças e em todos os contextos.
Porém, entre os séculos XVI e XVII se desenvolve o sentimento de infância, e se estende
a todas as camadas sociais, no entanto, à custa de isolamentos demográficos e sociais. Cada
núcleo familiar exercia sua função mantenedora, mas relegava o campo da sensibilidade. Neste
sentido, em uma de suas afirmações mais polêmicas, Ariès (1981) afirma que na sociedade
medieval, a ideia de infância não existia, sendo, portanto, uma invenção moderna, sendo que
sua possibilidade de emergência, relaciona-se ao desenvolvimento da escrita e da escola, além
de outros fatores, tais como o decréscimo da mortalidade infantil, a influência do cristianismo
e as novas formas de vida familiar.
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e
XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente
numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII (ARIÈS, 1981, p. 65).
Associado ao “novo” sentimento de infância, uma evolução nas representações
imagéticas de crianças marca o século XVI. Influenciada pelas ideias do cristianismo europeu,
as sociedades passaram a registrar as crianças com maior frequência, tanto as que sobreviviam
às suas ‘não-infâncias’, quanto as que morriam ainda pequenas, desse modo, o registro artístico
era feito com o objetivo de conservar sua lembrança, pois segundo Ariès (1981, p. 58) “o retrato
da criança morta, particularmente, prova que essa criança não era mais tão geralmente
considerada como uma perda inevitável”.
Neste contexto, a mortalidade infantil tornou-se uma preocupação social, em vista disso,
as famílias passaram a considerar a criança em suas limitações e fragilidades enquanto seres
dependentes e fracos, porém, contraditoriamente, mantiveram as atribuições direcionadas à
criança que desconsideravam as limitações do corpo infantil, levando-as a trabalhar nas mesmas
condições dos adultos, sem tratamentos diferenciados na saúde, tampouco na convivência social
em festas de todos os gêneros, desde festas religiosas à jogos de azar (Ariès, 1981, p. 87-88).
De acordo com Ariès (1981, p. 277), no início do século XVII, com a influência
eclesiástica e o sentimento de infância, principalmente, no contexto burguês, a família assumiu
funções morais e espirituais “passando a transformar os corpos e as almas”, consequentemente,
224
“o cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos” que refletiram,
diretamente, na iconografia daquela época, a qual “exprimiu com insistência e gosto: o [novo]
sentimento moderno da família”. Com isso, Ariès (1981, p, 61) afirma que nessa época,
Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo, em estabelecer
apenas alguns deles, desinteressando-se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho - e, no
fim do século XVII, até mesmo às meninas - uma preparação para a vida.
Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola (ARIÈS, 1981, p. 272).
Além da escola, havia a preocupação da igreja em relação ao infanticídio e com a
interferência dos poderes públicos, a proteção e o cuidado passaram a ser uma prioridade
principalmente para as mulheres, no caso, amas e parteiras, criando uma nova concepção sobre
a manutenção da vida infantil, “[...] como se a consciência comum só então descobrisse que a
alma da criança também era imortal”, essa importância estava diretamente associada a uma
cristianização mais profunda dos costumes (ARIÈS, 1981, p. 61). No entanto, ao ingressar na
escola, a criança imediatamente passava a fazer parte do mundo dos adultos, “essa confusão,
tão inocente que passava despercebida, era um dos traços mais característicos da antiga
sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida em que correspondia a
lago enraizado na vida” (ARIÈS, 1981, p.109).
Em meio a essas reconfigurações históricas e sociais que sinalizaram a mudança de
paradigmas entre a Idade Média e a Moderna, o século XVII configura-se como um período de
grande importância para a evolução dos temas relacionados à infância. Segundo Ariès (1981,
p. 58) a criança começa a ser retratada sozinha e sua expressão é menos desfigurada que na
Idade Média. Neste período, iniciam-se também os primeiros estudos sobre a psicologia
infantil. Estes estudos buscavam compreender melhor a mente da criança para melhor
adaptação dos métodos utilizados na educação.
Segundo Ariès (1981, p. 60) os pintores buscavam conservar através da arte o aspecto
fugaz da infância, neste sentido, a criança passou a ser retratada com alguns traços mais
225
singulares através das mãos de artistas famosos Rubens, Van Dyck, Franz Hals114, Le Nain115
e Philippe de Champaigne. As pinturas clássicas estavam presentes, principalmente, na vida das
famílias burguesas que podiam encomendar a arte e subsidiar os artistas que durante meses e
anos, produziam cenas da vida real com precisão. No entanto, alguns artistas como Franz Hals,
Le Nain e Jan Steen116 também retrataram a vida de famílias camponesas através de trabalhos
para caridade ou para seus acervos pessoais.
Na sequência, apresento uma narrativa escrita referente à trajetória conceptual de
infância no século XVII, inspirada nas contribuições de Ariès (1981). Narrativa esta, que fez
parte da Fotoetnografia disposta no 2º Click desta tese117.
Um dos primeiros artistas a acrescentar em suas obras representações de crianças foi
Peter Paul Rubens, um pintor flamengo de estilo barroco, cujas obras são principalmente
baseadas em assuntos mitológicos e alegóricos. Rubens misturava temas que variavam entre
fantasias e realidades, apelando até para sensualidade muito presente nas lendas romanas. As
crianças não eram o interesse deste artista, mas em algumas pinturas encomendadas ou de seu
acervo pessoal, ela compunha o cenário pintando crianças.
Como no caso da tela “Deborah Kip, épouse de Sir Balthazar Gerbier et ses enfants”
(1629-1645), em que o artista retratou em gratidão ao anfitrião e para sua própria recordação, a
esposa e os filhos de seu amigo - Balthasar Gerbier, que lhe hospedou por meses em sua
residência em Londres. A tela apresenta em high key uma cena doméstica de uma família
abastarda holandesa composta por quatro crianças e sua mãe, de nome Deborah Kip. O cenário
é composto por um amplo terraço que tem em sua extremidade esquerda cariátides que se
entrelaçam como colunas suportando o pavilhão, dando um ar suntuoso à cena. Outro detalhe
114 QRcode 33: Biografia Franz Hals.
115 QRcode 34: Biografia Le Nain.
116 QRcode 35: Biografia Jan Steen.
117 Ensaio II, capítulo 6: 2º click - do homúnculo à criança social: infâncias em peles magicizadas.
226
é a presença de um papagaio azul pousado na cadeira em que Deborah está sentada, símbolo da
riqueza aristocrática e influência da mitologia grega que remete à ideia de mãe perfeita. Mesmo
com todo esse glamour, é perceptível em low key que Rubens deu maior ênfase na relação
afetuosa entre mãe e filhos, como foco central desta obra de arte.
O luxo também pode ser percebido nas vestimentas da família. Deborah veste uma
elegante saia verde com bordados dourados e uma blusa de cetim brilhante que varia entre um
azul bem claro ao prateado, também usa um gorro bordado do mesmo tecido da blusa. O filho
George, à esquerda da sua mãe, vestido de mangas longas vermelhas, segura com sua mão
direita uma cortina vermelha volumosa com franjas douradas e olha fixamente para sua mãe.
Ao seu lado sua irmã Elizabeth, usando um longo vestido preto com um pequeno detalhe de
tecido transparente nas costas, olha de modo sereno diretamente para o espectador (no momento
da cena, o pintor).
Do mesmo modo sua irmã Suzan, de expressões mais angelicais, usa vestido longo azul
escuro com avental sobreposto feito de cetim branco, olha mais timidamente para direção do
espectador/pintor, apoiando seu braço direito no colo de sua mãe e o braço esquerdo segura
discretamente seu vestido, ressaltando ainda mais sua timidez. Deborah levemente inclina seu
rosto e mantém um olhar discreto e distante, quase triste, olhando em direção ao vazio. Segura
em seu colo um bebê aparentemente nu, remetendo a imagem do putto, não encontrei
informações sobre o sexo e o nome deste bebê. As descrições em high key desvelaram uma
imagem com tons escuros que sinalizam elementos de uma família da classe alta que exibem
belos trajes de nobreza. Porém, em seus olhares tímidos e distantes, percebe-se em low key certa
melancolia, até mesmo tristeza.
Portanto, na iconografia do século XVII, as crianças aparentam traços mais delineados,
perdendo, de certa forma, o peso da adultez, o modo de vestir as crianças se diferencia das
vestimentas dos adultos. Como visto na tela de Van Dyck, outro artista flamengo de estilo
barroco, o principal pintor da corte inglesa. A pintura “Los hijos mayores de Carlos I” (1637),
representa os cinco filhos mais velhos do rei Carlos I da Inglaterra, trata-se de uma cena
especialmente, organizada para a ação do retratista.
A tela apresenta em low key cinco personagens, a criança no centro é o futuro herdeiro
Charles II (7 anos) que exibe uma solene veste vermelha composta de tecido brilhoso e rendas
brancas, usa sapatos dourados de salto e ponta fina, com detalhe na frente em tecido que imita
uma rosa vermelha, sobressaindo-se assim, dos demais. À esquerda estão Mary, a princesa Real
(6 anos) e James II de Inglaterra (4 anos), ambos exibem vestimentas longas feitas de seda
brilhosa com aplicações de rendas delicadas, ela com arranjo de flores no cabelo e colar de
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pérolas, e ele com gorro bordado na cabeça. À direita, duas filhas mais novas, Isabel também
representada de maneira suntuosa com um longo vestido de seda azul com rendas brancas, um
gorro de renda na cabeça, e portando brinco e colar de pérolas. E Ana, nascida há poucos meses,
no colo da irmã Isabel. Em low key, pode-se afirmar que a aparência de Ana remete à ideologia
religiosa do putto, nu e semi-envolto no lençol branco de linho sobre o qual está deitado
(ARIÈS, 1981, p. 64), também tem uma touca bordada na cabeça, sinalizando os traços de
realeza da época.
O cenário foi especialmente preparado para a cena, sendo notável o luxo impetuoso da
realiza. As crianças estão postas em uma possível sala de refeições em que ao fundo abre-se
uma cortina verde aveludada com franjas douradas nas pontas, com isso, avista-se uma pequena
paisagem que aparece logo na abertura, clareando o ambiente. Também compõe o cenário dois
utensílios de ouro, uma jarra e uma fruteira, dispostos numa enorme mesa coberta com uma
toalha de veludo vermelho. Destaca-se também na imagem, a figura de dois cães, que na época
era símbolos de fidelidade e lealdade, segundo Hickman (2013, p. 132) os “cães eram pintados
porque eram adorados”. Apoiando o braço esquerdo do príncipe, um enorme mastiff, que porta
uma larga coleira de bronze marcada com o brasão real.
Partindo de um olhar contemporâneo, seria impossível distinguir o sexo masculino de
James II de Inglaterra (4 anos) ao olhar para as crianças desta cena, cujo traje se iguala ao de
sua irmã Mary, a princesa Real (6 anos). Nesta época era muito comum o uso de saias em
crianças, principalmente no contexto real. Também se percebe nas partes ocultas da cena, que
as posturas das crianças maiores demonstram seriedade, provavelmente, devido às
responsabilidades e comportamentos de uma família real, de modo contrário, as crianças mais
novas demonstram atitudes mais infantis.
Com um ar menos formal, a pintura de Le Nain presente na coleção particular do Castelo
de Lowther em Penrith, Inglaterra, intitulada de “Preparations for the Dance” (1643) apresenta
em high key seis crianças dançando ao som de um flautista, aparentemente, de 3ª idade na
perspectiva de Ariès (1981), acompanhados por uma babá que, provavelmente, também orienta
os preparativos da referida merrymaking (atividade festivas).
Algumas observações em low key são percebidas em três das crianças retratadas – duas
ao centro e uma na extremidade direita - olham diretamente para o espectador (pintor), suas
expressões parecem comunicar certa preocupação com o andamento da apresentação, ora
demonstrando timidez, ora chegando ao desprazer em tal exposição. Do mesmo modo, a postura
e a expressão facial da menina à esquerda, que veste saia vermelha e avental sobreposto azul,
não parecem demonstrar satisfação. De maneira contrária, a menina maior, de vestido amarelo-
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esverdeado e avental sobreposto azul, aparentemente sorri e movimenta-se performaticamente
demonstrando prazer em sua apresentação. Assim como, a criança de casaco vermelho ao seu
lado, também expressa um discreto sorriso, mostrando-se compenetrada na dança e na canção.
Notadamente a babá é mais sorridente na imagem, sua fisionomia revela alegria, satisfação e
entusiasmo, como se estivesse orgulhosa da apresentação das crianças.
As vestimentas remetem às pessoas camponesas, feitas de tecido simples e com alguns
pequenos retalhos. Quase todos estão usando adornos na cabeça como gorros e chapéu. Tanto
o flautista quanto uma das crianças, a de maior idade em comparação a outras, estão com os
pés descalços, os demais personagens estão usando sapatos. O artista não investe muito no
cenário, que apesar de ser muito escuro, parece ser um espaço doméstico, pois ao fundo dá para
perceber uma grande lareira, alguns jarros e um porta-retratos. Contudo, em low key, a cena não
realça a infância, não tem alegria nos olhares, falta à leveza nas crianças.
A forte tendência em dominar e moldar o comportamento infantil levavam as crianças
a se submeterem aos modelos dos adultos, tanto nas vestimentas quanto nos modos de se
expressar. Essa tendência se materializava no cotidiano das famílias onde se estabeleciam
padrões de comportamento como forma de dominar e controlar os impulsos infantis (ARIÈS,
1981). No século XVII também emerge outra concepção de criança marcada pelas
transformações sociais, reformas religiosas e pela afeição no que se refere ao apego das famílias
às crianças. Surge, portanto outra concepção de sentimento de infância, mas com tendência ao
que Ariès (1981, p. 158) chamou de paparicação, ou seja, "a criança, por sua ingenuidade,
gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto"
Entretanto, Ariès (1981) caracterizou esse sentimento como “superficial”, pois assim
que as crianças cresciam, logo eram misturadas aos adultos e perdiam as regalias dos primeiros
anos de vida. Portanto, não havia um lugar específico para as crianças na sociedade, inexistia
ainda um sentimento de infância, assim como conhecemos hoje, tampouco consideravam as
crianças como um grupo social com características e necessidades próprias, havia, sim, uma
confusão de sentimentos em relação às crianças e suas infâncias que variavam do cômico à
irracionalidade, da distração à servidão, do cuidado à rígida disciplina.
Essas mudanças contribuíram para a consolidação das primeiras abordagens do
sentimento de infância e, consequentemente, deram início à preocupação com a higiene, a saúde
física da criança, principalmente, relacionada com o tratamento de doenças e a formação moral
da criança, ainda com forte tendência à religiosidade. De acordo com os fundamentos da igreja
era preciso conhecer melhor a criança para poder corrigir os desvios e guiá-las para o caminho
do bem, inclusive estabelecendo a cultura de recompensas para as crianças bem-comportadas,
229
o “apego à infância e à sua particularidade não se exprimia mais através da distração e da
brincadeira, mas através do interesse psicológico e da preocupação moral. A criança não era
nem divertida nem agradável” (ARIÈS, 1981, p. 162).
Mesmo na tentativa dos artistas da época, em aparentar a leveza da alma infantil, é
possível perceber que a tendência da aparência adulta ainda se faz presente nas posturas e nas
faces das crianças mais velhas, que logo se misturam ao universo adulto, como também revela
a obra “Les enfants de Habert de Montmor” (1649), de Philippe de Champaigne118, um artista
de origem flamenga e de movimento barroco, cujas pinturas eram clássicas e essencialmente
religiosas. O artista representa os sete filhos da família Herbert Montmor, uma família
tradicional e afortunada da corte parisiense (ARIÈS, 1981, p 56). A luxuosidade da cena mostra
crianças em trajes elegantes e adequados ao tamanho de cada um. Interessante destacar que os
nomes e as idades das crianças aparecem esculpidos numa coluna posicionada no lado esquerdo
da tela, o que facilita a identificação das crianças. Ao todo são seis meninos e uma menina,
todos usando saias, que conhecemos hoje como vestidos, o que ainda indica ausência de gênero
nas vestimentas.
A cena é produzida em um terraço ao ar livre, o cenário divide-se em dois ambientes,
no lado esquerdo e de modo mais extenso há duas colunas separadas por uma longa e suntuosa
cortina vermelha, nota-se um pequeno pássaro pousado numa das colunas; no lado direito, uma
paisagem composta por riacho, uma videira com frutos, céu azulado, nuvens, algumas árvores
e bem distante avista-se uma construção que aparentemente pode ser um castelo.
No primeiro plano estão todas as crianças e um pequeno cachorrinho tentando subir na
mesa onde as crianças menores estão sentadas. À esquerda está o irmão mais velho Henry Louis
(2ª idade, 10 anos) e do seu lado Jean-Balthazar (2ª idade, 7 anos e 6 meses) ambos se vestem
como adultos em miniatura, apresentam vestimentas iguais, longas e douradas, com golas altas
e mangas compridas, também usam uma capa sobreposta feita do mesmo tecido, porém, com
um forro interno azulado. Ao lado dos irmãos mais velhos está François (1 idade, 1 ano e 8
meses) usa um longo vestido de tecido cintilante e tem uma touca na cabeça feita do mesmo
material. Ele encosta a mão direita no ombro da irmã ao centro, olhando-a como se estivesse
comunicando algo. Segundo Ariès (1981, p. 57) era costume na época vestir os meninos com
118 QRcode 36: Dossier de presse Philippe de Champaigne (FRANCE, 2007).
230
vestidos de menina, e as meninas com modelos de roupa adulta.
A irmã no centro da imagem é Anne Louise (3 anos e 5 meses), ela está usando um
elegante vestido azul com rendas douradas e alguns detalhes em transparências sobrepostos
lembrando um avental. Em sua mão esquerda segura uma fruta amarela que parece uma laranja.
À direita da imagem estão os gêmeos abraçados e de mãos dadas, exibem vestimentas
compridas idênticas, feitas em cetim vermelho, fechado na frente com botões em detalhes
bordados em dourado.
Entre a única irmã e os gêmeos, está o bebê Jean Louis (8 meses), vestido idêntico à
François, segura um amuleto de ouro com uma pimenta vermelha, usado como símbolo de
proteção desde a Grécia antiga. A disposição das crianças foi planejada de modo a deixá-las
numa mesma altura, para tanto, posicionou-se uma mesa e uma cadeira, ambos cobertos por um
tecido fino vermelho, na mesa estão sentados o bebê e Anne Louise, e em pé na cadeira está
François, os demais irmãos posicionados de pé nas extremidades da cena. E Henry Louis, apoia
seu braço esquerdo na cadeira.
Estas informações em high key sinalizam para a contextualização da imagem em low
key que desvelam nas crianças expressões suaves, olhares ternos que demonstram certa
simpatia, há um sentimento de fortes laços afetivos entre eles, apenas o irmão mais velho exibe
certo ar de superioridade, ao colocar a mão direita no quadril, erguer seu pescoço para o alto e
suspender a sobrancelha para manter um olha fixo na direção diagonal do espaço em que se
encontra a cena e o pintor, uma postura bem condizente ao comportamento de um adulto da
realeza.
Outro artista de destaque na época que não está citado na obra de Ariès (1981), mas foi
selecionado devido à sua importância na arte, principalmente, pelo registro de crianças, é Diego
Rodrigues de Silva y Velázquez, pintor realista e impressionista do período barroco, o retratista
oficial da corte espanhola. Uma de suas pinturas mais famosas é a “Infanta Margarida” (1653-
1654), que expressa a postura e as vestimentas usadas pela criança da realeza. A tela é um
retrato individual da filha do rei Filipe IV de Espanha e de sua segunda esposa Mariana de
Áustria, a infanta Margarida Maria Teresa. A criança está no auge da sua 1ª idade (3 anos), usa
um luxuoso vestido de tecido brilhoso com aplicações em rendas vermelhas e detalhes
dourados. Apoia a mão direita em uma pequena mesa que contém um vaso de vidro com uma
rosa, uma margarida e alguns lírios. Com a mão esquerda a infanta Margarida segura um leque
fechado. Apresenta-se numa postura ereta e séria, porém em low key é possível desocultar um
olhar melancólico que tenta minimizar a semelhança com o adulto e a inexistência de
características próprias da infância, o que remete também ao peso imposto às crianças reais em
231
ter que cumprir com as obrigações do reino herdando sua coroa.
Jan Steen, outro famoso pintor neerlandês, retratava cenas do cotidiano de famílias
camponesas ressaltando situações animadas e caricatas, algumas vezes até um tanto caóticas.
A pintura intitulada “Feast Of St. Nicholas” (1660-1665) retrata um momento de convivência
social familiar realizado durante a Sinterklaas119, uma celebração holandesa que expressa bem
essa ideia de recompensa. Segundo Ariès (1981, p. 21) “não se trata mais de uma grande festa
coletiva, e sim de uma festa de família em sua intimidade; e, consequentemente, essa
concentração da família é prolongada por uma contração da família em torno das crianças”.
Em high key, a imagem compõe uma família numerosa reunida em meio à farta
comilança e com certo teor de brincadeira. Aparentemente são: quatro adultos, sendo dois
homens, um jovem rapaz na 3ª idade (14 a 21 anos) e um adulto na 5ª idade (a senectude); duas
mulheres, sendo uma na 5 ª idade (a senectude) e uma na 6ª idade (a velhice); seis crianças,
sendo um bebê e uma menina na 1ª idade (0 a 7 anos), e uma jovem garota na 3ª idade (14 a 21
anos); e três meninos, sendo dois na 2ª idade (7 a 14 anos) e um na 1ª idade (0 a 7 anos). As
vestimentas são simples, os meninos estão com roupas que parecem uniformes e as meninas
usam vestidos e toucas na cabeça. O bebê também está com touca e usa uma manta comprida.
Os adultos usam trajes camponeses. As cores são opacas e os tons esverdeados.
A cena é retratada a partir de um interior doméstico que lembra uma sala de refeições,
ao fundo uma cortina separa um cômodo que provavelmente deve ser um quarto, logo acima
um janelão fechado. No chão, do lado esquerdo, uma grande cesta com pães, doces, waffles,
roscas e frutas espalhadas pelo chão. Do lado direito uma cadeira ornately também cheia de
guloseimas no assento. Também chama atenção na cena um enorme loaf do tipo duivekater120
açucarado e decorado, propositadamente inclinado na cadeira e de frente para o pintor
119 A Festa de São Nicolau, comemoração da chegada do São Nicolau. Conta-se a lenda que as crianças no
dia 06 de novembro, véspera de São Nicolau, penduravam meias nas laterais das casas ou sapatinhos na janela e durante a madrugada ele enchia de doces e presentes os objetos das crianças que tinham se
comportado bem o ano todo. QRcode 37: Jan Steen, Feast of St. Nicholas. Dr. Wendy Schaller.
120 QRcode 38: Pão doce tradicional holandês, apreciado na Festa de São Nicolau, no Natal e no Ano
Novo. (SCHALLER, 2017).
232
(SCHALLER, 2017).
Em low key, a disposição dos personagens dá uma impressão de movimento, em que as
pessoas, mesmo de forma desordenada, têm uma ação/função bem definida na cena. Pode-se
afirmar que o ponto central da imagem é a filha mais nova da família que acaba de ganhar uma
recompensa de Saint Nicholas, por ter se comportado bem durante todo o ano, ela segura firme
uma boneca e um balde cheio de brindes e guloseimas. A mãe sorridente estende os braços para
a filha como se a quisesse abraçar dando os parabéns pelo seu bom comportamento.
De modo contrário, provavelmente por não ter se comportado bem, seu irmão aparece
chorando por ter seu sapato vazio nas mãos de uma jovem empregada doméstica, que também
ri da situação. Outro irmão vê a cena e também sorri orgulhoso por ter ganhado um taco de kolf
e uma bola de presente (utilizado em esporte de inverno). No entanto, lá no fundo da imagem,
a avó das crianças de modo quase imperceptível, abre uma cortina e faz um gesto com a mão
querendo indicar algum possível “presente” escondido. Do lado direito da imagem, um irmão
mais velho, segura o bebê e aponta para o alto como se estivesse explicando a lenda de St.
Nicholas, outro irmão menor ao seu lado, espantado, arregala os olhos e boca. O pai sentado,
com certo aspecto cansado, assiste a brincadeira, mas também se diverte.
Telas como a de Rubens, Van Dyck e de Champaigne fizeram alguns pesquisadores
contestar os achados de Ariès. Por exemplo, Loic Chalmel (2004) em seu artigo “Imagens de
Crianças e Crianças nas Imagens: representações da infância na iconografia pedagógica nos
séculos XVII e XVIII” 121 ressalta que durante os séculos XV e XVI uma iconografia laica e
burguesa da infância substitui a iconografia religiosa (CHALMEL, 2004, p. 60), contestando
assim, os achado de Ariès ao afirmar que este, baseou suas considerações a partir de imagens
de crianças pertencentes às altas classes burguesas, que por terem condições econômicas
favoráveis poderiam subsidiar artistas e registrar suas histórias. Chalmel (2004) atesta que a
arte também é governada e está sob tutela de uma entidade governante que impõe de fato, estilos
e imagens. Complementa sua fala com Debray (1992, p. 254) ao citar que, “por ser quem os
encomenda, compra e promove, é também, muito naturalmente, o arbítrio das elegâncias e o
indício dos valores” à quem encomendou.
121 QRcode 39: Texto de Loic Chalmel (2004).
233
No entanto, Ariès também faz referências a artistas que registraram as camadas mais
populares na primeira fase da Idade Moderna (século XV a XVII), como Franz Hals122 e Le
Nain que retrataram o cotidiano de famílias camponesas através de obras produzidas para
acervos pessoais e/ou destinados à caridade. Além de Jan Steen que também retratava cenas da
vida cotidiana enfatizando a moralidade religiosa, os contos mitológicos e as festividades
culturais, quase caóticas.
Como na imagem “The Cholmondely Family” (1732), do pintor inglês e crítico social,
William Hogarth, é possível perceber a realidade de uma família nobre. A criança pequena teve
maior destaque na iluminação da cena e encontra-se ao lado de seus pais, ocupando lugar
privilegiado na imagem. A cena a partir da descrição em high key, se passa numa impetuosa
biblioteca doméstica, própria dos grandes castelos da época. Ao fundo três grandes estantes
repletas de livros enfileirados, à direita, uma parede composta por inúmeras obras de arte e uma
cortina comum verde musgo. Do alto desce um castiçal para iluminar o espaço.
Os personagens estão dispostos em lados opostos. Na frente das estantes ao redor de
uma mesa estão: a Sra. Mary, sentada numa cadeira almofadada, vestida com um elegante traje
de luxo platinado e uma touca do mesmo tecido, com uma postura ereta, olha diretamente para
o espectador/pintor e segura sua filha, que está em cima da mesa sob uma almofada. Um detalhe
importante é que a Sra. Mary havia falecido no ano anterior à confecção da pintura, sendo
simbolizada a inclusão póstuma com a imagem de dois “puttos” sobre sua cabeça, à esquerda e
segurando uma aveludada cortina vermelha com franjas douradas.
A filha mais caçula veste uma roupa semelhante a da mãe, porém, na cor branca. À
direita da criança está o Sr. George Cholmondeley, Visconde Malpas, também ocupa posição
central, está sentado numa cadeira, vestido de um longo casaco azul escuro com aplique
dourados, com uma calça até a altura do joelho no mesmo padrão do casaco e usa uma faixa
vermelha transpassada em seu tórax. Ele apoia seu braço direito em um livro aberto e o esquerdo
no braço da cadeira, inclina seu pescoço e olha olhar carinhosamente para sua filha. Do seu
lado esquerdo, um homem de pé, vestido com uma espécie de uniforme vermelho com dourado,
apoia seus braços em outra cadeira e olha fixamente para o lado direito do espaço onde estão
122 QRcode 40: Miller (2016, on-line).
234
mais duas crianças brincando. Em low key, ao retratar dois irmãos brincando a cena apresenta
a essência lúdica da natureza infantil, no entanto, é possível perceber que não existe nenhum
objeto que remeta à infância. Mais uma vez, as imagens representam as crianças vestidas como
adultos. Tal opção reforça a ideia do “pequeno homem”, ou seja, da adultização da infância
vista em épocas medievais.
A criança maior (2ª idade, 7 a 14 anos), veste camisa e calça esverdeada com uma capa
marrom, meia longa branca e sapatos preto. Olha com ar de espanto, o seu irmão menor (2ª
idade, 0 a 7) que está com um pé numa cadeira e o outro em cima de uma pilha de livros
posicionada sob um pequeno puff de madeira talhada e pintura dourada coberto com uma toalha
vermelha. Apoia-se com uma das mãos no encosto da cadeira, dando uma impressão de
movimento, de desequilíbrio. Também compondo a cena de maneira bem sutil, no canto inferior
da cena próximo das crianças que brincam, um pequeno animal, deitado.
Em low key esta cena mostra a irreverência infantil na subversão dos padrões
comportamentais esperados para um registro como este. As crianças usam da criatividade para
re/construir, a seus modos, formas de interação que conseguiram reverter o que seria um
momento “monótono” e “desinteressante” em uma situação lúdica e agradável. Pelo que está
explícito na cena, esse comportamento infantil, não gerou transtornos para a família, nem para
o pintor, foi de certa forma “respeitado” e considerado necessário para retratar a realidade
daquela família, que aparentemente, demonstravam apego e carinho para com seus membros,
tendo em vista, que todos os personagens expressam fisionomias suaves e certa simpatia nos
traços da boca e dos olhos.
O século XVIII também exprime com veemência a influência dos eclesiásticos na
preparação moral da criança para a vida em sociedade e a preocupação passou a ser com a
moralização da sociedade e a nova ordem, e principalmente, a educação dos jovens e das
crianças, pois se acreditava que a criança precisava ser cuidada e preparada para viver junto aos
adultos, submetendo-a a um regime especial, uma espécie de quarentena. De acordo com os
fundamentos da igreja era preciso conhecer melhor a criança para poder corrigir os desvios e
guiá-las para o caminho do bem (ARIÈS, 1981).
A partir do final do século XIX percebemos que as especificidades da criança vão sendo
mais ressaltadas na arte, refletindo a mudança cultural acerca da condição infantil. Assim, a
criança começa a apresentar marcas das transformações culturais que diferenciam crianças e
adultos, desde as posturas até as vestimentas. Nesse sentido Ariès (1981, p. 33) salienta afirma
que o traje das crianças se tornasse mais adequado à fase infantil, deixando as crianças mais à
vontade em seus movimentos e ritmos.
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A pintura nesse período dá cores e formas mais delicadas aos traços da criança,
diferenciando-as dos adultos em aspectos como vestuário, expressão facial e adereços no
cabelo, no caso das meninas, como encontramos na obra “As meninas Cahen d’Anvers” (1981),
mais conhecida como Rosa e Azul, de Pierre Auguste Renoir, pintor impressionista francês que
buscou retratar as irmãs Alice e Elisabeth, filhas do banqueiro Judeu Louis Raphael Cahen
d’Anvers.
A tela foi objeto de estudo na pesquisa de Martins, T. (2013) “Rosa e azul em terra
verde-amarela: a trajetória do quadro de Renoir e sua presença no acervo do Museu de Arte de
São Paulo (1881-1967)”. A pesquisa indica que o quadro referido não representaria uma
composição tradicional, mas sim uma forma moderna de retratos, ignorada pelo âmbito erudito,
fugindo da proposta de legitimação da família Cahen d’Anvers, como membros da alta
burguesia (MARTINS, T., 2013, p. 33) 123.
Os trajes ganham cores e delicadeza nos tons pastéis, transmitindo o frescor e a
inocência do sentimento de infância. A menina de azul tem em seu semblante um ar vaidoso e
a de rosa aparentemente transmite certo desconforto. Esta imagem revela em low key a ruptura
cultural entre a representação das crianças como adultos em miniatura, diferenciando as
crianças com vestes e utensílios que remetem ao sentimento de infância.
Aline Silveira Becker (2010), pesquisadora em Artes Visuais, também discute as obras
de Renoir em seu artigo “História e Imagens: a visualidade produzindo infâncias”124 e ressalta
que a tela revela uma “uma infância bonita, delicada, mas também, introspectiva, passiva,
comportada e devidamente amparada pela maternidade” (BECKER, 2010, p. 96). A autora
destaca o texto que acompanha a tela de Renoir exposta no Museu de Arte de São Paulo:
Renoir, pintando Rosa e Azul, mostra na vibração da superfície e das
cores vivas que compõem os vestidos das meninas toda a vivacidade e a
graça instintivamente feminina que se esconde atrás da convenção da pose, todo o frescor e a candura da infância. As meninas quase se
123 QRcode 41: Monografia: “Rosa e azul em terra verde-amarela: a trajetória do quadro de Renoir e sua
presença no acervo do Museu de Arte de São Paulo (1881-1967)” (MARTINS, T. 2013).
124 QRcode 42: Becker (2010).
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materializam diante de observador, a de azul com o seu ar vaidoso e a de
rosa com um certo enfado, quase beirando as lágrimas (BECKER, 2010, p.133).
A Europa continua exercendo forte influência nas construções conceituais de criança e
infância no mundo, porém, em consequência das transformações culturais, sociais, políticas e
econômicas da sociedade moderna perde sua supremacia, principalmente em relação às
pesquisas científicas que se difundiram em vários países, trazendo novas concepções de
crianças, assim, os debates assumiram formas cíclicas, evolutivas e não lineares (KUHLMANN
JR., 1998).
A obra de Ariès (1981) reinou nas pesquisas científicas como referência para a história
da infância ocidental por mais de 25 anos (KUHLMANN Jr., 2005), embora seus estudos
tenham sido importantes para historiografia, também foram alvos de críticas por historiadores
como Colin Heywood (2004) e Peter Burke (2004), além de educadores como Loic Chalmel
(2004) e Kuhlmann Jr. (1998), entre outros.
Heywood (2004), crítico norte americano, tece algumas críticas ao estudo de Ariès em
sua obra “Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no Ocidente”, ao
afirmar que sentimento de infância é uma expressão ambígua, pois contém a ideia implícita de
consciência da infância e um sentimento em relação a ela. Para Heywood (2004), a infância
passou por várias “descobertas”, porém, mesmo diante de relatos como “inexistência do
sentimento de infância” e “adultização da criança”, muitas crianças foram poupadas de traumas
e viveram infâncias conforme suas condições de criança. Nesta concepção, a construção da
ideia da infância não parte de uma trajetória linear, mas, depende de vários contextos políticos,
econômicos e sociais. Consequentemente, não há como se conceber a infância a um só modo,
e sim, a partir de diferentes perspectivas.
Heywood (2004) afirmou também, que as crianças que foram submetidas ao trabalho
não eram vítimas passivas dos adultos, conseguiam “[...] transformar o chão de fábrica em um
lugar de diversão para si próprio, subvertendo a atenção dos adultos” (2004, p. 179). Kuhlmann
(2010, p. 22) compartilha da concepção de infância abordado por Heywood e discorda de que
o sentimento de infância era inexistente em tempos antigos ou na Idade Média, para esses
autores a criança e a infância sempre existiram, o que fazia variar eram as estruturas sociais e
culturais de cada sociedade.
Kuhlmann Jr. (1998) em “Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica”
enfatiza que os registros iconográficos destacados nas obras de Ariès (1981) favoreciam uma
ideia de monopolização do conceito de crianças a partir das visões do setor dominante:
237
Mesmo em abordagens que tomam a infância em sua referência etimológica,
como os sem-voz, sugerindo certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos vencidos, essa visão monolítica permanece e
mantém um preconceito em relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações sociais. Embora reconhecendo o papel
preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as
fontes disponíveis, como, por exemplo, o diário de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que essas camadas sociais
teriam monopolizado a condução do processo de promoção do respeito à
criança (KUHLMANN JR., 1998, p. 24).
Já na visão de Burke (2004), as contribuições de Ariès negligenciam a história das
mudanças nas convenções de representação da imagem visual da infância, tal fato, segundo
Burke, pode ser devido à falta de registros documentais em outras fontes na época. Nas palavras
do autor,
Ariès não conseguiu efetuar a leitura das convenções visuais do início da época medieval, uma linguagem artística que está extremamente distanciada
da nossa, nem avaliar que temas eram considerados apropriados para
representação visual naquela época, assuntos religiosos na sua maioria, nos quais crianças, com exceção de Cristo menino, não se encaixavam facilmente
(BURKE, 2004, p. 131).
Burke (2004) se refere às concepções de crianças representadas em obras artísticas.
Afirma que Ariès subestimou as funções e os usos das imagens, tendo em vista que suas
representatividades testemunhariam mais a história de um sentimento de família do que de um
sentimento de infância, pois naquela época, entre séculos XVII e XVIII, as crianças eram
representadas de duas maneiras: como parte de grupos familiares ou como símbolos de
inocência, com isso, “certas pinturas eram alegóricas, ou quase alegóricas” (BURKE, 2004, p.
132). Neste sentido, analisar as concepções de infância tendo por base as vestimentas era
equivocado, assim, faz uma crítica à primeira obra de Ariès (1960):
Contudo, Séculos de infância tem sido frequentemente criticado durante os
quarenta e tantos anos desde sua publicação. Por exemplo, o argumento de que as crianças costumavam ser vistas como adultos em miniaturas, apoiado
pelo testemunho de imagens de crianças vestindo versões em miniatura de roupas de adultos (um argumento que havia aparecido antes de Ariès, mas que
é central em seu trabalho), revela indiferença em relação ao contexto, mais
precisamente uma falha no sentido de levar em conta o fato de que nem crianças nem adultos vestiam suas roupas do cotidiano quando passavam para
retratos (BURKE, 2004, p.131).
238
É preciso reconhecer as fragilidades da tese de Ariès (1981) quando pensamos nas
pluralidades da infância, nas infâncias pobres, nas crianças trabalhadoras, nas relações sociais
estabelecidas entre elas e com os adultos, nas multiplicidades dos contextos familiares e
educacionais e, sobretudo, quando reconhecemos que mesmo vivendo influências das culturas
adultas, as crianças elaboram suas visões de mundo, são sujeitos sociais (SIROTA, 2001) e
produzem suas próprias culturas (SARMENTO, 2002).
Numa perspectiva semiótica, as cenas do cotidiano representadas na Cultura Visual de
cada época, expressam signos e significados que contribuem para a mediação entre o processo
de produção de sentidos e formação da consciência cultural de pertencimento social da criança
e apontam para uma perspectiva de ausência, invisibilidade e de não-infância. Ou seja, até
meados do século XVI as pinturas renascentistas confirmam a inexistência da infância como
uma etapa da vida. No entanto, a inexistência do sentimento de infância não significava
ausência de afeto às crianças pelos familiares, o que pode ser percebido em imagens tanto do
século XVI quanto do século XVII.
No entanto, a relevância da imagem presente na pintura europeia subsidia informações
empíricas para as pesquisas históricas, mas, o aspecto estético artístico não deve ser
compreendido em termos universais, pois “o código europeu ocidental não é o único válido
para a compreensão crítica da cultura visual” (SARDELICH, 2006, p. 467). Destarte, as
pinturas que revelam as mudanças e transformações pelas quais as crianças foram submetidas
ao longo da história humana citadas tanto nos escritos de Ariès (1981) quanto nos registros da
história da arte são parâmetros de um período de transição entre sociedades medievais e
modernas que refletem a realidade da criança a partir da visão de determinados contextos
culturais e tempos históricos, e esta visão, apesar de favorecer e contribuir significativamente
com a compreensão da história social da criança, não pode ser pensada como verdade absoluta.
Ao comparar os signos expressos nas imagens é possível perceber que há uma tendência
comum na representação de elementos estéticos que fazem parte de uma sensibilidade
comunitária, nesse sentido, Geertz (2008) sugere que:
[...] a contextualização social de tais "indicadores" [dos elementos estéticos,
no sentido semiótico do índice, do signo] é uma forma mais útil de compreender a maneira pela qual "indicam", e o que significam, do que forçá-
los em paradigmas esquemáticos ou despi-los, transformando-os em sistemas
abstratos de regulamentos, que, de alguma maneira os "geraram". O que nos permite falar desses indicadores em uma linguagem comum e de uma forma
útil, é o fato de que todos registram uma sensibilidade comunitária, ou seja, que representam, para todos que participam daquela comunidade, uma
disposição de espírito comum (GEERTZ, 2008, p. 23).
239
Em outras palavras, a arte como elemento cultural em sua expressividade está
diretamente relacionada com o real, sustentam sentidos e significados produzidos entre os
indivíduos que foram transmitidos de geração em geração, com isso, demonstram indicadores
comuns da vida social que remetem a uma sensibilidade comum, permitindo assim, o
reconhecimento das características particulares de cada cultura. Essa sensibilidade comum
materializa-se nos signos imagéticos e permite a formulação de concepções e percepções mais
universais relativas a determinadas experiências e contextos históricos, como no caso da
representação da criança na Idade Moderna, e “sem essa experiência, sem essa ideação, sem
essa ‘variedade da vida’, esse ‘olhar de época’, talvez a pintura do século XV não adquirisse o
sentido, o significado, que adquiriu” (OLIVEIRA, R., 2012, p. 215, grifo do autor).
Desse modo, olhar a representação da criança ao longo dos séculos torna-se um
movimento necessário para a construção de narrativas sobre a infância em qualquer época, e
essa leitura deve ser realizada a partir de uma interlocução heurística e transdisciplinar,
respeitando as singularidades das crianças e de suas infâncias, mas, considerando a trajetória
universal de negação e invisibilidade nas quais essas infâncias “sobre/viveram”, para não
incorrermos no mesmo erro.
Na próxima seção, destaco as bases epistemológicas da Sociologia da Infância,
ressaltando as rupturas conceituais e paradigmáticas das categorias criança e infância no cenário
científico, em seguida, componho a narrativa textual a partir das leituras e análises das imagens
de crianças e infâncias discutidas nos estudos e pesquisas desenvolvidas no Brasil nas Ciências
Humanas e Sociais.
Nesta perspectiva, após contemplar as imagens de crianças magicizadas em pinturas
artísticas, agora, direciono o olhar para a vida magicizada em imagens técnicas, peles
fotográficas, fixas e em movimento, planas, escuras e claras, veladas e desveladas, pensantes,
falantes, cheias de memórias e grandes histórias. São imagens-testemunhas que constróem
teorias, que atestam realidades vividas e experienciadas por pesquisadores, professores e,
principalmente, por crianças. São imagens reais falando de gente real. Tal fato dá sustentação
ao argumento de que as imagens são reminiscências, memórias que transcendem tempo e
espaço, imagens que se narram e que nos narram. Cada uma com sua intencionalidade se
oferece ao nosso olhar, nos convidando a desvelar os encantos e mistérios que o universo
infantil tão bem esconde. Se a magia é fundamental para entendermos a linguagem da
fotografia, a criança é a pessoa mais experiente para nos ensinar a olhar. Afinal, sobre magia
elas entendem muito bem.
240
Portanto, das infâncias narradas em pesquisas científicas emergem concepções que
desafiam as imagens dominantes dispostas na Cultura Visual que desqualificam e desrespeitam
a dignidade infantil, consequentemente, é preciso estudar as crianças nos seus espaços, nas suas
especificidades e culturas num esforço desconstrucionista e de luta pela garantia de uma
infância digna e cidadã, que nem sempre é a que encontramos.
3 SOB A ÓPTICA DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA: A EMERGÊNCIA DOS
NOVOS SUJEITOS SOCIAIS
[...] a infância não é a idade da não-fala: todas as crianças,
desde bebés, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais,
plásticas e verbais) por que se expressam. A infância não é a
idade da não-razão: para além da racionalidade técnico-
instrumental, hegemónica na sociedade industrial, outras
racionalidades se constroem, designadamente nas interacções
entre crianças, com a incorporação de afectos, da fantasia e da
vinculação ao real. A infância não é a idade do não-trabalho:
todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que
preenchem os seus quotidianos, na escola, no espaço doméstico
e, para muitas, também nos campos, nas oficinas ou na rua. A
infância não vive a idade da não-infância: está aí, presente nas
múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua
heterogeneidade) continuamente preenche (SARMENTO,
2005, p. 25).
As palavras de Sarmento (2005) pré-anunciadas neste texto, dão o tom agudo desta
interlocução que se pauta numa distinção analítica do seu duplo objeto de estudo: “as crianças
como atores sociais, nos seus mundos da vida; e a infância, como categoria geracional,
socialmente construída” (SARMENTO, 2008, p. 22). Ou seja, trata-se da desconstrução da ideia
de negação atribuída historicamente à infância.
De acordo com Abramowicz e Oliveira (2010) o interesse pelos estudos da criança no
campo da Sociologia surge em 1920 nos Estados Unidos, no entanto, só a partir de 1980 tomam
novas projeções mundiais intensificando-se em pesquisas assinadas por Corsaro, James, Prout,
Jenks, Qvortrup, Sirota e Pinto. Porém, mesmo com a ampliação dos estudos sobre a criança, a
infância como objeto sociológico passou por um processo de “apagamento” ou
241
“marginalização” que a levou a ser ignorada, em sua autonomia conceptual (MARCHI, 2010,
p.2).
Na França, os estudos da criança despontam no campo da Sociologia da Educação, na
Inglaterra e Estados Unidos são influenciados pelos estudos feministas e pela Antropologia. No
Brasil, já na década de 90, sociólogos e pedagogos, prioritariamente, legitimam o campo,
fundamentados em teorias que permeiam desde as perspectivas durkheimianas em que
prevalece a “imposição dos valores adultos sobre a criança, levando estas a permanecerem no
silêncio, ‘mudas’, ou seja, em uma posição marginalizada e passiva diante do mundo adulto”
até os contributos da “sociologia interacionista, do movimento da fenomenologia, e dos
approches construcionistas que fornecem os paradigmas teóricos desta nova construção do
objeto” (ABRAMOWICZ e OLIVEIRA, 2010, p. 42), o que culmina na perspectiva atual de
criança como ator social e infância como estrutura/fenômeno social (QVORTRUP, 1993;
CORSARO, 1997; JAMES, JENKS e PROUT, 1998; SIROTA, 1998; SARMENTO, 2008;
PROUT, 2010).
James, Jenks e Prout (1998) distinguem criança como agente social e infância como
construção social e histórica, resultante da própria ação das crianças em interação com seus
pares e com os adultos. Assumem a perspectiva de criança tribal para representar que a ação
social da criança estrutura o sistema de representação cultural da infância, a partir de uma visão
potencialmente politizada e empírica da criança em detrimento de suas relações sociais.
Qvortrup (1993, p. 203) defende a ideia de que a infância é uma estrutura social
permanente, dessa forma, as crianças passam pela infância, mas, a infância permanece. Este
pesquisador dinamarquês foi um dos grandes responsáveis pela consolidação da nova
Sociologia da Infância ao defender as concepções de infância como fenômeno social e da
criança como construtora da infância e da sociedade, considerando digno de interesse dos
estudos da criança, seus saberes, suas possibilidades de criação e recriação da realidade social
em que está inserida. Portanto, o autor fundamenta a nova Sociologia da Infância em nove teses
125:
125 Síntese construída a partir das nove teses apresentadas no artigo publicado em Eurosocial Report
Childhood as a Social Phenomenon: Lessons from an International. Project, n. 47, 1993, p. 11-18 com o Título original: “Nine theses about ‘childhood as a social phenomenon’”. QRcode 43: Versão em
português publicada na Revista Pró-Posições sob o título: “Apresentação Nove teses sobre a “infância
como um fenômeno social” Jens Qvortrup” (NASCIMENTO, 2011).
242
Tese 1: A infância é uma forma particular e distinta em qualquer estrutura
social de sociedade; Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria social permanente, do ponto de vista sociológico; Tese 3: A ideia de
criança, em si mesma, é problemática, enquanto a infância é uma categoria variável histórica e intercultural; Tese 4: Infância é uma parte integrante da
sociedade e de sua divisão de trabalho; Tese 5: As crianças são coconstrutoras
da infância e da sociedade; Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e institucionalmente) às mesmas forças sociais que os adultos,
embora de modo particular; Tese 7: A dependência convencionada das
crianças tem consequências para sua invisibilidade em descrições históricas e sociais, assim como para a sua autorização às provisões de bem-estar; Tese 8:
Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças; Tese 9: A infância é uma categoria
minoritária clássica, objeto de tendências tanto marginalizadoras quanto
paternalizadoras (QVORTRUP, 1993, p. 203-210).
Nesta perspectiva, Qvortrup (1993, p. 210) defende uma abordagem multidisciplinar
que considera o conhecimento sobre infância desde o nível macro ao micro, ampliando “as
macrodiscussões a partir do insight das experiências diárias das crianças - individuais”.
Insistentemente, o autor defende que é preciso investigar com mais seriedade os problemas
experienciados pelas crianças no contexto da sociedade moderna para que se possa incluir a
infância na agenda crítica analítica da ciência, e assim, garantir a elas “ao menos um tipo de
cidadania científica” 126.
A cidadania da infância implica o preenchimento de condições estruturais,
relativas à organização do conjunto da sociedade, para o alargamento dos direitos das crianças, instituições para as crianças que sejam também
instituições das crianças e a generalização de uma cultura que permita a
inclusão democrática das crianças em todos os domínios da vida social e pessoal (FERREIRA e SARMENTO, 2008, p.72).
Sarmento (2005) ressalta que essa conquista se estabeleceu a partir de uma longa
trajetória de negatividade constituinte da infância, o que culminou também num processo de
distinção, separação e exclusão do mundo social, provocando tensões e conflitos
paradigmáticos que historicamente relegaram à criança uma condição de (in)visibilidade e
marginalidade social, tanto em relação à ideologia quanto à sua representação imagética no
passado.
126 Segundo Ferreira e Sarmento (2008, p.72) “a redefinição da cidadania da infância é o efeito conjugado
da mudança paradigmática na concepção de infância, da construção de uma concepção jurídica renovada, expressa sobretudo na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, e do processo societal de ampliação
das formas de cidadania”.
243
[...] a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da
menoridade: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a
processos de instrução), o que não tem valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente) (SARMENTO, 2005, p. 378, grifo
do autor).
Para Sarmento (2005, p. 378) essa falta de disciplina e de moralização da criança,
transporta simbolicamente o lugar do “detentor do discurso inarticulado, desarranjado e/ou
ilegítimo”, consequentemente, as crianças têm sido negadas também nos espaços jurídicos -
“são inimputáveis; juridicamente incompetentes” e interditadas socialmente, pois lhes são
retirados também direitos de cidadania - “não votar, não eleger nem ser eleitos, não se casar
nem constituir família, não trabalhar nem exercer uma actividade económica, não conduzir, não
consumir bebidas alcoólicas etc.” (SARMENTO, 2005, p. 378). Sobretudo, na perspectiva do
Estado desenvolvimentista, o conceito de criança se baseava em dependência econômica, as
crianças eram governadas por e em nome de seu futuro, suas opiniões e pontos de vista nunca
eram considerados. Tais interdições “se sustentam numa prática de proteção” e constituem
“avanços civilizatórios”, desse modo, o que a Sociologia da Infância defende não é sua
abolição, mas a reflexão sobre os “efeitos simbólicos de conceptualização e representação
sóciojurídica da infância”, sobretudo, no que diz respeito à sua exclusão, nesta perspectiva,
[...] a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da
menoridade: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a
processos de instrução), o que não tem valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente) (SARMENTO, 2005, p. 378, grifos
do autor).
Segundo Sarmento (2007, p. 65) os traços de negatividade geraram consequências
diretas na sociedade e nas construções conceptuais de crianças e infâncias, o que desencadeou
a ausência da criança na vida social, sua subordinação ao mundo dos adultos, a sua
“privatização” e seu confinamento em espaços domésticos ou de educação e guarda, além disso,
a desqualificação do pensamento infantil nas Ciências Humanas e Sociais. Neste sentido,
Ferreira e Sarmento (2008, p. 65) afirmam que os modos particulares em que as crianças têm
sido representadas e as infâncias socialmente construídas nos discursos científicos dominantes
sob os paradigmas métrico, médico e psicológico, tem feito prevalecer as “noções e padrões
bio-ontológicos”, centradas nas dimensões físicas do corpo infantil. Além disso, voltam-se as
244
atenções para seus déficits em relação ao estado adulto, com isso, os discursos dominantes
equivalendo-se de propriedades e atributos cognitivos e sociais, mantém a ideia de negatividade
das crianças fundamentando-se na concepção de que as crianças são seres “biologicamente
imaturos, culturalmente ignorantes, socialmente incompetentes, moralmente irresponsáveis,
cognitivamente irracionais” (FERREIRA, SARMENTO, 2008, p. 65).
Por conseguinte, Sarmento (2007) defende a tese de que a criação de sucessivas
representações das crianças ao longo da História produziu um efeito de invisibilização da
realidade social da infância. Surge, assim, o termo (in)visibilidade para representar a ausência
da criança nos aspectos histórico, científico e cívico, situações em que a criança era vista a
partir do olhar adultocêntrico sobre a infância, registrando especialmente a “ausência, a
incompletude ou a negação das características de um ser humano completo” (SARMENTO,
2007, p. 33). 127
Na visão de Marchi (2011) a invisibilidade proposta por Sarmento (2007) pode ser vista
sob duas grandes ordens: de natureza social e de natureza epistemológica que “[...] imbricadas,
apoiam-se e legitimam-se mutuamente” (MARCHI, 2011, p. 397).
A causa de ordem social diz respeito à invisibilidade/subalternidade histórica
e cívica das crianças, [...] o afastamento do mundo da infância do mundo dos adultos, a separação de áreas de atividade relativamente ao mundo dos adultos,
à sua concepção de seres incompletos ou “em trânsito” para a idade adulta
[...], à sua “privatização” ou confinamento ao espaço doméstico ou instituições sociais de educação e guarda (escolas, creches, orfanatos, etc.). A causa de
ordem epistemológica (invisibilidade científica) diz respeito às críticas às
teorias da socialização e às teorias do desenvolvimento infantil presentes na pedagogia e na psicologia do desenvolvimento (MARCHI, 2011, p. 396-397,
grifo do autor).
Em se tratando de (in)visibilidade histórica, Sarmento (2007, p. 26) destaca que a
história por muito tempo considerou a criança como um ser incompleto, ausente de
características próprias, portanto, historicamente, invisível, quando a criança aparecia em
registros históricos era considerada como “memória infiel ou como legatária de uma tradição,
de um poder ou de bens a prosseguir como herança familiar”128 (SARMENTO, 2007, p. 27),
127 QRcode 44: Visibilidade Social e Estudo da Infância (SARMENTO, 2007).
128 Segundo Sarmento (2007) as crianças eras citadas apenas em referências autobiográficas - onde a infância
245
neste sentido, o autor afirma que há uma “marginalidade conceptual no que diz respeito à ideia
ou imagem de infância no passado, que é correlata da marginalidade social em que foi tida”.
O interesse histórico pela infância é relativamente recente. A referência
histórica à infância aparece muito tardiamente, e essa é, aliás, uma das razões
que levaram P. Aries a afirmar a inexistência do "sentimento da infância" até ao dealbar da modernidade. Apenas referências autobiográficas - onde a
infância aparece evocada pelo filtro, frequentemente crítico, do adulto que se
conta - e registos dispersos em testamentos, diários, documentos funerários ou evocações novelísticas assinalam a presença de crianças no passado
(SARMENTO, 2007, p. 3).
Portanto, o interesse histórico tardio pela infância traz consequências diretas para a vida
política da criança, daí a definição de (in)visibilidade cívica da criança, em que Sarmento
(2007, p. 36) destaca o processo de afastamento do mundo da infância do mundo dos adultos;
a separação de áreas de atividade reservadas para a ação exclusiva dos adultos e interditadas,
por consequência, à ação das crianças; e a colocação, sob forma direta (especialmente no espaço
familiar) ou sob forma institucional (especialmente no caso da escola) das crianças sob proteção
e tutela adulta (DIAS, 2007).
De acordo com Sarmento, Fernandes e Tomáz (2007, p. 184), o confinamento da criança
a um espaço social condicionado e controlado pelos adultos, produziu uma concepção
generalizada de que “[...] as crianças estão «naturalmente» privadas do exercício de direitos
políticos” (grifo dos autores). Toda essa marginalidade social relegou a criança à um não-lugar
na civilidade, de forma que os processos de qualificação da infância por negação constituem,
efetivamente, um ato simbólico de expressão de adultocentrismo e a projeção sobre a infância
de concepções ideológicas essencialistas sobre a condição humana. Desse modo,
As crianças permanecem sendo o único grupo social verdadeiramente
excluído de direitos políticos expressos. Sobretudo a partir do início do século
XX, com uma sinuosa história de lutas, avanços e recuos, movimentos cívicos de grande dimensão, graves conflitos e enfrentamentos, o direito de
participação política, especialmente sob a forma de escolha representativa dos
dirigentes políticos, foi sendo sucessivamente atribuído, especialmente na Europa e na América do Norte, aos responsáveis pelos agregados familiares,
a todos os homens brancos, aos analfabetos, às mulheres, aos negros e às minorias étnicas, aos imigrantes, aos jovens de mais de 18 anos (em alguns
poucos casos, aos maiores de 16) (SARMENTO, FERNANDES e TOMÁZ,
2007, p. 184).
[continuação] aparece evocada pelo filtro, frequentemente crítico, do adulto que se conta - e registos dispersos em testamentos, diários, documentos funerários ou evocações novelísticas assinalam a presença
de crianças no passado.
246
Quando os autores tratam da privação de direitos políticos, não estão se referindo apenas
ao poder de voto, mas da participação das crianças em manifestações políticas para além do
enquadramento jurídico ocidental, ou seja, tratam de uma invisibilidade na cena pública e não
de ausência de ações políticas para infância, implicando também na invisibilização política
(SARMENTO, FERNANDES e TOMÁZ, 2007)129. Esta concepção clássica de cidadania
recusa à criança o estatuto político e através da escolarização dá início ao processo de
institucionalização da infância que busca a disciplinarização da infância, fato inerente à criação
da ordem social dominante (SARMENTO, 2007), deste modo,
Ao mesmo tempo que a modernidade introduziu a escola como condição de acesso à cidadania, realizou um trabalho de separação das crianças do espaço
público. As crianças são vistas como os cidadãos do futuro; no presente,
encontram-se afastadas do convívio colectivo, salvo no contexto escolar, e resguardadas pelas famílias da presença plena na vida em sociedade
(SARMENTO, 2007, p. 14).
Além disso, a (in)visibilidade histórica e a (in)visibilidade cívica se alicerçam na
(in)visibilidade científica que, mais do que produzida por ausência de investigação sobre as
crianças e a infância, é produzida pelo tipo dominante de produção de conhecimento. De acordo
com Sarmento (2007), a (in)visibilidade científica resulta da influência de uma orientação
mainstream (convencional), em que predominam as concepções epistemológicas que
desqualificam as interpretações das crianças na ação social, desse modo, os estudos sobre a
infância, baseados principalmente nas teorias Piagetianas e em seus sucessores, consideravam
as crianças a partir de uma epistemologia “em trânsito”, ou seja, como seres que se
desenvolviam em etapas distintas, numa lógica cumulativa, linear e progressiva, até atingirem
os estágios cognitivos e morais ideais de um ser adultos (SARMENTO, 2007, p. 40).
Sarmento destaca que entre o final do século XIX e início do século XX, os estudos das
Ciências da Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, apesar de contribuírem em
grande parte com os avanços científicos sobre cognição e desenvolvimento, relegaram à
infância a mesma (in)visibilidade na qual as crianças mantém seu status de incapaz e de total
129 QRcode 45: Políticas Públicas e Participação Infantil (Sarmento, Fernandes e Tomás, 2007).
247
dependência física, mental e social, portanto, “vulneráveis e requerendo ser moldadas,
controladas e orientadas rumo a uma fase adulta desejável.” (LEE, 2009, p. 46).
Segundo Ferreira e Sarmento (2008, p. 68, grifos dos autores) isto significa afirmar que
“apesar das crianças existirem e estarem presentes, o que se tornou conhecido acerca das
instituições para a infância, ‘a família’ e a ‘escola’, tem sido estudado com a sua inclusão
mínima, permanecendo as crianças quase invisíveis e desconhecidas”. Desse modo, o
imaginário infantil foi concebido pelas correntes da Psicologia também com uma ideia em
comum: o déficit – ou seja, a falta de um pensamento objetivo e a imperfeição da formação
racional com a realidade.
Num certo sentido o que é inevitável encontrar nesse discurso infantil é o frame no qual ele previamente foi situado – o estágio de desenvolvimento
previamente definido e caracterizado. ‘Escutar a voz das crianças’ consiste,
em última análise, em escutar a voz do adulto que se revela num discurso previamente interpretado. Desenvolve-se assim um pensamento circular e
uma ciência de ‘certezas’ que continuamente se objetiva nos seus resultados (SARMENTO, 2007, p.42-43, grifos do autor).
Nesse contexto, o construtivismo psicológico desmerece o pensamento infantil por
considerá-lo incompleto, imperfeito, os significados que as crianças dão aos seus gestos ou
experiências, são considerados mais como uma falha do que como uma realização. Da mesma
maneira, as Ciências Sociais e a Sociologia em particular, nas suas abordagens dominantes,
contribuíram fortemente com essas concepções, pois adquiriram e atualizaram como válida a
teoria Lockiana da tabula rasa, em que a infância é a idade da inscrição direta e aproblemática
da norma social.
Esta ideia do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que constitui um pressuposto epistémico na construção social da infância pela
modernidade: criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno),
o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de razão, etc.
(SARMENTO, 2003, p. 2).
Portanto, as concepções de negação e (in)visibilidade presente na história social da
criança e nas concepções de infância instituídas pelas Ciências Humanas e Sociais, durante
séculos foram marcadas severamente pelo silêncio das crianças, consequentemente,
compuseram o cenário das imagens da criança em seus aspectos históricos, culturais e sociais
estabelecidos na Idade Moderna, os quais a Sociologia da Infância, sob sistematização de
James, Janks e Prout (1998), as reconhece a partir da construção das imagens historicamente
248
estabelecidas sobre a infância, subdivididas em dois períodos: o das imagens da criança pré-
sociológica, que compreende cinco imagens (concepções): criança má, criança inocente,
criança imanente, criança naturalmente desenvolvida e criança inconsciente. E o das
imagens da criança sociológica130 constituída pelas produções contemporâneas que resultam
de um juízo interpretativo das crianças a partir das novas propostas teóricas das Ciências Sociais
pautadas em processos de reinterpretação das representações anteriormente formuladas, com
revisão do seu fundamento pela compreensão da infância como categoria geracional e da
criança como ator social (SARMENTO, 2007, p. 29-33).
De acordo com Sarmento (2007, p. 30) esta separação implica no fato de que no primeiro
período a criança era considerada como uma “entidade singular abstracta” excluída do contexto
social donde é coprodutora de condições de existência e de formação simbólica. Tal
ambiguidade tem gerado fortes contradições entre a empiria na qual a criança estabelece suas
relações e experiências culturais e as teorias que “supostamente” tem tido a pretensão de
conceituar, descrever e analisar as crianças a partir de olhares adultocêntricos e fechados à
participação infantil nas produções que são realizadas a seu respeito. Na sequência, abordo a
construção histórica das imagens sociais da infância a partir das concepções da Sociologia da
Infância (JAMES, JANKS e PROUT, 1998; SARMENTO, 2007).
As imagens da criança pré-sociológica referem-se à criança concebida como uma
expressão de forças indomadas, dionisíacas, com potencialidade permanente para o mal -
criança má (the evil child), reforçando as intervenções paternalistas e a adoção de medidas de
repressão infantil. Sarmento (2007, p. 30) fundamenta-se nas obras de Thomas Hobbes, sobre
a exigência de controle dos excessos, pelo poder absoluto do Estado sobre os cidadãos e dos
pais sobre as crianças, como meio de evitar a anarquia social ou o transbordamento individual.
A segunda imagem da criança pré-sociológica é representada pela imagem da criança
inocente, lembra a ideia do mito romântico da “paparicação” apontada para fundamentar a ideia
da inocência, da pureza, da bondade e da beleza. Rousseau embasa esta concepção ressaltando
que a natureza do homem (quando nasce) é genuinamente boa e a sociedade a perverte, em sua
obra “Emílio ou Da Educação” (1992) encontra-se uma grande contribuição para a história
social da criança no século XVIII, para Rousseau, a criança deveria ser vista em seu próprio
mundo e não como uma mera projeção do adulto, para tanto, este autor defendia que a criança
adquiria características específicas e particulares que exigiam um tratamento diferenciado tanto
130 Sobre esta, me deterei com maior ênfase, na seção 2, deste ensaio, no qual dialogo com as concepções de
infância na contemporaneidade em interlocução com a Cultura Visual e a nova Sociologia da Infância.
249
pela família quanto pelo processo de educação (SARMENTO, 2007, p. 30), além disso, ele
concebia a criança em si mesma, considerando suas manifestações próprias, suas capacidades
imaginativas e criativas. Dessa forma, Rousseau (1999) conquistou o mérito da construção de
um conceito moderno de infância, embora ainda não como compreendido hoje, mas como o
início do despir-se de velhos conceitos e revestir-se da possibilidade de um novo olhar sobre a
criança. Nesta direção Sarmento (2007, p.28) afirma que a passagem dos séculos XVII e XVIII
constituem o período histórico em que a infância assume um caráter distintivo do adultez e
constitui-se como uma fase própria do desenvolvimento humano.
A partir de Rousseau, a infância foi considerada uma fase com características próprias
às quais deveriam ser cultivadas de forma a contribuir para o desenvolvimento da inteligência
da criança, considerando que cada estado da vida tinha sua perfeição conveniente, era preciso
desenvolver o tipo de maturidade próprio de cada fase. Neste sentido, Rousseau refere-se à
infância como um tempo agradável em que a criança tem atitudes espontâneas, é feliz e
inocente.
Outra tendência pode ser compreendida a partir da terceira simbolização apontada por
Sarmento (2007, p. 30) sobre a criança pré-sociológica, a criança imanente, surge da
possibilidade de aquisição da razão e da experiência que se fundamenta na teoria da Tábula rasa
de Jonh Locke, o conceito passa a ser mais aplicado ao intelecto, na tese epistemológica do
empirismo, vertente filosófica do século XVII, não existiam ideias inatas, todo conhecimento
se baseava em dados da experiência empírica, nesse sentido, a tendência era a crença na criança
como uma tabula rasa em que poderiam ser inscritos quer o vício quer a virtude, a razão ou a
desrazão, sendo missão da sociedade promover o crescimento com vista a uma ordem social
coesa.
O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos uma
afetividade nova que a iconografia do século XVII exprimiu com insistência e gosto: o sentimento moderno da família. Os pais não se contentavam mais
em pôr filhos no mundo, em estabelecer apenas alguns deles, desinteressando-
se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho - e, no fim do século XVII, até mesmo às meninas
- uma preparação para a vida. Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola (ARIÈS, 1981, p. 272).
Sarmento (2004, p.19) ressalta que a criação de escolas, o recentramento do núcleo
familiar no cuidado dos filhos, a produção de disciplinas e saberes periciais, a promoção da
administração simbólica da infância, radicalizou “[...] as condições em que vive a infância
moderna, mas não a dissolveu na cultura e no mundo dos adultos, nem tão pouco lhe retirou a
250
identidade plural nem a autonomia de acção [...]”, o que segundo o autor, contraria a concepção
de “morte”, “desaparecimento”, “exorcização” e “eliminação” da infância (POSTMAN, 1983;
BAUDRILLARD, 1997), mas admite a criança como “actora social” e a infância como
categoria social própria. Neste sentido, Sarmento também vai de encontro com a ideia de
infância como uma concepção moderna, no entanto, não nega sua existência desde sempre.
Com efeito, crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano, e a infância como construção social – a propósito da qual se construiu um
conjunto de representações sociais e de crenças e para qual se estruturaram
dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social própria – existe desde os séculos XVII e XVIII (SARMENTO, 1997, p.11).
Em se tratando da imagem da criança naturalmente desenvolvida, Sarmento (2007,
p. 31) destaca duas ideias centrais em torno desta imagem, a primeira em que as crianças são
seres naturais, antes de serem seres sociais e a segunda que a natureza infantil sofre um processo
de maturação que se desenvolve por estágios. Ambas fundamentadas, principalmente, nas
contribuições da psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget (1978, 1979) e Lev Vygotsky
(1991).
Em relação à imagem da criança inconsciente, a criança é vista como um preditor do
adulto - ‘homúnculo’ (SARMENTO, 2007, p. 31), pautado na Psicanálise, onde Freud é a maior
referência. Esta imagem social imputa ao inconsciente o desenvolvimento do comportamento
humano com incidência no conflito relacional na idade infantil, especialmente na relação com
as figuras materna e paterna.
Em síntese, as imagens da criança pré-sociológica demonstram a necessidade de
administrar a existência da criança no espaço social desconsiderando os “constructos
interpretativos” referentes às concepções modernas da Sociologia da Infância que,
consequentemente, pautam as imagens da criança sociológica como resultados de produções
contemporâneas das Ciências Humanas e Sociais, portanto, “constituem, de facto, processos de
reinterpretação das representações anteriormente formuladas, com revisão do seu fundamento
pela compreensão da categoria geracional” (SARMENTO, 2007, p. 30).
Neste diapasão, esta pesquisa se insere justamente na concepção da criança sociológica,
por considerar a infância possuidora de uma cultura própria, por acreditar que a criança formula
e interpreta o mundo de acordo com suas próprias representações e por defender a participação
da criança naquilo é produzido para ela e sobre ela. Para tanto, o processo de compreensão das
concepções de criança e infância assenta-se na ação reflexiva e interpretativa assumida
enquanto exercício metodológico que visa desvelar nas imagens de crianças e infâncias o
251
protagonismo e a alteridade infantil, contribuindo assim, com o avanço epistemológico do
paradigma social da infância na contemporaneidade através de novas imagens da criança
sociológica que emergem na atual ordem social científica. Para Sarmento “a alteridade da
infância constitui um elemento de referenciação do real que se centra numa análise concreta
das crianças como atores sociais”, portanto, “A porta de entrada para o estudo da alteridade da
infância é a acção das crianças e as ‘culturas da infância’” (SARMENTO, 2005b, p.373, grifo
do autor).
Sob o prisma da Sociologia da Infância, a cultura infantil é entendida como um conjunto
de ações e representações culturais nas quais as crianças estabelecem sentidos e significados
acerca dos elementos que constituem seu cotidiano social, deste modo, a infância compreende
a criança enquanto ator social e produtora de cultura. Para Sarmento, consiste na “capacidade
das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de
acção intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção.” (SARMENTO,
2003, p. 3-4).
Desse modo, os sujeitos infantis, enquanto seres sociológicos, (re)produzem os
símbolos culturais dando novas configurações que implicam na constituição de suas culturas,
além disso, através das relações de alteridade que estabelecem com seus pares e com os adultos,
a criança vai desenvolvendo suas expressividades culturais através da linguagem, da
imaginação, das brincadeiras e das reproduções interpretativas 131 que elabora (CORSARO,
1997, p. 95).
Portanto, é no exercício do protagonismo infantil que as culturas da infância emergem
de forma inteligível, subversiva e criativa, exercendo desse modo, sua participação social na
sociedade, desconstruindo assim, a ideia de (in)visibilidade histórica, civil e científica, o que
destaca a necessidade de garantir cada vez mais, a participação da criança em todos os âmbitos
da sociedade, principalmente, nos debates científicos que fundamentam concepções e
direcionam propostas e ações políticas, sociais e educacionais para a infância.
Desenhar e dar a ler a cartografia atual do campo implica mesclar aspectos
institucionais e publicações com a finalidade de revelar as diferentes linhas de
força e a efervescência que estruturam a aparição desse pequeno objeto de início frequentemente qualificado pelos sociólogos como fantasma
onipresente, terra incógnita, refugo, mudo, ou como quimera, na literatura de língua francesa; marginalizado, excluído, invisível, ou como categoria
minoritária na literatura de língua inglesa. Ato de nascimento marcado pois,
por uma constatação geral de carência, de fragmentação do objeto, onde se
131 Cf. Corsaro (2003).
252
entrelaçam o imaginário social e considerações teóricas, e que aponta uma das
primeiras dificuldades da construção do objeto: libertá-lo, por um lado, do implícito, por outro desvinculá-lo do combate militante, para fazê-lo emergir
por inteiro no discurso científico como objeto de trabalho (SIROTA, 2001, p.
8).
Neste sentido, nas últimas três décadas, marcadas pela passagem do século XX ao século
XXI, com a emergência da Sociologia da Infância como um campo epistemológico profícuo
para discussões teóricas e metodológicas, as crianças passaram a ser consideradas no meio
acadêmico científico, sendo-lhes assegurada (ainda que timidamente) a participação direta em
estudos e pesquisas em vários contextos investigativos. De acordo com Abramowicz e Oliveira
(2010) a Sociologia da Infância rompe com a ideia de criança universal e a-histórica,
problematiza as abordagens psicologizante e biologizante de compreensão da criança e recusa
concepções uniformes da infância, mesmo levando em consideração,
[...] os fatores de homogeneidade entre as crianças como um grupo com características etárias semelhantes, os fatores de heterogeneidade também
devem ser considerados (classe social, gênero, etnia, raça, religião etc), tendo
em vista que os diferentes espaços estruturais diferenciam as crianças. Por vezes o cardápio de sentidos de que dispomos é insuficiente para compreender
estas falas. A criança é portadora da diferença, da diversidade e da alteridade
(ABRAMOWICZ e OLIVEIRA, 2010, p. 44).
Diante deste novo paradigma, os estudos da criança defendem uma abordagem
multidisciplinar e recusam o centramento exclusivo nas ciências “tradicionais” como
Psicologia, Ciências Médias, Pedagogia, Sociologia, para dialogar também, com outros campos
disciplinares como a Antropologia da Infância, a Psicologia ou a Sociologia da Educação, por
conseguinte, ainda constitui um paradigma epistemológico em processo de institucionalização
científica em todo o mundo, dada a heterogeneidade do campo.
Trevisan (2007) e Sarmento (2007) concordam que as crianças são seres sociais plenos,
em pleno processo de ação social, as crianças são produtoras de culturas próprias, as culturas
da infância, portanto, “[...] as crianças são seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos
diversos modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o
gênero, a região do globo onde vivem” (SARMENTO, 2004, p. 10), assim, a infância é
entendida como uma condição da criança (KUHLMANN JR., 1991, p. 182). De acordo com
Sarmento (2007) a infância ao mesmo tempo em que é única, também se mostra múltipla,
marcada pelas diferenças de direitos, deveres, acessos, privilégios, faltas e restrições. Nesta
perspectiva, não se trata de uma única infância, mas de várias infâncias.
253
Sarmento (2008, p. 19-24) ressalta alguns pontos de confluência sumariados em 10
proposições que marcam as rupturas teóricas entre paradigmas, teorias e abordagens, as quais
tentei resumir na sequência:
i.“A infância deve ser estudada em si própria”, sendo a configuração histórica
das ideias e imagens sociais da infância, os principais elementos de interpretação desta categoria. Isso significa romper com a perspectiva
analítica do adultocentrismo que projeta seus entendimentos sobre crianças
e infâncias a partir das suas próprias expectativas e/ou experiências. ii.A infância deve ser estudada a partir da articulação dos elementos
homogêneos relativos às características comuns a todas as crianças,
independentemente da sua origem social, porém, respeitando os estatutos sociais, políticos e os elementos de heterogeneidade que as constituem como
categoria geracional. iii.“O conceito de geração é central na configuração sociológica da infância”
devendo ser entendido a partir de três abordagens: como grupo social
constituído, intemporalmente, por indivíduos do mesmo escalão etário; no plano histórico, como um grupo de pessoas do mesmo escalão etário que viveu
uma experiência semelhante; como grupo etário, formado em condições
históricas diferentes e precisas, ao longo do seu trajeto de vida. iv.“A construção social da infância, historicamente consolidada, realizou-se
segundo o princípio da negatividade” e consolidou-se em torno da ideia de que “todas as crianças são competentes no que fazem, considerando a sua
experiência e as suas oportunidades de vida”.
v.“A infância não é uma idade de transição”, mas uma fase etária com características próprias e as crianças são atores sociais competentes que se
exprimem na alteridade geracional.
vi.“As condições de vida das crianças necessitam, igualmente, de ser estudadas considerando a especificidade da infância perante as esferas sociais da
produção e da cidadania”, ao contrário do que vem sendo empreendido em indicadores estatísticos, que por invisibilizarem a infância, acabam por afetá-
la globalmente em relação a fatores como desigualdade social, conflitos
bélicos, políticas sociais e problemas sociais e ambientais. vii.“As crianças são produtores culturais”, deste modo, as culturas da infância
[...] são plurais e multiculturais, não são a reprodução das culturas adultas,
mas, “como seres biopsicosociais com características próprias”, criam suas próprias culturas, interpretam, simbolizam e comunicam suas percepções de
mundo a partir das interações estabelecidas entre pares e no contato com os adultos.
viii.Em larga medida, as instituições para crianças configuram o ofício de criança.
Enquanto as instituições desenvolvem processos de socialização vertical em que submetem à infância, normas, ideias, valores e crenças impostas pelas
culturas adultas. As crianças impõem suas ações como forma de resistência
através do protagonismo infantil nos espaços ocultos ou libertados da influência adulta nas quais se realizam processos de “socialização horizontal
(comunicação intrageracional, no âmbito das relações de pares.)”, daí a ideia de criança como ser social.
ix.“As mutações da modernidade têm implicações nas condições de vida das
crianças e no estatuto social da infância”. As crianças exprimem fortemente as mudanças sociais, interpretam e posicionam-se perante elas.
Dessa forma, a Sociologia da Infância se posiciona contrário ao desaparecimento da infância, e defende que as mudanças promovem
254
transformações estruturais e simbólicas nas condições de vida e nas culturas
da infância. x.“A Sociologia da Infância só poderá desenvolver-se se for capaz de se articular
com um programa em renovação” dentro do próprio pensamento sociológico.
Significa que a Sociologia da Infância precisa se concretizar como ciência assumindo a participação da criança nas investigações das quais lhe dizem
respeito. Constituindo-se assim, como “a ciência que busca o conhecimento
dos factos sociais, através das e com as crianças” (SARMENTO, 2008, p. 19-24, grifos do autor). 132
Os grifos de Sarmento ao longo das proposições compõem o universo paradigmático da
nova epistemologia da infância que rompe com a perspectiva analítica do adultocentrismo e o
princípio da negatividade e compreende as imagens sociais da infância a partir do próprio
protagonismo infantil expresso na socialização horizontal e nas relações de alteridade
geracional. Nesta perspectiva, os estudos e pesquisas acerca das concepções de crianças e
infâncias devem priorizar a competência infantil garantindo sua participação na construção
social das teorias e metodologias direcionadas à investigação das culturas da infância, e com
isso, desconstruir a ideia de infância como “um mero estado de passagem, que deve ser
superado a partir da acumulação de experiências e conhecimentos necessários à vida adulta”,
conferindo à infância uma condição de menoridade ao considerar seu estado “transitório,
inacabado e imperfeito”, há muito empregado pelas teorias do desenvolvimento humano e
Sociologia tradicional, bem como, pelas instituições direcionadas para criança que impõem
regimes rígidos e cristalizados de culturas adultas (HILLESHEIM; GUARESCHI, 2007, p. 86).
Consequentemente,
O estudo das concepções da infância deve, por isso, ter em conta os factores
de heterogeneidade que as geram, ainda que nem todas se equivalham,
havendo sempre, num contexto espaço-temporal dado, uma (ou, por vezes, mais do que uma) que se torna dominante. O estudo dessas concepções, sob a
forma de imagens sociais da infância, torna-se indispensável para construir
uma reflexividade fundante de um olhar não ofuscado pela luz que emana das concepções implícitas e tácitas sobre a infância (SARMENTO, 2007, p. 29).
Em síntese, a expressão “cultura infantil” defendida pela Sociologia da Infância entende
132 Os destaques em negrito nas proposições foram feitos no texto original para indicar as palavras-chave
que, segundo o autor, “constituem o léxico constante de um glossário de base da disciplina”, dessa forma, replico tais grifos para garantir o rigor interpretativo (SARMENTO, 2008, p. 19).
QRcode 46: Sarmento (2008).
255
a infância como espaço de produção cultural da criança enquanto ator social. Assim, os sujeitos
infantis (re)produzem cultura, seja na linguagem, nas brincadeiras, imitando, imaginando,
repetindo, inventando, na relação com os adultos ou com os seus pares. Desse modo, “[...] as
culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo
distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de
inteligibilidade, representação e simbolização do mundo” (SARMENTO, 2004, p. 22).
O texto ora discorrido, apresentou de forma sintética as principais mudanças
paradigmáticas da nova Sociologia da Infância visando contextualizar as concepções de
crianças pré-sociológicas e sociológicas, para só então, na sequência, dar continuidade à
narrativa fotoetnográfica a partir dos estudos e pesquisas que visibilizaram, narraram,
desvelaram e desmistificaram as infâncias magicizadas em cenas. Portanto, convido o
leitor/espectador a desvelar e desvelar-se nos olhares, corpos e movimentos dessas crianças
que, gentilmente, nos convidam a conhecê-las.
3.1 Culturas Infantis em peles magicizadas: mementos em devir
A imagem, em especial a imagem fixa, é complexa. Para
se dar conta disso, basta prolongar o tempo de um olhar
posto sobre ela, sobre sua face visível para, logo,
descobrir que a imagem nos leva em direção a outras
profundidades, outras estratificações, ao encontro de
outras imagens. É necessário, pois, abrir a imagem,
desdobrar a imagem, “inquietar-se diante de cada
imagem” (Didi-Huberman, 2006b). Furar e romper a
superfície (SAMAIN, 2012, p.159, grifo do autor).
Conhecer as crianças, desvelar suas infâncias e compreender suas culturas. Este foi o
enquadramento que a objetiva da narrativa fotoetnográfica buscou focar. Uma tarefa complexa
que exigiu um profundo mergulho no universo visual, que, para além de representações, me
fizeram reflexionar as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de imagens.
Partindo do entrelaçamento entre epistemologia e empiria, promovida e produzida à luz das
fontes investigadas, construí dois momentos de narração, a priori através do texto escrito, a
posteriori através do texto visual – as fotografias. Cada uma em seu momento particular e de
igual importância para o entendimento da narratividade como um todo. Tendo em vista que, “a
256
linguagem escrita e a linguagem visual são linguagens diferentes que fornecem informações
diferentes e que exigem do leitor operações mentais também diferentes” (ACHUTTI, 2004, p.
109).
Desse modo, a construção da narrativa fotoetnográfica se fundamentou nas perspectivas
heurísticas e ontológicas do memento estabelecendo conexões de sentidos e significados entre
as imagens do passado e as do presente, agora produzidas através de imagens técnicas – as
fotografias. Por conseguinte, para “reviver” as cenas busquei destacar em high key os elementos
que compuseram as particularidades superexpostas na fotografia; identificar as concepções que
originaram a discussão no texto original da cena, bem como, a intencionalidade de quem a
produziu; e refletir a realidade magicizada na cena buscando nelas reminiscências, memórias e
reencontros. Para “sentir” contextualizei a fotografia em low key a partir das subjetividades,
emoções e percepções provocadas pela contemplação e pelo scanning da cena, considerando os
elementos simbólicos e valorativos da imagem que me “atraíram” e me direcionavam a
compreendê-las em suas dimensões e complexidades. Por fim, para “compreender” estabeleci
interlocuções teóricas transdisciplinares a partir dos pressupostos epistemológicos da
Sociologia da Infância.
Em outras palavras, a descrição em high key - que corresponde aos movimentos de
descrição, identificação e percepção, ressaltou os pontos claros, superexpostos, que
magicizaram a vida das crianças em peles fotográficas e serviram de registro e/ou auxílio visual
para as narratividades de suas histórias e memórias. A contextualização em low key - que
compreende a contemplação, o scanning, o desvelamento e a contextualização, truxe à tona os
segredos e silêncios das imagens, os pontos escuros, subexpostos na magicização da vida que
não se revela em primeiros e segundo planos da pele, estão no nível do simulacro, no nível das
coisas que não se enxergam, apenas se sentem, àqueles que o primeiro olhar, olha e não vê,
porque não se expõe, estão ocultos à espera alguém que os desvele, alguém que olhe e sinta,
sinta o que a imagem pensa e comunica na vida “congelada” no instantâneo fotográfico. São os
elementos em low key que tornam a sequência fotoetnográfica inteligível e sensível às questões
que orientam e fundamentam o olhar de quem pesquisa, por isso, é fundamental que o objeto
do olhar esteja bem delimitado para que o memento aflore.
Porém, o movimento de interpretação excede o [meu] olhar de pesquisadora e convoca
o leitor/espectador a mergulhar junto na Fotoetnografia para reviver, sentir e compreender as
muitas infâncias alí narradas, através de histórias contadas, vividas, rememoradas,
testemunhadas, conhecidas, observadas por olhares investigativos, intencionais, e
principalmente, subjetivos. Como ressalta Aumont (2016, p. 8-9, grifo do autor): “[...] a
257
investigação, iniciada ‘do exterior’, ao seguir a luz que penetra no olho, leva logicamente a
considerar o sujeito que olha a imagem, aquele para quem ela é feita [...]”. Assim, a narrativa
fotoetnográfica surge das percepções subjetivas do pesquisador para alcançar o olhar
contemplativo do leitor/espectador, como um permanente devir criador, pois, para cada olhar
uma reminiscência, uma memória, uma interpretação que é única, como também é única cada
criança magicizada na fotografia. Portanto,
A fotografia que antes ilustrava galerias, informava em jornais e anunciava o
consumível, agora, ela busca no seio da ciência o lugar que ela lhe julga
reservado. Não ser arte, mas, conter a arte. Não ser realidade, mas, conter a realidade. Não ser a ciência, mas mostrar a ciência, pois é dotada, quando bem
utilizada, de uma narrativa eloquente (RECUERO, 2008, p. 35).
Após essa breve retomada da sistematização metodológica, dou prosseguimento às
discursões referentes à imagem das crianças na Cultura Visual discutidas e sedimentadas nas
Ciências Humanas e Sociais, mais especificamente, no campo da Sociologia da Infância.
Porém, antes faço um pequeno registro das mudanças paradigmáticas na produção e concepção
da imagem que ocorreram na transição dos séculos.
A passagem do século XVIII para o século XIX marca a transição histórica da Idade
Moderna à Idade Contemporânea, concomitante a esse processo, no campo da Cultura Visual,
a iconografia da imagem expressa na pintura artística, perde popularidade para a fotografia, da
câmera escura do século XVIII, à máquina fotográfica no século XIX e à câmera digital no
século XX quando as imagens foram se tornando cada vez mais nítidas e sofisticadas.
O século XIX foi palco para a expansão da energia elétrica, para o telégrafo, para o
cinema e principalmente para a história da imagem técnica, sobretudo, no contexto do cinema
e da fotográfica. Em função das transformações tecnológicas decorrentes da expansão
industrial, as imagens se popularizaram e se estenderam a todas as camadas sociais (PEIXOTO,
2011; CARVALHO, C., 2011), pois com a invenção da fotografia e o surgimento de estúdios
fotográficos, as famílias passaram a registrar cenas e cotidianos da vida social para serem
contempladas na posterioridade. Além disso, as fotografias também tiveram sua expansão na
indústria comercial, principalmente, em produções publicitárias, reportagens, anúncios de TV,
revistas e jornais, entre outras formas de comunicação e informação da época.
Segundo Achutti (2004, p. 98) a fotografia deve sua criação a descobertas de substâncias
fotossensíveis no campo da química e teve sua oficialização em 1839, então foi introduzida em
vários setores do conhecimento como na medicina pelo Dr. Etienne Jules Mareiy que a utilizava
para estudar o movimento animal e humano, consecutivamente, chegando até a botânica,
258
geologia, arqueologia e astronomia, além das demais áreas das Ciências Humanas,
principalmente, a Antropologia, tendo Pierre Verger, como um dos seus percussores
(ACHUTTI, 2004, p. 98-99). Consequentemente, à ciência coube dar maior abertura ao uso das
fotografias em pesquisas científicas, sobretudo, pela iniciativa da Antropologia, com visto
anteriormente. Na mesma direção, as demais ciências passaram a introduzir em seus escopos
imagens fotográficas como registros históricos e narrativos da realidade. Inclusive na arte, onde
os artistas passaram a utilizar a imagem fotográfica como expressão da realidade
(SANTAELLA, 1989, 2005; MARTINS e TOURINHO, 2010; GONÇALVES, 2013).
Já o século XX protagonizou grandes transformações econômicas e tecnológicas que
ampliaram o acesso, a produção e o uso dos artefatos visuais, sobretudo digitais, a exemplo da
primeira câmera fotográfica digital lançada em 1975 pela Kodak que revolucionou a história da
fotografia. Outro fator importante desta época foi o desenvolvimento da indústria cultural
ampliando o repertório das culturas visuais. A indústria cultural é composta pelas produções
artísticas e culturais organizadas em função das relações capitalistas de produção, consumo e
comunicação (FREITAG, 1987; ADORNO; HORKHEIMER, 1985). O desenvolvimento
industrial marcado pela expansão de indústrias de petróleo, siderurgia, mineração e hidrelétrica,
gerou um aumento considerável de demandas por mão de obra, porém, as crises econômicas
mundiais decorrentes da 2ª Guerra deflagraram intenso êxodo rural, consequentemente
desencadeando a extrema pobreza da população, levando às famílias, inclusive, as crianças a se
submeterem ao trabalho pesado como forma de sobrevivência, nesse contexto, crianças e
adultos dividiam as responsabilidades de produção. Essa situação demonstra a manutenção da
concepção de criança como pequeno adulto, desconsiderando os tímidos avanços do final do
século XVIII.
A passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade da informação traz
consequências diretas para o paradigma da fotografia. Segundo Rouillé (2009, p. 168) o caráter
de registro do visto é ampliado aos sentidos e significados que dialogam com o documento
fotográfico tornando-os anunciantes, dado o potencial narrativo das expressões visuais, assim,
a fotografia documento-designação passa a ser documento-expressão.
Corroborando com a visão de Rouillé (2009), Rossoni (2011, p. 9) afirma que na
fotografia como documento-expressão, “há uma inclinação de explorar as possibilidades de
dizer com as coisas, de expressar e não simplesmente representar”, nesta óptica, o sentido da
imagem é interdependente “das coisas e da linguagem, de referentes e de uma escrita que faça
a imagem transbordar ultrapassando os limites”, mas,
259
Essas novas concepções dinamizam uma possibilidade justa para a fotografia:
a migração do território utilitário da imagem fotográfica para o território expressivo da escrita fotográfica. A questão da verdade e os critérios formais
mudaram. Essa dinâmica aponta para a necessidade de reatar com a pluralidade
das práticas, das imagens e das obras, e trilhar um caminho de restituição de sua densidade histórica, social e estética (ROSSONI, 2011, p. 9).
Isto significa que a presença crescente e a qualidade das imagens que testemunhamos
atualmente na Cultura Visual passam a ter a mesma importância das outras linguagens da
expressividade humana, ou seja, as imagens adquiriram caráter de linguagem integral,
chegando até mesmo a dispensar oralidades e/ou legendas (ACHUTTI, 2004, p. 109), como
também proferiu Walter Benjamin:
Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada
das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão
desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração
que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral (BENJAMIN, 2012, p. 167).
Diante de tais mudanças paradigmáticas, as imagens passaram a fazer parte do cotidiano
social e cultural dos indivíduos através dos artefatos da indústria cultural e evidentemente, da
literatura. Segundo Carvalho, C. (2011) vive-se atualmente num mundo saturado de imagens,
como consequência, elas [as imagens],
[...] nos dominam. Estão por todos os cantos [...] hoje nos tornamos reféns
delas, na medida em que não paramos para pensar a respeito desse complexo
universo que nos invade pelos mais variados meios; alguns aparentemente muito “pacíficos” e “inocentes”, como os rituais de tirar fotografias em casa,
junto àqueles que nos são mais chegados. Mas não só: hoje a fotografia digital
no cerca de forma avassaladora (CARVALHO, C., 2011, p. 109).
Partindo dessas premissas, urge a necessidade de reconhecer a fotografia, enquanto
documento-expressão no contexto da Fotoetnografia, e sobretudo, estar ciente do papel ético
do pesquisador, que ao mesmo tempo, exerce as funções de observador, espectador e fotógrafo,
funções que o responsabilizam pelo registro, veracidade e solidez da realidade magicizada na
cena. Torna-se, portanto, fundamental, dominar a técnica, discernir os caminhos
epistemológicos e ontológicos da imagem e respeitar os preceitos teóricos que pautam a
discussão a ser empreendida, para não incorrer no erro da espetacularização imagética,
conforme alertou Achutti (2004):
260
Fotografias obtidas de maneira aleatória e desordenada tornar-se-ão, no
melhor dos casos, uma fonte de informação que terminará por encontrar talvez um dia seu lugar em alguma fototeca, mas que não poderão vir a ser uma obra
completa, uma narrativa fotoetnográfica. (ACHUTTI, 2004, p. 108).
Retomando as discussões empreendidas sobre as concepções de crianças, infâncias e
culturas infantis abordadas na interlocução entre História Social da Infância, Sociologia da
Infância e Cultura Visual, evidencio na sequência, sob a ótica fotoetnográfica, escrituras e
imagens que constituíram estudos e pesquisas científicas nacionais e internacionais produzidas
durante as últimas três décadas, período em que a Sociologia da Infância foi erigida no hall das
Ciências Humanas e Sociais no Brasil. No entanto, o corpus da tese, se constituiu de imagens
de crianças produzidas em diferentes épocas e contextos, a depender dos objetivos e fontes
visuais das pesquisas selecionadas para análise. Desse modo, a época estudada foi
interdependente da data de produção das pesquisas.
Para tanto, a revisão de literatura foi realizada junto aos repositórios digitais utilizando
o descritor “Sociologia da Infância”, em seguida, foi feito um novo cruzamento de informações
a partir dos descritores “concepções”, “imagens”; “criança” e “culturas infantis”,
concomitantemente ao processo de leitura dos resumos e identificação das concepções e seleção
das imagens, foram selecionadas algumas pesquisas para aprofundamento e seleção
iconográfica, as quais contribuíram para a construção da Fotoetnografia da infância
empreendida neste segundo ensaio.
Entretanto, cabe aqui, fazer um registro em relação às dificuldades enfrentadas durante
a realização da revisão de literatura junto à plataforma de busca de teses e dissertações da
CAPES, que acredito ser uma dificuldade generalizada. Ao definir inicialmente o indexador
“Sociologia da Infância” como critério para identificação e seleção das pesquisas, surge o
volume de 967.250 pesquisas, que resultam do cruzamento de todos os termos em separado, ou
seja, “Sociologia” – “da” – “Infância”, daí o resultado absurdo e irreal.
Para dificultar ainda mais, os refinamentos oferecem outras inúmeras possibilidades de
opções e algumas delas duplicam os termos que, aparentemente, seriam semelhantes, como no
caso da “grande área de conhecimento e área de conhecimento”, que ao buscar novos critérios,
eis que surgem outras informações dúbias: Ciências Sociais Aplicadas (88629) e Ciências
Sociais Aplicadas (40118); Ciências Humanas (112584); Ciências Humanas (49415) 133, não
precisa ser expert em sistemas de computação para saber que é possível desenvolver uma
133 Estes números referem-se à quantidade equivalente de pesquisa deste indexador, mas não se sabe se eles
se repetem entre si, o que também é um problema.
261
plataforma mais acessível e objetiva, o que nos pouparia de incontáveis e desestimulantes horas
de busca. Urge uma mudança nessa forma de acesso que simplifique e organize de forma mais
coerente esses critérios. A exemplo da plataforma de busca da ANPEd, que oferece um bom e
rápido serviço de indexação.
Em vista disso, optei pela busca direta no Google acadêmico, na ANPEd e na SciELO,
a partir do cruzamento dos seguintes indexadores: “Sociologia da Infância”, “História da
criança”, “História da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”; “culturas infantis”;
“Fotoetnografia”; “imagem de criança”; “infância Idade Moderna”. No entanto, quando eu
identificava recortes ou inferências à tese e dissertações, recorria à plataforma da CAPES para
localizar as pesquisas a partir do nome do/a autor/a e/ou título da pesquisa, esse movimento não
agilizou o processo, apenas facilitou a busca. Neste movimento, o cruzamento dos indexadores
foi realizado a partir da leitura dos títulos, resumos, palavras-chaves de cada pesquisa,
respectivamente. Em seguida, as pesquisas que apresentavam em seus corpus, imagens de
crianças e infâncias eram selecionadas e lidas na íntegra, vale ressaltar, que, através de suas
próprias leituras, foi possível encontrar outras literaturas que necessariamente, não tinham a
Sociologia da Infância como indexador, mas suas abordagens se fizeram importantes na medida
em que as imagens me interpelavam e me direcionavam para outros campos de interlocução,
passando assim, a contribuir também com o corpus desta tese.
Desse modo, de forma cíclica, as imagens e as discursões tomavam suas próprias
direções, como um rizoma134, sem início, sem fim, mas, com elos de sentido e significados que
as uniam em um diálogo epistemológico e ontológico que priorizou em todo momento o olhar
subjetivo e heurístico presente no memento e nas relações “estabelecidas” entre os sujeitos -
fotógrafo, fotografado, leitor/espectador. Nesta perspectiva,
Entre as coisas [histórias, memórias e reminiscências magicizadas em
películas fotográficas] não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói
suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 4, grifos meus).
Com a emergência da nova Sociologia da Infância135, as narrativas acerca das crianças
134 Cf. Deleuze e Guattari, Mil Platôs (1995). 135 A partir das ideias de James, Jenks e Prout (1998), Qvortrup et. al. (1994) e Corsaro (1997) o paradigma
social da infância é marcado pelo interesse da Sociologia em criar um espaço para a infância no discurso sociológico e encarar a complexidade e ambiguidade da infância como um fenômeno contemporâneo e
instável, consequência das grandes mudanças sociais da modernidade.
262
passaram a considerá-las como autoras sociais e produtoras de cultura, protagonistas de suas
próprias formas de vida, de desenvolvimento e de significações. Tal perspectiva agregou novos
olhares e concepções sobre a infância enquanto entidade e/ou instituição socialmente
constituída, neste sentido, o estudo das concepções de infância são indispensáveis para
visualizarmos a desconstrução de conceitos rígidos que não consideram as crianças em suas
especificidades (CORSARO, 1997; PROUT, 2010). Convidando-nos assim, a perceber que a
diferença radical da infância consiste na ideia de que:
[...] as crianças são seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos diversos
modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região do globo onde vivem. Os diferentes espaços estruturais
diferenciam profundamente as crianças (SARMENTO, 2004, p. 10).
Em se tratando da iconografia da criança, a produção científica sobre crianças e
infâncias no Brasil é vasta e ampla, principalmente na última década. A Sociologia da Infância
tem sido a principal vertente teórica a garantir um espaço legítimo às crianças nos estudos e
pesquisas científicas, de modo que essa visibilidade tem gerado significativas mudanças em
todos os aspectos relacionados aos direitos de proteção, cuidado e legitimação das “crianças
como actores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como categoria social do tipo
geracional, socialmente construída” (SARMENTO, 2008, p. 07). Mas, afinal, o que os estudos
e pesquisas dizem sobre as infâncias? Como as narrativas imagéticas tem dialogado com as
concepções de crianças e infâncias contribuindo para a constituição e compreensão das culturas
infantis?
Ao pensarmos nas imagens de crianças que viveram no século XIX temos que fazer um
aporte teórico sobre alguns momentos históricos determinantes daquela época. As fotografias
referentes à infância desta época apresentam informações que corroboram com a ideia de
infância adultizada, por se tratar de um século de intensos acontecimentos desde guerras e
revoluções, crises econômicas, avanços científicos e tecnológicos, as pessoas tiveram de se
adaptar às diferentes realidades, principalmente, relacionadas ao mundo do trabalho que, ao
expandir a produção nas fábricas, substituiu sobremaneira a mão de obra masculina pela mão
de obra barata de mulheres e crianças.
A industrialização foi uma inimiga constante e terrível da infância. Com o crescimento da indústria e a necessidade de trabalhadores nas fábricas e nas
minas, a natureza especial das crianças foi subordinada à sua utilidade como fonte de mão-de-obra barata [...] um dos efeitos do capitalismo industrial foi
dar apoio aos aspectos penais e disciplinares da escola, que eram vistos como
263
um sistema para dobrar a vontade da criança e condicioná-la ao trabalho
rotineiro nas fábricas [...] isto se a criança tivesse a sorte de ir à escola, pois no século XVIII e em parte do séc. XIX, a sociedade inglesa foi especialmente
feroz na maneira de tratar os filhos dos pobres, que foram usados como
“combustível” no parque industrial inglês (POSTMAN, 1999, p. 67).
No contexto dessa discussão, o trabalho de dissertação de Tisott (2008) intitulado
“Pequenos trabalhadores: Infância e industrialização em Caxias do Sul (fim do Séc. XIX e
início do Séc. XX)” 136 desenvolvido junto ao Programa de Pós-graduação em História pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos investigou a infância nos primeiros anos do processo
de industrialização de Caxias do Sul visando relacionar os conceitos família e trabalho. Nele o
autor, identifica a noção de infância na região a partir de documentação estatal, mapeando
iniciativas de assistência às crianças e políticas de formação de mão de obra. Com um acervo
reduzido de imagens fotográficas, o autor discorre sobre o cotidiano da Ourivesaria e Funilaria
Central de Abramo Eberle e Cia, localizada na região sul de Caxias, os registros são referentes
ao seu funcionamento em meados de 1907. Das 13 imagens dispostas na pesquisa, apenas 4
apresentam crianças em suas composições, desta selecionei 2 para compor a narrativa
fotoetnográfica, em virtude da qualidade e do enquadramento da fotografia que deixa claro a
presença das crianças trabalhadoras em meio aos adultos.
A primeira imagem é composta em high key por aproximadamente de 60 trabalhadores,
maioria homens, algumas mulheres e cerca 15crianças, aparentemente meninos. Eles se vestem
semelhantes aos adultos. O registro foi feito em 1906 em tons monocromáticos com
predominância de áreas escuras, mas, nitidamente bem definidas. A fotografia foi produzida no
interior do terreno da oficina para registro interno, com a intenção de demonstrar as atividades
desenvolvidas nas rotinas habituais de trabalho, de modo que, é possível visualizar algumas
pessoas marretando, outros martelando e uns meninos empunhando limas e objetos em processo
de produção (TISOTT, 2008, p. 90).
A maioria das crianças faz pose para o registro, olhando diretamente para a direção do
fotógrafo, outros simulam suas funções, e outros apenas se observam. Algumas crianças para
aparecerem na fotografia sobem em degraus e pequenas calçadas, ou seja, tentando ficar um
pouco mais visível, elas buscam seus espaços na fotografia. Interessante destacar a seriedade
136 QRcode 47: Tisott (2008).
264
com que lidam com estas situações.
Em low key, é como se estivessem se sentindo importantes e valorizadas. Não aparentam
obrigação em posar, mas, sim satisfação em participar, como se sentissem orgulho de ser
trabalhador, principalmente, em se tratando das crianças, que se exibem para a fotografia com
posturas eretas e faces concentradas, empunhando suas ferramentas de trabalho. Tal
comportamento reforça a ideia de naturalização do trabalho infantil sob a indução da falsa noção
do “bom cidadão trabalhador”. Neste contexto, a inserção de crianças no mundo do trabalho
era comum e até mesmo valorizada, na sociedade desta época, isto “não representava o fim
desse período da vida”,
Ao contrário, a participação das crianças na produção fazia parte da infância, assim como a escola e as brincadeiras. Muitas vezes o trabalho era adaptado
para que as crianças pudessem participar da economia familiar como co-
provedores. Algumas famílias dispunham de instrumentos agrícolas de tamanho reduzido para que os pequenos executassem tarefas semelhantes às
dos adultos. Mas o que parece ter sido mais comum foi a atribuição de tarefas passíveis de serem cumpridas sem que precisassem ser adaptadas ao físico e
capacidade de responsabilização das crianças, principalmente aquelas
complementares às dos adultos envolvidos na produção (TISOTT, 2008, p. 143).
De acordo com Tisott (2008, p. 144) as crianças eram co-provedoras da manutenção
material de suas famílias e se submetiam ao controle das suas famílias que mantinham
privativas suas relações de trabalho, consequentemente, a sociedade organizada passou a
intervir através da formalidade do ensino teórico e técnico, intensificando assim, as iniciativas
de proteção da infância visando seu distanciamento do mundo do trabalho. Nessa direção, foi
criada a escola elementar industrial, uma “iniciativa estatal que visou formar mão-de-obra para
as fábricas, educando as crianças pobres”, na sequência, outra escola estatal foi criada para
atender os miseráveis e órfãos proporcionando-lhes “um teto”.
A segunda imagem retrata um grupo de internos do colégio Patronato Agrícola de
Caxias do Sul destinado ao recolhimento de crianças órfãs da cidade, datada em 1930. Em high
key a fotografia é composta por 15 meninos, aparentemente com idade entre 10 e 14 anos. Todos
têm seus cabelos raspados e usam uniformes escolares. A cena magicizada foi feita na área
externa da escola, mas ao fundo, dá para visualizar sua estrutura. As crianças foram
sistematicamente, organizadas para o registro fotográfico, de modo que, estão linearmente
posicionados, os 9 maiores em pé, alinhados logo atrás de 6 que estão sentados, estes, com as
duas mãos apoiadas nas pernas. Todos olham fixamente para o fotógrafo para aguardar o
momento do click.
265
Em low key percebe-se a tensão nos olhares densos e sofridos dessas crianças sem
infâncias, que já carregam a dor de serem órfãos. A cena remete à ideia de prisão e as crianças
lembram ‘jovens’ delinquentes de cabeça raspada. A dureza de suas realidades se impõe com
arrogância e poder. As crianças são a expressão visível da submissão e do medo. Segundo o
autor,
O ensino profissional passa a fazer parte da história da cidade como um instrumento de “recuperação” da infância. O trabalho, no período estudado,
ganha força como meio de inclusão das crianças na sociedade que se formava.
O trabalho ou a instrução para o trabalho passa a servir para a transformação das crianças “desvalidas” em pessoas “úteis” para a sociedade (TISOTT,
2008, p. 144, grifos do autor).
Nesta perspectiva, o projeto jurídico e institucional direcionados para os menores
desvalidos, voltava-se para um ensino “não punitivo, recuperador, disciplinar, tutelar e paternal
– e articulado a uma tentativa de reorganização da assistência prestada tornando-a mais ampla,
sistemática e organizada de forma mais científica”, no entanto, esse atendimento sob forma de
manutenção, também foi uma maneira de mantê-los sob controle do Estado (TISOTT, 2008, p.
140, grifos do autor).
A rara pesquisa de Abramowicz, et al. (2011) intitulada: “Imagens de crianças e
infâncias: a criança na iconografia brasileira dos séculos XIX e XX” 137 apresentada na Revista
Perspectiva, teve o objetivo de evidenciar a maneira pela qual a criança e sua infância foram
retratadas durante esse período, com foco especial na representação da criança negra, indicou
uma ambiguidade neste período, de um lado a existência de um sentimento de infância e do
outro a invisibilidade da criança e da infância, em especial, da criança negra. (ABRAMOWICZ,
et al. 2011, p. 286). As representações acerca das crianças que foram retratadas nos séculos
XIX e XX geralmente são marcadas pelo conformismo do comportamento infantil com a
intenção de “[...] configurar o caráter dos meninos para desde cedo moldar e formar o bom
cidadão e para as meninas a boa mãe e dona de casa” (ABRAMOWICZ, et al. 2011, p. 281.
Grifo do autor).
A partir de uma leitura semiótica, o estudo reafirma uma visão de mundo de uma
comunidade sociocultural e linguística que se encontra em um processo constante de
137 QRcode 48: Abramowicz, et al. (2011).
266
transformação, as representações acerca dos objetos são historicamente determinadas, onde os
modelos culturais são apreendidos no cotidiano das relações sociais, nessa perspectiva, as
concepções de gênero engendradas na sociedade também são refletidas nas formas de vida
infantil. De acordo com Abramowicz, et al. (2011), as fotografias desta época eram restritas à
um público economicamente estável que podiam pagar pelos serviços fotográficos.
As fotografias selecionadas para narrativa fotoetnográfica desvelam infâncias em
diferentes perspectivas. São fotografias produzidas em tons monocromáticos e apresentam
desgastes na qualidade da imagem por se tratarem de fotografias antigas, das 12 fotografias
dispostas na pesquisa, foram selecionadas 2 imagens, uma fotografia tem caráter documental,
produzida por Vincenzo Pastore em 1910 e localizada no acervo do Instituto Moreira Salles,
São Paulo. A outra refere-se a foto de família do acervo Militão Augusto de Azevedo - acervo
do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, sem data de registro.
A primeira fotografia trata-se de crianças que subvertem as circunstâncias em que
tiveram de assumir o papel de adulto trabalhador, e “voltando” a ser crianças no caminho para
o serviço. A autora discute a imagem de crianças “pequenos trabalhadores”, pobres e negros.
Em high key a imagem é composta por um grupo de crianças, em variadas idades, cada uma
com sua caixinha de engraxate, alguns estão de pés descalços. A imagem indica movimento e
o ambiente é a rua. Diante da imagem, podemos significar em low key que em um universo
marcado pelas culturas adultas, a criança vai tentando resistir através de suas fantasias e
criatividades transformando a hostilidade do trabalho em brincadeira de bola de gude na rua.
A vida é um processo contínuo de atos de conhecimento e atos de decisão, portanto, os
seres humanos através das relações e interações estabelecidas com/no meio, passam a ser
observadores e experimentadores deste meio, neste sentido, a ação do indivíduo decorre de uma
decisão que deve ser tomada a partir de uma consciência crítica como forma de resistência aos
padrões de dominação hegemônica. Conforme aponta Giroux (1986, p. 59) a resistência dos
indivíduos é uma forma de direcionar o conhecimento, não aceitando o mundo pré-dado e não
se limitando apenas às instruções externas, significa uma tomada de consciência que inspira ato
de resistência, por um lado, representa “os interesses específicos de classe, gênero ou raça” e
por outro lado, representa e expressa “os movimentos repressivos inscritos pela cultura
dominante ao invés de uma mensagem de protesto contra sua existência” (GIROUX, 1986,
p.141).
Segundo o paradigma sociocultural, os seres humanos são socialmente dependentes,
vivem num contexto histórico que o mundo oferece possuem visões e construções pessoais
diferentes deste mesmo mundo, ou seja, o pensamento humano é constituído de acordo com o
267
ambiente histórico e cultural.
A segunda imagem altera de certa maneira o foco da discussão anterior, adentrando
agora, nas questões de étnico-raciais. Dessa forma, em high key, a fotografia é composta por
três crianças negras enquadradas ao centro da fotografia. A criança da esquerda é uma menina
de aproximadamente 7 anos, ela usa trajes formais semelhante à vestimentas adultas, olha
fixamente para o fotógrafo. Apoia seu braço esquerdo no obro de outra criança, que
provavelmente é seu irmão, dada a semelhança da face. Ele veste camisa, terno e gravata.
Posicionado ao centro do enquadramento, olha com certa melancolia e exibe postura seria. À
sua esquerda, provavelmente outra irmã, mais nova, de aproximadamente 4 anos, veste um
conjunto elegante de blusa com gola alta e casaco. De forma semelhante à irmã, coloca seu
braço no ombro de seu irmão e olha fixamente e meio sisuda para o espectador. Em low key, a
cena reproduz o modelo patriarcal de família, cuja figura central é o pai, o chefe do grupo
familiar, esse modelo implica relação econômica e de poder. Geralmente em fotos de família,
o homem está posicionado ao centro, o que revela uma hierarquia familiar, neste sentido,
[...] há uma hierarquia de gênero que atua fortemente na sociedade patriarcal
e que aparece nas fotos. Esta marca vale para todas as famílias: negra, imperial
e do senhor de terra. Podemos dizer que é uma marca do ocidente, uma hierarquização das relações que independem da classe social e da raça
(ABRAMOWICZ, et al., 2011, p. 278).
Abramowicz et al. (2011) ao concluir a pesquisa, destaca que os poucos sinais de
infância encontrados nos registros fotográficos deste período, revelam a invisibilidade
considerável de crianças, sobretudo, negras, tendo em vista que a população era composta de
56% de pardos e pretos e 44% de brancos. Esses dados são importantes para tencionar essa
invisibilidade nos dias atuais, refletindo sobre a imagem de crianças negras representadas nas
culturas visuais contemporâneas.
Desse modo, ressalto um recente e importante trabalho de tese intitulado “Criança e
Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação Infantil” 138 realizada por Silva,
R. (2015) junto ao PPGE/UFPB. Nele a autora analisou os elementos que norteiam as práticas
pedagógicas antirracistas em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) da rede do
138 QRcode 49: Silva, R. (2015).
268
Recife e a sua influência na construção da identidade racial das crianças e negras. Para tanto,
fundamenta-se nos pressupostos de que uma educação pautada em/para os Direitos Humanos
deve ser incorporada desde a Educação Infantil, além disso, é uma forma de repensar os Direitos
Humanos frente às atuais demandas sociais, nesse escopo, Silva, R. (2015) discute as questões
de alteridade, os efeitos da colonialidade, as perspectivas multiculturais e de interculturalidade
crítica.
Uma das abordagens mais interessantes dessa tese girou em torno do seguinte
argumento: “O sonho de ser princesa esbarra na cor”. Disso, a autora faz inferências ao lugar
do negro na sociedade a partir da discussão da Lei nº 10.639/03 que trata da questão racial,
tendo como viés as interações entre as crianças de 0 a 5 anos, e sobretudo, das crianças meninas
e negras. Silva, R. (2015, p. 42) defende que as estratégias de afirmação (positiva) do ser criança
e negra estão mais centradas nas meninas, principalmente, devido às dimensões do cuidar e do
educar presente nas histórias apresentadas nos livros de literatura infantil que incentivam a
valorizar o corpo e o cabelo, já em relação aos meninos, essas estratégias são minimamente
apresentadas, porém, em ambos, há o desejo de mudar a sua cor/raça.
Silva, R. (2015) utiliza 37 imagens para ilustrar alguns espaços e situações do cotidiano
escolar, apesar de não mostrar diretamente o rosto das crianças, suas ações e interações em
grupo são bem perceptíveis, esse foi um dos critérios para a seleção de três imagens. A primeira
cena magicizada é um momento em que uma das meninas negras reconta a história “Menina
bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado (2000) para seus coleguinhas. A cena se passa
em um local dentro da escola. Em high key é possível perceber alguns elementos visuais que
indicam atividades pedagógicas em exposição, como na parede ao fundo alguns cartazes com
nomes de crianças e suas fotografias, letras do alfabeto e outros pequenos painéis pedagógicos.
A pequena “contadora” tem aproximadamente 5 anos, está sentada numa cadeira de madeira e
com suas mãos segura o livro aberto na direção de sua “plateia” formada por 4 meninas e um
menino que atentamente a observam. Todos usam uniformes escolar, todas as meninas com
cabelos amarrados, cada um diferente do outro, preto, castanho, liso, cacheado, ondulado,
crianças brancas, negras, coloridas, cada uma com suas características. A menina narra a
história e em seguida mostra as ilustrações, com suas mãos suspende o livro como se estivesse
fazendo um movimento circular para que sua “plateia” possa melhor visualizar. Em low key as
crianças olham diretamente para o livro como se estivessem mergulhando em suas tramas,
imaginando como seria a vida daquela menina negra do laço de fita que inventava várias
histórias para explicar a sua cor.
Mas, por que o negro precisa se justificar? E o branco, também se justifica? Essa não
269
tem sido uma discussão fácil nas entrelinhas da história, trata-se de um campo movediço em
que se travam duras e sofridas batalhas. O direito e a dignidade da criança devem ser garantidos
acima de qualquer condição, para isso, o preconceito e a discriminação precisam ser discutidos
desde a infância para que as crianças negras não cresçam tendo de “se justificar” por que são
diferentes, e para que o branco também não a veja assim. Segundo Silva, R. (2015):
Responsável pela apropriação do conhecimento sistematizado, a educação escolar precisa assumir o papel de mediadora da cultura, possibilitando que as
crianças se vejam de forma equivalente nas diferentes vivências propostas por
ela. Sabemos que a educação sozinha não é forte o suficiente para eliminar as desigualdades, entretanto ela pode e deve estar comprometida com a
afirmação das diferenças (SILVA R., 2015, p. 176).
Silva, R. (2015, p. 194) constatou que algumas práticas empreendidas no contexto da
escola estão comprometidas com uma educação antirracista no intuito de romper com as lógicas
da colonialidade, desde a Educação Infantil, essas práticas contribuem para a construção da
identidade das crianças, negras e de outras cores, “exacerbando e legitimando o sonho de que
um mundo melhor é possível. Mas que a sua construção está apenas começando!”.
As imagens dispostas no trabalho de Silva, R. (2015, p.33) desvelam crianças que são
alegres, que criam suas próprias maneiras de brincar, que entram e saem de espaços com
autonomia e espontaneidade, que participavam da rotina da escola de forma prazerosa, sem o
peso da marcação de poder.
A segunda imagem magiciza um momento de brincadeira livre realizada numa sala de
interatividades, chamada de “sala de movimento”, um espaço amplo e cheio de artefatos lúdicos
que estimulam as habilidades corpóreas das crianças. Em high key a fotografia é composta por
6 crianças de aproximadamente 3 e 4 anos, e do lado esquerdo aparece muito pouco uma das
professoras auxiliando duas crianças que brincam um dos sete pneus, espalhados na cena. Em
alguns cantos da sala, peças de brinquedos de montagem espalhadas pelo chão, mas o que
chama mais atenção na fotografia é o fato de uma das meninas ter transformado um daqueles
“cestos de roupa suja” (que provavelmente está servindo para guardar os brinquedos na sala)
em uma espécie de “cabana”, pelo menos é o que em low key se percebe. “Encolhidinha” ela
“se diminui” para caber dentro do cesto, assim como “Alice no País das Maravilhas” quando
ela toma um líquido que a faz encolher para entrar numa das portinhas do salão das portas.
A imaginação infantil, segundo Sarmento (2003, p. 14) é “um elemento nuclear da
compreensão e significação do mundo pelas crianças”. Através da imaginação, as crianças dão
270
sentido e significado ao mundo a sua volta, interpretam situações reais e incorporam novas
experiências imaginativas, por conseguinte, “[...] a imaginação do real é fundacional do seu
modo de inteligibilidade”.
Ao se esconder, encolher, inventar, fantasiar e imaginar, um universo de sentidos torna
possível a descoberta, a pequena “Alice”, não sabe o que a espera do ouro lado da porta, mas a
sua curiosidade é maior do que o medo porvir. Assim, é a menina do cesto, onde ela está
somente ela saberá, e por que quis estar lá, esse será sempre um novo mistério a desvendar,
como bem disse Larrosa (2010):
A verdade da infância não está no que dizemos dela, mas no que ela nos diz
no próprio acontecimento de sua aparição entre nós, como algo novo. E além disso, tendo-se em conta que, ainda que a infância nos mostre uma face visível,
conserva também um tesouro oculto de sentido, o que faz com que jamais possamos esgotá-la (LARROSA, 2010, p. 195).
A pesquisa de Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:
perspectivas para uma Escola da Infância” teve o objetivo de conhecer como os bebês vão
elaborando significado em suas experiências primeiras na escola de Educação Infantil, no
convívio com outros bebês e suas educadoras, visando contribuir para pensar a Escola da
Infância. De cunho etnográfico-interventivo, a autora investigou as rotinas de uma escola de
educação infantil em Porto Alegre. A autora parte do princípio de que a infância é uma condição
da experiência humana e é preciso garantir às crianças sua participação ativa em todo o processo
que envolve educá-las. Este trabalho apresenta em seu escopo mais de 250 imagens, dentre elas,
algumas fotografias foram produzidas em disparo contínuo, onde a câmera registrou
sequencialmente, as cenas observadas pela autora. Deste trabalho selecionei dois conjuntos de
imagens que demonstram atividades lúdicas desenvolvidas na creche. O primeiro conjunto é
composto por duas imagens em que dois bebês de 6 e 8 meses, interagem entre si com objetos
lúdicos, em seguida, passam a interagir com a pesquisadora.
A primeira imagem em high key mostra duas meninas sentadas no chão forrado, ambas
olhando fixamente para a câmera fotográfica (e/ou para a pesquisadora no ato fotográfico), a
cena acontece numa sala de “aula”, cheia de recursos pedagógicos e brinquedos infantis. O bebê
do lado esquerdo veste calça preta, meia branca e camiseta cor de rosa. Segura com seu braço
esquerdo uma cestinha azul cheia de brinquedos coloridos. O bebê da direita veste camisa de
mangas compridas de cor vermelha e calça azul marinho. O que pode ser verificado no seguinte
relato da autora:
271
[...] liguei a câmera e mirei para elas, então as duas instantaneamente pararam
o que estavam fazendo e começaram a me olhar. Elas tinham um olhar difícil de definir – e claro não pretendo atribuir uma interpretação ao olhar, mas me
senti sendo questionada, ambas, ao mesmo tempo em que me examinavam,
pareciam que me perguntavam: - Está olhando e filmando, por quê? E, então me deparei ficando embaraçada frente àquelas meninas tão pequenas (Diário
de Campo, outubro de 2012) (VARGAS, 2014, p. 16, grifo da autora).
Em low key, as crianças se comunicam através de expressões questionadoras, que de
certa maneira, nos interpelam com tamanha seriedade. Na primeira cena, seria como se
estivessem perguntando: “tá olhando o quê”? ou “O que é que você quer com a gente?”. Na
segunda imagem há poucas alterações, a mudança mais significativa está nas expressões faciais
das meninas, que parecem “pousar” para a fotografia, fazendo surgir levemente um sorriso nos
lábios. Dessa vez, o mesmo olhar que questiona, se sente acolhido, contemplado, entendido.
O universo infantil é repleto de sutilezas, particularidades que só através de um olhar sensível são possíveis de perceber. Do contato diário entre
pesquisador e sujeito emergem linguagens que extrapolam as formas de comunicação oral e escrita, são gestos, olhares, sorrisos, choros, entre outros
movimentos corporais que exprimem sentimentos e sensações que
comunicam algo, é essa sensibilidade que permite a autora afirmar que “Os bebês nos interrogam com seu modo de ser e estar no mundo, especialmente
como seres investigadores do seu meio e tudo o que os rodeia [...] que
considerei um modo de aprender junto” (VARGAS, 2014, p. 16).
A segunda sequência de imagens corresponde à “narrativa visual do bebê que, frente à
possibilidade ofertada a ele, questiona, duvida e mergulha para daí extrair uma possibilidade de
experimentar algo novo, uma experiência primeira de interagir com a bacia de tinta.”
(VARGAS, 2014, p. 16). A narrativa é composta por quatro imagens que revelam movimentos
de uma mesma criança (aparentemente, um menino de um pouco mais de 1 ano) em interação
com o objeto – uma bacia de tinta. Em high key, a sequência fotográfica mostra a criança de pé
em frente a uma grande bacia branca cheia de tinta nas tonalidades azul, verde e branco. Ela se
aproxima e olha em volta, na segunda imagem ela olha diretamente para a fotógrafa-
pesquisadora e com um olhar questionador coloca as mãos na cintura e inclina a cabeça, em
low key seria como se estivesse ainda tentando entender por que aquele balde estava alí em sua
frente, e talvez pensando se deveria ou não, mexer. Então, depois de refletir algum tempo, a
criança toca com a mão esquerda a tinta, e na sequência, ela já está completamente
“mergulhada” nas cores, pernas e braços “pintados” num belo colorido.
A pedagogia que se deseja para os bebês e as crianças até 6 anos – e poderia
272
ser até os 10 anos – é a que se apoia nas experiências vividas com o Outro,
num espaço-tempo social e cultural, que acolhe e sustenta essas experiências. A criança nessa pedagogia é competente e autora de suas aprendizagens. Ela
interroga o mundo, e nesse interrogar estão os aspectos que são o suporte para
suas aprendizagens. É considerar que as experiências educativas se dão pela intersecção das experiências do indivíduo com as do Outro, pela engrenagem
de umas nas outras e pela presença dos sujeitos no mundo (VARGAS, 2014,
p. 196).
Visando oferecer ao leitor/espectador, uma visão panorâmica da infância na
contemporaneidade, faço na sequência, uma breve explanação sobre as culturas infantis no
universo da moda, da fama e do consumo, que também são cenários significativos das atuais
culturas infantis.
A pesquisa realizada por Kern, et al. (2010) intitulada “A moda infantil no século XX:
representações imagéticas na revista do globo (1929-1967)” 139 realizada em 2010, buscou
analisar a história da indumentária infantil no século XX por meio de fotografias infantis
publicadas na Revista do Globo, a qual era editada na cidade de Porto Alegre/RS. O recorte
cronológico utilizado pelos pesquisadores foi de 1929 a 1967, os resultados apontam que a
roupa da criança era diferente da roupa do adulto, modelos típicos de crianças como vestidos
curtos, calças curtas, grandes laços na cabeça, sapato boneca, blusas de frio, casaquinhos eram
bem utilizados, e para compor o visual vestiam shorts e sapatos sociais com meias até a metade
do tornozelo.
Conforme pode ser visualizado em high key, as imagens são produzidas em cores
monocromáticas com predominância em preto e branco, mas conservam a qualidade da
imagem. Das 7 fotografias dispostas no nessa pesquisa, selecionei 3 que retratam crianças em
colunas de moda da revista. A primeira imagem é composta por duas meninas, com
aproximadamente 3 e 4 anos, uma sentada à direita da fotografia em um banco alto, a outra,
mais nova, em pé logo ao seu lado. Usam vestidos iguais, com altura acima do joelho, calçados
também iguais, mas o que se sobressai na fotografia são os enormes laços na cabeça, traço bem
característico da infância nesta época. Em low key, o rosto sério das duas, facilita a percepção
de que se trata de duas irmãs. As meninas não exibirem sorrisos, fazendo transparecer certo
desconforto, principalmente, considerando o olhar tímido da mais nova. E que me direciona a
139 QRcode 50: Kern et al. (2010).
273
pensar que elas não estão gostando muito da ideia de serem modelos fotográficos e de alguma
forma isso lhes foi imposto. De acordo com o relato das autoras, não há nenhuma alusão quanto
essa questão, até porque trata-se de imagens de acervos documentais antigos.
Na segunda fotografia, uma menina de aproximadamente 4 ou 5 anos, bem sorridente,
com cabelo curtinho, ela segura seu vestido rodado com a mão esquerda e com a direta segura
uma cordinha que puxa uma família de patinhos de brinquedo. A cena é produzida em um
estúdio fotográfico, dado o fundo branco na imagem. Em low key, a imagem monstra uma
criança com total desenvoltura como modelo fotográfico, faz caras e bocas para o fotógrafo.
Exibe uma postura nitidamente preparada para a fotografia, quase beirando a artificialidade.
A terceira fotografia é composta em high key por uma criança de 3 anos de idade, ele
veste uma combinação de blusa, blazer e short. Com o braço se apoia em uma almofada em
formato redondo que está colocada em cima de uma espécie de bancada. Seu cabelo chama
bastante atenção, porque lembra um penteado feminino, mas isso também era comum nesta
época. Segundo a autora, esses trajes aproximam-se das roupas usadas pelos adultos, com
exceção do short e isso reforça que “as crianças, mesmo em uma época em que o conceito de
infância já estava solidificado, continuavam se vestindo como adultos em miniatura” (KERN
et al., 2010, p. 418), em seguida, as autoras concluem que:
A moda infantil retratada nas imagens analisadas não vem ao encontro
das necessidades da criança, pois na maioria das vezes as roupas são desconfortáveis (cheias de babados e fitas), inapropriadas para o clima
(vestidos e calças curtas, em um Estado em que o inverno é longo e rigoroso) e muito sérias (cores sóbrias, modelos muito “certinhos”)
(KERN et al. 2010, p. 426, grifos da autora).
A pesquisa “Crianças de revistas (1930/1950)” desenvolvida por Brites (2000) analisou
imagens fotográficas de crianças dispostas nas revistas brasileiras “Vida Doméstica” e “Fon-
Fon!” publicadas entre 1930 e 1959 em matérias sobre infância. Considerando a fotografia
como produção social, a autora articula textos e imagens para refletir sobre diferentes
possibilidades do mundo infantil. Segundo a autora, as concepções de crianças e infâncias
projetadas nestes periódicos ressaltavam ideias como “fragilidade, ameaça sofrida, inocência,
perspectiva de futuro, possibilidades de transformação no presente e riscos de mortalidade”.
Segundo a autora, havia uma necessidade comum em transmitir uma visão idealizada de um
modelo de criança padrão a ser atingido que girava em torno da imagem de criança “forte,
saudável, estudiosa, familiar, escolarizada, religiosa, bem-comportada, com aspecto
higienizado, livre dos estigmas visíveis da carência” (BRITES, 2000, p. 163).
274
Das 14 imagens desta pesquisa, selecionei 3 que remetiam, exatamente, às percepções
de criança saudável como padrão de beleza e das práticas coletivas como modelos de controle
e poder ideológico da infância. A primeira imagem foi selecionada junto à Revista de São Paulo
em 1936, retrata um bebê de aparência saudável, vestido apenas com uma fralda e seu penteado
chama atenção, pois os cabelos lisos estão divididos para o lado. O bebê olha diretamente para
o foco da objetiva, em low key, seu olhar meigo se comunica com alguns gestos tímidos do
corpo como a boca que esconde os lábios e sua mãozinha direita quase fechada apoiada em uma
de suas pernas.
A segunda imagem é composta high key por outro bebê e sua mãe. Ambos com roupas
brancas e elegantes. A mãe exibe um enorme sorriso e ergue o bebê como um troféu, pousando
para a fotografia. O bebê com o mesmo penteado para o lado exibe aspecto saudável e limpo.
Em low key, a mãe “como frutos de grande cuidado, numa atitude de orgulho” exibe a beleza e
a “robustez” de seu filho, como numa vitrine, aguardando a admiração do público leitor da
revista. Enquanto isso, a criança olha meio inseguro como se estivesse desconfortável ou sem
entender o que está acontecendo. Segundo a autora, trata-se do “Concurso de Robustez Infantil”
em que os bebês eram fotografados usando “fraldas, sentados, de peitos nus” (BRITES, 2000,
p. 172).
A terceira imagem é composta por duas fotografias posicionadas lado-a-lado, nelas se
magicizam cenas que se passaram em atividades escolares e exibições cívicas. Brites (2000)
acrescenta que as publicações relacionadas a estes eventos sempre consideravam grandes
quantidades de alunos, ou seja, não se fotografava crianças individualmente. Portanto, a
fotografia da esquerda, apresenta em high key 19 crianças, de ambos os sexos e de idades
variadas, todas posicionadas em decúbito ventral (pessoa deitada de bruço ou de “barriga pra
baixo”) “coladas” uma na outra, em um gramado, que segundo a autora, trata-se de um parque
infantil. Seus braços não estão visíveis, mas, provavelmente, apoiam as cabeças que estão,
totalmente, viradas para o chão. Seus pés bem juntinhos também se esticam no chão. Seus
corpos magros, alinhados e enfileirados, lembram em low key cenas de um holocausto. Esta foi
a primeira impressão que tive, quando meu olhar vagueou sobre a pesquisa, antes de fazer sua
leitura textual. A forma com que estão posicionadas não transmite nenhum sentimento de
infância, mas sim de domesticação. O rigor com que se alinham, deixam seus corpos imóveis,
tensos, quase “mortos”. Nenhuma criança subverte, nenhuma criança se “mexe”, todas
rigorosamente imóveis. Até que ponto, essa imagem revela uma atividade física voltada para o
público infantil? Quais os benefícios dessa atividade à sua condição física da criança?
Talvez, essas respostas algum professor de Educação Física poderá dar, mas eu, nas
275
minhas limitações de pedagoga, não consegui enxergar. Minhas reminiscências só me
direcionam para a crítica do saudoso Paulo Freire quanto à ideia de uma educação bancária,
dominadora, castradora de liberdade. Àquela em que o professor reflete o comportamento da
sociedade opressora, reforça a “cultura do silêncio”, mantém e estimula a contradição, “Dai,
então, que nela [...] o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional,
que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações
daquele” (FREIRE, 1987, p. 34).
A quarta fotografia foi realizada durante um desfile cívico, nela também se fixa cerca
de 20 meninas com idade aproximada entre 6 e 7 anos. Elas perfomatizam com bambolês e
vestem roupas semelhantes. Interessante perceber que todas, aparentemente, apresentam o
mesmo corte de cabelo, estilo chanel bem curtinho. Em low key entendo esse comportamento
a partir de duas possibilidades: por uma condição solicitada ou imposta pela/o coreógrafa/o e/ou
pela/o professora/o ou por se tratar de uma tendência da moda daquela época. Esta fotografia
também apresenta crianças alinhadas, fazendo movimentos performáticos com o corpo,
linearmente coreografados. Diferente das crianças na imagem anterior, estas se “movimentam”,
se olham, se comunicam, mesmo com posturas sérias, comuns em apresentações cívicas, elas
demonstram cumplicidade e desenvoltura. Segundo Brites (2000, p. 171) essa apresentação foi
alvo de crítica popular devido aos “shorts” usados pelas meninas e mocinhas durante o desfile,
os quais foram “julgados ‘sumários’, exibidores do físico”, fato que virou matéria no jornal
paulista A Gazeta (1937).
Se neste período, usar short curto era considerado impróprio para crianças, imagina o
que esses críticos diriam daa imagens da Mc Melody? E das crianças usando salto alto e apenas
calcinha posando para campanha publicitária e sites de moda? Essa é uma das realidades que
temos atualmente circulando no universo das imagens técnicas, crianças que cada vez mais têm
seus corpos exibidos em outdoors (físicos e virtuais) apelativos e erotizados, a exemplo da
campanha publicitária para o “Dia das Crianças” da indústria de calçados Couro Fino140 que
leva uma criança de apenas 3 anos a sensualizar usando apenas calcinha e um salto alto. A
criança aparece em dois momentos, no primeiro a foto é produzida em superexposição, usa uma
calcinha branca, um salto alto vermelho, pulseira e colares de adulto. Está sentada no chão e
140 QRcode 51: “5 campanhas publicitárias que foram censuradas”. Blog Rafaela Maia (16 de agosto de
2015).
276
coloca a mão próxima da boca para fazer um “bico” e usa maquiagem forte. A matéria “A
infância roubada na publicidade da Couro Fino”, publicada pelo site Carta Capital, discorre o
seguinte trecho:
A garota-propaganda tem as unhas pintadas de vermelho, sombra nos olhos,
rímel, batom e blush. Ela leva as próprias roupas para o ensaio fotográfico, mas o produtor sugere que ela fique só de calcinha. Ficaria mais condizente
com a mensagem da campanha publicitária. O cenário está preparado. Ela
finge se maquiar em frente ao espelho, coloca colares e pulseiras de pérola. Ela manda beijo, faz movimento com o corpo para os cabelos voarem e faz
pose sensual em cima de salto alto (CRUZ e DANTAS, 2013, n.p.) 141.
Em outra fotografia, a mesma criança aparece de pé usando calcinha e salto alto amarelo.
O cenário é composto por vários pares de sapatos vermelhos, espalhados no chão junto a um
colar de pérolas. Em low key a cena magiciziza uma criança que homenageia o dia das mães,
indicando os calçados como presentes ideais. No entanto, a propaganda explora a imagem da
criança de forma abusiva ferindo, consubstancialmente, a sua dignidade. Contraditoriamente, a
sociedade tem reproduzido essas práticas em vários setores da vida social e cultural, no entanto,
o que mais impressiona é o fato da família permitir que tais abusos aconteçam, aliás, isso pode
até ter uma resposta óbvia, ou seja, a fama e com ela o dinheiro e o status social, mesmo que
isso custe a erotização de uma criança.
Numa perspectiva crítica da cultura visual, este tipo de publicidade tenta impor um
modelo ideal de beleza reforçado pelos padrões hegemônicos de crianças brancas, ricas,
sensuais, atraentes e altamente erotizadas (FELIPE e GUIZZO, 2003, p. 128), como vimos ao
longo deste ensaio. Trata-se, portanto, de reconhecer esses riscos à infância numa perspectiva
contra-hegemônica que possibilite uma consciência crítica em relação às dimensões políticas e
ideológicas veladas nesses abusos. Como visto na recente campanha contra a erotização precoce
das crianças que foi lançada na página oficial no Facebook da Secretaria de Assistência Social
141 QRcode 52: “A infância roubada na publicidade da Couro Fino”. Site Carta Capital. Natasha Cruz e
Raquel Dantas (24 de maio de 2013).
277
do Amazonas em 5 de abril do corrente ano142, repercutindo significativamente nas redes sociais
e de acordo com o site Portal da Amazônia, obtendo a marca de 92 mil curtidas e 400 mil
compartilhamentos. A campanha traz o slogan “Criança não namora, nem de brincadeira", e foi
idealizada para mobilizar escolas, comunidades, psicólogos e pais contra a exploração infantil
e atingindo. Esta é uma iniciativa plausível e vem contribuir com o enfrentamento dos processos
de erotização precoce da criança no Brasil.
Em síntese, este é o retrato da “nova” indústria cultural que se instaurou em meio à
sociedade das massas (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), uma potência visual que visa única
e exclusivamente o lucro, em detrimento da alienação do consumidor. Chamo de nova a
indústria cultural em função da atual revolução cultural que decorrente dos avanços na
informática e nas telecomunicações, o que segundo Flusser (2008, p. 106) convergiu para
formar uma nova concepção de sociedade - a sociedade informática telematizada, ou seja, uma
sociedade que se constrói de imagens técnicas, uma sociedade que vive em função das imagens.
Portanto, trata-se de um jogo de força e de poder que se alimenta diariamente de apelos
publicitários que usam a imagem da criança como forma de convencimento do adulto através
da via emotiva, que segundo Ferrés (1998) age por comunicação persuasiva, por transferência
e proximidade emocional, na tentativa de seduzir o consumidor.
Nossos gestos passam doravante não apenas a se constituir como reações às imagens, mas passam a distinguir-se igualmente rumo às imagens. As imagens
passam a ser os nossos interlocutores, os parceiros na solidão a qual nos
condenaram [...]. Queremos e fazemos o que as imagens querem e fazem, e as imagens querem e fazem o que nós queremos e fazemos (FLUSSER, 2008, p.
106).
Portanto, com esta provocação, passo a discutir as imagens-técnicas de crianças que
circulam nesse novo ambiente telemático que tem reconfigurado a indústria cultural gerando
imagens que diariamente nos interpelam com suas contradições e paradoxos, que vão desde a
ideia de uma infância inocente, pura e manipulável até a ideia de uma criança participativa que
exerce seu protagonismo nas relações de alteridade que estabelece na cultura de pares, entre
142 QRcode 53: Matéria: “Governo do Amazonas lança campanha de combate à erotização de crianças e
ganha adesão imediata e espontânea de usuários de redes sociais de todo o Brasil”. Portal do Amazonas. (10 de abril de 2017).
278
adultos e com as novas tecnologias midiáticas. Desse modo, desvelo imagens de crianças e
infâncias no contexto da Cultura Visual que implicam diretamente nos modos de ser e de viver
da criança na atualidade.
Assim, através do olhar que vagueia, vou tateando os “entre-lugares” das infâncias
magicizadas na imagem, à procura de reviver, sentir e compreender o que dizem, pensam e
escondem em suas peles. Ao mesmo tempo, tento oferecer ao leitor/espectador uma narrativa
integral que possa reencantar a criança em suas reminiscências de infância e mergulhar nesse
universo tão instigante e curioso que muitas vezes deixamos de lembrar.
4 A CULTURA VISUAL SOB OS HOLOFOTES DA ERA DIGITAL: A
REFLEXIVIDADE DA VIDA SOCIAL
A educação da cultura visual é aberta a novas e diversas formas
de conhecimentos, promove o entendimento de meios de
opressão dissimulada, rejeita a cultura do Positivismo, aceita a
ideia de que os fatos e os valores são indivisíveis e, sobretudo,
admite que o conhecimento é socialmente construído e
relacionado intrinsecamente ao poder. Necessariamente, a
educação da cultura visual incentiva consumidores passivos a
tornarem-se produtores ativos da cultura, revelando e resistindo
no processo às estruturas homogênicas dos regimes discursivos
da visualidade (DIAS, B., 2008, p. 39).
Da era da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2012) à era da transformação digital
(JENKINS, 2003; CASTTELS, 2000), a vida social tem passado por mudanças e rupturas
significativas nas relações econômicas, políticas, educacionais e, sobretudo, culturais. A
expansão industrial, a globalização e as tecnologias da informação digital impactaram não só
as relações sociais humanas, mas, principalmente as formas de conhecimento e comunicação.
A informática como tecnologia intelectual, engendra um novo modo de pensar o mundo, de
entender a aprendizagem e as relações com esse mundo. Nessa perspectiva, a tecnologia seria
uma aplicação prática do conhecimento científico em diversas áreas da pesquisa em função de
promover recursos para sobrevivência e melhoria das condições de vida humana.
Para Mcluhan (1969, p. 36) “[...] As sociedades sempre foram moldadas, mais pela
natureza dos meios que os homens usam para comunicar-se que pelo conteúdo da
comunicação”, com essa visão o autor destaca a intencionalidade com os meios são utilizados
279
no cotidiano humano, chamando atenção para a dimensão social desse impacto. Nesta direção
Ribeiro (2005) afirma que os recursos digitais se tornaram “multipolares”, mudando
radicalmente as formas de comunicação humanas:
Na realidade, trata-se de uma mudança vertiginosa jamais verificada
anteriormente na história da humanidade, e os meios digitais são frequentemente apresentados como o ‘motor’ dessa mudança. [...]. O digital,
porém, tornou-se “metáfora cultural” de crise e transição – de passagem da
“representação” para a “simultaneidade”, “telepresença”, “interatividade”, “tele-ação” (RIBEIRO, 2005, p. 617, grifos do autor).
Pensar a Cultura Visual no contexto da reprodutibilidade na era digital requer uma
abertura conceptual crítica no que se refere ao entendimento do que veio a ser a chamada
“revolução tecnológica”. Segundo Castells (1999) as novas tecnologias são processos a serem
desenvolvidos e não ferramentas a serem aplicadas, nesta perspectiva, elas não determinam a
sociedade, mas são parte integrante desta, consequentemente, segundo o autor, a sociedade não
pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas (CASTELLS, 1999),
desse modo,
O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa
informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de
processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso (CASTELLS, 1999, p. 50).
Assim, no contexto da revolução tecnológica, o mundo se tornou digital, o que
desencadeou uma súbita expansão na dimensão visual da cultura. Desse modo, o século XXI
se configura na multiplicidade das culturas visuais de proporções mais complexas e
sofisticadas, o que direciona à nova epistemologia da imagem, agora como objeto social e
acontecimento visual:
Las partes constituyentes de la cultura visual no están, por tanto, definidas
por el medio, sino por la interacción entre el espectador y lo que mira u observa, que puede definirse como acontecimiento visual. Cuando entramos
en contacto con aparatos visuales, medios de comunicación y tecnología, experimentamos un acontecimiento visual. Por acontecimento visual entiendo
una interacción del signo visual, la tecnología que posibilita y sustenta dicho
signo y el espectador. Al prestar atención a esta interacción múltiple, intento adelantar estrategias interpretativas más allá del ahora familiar uso de
terminología semiótica (MIRZOEFF, 2003, p. 34).
280
As infâncias estão imersas em visualidades, seja em casa ou na escola, são brinquedos,
roupas, produtos de beleza, calçados, materiais escolares, acessórios de moda, as escolhas
alimentares, entre outros inúmeros produtos em que estão impressos os personagens de filmes
ou desenhos animados prediletos, toda essa dinâmica visual compõe as culturas infantis e são
determinantes para construções de suas identidades. Por isso, é preciso entender como as
crianças e as infâncias estão sendo representadas na indústria cultural na atualidade e como
essas representações repercutem nos modos de ser e viver das crianças ao constituírem suas
culturas e identidade, mas, como reconhecer o que é próprio da cultura infantil? É possível falar
de fronteiras culturais quando se trata de Cultura Visual?
Na perspectiva da globalização, “a cultura é por definição um processo construído sobre
a intercepção entre o universal e o particular” (SANTOS, 2002, p. 47). Como fenômeno
universal, a cultura “local’ na sociedade contemporânea não assume uma única configuração, e
sim, múltiplas configurações grupais e culturais, que em suas particularidades apresentam
algumas universalidades, porém, cada vez mais o local e o universal se tornam fluídos, portanto,
“nas atuais circunstâncias, só é possível visualizar culturas globais pluralistas ou plurais”
(SANTOS, 2002, p. 48). Como fenômeno particular, a cultura cada vez mais se torna hibrida,
tendo em vista que os “próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão
consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ [...], estão
em profundo processo de redefinição” (BHABHA, 2013, p. 25, grifo do autor). Como já
anunciado por Giddens (1991, p. 29) “o que estrutura o local não é simplesmente o que está
presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua
natureza”. Neste sentido, falar de fronteiras é reconsiderar os fenômenos em suas dimensões
locais e globais em processos constantes de deslocamentos culturais, contingenciais e híbridos.
Partindo dessa óptica, na tentativa de ressignificar a criança através de imagens histórica
e socialmente contextualizadas, recorri à critérios locais, porém, que apresentam repercussões
globais na configuração das culturas infantis, na intenção de reflexionar seus modos de ser e de
viver, além de compreender suas formas de enfrentamento, resistência e subversão frente aos
abusos da cultura estetizada. Neste sentido, a discussão partiu da seguinte problematização: que
concepções e imagens circulam nas Ciências Humanas e Sociais, na mídia televisiva e na
Internet que dialogam com os seguintes debates: a criança na Cultura Visual contemporânea,
visibilidades publicitárias direcionadas ao público infantil, e consequentemente, o abuso da
condição de criança frente à crescente demanda do consumo e da estetização da cultura.
Desse modo, seguindo os critérios já apresentados na introdução desta tese, estabeleci,
consecutivamente, os seguintes parâmetros para a seleção e produção fotoetnográfica: imagens
281
de crianças que remetem à caracterização da infância, dispostas em estudos e pesquisas
científicas nas Ciências Humanas e Sociais desenvolvidas entre 1990 a 2017; imagens de
crianças envolvidas em polêmicas nacionais dispostas em redes sociais como Facebook,
YouTube e Instagram; imagens de crianças que estão em evidência nacional na mídia televisiva,
na publicidade ou na Internet; imagens de crianças relacionadas à moda, publicidade e
consumo.
Para compor as narrativas fotoetnográficas utilizo imagens expressas através de ícones
imagéticos fixos (fotografias) e em movimento (audiovisuais) dispostos em acervos públicos
impressos e/ou digitais (on-line). No entanto, a seleção das fontes não pretende descrever um
determinado tipo de infância, mas procura mostrar como as infâncias retratadas nas pesquisas
revelam informações acerca da condição social da criança em cada época e a partir dessas
informações, tenciona outras visões que em alguns momentos dialogam e em outros se
contradizem.
Com o intuito de representar a pluralidades de representações de crianças e infâncias
contemporâneas, opto por selecionar imagens que foram investigadas em pesquisas acadêmicas
e científicas no Brasil para tentar pelo menos uma aproximação do que seriam os conceitos de
criança e infância na contemporaneidade. Portanto, a partir do memento, para reviver, sentir e
compreender as imagens (reminiscência) dialoguei, diretamente, com as fontes selecionadas
buscando promover interlocuções teóricas e empíricas sobre a realidade da criança magicizada
na imagem técnica. Para tanto, desvelei em high key, os aspectos que estão em evidência nas
infâncias expostas pelas pesquisas científicas e aparelhos midiáticos, construídas como fruto
direto das intervenções imagéticas da Cultura Visual; e em low key, à luz das discursões
revisitadas durante a composição da narrativa escrita, busquei refletir sobre as concepções de
crianças e infâncias em cada tempo e espaço revelado, para redescobrir as culturas infantis que
se escondem na imagem, ou seja, àquilo que está subexposto, propositalmente, que só é possível
desvelar a partir de uma abordagem cultural, histórica e social, para além do contexto imagético
superexposto na “pele-magia’. Importante, ressaltar que, a partir de uma visão crítica da Cultura
Visual, o determinou a seleção foi o próprio sentido dado à imagem em cada contexto
investigado, assim, a imagem passou a ter suas próprias significações, dado o caráter subjetivo
e multicultural do signo iconográfico.
Neste sentido, considerando a extensão das visualidades encontradas no contexto da
Cultura Visual, selecionei a partir do memento e de acordo com o objetivo específico do campo
analítico que consiste em investigar como a criança vem sendo representada histórica e
socialmente através da Ciência e da Cultura Visual para reflexionar seus modos de ser e de
282
viver em épocas e contextos diferenciados, visando, sobretudo, compreender suas formas de
enfrentamento, resistência e subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido
a ela (criança) como cultura e projeções sociais, apresento neste subcapítulo três cartografias
que ajudam a pensar os mapas da infância na contemporaneidade: i. a crescente demanda do
consumo para a formação de crianças consumidoras, a publicidade televisiva para crianças e a
resolução nº163 do CONANDA (2015) sobre publicidade infantil. ii. os processos de
adultização e erotização da criança considerando a trajetória da funkeira mirim Mc Melody e a
moda veiculada pela Internet direcionada à infância; iii. a pesquisa TIC KIDS on-line Brasil
(CGI.br, 2015) que discorre sobre o uso de Internet por crianças e adolescentes e a participação
dos youtubers mirins e suas implicações para a construção das culturas infantis.
Ao pretender situar a infância contemporânea nas culturas visuais, estou ciente de que
essas representações são referentes ao momento, contexto e espaço nos quais as imagens foram
produzidas, neste sentido, as análises realizadas foram construídas dentro de um campo
movediço, onde os resultados são fluidos e não-previsíveis. Portanto, nesse exercício seletivo,
o que mais se observa é a multiplicidade de culturas infantis contemporâneas, crianças que
brincam, criam, imaginam, subvertem, choram, crianças que sonham e fantasiam suas vidas,
que nos fazem “viajar” nos seus olhares in/discretos, crianças que nos surpreendem sempre, são
essas crianças que também compõem as entrelinhas da Ciência, são crianças sociais - críticas,
criativas e protagonistas em suas histórias de vida, mesmo em situações de in/visibilidade.
Nesta perspectiva, para pensar a Cultura Visual e suas implicações no cotidiano das
construções culturais da infância, cabe fazer uma interlocução com a perspectiva crítica da
indústria cultural e os impactos do capitalismo cultural no comportamento social humano
através da mídia, discutidos, consubstancialmente, nas obras “Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos” de Adorno e Horkheimer (1985) e “Indústria Cultural e Sociedade” de
Adorno (2009). De modo geral, os autores defendem a ideia de que a indústria cultural é o
mecanismo capitalista que reforça as condições vigentes produzidas para a maximização do
capital. De forma contundente, os autores afirmam que “A indústria cultural tem a tendência de
se transformar num conjunto de proposições protocolares e, por isso mesmo, no profeta
irrefutável da ordem existente” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). Inclusive, Adorno
(2009) promove duras críticas ao impacto da indústria cultural na arte medieval, destacando a
inversão dos valores na concepção de arte:
A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos, da
performance tangível, do particular técnico sobre a obra, que outrora trazia a
283
ideia e com essa foi liquidada. O particular, ao emancipar‐se, tornara‐se rebelde, e se erigira, desde o Romantismo até o Expressionismo, como
expressão autônoma, como revolta contra a organização. O simples efeito
harmônico tinha cancelado na música a consciência da totalidade formal; na
pintura, a cor particular tornou‐se mais importante que a composição do
quadro; o vigor psicológico obliterou a arquitetura do romance. A tudo isso a
indústria cultural pôs fim (ADORNO, 2009, p. 9).
Neste contexto, as atenções teóricas voltam o olhar para as bases epistemológicas da
teoria crítica para refletir as implicações do poder midiático e dos modelos hegemônicos que
impostos pelas grandes potências mundiais da indústria cultural. Parte do princípio de que a
sociedade burguesa e seus modelos de produção tornam ocultos e/ou mascaram as condições
de exploração para manter as próprias condições de exploração do proletariado, assim, a teoria
crítica toma a responsabilidade de fazer a crítica ao poder e controle ideológico que dão
sustentação às condições de exploração, portanto, a teoria crítica é um projeto de emancipação:
Formulado em linhas gerais, este juízo existencial afirma que a forma básica
da economia de mercadorias, historicamente dada e sobre a qual repousa a história mais recente, encerra em si as oposições internas e externas dessa
época, e se renova continuamente de uma forma mais aguda e, depois de um
período de crescimento, de desenvolvimento das forças humanas, de emancipação do indivíduo, depois de uma enorme expansão do poder humano
sobre a natureza, acaba emperrando a continuidade do desenvolvimento e leva
a humanidade a uma nova barbárie (HORKHEIMER, 1991, p. 57).
Para Adorno (2009), quando a cultura “se congela em ‘bens culturais’ e na sua
repugnante racionalização filosófica, os chamados ‘valores culturais’, pecam contra a sua
raison d'être” (ADORNO, 2009, p. 48, grifos do autor), ou seja, quando a cultura serve às
determinações do mercado de bens e consumo, ela perde sua essência, interrompe a consciência
de si mesma e se submete á crescente barbárie do predomínio do poder econômico,
consequentemente, a classe dominada e submetida à tal exploração não têm consciência das
manobras de manipulação com que as grandes corporações da indústria as acorrenta, a grande
massa manipulada pelas imagens que a indústria cultural impõe como verdade,
[...] não é capaz de compreender que a reificação da própria vida repousa não em um excesso, mas em uma escassez de esclarecimento, e que as mutilações
infligidas à humanidade pela racionalidade particularista contemporânea são estigmas da irracionalidade total (ADORNO, 2009, p. 50).
Aplle (1989, p. 19-24) ressalta que atravessamos uma crise nos processos de legitimação
e aculturação, na qual os aparatos produtivos e reprodutivos da sociedade (incluindo as escolas)
284
estão cindidos por tensões, na qual a própria essência da reprodução continuada das condições
necessárias para a manutenção do controle hegemônico é ameaçada; entretanto, torna-se difícil
de ver o impacto relacional que isso tudo tem sobre nossas vidas cotidianas. Por isso, a crise
não é só uma questão econômica, ela é também política e ideológica, “é na intersecção dessas
três esferas da vida social, na forma como elas interagem, na forma como cada uma delas se
sustenta e contradiz as outras, que podemos vê-la em sua plena forma” (APLLE, 1989, p. 20).
A indústria cultural, enquanto aparelho ideológico, político e econômico, mascara a
ideologia dominante, os meios de comunicação de massa servem apenas aos interesses de
mercado, visam produzir bens de consumo e um exército de consumistas. A mídia publicitária
produz cenas que magicizam diariamente a vida em simulacros imagéticos, que nada mais são
que, formas de expressão de uma massa manipulada regida e regulada pelas oligarquias da
indústria cultural que visam unicamente o lucro. Desse modo, a luta é por uma educação contra-
hegemônica que desmascare o sistema de produção e a consolidação do poderio econômico e
político das grandes corporações. É neste sentido que a teoria crítica vai estimular a
conscientização crítica do sujeito diante daquilo que, aparentemente, se mostra inofensivo e não
susceptível à crítica.
Para Kellner (2001, p. 44) a expressão indústria cultural indica “o processo de
industrialização da cultura produzida para a massa e os imperativos comerciais que impeliam o
sistema”, que segundo os frankfurtianos, buscavam legitimar ideologicamente as sociedades
capitalistas integrando os indivíduos em uma cultura de massa, ou seja, revertiam as produções
culturais de massa à condição de produção industrial, em que os produtos da indústria cultural
apresentavam as mesmas características dos outros produtos fabricados em massa, o que seria
a transformação da cultura em mercadoria, padronização e massificação.
No entanto, Kellner (2001, p. 45) faz duras ressalvas ao pensamento originário da teoria
crítica indicando a necessidade de uma atualização para incorporar os desenvolvimentos
contemporâneos da teoria social e cultural, para tanto, elenca as seguintes demandas:
[...] análise mais completa da economia política da mídia e dos processos de
produção da cultura; investigação mais empírica e histórica da construção da
indústria da mídia e de sua interação com outras instituições sociais; mais estudos de recepção por parte do público e dos efeitos da mídia; e
incorporação de novas teorias e métodos culturais numa teoria crítica reconstruída da cultura e, da mídia (KELLNER, 2001, p. 45).
Ao mesmo tempo em que a indústria cultural se firma, outro fenômeno transforma ainda
mais as formas de relações sociais e econômicas mundiais - a globalização (BECK, 1997;
285
GIDDENS, 1991, 2012; SANTOS, 2002, 2003). De acordo com Santos (2002) a globalização
trouxe ao cenário mundial uma nova forma de organização institucional, agora transnacional, e
com ela uma nova classe capitalista, que, por deter um terço do produto industrial mundial dita
padrões de consumo e exploração conduzindo a população às desigualdades sociais,
econômicas e culturais.
O que chamamos de globalização é apenas uma das formas de globalização, a globalização neoliberal, que é sem dúvida a forma dominante e hegemônica
de globalização. A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de
acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos
vínculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e por outro lado, submeter à sociedade a lei do valor, no pressuposto de
que toda a atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma
de mercado (SANTOS, 2003, p. 13).
O referido sociólogo explora os conceitos de globalização hegemônica e contra-
hegemônica, afirmando que o global acontece localmente e é preciso fazer com que o local
contra-hegemônico, também aconteça globalmente, neste prisma,
A globalização, longe de ser consensual, é um vasto e intenso campo de
conflitos entre grupos sociais, estados e interesses hegemônicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro, e mesmo no
interior do campo hegemônico há divisões mais ou menos significativas
(SANTOS, 2002. p. 27).
Santos (2002, p. 75) destaca que as transformações em defesa de uma contra-hegemonia
forte frente à hegemonia capitalista são formas autônomas de práticas sociais, políticas,
econômicas e culturais de resistência, nesse sentido, “[...] temos o direito de ser iguais quando
a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Nesse
contexto, cada grupo social produz e reproduz suas culturas adequando-se às suas realidades
locais e sofrendo influências de outras culturas globais. Reforçando a ideia de
complementaridade, destaca o autor: “é incorreto dar prioridade, quer às estratégias locais, quer
às estratégias globais [...]. Ao nível dos processos transnacionais, da economia à cultura, o local
e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda” (SANTOS, 2002, p.73).
Portanto, não há uma única forma de globalização, mas, formas múltiplas de
globalizações que permeiam questões locais em detrimento das transições complexas que
ocorrem nas sociedades semiperiféricas e periféricas, portanto, considerando as diferenças
sociais desiguais e excludentes, não é possível pensar numa linearidade nos processos de
286
globalização. Tal como aponta Giddens (2012):
A nova agenda da ciência social diz respeito a duas esferas de transformação, diretamente relacionadas. Cada uma delas corresponde a processos de
mudança que, embora tenham tido suas origens no início do desenvolvimento
da modernidade, tornaram-se particularmente intensas na época atual. Por um lado, há a difusão extensiva das instituições modernas, universalizadas por
meio dos processos de globalização. Por outro, mas imediatamente relacionados com a primeira, estão os processos de mudança intencional, que
podem ser conectados à radicalização da modernidade. Estes são processos de
abandono, desincorporação e problematização da tradição (GIDDENS, 2012, p. 91).
Nesta perspectiva, os processos de globalização intensificaram os avanços tecnológicos
gerando formas diversificadas de crescimento e desenvolvimento econômico e cultural, tal
impacto repercutiu diretamente nas formas de vida e comunicação na sociedade contemporânea,
em contrapartida, também geraram sérias consequências nos modos de vida social e de
produção, agora, o que se vê são fluxos cada vez mais desterritorializados, sob o constante
exame das práticas sociais caracterizadas por várias descontinuidades, observadas na questão
do tempo e do espaço, e na aceleração do ritmo de mudança intrínseco das instituições modernas
(GIDDENS, 1991, p. 45), marcadas pelo permanente avanço tecnológico, pela constante
mobilidade de pessoas e pelo caráter provisório das relações sociais e das identidades culturais
(HALL, 1996; 2004; KELLNER, 2001).
A partir da visão de Giddens (1991, p. 45) o termo “reflexividade” remonta ao
autoconfronto, à constante reflexão frente aos problemas reais sobre os quais não temos
controle, tampouco conhecimento (BECK, 1994, pp. 6, 176). Neste sentido, ao tratar dos
contornos da modernidade, o autor compreende a reflexividade da vida social moderna
enquanto práticas sociais, que precisam ser “constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu
caráter” (p. 49). Portanto, segundo Giddens (1991, p. 93) a reflexividade da vida social moderna
revela que vivemos sob o constante exame das práticas sociais caracterizadas por várias
descontinuidades, observadas na questão do tempo e do espaço, e na aceleração do ritmo de
mudança intrínseco das instituições modernas. Tais práticas sociais repercutem, diretamente,
no campo das investigações científicas nos direcionando para novas abordagens paradigmáticas
e interpretativas dos fatos, seja nas ciências, nas tecnologias ou no próprio comportamento
humano. Nessa perspectiva,
A criança do século XXI precisa de ferramentas que lhe desvendem o mundo
287
da globalização hegemônica em que está a crescer, mais problemático do que
alguma vez o foi, competitivo, incerto, de risco em riste, exigindo uma permanente reflexividade que promova ajustamentos adequados à realidade
aceleradamente mutante [...] (SILVA, T., 2010, p. 122).
Nesta vertente, Silva, T. (2011) defende o afastamento da perspectiva técnica, visando
demonstrar o quanto as teorias tradicionais falhavam na formação de um sujeito livre e capaz
de reflexão crítica e autônoma, revela que os presentes arranjos educacionais, afetados por
objetivos de interesse e poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia,
porém, afirma que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e chegar a um
conhecimento não mistificado do mundo social.
Tais elucidações abrem espaço para a discussão das imagens que dominam as culturas
midiáticas direcionadas à infância, desse modo, ao estabelecer uma postura crítica diante do
que se veicula na TV, nas redes sociais, na propaganda publicitária, e inclusive nas próprias
visualidades presentes na escola, apresento um panorama geral de uma “pequena” fatia do
universo visual da nova indústria cultural que produz e é produzida para a infância e pela criança
na contemporaneidade.
4.1 Publicidade e Consumo: a estetização da infância contemporânea
A cultura está presente nas vozes e imagens
incorpóreas que nos interpelam das telas, nos postos
de gasolina. Ela é um elemento-chave no modo
como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo
consumo, às tendências e modas mundiais. [...] É
trazida para dentro de nossos lares [...] Elas mostram
uma curiosa nostalgia em relação a uma
"comunidade imaginada", na verdade, uma nostalgia
das culturas vividas de importantes "locais" que
foram profundamente transformadas, senão
totalmente destruídas, pela mudança econômica e
pelo declínio industrial (HALL, 1997, p. 22).
Das pinturas nas cavernas à fotografia digital, o efeito representativo e chamativo das
imagens permanece em cada época e contexto com suas características próprias. Segundo
Postman (1999, p. 94) “[...] biologicamente estamos todos equipados para ver e interpretar
imagens e para ouvir a linguagem que se torna necessária para contextualizar a maioria dessas
288
imagens”. Neste subcapítulo, apresento as narrativas fotoetnográficas produzidas a partir de
imagens de crianças reflexionando sobre as diferenças entre como eram e são representadas as
crianças pela Cultura Visual e como essas representações repercutem nas interpretações e
(in)formações das culturas infantis na contemporaneidade. Busquei, então, nos registros
iconográficos reconhecer as nuances da modernização em confronto com a tradição nas
representações de crianças ao longo das transformações sociais e culturais da modernidade
reflexiva para percebemos que as imagens deste período são construções orientadas e
fundamentadas numa determinada visão de mundo e de cultura - a dos adultos.
Como visto anteriormente, em se tratando de história e memória, as imagens
representam lembranças, comportamentos, situações eternizadas como pedaços de vida
(MARTINS & TOURINHO, 2010, p. 10), são películas magicizadas de nossa existência
(SAMAIN, 2012; FLUSSER, 2007), são reminiscências da alma (PLATÃO, 1972, p. 81a1-d5,
p.51-53,), memórias são imagens, imagens são memórias - contadas, vividas, imaginadas,
contempladas, conhecidas ou sonhadas, sempre aberta a novas percepções e interpretações.
De acordo com Martins (2012, p. 73) “na perspectiva da cultura visual a interpretação
se constitui como prática social que mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da
memória social construída pelo sujeito”, deste modo, as interpretações são sentidos e
significados decorrentes do imaginário social do qual o sujeito faz parte. Neste sentido,
revisitamos as imagens de crianças na contemporaneidade a partir de um “conceito ampliado
de infância que leva em conta a temporalidades, práticas e visões, impossíveis de serem
reduzidas a uma única perspectiva” (MARTINS & TOURINHO, 2010, p. 10).
Desse modo, destaco as concepções de crianças na sociedade contemporânea a partir
das rupturas conceituais e paradigmáticas das categorias criança e infância no cenário científico
à luz da Sociologia da Infância e no cenário da globalização, da Indústria Cultural e da era
digital. Tendo como recorte temporal os séculos XX e XXI que rompem com a hierarquia rígida
do comportamento humano, focalizando o caráter ideológico dos padrões usados para definir
qualidade estética, o que propicia o surgimento de uma pluralidade cultural, um intercâmbio
entre grupos culturais diferentes e a emergência da reflexividade da vida social moderna.
Momo143 (2007) em sua tese de doutorado: “Mídia e consumo na produção de
143 Doutora em Educação (UFRGS) e pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2007.
289
uma infância pós-moderna que vai à Escola”144 desenvolvida junto ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, ao tratar de infâncias contemporâneas e culturas midiáticas que envolvem a efemeridade
das imagens e significados de criança, destaca que estamos presenciando uma era em que:
[...] a produção, a circulação e o consumo de bens materiais e culturais se
caracterizam pela aceleração e a provisoriedade, os ícones infantis apresentam a possibilidade de fruição, mas essa deve acontecer no momento presente, já
que tais ícones são fugazes. Tal fruição envolve não apenas o deleite de bens materiais, mas também de bens culturais (MOMO, 2007, p. 69)
De acordo com Momo (2007) a “infância que vai à escola” leva consigo elementos da
cultura visual, sobretudo midiática, e elabora suas próprias concepções de realidade
transgredindo padrões e subvertendo aquilo que os adultos tendem a controlar e/ou conhecer,
nesta concepção, segundo a autora, o modo de ser criança na cultura contemporânea busca
infatigavelmente a fruição e o prazer, procura incansavelmente inscrever-se na cultura
globalizada tornando-se consumidores de artefatos midiáticos, esse processo ultrapassa as
fronteiras de classe, gênero e geração.
Uma criança que não tem saneamento básico em sua casa é capaz de saber detalhes sobre o uso e o funcionamento de notebooks, celulares e iPods tanto
quanto adultos ou quanto crianças de condições econômicas privilegiadas.
Aprendem por meio da mídia (principalmente televisiva) a dominar uma certa “gramática” da cultura tecnológica e por meio dela passam a pensar (MOMO,
2007, p. 233).
A pesquisa de Momo (2007) apresenta múltiplas possibilidades visuais que vão desde
anúncios de revistas, embalagens de produtos de consumo infantil, imagens dispostas em sites
até as próprias fotografias realizadas pela autora durante a pesquisa de campo. De um acervo
de 184 imagens, optei por selecionar as que dialogavam diretamente com as questões da
infância pós-moderna dos artefatos tecnológicos e do consumo, assim, selecionei 4 imagens
que compuseram 2 mosaicos.
144 QRCode 54: Tese: Mídia e consumo na produção de uma infância pós-moderna que vai à escola (MOMO,
2007).
290
A primeira imagem intitulada “tecnológica (celulares)” em high key mostra duas
meninas interagindo com celulares na sala de aula. As crianças aparentam ter entre 8 e 9 anos,
vestem casacos e usam batom nos lábios. Debruçam-se na mesa para melhor apoiar os braços
e facilitar o manuseio do celular (de brinquedo) que cada uma tem na mão. Em low key, parecem
muito entusiasmadas com o artefato, como se dominassem toda sua engrenagem. Nada mais as
distraem, elas olham compenetradas para o aparelho que, de acordo com os relatos da
pesquisadora, eram celulares de brinquedos ou quebrados que foram descartados. No entanto,
isso não as impedia de fantasiar seu uso, com a desenvoltura de quem realmente sabia como
eles funcionavam.
As crianças vivem o mundo das visibilidades no qual, mais do que ter, é importante parecer: parecer ter, parecer ser. Rádio-fone nos ouvidos, mobies
(também chamados de pagers) nas cinturas, celulares em cima das mesas,
calculadoras nas mãos e relógios nos pulsos. Crianças rodeando os portadores de tais objetos, propondo trocas e empréstimos. Objetos tecnológicos
geralmente proporcionam prestígio para quem os possui bem como promovem a inscrição em uma cultura globalmente reconhecida (MOMO, 2007, p. 230).
Momo (2007, p. 324) através de sua tese, reafirma a nova infância - a pós-moderna “[...]
fabricada pela cultura contemporânea, governada pela mídia e pelo consumo”. Nesta
perspectiva a autora destaca o caráter provisório, fugaz, instantâneo e efêmero da condição
cultural da pós-modernidade, e defende que a “[...] nova infância é aquilo em que as crianças
vão se tornando no interior dessa cultura”. Mas que cultura é essa? Segundo Momo (2007),
Essa cultura se caracteriza pela descontinuidade, pela efemeridade, pela
descartabilidade, pela instantaneidade, pela transitoriedade, pela constante
mudança, pois o que passa a importar é o momento presente, o tempo presente. Na cultura pós-moderna prevalece o fluxo de imagens, de saberes, de
mercadorias, de representações, de pessoas, de desejos, de pensamentos, de dinheiro e de tantas outras questões. Ela “funciona” como fluxo, ultrapassa
fronteiras e corrói o pensamento binário. Já não há como pensar por meio de
dois pólos (ou por meio de fronteiras), pois um fluxo está o tempo todo “circulando”, sendo modificado e constituído por múltiplos elementos
(MOMO, 2007, p. 35).
Desse modo, Momo (2007) chama atenção para a mercantilização da cultura infantil
para a formação de crianças consumidoras, através das grandes corporações empresariais norte-
americanas como Disney, Mattel e McDonald’s, além destas, aponta a comercialização de
ícones relacionados às marcas de personagens brasileiras como Xuxa, Sandy & Júnior, Eliana.
Para tanto, promove interlocuções com Giroux (1995) ao considerar que a mercantilização é
291
um dos princípios definidores da cultura infantil, citando que um grande exemplo disso, são as
produções fílmicas da Disney que criam uma cultura de mercado através de protótipos de
personagens como Mickey, Branca de Neve, Aladim e outros, estampados em brinquedos,
jogos, roupas e outros objetos comercializados no mundo todo. E cita Steinberg e Kincheloe
(2001), para afirmar que “a cultura infantil hoje é inventada predominantemente por adultos em
grandes corporações, cujas estratégias são os princípios do prazer e do livre mercado” (MOMO,
2007, P. 118). Tal influência pode ser percebida em inúmeras fotos produzidas em seu trabalho,
conforme imagens selecionadas para compor esta Fotoetnografia.
Em decorrência disso, Momo (2007, p. 218) afirma que o que as crianças levam para
escola é a “onda” do momento, são os artefatos que estão em voga na mídia do momento
presente, o que pode ser verificado na segunda imagem intitulada “B fashion” composta em
high key por uma menina, aparentemente com 9 anos de idade. A fotografia enquadra apenas o
rosto da criança que usa óculos “fashion” com lentes avermelhadas, uma camisa de mangas na
cor mostarda e na cabeça usa uma “touquinha da Milky”, personagem da novela Malhação
transmitida pela emissora Rede Globo de Televisão (2004). Ela exibe um leve sorriso e usa
batom cor-de-rosa. Em low key, provavelmente, inclina um pouco seu rosto para baixo na
intenção de destacar o uso dos óculos e parecer ser “fashion, “dentro” da moda do momento.
Seu jeitinho parece ser de menina vaidosa, que gosta de andar cheia de acessórios. Esse é um
exemplo de criança “antenada”, que sabe o que quer, que usa da criatividade para ser ou parecer
se fashion. Esse “ser fashion” é um exemplo da infância pós-moderna a que Momo (2007, p.
230) se referiu ao afirmar que o no mundo das visibilidades, o mais importante não é ter, e sim
parecer ter, parecer ser.
A terceira imagem “jogando sua teia” apresenta em high key uma criança do sexo
masculino, de aproximadamente 8 anos, vestindo um conjunto de moletom vermelho, sendo o
camisão com uma imensa estampa que se assemelha à roupa do Homem-Aranha, personagem
de filmes e desenhos animados da Disney. A cena se passa na sala de aula, a criança está
centralizada na imagem, se posiciona em pé para imitar o personagem, e com um largo sorriso
no rosto, “joga sua teia” gesticulando com a mão esquerda. Em low key, a fantasia de ser um
super-herói envolve todo um complexo jogo de significados que permeia imaginação e a
criatividade. Assim,
As crianças vão tecendo uma rede de significados e preferências que
constituirão suas culturas e representações, com isso, é possível perceber que
as formas de vivenciar cada ação na infância trazem consequências para a vida prática das crianças, e cada uma delas irá criar para si suas próprias
292
representações acerca de seus mundos e suas culturas (CABRAL e DIAS,
2013, p. 154). 145
Na brincadeira, a fantasia e a realidade se misturam num misto de performatividade e
agilidade. O corpo corresponde ao brincar. Barbosa R. e Gomes (2012, p. 154)146 discutem a
dinâmica brincante entre alguns super-heróis de desenhos animados como Power Rangers, Ben
10, Homem-Aranha e Homem de Ferro, assim como a orientação estética desta conexão e a
relação da criança com seus personagens, para esses autores,
Quando brincam de Homem-Aranha e Homem de Ferro, as crianças transferem essas imagens televisivas para o seu ambiente brincante, vindo
acompanhadas de diálogos e comportamentos específicos dos desenhos
animados, como a tentativa de salvar pessoas pelo poder de soltar teia (pronto para saltar em qualquer local, pendurado somente por teias), como faz o
Homem-Aranha, ou levantando o braço, indicando que irá voar como faz o Homem de Ferro. [...] formam-se um conjunto de narrativas socioculturais,
presentes na troca de repertórios brincantes, de desenhos animados e de
filmes, fortalecendo e inspirando suas brincadeiras por meio de suas ações lúdicas. No calor do clima de suas brincadeiras, as crianças chegam a misturar
os desenhos, realizando uma espécie de mutação (BARBOSA R. e GOMES,
2012, p. 154).
A quarta imagem “A escalada do Homem-Aranha” demonstra em low key os “sem-
limites” da fantasia e imaginação infantil. A cena se passa no em uma área externa da escola,
aparentemente, um corredor. Em high key a criança está “escalando” uma grade como se
estivesse imitanto o Homem-Aranha”, ela veste calça jeans, tênis e uma camisa com estampa
de teia de aranha na parte das costas. Segundo Momo (2007) as crianças interagem com a
cultura midiática e nessa ação, produzem “verdades”, para si, e sobre os modos de ser sujeito,
escolhem roupas, tomam atitudes e incorporam movimentos e linguagens dos personagens que
assumem, “Parece que as crianças estão completamente imbricadas nos sistemas de
145 QRcode 55: Cabral e Dias (2013).
146 QRcode 56: Barbosa R. e Gomes (2012).
293
significação e representação cultural quando se trata de alternativas de ‘escolha’ de
identidades’” (MOMO, 2007, p. 256, grifo da autora).
Sobre isso, Barbosa R. (2013, p. 31) em outro artigo sobre as influências que a TV
exerce sobre a imaginação infantil147, a partir da relação do adulto, da brincadeira e do desenho
animado, ressalta que através dessas brincadeiras, a criança satisfaz seus desejos brincando,
vivencia aventuras, evidencia a ludicidade de seu imaginário, experimentam sensações que vão
desde alegria ao medo, interagem e resolvem seus conflitos, ou seja,
Olham pelo “espelho do imaginário” e experimentam essa transformação: ser,
ver, sentir, construir e reconstruir o que desejam, além de se colocarem na situação do outro, neste caso, dos personagens, e tentam encontrar soluções
para as situações problema que podem aparecer. Essas interligações são
vivenciadas pela criança graças ao poder do imaginário, com o suporte de seu brinquedo televisivo (BARBOSA, R., 2013, p. 31).
Entretanto, é pertinente afirmar que a mídia não é a única responsável pelos problemas
que a infância tem enfrentado na atualidade, visto que a formação da criança é constituída a
partir de valores e habitus148 que organizam e são organizados por várias instituições e
instâncias que permeiam o meio social, adquiridos pela interiorização das estruturas sociais que
se constituem no nosso corpo e em nossa mente (BOURDIEU, 2012). O ser humano enquanto
ser cultural em constante relação com as práticas de produção, inclusive, industriais, precisa do
consumo como forma de satisfação de suas necessidades básicas. Porém, as sociedades que se
respaldam em economias globalizadas/industrializadas apreendem os conteúdos simbólicos da
cultura não apenas por intermédio do consumo, mas, sobretudo, por meio do consumismo como
forma de garantir a manutenção do sistema, conforme alertou Bauman (2008):
Para atender a essas novas necessidades, impulsos, compulsões e vicíos, assim
como oferecer novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana, a economia consumista tem de se basear no excesso e no
desperdício (BAUMAN, 2008, p. 53).
147 QRcode 57: Barbosa R. (2013).
148 O conceito de habitus define-se como um sistema socialmente constituído, onde a subjetividade é
reforçada pela objetividade da realidade social. Tal conceito nos auxilia a pensar a relação entre as
regulamentações sociais e a construção das subjetividades nas crianças como um sistema de orientação
consciente e/ou inconsciente que as fazem escolher consumir determinados produtos e serviços e não outros (BOURDIEU, 2012).
294
Nesta perspectiva, as propagandas publicitárias exibem imagens que buscam transmitir
aos telespectadores mirins o fascínio e a fantasia dos produtos, não considerando a
especificidade de cada contexto cultural, na verdade, a intenção é atingir o máximo possível de
consumidores. Daí a importância de acompanhar de forma crítica e reflexiva as mensagens
transmitidas através das publicidades infantis fazendo com que as escolhas e o consumo sejam
feitos da melhor maneira possível. De acordo com Momo (2007, p. 297):
As crianças dos artefatos midiáticos preocupam-se com o estilo das roupas
que vão vestir, usam com desenvoltura a Internet, escolhem o que vão consumir e convencem as outras crianças de que aquele produto foi feito
especialmente para elas.
No entanto, as imagens que se apresentam nas propagandas são constituídas de
mensagens e estas mensagens podem ou não gerar uma torrente de emoções no telespectador,
cada indivíduo reagirá conforme suas próprias representações acerca da cultura e seu contexto.
Para Momo (2007, p. 249) “a televisão compreende imagens em movimento, ritmo acelerado e
ausência de silêncio” no sentido em que há uma simultaneidade de informações e ações que
marcam as relações das crianças com a mídia.
O “estado televisivo” que as crianças vivem inclui, além da ausência de silêncio e da ininterrupta movimentação, falar constantemente de programas
televisivos, cantar e dançar os últimos lançamentos de músicas, operar com
brinquedos amplamente divulgados pela mídia e se “transformar” em personagens da mídia televisiva e cinematográfica (MOMO, 2007, p. 250,
grifos da autora).
É certo que as publicidades voltadas ao público infantil podem estar repletas de
informações e visualidades que estimulam o consumismo e aumentam a discriminação e a
segregação social, mas, é preciso perceber que tipo de informação está sendo recebida pelas
crianças por meio destas publicidades.
Ferrés (1998, p. 40-43) afirma que os seres humanos são influenciados
(intencionalmente ou não) por motivações prévias, condicionadas por temores, desejos, fatores
cognitivos ou emocionais. A comunicação exerce poder fundamental neste processo. Para este
autor, dois fatores conflitantes e ao mesmo tempo harmoniosos influenciam as decisões
humanas: os fatores racionais e os fatores emocionais, estes constituem as grandes vias de
295
comunicação persuasiva149 (FERRÉS, 1998).
A via racional é regida pelo pensamento lógico, atua por argumentação. Pretende
convencer, oferecer razões ou argumentos que levem o persuadido a assumir o ponto de vista
do que persuade. É forçosamente consciente, de forma que sua argumentação seja
compreendida. Exige atitude de reflexão, de análise, de compreensão, uma atitude consciente.
Ocorre quando se ativa no receptor de maneira prioritária ou quase exclusiva, atitudes racionais.
A via emotiva é regida pelo pensamento associativo, não age por argumentação, mas
por transferência, proximidade, semelhança, simultaneidade, associação emotiva ou simbólica.
Pretende seduzir, atrair o receptor pelo fascínio. É uma atitude inconsciente, com frequência
irracional, ilógica, alógica. Ocorre quando se ativa no receptor, de maneira prioritária, quase
exclusiva, atitudes emotivas. Sobre isso Ferrés (1998) afirma:
Os meios de massas audiovisuais são uma gigantesca indústria de sonhos e
mitos, uma poderosa indústria de criação de associações emotivas. Impõem imagens mentais que, a partir dos desejos e emoções que geram ou refletem,
orientarão a futura conduta dos sonhadores (FERRÉS, 1998, p. 43).
Para Ferrés (1998, p. 44) a emoção produz excitação/ativação, alteração da respiração,
modificação da pressão sanguínea, alteração nos batimentos cardíacos, modificação na
condutividade elétrica da pele, alteração da tensão muscular. Sem consciência deste peso
emocional, é impossível compreender o comportamento humano, em se tratando da televisão,
menos ainda o do telespectador, ou seja, tende-se a pensar que os telespectadores são
influenciados fundamentalmente pela razão, quando na realidade são influenciados
primordialmente pelas emoções. Portanto, de acordo com Ferrés (1998) a televisão pode ter
caráter libertador à medida que a postura crítica se sobressai à emoção:
Mas a televisão será instrumento de alienação somente quando as emoções e
sensações impedirem à pessoa encontrar-se a si mesma na reflexão e na consciência crítica. Mas a televisão pode ser um instrumento libertador. Será
isso quando for uma experiência integradora, quando unir os opostos, quando
resolver a dualidade radical que é pessoa. Quando permitir que a racionalidade e a emotividade interajam de maneira lúcida. Será uma
experiência libertadora quando unir matéria e espírito, consciente e inconsciente, conceito e sentimento. Quando a vivência emocional não
impeça o exercício da racionalidade, nem vice-versa. Quando o acesso ao
mais profundo do inconsciente não impeça o despertar da consciência, nem vice-versa. Será isso quando as mensagens [...] forem vividas de maneira
lúcida, consciente e integradora (FERRÉS, 1998, p. 275).
149 Comunicação persuasiva transmite informações motivadoras capazes de mobilizar as condutas e as
crenças numa determinada direção.
296
Portanto, para Ferrés (1998, p. 275) as imagens televisivas possuem a capacidade de
ativar as emoções e apontar a orientação que é preciso dar à energia, dependendo da
receptividade por parte do receptor, a imagens poderão orientar a conduta ou marcar uma
direção para a ação através da comunicação persuasiva transmite informações motivadoras
capazes de mobilizar as condutas e as crenças numa determinada direção. Todavia, Ferrés
(1998, p. 246) alerta que as mensagens televisivas sedutoras só terão eficácia mediante a
participação emotiva do receptor. Os efeitos da televisão dependem tanto do que a televisão
oferece ao telespectador como do que o telespectador oferece à televisão. Ou seja, se o modelo
não atrair o telespectador a comunicação não será persuasiva, caso contrário, o modelo atingirá
seu objetivo. Daí a importância de mediar a relação das crianças com as mídias no sentido de
estimular o senso crítico e a postura reflexiva em relação aos conteúdos que assiste, tal
responsabilidade está diretamente associada ao contexto escolar.
En la misma línea, habrá que considerar insuficiente una educación mediática que no atienda a la dimensión emocional de las personas que
interaccionan con las pantallas, porque hoy sabemos que la razón – y, en
consecuencia, el espíritu crítico– es totalmente vulnerable ante las acometidas de unas emociones que sean de signo contrario. La competência
mediática exige, pues, el desarrollo de una capacidad crítica respecto al propio espíritu crítico, porque, como consecuencia del predominio del
cerebro emocional sobre el racional, resulta más ajustado a la realidad
referirse al ser humano como un animal racionalizador que como un animal racional (FERRÉS e PISCITELLI, 2012, p. 78-79).
Neste, sentido, a escola deve reconhecer o poder emocional que as mídias geram no
indivíduo e pensar em estratégias de resistência, interagir com as culturas visuais e midiáticas
digitais sem cobrança educativa, mas a partir de sua adequação à proposta pedagógica em
questão, integrando-as aos processos educativos em consonância com as abordagens
curriculares educacionais, isto é, interagir com as mídias de forma problematizadora,
desafiadora, agregadora de valores e produtora de culturas e indivíduos pensantes que
constroem conhecimento de forma autônoma, crítica e colaborativa. Para tanto, as concepções
críticas de educação na relação das crianças com as culturas visuais no contexto da Educação
Infantil constituem elementos prioritários para reflexão acerca do que se espera do sistema
educacional contemporâneo.
Ao mesmo tempo, faz-se necessário a consolidação teórico-científica de estudos e
pesquisas que contemplem a infância como uma categoria social que possui suas próprias
características e representações, configuradas e reconfiguradas em culturas complexas,
297
múltiplas e em constante transformação. Isto representa um avanço e uma nova maneira de
conceber novas formas de aprendizagens na infância considerando as características peculiares
da sociedade deste novo século.
Dando continuidade às representações imagéticas de crianças e infâncias na
contemporaneidade, selecionei algumas imagens de propagandas publicitárias para tentar,
minimamente, demonstrar o poder de persuasão e uso abusivo da publicidade direcionada à
infância. O comercial dos “bichinhos da Parmalat” 150, personagens da campanha publicitária
“Mamíferos”, criada pela agência DM9 em 1995 foi muito veiculado na indústria cultural
durante mais de uma década, ganhando novas versões a cada período. A intenção da agência de
publicidade era de incentivar o consumo de leite da marca Parmalat, ressaltando os benefícios
desse consumo para o crescimento e desenvolvimento saudável das crianças, para isso,
utilizaram uma forte estimulação visual através da vinculação de imagens de crianças e animais
mamíferos.
As crianças vestiam roupas de pelúcia que eram fantasias de filhotes de animais
mamíferos, algumas crianças seguravam a caixa de leite, outras tomavam leite e outras faziam
alguns gestos e movimentos engraçados. Essa publicidade teve uma grande repercussão cultural
e conquistou não só crianças como adultos. Lembro-me que aos 19 anos, eu e as mesmas
colegas de infância, em um passeio ao shopping tivemos a oportunidade de vestir as roupinhas
dos “bichinhos Parmalat” e fazer o registro fotográfico do mesmo, que ainda hoje é motivo de
muitas risadas entre as mesmas amigas da época, cerca de quase 20 anos depois.
Portanto, a visualidade mais significativa do comercial não era a composição e os
benefícios do leite, mas sim, o estímulo visual que a propaganda impulsionava em relação aos
“mamíferos da Parmalat”, que logo a indústria cultural lançou para comercialização, criando
bichinhos de pelúcia referentes aos apresentados na propaganda, tornando-os economicamente
tão promissores quanto o leite. De acordo com o blog Mundo das Marcas151, que historiciza
150 QRcode 58: Propaganda Comercial: “Porque nós somos mamíferos!” em duas versões, a original com
crianças pequenas (1995) e a última versão com as mesmas crianças crescidas, após 12 anos de campanha.
151 QRcode 59: Blog Mundo das Marcas.
298
1.754 marcas, a promoção “Mamíferos da Parmalat” em sua primeira fase movimentou 1.2
milhões de unidades de 12 tipos de filhotes, que se esgotaram em 2 meses de promoção. O
sucesso da campanha foi tão grande que permaneceu por 3 anos, chegando a marca de 15
milhões de mamíferos de pelúcia em 21 tipos de animais diferentes.
O impacto da imagem marcou nossa geração, mas não só pelo consumo do leite, e sim,
pelos animais de pelúcia que representavam a marca que eram vendidos ou trocados por
embalagens durante campanhas promocionais, além disso, as propagandas de TV eram feitas
com crianças vestidas de bichinhos, embaladas com lindos musicais e no final da apresentação
sempre havia uma criança que perguntava: “tomou?”. O poder imagético da propaganda
comercial é indescritível, são inúmeras memórias que surgem quando remeto aos comerciais
de TV, como Chocolate Batom-garoto; Neston; Todynho; Margarina Delícia; Coca-cola; entre
muitos outros.
Para Giroux (1995, p. 49), a cultura infantil na atualidade se caracteriza como “[...] uma
esfera onde o entretenimento, a defesa de ideias políticas e o prazer se encontram para construir
concepções do que significa ser criança”. O entretenimento constituído por produções culturais,
promovido por políticas que envolvem aspectos econômicos direcionam o modo de ser da
infância contemporânea, Adorno (2009) ressalta a efemeridade dos conteúdos dispostos na
indústria cultural não deixam escolha aos consumidores:
Não obstante, a indústria cultural permanece a indústria do divertimento. O
seu poder sobre os consumidores é mediado pela diversão que, afinal, é
eliminada não por um mero diktat, mas sim pela hostilidade, inerente ao próprio princípio do divertimento, diante de tudo que poderia ser mais do que
divertimento (ADORNO, 2009, p. 18).
As representações acerca das propagandas publicitárias midiáticas apresentam
contextos diversos, mas no geral, demonstram o lado fantástico e benéfico dos produtos,
gerando a ilusão da felicidade e do bem-estar, consequentemente o desejo de possuir.
Nesse cenário da mediação cultural proporcionado pela mídia a imagem
aparece como ímpeto de sua singularidade, submetendo a população local e global a um regime de verdade enquadrado na visão e na particularidade da
coisa vista. Nessa ordem epistêmica cultural, ela não somente confere
visibilidade aos produtos e as concepções de mundo dominantes, a fim de que devam ser consumidos, assumidos e experimentados no solo do cotidiano,
mas também atribui visualidade ao que se que circular, sugerindo e
imprimindo um modo de reticular e espetacular de conhecer as coisas, o mundo, as pessoas, os lugares, os acontecimentos, enfim, a vida. A mídia
assume, portanto, o ver como saber, instalando e consolidando uma espécie de epistemologia: a da visualidade (CARLOS e FAHEINA, 2010, p.30).
299
A publicidade infantil “A vida em sua mão” 152 da marca Claro, empresa no ramo de
telefonia celular, mostra-se abusiva, tendo em vista a estimulação precoce à erotização e a forte
tendência à reprodução de comportamentos machistas. A narrativa do comercial apresenta um
casal de namorados, onde a menina aparentemente de 7 anos reclama porque o menino,
aparentemente da mesma idade, passou o dia todo sem ligar para ela, e ele sutilmente, mostra
o dedo “machucado” como desculpa da falta de atenção, o menino consegue convencer a
menina através de uma mentira como estratégia emocional, dada a sensibilidade geralmente
atribuída ao sexo feminino, como frágil e passível de manipulação.
[...] a televisão destrói a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras, todas relacionadas à sua acessibilidade indiferenciada: primeiro,
porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não
faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento, e terceiro porque não segrega seu público [...]. O novo ambiente midiático que está
surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. Dadas as condições que acabo de descrever, a mídia eletrônica acha impossível reter
quaisquer segredos. Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa
como infância (POSTMAN, 1999, p. 94).
Segundo Postman (1999, p. 94) estamos “biologicamente equipados” para ver e
interpretar imagens e linguagens. A publicidade televisiva costuma utilizar a imagem da criança
para comover o público, é uma estratégia muito usada para persuadir o consumo, Becker (2010,
p. 97) ressalta que “o uso de crianças muito pequenas, exibindo um discurso pernóstico e
imitando posturas adultas costuma encantar o público”.
O comercial em questão transmite a ideia de que as mulheres são ingênuas e facilmente
manipuladas e os homens espertos por serem desonestos e conseguirem driblar situações do
cotidiano através de mentiras e apelos afetivos. Esse tipo de mensagem que permeia o senso
comum pode ser entendido a partir do conceito de violência simbólica de Pierre Bourdieu
(2012, p. 45) em que os comportamentos opostos engendrados para o masculino e o feminino
se tornam elementos fundantes das desigualdades de gênero. Se esse tipo de comportamento é
152 QRcode 60: propaganda comercial da Claro “A vida em sua mão”, veiculada em 2012 no canal de
Mariano Bolado no YouTube (2012).
300
estimulado e reproduzido na infância, provavelmente, se estenderá à vida adulta.
Anúncios como este têm sido muito criticados por órgãos de defesa e proteção dos
direitos da criança e do adolescente, como o Instituto Alana, uma organização sem fins
lucrativos que procura fomentar e favorecer assistência social, educação, cultura, proteção e
amparo da população, especialmente a infância153.
O Instituto Alana atua na criação de políticas públicas pró-infância que visa “[...]
ampliar a conscientização da população sobre o consumismo na infância e defende a regulação
da comunicação mercadológica voltada às crianças, para garantir a proteção de seus direitos
nas relações de consumo.”. O Instituto Alana defende que a erotização precoce compromete a
formação da criança:
Ao ingressar prematuramente no mundo adulto, com o corpo e a mente ainda
em formação, a criança, ou mesmo o pré-adolescente, não tem estrutura física
e psicológica formada para defender seus direitos, controlar seus impulsos, reivindicar respeito e, muito menos, identificar em si um desejo genuíno de
relacionar-se sexualmente. Portanto, ao induzir as crianças a desejarem o que
nem sabem se desejariam e a adotarem valores distorcidos e artificiais, a publicidade atropela a infância [...] (ALANA, 2009, p. 29).
A propaganda da sandália do Homem Aranha “Nessa aventura o herói é você” 154,
produzida pela marca de calçados Grendene, a criança sobe escadas, anda em becos escuros,
enfrenta perigos como se fosse um super-herói. Esses tipos de estímulos põem em risco a
integridade física da criança por se tratar de situações suscetíveis de reprodução que poderão
causar acidentes.
De acordo com Momo (2010) a cultura televisiva reflete a efemeridade dos tempos
atuais, caracterizados pela velocidade e pelo contínuo estado de ansiedade e movimento:
[...] a linguagem televisiva, os significados, ícones infantis e artefatos que ela
153 QRcode 61: Instituto Alana (on-line).
154 QRcode 62: Propaganda Comercial da Grendene: “Nessa aventura o herói é você” (2010), veiculada em
2012 no canal WMcCann BR no YouTube. (2012).
301
põe em circulação mudam o tempo todo, pois se caracterizam pela
efemeridade, o que faz que as crianças também mudem constantemente o jeito de falar, os personagens que imitam, os assuntos e os desejos que expressam,
os interesses que têm, os artefatos que portam, as pessoas às quais se vinculam
e o próprio corpo (MOMO, 2010, p. 975).
Dentre as lutas em defesa da criança, a mais recente resolução aprovada foi a do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda155, uma instância
federal responsável pela formulação, deliberação e controle das políticas públicas para infância
e adolescência, criada pela Lei nº 8.242 de 12 de outubro de 1991, tendo como uma de suas
principais funções: “apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e
do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou
violação dos mesmos” (BRASIL, CONANDA/Lei nº 8.242, Art. 2/VIII, 2014).
O Conanda aprovou em 4 de março de 2014 a resolução nº 163/2014 que dispõe sobre
a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e
ao adolescente, importante destacar que esta resolução considera abusiva a prática do
direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com o intuito de
influenciá-la ao consumo utilizando-se dos seguintes artifícios:
I-linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; II-trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
III-representação de criança;
IV-pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; V-personagens ou apresentadores infantis;
VI-desenho animado ou de animação;
VII-bonecos ou similares; VIII-promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou
com apelos ao público infantil; e IX-promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil
(BRASIL, CONANDA/Art. 2º, 2014).
O Art. 2. § 1º destaca que esta resolução se aplica a quaisquer meios de comunicação,
ou seja, anúncios impressos, comerciais televisivos, páginas na Internet, embalagens,
promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição dos produtos
155 QRcode 63: Conanda (on-line).
302
nos pontos de vendas, que tenha por objetivo chamar a atenção da criança. A institucionalização
desta resolução segue e direciona à publicidade e à comunicação mercadológica os seguintes
princípios:
I - respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social,
às instituições e símbolos nacionais; IV - não favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação
de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, racial, social, política,
religiosa ou de nacionalidade; VI - não induzir, favorecer, enaltecer ou estimular de qualquer forma
atividades ilegais.
VII - não induzir, de forma alguma, a qualquer espécie de violência; VIII - a qualquer forma de degradação do meio ambiente; e
IX - primar por uma apresentação verdadeira do produto ou serviço oferecido, esclarecendo sobre suas características e funcionamento, considerando
especialmente as características peculiares do público-alvo a que se destina
(BRASIL, CONANDA/Art. 3º, 2014).
A aprovação desta resolução é alvo de discordâncias, principalmente, em relação aos
produtores/fabricantes, empresas publicitárias e órgãos comerciais brasileiros, tendo em vista
que o CONANDA não possui legitimidade constitucional para legislar e impor a resolução às
famílias o ao mercado publicitário. Por se tratar de uma resolução recente, o debate ainda se
apresenta com poucos resultados, o que torna a questão ainda mais difícil de aplicação jurídica,
tanto em relação às proibições quanto às punições.
Em relação à cultura midiática no âmbito da escola, pesquisa aponta que as imagens
reproduzem os mesmos personagens que estão presentes na mídia televisiva, tanto nos desenhos
animados quanto nas propagandas publicitárias “[...] o que vai para a escola é a “onda”, a moda
do momento, em um mundo que o que conta é o presente. São os artefatos que voga na mídia
do momento presente que aparecem nas escolas” (MOMO, 2012, p. 35).
Nessa perspectiva, a criança ao assistir as propagandas publicitárias pode ou não sentir-
se atraídas pelas imagens e mensagens transmitidas por essas imagens, dependendo de cada
representação que o objeto/imagem transmite naquele determinado contexto e naquela
determinada relação estabelecida pela própria criança com o objeto/imagem que está sendo
transmitido. Isto significa afirmar que a criança decide suas preferências e toma suas decisões,
porém, no campo da aquisição do produto em questão, entra a mediação da família, que neste
caso, dependendo de suas condições econômicas e culturais, decidirá ou não pela compra do
produto, é um direito do consumidor adulto (CABRAL e VASCONCELOS, 2015, p.313).
A indústria cultural e midiática abrange os vários públicos sociais e através de suas
mensagens publicitárias exerce forte influência no cotidiano e no consumo da sociedade, de
303
acordo com Adorno (2009), a indústria cultural faz uso de estratégias bem elaboradas que
procuram manipular o público através da técnica e do manejo psicológico da imagem.
Técnica e economicamente, propaganda e Indústria cultural mostram‐se
fundidas. Numa e noutra a mesma coisa aparece em lugares inumeráveis, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo
slogan da propaganda. Numa e noutra, sob o imperativo da eficiência, a
técnica se toma psicotécnica, técnica do manejo dos homens. Numa e noutra valem as formas do surpreendente e, todavia, familiar, do leve e contudo
incisivo, do especializado e entretanto simples; trata‐se sempre de subjuga!' o
cliente, representado como distraído ou relutante (ADORNO, 2009, p. 41).
Neste contexto, a infância tornou-se um dos principais focos de marketing e propaganda
de produtos e serviços variados. Porém, as crianças precisam estar protegidas do poder abusivo
das propagandas:
[...] a forte presença da propaganda comercial, no cotidiano da população,
submete o indivíduo aos ditames da linguagem persuasiva da publicidade
comercial, que articula recursos visuais, verbais, sonoros e técnicos a uma rede de significações associadas, sobretudo, ao mito da felicidade e da igualdade,
a qual se utiliza dos recursos mais sofisticados da tecnologia das técnicas de
produção, que seleciona o modo mais eficiente de combinar o roteiro, a gravação e a edição aos desejos do telespectador, tendo em vista o propósito
de gerar a necessidade de consumo de produtos, serviços, ideias, comportamentos e valores (CARLOS, 2010, p. 18-19).
Os órgãos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes devem se mostrar
presentes, acompanhando todos os anúncios voltados a este público. Urge a necessidade da
fiscalização, mas não com a proibição da veiculação, as propagandas também podem beneficiar
e favorecer informações importantes para as crianças, estimular seu desenvolvimento cognitivo,
linguístico e crítico-reflexivo.
Persuadindo e seduzindo, o telespectador assume a posição de comprador e
consumidor convicto e feliz. Nesse contexto, a atitude de comprar e de consumir não é fortuita, casual, mas intencional e deliberada. A tomada de
consciência e a difusão dos processos e dos mecanismos da linguagem
comercial da publicidade, por meio da escola, desenvolveriam uma postura crítica frente à ‘avalancha de informações imagéticas’ (CARLOS, 2010, p. 19,
grifo do autor).
A comunicação mercadológica é extremamente difundida através de vários suportes,
sobretudo, quando pensamos na autonomia e capacidade de produção midiática pelo próprio
sujeito que utiliza através da Internet. Os sujeitos tornam-se “atores”, “protagonistas”
304
produtores de inúmeras e incontroláveis informações que circulam na mídia através de redes
sociais e outros. Nesse sentido, é preciso uma compreensão mais política, conceptual e
culturalmente atualizada às demandas e peculiaridades de infâncias que se constroem no seio
de uma sociedade midiática e hiperconectada, pois,
[...] estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e
de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos
gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o
capitalismo de hiperconsumo (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 13).
É preciso refletir sobre a relação da publicidade direcionada ao público infantil para não
ruirmos no erro das generalizações e rótulos. Portanto, muito ainda se têm a discutir a respeito
dessa recente Resolução que, atualmente, é comemorada por uns e questionada por outros. No
entanto, algo é inquestionável, estou a problematizar apenas a ponta do iceberg, visto que, as
incertezas quanto ao futuro da indústria publicitária denotam caminhos ainda pouco
conhecidos, os quais, sem dúvida, darão condições de suscitar profícuas discussões. Caminho
assim, num brainstorming de imagens visuais reais e virtuais que me envolve e direciona a
entender as concepções de crianças e infâncias veiculadas na Cultura Visual na
contemporaneidade.
4.2 NegAtivos em evidência: adultização e erotização da infância
As atuais práticas de consumo infantil, guiadas por questões
sociais – expressas na mídia - que atribuem a criança um papel
cada vez mais parecido com o dos adultos, refletem esta nova
tipificação da criança: mais adulta, cheia de compromissos,
responsabilidades, com acesso ilimitado a conteúdos e
informações e muitas vezes erotizada (WEBER, B. e
FRANCISCO-MAFFEZZOLLI, 2016, p. 12).
É claro que as crianças podem resistir, ou recusar-se a
reconhecerem-se as definições adultas – e nesse sentido o
poder adulto está longe de ser absoluto ou incontestável. No
entanto, seu espaço de resistência é principalmente o das
relações interpessoais, na ‘micropolítica’ da família ou da sala
305
de aula. Além disso, as crianças podem ser cúmplices ativas na
manutenção das definições do que é ‘adulto’ ou ‘infantil’, ainda
que por omissão: as diferenças de idade, e os significados a elas
ligados, são um dos principais campos onde as relações de
poder são encenadas, não apenas entre adultos e crianças, mas
também entre as próprias crianças (BUCKINGHAM, 2006, p.
14).
As epígrafes dão o tom para a discussão que segue. Refiro-me aqui aos riscos imanentes
à infância na contemporaneidade que emergem das reconfigurações sociais, culturais e
tecnológicas da 2ª modernidade (LASH, 1997; BECK, 1999; SARMENTO, 2004) ou mundo
hipermoderno (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 32) em tempos pós-coloniais (BHABHA,
2013) e decorrentes de processos macroestruturais como a globalização (SANTOS, 2002), o
hipercapitalismo (LIPOVETSKY, 2004) e a cibercultura (LEVY, 1999). Essa complexa e
emaranhada teia de significados (GEERTZ, 1989), traça uma nova cartografia para a infância
repercutindo diretamente na constituição de suas culturas. O incomensurável ritmo com que as
coisas acontecem na atualidade impacta diretamente nas relações humanas de um modo geral,
e quando se trata da realidade da criança, as mudanças tornam-se ainda mais perceptíveis, me
atreveria a sugerir que, as crianças têm muito mais capacidade para lidar com o “novo” do que
nós, os adultos.
No entanto, o “novo” que chega para os adultos através dos variados artefatos culturais
dessa reconfiguração social, é o mesmo “novo” que chega para as crianças nos sem-limites da
imagem, a diferença está justamente na forma com que essa receptividade acontece. Daí a
importância de tencionar o impacto das novas mídias no contexto de uma análise crítica da
cultura visual na tentativa de criar formas de resistência e enfrentamento aos problemas que,
evidentemente, surgem com esse “novo” que chega. Desse modo, o “novo” se materializa no
trabalho fronteiriço da cultura, nos espaços contingenciais dos “entre-lugares” da mídia no
contexto da infância, consequentemente, esses ‘‘entre-lugares” tornam-se espaços de
“elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos
de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia
de sociedade” (BHABHA, 2013, p. 20).
De acordo com Felipe e Guizzo (2003, p. 120) as significativas transformações das
últimas décadas e o acesso infantil a informações pertencente ao universo adulto, especialmente
dispostas nas novas tecnologias de comunicação de massa e Internet, “têm afetado
drasticamente as vivências infantis”. Nesta óptica, penso o “novo” a partir das multiplicidades
306
visuais que circulam nas cibercultura, sobretudo, as imagens que alimentam as novas redes
sociais. E são elas, as imagens, que serão o palco para discussão acerca da protagonista dessa
história (que se pretende narrativa) que é a criança. Desse modo, discuto as realidades
magicizadas nas imagens técnicas fixas e em movimento que remetem às concepções de
crianças e infâncias que se constituem e são constituídas pela a ação da criança em constante
relação com o universo das visualidades que circulam nos “entre” das culturas infantis e adultas.
Esta conexão entre imagem-cultura-infância-sociedade é fundamental para compreender os
dilemas e as contradições que permeiam as discussões sobre fronteiras culturais entre o mundo
adulto e o mundo da criança que precisam ser refletidos (ainda mais) nos espaços sociais,
políticos e científicos, pois, implicam diretamente nas estruturas e agenciamentos da infância
na contemporaneidade.
As linguagens visuais onipresentes magicizam a vida, sobretudo, nas redes midiáticas
digitais em suas infinitas possibilidades de simular a realidade, desse modo, a imagem têm sido
presença e influência constante para a construção das culturas infantis. As crianças além de
consumirem imagens, são potencialmente produtoras delas, consequentemente, ora as imagens
magicizam as culturas infantis e ora as culturas infantis são magicizadas em imagens.
Por outro lado, a medida que a vida da criança passou a ser publicitada na mídia, a
fotografia de criança tornou-se um fenômeno sugestivo, o mercado publicitário logo se
apropriou da infância como objeto de desejo e de convencimento do público consumidor, assim,
a indústria cultural passou a investir em imagens que adultizam crianças e infantilizam adultos
(POSTMAN, 1999), nesse paradoxo, as fronteiras culturais vão sendo interpenetradas
constantemente, tornando-se um grande desafio tentar perceber o que é próprio de cada geração.
Em meio a este paradoxo, surgem dois problemas que considero indispensáveis para pensar a
imagem das crianças e infâncias na contemporaneidade: a adultização e a erotização infantil.
Como visto anteriormente, a questão da adultização infantil não é um debate recente,
desde a concepção de “homúnculo” (ARIÈS, 1981), à ideia de desaparecimento (POSTMAN,
1999) e de “eliminação” da infância (BAUDRILLARD, 1997) este tem sido um tema bastante
recorrente na academia. O estudo recente de Weber, B. e Francisco-Maffezzolli (2016, p. 12)
admite o processo de adultização infantil na relação de apropriação de “comportamentos,
atitudes, hábitos, formas de lazer, cuidados, responsabilidades e ações típicas de uma vida de
adulto [...] fora de um contexto de brincadeira”, para as autoras, estas situações podem ser
entendidas como o incentivo à inserção extrema da criança à questões não relacionadas à
infância, ou seja,
307
Crianças com muitos compromissos e responsabilidades, assim como crianças
preocupadas com cuidados com o corpo e aparência são um reflexo destes estímulos. Não caracteriza a adultização brincar de ser adulto, mas, sim,
quando a brincadeira passa a ser uma preocupação ou necessidade (WEBER,
B. e FRANCISCO-MAFFEZZOLLI, 2016, p. 12).
Ao longo deste texto, abordo tais apropriações a partir de imagens de crianças em
diferentes perspectivas, portanto, retomando a concepção de crianças e infâncias na Cultura
Visual, discuto na sequência, as imagens de Mc Melody (apresentada no prólogo desse ensaio)
que foram noticiadas através de informações pessoais e “profissionais” na mídia. No conjunto
de cenas, é possível perceber que a criança exibe seu corpo de forma sensual e pejorativa, exibe
dinheiro como troféu e apresenta expressões faciais que tentam esnobar quem a vê. Como já
destaquei, trata-se de uma criança, cantora de 10 anos, que atualmente, exerce forte influência
nas redes sociais. Nitidamente, suas imagens demonstram um comportamento de adulto, com
forte tendência abusiva. Desse modo, discorro sobre 6 imagens retiradas de sites jornalísticos e
de entretenimento, e também publicadas por “ela”, em sua página oficial do Facebook.
A primeira fotografia foi retirada da matéria “Sexualização de funkeiros mirins é
investigada pelo Ministério Público” postada em 24 de abril de 2015 no Diário do Nordeste
(on-line) 156. A imagem em high key apresenta Mc Melody posando com as mãos cheias de
dinheiro. A cena se passa em um cenário preparado para a realização do show de Mc Belinho
(pai), ao fundo da cena, dá para visualizar um painel com alguns patrocinadores do evento.
Enquadrada ao centro da fotografia, a criança usa roupas sensuais, faz pose ousada e segura
maços de dinheiro em cada uma de suas mãos, ela suspende a mão esquerda na direção do rosto,
chegando quase a encostar o dinheiro em sua pele, ao mesmo tempo, a cantora faz um “bico”
com a boca para insinuar certo ar de deboche, o que passou a ser uma de suas marcas registradas.
Esse gesto faz referência a outra funkeira adulta, a Valeska Popozuda, que lançou a música
“beijinho no ombro” e se tornou uma “febre” nas fotografias de “selfie”. Melody usa um batom
pink e tem as sobrancelhas delineadas. Exibe um enorme colar de ouro com um pingente em
forma de diamante.
156 QRcode 64: Diário do Nordeste. Mc Melody.
308
A segunda imagem foi retirada do Facebook oficial da cantora157, que é supervisionado
pelo pai. Em high key a fotografia retrata Mc Melody segurando uma mala cheia de dinheiro.
Provavelmente, registrada no mesmo evento da imagem anterior. Dessa vez, ela se veste com
uma blusa composta, continua com o colar de ouro e usa o mesmo batom cor-de-rosa para fazer
seu famoso “biquinho”. A postagem tem a seguinte descrição: “Essa foto eu dedico a todas as
recalcadas”158 fazendo alusão ao sentimento de superioridade em relação a quem não simpatiza
com ela, quem faz críticas sobre seu comportamento de “adulta” em comentários junto às suas
postagens. Em low key, são cenas fortes em que a ganância pelo poder e pelo dinheiro supera a
condição de criança e viola sua dignidade humana para adquirir formas adultizadas de
comportamento que traduzem as contradições de um sistema capitalista burguês e
inescrupuloso, onde o que importa é o “ter” e o “poder”.
Diante de tais imagens é possível afirmar que a infância de Melody se constrói sob sérios
apelos capitalistas e eróticos, que tendencionam uma sociedade produtora de cultura narcisistas
(LASCH, 1997), consumistas (MOMO, 2010) e performáticas (GOFFMAN, 1985),
relacionado à um padrão de beleza exaltado pela mídia e desejado pela maioria das pessoas que
se exibem em redes sociais com a intenção de denotar expressões de felicidade, superioridade
e completude, pessoas que buscam através de suas iconografias informar ao mundo virtual um
estado permanente de beleza, de desejos voláteis consumistas e de superioridade, gerando
assim, o que chamo de cultura do exibicionismo, entendida aqui como a supervalorização do
“eu” (self) em detrimento do outro. É um comportamento egocêntrico que tenta ao máximo
expor partes do próprio corpo em redes sociais, sobretudo, de forma erótica e sensual, através
de fotografias e vídeos; procura supervalorizar a aquisição de objetos com o intuito de
demonstrar poder, luxo e beleza; e além disso, procura demonstrar exaustivamente, o que faz,
onde e com quem está, o que come, o que veste, entre outras ações do seu próprio cotidiano. É
uma busca incansável pela publicização de sua autoimagem narcisista, são autorretratos que
anunciam uma identidade, no entanto,
A complexidade desses autorretratos envolve várias questões que passam
pelas relações entre identidade e corpo, público e privado, consumo e imagem,
157 QRcode 65: Página oficial de Mc Melody no Facebook.
158 Recalcada é um termo utilizado para ressaltar a inveja. No caso de Mc Melody, sua concepção de
recalcada refere-se àquelas que têm inveja dela, do que ela faz e do que ela tem.
309
culto e imagem, controle e estimulação, realidade e simulacro, máscara e
performance. Tais relações são permeadas por uma narrativa que tem como protagonista um Eu – construído, performático, objetificado. O selfie auxilia
na composição de uma identidade, portanto, seu discurso é atravessado por
narrativas que dão sentido e expressão às relações de consumo em nossa sociedade (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 38).
A terceira cena é composta por três fotografias em sequência em que Mc Melody exibe
seu corpo em gestos sensuais. A imagem demonstra a mesma tendência capitalista do “ter”
como “poder” com apelo à erotização infantil. Trata-se de uma sequência fotográfica retirada
da matéria “MC Melody, de 8 anos, causa polêmica e pai defende: ‘É só porque ela canta
funk’”159 publicada pelo site extra. globo. Em high key A cena registra Mc Melody em três
perspectivas, sob o mesmo enquadramento da objetiva. A funkeira veste um short curtinho cor-
de-rosa e um top parecido com biquíni de praia, também cor-de-rosa. Usa outro colar de ouro
com a mesma versão do pingente de diamante. A cena é realizada em um ambiente doméstico
(provavelmente em sua casa), pois ao fundo visualiza-se um guarda-roupa.
Na primeira posição, ela suspende os cabelos com seus braços de modo que todo seu
cumprimento desce até a linha da cintura em seu lado esquerdo e também faz uma leve
inclinação com o quadril para tornar a pose mais sensual. Na segunda posição, segura com a
mão esquerda os cabelos no alto, jogando-os dessa vez para o ombro direito. Tenta fazer uma
“piscadela” de olho para também indicar sensualidade. Na terceira posição, ela faz um
movimento específico do funk, inclina seu corpo para o lado esquerdo e apoia seu braço
esquerdo na perna esquerda. Com a mão direita faz um gesto indicando algum movimento. Usa
óculos de sol espelhado que é marca registrada do funk, assim como o colar de ouro. E com a
boca faz um “biquinho”.
Em low key essas cenas tipificam uma cultura que esbarra em muitas questões
relacionadas à infância contemporânea como o problema do consumo, da adultização e da
erotização infantil, entre outros. São imagens que demonstram um comportamento de adulto
que agride diretamente as noções de criança, seus limites e suas especificidades. Segundo Silva,
C. (2016, p. 29) são inúmeras as tentativas das crianças em “enquadrarem o seu corpo,
explorando o seu lado sexy em um perfil adulto, marcado pela quebra de fronteiras entre
159 QRcode 66: site extra.globo. Mc Melody.
310
meninas/meninos e mulheres/homens”, esse conjunto de práticas constituem e regulam as
identidades infantis erotizadas. Conforme ressalta Felipe e Guizzo (2003, p. 128), essas práticas
têm produzido efeitos na construção de identidades sexuais das crianças, principalmente, das
meninas:
Os corpos vêm sendo instigados a uma crescente erotização, amplamente
veiculada através da TV, do cinema, da música, em jornais, revistas, propagandas, outdoors, e, mais recentemente, com o uso da Internet, tem sido
possível vivenciar novas modalidades de exploração dos corpos e da sexualidade (FELIPE e GUIZZO, 2003, p.128).
O recente trabalho de Silva, C. (2016) intitulado “O Consumo cultural das músicas pop
com conteúdos eróticos: constituindo identidades infantis na contemporaneidade” 160 trata das
questões relacionadas à constituição de uma determinada identidade infantil – a identidade
infantil erotizada – a partir do consumo cultural das músicas pop com conteúdos eróticos e suas
manifestações em uma escola de educação infantil do Natal-RN. Para tanto, a autora analisa os
fragmentos das letras extraídas das músicas pop com conteúdos eróticos, evidenciando assim,
que a contemporaneidade marcada pelos efeitos das músicas pop com conteúdos eróticos,
produzem modos e práticas corporais que contribuem para a formação de um corpo sensual e
erotizado, com isso, estimulam a produção de modos “adultizados” de ser criança, contribuindo
em potencial, para a formação de identidades infantis erotizadas.
Um dos discursos recorrentes nessas músicas é a ênfase no apelativo que ditam
para pessoas: Sejam sensuais! Tal apelativo impulsiona uma precoce erotização das crianças, expressa através dos insinuantes movimentos
corporais utilizados para dançar as músicas pop com conteúdos eróticos. Ao
consumir essas músicas as crianças aprendem qual atitude se espera delas, isto é, espera-se uma atitude sensual/sexy e erótica, tornando-se menina-mulher e
menino-homem cada vez mais precocemente (SILVA, C., 2016, p. 91).
De acordo com Silva, C. (2016, p. 101) as identidades infantis erotizadas constituem e
são constituídas pelas formas com que os sujeitos infantis se “identificam com os discursos das
músicas pop com conteúdos eróticos, desenvolvendo posições de sujeito marcadas pela
160 QRcode 67: Silva, C. (2016).
311
sensualidade e erotização” e consequentemente, tal identificação estimula o exercício da
sexualidade precoce.
As imagens narradas na trajetória da Mc Melody fazem parte do cotidiano de milhões
de crianças independentes de classe, gênero, etnia. Neste recorte reflexivo, retomei alguns
apontamentos que trazem visões contundentes sobre a condição da infância contemporânea,
mas, esses elementos precisam ser questionados e problematizados diariamente em nossas
práticas cotidianas, seja na escola ou em casa, pois, por trás dos apelos da suposta “inocência”
da criança que erotiza, se ocultam mensagens que denigrem, condicionam e mantém o domínio
ideológico de um corpo que está sendo preparado para a cobiça e para o consumo.
Atualmente, Mc Melody tem 10 anos e sua carreira seguiu para outras tendências da
música e da produção de sua autoimagem, uma decisão tomada pelo pai da cantora Mc Belinho,
após ter sido investigado pelo Ministério Público de São Paulo acusado de "Violação ao direito
ao respeito e à dignidade de crianças/adolescentes" como já referido no prólogo do capítulo em
questão. Segundo relatos do pai da cantora, a intenção reformular as músicas e o visual da
garota evitando comportamentos sensualizados. No entanto, alguns de seus trabalhos ainda
permanecem com forte teor sensual, tendo em vista que a cantora passou a reproduzir clipes
musicais de artistas que estão no auge da mídia como o Mc G15 161, A Vingadora162 e Anitta163.
Melody sempre declarou ser fã de Anitta e seu comportamento assemelha-se
consideravelmente, com o da cantora pop.
Momo (2007, p. 327) ressalta que a cultura da mídia e do consumo atribuem formas às
crianças que são “[...] constantemente modificadas, substituídas, datadas, descartadas,
potencializadas, reinventadas, ressignificadas [...]”. Constituindo o que a autora denominou de
161 QRcode 68: Clipe “Deu Onda versão Falsete”. YouTube/Melody oficial.
162 QRcode 69: Clipe “Metralhadora – Versão Falsete - Melody”. YouTube/Melody oficial.
163 QRcode 70: Vídeo “Bang – Annita versão Melody. YouTube/Pânico oficial
312
“cultura do excesso” e da volatilidade, na qual acresço a cultura do exibicionismo. Com as
pressões visuais e as tendências culturais que estimulam a ganância, o consumo, a riqueza, o
corpo perfeito, enfim, a beleza, a vaidade saiu do controle e passou a ser palco de verdadeiros
espetáculos de exibição e desejo, tal é a intenção do selfie e dos inúmeros autorretratos de
Melody, ser objeto do desejo e da cobiça do outro, induzida pelo ambiente ideológico da
imagem performática na qual ela é apenas uma máscara, um fantoche.
O selfie protagoniza uma narrativa que traduz o Eu em alteridade e, durante
sua recepção (primeiro pelo sujeito, em seguida pelo público), ocorre um
processo de materialização/objetificação do sujeito em objeto fotográfico, criando uma identidade a partir de uma máscara performática, pronto para ser
consumido (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 40).
A fotografia, principalmente, as registradas como selfie, “são um sintoma da cultura,
pois, revela nossa relação com as imagens, o imaginário e, principalmente, com a nossa
construção identitária no espaço social, agora, mediado pelas tecnologias” (CAMARGO e
STEFANICZEN, 2016, p. 36). Entretanto, o autorretrato pode adquirir dimensões que
ultrapassam o registro contemplativo de si, assim como o mito de Narciso, “os autorretratos
possuem a presença do espelho, emblema do amor por si mesmo”, daí o risco da imagem de si
tornar-se uma forma de expressão que subjuga a imagem do outro, e mascara a própria imagem
em função de um personagem que se quer assumir (simulação), ou seja, a razão de si, como um
modelo do “Eu” perfeito, ideal, em detrimento do Outro que “me” inveja e que é imperfeito por
ser diferente de “Mim”, que “Sou” perfeito. Portanto, “há uma sutil diferença identitária no
antes e no depois do selfie. A cada autorretrato, um novo Eu que agrega mais sentidos ao Eu
anterior – que também era máscara” (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 54). Visto nesta
dimensão, a cultura do selfie também contribui para a produção de uma cultura exibicionista,
fútil e narcisista. Tal dimensão pode ser entendida na perspectiva de uma identidade mascarada,
performática e egocêntrica, em que,
A imagem ganha mais sentido, mais importância, uma alteridade bem maior
que o sujeito, [...] Assim, Narciso, ensimesmado, torna-se uma extensão da imagem e não o contrário. Devorado pela imagem, o sujeito torna-se uma parte
do autorretrato, como se o sujeito fosse a representação do selfie e não o
contrário (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 54).
As potencialidades e o estímulo visual das culturas midiáticas em virtude de algumas
abusividades também estimulam o consumismo e aumentam as exclusões sociais, tendo em
vista as diferentes camadas econômicas da população. Segundo Santaella (2009), a mídia é
313
produtora de cultura, da mais nobre à mais popular, em outras palavras, na cultura, tudo pode
se tornar um fenômeno semiótico e, portanto, a cultura das mídias se configura enquanto um
objeto semiótico.
Portanto, as culturas infantis estão permeadas de artefatos midiáticos que remetem às
culturas adultas e as crianças procuram reproduzir em seus estilos e comportamentos a
tendência da moda, aquilo que está na mídia. Mas, qual a tendência atual da moda para as
crianças? Coleções de roupas e acessórios chama atenção, diariamente, em sites e redes sociais
de agências como fashionkids164, kardashiankids 165 que buscam orientar a moda direcionada à
infância, no entanto, as tendências que indicam assumem que a moda para crianças é vesti-las
como adultos. E há quem acredite.
Os sites dispõem de incontáveis imagens, pois, diariamente alimentam seus acervos.
Optei por selecionar imagens destes três endereços virtuais, dado o grande volume de acessos
e seguidores de suas páginas, além de considerar o caráter público de suas postagens. Vale
destacar que essas fotos foram produzidas com fins comerciais de publicidade e divulgação de
marcas e modelos do universo da moda. Desse modo, foi possível produzir uma narrativa em
sequência com 4 imagens que dialogam com o universo da moda infantil e caracterizam o que
é ser uma criança “fashion”.
A primeira fotografia selecionada mostra em high key uma criança de aproximadamente
1 ano, em pé, focaliza ao centro da imagem. A criança, ainda bebê, usa um vestido quadriculado
em preto e branco, com uma elegante e intrigante capa preta aveludada por cima do vestido,
lembrando um casaco de inverno. Veste uma calça de couro e sapatos pretos. Usa também uma
espécie de gorro branco com detalhe em preto. Exibe um enorme sorriso que em low key é o
único elemento que indica a essência infantil, sua alegria acima de quaisquer circunstâncias.
Nada mais compõe o cenário, a não ser um amplo assoalho de madeira que dá um equilíbrio à
imagem ao misturar o luxo ao rústico. A roupa que a criança usa parece ser bastante
desconfortável, devido ao peso e volume do casaco, o que pode impedir movimentos
164 QRcode 71: Fashionkids.
165 QRcode 72: Facebook.com/kardashiankids.
314
característicos desta fase. Isso indica que, a moda é mais importante do que o conforto da
criança. Até as escolhas dos tons, em sua maioria preto, parece “pesar” na cena.
A segunda fotografia dispõe em high key de uma cena em que uma criança de
aproximadamente 4 anos, caminha e toma água em um copo cor-de-rosa com tampa azul. Ela
veste um camisão quadriculado em degradês de preto e branco. Usa um coque no cabelo, meia
e tênis. A cena foi realizada em um espaço ao ar livre e a criança está posicionada de costas
para o fotógrafo. Em low key, a cena pretende demonstrar uma forma de vida saudável, baseada
em ideias de corpo e beleza. A criança que caminha sozinha remete à concepção de
independência, como se ela realmente fosse dona de seus próprios caminhos, a liberdade da
cena mostra uma pessoa livre, porém adultizada.
A terceira fotografia em high key apresenta uma menina, provavelmente, da mesma
idade. Ela usa penteado semelhante e veste blusa preta com detalhes em dourado, calça listrada
em preto e branco, e sandália cinza. Além disso, usa um blazer branco para compor o look
fashion. Em low key, a cena tenta transmitir um modelo de mulher que trabalha e ao mesmo
tempo consegue ser sexy. Os óculos de sol, estilo Ray-ban, que usa é bem maior que seu rosto
e ressalta ainda mais a intenção de adultizar a criança tornando-a sensual.
A quarta fotografia, seguindo a mesma tendência, revela uma menina de 5 anos de idade,
aproximadamente. Ela usa blusa branca, calça com estampa étnica preta e branca, e uma jaqueta
preta com detalhes dourados. Para completar o figurino, ela veste sapatos cor-de-rosa e óculos
de grau com armação preta e seus cabelos estão amarrados como um penteado “rabo de cavalo”.
Em low Key, esta criança é a que menos apresenta elementos que remetem a roupas sexys ou
executivas, apesar de também usar um look black.
A quinta imagem é uma composição de duas fotografias onde mãe e filha aparecem com
roupas e acessórios semelhantes, trata-se de uma releitura do ditado popular “tal pai, tal filho”,
agora entendido como “tal, mãe, tão filha”. Em high key elas usam vestidos com estampas de
oncinha, diferenciando-se em alguns detalhes como: o modelo do bordado que detalha o decote
das roupas, o modelo dos óculos de sol e os modelos de calçados que estão usando. As duas
têm o mesmo tipo e corte de cabelo - liso castanho-claro e reto, de cumprimento um pouco
abaixo dos ombros. Na primeira foto, a criança dá um pulo e a mãe sorri ao observar a cena. Na
segunda foto, a pequena faz uma pose na diagonal e coloca os óculos na cabeça, olha fixamente
para o fotógrafo que está registrando a cena. A mãe de forma semelhante a imagem anterior,
olha para a filha e sorri. Em low key, as cenas magicizizam a relação entre mãe e filha, porém,
é preciso questionar até que ponto essa tendência em reproduzir o modelo materno pode
influenciar nas condutas da criança a ponto de ressignificar sua infância com padrões e
315
comportamentos de adulto.
No entanto, com base em minhas reminiscências (de mãe), cabe fazer uma ressalva. Ao
olhar, especificamente, para estas cenas, em que a mãe se veste igual a filha e a filha se veste
igual a mãe, me vem a memória a cumplicidade que existe entre mãe e filha, o desejo de ser
igual pode ser visto como admiração, homenagem e amor que existe nessa relação, e o fato de
usarem roupas semelhantes, pode também, não significar um processo de adultização, mas sim,
de uma experiência emocional de aproximação e troca de carinho, uma outra forma de se
produzir cultura.
Dessa forma, o problema da adultização não está na projeção, mas na introjeção de
valores e comportamentos como que induzem o amadurecimento precoce, o despertar da
sexualidade, o consumo exacerbado, as posturas discriminatórias e excludentes, a
supervalorização do “Eu” em detrimento do Outro, entre outras condutas incoerentes com as
condições físicas, psíquicas, emocionais, cognitivas e afetivas das crianças. Tendo em vista que,
Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a
observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de
significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos
outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados
em seu conjunto, eles constituem nossas "culturas". Contribuem para
assegurar que toda ação social é "cultural", que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de
significação (HALL, 1997, p. 16).
Recentemente, uma matéria sobre moda publicada pela Revista Caras on-line, reuniu
imagens de crianças de várias partes do mundo, sob a intenção de mostrar as “60 crianças fofas
mais estilosas do mundo” 166. As roupas e acessórios para criança chama atenção pelo fato de
demonstrar uma ideia adultizada de infância, o que pode ser verificado no que o site chama de
tendência atual da moda, corroborando com o famoso site fashionkids. Trata-se, portanto, de
uma reprodução em potencial das culturas adultas na imagem de criança contemporânea
(CABRAL e DIAS, 2017). Mas, o que de fato revelam essas imagens? Que tipo de concepção
166 No contexto do site, o termo “estilosa” significa estar vestido de acordo com as principais tendências da
moda fashionkids. QRcode 73: Matéria Revista Caras.
316
de criança e infância essa matéria quis passar através do que denominam de “fashionkids”?
Dentre as imagens dispostas selecionei 4 fotografias para desvelar a tendência da moda adulta
magicizada nas fotografias de crianças. Vale ressaltar que são fotografias produzidas por
profissionais da moda, portanto, as intenções são estéticas e artísticas.
Para a seleção das imagens optei pelas imagens de crianças que mais se aproximavam
da concepção de adultos em miniatura, no entanto, cerca de 70% das fotografias exibiam
imagens de crianças vestidas com roupas de adulto, do tipo black com cores pouco variadas,
penteados diferenciados e faixas no cabelo, casacos estilosos, roupas sofisticadas, lenços,
cachecóis e jeans casuais, blazers, algumas inclusive fazem referências à bandas de Rock e
portando óculos de sol. As posições em que as crianças são fotografadas exibem posturas com
mãos nos bolsos, segurando acessórios como bolsas e mochilas. Em low key, esses elementos
compõe a ideia de “mini-adultos”, perde-se o colorido, a doçura e a brincadeira para dar lugar
ao monocromático, à ousadia e à seriedade postural. As crianças modelam, fazem gestos e
reproduzem cenas do cotidiano (CABRAL; DIAS, 2017, p. 285).
Em high key a primeira imagem mostra um menino branco de aproximadamente 6 anos.
Ele usa uma calça vermelha com a barra dobrada para cima, sapato marrom social-casual, uma
camisa azulada de botão semi-ensacada, um paletó azul marinho, com um pequeno lenço no
bolço. Em low key, ele se modela seu corpo para a fotografia, pousa com as mãos no bolso e
faz uma leve inclinação com o corpo para o lado esquerdo. Tem cabelos claros repicados e usa
óculos escuro tipo Ray-ban, seu rosto é sério e ao mesmo tempo misterioso. Olha diretamente
para o fotógrafo e aguarda o click.
A segunda imagem em high key mostra um menino negro, aparentemente com 3 anos,
vestido com uma calça comprida azul marinho, camisa de gola alta e gravata borboleta. Para
completar, usa paletó e gorro com a mesma estampa, listras finas em azul e branco. Usa sapato
social-casual em tons de azul claro e escuro. E com sua mão direita, segura um chaveiro e com
a esquerda, pega na ponta do paletó.
A terceira imagem apresenta uma menina negra de aproximadamente 5 anos, em high
key, ela veste uma calça comprida branca, blusa de manga comprida azul marinho de bolinhas
pequeninas brancas, como acessórios ela usa cinto preto, óculos de sol, relógio preto, pulseira
azul combinando com uma sandália azul claro com azul escuro, além de um elegante chapéu
branco com faixa azul escuro. Ela está de pé e faz uma pose casual, cruza as pernas, coloca a
mão esquerda no bolso e olha para o lado esquerdo. Em low key aparenta segurança,
desenvoltura e seriedade.
A quarta fotografia registra uma criança de aproximadamente 5 anos. Em high key ele
317
veste calça jeans azul marinho, bota marrom cano alto semiaberta, camisa azul claro, colete de
lã acinzentado com detalhado com seis botões, por cima uma elegante jaqueta marrom. A cena
é produzida em um ambiente urbano, pois ao fundo é possível visualizar uma parede de ferro
na cor vermelha com detalhes em vidro, e o chão lembra uma calçada. Usa óculo escuro do tipo
Ray-ban. Ele posa de frente para a lente do fotógrafo, com as mãos no bolço e olha para o lado
esquerdo. Em low key trata-se de uma imagem que busca exaltar a beleza e a elegância da
criança. Vestido com roupas de adulto, olhar sério e compenetrado, ele demostra segurança e
maturidade. A presença dos óculos escuros parece ser uma tendência nos estilos de moda
infantil, provavelmente, para indicar maturidade e elegância.
Estas quatro fotografias são exemplos de padrão de beleza ocidental, baseado em uma
realidade social burguesa que monopoliza a indústria da moda mundial. Sob o pretexto de
“estilo” esconde-se todo um processo de ideologia dominante que objetiva gerar consumidores
em potencial, não importando as consequências para a construção das culturas infantis, ou até
para o seu declínio. Crianças pequenas são induzidas a vestirem-se e comportarem-se como
adultos, interiorizando o desejo de parecer e ser como um adulto. Essas práticas sinalizam uma
“espécie de encantamento” do adulto pela infância como estratégia de marketing comercial para
se tornar uma fonte rentável de mercado (FELIPE e GUIZZO, 2003). A moda que tenta
adultizar a criança desconsiderando as particularidades das culturas infantis, se caracteriza
como estereótipos sociais de representação profundamente marcados por significados políticos
e ideológicos. De acordo com Pereira (2009):
Os estereótipos são representações bastante contraditórias, isto é, são
dinâmicos - enquanto produções ativas, intencionais e performáticas de significado – no entanto, o seu efeito de verdade é fixador, homogeneizante,
contínuo, repetitivo e estabilizador de identidades (PEREIRA, 2009, p. 213).
Ao induzir a criança a se vestir como adulto, todo um repertório de significados culturais
se constrói em função de uma antecipação de etapas, a criança passa a incorporar não só as
formas de se vestir, mas, também as particularidades de um comportamento mais sério e menos
lúdico. Os estereótipos produzidos pela indústria cultural da moda criam uma estrutura
normalizadora baseada em modelos da hegemonia social, ou seja, os estereótipos “constroem
jogos de verdade que anulam as percepções identitárias e, por conseguinte, as alteridades
plausíveis centradas nos modelos dominantes” (PEREIRA, 2009, p. 213). Em suas faces falta
algo, falta a alegria, a brincadeira, a diversão, a leveza, tudo em função de uma imagem que os
“ditos” da moda, e em larga medida, da sociedade, ainda insistem em considerar que o modelo
318
perfeito a ser atingido é o do adulto. Tal qual como afirmou Buckingham (2006, p. 18) em
relação à televisão, a indústria da moda, cria uma “'pseudo-sofisticação’, que leva os adultos a
tratarem as crianças como mais adultas do que realmente são”.
Mas, também é pertinente mostrar o contraponto desta história. Até aqui, o que foi dito
desvelou os negativos em evidência de uma infância que cresce numa sociedade estetizada que
vive e convive em meio aos intensos estereótipos sociais que estimulam o consumo, a
adultização e a erotização da criança através da imagem. No entanto, essa mesma infância, cada
vez mais tem buscado conquistar seu lugar como ator social, protagonista de sua história e
produtor de cultura, o que revela resistência e subversão frente às imposições midiáticas da
contemporaneidade.
As crianças do século XXI são espertas e extremamente inteligentes, querem escolher o
que vestir, o que comer, para onde ir, falam de si e por si, são ativas, questionadoras e criativas.
Portanto, a sociedade contemporânea também tem sido palco para o surgimento de uma nova
infância – a da criança protagonista, ou seja, a criança que sabe o que quer, que exerce sua
participação na sociedade e re/conhece seus direitos sociais.
4.3 A imagem da criança protagonista: novas identidades para criança sociológica na
contemporaneidade
Considerando que as culturas visuais contemporâneas não podem ser pensadas de forma
desvinculada da presença das tecnologias digitais, torna-se preponderante dar atenção
especifica às estatísticas relacionadas ao acesso e uso da Internet por crianças em seus
ambientes sociais, educacionais e familiares.
A nível mundial, a Europa foi um dos primeiros continentes a se preocupar com as
relações estabelecidas entre o público infanto-juvenil e as TIC, tendo em vista que o uso da
Internet tem se tornado comum para muitas crianças, inclusive, tornando-se uma prioridade
política a garantia de que a exclusão digital não agrave a exclusão social. Neste sentido, foi
criada uma instituição multinacional de investigação financiada pelo governo da União
Europeia denominada de rede EU Kids Online com o objetivo de melhorar o conhecimento das
crianças fornecendo bases de evidência rigorosa para maximizar oportunidades e minimizar o
risco de danos associados ao uso de Internet.
A rede EU Kids Online desenvolveu em 2010-2011 uma ampla pesquisa que envolveu
a participação de 25 países da Europa, abrangendo o quantitativo de 25.142 crianças
319
entrevistadas. Os resultados apontaram que 60% das crianças e adolescentes ficam online
diariamente, 87% usam Internet em suas residências, destes 49% em seus quartos e 33% em
aparelhos móveis ou dispositivos portáteis, o segundo ambiente mais citado foi o escolar com
63% (EU KIDS ONLINE, 2012)167. De acordo com dados da pesquisa as crianças portuguesas
são as líderes Europeias quanto ao nível de acesso à Internet através de computadores portáteis,
65% dos inquiridos têm os seus próprios computadores, 89% usam, principalmente, para
trabalhos escolares e 83% para jogos, seguido de 70%, 69% e 66% que usam para visualizar
vídeos, trocar mensagens instantâneas e correio eletrônico, respectivamente.
Seguindo modelo Europeu, foi criado no Brasil o Centro de Estudos sobre as
Tecnologias da Informação e da Comunicação – CETIC sob os auspícios da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO que coordena estudos e
pesquisas relacionadas à rede Eu Kids online. Uma das contribuições mais significativas da rede
CETIC foi a criação da primeira versão da pesquisa TIC Kids Online Brasil168 realizada em
2012, tendo os objetivos de medir o uso da Internet por crianças e adolescentes entre 9 a 17
anos e mapear possíveis riscos e oportunidades online (CGIbr, 2012). Desde então, a cada ano
uma nova versão. Sua quarta versão foi desenvolvida entre novembro de 2015 e junho de 2016
junto a 262 municípios brasileiros, com mais de 33.210 domicílios particulares permanentes de
amostra. É nesta versão que centralizarei as informações a seguir (CGIbr, 2015).
Os resultados da pesquisa TIC Kids Online Brasil revelam que cerca de oito em cada
dez crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos utilizaram a Internet, o que
corresponde a 23,4 milhões de usuários em todo o país (CGI.br, 2015). Destes, 63% têm idade
entre 9 e 10 anos, 73% entre crianças de 11 a 12 anos, 87% entre os adolescentes de 13 a 14
anos e 86% na faixa de 15 a 17 anos. Cerca de 84% acessavam a rede todos os dias ou quase
todos os dias, destes, 68% utilizaram a Internet mais de uma vez por dia.
Em se tratando das classes sociais dos jovens usuários, a pesquisa revela que 80% dos
que têm entre 9 a 17 anos pertencentes a classes AB acessavam a rede mais de uma vez por dia
167 QRcode 74: Site Oficial da pesquisa EUKidsOnline.
168 QRcode 75: Site Oficial do CETIC/Kids Online Brasil.
320
e 67% pertencem à classe C e 51% às classes DE, com isso, a TIC Kids Online Brasil ressalta
que ao longo de sua série histórica, as diferenças entre as classes no uso diário de Internet vêm
diminuindo (CGI.br, 2015, p. 161).
De acordo com os resultados obtidos, 80% crianças e adolescentes declararam usar a
Internet para trabalhos escolares, 79% para acessar as redes sociais e 63% para assistir vídeos.
A pesquisa também apontou que 79% das crianças e adolescentes acessa alguma rede social.
Tais indicadores chama a responsabilidade à escola que é um dos ambientes mais propícios
para a democratização do acesso às novas tecnologias, portanto, a escola torna-se o principal
elo entre os saberes formais e as vivências e transformações da sociedade contemporânea.
Este novo cenário tem promovido à infância não só o uso de informações e o consumo
de produtos oferecido pela rede, mas a possibilidade de produzir conteúdo, como no caso das
crianças blogueiras e dos youtubers mirins. Ser blogueiro é o termo utilizado para designar a
pessoa que publica em blog, uma espécie de diário virtual, onde se postam textos, imagens e
vídeos. Com o avanço das redes sociais, a criação e manutenção do blog perdeu espaço para
plataformas como Facebook e Instagram, e principalmente o YouTube, um programa de
compartilhamento de vídeos que se tornou o novo espaço virtual para os blogueiros, que podem
ser chamados também de vlogueiros (que postam vídeos) e/ou youtubers, que são as pessoas
que possuem canal no YouTube. O termo “blogueiro” ainda é utilizado nas redes sociais, mas
aos poucos tem sido substituído pelo termo “youtuber”.
Essa realidade atingiu diretamente as infâncias contemporâneas fazendo emergir novas
identidades sociais, uma delas denominada de youtuber mirin, um tipo de infância que acessa
e manipula facilmente os recursos tecnológicos, já nomeada como “nativos digitais”
(PRENSKY, 1999), “geração digital” e “geração-net” (TAPSCOTT, 1999); infância hiper-
realizada” (NARODOWSKI, 1999) ou “ciberinfância” (DORNELLES, 2005), todos se referem
às crianças que nasceram em meios a sociedade digital e aprenderam a acessar e manipula
facilmente os recursos tecnológicos (DORNELLES, 2005).
De acordo Lévy (1999) a sociedade contemporânea deve ser compreendida na
perspectiva de uma cibercultura, que ele define como um conjunto de técnicas materiais e
intelectuais, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem
juntamente com o crescimento do ciberespaço e esses fenômenos marcam a complexidade das
relações sociais e culturais da humanidade. Levy (1999) define o ciberespaço como uma
"geografia móvel de informação", um novo meio de comunicação que surge:
[...] da interligação mundial entre vários computadores, incluindo todas as
321
infra-estruturas materiais da comunicação digital, desde um simples
computador ou um cabo a outras estruturas mais complexas e que permite albergar todo o universo de informações e todos os utilizadores que navegam
na rede e todos os que contribuem para a construção de conhecimento
injectando informações nesse mesmo universo (LÉVY, 1999, p. 93).
As crianças têm se mostrado participantes ativas nas relações sociais e culturais na
sociedade contemporânea. Os processos de globalização e os avanços tecnológicos
intensificaram o crescimento e desenvolvimento econômico e cultural, repercutindo
diretamente, nas formas de vida e comunicação na sociedade contemporânea, sobretudo, em se
tratando da infância, que adquiriu direitos sociais e políticos que até bem pouco tempo atrás
lhes eram negados. No entanto, as culturas visuais manipuladas pela indústria cultural e mídias
publicitárias que visam o lucro acima da dignidade humana, permeiam o universo infantil e
nem sempre estão atentas à proteção, cuidado e dignidade da criança, requerendo da educação
o papel de mediar e tencionar estas questões junto à sociedade civil e científica como medida
de proteção à criança e compromisso social com a infância. Porquanto,
Se han expandido como nunca las posibilidades de que cualquier ciudadano
pueda hacer llegar su mensaje, personal o colectivo, al resto de la sociedad,
pero, paralelamente, el poder mediático ha alcanzado unos niveles de concentración y de acumulación a los que nunca antes se había llegado, como
afirma Jenkins. Además, el poder mediático se beneficia de la transparencia que caracteriza a los nuevos sistemas de representación, propiciando La
confusión entre la representación y la realidad. La competencia mediática ha
de hacer frente, pues, a esta complejidad, compaginando la potenciación de la cultura participativa con el desarrollo de la capacidad crítica (FERRÉS e
PISCITELLI, 2012, p. 77).
Importa, nesta perspectiva, tratar culturas visuais e culturas infantis como polos de
interlocução e complementaridade, que fazem parte do cotidiano da criança informando e
formando seus sentidos e significados acerca de si e de suas relações com o mundo. Conforme
assegurou Cunha (2012, p. 102-103):
As culturas infantis e juvenis das últimas duas décadas, produzem e são
produzidas, em muito, em meio a uma cultura imagética, que (re)cria significados, não só participando das construções identitárias e do sentido de
pertencimento, mas principalmente organizando e regulando um conjunto de práticas sociais, mutantes, evanescentes, porém produtoras de efeitos
concretos sobre nós.
A pesquisa realizada por Bragaglia e Ferreira (2016) intitulada “Os youtubers mirins e
a felicidade através do consumo” destaca três canais de meninas mais acessados no Brasil: o
322
canal “Fran Nina e Bel para Meninas” 169 com 5.322.406 inscritos e apresentado por Isabel (9
anos) e sua mãe, o de Juliana Baltar (8)170 com 5.305.571 inscritos e o de Julia Silva (10 anos)171
com 3.153.674 de inscritos 172. Segundo as normas de utilização, a idade mínima para ter um
perfil no Google é de 13 anos, porém, a maioria dos pais dos youtubers mirins controlam as
postagens e os acessos.
Segundo os autores, as meninas postam vídeos divertidos e criativos, porém, “[...]
associam felicidade às marcas promovidas, quando, por exemplo, ficam contentes ao ganharem
um novo brinquedo e ao se divertirem em lojas, shoppings, parques e outros locais em que
aparecem práticas de consumo” (BRAGAGLIA e FERREIRA, 2016, p. 63). O que corrobora
com a pesquisa de Correa (2015, p. 14) ao destacar que, dos 100 canais de maior audiência no
YouTube, 36 abordam conteúdo direcionado ou consumo por crianças de até 12 anos de idade.
Por outro lado, essas youtubers mirins demonstram desenvoltura diante das câmeras e
dada a espontaneidade em suas apresentações, aparentemente adquirem autonomia em relação
ao tema desenvolvidos nos vídeos, o que remete a uma participação ativa, crítica e criativa. A
capacidade de expressão é também uma das características marcantes dessas identidades
culturais, ou seja, a forma com que comunicam a informação é persuasiva e segura, sobretudo,
articulada e atraente. A diversão parece ser o foco principal dessa atração.
No entanto, conforme já visto anteriormente, estas novas identidades infantis também
assumem o conceito de “fashionistas” que significa estar de acordo com as tendências da moda,
mas, quem mais se beneficia deste suposto comportamento “estiloso” são as grandes marcas
que buscam a todo custo se manter no topo da economia, e para isso, nem sempre respeitam as
especificidades da infância173.
169 QRcode 76: Canal Fran Nina e Bel para Meninas.
170 QRcode 77: Canal Juliana Baltar.
171 QRcode 78: Canal Julia Silva.
172 Idade das crianças referente ao ano de realização da pesquisa de Bragaglia e Ferreira (2016). Quantidade de inscritos no canal referente ao mês de novembro de 2017. 173 Discutido no subcapítulo anterior (4.3).
323
Neste cenário, é preciso uma compreensão mais culturalmente “antenada” às demandas
e peculiaridades dessas infâncias tendo em vista que estas novas identidades culturais dão
suporte às construções interpretativas e subjetivas da criança. Em vista disso, tanto podem ser
responsáveis por proporcionar comportamentos adultizados e um consumismo que vai além do
uso necessário e consciente, como podem colaborar com a formação de posturas críticas e
reflexivas sobre concepções e ações humanas através de novas interações socioculturais.
Portanto, é necessário reconhecer a importância de analisar as crianças e suas culturas a
partir das suas próprias narrativas, vivências, sentidos e significados, pois, as visualidades
compõem a cultura e essa composição se dá de forma inteligível e interpretativa,
consequentemente, subjetiva.
324
5 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: DO HOMÚNCULO À CRIANÇA
SOCIAL
5.1 A criança na I/MA(r)GEM.
5.2 Pequenos Trabalhadores: infância e industrialização em Caxias do Sul - fim do Séc. XIX e início do Séc. XX (TISOTT, 2008).
5.3 Imagens de Crianças e Infâncias: a criança na iconografia brasileira dos séculos XIX e
XX”. (ABRAMOWICZ, et al. 2011).
325
5.4 Criança e Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação Infantil. (SILVA, R., 2015).
5.5 A pesquisa de Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:
perspectivas para uma Escola da Infância”
5.6 A moda infantil no século XX: representações imagéticas na revista do globo - 1929-1967. (KERN et al., 2010).
5.7 Crianças de Revistas - 1930/1950. (BRITES, 2000).
326
5.7 Dia das Crianças - Calçados Couro Fino (2015).
5.8 Mídia e Consumo de uma infância pós-moderna que vai à escola. (MOMO, 2007).
5.9 Bichinhos da Parmalat - Campanha “Mamíferos”. (1995).
5.10 Mc Melody (2014-2017).
327
2° Click
As imagens são como nós: às vezes nascem, pensam. Mas elas não morrem!
(ACHUTTI, 2011, p.76)
Do homúnculo à Criança Social:
Infâncias em peles magicizadas
351
EPÍLOGO
“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”
E o “meu” espelho respondeu:
- Sim, minha rainha, as crianças são mais belas.
Belas em sua essência, belas na alma,
Puras como a névoa e serenas como o mar,
Se queres ser bela, sejas como uma criança,
que se encanta com a simplicidade da vida
e não se cansa de sonhar.
No ensaio 2, revivi diversas formas culturais do ser criança, mergulhei em suas
realidades, senti os sabores da infância e compreendi que, em cada situação, suas pluralidades
convergiram-se em particularidades que as caracterizavam como seres dotados de criatividades
e subversão. Desde as mais remotas às mais tenras imagens, foi possível perceber que as
crianças exerceram papéis sociais definidos pela cultura e pela sociedade de cada tempo
histórico, recebendo com isso, atribuições que, ora foram compatíveis com suas condições bio-
psíquicas-sociais, e ora, desconsideraram as limitações e especificidades de uma infância digna.
Contudo, constatei que as imagens são fenômenos que registram, dialogam e contribuem
para a construção das várias concepções de crianças e infâncias aqui revisitadas. Nas peles
foram magicizadas as formas de vida transformadas em memórias que tornaram possível o
reconhecimento de suas culturas e subjetividades, seja em momento de contravenção ou em
subordinação. As reminiscências traduzidas em narrativas fotoetnográficas comportaram
sentimentos e valores que deram suporte às concepções históricas e culturais acerca da ação
social da criança, do protagonismo e da alteridade da infância.
Nessas trajetórias, as crianças protagonizaram suas histórias e construíram suas culturas
nas relações que estabeleceram na sociedade, deixandomarcas e sendo marcadas pelos mundos
e modos de viver entre si e com os adultos. Todavia, nem sempre suas especificidades e
necessidades foram prioridades, mas isso não sucumbiu a beleza, a criatividade e a
potencialidade da alma infantil.
As passagens dos séculos provocaram o desaparecimento das fronteiras culturais entre
o mundo dos adultos e o mundo das crianças. A modernidade alimentada pelas transformações
352
tecnológicas, revolucionaram a cultura contemporânea e anunciaram a chegada de uma nova
geração, a ciberinfância, uma geração marcada pela autonomia e domínio dos artefatos
tecnológicos e seus segmentos digitais. Assim, as redes de relações sociais, passaram a produzir
cultura e conhecimento através de outras formas de comunicação na contemporaneidade.
Hoje, já não é possível controlar quem dita os padrões, a fama e o poder estão
visivelmente presentes e possíveis nas redes sociais e nos canais de entretenimento que
oferecem oportunidades para todos os públicos sem distinção de classe e/ou gênero. Essas
reconfigurações culturais e sociais vêm acarretando sérias armadilhas para a infância, pois têm
inspirado as crianças a seguirem comportamentos e tendências que abusam da dignidade
infantil, adultizam e algumas vezes, erotizam o corpo da criança, além disso, a ditadura da moda
tem atribuido valores ao consumo sem medida. Em outras palavras, a sociedade tecnológica em
nome da liberdade cultural, da moda e da fama tem sensualizado, erotizado e adultizado a
infância na contemporaneidade, o que reverbera na concepção do homúnculo em pleno século
XXI.
Por outro lado, também foi possível constatar, que mesmo em circunstâncias adversas,
as crianças exercem papéis sociais ativos produzindo suas culturas nos entre-lugares da infância
que, evidentemente, são construídos pela própria ação das crianças, inclusive em espaços
digitais, como por exemplo, alguns youtubers mirins, que abusam da criatividade, autonomia e
subversão. O que corrobora com Sarmento (2007, p. 29-33) ao afirmar que as produções
culturais das infâncias contemporâneas resultam de um juízo interpretativo das crianças a partir
da compreensão da infância como categoria geracional e da criança como ator social, apontando
assim, para a imagem da criança sociológica que se caracteriza pela ação e enfrentamento das
circunstâncias culturais e sociais das quais participa.
Das reflexões empreendidas até aqui, surge a defesa de uma nova imagem sociológica
contemporânea - a da criança protagonista. Uma criança que subverte os limites e imposições
das culturas midiáticas e de forma criativa reinventa modos de ser e de viver. Uma criança que
participa ativamente de sua cultura, que elabora de forma crítica seu pensamento e visão de
mundo. Tal perspectiva, parte do pressuposto de que,
Ao afirmar a condição da criança socialmente construída nas experiências e na relação com os outros, afirmamos o lugar protagonista que elas ocupam na
construção de conhecimento, nas ações e descobertas que partilham
coletivamente. As crianças atuam na configuração de diferentes sentidos. Os sentidos atribuídos ou construídos pelas crianças não se reduzem e nem se
confundem àqueles elaborados pelos adultos, as crianças têm autonomia
cultural em relação aos adultos. Uma autonomia cultural relativa, justamente
353
porque os sentidos que elaboram partem do sistema simbólico que é
compartilhado com os adultos (TROIS, 2012, p. 125).
A imagem sociológica da criança protagonista ratifica a concepção de criança elaborada
pelo Parecer 022/1998 que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil
(DCNEI) ao afirmar que as crianças são “[...] seres humanos portadores de todas as melhores
potencialidades da espécie”, dando continuidade ao argumento, destaca as seguintes
características:
*inteligentes, curiosas, animadas, brincalhonas em busca de relacionamentos gratificantes, pois descobertos entendimento, afeto, amor, brincadeira, bom
humor e segurança trazem bem-estar e felicidade;
*tagarelas, desvendando todos os sentidos e significados das múltiplas linguagens de comunicação, por onde a vida se explica;
*inquietas, pois tudo deve ser descoberto e compreendido, num mundo que é sempre novo a cada manhã;
*encantadas, fascinadas, solidárias e cooperativas desde que o contexto ao seu
redor, e principalmente, nós adultos/educadores, saibamos responder, provocar e apoiar o encantamento, a fascinação, que levam ao conhecimento,
à generosidade e à participação (BRASIL, 1998).
Para Kramer (1999) a infância é marcada pela capacidade da criança de criar, imaginar
e fantasiar a realidade, assim, a autora defende a ideia de “[...] crianças como cidadãs, pessoas
que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso
a ordem das coisas subvertendo essa ordem” (KRAMER, 1999p. 272).
Ante o exposto, para defesa da tese, foi necessário conhecer profundamente as rotinas
de uma criança protagonista, que se dispusesse a construir sua narrativa autobiográfica através
de fotografias, ou seja, uma narrativa fotoetnográfica autobiográfica. E este foi outro grande
desafio: encontrar essa criança.
E, dessa aventura empírica, emergiu o Ensaio 3.
354
ENSAIO 3
O PROTAGONISMO DA CRIANÇA NA ALTERIDADE DA INFÂNCIA:
da fotografia à voz
Uma ciência assim – na verdade, um campo
científico interdisciplinar: os estudos da
infância – não pode abdicar da “imaginação
metodológica” que faça da voz das crianças
não o outro da voz dos adultos (não já
silenciada, mas reduzida e filtrada pelo
processo analítico empregue), mas a
expressão de uma alteridade que se conjuga na
sua diferença face aos adultos. Uma ciência em
suma, que não ignora a sombra, nem a
procura reduzir, mas que nela permita
caminhar.
(SARMENTO, 2007, p. 45, grifo do autor)
355
PRÓLOGO
Sobre a princesa “blogueirinha” Maria Clara...
No reino encantado da Luz
Clara como a luz do sol
Clareira luminosa nessa escuridão
Bela como a luz da lua
Estrela do oriente nesses mares do Sul
Clareira azul no céu
Na paisagem
Será magia, miragem, milagre
Será mistério
Prateando horizontes
Brilham rios, fontes
Numa cascata de luz
No espelho dessas águas
Vejo a face luminosa do amor
As ondas vão e vem
E vão e são como o tempo
Luz do divinal querer
Seria uma sereia
Ou seria só
Delírio tropical, fantasia
Ou será um sonho de criança
Sob o sol da manhã
(Música: Sereia. Lulu Santos e Nelson Motta)
Cantos, Contos e Encantos de Maria Clara...
Assim se sucederam nossos encontros. Cada momento, uma nova aventura e em cada
aventura um jeitinho único de “descomplicar” a vida. Clarinha - como a chamo, é assim, tal
qual seu nome: CLARA! Clara na voz, na simpatia, no olhar forte, nas palavras certas e
inusitadas. Clara na opinião, nas escolhas, nas formas de enfrentar o dia-a-dia. Clara, objetiva,
356
direta e muito, muito esperta! Vi muitos modos únicos, autênticos e intensos de Clara ser Clara
e clara. Assim, como na canção de Lulu Santos, que abre essa - que é sua – história, Clarinha é
luz e mistério, sempre pronta para surpreender, tem resposta para “tudo”, e se não tem, inventa!
Clara é magia que encanta a vida, a própria vida e de quem estiver perto dela. Clara é bela e vê
beleza em tudo. Clara faz tudo com intensidade, sente, sonha e realiza. Clara é brilho, é estrela
e nasceu para encantar. Clara é a face luminosa do amor, puro amor, amor pela vida, pela
natureza, pela família, pela escola, pelas amigas e até por mim, que acabei de chegar. Clara é
isso! Esse sonho de criança, que simplesmente é clara e tão Clara.
Quando a conheci, não imaginava que um dia ela seria a criança que eu buscava
encontrar para me ajudar a empreender esta tese. Tudo aconteceu como em um “conto de fadas”,
de forma surpreendente!
Certo dia, em novembro de 2016, estávamos, eu e meu esposo, observando nossa filha
(10 anos) patinar numa pista de gelo em um shopping novo da cidade. De repente, outra criança
chama a nossa atenção. Ela também estava patinando, mas, diferente das outras crianças, ela
dançava, fazia piruetas e performances como se estivesse em uma apresentação artística, para
ela, mais importante que patinar, era “fazer seu show”. E realmente foi um espetáculo de
desenvoltura! As músicas eletrônicas embalavam suas coreografias, seus braços se
movimentavam para o alto e para baixo, ela mexia os ombros e o quadril no ritmo das baladas,
girava nos patins e não se desequilibrava, aquele era seu mundo! Um mundo de gelo, assim
como a princesa Elsa em “Frozen” no “reino de Arendelle”.
Fotografamos e filmamos este momento e por acaso, a mãe dela nos pediu para enviar-
lhes as imagens pelo WhatsApp, pois, seu celular havia descarregado, daí as conversas
começaram a surgir. Durante um bom tempo ficamos lá, conversando sobre vários assuntos e
principalmente, sobre como as crianças estão ficando cada vez mais espertas e como se adaptam
fácil às linguagens tecnológicas da atualidade. Durante a conversa, conhecemos Maria Clara,
uma menina de 6 anos tão pequenina, que nem parecia ser aquela “gigante” que estava na pista
de gelo. Ela chegou ofegante, suada e com sede, quase não nos deu atenção. Fez um sorriso
rápido, nos deu um abraço e logo em seguida, foi fazer um lanche com seu pai, que também
estava presente. A mãe de Clara, muito simpática, nos contou que a filha era “blogueirinha” e
que postava vídeos sobre seu dia-dia e sobre moda nas redes sociais Facebook e Instagram sob
o instablog “@achadinhosdemariaclara”. Ficamos impressionados, mas, quando Maria Clara
voltou, continuou um pouco desatenta à nossa presença. Seu jeitinho meigo, que até me pareceu
um pouco tímido, contrariava de certa forma, as informações que a mãe dela havia nos dado
momentos antes, o que a fez até se justificar: “Ela não é assim não! É porque não conhece vocês
357
direito, mas, olhem o Instagram dela!”, talvez por isso, não tenha chamado minha atenção como
um possível sujeito de pesquisa para tese. Aliás, naquele dia nem me lembrei da tese.
Não mantivemos mais contato com a mãe de Clara, tampouco, com ela. Inclusive não
lembrávamos nem do seu instablog. Passado algum tempo, em uma das reuniões com minha
orientadora, ela sugeriu que eu pensasse em uma criança para iniciar a pesquisa empírica, no
entanto, tive muita dificuldade em decidir como, onde e quem seria “essa” criança. Em outra
ocasião, cogitei a possibilidade de não fazer pesquisa empírica, mas, de imediato, a orientadora,
sabiamente, questionou. E, mais uma vez, a indecisão. Saí ainda mais preocupada. Dirigindo
no caminho de casa e imaginando inúmeras “possíveis” crianças, de repente, uma imagem se
magiciza na memória, vem à lembrança Maria Clara, e imediatamente, tive a certeza de que
tinha de ser ela.
Peguei o telefone e fiz contato, haviam se passado quase dois meses, mas, a mãe de
Clara ainda se lembrava de mim. Encontramo-nos no shopping para que eu pudesse explicar a
pesquisa. Dessa vez fui sozinha, lá estavam Clara, seu irmão (9 anos) e sua mãe. Expliquei a
proposta de tese para sua mãe e ela, gentilmente, se prontificou a autorizar. Em seguida,
expliquei para Clara e ela também aceitou participar, ainda mais, ela queria começar naquele
mesmo instante, dada a sua ansiedade. A partir deste contato, nos encontramos todas as semanas
durante 5 divertidos e intensos meses.
Os primeiros olhares de Clarinha eram curiosos, questionadores e cativantes. Nela vi
materializarem-se outras crianças que já habitavam minhas reminiscências, vi a vontade de
viver intensamente cada minuto como se não houvesse amanhã. Tudo em Clara se manifestava
com muita emoção, o riso, o choro, os desejos, as birras (foram poucas), a insistência, as
expressões e linguagens, as performances corporais, o carinho, a saudade, o amor. Era muito
fácil conviver com Clara, sua alegria, sua luz e seu jeito único e criativo de ser, dava o tom de
leveza à pesquisa, muitas vezes ela própria apontava os caminhos com suas “teias
congeladas”174, deixando seu brilho por onde passava.
Para Clara, a vida é uma “magnífica aventura” aonde ela vai desenhando suas histórias
com muita autenticidade. Suas “pegadas na neve que cria” estão marcadas por subjetividades e
culturas que constrói nas relações de alteridade que estabelece cotidianamente, e assim, num
misto de magia entre realidade e fantasia, a “princesa Clara” vai demarcando seus espaços e
constituindo sua identidade como sujeito social, produtora de cultura, de culturas da infância.
Maria Clara vive uma infância permeada de artefatos culturais que magicizam suas
174 Menção ao filme de Frozen
358
experiências sociais, usa roupas da moda, frequenta espaços seletos a crianças que sonham com
a fama, o sucesso e o status que esse tipo de vida promove, inclusive, ela já desfruta de uma
carreira artística que aos poucos desponta nas redes sociais e em um programa de televisão
local. Mas, Maria Clara tem um diferencial, mesmo estando nesses espaços que muitas vezes
confundem o que é “ser criança”, ela consegue preservar a essência infantil que se caracteriza
pela ludicidade, criatividade, fantasia e sonhos. O cuidado e a vigilância da sua mãe tem sido
fundamental para a relação de Clara com as mídias, ela faz uma mediação constante e
importante para assegurar que sua filha vivencie de forma adequada todas as especificidades da
infância. Ou seja, Maria Clara vive uma infância que eu poderia situar como “saudável”, a partir
das premissas instituídas pela Convenção dos Direitos da Criança de 1989 e considerando os
pressupostos de bem-estar defendidos pela Sociologia da Infância (FERREIRA e SARMENTO,
2008, p.65).
Uma infância que conheci em meus dias de criança, àquela em que brincava de bonecas,
assistia o Sítio do Pica-pau Amarelo e sonhava em conhecer a Xuxa, infâncias que na atualidade
a mídia adultizada tenta sucumbir. Enfim, Maria Clara é uma criança que é criança, que faz
coisas de criança, que pensa como criança e não como um “pseudoadulto”. Maria Clara é um
exemplo de que, mesmo a criança sendo famosa, fashion, blogueira, ciber e modelo fotográfico,
ela não deixa de viver todas as brincadeiras, as interações e o faz-de-conta dessa fase tão criativa
que é a infância, além disso, esse exemplo indica que é possível manter assegurados os direitos
sociais e a dignidade da criança nesse universo midiático de flashes e glamour.
Desse modo, convido o leitor/espectador a mergulhar nesta aventura para conhecer o
“magnífico livro leitura-imagem” de Maria Clara, que apresenta sua autobiografia sob
perspectivas fotoetnográficas. Contudo, antes de ler a próxima página, peço licença para falar-
lhes diretamente ao coração, sei que esta não é uma posição benquista no pragmatismo da
ciência, mas, prefiro arriscar-me a perder a oportunidade de fazer essa ressalva, que considero
fundamental para qualquer tipo de aproximação e convívio com crianças. Assim, sugiro que
durante a leitura deste ensaio, o leitor/espectador reviva a criança que está dentro de sua alma,
sinta sua emoção, olhe com seus olhos, perceba suas vontades, inquietudes e limitações, se
desloque um pouco para seus próprios “lugares” de infância, para só então, compreender,
como eu compreendi, um pouco do que é ser criança e como suas culturas são produzidas nos
“entre-lugares” e “entre-culturas” da infância. Portanto, o memento torna-se imprescindível
para compreender e reflexionar as experiências de protagonismo e alteridade infantil a partir da
Fotoetnografia autobiográfica de Maria Clara. Assim como na célebre frase de Roger Bastide
que prefacia Florestan Fernandes (1979, p. 154):
359
[...] para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso
dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que
dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. E isso não é dado a toda gente.
Talvez, esta seja uma ideia utópica - tornar-se criança outra vez -, mas sua essência é
particularmente interessante. A ideia do memento ajuda a entender o que o autor quis dizer, ou
seja, ao reviver a criança que formos, sentimos suas emoções e singularidades e passamos a
compreender melhor o que as crianças com lidamos pensam, expressam e produzem, nessa
óptica, o “tornar-se criança” pode ser entendido como “lembrar-se criança”, pois, é fato que “na
investigação com crianças nunca nos tornaremos crianças, mantemo-nos sempre como um
«outro» bem definido e prontamente identificável” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 10).
Assim como nos ensaios anteriores, esta narrativa não se reserva a uma racionalização
da realidade sob normativas de padronização de escritas direcionada apenas à arguição de um
pequeno público seleto de pensadores (que têm toda legitimidade para isso), pelo contrário,
narro a vida para a vida, direciono minhas percepções a um saber democrático e de forma
sensível, procuro redigir um texto que também possa circular em outros espaços, aliás, em
qualquer espaço. Para tanto, este ensaio volta-se à escrita estética e criativa (não descartando o
rigor necessário que se espera de um trabalho de tese), porque (reforço) não vejo como tratar
de infância e com a criança sem que esses elementos estejam no centro da interlocução e da
produção de saber. Esse “saber” entendido em suas derivações originais em latim “sapio”,
“sapere” que “indicam ‘ter o sabor de’ ou ‘agradar ao paladar’ [...] isto é: o saber carrega um
sabor, fala aos sentidos, agrada ao corpo, integrando-se, feito um alimento, à nossa existência”
(DUARTE JR., 2000, p. 16, grifo do autor). Portanto, esta é uma narrativa que se fez e se
pretende ser “saborosa”, tanto para mim (como contadora), quanto para Clara (como autora),
quanto para o leitor (como espectador e crítico).
Enfim, nesta “aventura congelante” desvelo as concepções de criança e infância na
perspectiva da própria criança, destaco como ela se vê e se reconhece nas relações culturais e
sociais que estabelece com seus pares e com os adultos; ressalto sua relação com a Cultura
Visual e as implicações dessa relação para a construção de sua identidade. Sobretudo,
demonstro como a Fotoetnografia autobiográfica evidencia o protagonismo da criança e a
alteridade da infância ao promover a participação ativa da criança na construção de
conhecimento científico, dando respaldo à construção de uma nova imagem para a infância
sociológica na contemporaneidade - a imagem da criança protagonista.
360
Minha expectativa, é que essa leitura traga novas formas de entendimento e diálogo com
a criança sobre a infância, consolidando-se assim, num “esforço desconstrucionista de
constructos pré-fixados e de investigação empírica” que se estabelece a partir da participação
ativa da criança em assuntos relacionados a ela, participação esta que, “constitui o esforço
teórico principal da sociologia da infância” (SARMENTO, 2005, p. 372-373). Portanto, sob
estas intenções, apresento a síntese do desenvolvimento da pesquisa empírica cujo objetivo
maior foi produzir uma narrativa fotoetnográfica autobiográfica com a criança relacionando os
sentidos e significados que ela própria estabelece sobre sua infância através das imagens e
experiências cotidianas, ou seja, intencionei levar a criança a produzir uma narrativa imagética
de si considerando suas subjetividades e experiências pessoais, sociais e culturais. Para tanto,
remontei o movimento de interpretação memento de forma que Maria Clara pudesse reviver,
sentir e compreender sua própria história de vida através de suas próprias percepções e
narrativas. Com isso, pude reflexionar os conceitos de criança, infância e culturas infantis a
partir dos modos de ser e de viver dessa adorável criança.
Por hora, este prólogo é apenas uma pequena parte da história que estou prestes a contar,
mas, não por minhas palavras e olhares de adulta, mas, pelas próprias palavras e imagens de
Maria Clara, pois é ela, a autora, a narradora, a roteirista, a produtora, a editora e a atriz
principal. E eu? Eu sou quem observa, registra, fotografa e torna acessível seu texto à esta
pesquisa. Neste sentido, sou só a contadora de histórias..., e assumo todas as limitações
enquanto tal. Portanto, a história começa assim:
Era uma vez..., a princesa “blogueirinha” Maria Clara no reino encantado da Luz.
361
1 CANTOS, CONTOS E ENCANTOS DE MARIA CLARA: UMA
FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA
E a história continua...
Maria Clara vive os encantamentos de uma infância repleta de criatividades e
imaginações, ela é uma “blogueirinha” que sonha em ser artista de TV, apresentadora ou uma
“atriz contratada”, sonha também em ser modelo para “desfilar nas passarelas do mundo
inteiro”, mas não para por aí, quer também ser cantora ou dançarina, mas, se isso tudo não
acontecer ou quando isso tudo acabar, aí ela disse que vai ser veterinária para “cuidar dos
bichinhos que ficam dodói”, pois Clara ama os animais. Realmente, essa pequena tem muita
história para contar...
Durante nossos encontros, Maria Clara me contou tantas aventuras que não caberiam
nas limitadas páginas desta tese, por isso, algumas histórias estarão narradas nas próprias
imagens, outras nas entrelinhas deste ensaio, outras gravadas nas memórias do meu diário
fotoetnográfico, aguardando novas oportunidades para emergir. Assim, a grande maioria dessas
aventuras, desses momentos singelos e encantadores, estarão guardados para sempre nas
minhas próprias lembranças, são sorrisos, abraços, risadas, trocas de olhares e expressões
corporais impossíveis de descrever, porque só são possíveis de sentir.
Portanto, convido o leitor-espectador a se encantar, a reviver suas próprias
reminiscências de infância e sentir as emoções e singularidades do ser criança através das
aventuras da princesa “blogueirinha” Maria Clara no mundo encantado chamado Luz, narrado
e produzido pela protagonista desta história, e, por mim, transformado em narrativa
fotoetnográfica. Para só assim, se aproximar e compreender as particularidades e
complexidades das crianças e suas culturas infantis em constante devir, compreendendo que,
Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria infância cronológica [...]. Devir-criança é a infância como
intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do “seu” lugar
e situar-se em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados; é algo sem passado, presente ou futuro [...]. Um devir é algo “sempre
contemporâneo”, criação cosmológica: um mundo que explode e a explosão de mundo (KOHAN, 2010, p. 6, grifos do autor).
É dessa potência pueril que estou a falar, falo de Maria Clara.
362
1.1 Para início de conversa: os “magníficos” livros “leitura-imagem” de Maria Clara
Nem sempre a linguagem do adulto consegue ser inteligível ao entendimento infantil,
desse modo, para tornar a Fotoetnografia uma metodologia adequada ao trabalho com crianças
fiz algumas adaptações necessárias ao método, porém, mantive sua lógica e seus procedimentos
(ACHUTTI, 1997) criando estratégias que desenvolveram não só a técnica, mas, sobretudo, a
compreensão do processo de construção interpretativa do fenômeno através da imagem.
As estratégias de aproximação ao método foram desenvolvidas em dois momentos: no
primeiro, a proposta foi construir uma narrativa sobre algum personagem infantil utilizando
apenas imagens. Nesta etapa, a criança construiu a história de acordo com suas próprias
reminiscências sobre o personagem e escolheu as imagens para compor a narrativa. No segundo
momento, a ideia foi organizar a história de um personagem infantil a partir de suas imagens
dispostas aleatoriamente. Nesta etapa, a criança teve de organizar as cenas de forma cronológica
e de acordo com suas próprias reminiscências sobre a história do personagem.
Como se tratava de uma pesquisa com uma criança de 6 anos, expliquei o método
utilizando uma linguagem mais acessível com termos mais convencionais do universo infantil,
assim, no lugar do termo Fotoetnografia, preferi utilizar expressões como “- vamos ler as
imagens”, “- vamos montar um livro fotográfico?”, “- a gente vai contar uma historinha usando
apenas fotos”, “- sim, uma historinha sem texto e só com imagens”, entre outras expressões,
inclusive uma delas foi a própria Maria Clara quem me ensinou: “- isso é um livro leitura-
imagem tia! É um livro reformado, é uma leitura-imagem, onde a pessoa vê a imagem e a
história” 175, ou seja, com poucas palavras, ela resumiu o que eu ainda estava tendo dificuldades
para lhe explicar.
Assim, a Fotoetnografia foi ganhando novos termos que não a subtraía em nada, apenas
a tornava mais acessível ao entendimento da criança-sujeito e de acordo com o contexto de cada
situação vivida. Partindo dessas premissas, estabeleci uma interlocução entre imagens e
narrativas sobre contos infantis, onde a criança pôde rememorar fatos a partir do movimento
memento, isso a possibilitou se sensibilizar com a história, compreender os sentidos e
significados da imagem no contexto geral da narrativa e produzir uma sequência narrativa
cronológica das imagens conforme os acontecimentos do filme já rememorados pela criança.
175 Durante o processo de geração de dados, não especifiquei a diferença entre imagem e fotografia, deixei
que a própria criança se familiarizasse com os termos ao longo da pesquisa, ou seja, ora nos referíamos às imagens dos personagens como fotografias.
363
Com isso, através das imagens da personagem, a criança reconstruiu o conto infantil.
Desse modo, pedi a Maria Clara que me dissesse a personagem infantil que ela mais
gostava, perguntei se ela conhecia a história completa dessa personagem e se poderia me contar
essa história utilizando apenas imagens, prontamente, ela respondeu:
MC - Sim, eu consigo fazer, é só pegar as imagens e juntar tudo. P – Você
pode escolher qualquer personagem, a que você gostar mais! (mas, ela balançou a cabeça me falou: MC - Mas, eu tenho váaaarias prediletas... P -
Mas, tem de escolher uma só... (Ela pensou e respondeu) MC - éeeee... a que eu mais prefiro é a Branca de Neve e a Frozen (nesse momento, ela não parava
de pular, entusiasmada com suas escolhas). 176
Eu insisti para que ela escolhesse apenas uma, mas ela não aceitou, e disse que a Branca
de Neve era “primeira” que ela gostava porque era “parecida” com ela, pois tinha cabelos pretos
e gostava de animais, além disso, ela lembrou que tinha “sido” a Branca de Neve na festinha da
escola. E Elsa (nome da personagem no filme Frozen), era a personagem que ela mais “queria
ser”, pois tinha muitos poderes e era “muito linda”. Inclusive, disse que seu sonho era ter um
aniversário da Frozen. Diante deste impasse e dos argumentos de Clara, resolvi trabalhar com
as duas personagens, iniciando pela a Branca de Neve, pois o planejamento flexível da pesquisa
me permitiu isso. Impressionou-me sua maneira de insistir no que queria, achei muito válido
essa segurança, por isso, decidi rever o plano.
Sensível à decisão de Clara, organizei duas atividades pedagógicas para favorecer o
processo de construção da narrativa visual. A primeira com a história da Branca de Neve e a
segunda com a história de Frozen. Ambas pensadas como estratégias de familiarização ao
método fotoetnográfico de inspiração autobiográfica.
A primeira proposta foi a de produzir uma narrativa imagética sobre a Branca de Neve,
através de cenas referentes ao filme. Este encontro foi realizado em minha residência, pois seria
necessário o uso de impressora com jato colorido. Os procedimentos foram: reviver a história
da Branca de Neve; selecionar imagens referentes à história; e montar um pequeno livro apenas
com as ilustrações. Para tanto, a seleção das cenas foi feita junto ao Google Imagens, no qual
através de palavras relacionadas ao conto, a criança poderia ir encontrando imagens para
construir a história da personagem. Mais especificamente, digitávamos parte da cena e o site
nos fornecia inúmeras imagens, em seguida, Clara escolhia uma e com meu auxílio,
“colávamos”, em sequência, em um documento de texto no programa Microsoft Word 2010, de
176 Para identificação dos sujeitos junto às transcrições das falas, codifiquei da seguinte maneira: P-
Pesquisadora; MC – Maria Clara; M – mãe; Pp- Pai.
364
modo a facilitar a visualização total das imagens lado a lado, dando possibilidades de
reposicioná-las buscando a sequência cronológica da narrativa de acordo com a história
original. Todo esse processo foi desenvolvido sob o ponto de vista da própria criança e eu a
auxiliava apenas na parte técnica da montagem sequencial da narrativa, como por exemplo,
mudar uma foto de lugar, trocar uma foto por outra, ajudar a procurar outras cenas no Google
Imagens, entre outras.
Durante este processo, ela me pediu para escrever algumas palavras, pois, ainda estava
em fase de alfabetização e não dominava a leitura e a escrita de alguns termos. Dessa maneira,
através da conexão entre palavras e imagens, ela ia conseguindo encontrar o que precisava para
montar o que chamou de “livro leitura-imagem”. Maria Clara ficava atenta aos detalhes das
imagens, evitava cenas com pouco colorido e imagens que a assustavam, como as do caçador e
da bruxa má. Este procedimento teve a duração de quase 2 horas, entre conversas, brincadeiras
e produção do livro. Na sequência, apresento parte deste encontro para destacar a desenvoltura,
a criatividade e a autonomia da criança em organizar seu livro-imagem.
Fui pegar Maria Clara em casa. Quando ela entrou no carro, foi logo me
mostrando sua boneca vestida de Branca de Neve. MC – Olha tia, eu trouxe
minha boneca da Branca de Neve! Ela tem um vestido igual ao que eu usei na festa da escola. P – Que linda! Adorei. Depois quero ver sua foto vestida de
Branca de Neve. E continuamos um pequeno diálogo até chegar a minha casa.
Assim que entramos no espaço destinado à pesquisa, Maria Clara logo exclamou: MC - Ahhh! Mãe olha é igualzinho ao de painho não muda nada!
Nada entre nada! (aqui ela estava se referindo ao computador). Sua mãe sorriu e respondeu: M - É verdade! Fui apresentando cada item da sala, computador,
impressora, canetinha, papel, e disse que ela poderia usar o que quisesse.
Depois de algum tempo iniciei o processo de pesquisa, liguei o computador e deixei a página do Google Imagens disponível. Expliquei os procedimentos
para Clara e logo ela entendeu, então falei: P - Vamos lá! Branca... Ela
completou: MC - de neve! Coloca tia! (completou pulando). Digitei o nome Branca de Neve no Google Imagens. P: Branca de Neve. Hummm tá
aparecendo muita coisa viu! MC: É tá! Ixiii... P: Como é que começa a história dela? Você lembra? MC: Quando era pequena... aí tinha um pai só que ele foi
embora aí deixou uma empregada, a empregada era má! M: Não era
empregada não! (A mãe de Clara corrigiu) MC: Não era? M: Era madrasta... (Aí Clara lembrou de mais alguns detalhes) MC: Ah sim, uma madrasta que
tinha um gato. Aí ela ficou com a madrasta, o que tinha acontecido mesmo
mãe? Estou tentando me lembrar. (Dessa vez a mãe não complementou. Clara ficou com dificuldades demonstrando certo desconforto, talvez por medo de
errar novamente) Então eu interrompi: P: Mas, daqui a pouco a gente vai lembrar não se preocupe não! A gente pode até ver a história também, juntas
né? Então fiz a leitura da história de Branca de Neve e ela acompanhou
atentamente.
365
No início, Maria Clara estava preocupada em não se lembrar da história completa
e a presença de sua mãe também influenciou um pouco, pois, em algumas situações ela
corrigia a filha na intenção de ajudar, mas, a deixava um pouco nervosa. Tive de saber
regular a participação de sua mãe durante as conversas para que sua interferência não
comprometesse o resultado, ao mesmo tempo, procurei não ser invasiva dando mais tempo
de abertura para que a criança se sentisse à vontade para continuar seu processo de criação.
Aos poucos, a mãe percebeu sua influência e deixou que Clara elaborasse sua fala e suas
reflexões sozinha. Partimos para a seleção das imagens. Maria Clara começou pela cena
em que a bruxa má estava de frente para o espelho.
MC - ela é a madrasta má. Continuou a narrativa e exclamou: - Nossa, esse computador é gigante! (Falou quando viu a quantidade de imagens que a tela
poderia mostrar). MC - Ai que linda! (Referindo-se a imagem de Branca de
Neve com os animais). MC - Olha esse vídeo da história! (Maria Clara percebeu que uma das imagens se tratava de um vídeo e pediu para assistir).
P – Mas, será que esse é do início da história? MC – vamos ver! Taramram taramram... (assistimos ao vídeo, em seguida, reiniciamos a seleção das
imagens). MC - Olha essa daqui é viva olha, essa do final, é essa ficou legal
porque a cor botaram viva! Até então eu não havia lhe dito que iríamos fazer um livro, mas, ao perceber que estávamos juntando imagens referentes à
história, ela tentou descobrir minha intenção e orientou: MC – olha aquela que
ela foi chamar os animais... tu bota aí pra..., como se fosse um caderno de anotações só que dentro do computador pra botar as fotos, aí depois [...] bota
a ordem aqui. (Ela havia escolhido uma imagem que seria utilizada mais para frente da história e disse que depois a gente a colocava no lugar certo) E de
forma muito esperta, ressaltou a pergunta: - A gente vai fazer um livro é?
Continuei: P – vai! MC – Ah tá, por isso eu escolhi aquela, e se a gente achar uma capa, melhor né! (lembrou que todo livro tem capa e o seu não poderia
ser diferente!) Mas, ofereci duas opções: P – Ou a gente faz um livro ou a
gente faz um cartaz, você decide. MC – eu acho melhor um livro, porque cartaz, sabe ele é muito grande, é difícil de fazer [...].
Neste relato, Maria Clara demonstra sua inteligibilidade ao descobrir por si só, o que
estávamos fazendo. Propositadamente, não revelei que se tratava da produção de um livro, até
mesmo porque ainda não sabia se os procedimentos dariam certo. Mas, para minha surpresa,
ela imediatamente percebeu, demonstrando alto nível de sensibilidade e percepção. Esse trecho
também demonstrou sua capacidade em fazer conexões entre o passado e o presente, ao
organizar, cronologicamente, os fatos.
Continuamos com a busca e quando chegou à cena do caçador, Maria Clara disse: MC - Nãoooo, meu Deus do céu! Eu que num quero, tô me
assustando de medo! E continuou: [...] É o caçador, só que botaram a
cara dele feia, embuchada né [...] mas, na foto que a gente assiste ele
366
tava muito mais bonitinho né (e fez uma carinha engraçada). Então
procuramos outra imagem. MC: Coloca Branca de Neve fugindo do caçador, tia! Imediatamente, o fiz, e apareceram inúmeras imagens na
tela do computador, no entanto, não satisfeita com o que via, me pediu
para alterar a frase da busca. MC: Tia, muda a frase para: “o coração de Branca de neve com o caçador, porque não apareceu aquela imagem que
tem o coração na caixinha”. Então, fiz a “troca” e ela encontrou a
imagem que queria. Da mesma forma ocorreu com as cenas da madrasta má. Eu mostrava algumas imagens da bruxa com uma verruga no nariz
ou fazendo caretas, aí ela já tratava de ir logo cortando, antes mesmo que eu perguntasse se ela queria. P – Quer a bruxa? MC – não P – essa bruxa
bem aqui? MC – não! A bruxa ela tá feia, veia, verrugada, “fea”. Dando
continuidade, mostrei as imagens lado a lado e perguntei se estava faltando algo. Ela respondeu: MC – Humm, tá faltando algumas partes!
Aí voltamos ao Google Imagens e ela visualizou a foto do príncipe
beijando a Branca de Neve e começou a bater palmas e a “cantar”: MC – bóota, bóota, bóota!!! [...] ah ficou legal! Bóota, bóota! E ficou
repetindo - Beijinho na boca, beijinho na boca, beijinho na boca (e soltou vários beijinhos estalados no ar para que ficássemos rindo dela. Quanto
mais ríamos, mais ela fazia gracinhas). Seguimos com a história e ela foi
conferindo os lugares das imagens e as partes que faltavam.
Com base neste trecho, nota-se que Maria Clara sabia exatamente, organizar a ordem e
os sentidos da história da Branca de Neve, às vezes, percebia que algum fato havia ocorrido
antes do outro e prontamente, modificava a sequência de sua fotomontagem. Ela se surpreendeu
com suas escolhas e falou: MC – “Aêee a gente já botou um monte de foto, nossa mal a gente
começou esse trabalho e já tá com um monte de foto! Muitas!”.
Em alguns momentos Maria Clara manuseou sozinha o computador para fazer buscas,
isso facilitou o processo de seleção e montagem do “livro leitura-imagem”, aliás, em
determinados momentos, ela até dispensava a minha ajuda, “- deixa que eu faço, tia, eu já sei
como é”, então ela selecionava a imagem e ela mesmo colava no Word, só quando realmente
não conseguia fazer algo é que ela me solicitava.
Através do memento, Clara reviveu a história, aflorou sentimentos e nos ofereceu outras
formas narrativas para a vida de Branca de Neve. Sistematicamente, esse processo ocorre
quando “ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os
elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O olhar reconstitui a dimensão do
tempo. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos”
(FLUSSER, 1998, p. 28).
Como visto no trecho narrativo anterior, o vaguear do olhar de Clara fazia conexões
entre os elementos constitutivos da história dando sentido à sua narrativa. Sempre muito atenta
aos detalhes das imagens, escolhia as mais coloridas, “vivas” e “alegres”, como ela dizia. Com
desenvoltura, Maria Clara recontou imageticamente a história da Branca de Neve.
367
Veiga Simão, Frison e Abrahão (2012, p. 60) entendem este processo de construção
criativa da criança a partir do conceito de autorregulação da aprendizagem que parte do
pensamento freireano para explicar a capacidade crítica do indivíduo em tomar como objeto de
reflexão a sua própria curiosidade, justificando-se nas palavras de Freire (1997, p. 53):
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao
desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante
do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos,
acrescentando a ele algo que fizemos.
Após a seleção das cenas, imprimi as imagens selecionadas e a entreguei para que
montasse seu “livro leitura-imagem”, ela conferiu a ordem e eu grampeei as páginas para
confeccionar o livro. Em seguida, perguntei se estava faltando algo, ela disse logo: “- a capa, é
a capa! (pulando sem parar...) deixa eu escolher a imagem da capa! Tia”, e logo pediu para
pesquisar no google novamente. Mas, surpreendentemente, Maria Clara queria fazer uma capa
igual aos livros paradidáticos convencionais e foi me dizendo o que queria acrescentar,
inclusive sugerindo o seguinte título: “A história grandiosa da Branca de Neve contada por
Maria Clara”. Ao final, o livro leitura-imagem contou com 22 imagens e uma capa. Por sugestão
de sua mãe, Maria Clara fez um vídeo para postar em seu instablog
“@achadinhosdemariaclara”, acompanhado da seguinte narração:
MC - Boa noite genteee, aqui quem tá falando é a blogueirinha Maria Clara, dos achadinhos, e hoje eu fiz um livro da Branca de Neve gente, essa é a capa
e olha, todo livro aqui reformado, todas as páginas que ele tem aqui reformada
e essa é a parte do final, tem cada uma das páginas lindas gente. A gente criou a mando de uma tia e eu, eu criei, eu fui pegando as páginas e juntando, ai eu
copiei e... e... tarãaaamm, o livro, é só colar e vira um livro! Beijão gente! uuuunnnmaaaaaaahhh! (e solta um beijo para seu espectador).177 (extraído dos
@achadinhosdemariaclara).
Nesta postagem, Clara deixa transparecer a satisfação em ter sido a autora do livro, ela
ficou orgulhosa em ver seu produto final e não escondeu a alegria, após a gravação ela passava
e repassava as folhas contemplando sua criação.
As filmagens e postagens de Maria Clara são produzidas pela mãe, no entanto, a
criatividade do texto falado é da própria criança. Maria Clara elabora suas falas de maneira
177 Para tentar uma transcrição aproximada do som do beijo, utilizarei “uuuunnnmaaaaaaahhh!”.
368
espontânea, recebe poucas instruções da mãe e produz seus vídeos de acordo com suas
subjetividades e interpretações. De modo singular, ela vai dando sentido às suas experiências
através de pequenas narrativas videográficas. Geralmente, demonstra confiança em si e
dispensa a ajuda da mãe: “- Eu já sei, mãe, deixa, deixa!”, pois, prefere criar suas próprias falas
sem interferências.
São postagens bem curtas, mas muito expressivas, características próprias de vídeos
dessa natureza. Ela consegue controlar o tempo de gravação ao conteúdo de sua fala. Sempre
inicia com a expressão “gente” que representa os espectadores do vídeo, e ao final sempre solta
um “beijo” gesticulando com as mãos em sua boca, uma forma carismática de se sentir próxima
de quem a está vendo. Pessoalmente, Clara é muito carinhosa, respeita as convenções cordiais
(boa tarde, obrigada, com licença, por favor, etc...) e é muito comunicativa. Segundo relatos de
sua mãe, desde pequenina ela já demonstrava essa preocupação em ser agradável e gentil com
as pessoas: MC - “Maria Clara sempre foi assim, muito educada, atenciosa, carinhosa. Ela desde
novinha sempre gostou de agradar as pessoas, de dar beijo, abraço, assim, muito carinhosa
mesmo”. Ao final desse encontro, Maria Clara logo fez uma cobrança: MC “- E agora é a da
Frozen, tia?” Respondi: P “- por hoje é só a Branca de Neve. Você não está cansada?”, ela
respondeu MC “- Na, na-ni-na-não! Eu quero a da Frozen também tia! Vai, vai, vai, por favor!”.
Mas, já era quase 10 horas da noite, então expliquei que realmente só poderíamos fazer a
história de Frozen no próximo encontro. Ela entendeu e me deu um abraço. Fizemos um
pequeno lanche e as deixei em casa. Maria Clara ainda estava entusiasmada com sua produção
e não via a hora de ver o livro da Frozen, mas, eu sabia que se iniciássemos, ela iria ficar cansada
e não conseguiria terminar, então, para evitar quebras no processo de construção, preferi deixar
para o próximo encontro.
A organização do “livro leitura-imagem” da Branca de Neve evidenciou a condição
criativa do pensamento infantil, estimulou a produção de conhecimento através da interpretação
da imagem. Ao mesmo tempo em que Clara contemplava a beleza estampada nas cenas, ela ia
dando sentido à história. Objetivamente, controlava o que deveria ou não fazer parte de sua
criação, importante destacar que, não foi preciso muita explicação sobre o processo para que
ela entendesse a proposta. De maneira muito ativa, ela refletia sobre cada imagem e articulava
as cenas em seu pensamento para em seguida “encaixar” no “lugar certo”. Esta forma de
aprendizagem autorregulada revela a atuação autônoma de Clara, sua capacidade de realização,
organização e discernimento, características presentes no processo de narração autobiográfica,
tendo em vista que, “a autorregulação da aprendizagem é articulada e reforçada pelo
entrelaçamento de experiências narrativas com as estratégias de ensino” (FRISON e SIMÃO,
369
2011, p. 203).
A desenvoltura de Maria Clara, me instigou a dificultar um pouco mais o processo, pois,
nesta primeira etapa ela quem decidia sobre as cenas e a quantidade de imagens que usaria,
além disso, fizemos uma leitura sobre a história da Branca de Neve e assistimos parte de um
vídeo. Já nesta segunda etapa, tentei perceber sua capacidade de articular as reminiscências do
filme com partes das cenas impressas em imagens para colorir, aumentei a quantidade de
imagens e as espalhei, aleatoriamente, sobre uma enorme mesa. Em seguida, pedi para Clara
ordenar as cenas e montar seu segundo “livro leitura-imagem”. Imaginei que ela iria querer uma
capa, e tive a iniciativa de escolher uma imagem e montar a capa com os mesmos dados do
livro anterior. Esse encontro foi feito na casa de Clara.
Assim que cheguei na casa de Clara, ela me recebeu com um enorme sorriso e um forte abraço. Para minha surpresa, ela estava vestida de
Elsa (personagem do filme Frozen) com um longo vestido azul cheio de brilho e uma coroa na cabeça. P – Nooosa, Clara! Você está linda!
MC – eu adoro essa roupa da Frozen, vai ser a roupa do meu aniversário. P – eu também trouxe uma surpresa para você! Olha! MC – a capa da
Frozen, que lindaaa, amei!
Interagi um pouco mais sobre o filme e iniciei a atividade pedagógica. Espalhei sobre
uma mesa 35 figuras do filme Frozen, eram desenhos para colorir. Para Sarmento (2007, p. 36)
“o desenho é especialmente apropriado para aceder as formas de expressão de crianças”, no
entanto, só farão sentido se estiverem contextualizados nas culturas infantis, pois, estruturam-
se a partir de quatro pilares: “a cultura lúdica, a fantasia do real, a interactividade e a reiteração”
(SARMENTO, 2007, p. 36). Ela ficou um pouco apreensiva quando viu a quantidade de
imagens, mas, aos poucos foi se familiarizando com as cenas.
P - Você tá vendo aí um monte de imagem né. Essas imagens são de
que? MC - Frozen. P- Você já assistiu? MC – Já, eu assisti umas 10 vezes alí (apontando para a televisão/DVD). Eu pedi para que ela desse
uma olhada geral nas imagens para ver se conseguia lembrar-se da história, mas ela já havia observado atentamente, enquanto eu ainda
estava espalhando as imagens na mesa. Então disse: MC - Já que não tem as primeiras, todas as imagens primeiras, eu sei que essa é uma das primeiras, que ela joga o gelo e acaba atingindo a irmã (e faz o gesto de
jogar gelo com a mão), aí depois a irmã pede para ela fazer o gelo de novo. P – Será que não tem outra antes? Vamos ver. (circulamos em
volta da mesa conferindo outras imagens) MC – Essa daqui é lá no final... essa aqui é no começo quando ela joga [...] faz uma barreira pra
370
ninguém passar e ela corre! [...] – Essa daqui não tem na história não, eu acho que inventaram essa imagem.
Através desse passeio visual, Maria Clara foi organizando mentalmente a posição das
imagens, inclusive, percebeu que duas das imagens não faziam parte do filme original. Em
seguida, pedi para ela separar as imagens em ordem para montar o “livro leitura-imagem”. Ela
rapidamente pegou as primeiras imagens e foi narrando as partes referentes à história. No
entanto, diante daquela quantidade de imagens, ela comentou com uma vozinha bem baixinha,
para não me magoar: MC – ai meu Deus do céu, vai dar muito trabalho! (E sorriu
discretamente). Mas, não desistiu. Ficava circulando entre as imagens, conferia o que já tinha
colocado em ordem, fazia conexões entre as imagens, sempre narrando cada parte da história.
Sempre que achava uma imagem, ela ia “encaixando” no “livro”, mantinha ou alterava a ordem
das imagens até encontrar o lugar certo de cada uma.
P – Nossa você tá conseguindo! Você é muito boa nisso viu! MC – Eu assisti o filme, várias, várias e várias vezes (girando o dedinho para o
alto). Nesse momento ela encontra uma imagem e tenta encaixar, mas fica pensativa e desiste, volta a circular pela mesa para encontrar outra
imagem, que provavelmente era a que estava pensando. MC – Tem algumas imagens que eu posso até ter pulado, por isso estou corrigindo
aqui. (estava conferindo a ordem das imagens). MC - essas aqui são do Olaf (personagem do boneco de neve), estão mais próximas e eu
esqueci de botar.
O cuidado com que ela desempenhava seu trabalho era surpreendente, ela prestava
atenção aos mínimos detalhes da imagem, entre uma volta e outra na mesa ela pulava,
cantarolava e fazia gestos com as mãos como se estivesse representando a Elsa, mesmo cansada,
encontrava ânimo para continuar, o que demonstrou ser uma criança determinada e persistente.
As imagens se ofereciam aos olhares e subjetividades de Clara à espera de serem revividas,
sentidas e compreendidas, e assim, ela experienciava o memento.
Ao fim da atividade, Maria Clara comemorou sua produção e foi correndo pegar o livro
da Branca de Neve, para que eu fizesse uma foto dela, ergueu os dois livros e disse: – agora
tenho dois livros feitos por mim, olha mãe, consegui! Veio em minha direção e disse: - Posso
pintar tia? Respondi: Claro! Você pode fazer o que quiser! São seus. Ela saiu em direção ao
quarto, pegou seu estojo de lápis de cor e começou a pintar. E conversamos mais um pouquinho:
371
P - E se você fosse uma princesa, que princesa seria? MC - Eu ia ser a Frozen
misturada com Branca de Neve e misturada também com a princesa dos animais e a princesa da natureza e a princesa da chuva, que as vezes quando
eu fico chorando eu acabo invocando a chuva. P - Quer dizer que você tem
poderes? MC - Uhum... P – deixa ver se eu entendi! Por exemplo, a Frozen é a sua princesa predileta, mas você é a princesa Clara que tem outros poderes,
que junta o poder de várias princesas, é isso? Eu entendi? MC - Uhum... P –
Me conte então sobre essas mágicas! MC - Uma mágica, que faço é assim, quando eu chego em algum lugar, de animal eles correm tudo pra mim, é que
eu tenho um jeito que eles não querem mais sair de perto de mim, uma vez um animal tava preso, aí eu colocava a mão e ele colocava a patinha. P - Eu vi que
você foi na Bica [um zoológico de João Pessoa], brincou com os animais, eu
vi você segurando uma cobra. MC - Sim, eu brinquei com a cobra. P - Você não tem medo não? MC - Não, a bichinha não pica não, só se enrolou em mim.
P - Então você tem um poder mesmo de conquistar os animais? MC - Eu não
sei muito, mas acho que tenho, pois consegui colocar uma cobra no braço e no pescoço sem ela picar, isso é muito difícil.
A hora estava avançada e não pude acompanha-la na pintura. Na despedida, mais uma
vez, ela me deu um abraço. E não perdeu tempo em perguntar: MC - A senhora volta quando?
Respondi: P - na próxima semana. Aí verei sua pintura. Agradeci, dei os parabéns pelos livros
e fui embora.
A estratégia do “livro leitura-imagem” de Frozen foi um pouco exigente, até cansativa,
reconheço que a quantidade de imagens dificultou a atividade. A criança mesmo cumprindo sua
“missão” ficou nitidamente cansada. Por outro lado, essa atividade desenvolveu o movimento
de interpretação memento, onde a criança teve a oportunidade de reviver a história, se
sensibilizar com as cenas e compreender o contexto geral da narrativa. Demonstrou também o
poder expressivo das imagens em comunicar algo, em carregar pensamentos, em desvelar
memórias (SAMAIN, 2012, p. 158).
As imagens falam por si, são registros narrativos de uma história, que neste caso, fazia
parte da cultura infantil de Maria Clara. Ela conhecia intimamente os personagens, as tramas e
os desfechos da história. Em algumas situações ela incorporava a Elsa e fazia os gestos da
personagem, revivendo as cenas. Observei que seu pensamento precedia sua linguagem, antes
de comentar a história ela refletia sobre os fatos, fazendo emergir suas reminiscências. Visto
pela Psicologia do Desenvolvimento, as imagens levaram a criança a adquirir funções
intelectuais, consequentemente, a formular o pensamento e produzir linguagem (VYGOTSKY,
1991, p. 44), passando do nível de desenvolvimento real para o nível de desenvolvimento
potencial, ou seja, as imagens tiveram função mediadora.
Minha preocupação foi proporcionar à criança algo que a atraísse, algo que a estimulasse
e a desafiasse. Gostaria que ela produzisse conhecimento através de sua sensibilidade, com
artefatos próprios da sua cultura, com isso, a necessidade dela própria escolher as personagens.
372
Durante as duas propostas a incentivei em cada descoberta, deixei que ela mergulhasse nas
histórias, vivenciasse as cenas e sentisse as emoções de cada personagem. Deixei sua
imaginação fluir, suas reminiscências emergirem e sua criatividade desabrochar, para que o
memento pudesse de fato, se materializar nesta experiência. Buscando assim, reflexionar estes
procedimentos na dimensão da Fotoetnografia autobiográfica, que seria o próximo passo da
pesquisa. Então, ao mesmo tempo em que Maria Clara vivenciava a experiência do memento,
eu também adentrava em minhas próprias percepções e reminiscências, dei tempo à minha
ansiedade em conhecer as “verdades” daquela realidade e mergulhei profundamente no
universo de Maria Clara em seu reino de Luz que, cada vez mais, me atraia. Segui os sábios
conselhos de Larrosa (2002, p. 24) e decidi “parar” para ver, sentir, contemplar e compreender
a “experiência”, pois,
[...] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto
de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).
Foi preciso parar para estar sensível às particularidades concretas que davam sentido à
ação da criança e me ajudariam a desvelar a realidade a partir de uma escuta sensível e apurada
junto à criança-sujeito. Após esse mergulho no universo luminoso de Clara, entendi que ela
tinha muito mais a me ensinar do que eu poderia imaginar aprender. Percebi que sua expectativa
era sempre uma mensagem de “seja bem-vinda”, mas, ao mesmo tempo soava como uma
cobrança aos meus ouvidos, a de que tudo deveria ser “divertido” para ela. Eu precisava fazer
daqueles momentos, uma brincadeira e não um trabalho!
Este era meu papel, minha responsabilidade enquanto mediadora, então, por vezes
refleti sobre como os procedimentos deveriam ser realizados, como eu poderia discernir as
aberturas e os enquadramentos necessários a cada situação específica. Principalmente, porque
eu sabia que essas estratégias não poderiam ser cansativas e demoradas, portanto, este “saber
jogar” e esse “saber olhar” eu tive de aperfeiçoar em campo, primeiro, através das negociações
que envolveram confiança, respeito mútuo e ética; segundo, reavaliando constantemente, a
sistemática do plano de ação, estando sensível aos desejos e limites da criança, suas percepções
e interpretações. Ou seja, toda essa sensibilidade deveria ser minha, já que a preocupação de
373
Clara em não me magoar era nítida, pois ela queria ser gentil, mesmo que essa gentileza lhe
custasse o tédio, o cansaço e a falta de vontade em continuar a atividade (como observado no
final da produção do livro leitura-imagem da Frozen).
Considerando as experiências anteriores, antes de iniciar a Fotoetnografia
autobiográfica, decidi conviver um pouco com Maria Clara, brincar com ela, conhecer seus
brinquedos, suas histórias, sua convivência com a família, entre outras situações. Desse modo,
durante três encontros consecutivos, dias 17, 21 e 24 de fevereiro de 2017, apenas brinquei,
observei e conheci seu grande “reino mágico”, dando continuidade assim, ao diário
fotoetnográfico.
1.2 Cantos... Um reino encantado chamado Luz
A pesquisa com criança nos desafia a “conhecer as crianças a partir delas mesma, ou
seja, no convida a efetuar um exercício de observação, percepção, penetração, participação e
interação com elas na configuração coletiva das condições de existência” (MARTINS FILHO
e DIAS PRADO, 2011, p. 9). Assim, busquei no “aqui e agora” da criança, reconhecer as
singularidades da infância em seus modos de ser e de agir; entender as produções culturais que
envolvem suas construções subjetivas; e sobretudo, suas formas de protagonismo e participação
no ambiente familiar, considerando que as crianças atuam como “Partícipes da história, em um
processo não somente reprodutivo, mas como sujeitos ativos em uma apreensão criativa”
(MARTINS FILHO e DIAS PRADO, 2011, p. 2-4). Nesse movimento de pesquisa, Maria Clara
foi a principal interlocutora, ela direcionava as nossas conversas, decidia o que faríamos e se
expressava da maneira que queria.
Suas decisões afetavam diretamente o desenvolvimento da pesquisa, me dando suporte
para decidir o melhor caminho para produção da sua fotoetnografia autobiográfica. Nesta
mesma perspectiva, para produção da narração fotoetnográfica também foi necessário
considerar minhas próprias percepções, traçando as molduras que enquadrariam as cenas que
seriam magicizadas em fotografias (AUMONT, 2016, p. 158), com o objetivo de contar a
história de Maria Clara.
Nestas linhas, então, procuro descrever em low key e contextualizar em High key as
composições narrativas produzidas durante a geração de dados através de registros – escritos e
visuais que funcionaram como um diário fotoetnográfico. Neles, fui enquadrando momentos e
experiências do campo de pesquisa. Na óptica da pesquisa fotoetnográfica, texto e imagem são
naturalmente diferentes, entretanto, “no limite do texto, a fotografia pode avançar ‘iluminando’
374
certas passagens e, no limite da fotografia, o texto cumpre um papel analítico insubstituível”
(ACHUTTI e HASSEN, 2004, p. 227, grifo dos autores).
Portanto, entre textos escritos e visuais, estive atenta às redes de significação da criança
para desvelar suas formas de ser, viver e conviver em seu contexto sociocultural familiar.
Inspirada no método etnográfico, a descrição densa foi constituída de forma heurística e
transdisciplinar, fazendo opções metodológicas mais adequadas à pesquisa fotoetnográfica.
Desde modo, no “estar lá” e “estar junto” evitei fazer anotações, tentei registrar em vídeo e
fotografia os momentos em que passamos juntas, para só depois - no “estar aqui”, poder refletir
as experiências, rever as cenas e dialogar com os fundamentos teóricos (GEERTZ, 1989, p. 58).
O contato direto com a realidade desta criança proporcionou conhecer as produções
culturais de um tipo de infância que vive em constante interação com outras culturas – adultas,
visuais, midiáticas, constatando assim, que a criança se encontra em um espaço cultural
intermediário, fronteiriço, que se constitui, initerruptamente, de forma contingencial e híbrida,
consequentemente, produzindo identidades plurais e descentralizadas (HALL, 2011, p. 34-46).
O “reino encantado” de Maria Clara se constitui nesse espaço híbrido entre-cultural,
cheio de artefatos, informações, visualidades, emoções, experiências e significações que
circulam nas zonas fronteiriças entre universos adultos e infantis. As várias identidades de Clara
revelam a potência infantil de ser criança e exercer sua participação na sociedade de forma ativa
e crítica.
A infância em que Clara habita pode ser entendida a partir das duas concepções de
infância colocada por Kohan (2009, p. 25) ora como uma etapa sequencial, histórica, marcada
pelo tempo de progressão e ora como experiência, como “[...] ruptura de la historia, como
revolución, como resistencia y como creación”, ou seja, como uma infância que
[...] atraviesa e interrumpe la historia, que se encuentra en devenires
minoritarios, en líneas de fuga, en detalles; infancia que resiste los movimentos concéntricos, arborizados, totalizadores, totalizantes y
totalitarios: infância que se torna posible sólo en los espacios en que no se
fija lo que alguien puede o debe ser, en que no se antecipa la experiencia del otro. Espacios propicios para esas infancias son aquellos en que no hay lugar
para los estigmas, los rótulos, los puntos fijos (KOHAN, 2009, p. 25).
Em outras palavras, trata-se de uma infância que não cabe em discursos pré-fixados,
dada sua singularidade, complexidade e subjetividade. Clara habita uma infância que é única,
mas, não está isolada, tampouco, fixada em modelos culturais, é uma infância que se adapta,
rapidamente, aos “entre-lugares” dos quais faz parte. A criança de Clara contribui ativamente
375
para a produção e mudança cultural (CORSARO, 2009, p. 31), ela participa, reflete e interpreta
a realidade de acordo com suas percepções e inteligibilidades, está sempre pronta para
surpreender e desconstruir nossas apreensões sobre ela. Clara quer escolher, opinar, criar,
decidir sobretudo, o que diz respeito a ela, e se isso não for possível, ela é capaz de transgredir
ou resistir ao que não lhe convém.
Clara exerce seu protagonismo nas relações de alteridade que estabelece na cultura de
pares, entre adultos e com as novas tecnologias midiáticas, é uma criança que representa a
imagem sociológica que estou a comprovar - a da criança protagonista, ou seja, uma criança
que protagoniza sua infância de forma criativa, participativa e empoderada (BUCKINGHAM,
2007; GUIMARÃES, 2016; HART, 1992; KOHAN, 2004; LANSDOWN, 2003; OLIVEIRA,
2007; ROCHA e PASSEGGI, 2012). Esta é, portanto, uma releitura crítica das imagens pré-
sociológicas de criança no quadro estrutural funcionalista (MARCHI, 2011, p, 392) que
considera a criança como ator social e a infância enquanto categoria social, resultados de um
processo de reflexividade moderna (SARMENTO, 2015, p. 35). Para desvelar esse
protagonismo de Maria Clara, contextualizarei um pouco sua história, a partir de relatos
elaborados junto à sua mãe, ao seu pai e à própria Clara, bem como, com base nas investigações
empíricas.
Maria Clara mora com o pai, a mãe e o irmão, estuda em uma escola privada e reside
em apartamento, localizado em um bairro nobre de João Pessoa. Sua família é de classe média,
sua mãe não trabalha, pois, recentemente, vendeu sua loja de roupas. Seu pai é empresário do
ramo de construção civil, mas, atualmente, tem enfrentado as repercussões econômicas da crise
política e financeira em que passa o Brasil. Entretanto, as reservas da família ainda permitem
manter um bom padrão de vida.
Maria Clara é cheia de rotinas, desde pequena sua mãe a estimulou a participar de
atividades escolares, culturais e sociais. Boa parte de sua trajetória de vida pode ser
acompanhada em redes sociais, onde diariamente, sua mãe posta fotografias e filmagens178.
No encontro do dia 17 de fevereiro de 2017 conheci o ambiente residencial de Clara, ela
me apresentou todos os espaços, desde a varanda do apartamento e a vista do bairro, até o
playground, a piscina e o salão de festas. Ela também me explicou como utilizava cada um
desses lugares. Depois retornamos ao apartamento e ela me mostrou seu quarto, suas bonecas
prediletas, seus jogos, suas pinturas, alguns livrinhos infantis, mostrou suas roupas, maquiagens
e seus acessórios como bolsas e presilhas de cabelo, conforme o pequeno trecho narrativo:
178 Detalharei a relação de Maria Clara com as redes sociais no próximo subcapítulo.
376
MC – Esse é o meu quarto, eu adoro meu quarto. P – Nooossa! Que quarto
lindo! Você é bem organizada. MC – Não sou não, eu bagunço tuuuudo! Deixo tudo fora do lugar! (risos) M – Ela tira tudo do lugar, deixa espalhado
na casa inteira (risos), mas quando eu digo pra arrumar, ela arruma. Mas, também fica querendo me enrolar e eu acabo fazendo pra ela. MC – é verdade
(ela ri e balança a cabeça em sinal positivo). P – Mas, Clarinha! Tem de ajudar
a arrumar, fica tão bonito arrumadinho, né? MC – mas, quando eu quero brincar, não dá pra ficar no lugar, eu misturo tudo! (ri e faz gesto com as mãos
para mostrar a bagunça). P – Sério! MC – seríssimo! (todos riram).
Maria Clara gosta de ser engraçada, faz trejeitos com a boca, com os lábios, com as
mãos, muda a voz, está sempre tentando nos fazer rir. Seu quarto é espaçoso, possui móveis na
cor branca, sua cama é bem alta, tem formato de castelo e para subir tem uma pequena escada,
sua cômoda é cheia de acessórios como cintos, tiaras, chapéus, laços, presilhas de cabelo,
óculos, bijuterias, maquiagens e no guarda-roupa, uma série de combinações entre roupas e
calçados. Ela gosta muito de vestidos e saias longas. Sempre combina cores, estilos e acessórios.
Gosta de escolher o que vai usar, pois é muito vaidosa e adora maquiagens, principalmente,
batons, de preferência, vermelhos. Segundo relatos da mãe, Clara é quem escolhe o que vai usar
e/ou comprar, quando for o caso, mesmo que a opinião de sua mãe seja diferente da dela.
Neste mesmo dia, Clara me mostrou alguns desenhos que havia pintado em outras
ocasiões, que estavam guardados como recordação, alguns da escola, outros que ela imprimia
da Internet no computador de seu pai e pintava em casa. Ela tinha figuras de personagens de
desenhos animados como: Pokémon, Monsters High, Kogu, Shopkins, e outros. Inclusive, ela
separou dois que eram do filme Frozen, especialmente, para me mostrar, pois se lembrou da
nossa atividade anterior e estava ansiosa para fazer uma sugestão: MC “- gente, eu acho que
isso aqui da Frozen poderia entrar, ó [...] no caderno da Frozen ó, [...] poderia entrar naquele
negócio da Frozen (se referindo ao livro leitura-imagem), que ela tá soltando gelo pra fazer o
Olaf, só que tá aqui GEO (escola onde estuda) né” (balançou a cabeça em sinal negativo).
Ela pensou em sugerir que eu acrescentasse no livro uma atividade que tinha feito na
escola da personagem Elsa com o boneco de neve Olaf, mas, logo que percebeu o slogan da
escola, recuou e fez um ar de dúvida, como se no livro dela não pudesse ter o nome da escola.
E destacou outro desenho “- Olha, esse daqui é o namorado da Frozen que é um dos guardiões
que também solta gelo, aí como ele faz gelo, foi escolhido o namorado da Frozen” (é muito
comum Clara chamar a princesa Elsa de Frozen).
Clara assistiu inúmeras vezes o filme “Frozen: uma aventura congelante”. Trata-se de
uma história entre duas irmãs muito unidas, que perderam seus pais e foram separadas devido
377
aos poderes “congelantes” de uma delas. Essa história comove as crianças, pois além do enredo,
apresenta muitos musicais emocionantes. A sinopse do filme no site oficial da Disney resume
a história da seguinte maneira:
A destemida e otimista Anna parte em uma épica jornada ao lado do radical
alpinista Kristoff e da sua leal rena Sven para encontrar sua irmã Elsa, cujos poderes gelados condenaram o reino de Arendelle a enfrentar um inverno sem
fim. Numa corrida contra o tempo para impedir o reino de ser destruído, Anna
e Kristoff encontrarão trolls místicos, um divertido boneco de neve chamado Olaf, baixíssimas temperaturas e muita magia em todos os lugares (DISNEY,
2017).
Frozen estreou em 2013, com repercussões mundiais, foi recorde em bilheterias, sendo
a 9ª maior bilheteria da história. Desde então, é aclamado pelas crianças, e seus personagens
principais, as irmãs Elsa e Anna, tornaram-se ícones para as meninas desta geração. Venceu
Oscar de melhor filme de animção e melhor canção original – “Let il Go”, além do Globo de
Ouro de melhor filme de animação, cinco Annie Awards e dois Grammy Awards de melhor
trilha sonora compilada para mídia visual e melhor canção. Em termos de valores, Frozen
arrecadou 400.768,009 dólares na América do Norte e aproximadamente, 873.481,000 em
outros países, arrecadando mundialmente em torno de 1.274.219,009 dólares. Atualmente,
ainda exerce forte influência nas culturas infantis, pois, desencadeou uma série de produtos e
artefatos culturais que carregam sua marca imprimindo seus personagens, como brinquedos,
roupas, calçados, bijuterias, acessórios, produtos escolares – agenda, cadernos, lápis, mochilas,
e muitos outros produtos comerciais.
São estes artefatos da indústria cultural que segundo Kelnner (2013, p. 121) têm
assumido um poder cultural enorme na sociedade contemporânea, “Eles são parte do aparato
cultural que tem produzido uma crescente privatização, comercialização e reificação de nossa
cultura” sendo necessário, portanto, que esta discussão adentre nos espaços educacionais para
que através de um alfabetismo crítico da cultura popular, a criança possa adquirir formas de
resistência às imposições culturais que visam unicamente, o estímulo ao consumo.
Não que eu seja contra a produção de artefatos direcionados à infância, eles são
necessários, mas, o que está em jogo é a exploração econômica absurda que está por trás dos
apelos midiáticos de grandes empresas, o que configura o capitalismo de consumo (KELNNER,
2013, p. 108) e dissemina uma visão de mundo baseada em valores e comportamentos
consumistas. Entretanto, concordo com Sarmento (2007, p. 26) que as culturas da infância estão
378
“para além dos processos de colonização cultural dos mundos de vida das crianças pela indústria
cultural da sociedade capitalista”, pois as culturas que se produzem no cotidiano social também
constituem as “ações dotadas de sentido, os processos de representação e os artefatos
produzidos pelas crianças”, ou seja, “este processo é criativo tanto quanto reprodutivo", dessa
forma,
O que aqui se visibiliza neste processo é que as crianças são competentes e
têm capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si
próprios, da natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidarem com tudo o que as rodeia
(SARMENTO, 2007, p. 26).
Mas, voltando ao diário fotoetnográfico, Clara continuou me mostrando os desenhos e
de repente, algo chamou minha atenção:
P – Ah! Esse desenho foi do Geo né? MC – éeee, quando eu era criança, ó. P – Quando eu era criança? MC – Hurrum! P – E você é o que agora? MC –
Agora sou, éeee... Não respondeu e continuou: MC - Quando eu era criança eu tinha pintado aquela mesma imagem que você, ó. P – Foi? MC – tá aqui a
imagem. P – quando tu era criança? MC – Hanrram! P – E você é o que agora?
Pensou e respondeu: MC – Eu eraaaa quase-bebê! P – Ahh, e você ainda é criança agora? MC - Hurrum! P – você acha que a pessoa deixa de ser criança
com que idade? Einh Clarinha? MC – 11 anos? P – é mesmo! Com 11 anos!
Quando Clara refere-se a si própria no passado como criança, conferindo-lhe o
significado de “quase-bebê”, ela reconhece que cresceu e demonstra que entende a passagem
do tempo em sua própria história de vida, com se “agora” ela fosse uma criança “grande”. Em
várias ocasiões essa diferenciação de como ela se via pequena e como ela se vê atualmente
grande, pôde ser percebida. Às vezes, ela até fazia críticas ao seu próprio comportamento como
“não sei porque eu fiz isso!”, “Meu Deus como eu tirei essa foto assim... que horror”. Visto
pela pesquisa biográfica, o ato de narrar as próprias histórias, está na “origem do conhecimento
de si” e essas narrações me ajudaram a compreender que ela, enquanto narradora de si, contribui
diretamente para o próprio processo de desvelamento de sua autobiografia (PASSEGGI,
NASCIMENTO e OLIVEIRA, 2016, p. 115), consequentemente, para a produção da
Fotoetnografia.
Se é verdade que o humano, desde tenra infância é um ser contador de
histórias, capaz de refletir sobre suas experiências, a investigação que faz uso das narrativas de si, como objeto de estudo e método de pesquisa tem um
379
duplo mérito: levar a criança a refletir sobre ela mesma na atividade de
biografização e o pesquisador a refletir sobre si mesmo ao escutar, ler, analisar, publicar as narrativas que lhe são contadas. De modo que a atividade
de biografar-se não traduz apenas o conhecimento que adquirimos sobre o
objeto de estudo, mas nos ajuda a reelaborar o conhecimento de nós mesmos enquanto pesquisadores e a rever nossas responsabilidades inter(intra)
geracionais (PASSEGGI, et al, 2014, p. 89).
Quando perguntei a Clara qual sua brincadeira preferida, ela, novamente, voltou a falar
de “bagunça”. Eu tentei explorar um pouco mais sobre seu conceito de “bagunça” e ela me
explicou:
P – Ô Clarinha [...] e quais são as suas brincadeiras prediletas? MC – aí
agora..., você me pegou... naaão sei! (parou e pensou, gesticulou com o dedo
indicador em seu rosto) P – não sabe? Como assim? Depois de um minuto respondeu... MC – fazer bagunça?! (muitas risadas) MC – uma das coisas que
eu mais gosto de fazer é fazer bagunça (mais risos) P – éeee? (risos) E como é a bagunça que você faz? MC – às vezes eu bagunço o quarto, às vezes eu
bagunço a sala, às vezes eu bagunço a casa inteira! P – afff! (risos) MC – Né,
mãe? (Pergunta a sua mãe que também está rindo da situação) P – Mas você ajuda a arrumar também a bagunça? MC – olhou para mim, olhou para mãe,
riu sem emitir som e balançou a cabeça em sinal negativo. P – Nãaaao? (risos)
MC – (balançou a cabeça) eu odeio arrumar o quarto (risos) P – Ei Clarinha, mas qual é a brincadeira? tu faz a bagunça com que brincadeira? Com que
brinquedo, sei lá... MC – ahh, na verdade, eu pego a boneca e quando fica chato, eu jogo a boneca em qualquer lugar, aí depois eu pego outra coisa pra
brincar e jogo em qualquer lugar, quando fica chato eu vou pegando as
coisas...
Falando em bagunça, o próximo excerto também demonstra a irreverência e criatividade
de Maria Clara em narrar de forma cômica o seu comportamento, que seria de desobediência à
mãe, com isso, ela consegue estabelecer o controle emocional da situação, fazendo com que o
engraçado, sobressaia à desobediência. São estratégias que ela apreende do universo adulto,
ressignifica ao seu próprio interesse para poder resolver seus problemas e satisfazer suas
vontades.
P – Clarinha! Tem mais algum brinquedo que você queira me mostrar? MC –
tem mais uns 1800... (falou bem rápido) P – o quê? MC – tem mil e oitoocentos brinquedos guardados no meu banheiro tudo bagunçado. [...] é assim..., se a
mamãe fala: “venha buscar esse brinquedo!” Eu abro a porta do banheiro e
jogo lá dentro, quero nem saber, fecho a porta e tchau! (fazendo os gestos comas mãos) Ou eu jogo na minha cama, ou eu jogo no chão, ou em qualquer
lugar que eu quero. Assim, pego um brinquedo abro aporta e jogo! M – aí é
éee? Por isso, é bom saber por isso que tá a maior bagunça! Tá tudo bagunçado! Eu arrumo tudo e ela vai lá e joga1 Essa Clarinha! (Clara começa
a rir e a cantar e dançar). MC – é! nem imagina o meu banheiro... A maior bagunça (me disse bem baixinho e eu comecei a rir!).
380
Clara sabe que o fato de fazer bagunça é transgredir padrões que se enquadram no “bom
comportamento”, mas, mesmo assim, assume-se diante da mãe como “bagunceira”. Esta atitude
intercepta uma subversão ao modo de produção simbólica de uma organização doméstica, mas,
ao mesmo tempo, revela a capacidade de autoconhecimento de Clara. Ao assumir tal
comportamento, ela também demonstra sua irreverência e sua forma de enfrentar a solidão de
não ter uma companhia para brincar, a bagunça que faz indica sua capacidade de criar novos
suportes para sua imaginação, para sua brincadeira. Na lógica adultocêntrica a bagunça é uma
prática de “desobediência”, uma forma de desorganizar o ambiente, já no contexto da cultura
infantil, a bagunça pode ser vista como uma forma de expressão da criança, na bagunça ela cria,
aprende, organiza modos próprios de compreensão da realidade, interage com o ambiente
criando condições de exercer sua participação, seu protagonismo.
Neste sentido, para entender o universo infantil, é preciso considerar suas produções
para além de uma visão adultocêntrica de realidade, é preciso entender a criança a partir dela
mesma, tendo em vista que “as crianças interpretam o mundo e simbolizam as suas vivências e
experiências de formas e linguagens diferenciadas dos adultos, caracterizando-se assim, pela
sua heterogeneidade e diversidade no tempo e no espaço” (TOMÁS, 2007, p. 104).
No dia 21 de fevereiro, quando chego na casa de Clara, me surpreendo com o que ela
tinha organizado para me receber. Pegou vários brinquedos, espalhou sobre a mesa, uma
coleção de figurinhas do Pokemón, algumas bonecas Barbie e Monster High e alguns desenhos
que ela havia colorido. Ela queria me apresentar todos os seus brinquedos prediletos. Então
fiquei por alí, conversando com ela e “brincando” com seus brinquedos. A mãe de Clara gostava
muito da nossa presença, sempre atenciosa em nos receber (eu e minha auxiliar)179, também
nos falava um pouco das rotinas dela e da família, eram momentos descontraídos e de muito
diálogo. Então, durante a brincadeira, Clara foi me contando mais um pouco sobre seu jeitinho
todo especial de ser Clara e tão clara!
MC - Essas são minhas bonecas ó. Essa daqui eu dei muito trabalho pra painho
comprar (Mostrou-me uma Barbie borboleta que quando abria seus braços as
asas apareceriam e quando apertava um botão ela girava e brilhava). P – Que linda! MC - Na verdade, não era pra ela tá assim (com as asas abertas) era
surpresa, ó... P – Ah... Entendi, então repete! Faz de conta que eu não vi nada! MC – (me repetiu) Faz de conta que... por favor né! Pera! Cadê não tá indo,
ah tá indo agora! (e arrumou a boneca. Continuou a apresentação) MC – Uma,
duas e meia e... vou apagar ela então... (apertou o botão e a boneca abriu as asas, depois me explicou como funcionava) MC - Na verdade eu levanto os
179 Maiores detalhes na página 435 deste ensaio.
381
braços dela então, olha se eu levantar mais os braços aí ó... já afrouxou (as
asas), [...] ó vou mostrar de novo, primeiro você tem de girar isso aqui. P – Há! não acredito não, é na cintura da boneca é? MC – é, eu não sabia! Antes
eu pegava e não abria (as asas) aí você aperta aqui ó... aí um, aí dois, aí três e
aí quatro! (mostrando como girar o botão). Tá vendo ó, de acordo com isso aqui. P – Nossaaa! Então o segredo é esse? (ela olha como se isso tivesse sido
uma revelação incrível) MC – É. P – então bora fazer uma foto bem linda com
sua boneca? MC – tá! (arrumou a boneca novamente e eu registrei a cena).
Clara percebeu que estava me ensinando e foi, detalhadamente, me explicando como
deveria fazer para que a sua boneca abrisse as asas. Eu, com muita atenção, tentei aprender com
ela, e nessa troca fomos estabelecendo as aberturas necessárias ao enquadramento da
fotoetnografia, pois, eu precisava conquistar sua confiança, e queria que ela se sentisse à
vontade em me contar seus segredos, queria que ela entendesse que eu não estava alí para fazer
julgamentos, críticas ou reclamações, eu estava alí para aprender a reviver, sentir e compreender
o que é ser criança, mesmo que para isso, eu tivesse que ficar horas reaprendendo a brincar de
boneca.
Através da brincadeira a criança mergulha na vida, criando um espaço que expressa, que atribui sentido e significado aos acontecimentos. Brincar
também é uma forma de buscar estabilidade emocional, pois certas
brincadeiras trazem os elementos necessários para lidar com os medos, a angustia, a surpresa, o abandono, o poder, que são emoções necessárias ao
convívio coletivo, ao convívio de pares. Brincar, como uma atividade compartilhada, permite ao ser humano conhecer e reinventar, “reproduzir e
interpretar”, gerando novas formas culturais entre as crianças (REDIN, 2009,
p. 123-124, grifo da autora).
Nesta óptica, de acordo com Kramer (2003, p. 105), Martins Filho (2015) ressalta que
“aprender com as crianças pode ajudar a compreender o valor da imaginação, da arte, da
dimensão lúdica, da poesia, de pensar adiante”. Visto pela Psicologia do Desenvolvimento, a
imaginação é uma atividade criadora que permite ao ser humano projetar o futuro, criando e
modificando o presente (VYGOTSKY, 1996, p. 7). Portanto, através da brincadeira, é possível
perceber como a criança vai estabelecendo sentidos à realidade a partir de processos cognitivos
que envolvem tanto as experiências anteriores quanto as experiências imaginativas, e nessa
conexão, a imaginação vai apoiando e ampliando as experiências infantis (VYGOTSKY, 1996).
E a brincadeira continuou. Dessa vez, ela lembrou uma ocasião que conseguiu
convencer sua mãe a lhe dar uma boneca que queria muito. Era Clara quem direcionava a nossa
conversa, ela quem encaminhava os diálogos, eu atentamente, a observava e tentava ser o mais
participativa possível. No jogo de papéis, Clara não me via como uma pesquisadora, ela estava
382
interagindo comigo como se estivesse com alguém da sua idade, no entanto, em algumas
situações, ela até estranhava minha falta de “conhecimento”, ou seja, mesmo me considerando
sua amiga, ela tinha consciência de que eu era adulta, e não uma criança, como ela. Mas, isso
não impediu que criássemos laços de amizade e confiança. O que pôde ser confirmado no trecho
narrativo 7, quando ela me contou que procurava vídeos na Internet e eu dei a entender que não
sabia como isso poderia ser feito.
MC - Essa aqui é... [estava me mostrando uma boneca) - eu briguei tanto
porque meu irmão ia comprar pra um aniversário de uma menininha da sala
dele, aí eu briguei tanto, mãaaaeee eu querooooo essaaaa, mãeee não dá! Porque eu queria tanto essa boneca. [...] aí mamãe deu uma outra! E eu
consegui. Aí ela tem esse vestidinho, aqui, rasgado que nem os gatos, aí ela
tem essas manchinhas de gato, aqui, uma maquiagem bem bonita. Essa tiara bem linda! Na verdade, [...] ela tem um guarda-chuvinha de gato. Porque ela
faz parte da Monster High do circo. Porque eu já vi o vídeo. E eu já vi o vídeo dessa. Que ela se misturou com a Monster High que faz fogo e com a aquela
que é de água. P - E você viu o vídeo aonde? MC - É porque eu procuro na
Internet amiga. (Fez uma voz diferente, e uma carinha de deboche, como se estivesse me criticando pela obviedade da pergunta, como se estivesse
estranhando o fato de eu não saber disso. Suponho que ela tenha imaginado
alguma coisas desse tipo: “como é que ela não sabe de uma coisa dessa? Tão fácil de fazer, será que vou ter mesmo que explicar isso?!”) Mesmo assim,
insisti. P – Você procura sozinha? MC – Huhum! (Mais uma vez, me olhou com indiferença) P – Como é que você consegue? MC – Háaa! é só botar
Monster High e vai aparecendo um monte de vídeo. P – Aí você vai abrindo
os vídeos até chegar no vídeo que você quer? (Insisti, mas, ela ficou meio impaciente com essas perguntas e queria logo continuar falando das bonecas,
como se usar a Internet fosse uma coisa tão fácil que eu já deveria saber!) MC
– Huhum (depois continuou por 20 minutos falando das outras Monsters Highs).
As tecnologias ampliaram as possibilidades de aprendizagem e comunicação das
crianças, desta forma, pesquisas apontam que as crianças aprendem a utilizar recursos
midiáticos digitais e virtuais com mais familiaridades do que os próprios adultos, ou seja,
A desenvoltura com que a criança lida com as “eternamente novas” tecnologias audiovisuais não somente a coloca numa posição de independência diante do
adulto, como a transforma na tradutora, para o adulto, dos significados de uma criação que é sua (adulto), mas que a ele próprio ainda soa como estranha
(PEREIRA, 2002, p.86).
Outro aspecto importante deste trecho é o fato de Clara conseguir convencer sua mãe de
lhe dar boneca e comprar outro presente para a amiguinha de seu irmão, o que corrobora com
a visão de Martins Filho (2015, p. 40) de que as crianças se utilizam de argumentos explícitos
e implícitos para convencer os adultos a reverem suas posturas, e os adultos, muitas vezes,
383
acabam se “rendendo às transgressões, à subversão, ou aceitam as negociações propostas por
elas, preferindo não discuti-las”, neste sentido, para este autor, a transgressão e a subversão
sintetizam a possibilidade de mudança que as crianças provocam ao criticarem a ordem
instituída. Outro exemplo de familiarização da criança com as tecnologias pode ser visto no
seguinte excerto:
MC - Só pra falar um negócio! Tem um negócio bem engraçado que eu faço! João Pedro (irmão de Clara) distrai a mamãe conversando com ela, eu venho
assim... (faz o gesto de pegar o celular por trás da mãe) MC – aí... aí... tam!
tam! tam! e corro pra porta com celular e boto no YouTube cá lá lá láaa... “Maria Clara! Você pegou meu celular!” (imita a mãe falando) - Peguei mãe!
(risos) -“Me devolve!” (imita a mãe) - Porque eu descarrego o celular todinho assistindo! (risos) MC - Ó eu vou mostrar o que eu adoro assistir, tá no
YouTube, é um gordinho que gosta de dança! Ó ó óóó... ó ó... óóó... (canta e
dança).
Esta narrativa também desvela a capacidade criativa e subversiva de Clara. Ela conta
que usa o celular da mãe para ver vídeos no YouTube, só que para isso, ela precisa criar
estratégias para capturar o aparelho da mãe em algum momento de distração. Então, Maria
Clara planeja tudo e orienta o irmão a distrair sua mãe, enquanto ela de forma sutil, pega o
celular escondido. Esta é uma forma de Maria Clara transgredir a realidade. Ao elaborar
estratégias para driblar a mãe e atingir seu objetivo, ela demonstra “poder e controle” sobre
papéis sociais hierarquicamente superiores ao dela – o irmão e a mãe. Assim, ela vai
demarcando território e constituindo sua identidade de forma criativa, autônoma e política, no
sentido de participar ativamente da maioria das decisões que são tomadas em relação a ela.
Segundo Corsaro (2009, p. 36) “no jogo sociodramático as crianças desfrutam a assunção e a
expressão de poder. É divertido fazer isso”. É essa sensação de conquista, de poder e de
transgressão que torna a brincadeira atrativa.
Mas, voltando às brincadeiras, Maria Clara correu no seu quarto, pegou uma boneca que
ganhou no Natal do Papai Noel e me revelou outro segredo. Com este segredo, ela também
narrou outra situação em que conseguiu ser “mais esperta” que sua mãe:
MC – isso aqui ó, eu ganhei de Papai Noel junto com isso aqui ó (uma boneca
e um pony). Eu queria uma coisa que Papai Noel não tinha dinheiro para comprar, aí Papai Noel teve que me convencer com uma boneca e um Pony
(nesse momento sua mãe ri com a lembrança desse fato que nem ela lembrava mais) P – E o era que você queria no lugar da boneca e do Pony? MC – eu não
me lembro! P- Você só se lembra que ele não te deu foi? MC – Huhum! Minha
mãe escondeu essa boneca no armário, como eu sou tão espertinha, eu olho sempre quando ela vai fazer alguma coisa! Aí então eu achei as coisas que ela
384
esconde! Ela escondeu docinho de chocolate alí de coração que eu adorei (a
mãe começou a rir) aí ela foi deitar na rede eu fiz thi thi thi thi... (e começou a andar de ponta de pé encenando seu gesto de ir pegar o chocolate escondido
da mãe) Pow! Peguei o biscoito! (todos riram e ela continuou...) mesmo que
ela tenha escondido num lugar alto eu vou escalando! (a mãe continuou rindo).
Estes cenários evidenciam a capacidade de Clara em transgredir ordens instituídas,
subvertendo situações que não lhes eram bem quistas. Para tanto, usou de estratégias de
convencimento que envolveram não só questões objetivas, mas sobretudo, emocionais. Seu
jeitinho criativo e engraçado de argumentar, sempre consegue capturar a sensibilidade de seu
pai e de sua mãe, convencendo-os a fazer o que ela quer. Conforme ressalta Martins Filho
(2015, p. 39):
[...] de modo geral, não são as crianças que decidem em relação ao que pode
ser feito, mas há, por parte delas, resistência ao que não querem fazer e
persistência no que querem fazer. Tal comportamento contribui para tomarem posição, conectando as suas necessidades, seus referentes simbólicos e modos
de expressão aos processos de socialização no cotidiano (MARTINS FILHO, 2015, p. 39).
De acordo com Redin (2009, p. 124) na ação do brincar, a criança tem acesso aos
elementos do passado e faz projeções para o futuro, “revitalizando e inventando o mundo a que
almeja”, desse modo, o contexto social e cultural da infância não pode ser pensado fora da
dimensão lúdica. Para adentrar no universo infantil respeitando suas críticas e opiniões, torna-
se necessário compreender como as crianças constroem suas culturas e interpretam o mundo à
sua volta, e como ela interpreta sua própria ação, sua própria identidade. É preciso romper com
as concepções de crianças e infâncias redutoras e cristalizadas para podermos conhecer e
compreender verdadeiramente o que elas (crianças) têm a nos dizer.
Maria Clara me impressionou com sua capacidade de memorização. Em uma das
apresentações culturais na escola ela teve a oportunidade de participar de uma peça teatral em
homenagem ao dia das mães e durante a apresentação, ela encenava com sua mãe. Ela não tinha
fala, mas, fazia todos os gestos que eram narrados pelas outras crianças junto a sua mãe. Por
exemplo, quando era dito “E quando batia aquela vontade de comer?”, a mãe colocava a mão
na barriga para gesticular a fome, em seguida, Clara dava jujubas para sua mãe comer, assim
por diante. Mesmo sem ter a responsabilidade de decorar falas, surpreendentemente, ela
conseguiu memorizar as falas de todos os personagens da peça, inclusive do narrador. E ainda
lembra:
385
MC - Vamos dar corda no relógio e voltar lembranças do passado! E blá, blá,
blá, blá, blá... (ela lembrou de uma peça de teatro em homenagem ao dia das mães que tinha participado na escola) P - lembranças do passado? O que foi
que você lembrou? MC – é assim: dim... dom! dim... dom! dim... dom! tic-tac
tic-tac tic-tac! Trim... trim... trim! Vamos dar corda no relógio! Reviver lembranças tão bonitas do passado? (Começou a encenar) aí tinha o negócio
do dia das mães né, alisava a barriga, botava assim, fazia cafuné... - aí tinha
um negócio assim, bem engraçado: E aquela vontade de comer? Sempre tinha alguém para comprar os seus desejos né? Porque desejo de grávida é uma
ordem! Aí... [...] o que a mamãe mais adorava era jujubaaaa! Logo os sabores que ela mais gostava! (aí fez um gesto de comer) – Hummm e aquele soninho?
Dormia mais que gato no travesseiro! P – Isso tudo era você falando? MC –
não era três meninos, eu conheço um dos três meninos! P – E você decorou a parte de todos eles? MC – Huhum! Tic tac tic tac tic tac...
Pensando nessa potencialidade, é que sua mãe investe tanto na carreira artística da filha.
Maria Clara é uma criança que se familiariza muito rápido com as artes cênicas, sua mãe conta
que desde pequenina, ela se destaca em musicais, peças teatrais na escola, reuniões familiares,
até em shoppings quando têm eventos culturais ela sobe no palco, dança com os artistas, está o
tempo todo “chamando atenção”. Estas são algumas vivências que vão construindo os espaços
sociais em que Maria Clara vai protagonizando sua infância e constituindo seu universo
cultural.
No dia 24 de fevereiro de 2017, fui surpreendida com novas histórias, dessa vez um
pouco diferente das brincadeiras anteriores. Pois, Clara havia passado por algumas situações
inusitadas na escola e ainda estava um pouco agitada com o que havia acontecido. Tratava-se
de uma disputa em que dois “príncipes” tentavam conquistar o coração da “princesa” – o Elvis
e o Edu, disputando a Maria Clara. Ela me contou tudo em segredo. A situação era a seguinte:
Clara havia recebido um bilhete de Elvis, mas, ficou brincando com Edu, Elvis com ciúmes,
bateu no Edu. Aí surgiu outro amigo – o Kaic, que defendeu Edu e bateu em Elvis. Talvez, nas
palavras de Clara, isso fique mais claro...
P: Ah, como foi essa história do bilhete... MC: Sim, eu tinha escrito uma carta pro Edu que eu fiz de coração com “eu te amo, eu te amo, eu te amo” só que
eu nunca consegui, sempre me esquecia, no dia que eu lembrei fui entregar aí
o Elvis ficou com raiva, pois ele tinha me dado um bilhete pedindo pra namorar comigo. P: Entendi. Mas, é só brincadeira né? Me conta isso melhor...
[De repente Clara começa a cantar...] MC – Aaaa... amor i love you... amor i love youuuu (começou a cantar, viu o pai e parou) - ô pai sai daqui, sai, sai...
o pai, por favor, é um segredo que vou contar só de meninas! (pediu para o pai
sair e falou bem baixinho para mim) MC – Piorou o assunto! De Elvis com Edu. Elvis me pediu em casamento (a mãe começou a rir) em uma carta! P –
Ai meu Deus do céu! (não consegui evitar!) Piorou, piorou, piorou, piorou a situação entre Elvis e Edu, Elvis me pediu em casamento! M – Em casamento
não, em namoro! (risos) MC – Na-mo-ra-da! Sério, sério (risos). Correu e foi
386
pegar o bilhetinho. MC – lê! P – Como é? MC – Maria Clara, eu te amo, seja
minha na-mo-rada! Beijos Elvis (caiu no chão, como se estivesse desmaiando) P – E você respondeu o que? MC – é por isso que eu tava falando... é melhor
eu não mostrar isso a ela... (se referindo a mim) MC – Não aceito! (gritou) P
– você respondeu em bilhete? MC - Não a-ce-i-to! (Nesse momento ela viu o pai tentando ouvir seu segredo...) MC – eita! Ele escutou! Sai, sai, sai... P –
ele não escutou não... ele tava rindo da novela (o pai começou a rir) MC – Eu
botei não aceito, que eu não aceito! Meu amigo Kaic contou que Elvis já tinha dado uma aliança pra uma menina da manhã! P – Tu ‘ficou’ sabendo disso?
MC – é. Eu era do 1º ano e Elvis era do 1º ano da manhã, aí então eu tinha escrevido essa carta faz tempo, só que eu esqueci, aí hoje eu fui entregar essa
carta pro Edu. Aí, Elvis ficou com tanta raiva. E ele queria bater no Edu. O
Edu tava na quadra. P - Isso foi hoje? MC – Huhum... Aí eu avisei pra o Edu, aí todo mundo começou a ficar na porta da quadra defendendo o Edu. Aí, Kaic
veio logo por trás, Elvis tava caino. Aí Kaic veio com a maior velocidade e
deu um chute nas costas de Elvis, ele caiu e ficou na sala. Aí eu conversei com Edu, porque a tia mandou eu conversar com Edu, o Edu conversou com a tia
e o Edu conversou comigo blá, blá, blá... Aí a gente foi lá pra sala falar com Elvis porque ele não queria sair de jeito nenhum. Aí depois do recreio a gente
começou a ser amigo de volta. P – Elvis? MC – Huhum! [...] MC – Ele sempre
queria, na verdade, bater no Edu, desde o passeio do Sesc ele ia batendo no Edu, sorte que o Edu saiu bem na hora! (No passeio do Sesc, Clara sentou ao
lado de Edu e Elvis ficou com ciúmes).
Com esse relato, Clara já revela seus primeiros sentimentos de afeto por um garoto.
Elvis gosta de Clara e Clara gosta de Edu, e tudo indica que Edu também gosta de Clara.
Segundo Trevisan (2007, p. 48) o amor e as relações afetivas ainda é um assunto adulto pouco
explorado no contexto da infância, em sua pesquisa, buscou perceber até que ponto se poderia
falar de relações amorosas entre crianças de 6 a 10 anos de idade, e constatou que “as crianças
são capazes de absorver e transformar rituais adultos e papéis sociais, reapropriando-se deles,
trazendo-os para os seus mundos”. A fantasia de Elvis em pedir Clara em namoro tem
significações sociais para Clara, trata-se de um pedido diretamente relacionado ao sentimento
de amor, mas, ela sabe que esta é uma situação “impossível” para ele, por dois motivos:
primeiro, porque ela prefere o Edu. E segundo, porque ela sabe que criança não pode namorar
(por isso ela não aceitou o namoro). Essa história não parou por aí...
P – E o que você respondeu pra ele (Elvis) da cartinha? Você fez alguma
cartinha pra ele também? MC – Não, porque não deu tempo. Que, eu tinha “fazido” aí tava em aula. Aí então eu ia entregar logo a do Edu, pra fazer
depois a dele. P- entendi. Mas você aceitou o namoro? Ela, para, olha para
mim (como se estivesse pensado: “eu já lhe disse isso, lógico que não!”), pega um papel na bolsa e diz: MC – Quê? (silêncio) leia a resposta! (Falou com
uma voz indiferente e me entregou o papel) P – Não aceito! (eu li e fiz um ar
de espanto) você não aceitou Clara? MC – Eu falei de palavra pra ele. E ele queria me contar um segredo que falava: ah eu não vou contar, eu não vou
contar, eu não vou contaaar! (meio sem paciência, imitou o Elvis) E eu não sabia se ele ia contar ou não ia contar. E ele não contou. P – E agora Clarinha?
387
M – Aí ele botou isso aqui agora, mostra Clarinha (sua mãe deu o celular para
ela) MC – Aiiii, meu deus do Céu! Eu fiquei com raiva! P – Ele mandou pelo WhatsApp? E você fala com ele pelo WhatsApp! MC – é porque isso aqui é de
todo um grupo, aí ele pegou (grupo de pais dos colegas da escola de Clara).
Nesse momento, Clara colocou o áudio de Elvis para eu ouvir: “Maria Claraaa, tô cum soldade!” (uma vozinha bem infantilizada). MC – Não quero saber!
Não quero saber! (ficou andando para lá e para cá da sala balando a cabeça,
depois me mostrou a resposta dela) MC – Elviiis, amanhã a gente se vê na escola! tchau! (A mãe disse que foi ela quem insistiu para Clara responder,
mas disse para ela que não queria mais saber dessa história). P – Mas, afinal, quem é mais legal é o Elvis ou o Edu? MC – A minha mãe fala que é o Elvis
porque ele briga, briga, e me baba! E o Edu não me baba não. Mas, o Edu, ele
briga comigo e ainda volta átrás! Me chama de nóvo pra casa dele, me chama de nóvo pra casa dele! (fala acentuada nas sílabas em destaque).
De acordo com Trevisan (2007, p. 67, grifo da autora): “as meninas parecem ‘fantasiar’
mais que os meninos, que se apresentam mais práticos e objectivos na construção de uma
relação de namoro” e o que é mais curioso, “as crianças podem esconder os seus sentimentos
dos adultos, mas o grupo de pares detém conhecimento esmagador relativamente às vidas
amorosas das crianças”. Como foi o caso em questão. O gostar de Clara ainda era manifestado
como uma amizade mais próxima, no entanto do de Elvis já se manifestava como uma atitude
mais objetiva, como um pedido de namoro, isso para Clara soou como algo desconcertante, mas
que ao mesmo tempo as fez se sentir lisonjeada. Sua posição pelo Edu é algo que já vinha
incomodando o Elvis e nessa situação, em especial, como Elvis viu que tinha perdido a disputa,
preferiu agir com força corporal. Essas fantasias que embalam os romances fazem parte do
imaginário infantil, as crianças elaboram formas de enfrentamento, tomam decisões, mudam de
ideia e reagem de forma impetuosa porque esses comportamentos mexem com seus sentimentos
e emoções, desde a aceitação à rejeição. Como afirmara Geertz (2013, p. 59):
Não estamos preocupados em resolver problemas, mas em esclarecer
sentimentos [...]. Uma criança conta pelos dedos antes de contar “na sua cabeça’; ela sente o amor na sua pele antes de senti-lo ‘no seu coração’. Não
apenas as ideias, mas as próprias emoções são, no homem, artefatos culturais.
As culturas infantis estão permeadas de romances, desde os clássicos mais antigos como
Branca de Neve, A bela e a Fera, Rapunzel, Cinderela, até os mais contemporâneos como
Sherek (Princesa Fiona), Mulan, A Princesa e o sapo (Princesa Tiana) e o mais comentado por
Maria Clara, Frozen (Princesa Anna). Todos com histórias de príncipes e princesas, com
disputas, romances proibidos, aventuras, mistérios, situações tristes, mas, com finais felizes.
Toda a magia que envolve as histórias infantis são apreendidas, reelaboradas e adaptadas à
realidade das crianças, que por sua vez, absorvem as informações através da percepção dos
388
modelos simbólicos e, principalmente, da forma com que esses modelos penetram nas nossas
emoções, como apontou Geertz (2013, p. 59) “Para tomar nossas decisões, precisamos saber
como nos sentimos a respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas
precisamos de imagens públicas de sentimentos que apenas o ritual, o mito e a arte podem
fornecer”.
Nesta perspectiva, as relações que as crianças estabelecem com a cultura familiar, a
cultura entre pares e a cultura midiática dão contornos e sustentação às suas fantasias e
imaginações sobre os relacionamentos afetivos, e estes, se manifestam em qualquer tempo
situação e contexto. Para Geertz (2013, p. 61) isto significa que “o pensamento humano é,
basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais objetivos da cultura comum, e
só secundariamente um assunto privado”. Neste contexto, a percepção dá subsídios aos
sentimentos, consequentemente, estimulam a imaginação e a criatividade infantil na produção
de suas subjetividades e particularidades culturais. Como pode ser acompanhado no diálogo
seguinte:
P – Clarinha, lembrei de uma coisa! você tem algum amigo imaginário? (Clara
fica pensativa e responde) MC – Hummm, só um, mas eu nunca contei pra
ninguém! P – ahhh, nãooo... mas, você vai me contar né? (Ela pensou e respondeu) MC – Será que conto, será que não conto! Mãe eu conto? M – Sei
não você quem sabe! Conta! Eu nem sabia que você tinha! (respondeu à mãe)
MC – Você acha que eu minhas bonecas como? Com eu só ou com a minha amiga imaginária? M – ahh! era com a amiga imaginária? MC – éra! [...] P –
sim, conta do teu amigo imaginário. MC – Na verdade eu nem dei nome pra ele. Eu vou botar o nome dele de Sophi, em homenagem à cachorrinha do Edu.
É uma cachorrinha branca... Mais é fofa! Ela é difícil de pegar! (continuou
falando da cachorrinha, depois começou a falar dos passarinhos que tem na obra que o pai tá construindo) MC – [...] por enquanto eles estão tomando
conta do prédio. Só porque fizeram um ninho, aí começou... a festa das
rolinhaaaaaaas!!! (cantarolou) [...]. Parece que é engraçado, o tijolo faz o ninho, do ninho faz os ovos, dos ovos faz a mãe, dos ovinhos faz ainda o filho.
Neste excerto, Maria Clara chama atenção em três pontos: primeiro, o fato de ela ter um
amigo imaginário; segundo a sua capacidade de fazer conexões inteligíveis entre passado e
presente; e terceiro a sua criatividade em argumentação. Maria Clara tinha um amigo imaginário
– que no início era uma amiga, sem nome. Dá um nome para ele, mesmo ele sendo parte do seu
passado. Em seguida, faz referências a duas situações diferentes que tem o mesmo referente
principal – animais. Para Saccomani (2016, p. 69) o processo de imaginação permite ao
indivíduo representar o resultado final da atividade antes de executá-la, fundamenta-se nas
389
ideias de Rubinstein (1967, p. 361) que vinculam a imaginação ao ato de vincular a aptidão
humana de modificar o mundo, de transformar ativamente a realidade e de criar algo novo.
Em se tratando de criatividade, Saccomani (2016) fundamenta-se em Vygotsky (2009,
p. 42) ao assumir que “a criação é um processo de herança histórica em que cada forma que
sucede é determinada pelas anteriores”, ou seja, pensando na realidade do pensamento da
criança, a fantasia infantil é sempre um acúmulo de materiais extraídos das experiências
empíricas e inteligíveis que a criança desenvolve ao longo de suas vivências culturais e sociais,
desse modo, “O produto da imaginação é sempre arquitetado de materiais hauridos da realidade
[...]”, assim, a “criação apoia-se na memória” (SACCOMANI, 2016, p. 65).
Em síntese, a imaginação e a criatividade são fenômenos essenciais para a construção
do pensamento infantil e as culturas infantis devem ser pesadas a partir das experiências
empíricas e inteligíveis do mundo real da criança em diálogo com as relações de alteridade que
elas estabelecem entre pares, com os adultos e com os demais elementos culturais que se
conectam às suas realidades. Em outras palavras, as crianças produzem seus repertórios
imaginativos a partir das produções criativas extraídas nas entre-culturas da infância e
protagonizam de forma ativa suas histórias de vida nos entre-lugares dos quais participa.
Após conviver com Maria Clara, conhecer seus lugares suas rotinas, seus brinquedos e
um pouco de suas relações com a família, iniciei o processo de Fotoetnografia Autobiográfica,
onde procurei entender seus modos de ser e de viver através de suas próprias percepções de
criança, dando a ela voz e participação direta no processo de desvelamento de sua realidade.
1.3 Contos... Câmera, Flash e Clicks: diários de uma Fotoetnografia
A Fotoetnografia Autobiográfica como estratégia metodológica permite a construção de
narrativas imagéticas em que as crianças têm a oportunidade de desenvolverem seus potenciais
criativos, sensíveis e críticos acerca das suas próprias experiências de vida, seja no espaço
doméstico ou até escolar, atribuindo-lhes novos sentidos e significados, consequentemente,
levando-as ao reconhecimento de suas culturas e identidades. Neste cenário, a fotografia “ajuda
a tomar posse das coisas transitórias que têm direito a um lugar nos arquivos da memória”
(MARTINS FILHO e BARBOSA, 2010, p. 14), nessa perspectiva, as imagens serviram como
instrumentos de aproximação da realidade sócio-histórica e cultural do universo infantil, tendo
em vista que,
390
Há uma possibilidade de se olhar para a imagem congelada, retratada pela
foto, inúmeras vezes, um exercício pleno de ver e rever a cena, os personagens e o contexto. Tal possibilidade aguça a memória, a imaginação, a criação e a
reconstituição da própria história vivida, pelas imagens e nas imagens. A
fotografia mostra sempre o passado lido aos olhos do presente, embora já não seja o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada (MARTINS FILHO e
BARBOSA, 2010, p. 22).
Através das fotografias, a criança ressignifica a realidade vivida através da própria
lógica infantil (BARBOSA, 2009, p. 183). Como ressalta Trevisan (2007), a criança recebe,
transforma e recria aquilo que absorve, modifica e dá-lhe novos significados, desse modo, pode-
se afirmar que,
Nenhum presente é construído sem passado e nenhum futuro existe sem os
estes dois. O lugar que a criança ocupa hoje, na história, no cotidiano, não foi sempre o mesmo. Nem mesmo é igual para todas as crianças, em todos os
sítios, num mesmo tempo (TREVISAN, 2007, 2007, p. 41).
Partindo dessas concepções, a história de Maria Clara foi se constituindo através de
imagens, reminiscências, lembranças e conversas, no entanto, os cenários e as histórias foram
se intensificando, diversificando e se tornando cada vez mais expressivas, pois agora ela estava
narrando seu passado, seu presente e por vezes, seu futuro. Já não se tratava mais de histórias
de personagens Disney, mas, de sua própria história, a história de sua vida, sua autobiografia.
Assim, as imagens passaram a ser fotografias vivas, registros de sua realidade que foram
revividos, sentidos e compreendidos a partir de suas próprias percepções, conforme ressalta
Passeggi (2014, p. 89):
[...] pela reflexividade autobiográfica, a criança dota-se da possibilidade de se
desdobrar como espectador e como personagem do espetáculo narrado; como pensador e como objeto pensado; enfim, como objeto de reflexão e como ser
reflexivo. Essa relação dialógica entre o ser e a representação de si que se
realiza pela reflexividade autobiográfica confere à criança, ao jovem, ao adulto um modo próprio de existência, pela probabilidade de voltar-se sobre
si mesmo para explicitar o que sente, ou até mesmo perceber que fracassa nessa difícil tarefa de (re)elaborar a experiência vivida, com a ajuda da
linguagem em suas mais diversas formas.
Neste sentido, tal modalidade de pesquisa qualitativa estimulou “os processos reflexivos
e de ressignificação das experiências” (PASSEGGI, et al, 2016, p. 115) tanto do ponto de vista
de Clara, quanto das minhas próprias percepções enquanto pesquisadora. Portanto, entre
fotografias e mementos, Maria Clara foi dando os primeiros contornos à sua história:
391
P - Você sabe o que é que você vai fazer agora? MC – sim, sim, sim! P- A
história de Maria Clara contada por Maria Clara! MC – eu sei como é. P – é como você fez a de Branca de Neve e a de Frozen, você não contou as histórias
delas com imagens? MC – Haham. P – Agora você vai fazer a sua! [...] vamos juntar as fotografias para fazer o livro leitura-imagem de Maria Clara! (Ela
pula e fica batendo palmas) P - Vamos começar a escolher as fotos? MC -
Todas, todas, todas!!! P - Vamos organizar primeiro... MC – [...] essa aqui bota! eu estava vestida de Brasil! P – Sabe porque você estava vestida de
Brasil? MC - Por que era Copa do Mundo! P – Isso mesmo! Mas, vamos
escolher as primeiras fotos que é do nascimento! MC - Ah meu Deus! Vai ser difícil porque eu era muito pequena nesse tempo e não dá pra lembrar né! Tem
“coisa” que eu lembro e tem “coisa” que eu tô bem pequenininha, bebê, que eu não lembro! P - Você sabe a hora que você nasceu? (grita e pergunta ao
pai) MC - Pai eu nasci de manhã, de tarde ou de noite? Pp - Amanheceu o dia
nascendo! (Clarinha pega uma foto do relógio que marca a hora em que ela nasceu) MC – tem até uma foto da hora tia, deixa eu procurar aqui [...] olha
achei, qual é mesmo essa hora? P – Você nasceu de 15 para as 7 da manhã!
Bem cedinho! [...] P - Do seu nascimento qual você queria para colocar na fase do seu nascimento? P - Vamos olhar o álbum e você vai vendo se você
quer mais alguma! [...] MC - Meu primeiro banhinho... P - E é? MC – Bota essas duas! P - Quem foi que lhe deu o primeiro banho? MC - Meu Papá. [...]
MC - Vou escolher uma foto aqui com minha avó! [...] (risos). P - Vou querer
saber sobre a história das fotos que você escolheu! (tn/9, 29/03/17, cc). MC: Eu acho que não lembro muito, mas vou tentar. Quando eu nasci o meu irmão
tava doido pra me ver, ele tava assistindo desenho animado né, aí quando eu
cheguei em casa, ele me deu um abraço e ficou me segurando e não queria que ninguém tocasse em mim, ele gostava muito de me segurar no braço, até que
eu era um pouquinho pesadinha [...].
Maria Clara adora fotografia, e principalmente, ser fotografada. Ela contemplava cada
imagem, revivia as cenas, rememorava os fatos e se surpreendia com suas próprias histórias.
Eram momentos de profunda emoção, ela mergulhava em suas reminiscências e encontrava
nelas significados para as experiências sociais e culturais de sua infância. Ela demonstrava
muito apego às imagens, comentava cada detalhe, usava argumentos para tentar manter a foto
em seu livro, às vezes até se despedia carinhosamente, da foto: MC: “– ai meu Deus, xau fotinha
fofa, linda, não fique triste”.
Desse modo, embalada em suas memórias, ela apresentava muita dificuldade em
selecionar as fotografias. Por ela, as quase 3 mil imagens do acervo digital da família, seriam
todas selecionadas: MC – “Ah, tia! Por favor, só mais uma!”; “– essa sim, sim, sim, só mais
essa!”; “Nossaaaa tia! Eu não quero cortar essa! Diz que sim, vai, vai!”. Estas falas e muitas
outras expressões corporais me faziam deixá-la livre em suas escolhas, então, inicialmente, não
estipulei a quantidade que seria selecionada. Eu não podia e não queria interferir, apenas
estimulava o diálogo tentando fazê-la entender que não teríamos espaço para tantas fotografias
em seu “livro”.
392
Apesar desse apego, Clara também era muito firme em suas opiniões, algumas fotos ela
rapidamente, retirava do conjunto de imagens: MC: “– você fica, você sai, xauzinho!”
(conversando com a imagem), essa decisão dependia principalmente de como ela estava
retratada na imagem ou de quais lembranças a foto remetia, conforme visto no diálogo abaixo:
MC - Essa é com a tia [...], era legal, ela fazia as coisas comigo, e tia [...] ela
era muito legal! Mas essa aqui tá bem chata! É tia [...] não bota não! P – Tu não ‘quer’ não, botar no álbum? MC - Tá chaaaata! (fez uma gesticulação com
os braços em sinal de indiferença e continuou a falar). MC – Quando o tio botou a gente pra cá na sala dela, a única coisa que eu e Isabele fazia é fugir
da sala, que eu não aguentava ela. Só o jeito era fugir né! fugir da sala... Aí o
diretor falou: “vooolte Maria Clara e Isabele! Isabele voltou e eu não! XAU!! P – E você foi para onde? MC – Subi lá em cima do Géo... tô nem aí... vou me
escondendo dessa tia. Aí tia [...] foi atrás de mim, não sabia onde é que eu
tava, eu tava numa sala escura que todo mundo tem medo “é o lugaar no escuro à noite” (fez voz de assombro). P – E tu não tinha medo não? MC – tenho um
pouquinho porque tem câmeras. P – Então você preferia ficar lá no escuro do que voltar pra sala? (risos) MC – Preferíiia muito bem! Mas aí, eu tive que
voltar. Mas meu pai não ficou sabendo dessa fugitiva, senão ele iiia me dar
uma chineláaaada, né?! (aumentou a voz e olhou para o pai, chamando sua atenção, e todos riram) Pp – O que foi einh? (Perguntou o pai) MC – Nada
não. Nada! Só foi um bobo que eu estraguei... (risos). P – é um segredo! MC
– Aí ele não ficou sabendo! Xau!!! É é é... é é é... P – E tu fugiu quantas vezes ainda? MC – Mil! (risos) P – ‘tu fugiu’muitas vezes Clara? (fiz um ar de
espanto, ela riu e continuou) P – Meu plano e de Isabele era assim, pedia a tia pra ir beber água, ela deixava, a gente ia e fugíiiia, tham tham ram ram!
(começou a dançar) [...] a gente fugiaaaa, xauuu!!!
A irreverência de Clara chama atenção a cada narrativa, ela está sempre tentando ser
engraçada, gosta de demonstrar que é esperta e que sempre se dá bem. Clara possui um
repertório linguístico e uma capacidade imaginativa impressionante, que revela potencialmente
sua personalidade forte, decidida, objetiva. Ela sabe o que quer e quer participar de todas as
decisões da família. Essas características presentes na infância contemporânea demonstram que
apesar de cumprirem com o que lhes é imposto pelos adultos, as crianças conseguem estabelecer
suas próprias formas de atuação, são subversivas e não abrem mão de suas opiniões, o que
indica protagonismo e autonomia em suas experiências cotidianas, ou seja, as crianças,
Elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando
plenamente de uma cultura. Esses sentidos tem uma particularidade, e não se confundem nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as
crianças têm autonomia cultural frente ao adulto. Essa autonomia deve ser
reconhecida e também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema
simbólico compartilhado com os adultos (COHN, 2005, p. 35).
393
Maria Clara tem muita segurança em sua fala, lembra-se de detalhes que os próprios
pais esquecem. Como em uma situação em que ela disse que havia ganhado uma roupa e a sua
mãe disse que não. Muito insistente, ela contou os detalhes do episódio para mãe que,
finalmente, lembrou-se da ocasião e concordou com a filha.
MC – Coloca essa daqui de batom vermelho, eu adorava. Essa daqui da
abelhinha. Mãe, se lembra daquela roupa de abelhinha? Quantos anos eu tinha? M – Qual? MC – aquela roupinha de abelha que eu ganhei! M – ganhou
não, eu comprei! MC – ganhei sim mãe! M – nada disso! MC – ganhei sim! Se lembra do pai de (...)? Ele me deu. Que ele vendia roupa. Ainda me lembro!
M - é verdade, essa menina é fogo, nem eu lembrava disso!
Nota-se também que, apesar do seu comportamento subversivo, Maria Clara é muito
educada, obediente e atenciosa com a família, é muito apegada ao irmão, adora brincar com o
pai e com sua mãe, que é sua “amiga e companheira inseparável”. MC – “eu amo minha
famíliaaaa, é a melhor do mundo! Meu papi, minha mami, e esse aqui ó, que é o meu irmão
João Pedro que a gente brinca sem parar e apronta todas com a mamãe, pegando o celular dela”.
Dada a dificuldade em selecionar as imagens, pedi para a mãe de Clara separar as
fotografias de Clara de acordo com a idade em que ela aparecia, buscando assim, otimizar o
tempo e facilitar a narração da criança. Dessa forma, ela separou as fotografias impressas e em
seguida me auxiliou com as fotografias digitais. Apenas após essa seleção, dei continuidade a
autobiografia junto à Clara.
Das fotografias de bebê, Maria Clara selecionou duas imagens. Em uma, ela está com
sua avó materna, a quem ela tem grande carinho. E na outra, ela aparece sozinha, deitada em
um almofadão, usando luvas, sapatinho de pano, calça rosa e uma roupinha (estilo maiô) branca
com detalhes em rosa e bordado com o nome “princess” e um vestido, um sapatinho do tipo
Cinderela e uma coroa, elementos que remetiam ao conceito de princesa em contos de fada.
Esta é uma imagem bastante significativa para ela, pois, até hoje ela guarda esta roupinha
original, conforme o excerto abaixo:
MC – Olha tia, essa aqui é com minha vozinha que eu amo. P – Ela é a mãe da sua mãe ou de seu pai? MC – A mãe da minha mãe. Ela me pegou bem
pequenininha, olha como eu era lindinha! P – Sim, você era um bebê lindo!
MC – Tem essa aqui tia olha! Essa eu tenho uma coisa pra falar! Espera só um segundinho! (Ela correu para seu quarto e depois de alguns minutos chamou
a mãe) MC – Mãaae! Me ajuda a achar aquele saco de roupinha de bebê, e
aquele que tá na minha bebezinha, que era meu quando eu era bebê! M – Tá logo aí, em cima do seu guarda-roupa! MC – achei tia, olha o que eu tenho
aqui! P – Não acredito! (Fiz cara de espanto) não acredito que essa é a mesma roupinha da fotografia! MC – É ela mesma! Essa é a roupinha que eu tô usando
394
quando eu era bebê, minha mãe guardou e me deu! E também tem um saco
cheeeeiiioooo de roupinhas minha, luvinhas, sapatinhos, roupinhas e tudo! P – Poxa muito legal isso! Vamos fotografar sua boneca!? MC – deixa que eu
tiro a foto tia! Eu sei fotografar! P – Tá certo pode usar meu celular! (Ela
colocou a boneca ao lado de sua fotografia e fez alguns registros utilizando meu celular).
Durante seu primeiro ano, a cada mês, Maria Clara foi fotografada profissionalmente.
Sua mãe queria registrar em estúdio as fases de crescimento da filha. Em meio às inúmeras
imagens, havia muitas fotografias engraçadas, dentre as quais, Clara selecionou três. Na
primeira, ela aparece dentro de um caldeirão, vestindo uma touca de cozinheira e segurando
uma colher de pau, ao redor do caldeirão, vários temperos, legumes e verduras. Ela olha
diretamente para a lente do fotógrafo e faz um pequeno gesto com a boca colocando a pontinha
da língua para fora. Na segunda fotografia, ela usa uma coroa de flores na cabeça, segura uma
fatia de pera e está sentada em uma bacia vazada de madeira cheia de frutas, fora da bacia
também há várias frutas ao redor da cena. Quando ela viu as imagens foi logo dizendo que ela
era a comida: MC – “Tia olha só isso! Como é que pode! Sabe quem é a comida?” (me olhou
sorrindo) P – “Quem?” MC – “Eu! Eles querem me comer!” (riu muito com isso).
P: Você estava dentro da panela? MC: É, aquelas fotos são muito antigas [...].
MC: É, assim, eu tava com a colher na mão e dentro da panela, eu tava tentando morder um laranja, mas era de plástico e eu queria comer. P: E qual
foi o motivo de te colocarem na panela? MC - “- Oooo mãeeee... vocês queriam que eu fosse a comida era? [risos]. Parece que esse povo quer que eu
seja a comida! P – Muito engraçado isso! MC: Era uma foto que minha mãe
queria. Tem até uma que você está sem roupa? MC: ah tem essa foto que eu tava dentro de um negócio transparente... Como é que uma pessoa tira foto de
uma criança desse jeito em mãe? Bota essa não tia! Essa de jeito nenhum! P –
ahh que pena, achei linda! MC – Tá bommm... então bota tá...
Na terceira fotografia, Maria Clara está deitada dentro de uma elegante vasilha de vidro
e ao redor da vasilha há grandes rosas na cor salmão. Ela está sem roupa, usa apenas uma
toquinha na cabeça e faz uma carinha bem séria no instante do click. Dessa vez, ela faz uma
pequena crítica: MC – “Mãe, precisava ser sem roupa, precisava!”. E continuou: MC – “Eu não
sei pra quê colocar uma criança numa vasilha dessa, ainda mais transparente e em roupa!”. Mas,
mesmo sem gostar da fotografia, ela decidiu selecioná-la: MC – “Mas, deixa vai... pode deixar
essa! Tá engraçada!”.
Quando completou 1 ano, Maria Clara já andava, adorava dançar e chamar atenção da
família. Uma de suas fotos prediletas é a que ela aparece com os cabelos “espetados” sentada
numa poltrona branca que até hoje está em sua casa. Neste mesmo momento ela selecionou
395
mais duas fotografias em que aparecia com o mesmo vestido vermelho com estampa floral. Em
uma imagem ela aparece sozinha dando um enorme sorriso e na outra, está nos braços do seu
pai e ao lado da sua avó paterna: MC – “Olha tia essa é minha outra avó, a mãe do meu pai. Eu
tô com a mesma roupa nas duas fotos, porque deve ter sido tirada no mesmo dia. Olha só esse
sorriso, ai meu Deus como eu era fofinha! Não tinha nenhum dente, era banguelinhaaaa!”.
Em um dos encontros, Maria Clara me surpreendeu com sua autonomia, era uma
fotografia em que ela tinha 3 anos. Em high key, ela usa um vestido de cetim na cor salmão e
também uma tiara de anteninhas com formato de coração, acompanhada de sua mãe, que está
com um elegante vestido azul turquesa e de seu irmão em traje de gala, usando paletó preto,
gravata vermelha e óculos amarelo. As crianças erguem plaquinhas decorativas que contém as
seguintes descrições: “Curtindo a festa!!” e “Preparaaa!!!”. Logo que viu a imagem, Clara
tentou ler a plaquinha e quando descobriu o que estava escrito, correu para a estante da sala,
ligou a TV, acessou a rede no YouTube e colocou o clipe da música “Prepara” da cantora Anitta,
em seguida, começou a performatizar. E ela dançou a música inteira, criando coreografias e
imitando alguns passos da cantora.
O seu aniversário de 4 anos foi comemorado na escola e nesta ocasião houve uma
situação que ela recorda até hoje. A mãe de Clara havia encomendado um bolo branco, para
que a própria Clara fizesse sua decoração com canetas especiais de tintas comestíveis. Porém,
quando o bolo chegou na escola, ele já estava todo desenhado e sobravam poucos espaços em
branco para ela desenhar. Clara até hoje lamenta esse fato. Na fotografia, é possível ver o bolo
e nele um desenho de sua família em um jardim. Clara está fantasiada de fadinha e faz poses
para o registro.
Clara adora se fantasiar e dançar, não perde uma festinha de carnaval, São João (festa
junina), apresentações na escola. Ela participa de tudo. O uso de fantasias de carnaval é bastante
significativo na vida de Clara, muitas fotos foram selecionadas por ela para compor sua
narrativa, assim, com a ajuda de Clara, distribuí em um mosaico uma série de momentos que
ela aparece vestida com fantasias de palhaço, fada, abelhinha, Minnie e das princesas Branca
de Neve e Bela.
MC – “Tia, coloca todas essas de fantasias de carnaval que é a minha festa predileta. Eu danço muito, adoro carnaval!”. [continuou fazendo a seleção das
imagens e passou a selecionar as fotos da festa de São João]. MC – Essas aqui
são do São João da escola, eu também gosto muito dessas. Eu subo no palco pra fazer a dança, depois que acaba tudo eu subo de novo e fico lá dançando
um tempão. Só tem uma coisa tia, toda vez que tem a dança é uma confusão com quem eu vou dançar, porque tem Elvis e Edu, lá o tempo todo me
aperreando”.
396
Na escola Clara é uma excelente educanda, gosta muito de estudar, por ser uma criança
extrovertida, chama atenção de todos, está sempre participando das atividades e procurando
ajudar os colegas, adora fazer amizades. Certa ocasião, a professora desenvolveu uma dinâmica
onde os amigos faziam cartinhas uns para os outros e colocavam em pequenas “caixinhas de
correio”. Clara percebeu que um coleguinha não tinha recebido carta nenhuma e resolveu fazer
uma surpresa para ele. Ficou até o fim da aula fazendo uma cartinha e colocou lá escondido.
Mas, ficou desapontada quando percebeu que o amiguinho não queria mais checar a “caixinha”
porque acreditava que não iria receber cartas. Ela, insistentemente, conversou com ele e o
convenceu a olhar, ele foi e viu que havia uma cartinha para ele. Ficaram muito felizes.
Em uma das visitas, Clara me fez uma surpresa. Ela havia recebido as provas que havia
feito e uma das questões chamou sua atenção. Clara fez uma conexão entre a pesquisa que
estávamos fazendo e a atividade escolar, em ambos os casos, o objetivo era contar a história da
vida de uma criança de acordo com a ordem dos acontecimentos em cada fase de crescimento,
a de Clara através de fotografias e a de “Davi” através dos desenhos.
MC – “Oi tia, olha só o que eu tenho para lhe mostrar, a prova da escola, olha isso! É o que a gente tá fazendo né tia? Eu lembrei na hora! P – Eita, deixa eu
ver! [eu li a questão] P – “Observe a linha do tempo de Davi, que nasceu em 2000, e ordene cronologicamente os acontecimentos de sua vida”, nossa! É
MESMO Clarinha, ele vai crescendo e fazendo várias coisas diferentes né?
Que bom que você lembrou de mim, e conseguiu fazer? MC – lógico né tia, fiz tudinho!
Continuei a conversa e perguntei o que ela queria ser quando crescer. Ela demorou para
responder, mas foi falando um monte de profissões. P - Eu queria ser de circo e bailarina, um
monte de coisa... Eu queria ser de circo, éeee ser apresentadora de TV, cuidar dos animais,
coisas assim...”. Falar do futuro ainda é algo muito fantasioso no entendimento infantil, então
comecei a perguntar sobre coisas mais de seu cotidiano.
P: O que você mais gosta de fazer? MC: Brincar com a boneca, as vezes meu
irmão brinca comigo, brincar com meu pai e eu também gosto de ficar correndo, fazendo alguns exercícios, comer. P: Comer é bom, o que você mais
gosta de comer? MC: Eu gosto de comer uva, maçã, mas eu não como muito
maçã, como mais uva, gosto de comer bolo de chocolate também. P: E o que você não gosta? MC: Sabe, eu não gosto de comer muito aqueles peixinhos
pequenos que os cheiros deles são fedorentos, eu não gosto, prefiro ovo. P: O que te deixa chateada? MC: Não gosto de ficar caindo muito, não gosto de ser
machucada, não gosto de fazer karatê porque as pessoas acham que a gente já
tá pronta pra ser batida e não é legal P: Entendi.
397
Em meio às fotografias, Clara foi revivendo cada momento de sua vida, dava muitas
risadas, ficava envergonhada, brincava com imagens, em cada olhar um universo de
sentimentos e percepções. Fui compreendendo junto com ela a importância dos registros, das
referências que cada imagem trazia. Reconheci com isso que a criança tem seu próprio mundo
e que é preciso compreendê-lo a partir dela mesmo, pois os sentidos e emoções revelam
significados que só a criança é capaz de desvelar. A simplicidade infantil está explícita na não-
censura de sua fala. A criança fala com o coração, com a alma, ela vê o belo onde poucos adultos
conseguem enxergar. Por isso, é preciso buscar em nosso íntimo a criança que um dia fomos,
para podermos entender o que pensam, sentem e compreendem as outras crianças com quem
lidamos.
Desse modo, Maria Clara mergulhou em suas lembranças e reminiscências, tentando me
contar suas aventuras de criança, porém, algumas dessas histórias tiveram de ser
fotoetnografadas apenas através de uma pequena representatividade de fotografias escolhidas
por ela, dada a limitação física dessas páginas. Mas, talvez esta tenha sido a melhor maneira de
narrar as histórias dessa princesa blogueirinha, pois suas fotografias testemunham, narram e
demonstram em low key e high key a intensidade visual e social com que ela constrói sua cultura.
São experiências fotoetnografadas de uma vida repleta de conhecimentos, aventuras e
diversões, e que, principalmente, foram capazes de desvelar quem é essa criança e como ela
viveu e vive sua infância.
1.4 Encantos... A princesa “blogueirinha” dos @achadinhosdemariaclara
Conta a mãe de Maria Clara que desde seus primeiros anos, ela sempre gostou de
“aparecer”, aparecer neste contexto significa “chamar atenção”, “ser o centro das atenções”, e
como é falado aqui no nordeste brasileiro, aparecer é “se amostrar”. Em festas, cantava,
dançava, sempre se destacava. No contexto familiar, tinha sempre uma história para contar. Na
escola, participava de todos os eventos, peças teatrais, danças e festas comemorativas. Em casa,
estava sempre fazendo traquinagem, tentando fazer “graça” e inventando mil formas de se
divertir. Sua mãe conta ainda, que Maria Clara adorava ser fotografada e filmada, fazia poses,
cantava e gravava vídeos.
A família de sua mãe morava no interior da Paraíba e quase não vinha para João Pessoa,
isso fez com que sua mãe pensasse em um jeito de compartilhar através da Internet os momentos
de Clara e seu irmão João Pedro. Então em 2013, ela criou um perfil no Facebook
398
“@neyangelafreitas” e um instablog “@achadinhosdemariaclara” no Instagram com a intenção
de divulgar apenas para a própria família, mas, manteve raras publicações no Instagram,
divulgando suas imagens mais no Facebook. Como o Instagram é direcionado, exclusivamente,
para Maria Clara, contextualizarei apenas esta rede social, mas, farei algumas menções ao
Facebook.
Só a partir de 2016, sua mãe passou a postar com certa frequência imagens e vídeos de
Maria Clara no Instagram. Seu primeiro vídeo datado em 20 de fevereiro de 2016 mostra Clara
com 5 anos apresentando uma roupa que foi customizada por ela com a ajuda de sua mãe, daí
em diante as postagens ficaram cada vez mais frequentes. A mãe de Clara fazia postagens de
festinhas escolares, cenas do dia-dia, aniversários, entre outras, com isso, o instablog foi
adquirindo uma identidade social, onde Maria Clara protagonizava as histórias que falavam de
moda, culinária, família, passeios, criatividades manuais, rotinas escolares, brincadeiras, datas
comemorativas. Apenas em outubro de 2016 ela começou a se identificar como “blogueirinha”
e passou a fazer vídeos sobre promoções e produtos comerciais de lojas, de pequenos e grandes
portes. As mesmas postagens do Instagram são repostadas no Facebook.
Para Clara, “blogueirinha” é uma pessoa que “- faz vídeos para Internet sobre moda,
sobre ser criança, sobre as coisas que a pessoa faz, e também, éeee... sobre coisas que a gente
pode fazer como dicas de pintura, lembrancinhas para o papai, muita coisa assim...”. Clara
nunca teve vínculo comercial com empresas, apenas faz postagens para promover seu próprio
“canal”.
Maria Clara tinha poucos seguidores e seus vídeos adquiriam em média 10
visualizações, quando questionei sua mãe sobre isso ela me disse que fazia as postagens e os
vídeos porque Clara gostava, não porque estava esperando ter muitas visualizações ou porque
queria que sua filha fosse famosa: M – “Clara adora fazer fotos e vídeos, a gente não se preocupa
com o que as pessoas vão achar, a gente faz para se divertir. Ela assiste os canais de criança no
YouTube aí fica aprendendo e quer fazer o dela, ela mesmo quem tem as ideias, ela fala por ela,
eu quase não digo nada”. Tive a oportunidade de presenciar durante as observações em
encontros externos, algumas gravações e realmente, Clara fala de acordo com o que vêm à
mente, sua mãe ajuda nos termos mais relativos à loja, ao evento e outras questões pontuais,
inclusive, Clara nem gosta de ouvir, e diz logo... MC – Tá bom, mãe! Eu já sei! Poucas vezes é
preciso repetir as gravações, geralmente, os vídeos ficam bons na primeira tentativa.
Um fato inusitado, que se tornou importante mais adiante, ocorreu em 6 de janeiro de
2017, Maria Clara encontrou a apresentadora de TV, Fernandinha Albuquerque do programa
Mulher Demais da TV Correio, uma emissora da Paraíba, que estava acompanhada do Chef de
399
cozinha Adeilton, também colaborador do programa. Na ocasião o desafio era patinar no gelo
dançando. Maria Clara estava no ambiente dela, seu espaço predileto, a patinação no gelo. Com
muita desenvoltura, patinou, dançou e chamou atenção dos apresentadores. Este foi o pontapé
inicial para mais tarde, Clara iniciar um trabalho na TV. O vídeo referente a esta ocasião teve
40 visualizações, e após a pequena repercussão do vídeo, Clara continuou com outras postagens
comerciais atingindo 71 visualizações.
No dia 28 de janeiro de 2017, sua mãe a levou para uma gravação ao vivo da
apresentadora Fernandinha Albuquerque em um evento na praia, referente à abertura do verão.
Lá, Maria Clara, informalmente, participou das gravações, dançando e chamando a atenção do
público. A esta altura já havíamos iniciado nossos encontros. E Clara sempre muito
entusiasmada, me contava e mostrava os vídeos que tinha feito. Nesta ocasião, os contatos entre
a apresentadora e Clara foram se tornando mais próximos. E no dia 13 de fevereiro, Maria Clara
fez seu primeiro vídeo, especialmente, produzido para o Programa Mulher Demais, uma matéria
falando sobre moda e alimentos saudáveis. A equipe de produção foi até sua casa para gravar
as cenas, que foram ao ar no dia seguinte. Maria Clara adorou a experiência e comentou comigo:
MC – “Tia foi muito legal, foram duas filmagens, em uma eu mostrei umas roupas para o
carnaval, para usar no carnaval né, mostrei a maquiagem e, e depois na outra eu falei das
comidas saudáveis, eu disse que gostava de comer batata-doce, eu adoro batata doce, eu levo
até pro lanche da escola, nossa foi demais!”.
Estas situações levaram a mãe de Clara a pensar sobre uma futura carreira artística para
a filha, mas, ela ainda não sabia por onde começar. Então buscou informações com lojistas e
algumas pessoas que trabalhavam com eventos infantis de moda. E ficou sabendo que a empresa
Popótamus Club em parceria com a Revista Acrópolis sempre promovia eventos de moda
infantil, então começou a participar dos eventos sociais da Papótamus para estudar as
possibilidades. Participou de um baile de carnaval e mais uma vez “roubou a cena” como disse
sua mãe. Nesta ocasião, foi convidada a participar de um concurso de beleza, o Miss Beleza
Verão Paraíba 2017 no dia 19 de março, promovido pelo projeto Passarela, uma agência de
moda do estado de Recife. No entanto, para participar teve de arcar com algumas despesas
como taxa de inscrição, compra de roupas e acessórios, totalizando um investimento de R$
600,00. Mesmo sendo o seu primeiro desfile, ela conseguiu vencer o concurso, ganhando uma
premiação de R$ 1.000,00. Maria Clara ficou radiante, comemorou muito a vitória e sua mãe
ficou muito emocionada. Quando chegou em casa, ainda maquiada e com a coroa que havia
ganho, fez um vídeo e postou no Instagram, este vídeo obteve 89 visualizações, com a seguinte
narração:
400
Gente, boa noite, eu acabei de chegar do hotel e eu consegui ganhar o concurso Misse Paraíba Verão, e é de 2017, eu consegui essa faixa que veio junto com
a coroa. Gente é minha primeira vez, desfilando lá, né, no concurso. E eu
consegui! Nooossa gente, eu fiquei tão alegre, na hora! Eu consegui ficar em primeiro lugar, então agradeço a todos que torceram por mim e pela minha
família, beijão uuuunnnmaaaaaaahhh! (extraído dos @achadinhosdemariaclara).
Aos poucos Maria Clara foi entrando neste universo de glamour e fama, o qual já fazia
parte de seu imaginário de criança, quando incorporava as princesas e assistia suas
“blogueirinhas” preferidas no YouTube. Encantada com a capacidade da filha em se destacar
em tudo que participava, a mãe de Clara resolveu investir financeiramente em sua carreira,
agora já mais amadurecida e determinada. Conversou com o esposo, que, mesmo relutante,
participava de todas as ocasiões. O pai não acreditava muito na honestidade desses concursos,
não confiava muito neste ambiente de moda e beleza em que exploram financeiramente as
famílias em troca de algumas pequenas divulgações. Muito politizado, acha que essas empresas
se aproveitam da ingenuidade das pessoas para se capitalizarem cada vez mais, e que os
resultados dos concursos são sempre manipulados por quem oferecer maiores vantagens à
empresa que promove.
De acordo com a pesquisa “Escolas de Pequenas Misses: um estudo sobre os concursos
infantis de beleza” realizada por Knupp (2015, p. 112), o pai de Clara tem razão, pois “os
concursos infantis de beleza funcionam ora como ‘escolas’, ora como negócios lucrativos, ora
como formas (disfarçadas) de trabalho infantil”, para este autor, as “estratégias adotadas pela
organização na elaboração e execução da agenda desse tipo de evento são baseadas em regras
e normas visando angariar o máximo possível de retorno financeiro” (KNUPP, 2015, p. 91).
Mas, voltando à Clara, este concurso em particular, surpreendeu seu pai, por isso, de
certa forma, ele concordou com a esposa em continuar investindo na carreira artística da filha
que estava começando a despontar.
Depois do desfile, uma série de compromissos sociais foram surgindo, as mães das
misses se comunicavam através de um grupo no WhatsApp, onde combinavam pequenos
passeios, festinhas e participações em eventos e em outros concursos, o que desencadeou muitas
badalações, passeios, e mais fotografias e novos vídeos.
No dia 2 de abril, Maria Clara participou como convidada de um evento de moda,
desfilando como Miss Beleza Verão Paraíba 2017 e no dia 4 de abril fez uma participação em
401
uma propaganda publicitária de uma loja de brinquedos infantis, ambos promovidos pela
mesma agência do concurso de beleza.
No dia 30 de abril, Maria Clara participou de outro concurso de beleza, o Mini Miss
Paraíba 2017, mas não venceu. Eu acompanhei todo o processo. Ela fez um lindo desfile de
traje de banho e também brilhou em traje de gala. Mas, como o evento atrasou muito para
iniciar, causou atraso também para o encerramento. Já passava das 23 horas, e ela adormeceu
bem na hora do voto dos jurados, quase 1 hora da manhã, seu semblante não deixou disfarçar o
cansaço, prejudicando-a na reta final. Esse momento foi de profunda tristeza. Clara chorou
muito. Tentamos consolá-la, mas o cansaço e a decepção, a deixara inconsolável. No caminho
de casa, tentávamos explicar a ela que o importante não era vencer e sim participar, se divertir.
Mas, ela só fazia chorar, e chorava bem alto para não nos ouvir. MC – eu nunca mais quero
desfilar! Disse em lágrimas. Eu estava dirigindo, e não pude dar mais atenção, quando a deixei
em casa, disse: P – você estava linda! Era a mais linda! Tenho certeza que na próxima você
conseguirá vencer! Não chore, cadê o sorriso? Já sei! Vamos combinar de passear juntas
amanhã? Me dá um abraço! Ela sorriu e me abraçou. Sua mãe, também consolou Clara e achou
muito injusto o resultado. Foi uma noite estressante e cansativa para Clara.
No outro dia, Clara fez umas fotos com o vestido vermelho de princesa que usou no
desfile e já estava mais animada. Depois fez um vídeo divulgando a inauguração de uma loja
do shopping e postou no Instagram. Essa postagem obteve 91 visualizações. Os pais de Clara
costumam ir ao shopping, que fica perto de sua casa, para assistir umas apresentações musicais
que acontecem na praça de alimentação aos sábados. Nestas ocasiões, Clara dança bastante,
chama atenção do público e dos cantores que sempre a convidam para subir no palco, como no
dia das mães. A mãe de Clara filmou e postou o vídeo, que obteve 201 visualizações.
No dia 20 de maio, a mãe de Clara recebe uma proposta da Popótamus Club para Clara
participar de um desfile de moda. Mas, para participar ela deveria adquirir nas lojas
patrocinadoras, as roupas que a criança usaria no dia do desfile. Ela aceitou e comprou roupas
de dois patrocinadores, um de roupas sofisticadas e outro de pijamas. Um investimento de quase
R$ 800,00. A mesma loja de pijamas promoveu uma tarde de degustação de brigadeiros
saudáveis, convidando as crianças do desfile. Então, no dia 27 de maio, acompanhei Clara em
nesta “tarde de gostosuras”. Lá, Clara fez algumas fotos e gravou um vídeo para postar em seu
instablog.
No dia 28 de maio, peguei Clara e sua mãe e fomos passear no Mercado de Artesanato
402
Popular da Paraíba, lá fiz algumas fotos de Clara, ela amou posar como modelo fotográfico.
Sua mãe ficou encantada com as imagens e postou quase todas no Facebook e no Instagram.
Clara me contou que gostava muito da natureza, dos animais e das plantas. Me mostrou alguns
brinquedos de madeira e umas bonecas de pano. Foi uma tarde de muitas risadas.
No dia 30 de maio, fomos para o evento da Popótamus Club, havia mais de 60 crianças
participando. A revista Acrópolis fez toda a cobertura do desfile, divulgando, posteriormente,
fotos de Clara e das demais crianças no site e na revista. Durante o evento, Clara não tirava o
olho da passarela, dançava, sorria muito, comentava sobre as roupas, sobre as outras crianças,
estava maravilhada com o cenário. Este é um ambiente que a agrada consideravelmente.
Chagada a sua vez, ela desfilou com muita desenvoltura, usava um short preto, uma camisa
branca de mangas compridas, um casaco bem colorido e usava um penteado com um arranjo
colorido no cabelo. Ela soltou beijos para o público, fez poses para os fotógrafos e para mim,
parecia que a passarela era só dela. Foi bastante aplaudida. Depois, voltou a assistir ao desfile
das outras crianças. Em seguida, teve de trocar de roupa, pois iria desfilar dessa vez com o
pijama. Enquanto esperava sua vez, continuou assistindo atentamente, ao desfile. Assim que
chamaram as crianças que desfilariam de pijama, ela correu para aguardar a sua vez na fila. E
repetiu a mesma desenvoltura na passarela. Ao final do evento, o Dj colocou uma música e
todas as crianças dançaram na passarela. A festa continuou com uma boate para as crianças e
um pequeno lanche para o público em geral.
Clara se divertiu muito, dançou bastante e brincou nos brinquedos eletrônicos do salão
de festas. Interessante destacar uma situação em que Clara tenta obter vantagens no sorteio de
brindes. Durante a festa, uma equipe de recreação fazia sorteio de brindes, para isso, pedia às
crianças que sorteassem os números dos bilhetes, cada ingresso da festa tinha um número. Entre
um sorteio e outro, Clara ficava atenta aos nossos números. Quando já estavam nos últimos
brindes, a equipe jogou todos os bilhetes para o alto, sorteando um e espalhando no chão os
demais. Clara perguntou qual era o nosso número e começou a procurar pelo chão. Quando
achou guardou com ela e esperou que houvesse outro chamado. Assim, quando pediram às
crianças outro bilhete, Clara imediatamente, pegou o que ela já havia encontrado e fez de conta
que não sabia que era nosso, desse modo, conseguiu fazer com que o nosso número fosse
sorteado. Ela viu aquilo e começou a rir. Ficamos impressionados com sua atuação. O que seria
para nós um ato reprovável, para a criança tratou-se um ato de subversão e esperteza. Sua
ousadia demonstrou a capacidade de encenação, através da brincadeira ela criou sozinha,
estratégias para solucionar seu problema, com isso, ela transgrediu as regras, ressignificou sua
lógica e exerceu sua vontade de modo autêntico e criativo.
403
Após a ocasião do desfile, por iniciativa de uma das mães, foi criado o instablog
@minid.influencepb – MDIPB, um tipo de “club virtual” para crianças “influentes” em redes
sociais (meninos e meninas) como bloguers e youtubers mirins. E Maria Clara foi convidada
para fazer parte da equipe e para participar da festa de lançamento no dia 4 de junho, esta foi
uma iniciativa particular sem muitas repercussões midiáticas.
Em 8 de junho, Maria Clara participou do curso de modelo promovido pela agencia
Passarela, nesta ocasião houve uma seleção oficial de modelos infantis e ela foi aprovada em
duas etapas, restando apenas a terceira etapa que ocorrerá em 2018 na cidade de Curitiba, o
investimento para esta participação foi de R$ 3.000. As crianças que vencerem a terceira etapa
serão encaminhadas para a agência como modelos exclusivas, com possibilidades para atuação
em TV. Maria Clara ficou muito feliz, fez um vídeo e mostrou o certificado de aprovação. No
dia 14 de junho, Clara participou do desfile de encerramento do curso de modelo e foi muito
elogiada pelos organizadores.
O projeto Passarela tem descoberto muitos talentos infantis que hoje são atores em
canais abertos da televisão brasileira, no entanto, considerando o volume de crianças que
participam e são aprovadas, pode-se inferir que seu foco é angariar cada vez mais valores em
cima dos sonhos e das expectativas que geram nas crianças e em suas famílias, os valores de
inscrição e participação são absurdos. Mas, mesmo ciente desta manipulação capitalista, a mãe
de Clara resolveu investir. M – “Clara está vivendo seu momento, este é o momento dela! Eu
preciso investir agora”, ou seja, para ela, esta é uma grande oportunidade para Clara ser
descoberta por “olheiros” que sempre frequentam este tipo de evento. O pai de Clara, um pouco
mais desconfiado, prefere não criticar a atitude da esposa, e a acompanha sempre em suas
decisões, inclusive, está sempre presente durantes os eventos em que Clara participa.
No mês de junho Maria Clara participou de dois eventos juninos, um no Popótamus
Club e outro no Pula Pirula Festa e Eventos. Nestas ocasiões, desfilou vestida de matutinha e
fez muito sucesso com suas novas postagens. Com toda a repercussão, Maria Clara foi
convidada para apresentar três matérias no Programa Mulher Demais pela TV Correio, afiliada
da Rede Record na Paraíba, um sobre culinária em que ela fez uma canjiquinha, um sobre
roupas juninas em que ela mostrou como se vestir no São João e outro em que ela deu dicas de
maquiagem. Estas participações foram fundamentais para a entrada definitiva de Maria Clara
no programa da apresentadora Fernandinha Albuquerque que a convidou para continuar
fazendo reportagens durante todo o mês de férias.
P: E aquelas reportagens lá das férias? MC: Foi as férias da criançada, os pais
404
não sabem onde levar né? Então, aí eu mostrei vários cantos onde os pais
podem levar que são bons pras crianças. P: Ah, e quais foram esses cantos? Você lembra? MC: Foi na Bica, eu fui no parque, como é que é o nome? P:
Arruda Câmara? MC: Não, a Bica já foi, mas é um outro, sabe aquele grande?
P: Espaço Cultural. MC: Não, eu também fui no Espaço Cultural, eu acho, é, então, aquele lugar que tem um circo, eu fui também pra aquele lugar que tem
os peixinhos, e no final tem o circo. P: Ah que legal, muitos lugares, e tu
gostou de fazer essas reportagens? MC: Aham, o circo foi o meu preferido”.
Em 28 de junho, Clara fez uma reportagem no Espaço Cultural sobre atividades de circo
para crianças, no dia 6 de julho, ela foi para o Parque arruda Câmera, o zoológico da cidade e
apresentou os animais, segurou uma cobra e brincou com um gavião, não teve nenhum medo.
No dia 13 de julho foi para a Estação Ciências, divulgar uma colônia de férias. E no dia 19 de
julho a gravação foi feita num ateliê, onde Clara participou de uma oficina de arte. E para
encerrar a jornada de matérias, participou da gravação do programa no próprio estúdio junto a
apresentadora. A partir de então, Maria Clara ficará mandando seus vídeos para o programa
com dicas de moda, customização de roupas, confecção de pequenos artefatos artesanais, entre
outros, estes vídeos serão reproduzidos semanalmente, durante a programação. Em uma das
ocasiões em que Clara esteve na TV correio. Um fato inusitado para Clara foi saber que ela tem
um fã que trabalha nos bastidores do programa, assim que nos encontramos, ela tratou logo de
me contar:
MC – tia, sabia que eu tenho um fã na TV? P - você já tem fã? MC: Tenho! P:
Como é isso? MC: É assim, quando eu cheguei lá tava com problema pra mandar o vídeo do dia dos pais, que é aquele da lembrancinha, aí não tava
pegando, aí eu fui lá em cima [pedir ajuda para enviar o vídeo, quando chegou lá foi surpreendida pelo fã, que pediu para tirar uma foto com ela] MC - só
que ele queria tirar foto [...]. P: Aí ele tirou foto contigo? MC: Tirou, no celular
dele! P: Ele disse que era teu fã? MC: Aham, ele tem todos os meus vídeos no computador dele! P: Não acredito! Que legal.
Concomitante a estas gravações, o pais de Maria Clara assinaram um contrato com a
revista Acrópolis para fazer parte do projeto Garota Acrópolis Kids, que envolve a participação
em eventos promovidos pela revista e pelo Popótamus Club, dando direito a algumas mídias
impressas e digitais. O investimento foi de R$ 2.000. Já fazendo parte deste contrato, Maria
Clara participou de uma colônia de férias; de uma festa à fantasia, onde se vestiu de colombina;
de uma tarde de cinema e patinação no gelo; fez várias fotos para a revista, inclusive umas com
seu pai em homenagem ao dia dos pais.
Agora Maria Clara já tem 1.549 seguidores no Instagram e suas postagens já passam de
200 visualizações. Cada vez mais, ela deixa de brilhar apenas para a sua família, e como os
astros, com sua própria luz, ela começa a irradiar por todo lado. Ao final da narrativa visual,
405
acrescentei algumas imagens de Maria Clara postadas após a conclusão da pesquisa etnográfica,
para dar uma visão geral de como sua carreira como modelo despontou após todos esses
trabalhos na TV local. Atualmente, Maria Clara é convidada a participar de desfiles,
publicidades e eventos em toda grande João Pessoa, em sua grande maioria, ela paga pela sua
participação, através da aquisição de roupas para desfiles e/ou outros produtos das lojas que
anuncia.
Acompanhei, direta e indiretamente, todo esse processo, desde os primeiros desfiles até
suas inúmeras participações no programa de TV, vi e ouvi muitas de suas conquistas, sempre
atenta aos acontecimentos que permeavam o cotidiano de Clara, e confesso, em muitas
situações eu deixei de ser pesquisadora, para ser conselheira, torcedora, até mesmo
incentivadora, pois, acabei me deixando envolver com seu talento, sua luz e seu carisma.
Conversei com ela sobre sua participação em programas de TV, com muito entusiasmo ela me
contou algumas de suas aventuras.
P - Maria Clara, quer dizer que agora você é a criança mais famosa do Brasil? MC: Sou! (risos) P: Por que você é famosa? MC: É porque eu apareço na TV.
P: E o que você faz na televisão? MC: Eu faço vestido de boneca, eu faço coisas pra boneca e também falo de moda e eu fiz também uma lembrancinha
do dia dos pais pra quem quiser ver. MC – faço reportagens de moda também,
mostro os looks para crianças bem estilosa. P - E o que é ser estilosa? MC: É tipo assim, tá bonita, bem bonitinha! [...].
Toda essa trajetória de Maria Clara foi vivida de acordo com as limitações da família,
existe um alto investimento que é feito com muito sacrifício, mas, percebe-se que toda a família
se diverte também com isso. Os pais de Clara acompanham todos os eventos e participam
ativamente da vida da folha, sempre estão juntos festejando cada conquista, mas, sobretudo,
estão atentos aos perigos que esta carreira também esconde, por isso, priorizam trabalhos que
valorizam a infância.
Clara adora esse universo glamoroso e cheio de diversão, um reflexo das infâncias
contemporâneas, da ciberinfância de crianças blogueiras, fashionistas e dos novos
comunicadores sociais -os youtubers mirins. Esse tipo de infância está aí, a infância da criança
que tem sua própria opinião, que quer estar em constante evidência e tem um grande potencial
de comunicação e expressão. É preciso conhece-la melhor.
Neste diapasão, as discussões sobre as concepções de criança e infância também
envolvem as percepções das próprias crianças, suas falas e expressões dão suporte ao que
apenas conhecemos teoricamente, é preciso se aproximar, mergulhar no universo infantil,
brincar junto, criar junto, conversar e entender o que elas têm a nos dizer e até mesmo a ensinar.
406
Após narrar as histórias de Maria Clara, darei sequência ao ensaio explanando a
trajetória metodológica da pesquisa fotoetnográfica autobiográfica, para tanto, descrevo as
implicações do memento no processo de descrição em high key e low key dos contextos de
pesquisa, os elementos presentes durante a produção da narrativa e alguns diálogos que se
fizeram necessários à compreensão do todo narrativo.
2 A FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA NA PESQUISA COM CRIANÇA
Este ensaio propôs um profícuo diálogo entre epistemologias e metodologias que
caminharam em busca do desvelamento da realidade da infância a partir da óptica da própria
criança, marcando assim, posição na defesa de sua participação na pesquisa, consequentemente,
rompendo com sua in/visibilidade científica. O percurso se delineou em metodologias não
convencionais que potencializam as relações entre pesquisador e sujeito-infantil, reconhecendo
a complexidade das infâncias a partir das singularidades dos modos de ser da criança,
aproximando-se dessa maneira, das culturas que se produzem não só através de processos
reprodutivos, mas sim, processos que são construídos de modo recursivo na reprodução social
(GIDDENS, 1984, p. XXV), processos estes, que fundamentaram a teoria da reprodução
interpretativa de Corsaro (1993, p. 114), também entendida no contexto das pesquisas em
Sociologia da Infância como uma forma de “apreensão criativa” da criança (MÜLLER e
CARVALHO, 2009, p. 23; MARTINS FILHO e PRADO, 2011, p. 3).
Como já ressaltado, a participação da criança têm sido uma das mais importantes defesas
da Sociologia da Infância, enseja uma mudança paradigmática que se nutre de uma abordagem
multidisciplinar construída em torno de um objeto científico próprio: a infância como categoria
social e as crianças como atores sociais. Com isso, assumindo para si, a importância da
participação da criança em assuntos relacionados a ela e afastando-se de uma visão
adultocêntrica da infância, o que constituem os esforços teóricos principais da Sociologia da
Infância (SARMENTO, 2009, p.7). Nesta dimensão, esse campo do saber caracteriza-se
atualmente, como um programa epistemológico científico em plena fase de institucionalização
que se consolida na “produção de teorias, quadros conceptuais e frames interpretativos
próprios”, em diálogo com outros campos, como a Antropologia, a Sociologia, as Ciências da
Comunicação, as Ciências da Educação, entre outros (SARMENTO, 2015, p. 33-34).
Os procedimentos analíticos e as metodologias investigativas nos estudos da criança
407
vêm caminhando na direção de estratégias que privilegiam a escuta da criança, como a
etnografia, a pesquisa participativa e os métodos visuais (imagens), consequentemente, a nova
epistemologia da infância abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil na
promoção de metodologias que promovem espaços de interlocução entre crianças e adultos e
entre crianças e crianças, dando a elas a oportunidade de se expressarem criticamente
(SARMENTO, 2015, p. 34).
Pensando nisso, este ensaio trouxe uma proposta de investigação que priorizou,
consubstancialmente, as subjetividades e interpretações da criança acerca de si e das relações
que estabelece com o outro e com as culturas da qual participa, nessa intenção, durante a
pesquisa empírica direcionei o olhar para o desvelamento das culturas da infância procurando
identificar evidências de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia
autobiográfica, ou seja, considerei, prioritariamente, as percepções ontológicas e interpretativas
da própria criança acerca de sua história de vida, buscando perceber como as culturas infantis
se aproximam, são aproximadas e se distanciam das imagens im/dis/postas nas culturas visuais
contemporâneas.
Neste sentido, o método fotoetnográfico empreendido na tese adquiriu outras dimensões
na pesquisa empírica, tendo em vista que, agora, seu objeto passou a ser narrado e interpretado
pelo próprio sujeito de sua narrativa – a criança. Portanto, foi necessário fazer algumas
implementações ao método, porém, não desconsiderando suas premissas epistemológicas e
metodológicas. Desse modo, para o desenvolvimento da pesquisa empírica, o movimento de
interpretação memento - reviver, sentir e compreender - foi fundamental para promover a
participação da criança, dada suas dimensões ontológicas, subjetivas e heurísticas para a
interpretação da imagem, e neste caso, de sua autoimagem.
A participação efetiva da criança-sujeito nas escolhas e narrativas sobre as suas próprias
imagens foi fundamental para compreender como se estabelecem as relações entre identidade,
subjetividade, cultura e alteridade no contexto da infância contemporânea. Nesta perspectiva,
foi preciso considerar o próprio contexto da criança como campo legítimo para conhecer suas
culturas e visões de mundo, considerando essencialmente, a criança como detentora de saberes
e capaz de expressar-se criticamente (DELGADO e MULLER, 2005; SARMENTO, 2005).
Produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil, desde a
seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e significados relativos à sua história
de vida, não foi uma tarefa fácil. Rocha e Passeggi (2012, p. 115) ao tratar da narrativa
autobiográfica ressaltam que essa modalidade parte de princípios epistemológicos que
proporcionam a apropriação de histórias e memórias, constituindo-se uma forma de
408
empoderamento180. As autoras também destacam que a escuta sensível do Outro, parte do
reconhecimento de sua história de seu pertencimento social, desse modo, na pesquisa
autobiográfica, “os processos reflexivos e de ressignificação das experiências são importantes,
tanto para a pessoa que narra, quanto para quem às escuta, incluindo o pesquisador, que se
forma com a pesquisa e com quem dela participa (ROCHA e PASSEGGI, 2012, p. 115).
A Fotoetnografia, neste contexto, possibilitou a construção de uma narrativa
autobiográfica, tendo em vista que “as fotografias são recortes arbitrários, traduções da
realidade” (ACHUTTI, 2004, p. 111) que possuem em si a capacidade de estabelecer sentidos
e significados históricos e ontológicos da vida humana, uma pesquisa que se pretende
fotoetnográfica deve estabelecer relações intersubjetivas entre pesquisador e sujeito, por isso,
o caráter heurístico do método, o qual favorece deslocamentos rizomáticos e criativos em
função de uma narrativa que realce as particularidades e interpretações críticas da criança.
De acordo com Holanda (2006, p. 368), o caráter heurístico abrange processos
autobiográficos, autocriativos e de autodescobertas que dão significados àquilo que o
pesquisador pretende compreender, nessa perspectiva, a “grande contribuição do modelo
heurístico está na intrínseca participação do sujeito e do pesquisador no próprio ato da pesquisa,
isto é, na efetiva colocação da subjetividade do pesquisador no ato de pesquisar.”.
Principalmente, em se tratando de pesquisas com crianças, onde essas relações se acentuam
ainda mais. Daí a necessidade de um permanente movimento de retorno, partilha e reflexão
sobre a análise do material coletado, a partir de olhares e escutas que provoquem os sentidos
interpretativos da criança.
Em função disto, outro aspecto tornou-se fundamental para o desenvolvimento da
pesquisa fotoetnográfica autobiográfica, refiro-me à apropriação e o entendimento
epistemológico e ontológico da imagem técnica fotográfica como uma expressão da realidade
e um abrigo para as reminiscências da alma, ou seja, a ideia de que uma fotografia vai muito
além de um instantâneo imagético planificado, a fotografia na pesquisa fotoetnográfica
comporta sentidos, pensamentos, memórias, histórias magicizadas em peles. Conforme
prenunciado por Koury (1998, p. 72-73), a fotografia é como um simulacro do Outro, pois,
“Imortalizado, o instantâneo fotográfico vira eterna presença”.
Portanto, as fotografias enquanto memórias e reminiscências funcionaram como telas
que transmitiam o que o cérebro comportava em operações sensoriais, cognitivas e afetivas
180 O empoderamento para Rocha e Passeggi (2012, p. 115) é entendido na perspectiva de que as narrativas
autobiográficas se originam a partir do conhecimento de si, ou seja, da apropriação do sujeito em relação
à sua própria história e pertencimento social.
409
(DELEUZE, 2003, p. 264; SAMAIN, 2012, p. 158), dessa forma, a fotografia tornou-se um
“elemento detonador de outras memórias” (CARVALHO, 2011, p. 118), assim como nas
palavras de Koury (1998, p. 74) “a fotografia evoca e revela o real, são critérios de verdade”,
nesse sentido, diante dela, a criança-sujeito reviveu seu passado-presente, contemplou o belo e
compreendeu a plenitude da sua própria infância.
Se na vida a fotografia conquistou o status de realidade, na cultura ela ganhou força,
expressão, simulação, na arte, criação e na ciência ela adquiriu novos contornos que anunciaram
um tempo pós-histórico, em que o "pensamento-em-superfície" (imagem) vem absorvendo o
“pensamento-em-linha" (escritura), ou seja, um tempo em que as imagens técnicas passam a
pensar conceitos, a estruturar o pensamento humano, passou-se, portanto, a pensar por imagens,
a conceituar imageticamente, consequentemente, “a ciência não será mais meramente
discursiva e conceptual, mas recorrerá a modelos imagéticos. A arte não trabalhará mais com
coisas materiais ("oeuvres")181, ela proporá modelos” (FLUSSER, 2007, p. 125, grifos do
autor).
Segundo Flusser (2007, p. 110-111) trata-se de uma “mudança radical no ambiente, nos
padrões de comportamento e em toda a estrutura de nossa civilização”, isso significa que os
caminhos que a fotografia toma na pesquisa científica assumem um patamar de importância
antes nunca visto. A infância na sociedade da 2ª modernidade mergulhou no universo
fotográfico de maneira irredutível, registram-se cenas em imagens técnicas a fim de magicizar
a vida, garantir sua memória, significar a existência, eternizar a realidade. Nesta dimensão, a
fotografia enquanto fenômeno social virou objeto legítimo para a ciência, que também passará
a pensar imageticamente, como outrora asseverou Flusser (1985, p. 12):
Tudo, atualmente, tende para as imagens técnicas, são elas a memória eterna
de todo empenho. Todo ato científico, artístico e político visa eternizar-se em
imagem técnica, visa ser fotografado, filmado, videoteipado. Como a imagem técnica é a meta de todo ato, este deixa de ser histórico, passando a ser um
ritual de magia. Gesto eternamente reconstituível segundo o programa. Com
efeito, o universo das imagens técnicas vai se estabelecendo como plenitude dos tempos. E, apenas se considerada sob tal ângulo apocalíptico, é que a
fotografia adquire seus devidos contornos.
Esta síntese argumentativa dá sustentação a este terceiro ensaio que projetou seus
resultados nos seguintes argumentos: i. a fotografia é um permanente devir-imagem que no
contexto da Fotoetnografia autobiográfica se torna um “entre-lugar” do passado-presente, da
181 Termo em francês que designa “trabalho”.
410
ausência-presença, do reviver-sentir-compreender; ii. a fotografia é um permanente devir-
humano retroalimentado pela cultura visual que magiciza a vida em imagens técnicas; iii. no
contexto da infância, a fotografia se torna uma “entre-cultura” que se manifesta em
microestruturas e/ou macroestruturas sociais e são produzidas pela/sobre a ação das crianças
em meio às relações de alteridade que estabelecem junto às culturas infantis, adultas e visuais.
Com vistas a tais argumentos, a narrativa fotoetnográfica autobiográfica abrangeu,
basicamente, duas dimensões, ambas implicadas no movimento cíclico de interpretação
memento. A primeira referiu-se à percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - à
medida que a criança produzia a narrativa visual autobiográfica e elaborava sua compreensão
num processo de reflexão interpretativa dos fatos (CORSARO, 1997) dando sentidos e
significados às suas experiências visuais e sensitivas; A segunda referiu-se à percepção da
pesquisadora - durante o processo de geração de dados junto à criança-sujeito, através do diário
fotoetnográfico e durante o processo de análise interpretativa (GRAUE e WALSH, 2003, p. 33-
39) das narrativas fotoetnográficas produzidas pela criança-sujeito à luz das concepções
teóricas que pautaram as investigações. Deste modo, as Fotoetnografias tomaram formas
distintas, porém, complementares. Requereram para si, efeitos de veracidade e de subjetividade
construídos de formas híbridas e transversais, sobretudo, reais e éticas.
Porém, além destas dimensões, vale ressaltar que o movimento de interpretação
memento desenvolvido, especificamente, para este estudo, também intencionou possibilitar de
forma indireta, uma terceira dimensão – a percepção do leitor/espectador, ou seja, àquela que
potencializa uma viagem no tempo, na história, nas memórias e reminiscências da própria
infância do sujeito que contempla e reflexiona as imagens. Constituindo-se assim, num
movimento vivo e contínuo que se retroalimenta de novos olhares e com eles, novas percepções,
novas reminiscências, tendo em vista que, a fotografia,
[...] caracteriza-se como lembrança, provoca no olhar que vê uma síntese da
memória pessoal. Significa gestos, atos e sentimentos. Constrói redes de significados precisos, que singularizam a rememoração pelo ato emocionado
que provoca no observador. Pela cumplicidade que estabelece ou busca estabelecer entre aquele que observa e aquele que a foto representa,
referenciado e fixo na ausência presente de um tempo e de um espaço que não
mais existem, embora continuem a existir na realidade da foto (KOURY, 1998, p. 77).
Dito isto, o processo de geração de dados intercalou diferentes procedimentos. Em se
tratando da primeira dimensão, os dados foram gerados através do discurso infantil
autobiográfico durante a produção de sua narrativa visual, tendo como corpus as fotografias
411
dispostas fisicamente em álbuns de família e disponíveis digitalmente em pen-drives e redes
sociais como Facebook, YouTube e Instagram, nas quais a criança mantém interação constante,
com a mediação de sua mãe, agregadas ao próprio discurso infantil. Na segunda dimensão, a
Fotoetnografia foi realizada a partir da pesquisa com criança intercalando técnicas de inspiração
etnográfica como diário de campo, que particularmente, chamei de diário fotoetnográfico,
observação participante, conversas informais e produção de narrativa visual.
O termo “geração de dados” foi sugerido por Graue e Walsh (2003, p.115) para substituir
o tradicional termo “recolha de dados”, pois, segundo os autores, é mais adequado ao fato de
que “os dados não estão por aí, à nossa espera [...]”, sendo necessário, a sua produção antes
mesmo da recolha, e isto, segundo os autores, exige competência e rigor em três estratégias
básicas que envolvem entrevista, observação e, aí sim, recolha dos dados. Neste contexto, o
planejamento prévio tornou-se fundamental. O planejamento envolveu a definição de
informações gerais como: as intenções do plano, os instrumentos de pesquisa, o material a ser
utilizado, as perguntas a serem feitas, os dias da visita, os horários e duração dessas visitas,
entre outros. Daí que “a aquisição de dados é um processo muito activo, criativo e de
improvisação” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 119), neste sentido, foi preciso atentar aos
detalhes e às oportunidades que emergiam da própria iniciativa infantil.
Outra importante premissa foi o comportamento ético e o respeito às inteligibilidades e
especificidades culturais e sociais da criança-sujeito. Ou seja, o fato de estar investigando o
modo de ser e de viver das pessoas, não dá o direito de fazer julgamentos ou axaltações sobre
sua vida e suas rotinas, isso pode comprometer todo o processo de geração de dados, e
evidentemente, impedir a continuidade da pesquisa. De acordo com Graue e Walsh (2003, p.
76): “Entrar na vida das outras pessoas é ser-se um intruso. É necessário obter permissão,
permissão essa que vai além da que é dada sob formas de consentimento. É a permissão que
permeia qualquer relação de respeito entre as pessoas”. Nesta direção, Graue e Walsh (2003, p.
124-131) elaboraram alguns apontamentos necessários à pesquisa de campo, os quais foram
seguidos durante a geração de dados:
i) Estabelecer empatia com os sujeitos;
ii) Partir para o trabalho de campo como aprendiz, tendo em vista três pressupostos: todas as crianças são espertas, todas fazem sentido e todas querem uma vida confortável;
iii) Decidir a identidade de pesquisador, ou seja, quem serei no campo para ter a certeza de
que essa personagem está acessível à criança e aos adultos com quem irei trabalhar; iv) A geração de dados requer improvisação, mas a improvisação requer um plano, ele deve
ser fundamentado e flexível; v) Fazer uso de fontes de dados e métodos diversos é vital para a recolha de dados;
412
vi) Registrar as particularidades concretas que dão sentido às ações diárias das crianças no
contexto investigado.
Estes procedimentos devem permearam a ideia principal do trabalho com a criança que
consistiu em assumir o protagonismo infantil tanto do ponto de vista “operatório-metodológico”
quanto ético, neste prisma, a “anuência pela voz da criança indicia a sua participação livre e
espontânea no escopo da pesquisa, mantendo o pesquisador longe de qualquer resquício de
extorsão quanto à finalidade em questão” (CARVALHO e MÜLLER, 2009, p. 68). Os autores
também destacam que essa postura, requer uma combinação de métodos que possam
“multiplicar a presença ativa da criança no corpus de toda a pesquisa”, portanto, o “exercício
da escuta” solicita uma ação ética em que se acolha “a singularidade e a diferença da criança
como sujeito protagonista de suas ações” (CARVALHO e MÜLLER, 2009, p. 75).
A partir do conceito de reprodução interpretativa, a criança-sujeito ao se apropriar de
informações do mundo adulto, cria suas próprias culturas de modo singular atendendo aos seus
interesses próprios enquanto criança protagonista que participa ativamente das decisões a seu
respeito, em diálogo com a família e com seus pares, por conseguinte, ela não apenas internaliza
os aspectos da cultura, mas contribui ativamente para a produção e mudança cultural
(CORSARO, 2009, p. 31). Nesta mesma óptica, Kosminsky (2010, p. 128) ressalta que o ponto
de vista da criança consegue examinar, analisar e explicar os mundos que conhecem porque
vivem dentro dele, cabe ao pesquisador, “ligar as vidas das crianças à organização cotidiana
habitual das relações sociais”.
Segundo Cohn (2013, p. 241) no campo amplo da antropologia, para que a atuação
efetiva do pesquisador seja coerente com o ponto de vista da criança, é preciso levar em conta
que, por um lado “a concepção de infância informa (sempre) as ações voltadas às crianças – e,
de outro, que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupá-lo, seja para expandi-lo, ou
negá-lo”, desse modo,
[...] a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das
pesquisas em antropologia que fala de e com crianças – aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos, das políticas públicas a elas voltadas,
de ações educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vista das
crianças. Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo, ou todos os lados destas realidades multifacetadas, ao menos devemos ter isso em
mente: que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como
as crianças atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir (mesmo
que contra) desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem (COHN, 2013, p. 241, grifo meu).
413
Portanto, a investigação interpretativa priorizou o convívio direto com a criança,
mantendo uma sociabilidade pautada na confiança, na liberdade de expressão e até nas trocas
afetivas que, inevitavelmente, ocorriam entre uma conversa e outra. Afinal, como afirmou
Graue e Walsh (2003, p. 115) “o investigador não é uma mosca pousada na parede [...] Está lá.
Não pode ser de outra maneira. Faz parte da equação”, ou seja, na pesquisa com criança, não
há como manter uma postura distante, não participativa, mesmo que se tente o distanciamento,
a própria criança o subverte elaborando formas variadas de interlocução e envolvimento entre
ela e quem à pesquisa. Conforme observou Kramer (1999, p. 272) as crianças que produzem
cultura e são nela produzidas, “possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das
coisas subvertendo essa ordem”.
Além desse cuidado junto à criança, também procurei administrar essa sociabilidade
junto à família da criança-sujeito, pois, como se tratava de uma pesquisa que exigia um contato
extremamente próximo, a família precisava se sentir segura para poder abrir sua intimidade à
investigação, este foi um processo paulatino de conquista.
Partindo desses princípios, este ensaio promoveu novos procedimentos à abordagem
fotoetnográfica buscando desvelar as culturas da infância na contemporaneidade a partir de
percepções ontológicas e interpretativas da própria criança, ou seja, considerando o próprio
ponto de vista infantil, desde a seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e
significados relativos à sua história de vida, sua autobiografia.
Dessa forma, as análises assumiram caráter contingencial e volitivo, pautado em
abordagens heurísticas e transdisciplinares em que a principal matriz de inteligibilidade foi a
reflexividade interpretativa da própria criança, por conseguinte, o olhar interpretativo crítico do
pesquisador. Entretanto, diferente dos outros ensaios, resolvi não empreender o rigor da
descrição da fotografia em high key, tendo em vista a quantidade de imagens necessárias a uma
narrativa autobiográfica, mas, mantive seu caráter de desvelamento das partes claras –
superexpostas, dessa vez, na narrativa visual como um todo, produzida pela criança em seu
processo de memento. Além disso, em low key o desvelamento partiu do diálogo entre as
percepções do sujeito e do pesquisador, buscando nesse diálogo a contextualização das áreas
escuras – subexpostas na referida narrativa visual em interlocução com a perspectiva da
pesquisa interpretativa, transdisciplinar e crítico-cultural.
Neste sentido, cada imagem narrada direcionou a interlocução do campo analítico,
conforme surgiam elementos que remetiam ao protagonismo da criança manifestado nas cenas
magicizadas nas imagens técnicas referentes à sua infância, seu cotidiano e seu imaginário.
Consequentemente, foi possível desvelar as percepções da criança-sujeito sobre o que é ser
414
criança, como ela vive sua infância e como exerce seu protagonismo nas relações de alteridade
que estabelece entre pares e com os adultos com os quais conviveu e convive.
Além disso, durante a pesquisa fotoetnográfica pude reconhecer como as culturas
visuais se manifestavam no cotidiano da criança, como a criança se relacionava com essas
visualidades e quais as implicações dessas vivências na construção de suas subjetividades e
identidade cultural, o que corroborou com a nova imagem da criança sociológica – a criança
protagonista, fundamentada na ideia de empoderamento e participação da criança no exercício
da cidadania (BUCKINGHAM, 2007; GUIMARÃES, 2016; HART, 1992; KOHAN, 2004;
LANSDOWN, 2003; OLIVEIRA, 2007), na consciência crítica infantil (FREIRE, 2003, p.
196), nas noções de que todas as crianças são espertas, dão sentido ao mundo e querem se sentir
confortáveis (GRAUE e WALSH, 2003, p. 124-131), e, principalmente, nas premissas
epistemológicas da Sociologia da Infância em relação à criança como ator social, protagonista
de sua história e produtora de cultura (CORSARO, 1997; DEMARTINI, 2005; DORNELLES,
2007; FERNANDES, 2009; JAMES, JENKS & PROUT, 2004; KRAMER, 2002; MARTINS
FILHO e DIAS PRADO, 2011; MONTANDON, 2001; MÜLLER, 2010; PROUT, 2005;
QUINTEIRO, 2005; QVORTRUP, 1995, 2010, 2015; SARMENTO, 2002, 2007; SIROTA,
2001; TREVISAN, 2007, 2015), de uma cultura da visibilidade, do consumo e do “ser famosa”.
Assim, a imagem da criança protagonista resultou da reinterpretação das imagens da
criança pré-sociológica (SARMENTO, 2007, p.30-33), construída num frame interpretativo
que pensou a infância, enquanto categoria social, consequência de um processo de reflexividade
moderna no âmbito das produções contemporâneas da atual ordem científica no campo das
Ciências Humanas e Sociais. Fundamentou-se nas noções de criança como ator social que cria,
reproduz e interpreta o mundo de acordo com suas inteligibilidades, representações e
expressões subjetivas, produzindo evidentemente, suas próprias culturas nas relações de
alteridade que estabelece nos “entre-lugares” que atua e nas “entre-culturas” das quais participa,
sobretudo, exercendo sua cidadania de forma reflexiva e interpretativa.
Por conseguinte, o estudo também demonstrou que a Fotoetnografia autobiográfica se
constituiu uma importante abordagem metodológica de pesquisa para o campo dos estudos da
infância, pois, evidenciou o protagonismo da criança e a alteridade da infância ao promover sua
participação na construção de conhecimento científico, constituindo-se um método eficiente
para pesquisas com crianças.
Após situar as bases epistemológicas e metodológicas da pesquisa fotoetnográfica
autobiográfica, recorro à linguagem metafórica para explicar os procedimentos da pesquisa
empírica fotoetnográfica junto à criança-sujeito, para tanto, apresento três metáforas
415
fundamentais que garantiram a harmonia do método: a abertura do diafragma – representada
pela entrada e permanência no campo de pesquisa (profundidade do campo); a velocidade do
obturador – que significa a flexibilidade e as negociações (tempo de abertura); a sensibilidade
do sensor – representada pelas percepções e interpretações realizadas em diálogos low key e
high key (incidência de luz) 182, “tudo isso em razão de uma profundidade de campo
determinada pelo enquadramento almejado” (ACHUTTI, 2004, p. 97).
2.1 Abertura, Velocidade e Sensibilidade: a ação do pesquisador em foco
Ele deve saber jogar com o foco seletivo, a
velocidade de obturação, as objetivas, definir a abertura desejável, tudo isso em razão de uma
profundidade de campo determinada pelo enquadramento almejado.
(ACHUTTI, 2004, p. 97, grifos meus).
Insisto nesta fala de Achutti (2004, p. 97)183 porque ela explicita, significativamente, a
intenção metodológica de um estudo fotoetnográfico e dialoga, perfeitamente, com as
especificidades de uma pesquisa com criança. Apesar de ser uma curta citação, sua
complexidade vai muito além do que nela se lê, seria como se eu estivesse agora desvelando
em low key sua essência e amplitude para a compreensão da realidade na qual a Fotoetnografia
do tipo autobiográfica pretende mergulhar.
O “Ele” a que o autor se refere pode representar tanto o fotógrafo que etnografa, o
etnógrafo que fotografa, ou até o pesquisador que etnografa fotografando. E o “saber jogar”
significa além de dominar a técnica, ter um olhar apurado, preciso, treinado e, sobretudo,
sensível; um olhar que necessita ser aprendido mesmo antes de “estar lá” (GEERTZ, 1989, p.
58). Em outras palavras, o fotógrafo deve munir-se de conhecimento etnográfico e
antropológico da comunidade em questão e os etnólogos e pesquisadores devem buscar
conhecimento técnico e sensível sobre fotografia antes de irem a campo, como foi o meu caso,
não sou fotógrafa, nem etnógrafa, sou apenas uma pesquisadora em educação que se
experimenta nos horizontes da Antropologia Visual, na filosofia da fotografia e na metodologia
182 As informações mais técnicas em relação ao funcionamento da câmera fotográfica foram retiradas do site
www.tecmundo.com.br. QRcode 80: Fotografia: diafragma e obturador, os olhos da câmera. Por Ana
Nemes (2011).
183 Mencionado na página 132.
416
fotoetnográfica.
Desse modo, ciente de minhas limitações, busquei melhorar o desempenho da técnica e
o aperfeiçoamento do olhar, participando de dois cursos de formação em fotografia: o Curso
Básico de Fotografia da empresa Rizemberg Studio Fotográfico, ministrado por Rizemberg
Farias fotógrafo e jornalista, e o Curso de Fotografia e Percepção do Olhar, promovido pela
Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba – Seção João Pessoa (ADUFPB-
JP) ministrado pelo fotógrafo e pesquisador Ricardo Peixoto (UFPB).
No primeiro curso, conheci as linguagens, as técnicas, os equipamentos, os tipos de
fotografia, os modos de enquadrar, produzir, editar e ler uma fotografia. Desde os pormenores,
como manusear uma câmera profissional, usar flashes, trocar de objetivas, combinar
velocidade, abertura e ISO para produzir a fotografia no modo manual, até, a produção de
fotografias artísticas com efeitos do tipo bokeh, longa exposição, panning, macrofotografia,
microfotografia e as técnicas de exposição de luz em high key e low key, que adaptei à análise
da imagem184.
Já no segundo curso, o objetivo foi “saber olhar”, visando aperfeiçoar o foco seletivo (o
olhar sensível) no ato de fotografar a realidade e a capacidade de leitura de fotografias
documentais. Participei de uma vivência intensiva sobre as percepções do olhar através dos
sentidos (tato, paladar, olfato, audição e visão); os modos de ver, sentir e entender a linguagem
imagética e desvelar seus segredos. Neste curso, aperfeiçoar o foco seletivo representava não
só saber controlar os elementos de composição da fotografia, alterando o contraste e a nitidez
para desfocar ou focar os objetos da cena, mas, perceber na realidade o que está subexposto,
àquilo que o primeiro olhar não capta, e só a sensibilidade, a emoção, a imaginação e a intuição
são capazes de revelar. Portanto, de modo complementar, esses dois cursos me proporcionaram
maior segurança e desenvoltura com a câmera fotográfica e suas possibilidades em campo.
A fotografia na pesquisa científica adquire peso de realidade, implica dizer que o
enquadramento da cena depende das escolhas do olhar do fotógrafo, assim como na referida
epígrafe, é preciso “saber jogar com o foco seletivo”, ou seja, o pesquisador além de dominar
a técnica e saber olhar, ele deve ter claro seu foco, seu objetivo para saber controlar o tempo e
a intensidade da abertura necessária ao desenvolvimento da investigação.
Tal qual a tarefa do fotógrafo em definir a velocidade de obturação - uma espécie de
cortina que tem a função de controlar a quantidade correta de entrada da luz até o sensor digital
184 QRcode 81: 8 Técnicas fotográficas para criar fotos profissionais. Por Ana Nemes. (2012).
417
da câmera fotográfica, eu tive de saber dosar as ações direcionadas à pesquisa fotoetnográfica
autobiográfica, tive de definir aberturas conforme a situação do ambiente e as oscilações de
humor da criança-sujeito, que ora algumas vezes indicava certa indisposição em narrar ou
selecionar suas imagens, quando a ação se tornava cansativa, monótona ou muito extensa. Essa
dimensão de saber dosar o esforço da criança ao tempo de produção foi sendo adquirida pela
minha própria sensibilidade de pesquisadora-educadora, o que reforça a necessidade de uma
rigorosa base teórica para me fazer rememorar as especificidades e necessidades da criança,
respeitando assim, seus limites e vontades.
Ainda em relação à velocidade do jogo de aberturas, cabe ressaltar que os resultados são
inversamente proporcionais, pois o diafragma controla a intensidade de luz que entra pelo
obturador e chega ao sensor, dessa forma, quanto maior for a abertura, mais intensa é a luz,
consequentemente, o tempo de exposição é reduzido, assim, maior abertura, menor a velocidade
(tempo de exposição). De modo contrário, quanto menor for a abertura, menos intensa é a luz,
e consequentemente, aumenta-se o tempo de exposição com uma velocidade mais alta. Afinal,
como isso ocorreu no campo de pesquisa?
Primeiramente, defini minha identidade em campo (GRAUE e WALSH, 2003, p. 126),
neste sentido, como investigadora, fui cúmplice de Maria Clara em suas manhas, artimanhas e
confidências, fui receptiva às suas falas e emoções, deixei que ela direcionasse a maior parte
do tempo em que estávamos juntas. Em seguida, tentei me aproximar do seu universo brincante,
respeitando suas subjetividades e inteligibilidades, em nada opinei, apenas ouvi, mantive uma
escuta atenta, ética e sensível. Brincamos, passeamos, lanchamos, convivemos em inúmeras
situações, e em cada uma delas, procurei não demonstrar que eu a estava observando, num papel
de pesquisadora e “intrusa”, até tentei incorporar uma criança em corpo de adulto, mas, Maria
Clara era muito esperta para saber reconhecer claramente meu papel, confesso que me sentia
até mais confortável em saber que ela me conhecia tão bem e mesmo assim, minha presença
não a deixava desconfortável.
Assim, em algumas ocasiões tentei estar bem próxima promovendo maiores aberturas e
pouca velocidade, para “observar com inteireza o desenrolar da cena” e “não perder seus
momentos mais importantes” (ACHUTTI, 2004, p. 96-97), e em outras tive de diminuir a
abertura e aumentar a velocidade direcionando a ação para o que eu precisava descobrir naquele
determinado momento, assim, procurei “manter um mínimo de distância para não interferir no
curso dos acontecimentos” (ACHUTTI, 2004, p. 97) e acompanhar de perto os detalhes mais
importantes e até, os menos visíveis, provocando desse modo, seu desvelamento. Entretanto,
procurei não cansá-la com muitas perguntas, direcionamentos à pesquisa e cobranças como
418
atenção, concentração, entre outras. Por isso, em alguns encontros preferi não trabalhar com
sua Fotoetnografia autobiográfica, apenas a observava, me fazia presente e compartilhava dos
seus desejos e imaginações, fui adquirindo aos poucos esta sensibilidade, pois, entendi que
minhas expectativas eram diferentes das dela - eu queria construir sua história de vida através
de fotografias, e ela só queria brincar comigo. Portanto, minha ação na produção da
Fotoetnografia tinha de ser divertida, prazerosa e principalmente, criativa.
No entanto, o fato de Maria Clara só querer brincar não significava a desqualificação do
objeto do meu olhar, pelo contrário, o tornava ainda mais complexo, tendo em vista que para
desvelar as concepções de criança, infância e culturas infantis através de sua Fotoetnografia
autobiográfica, era preciso, prioritariamente, reconhecer suas especificidades e particularidades
de criança, e a brincadeira é uma linguagem própria das culturas da infância, desse modo,
constata-se a importância do memento, ao trazer à tona reminiscências de infâncias vividas,
sentidas e compreendidas ao longo de minhas experiências pessoais e profissionais.
Em outras palavras, para entender o que é ser criança, me coloquei como criança nas
memórias de e sobre infância, só assim, pude perceber que brincar para a criança é exercer sua
participação na sociedade; é expressar sua inteligibilidade; é ser criativa, independente,
autêntica; é produzir culturas nas relações de alteridade; é negociar, articular e resolver
problemas; é subverter padrões de comportamento; é transgredir regras desde que seja para
satisfazer suas vontades, desse modo, o brincar é a força maior da criança, está em sua essência,
assim como a imaginação. Portanto, brincar para criança é coisa séria, ou seja,
[...] as crianças brincam, contínua e devotadamente e, ao contrário dos adultos,
entre brincar e fazer coisas sérias (entre o ócio e o negócio ou entre o lazer e o trabalho) não fazem distinção, sendo o brincar muito do que as crianças
fazem de mais sério (SARMENTO, 2003, p. 12, grifo do autor).
Desse modo, “saber jogar com o foco seletivo” também é perceber na ação do brincar
as percepções da criança em relação às coisas da vida, é dar a ela o direito de opinar e decidir
reflexivamente sobre as ações que se propõem em campo. Nesse sentido, os encontros com
Maria Clara deixavam-na livre para se expressar, seja através da brincadeira e da sua
criatividade, ou através de seus relatos orais. Inclusive, ela própria tomava decisões sobre o que
deveríamos fazer em alguns encontros, demonstrando sua capacidade de decisão e participação.
E quando eu precisava direcionar o foco da ação, o fazia sem cobranças e com muita
tranquilidade e sutileza tentava negociar algumas situações.
Aos poucos ia aprendendo a controlar minha ansiedade em dar continuidade à seleção e
419
narração da criança junto às suas fotografias, e a vontade da criança em brincar comigo, o
desafio era sempre equilibrar as duas intencionalidades. Esse é um jogo que as palavras não
conseguem descrever, pois é algo sensitivo, próprio do “estar lá”, do “estar junto”,
sensibilidades que fui adquirindo ao longo de muitas leituras e vivências transcorridas em
momentos de pesquisa e de prática docente.
Retornando à epígrafe, “tudo isso em razão de uma profundidade de campo”
(ACHUTTI, 2004, p. 97). Segundo Achutti (2004, p. 97) como profundidade de campo entende-
se a nitidez da imagem distribuída em planos da fotografia, ou seja, a fotografia é dividida em
planos e os planos são determinados pelo enquadramento, dividindo-se em primeiro plano,
segundo plano, plano geral, entre outros, assim, “Quanto maior ela for – ou seja, quanto mais
fechado estiver o diafragma – maior o número de planos e elementos nítidos”. Portanto, a
profundidade de campo depende da combinação de três fatores que irão determinar se a
fotografia é de grande ou de baixa profundidade de campo: o foco (intenção do fotógrafo), a
abertura do diafragma, a proximidade do objeto a ser fotografado.
No entanto, Aumont (2016, p. 233) alerta que “a profundidade de campo não é a
profundidade do campo”, ou seja, o fato do fotógrafo definir o foco, regular a abertura e a
distância focal, e conseguir fazer uma boa foto, não significa que ele tenha conseguido atingir
a totalidade do realismo, pois, o que ele registra é um olhar sobre esta realidade, um olhar
limitado, arbitrário e subjetivo, desse modo, a fotografia expõe parte da realidade magicizada
em planos, a outra parte fica oculta à espera de seu desvelamento. Daí a necessidade de utilizar
as duas formas de expressão da linguagem – a escrita e a visual, para definir a profundidade do
campo, pois, esta não depende apenas do fotógrafo, neste caso, da pesquisadora, e sim, de todo
um contexto dialógico entre imagens, pesquisador e sujeitos. Como aponta Aumont (2016, p.
260, grifo do autor) “não há imagem ‘pura’, puramente icônica, já que para ser plenamente
compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal”.
Neste sentido, ao me aproximar da realidade de Maria Clara, eu tinha o foco definido,
mas, a abertura do diafragma dependia de sua participação na cena, à medida que se
aproximava, permitia maiores possibilidades de diálogo e com isso, possibilitava maior
profundidade do campo, e quando se distanciava, era o meu olhar quem definia os motivos a
serem registrados, apenas em profundidade de campo, com maiores ou menores aberturas.
Aprendi, com isso, que o foco seletivo é aquele que combina a sensibilidade do pesquisador, a
abertura do sujeito e a profundidade do campo oferecida pelo próprio sujeito ou captada pela
sensibilidade do olhar do fotógrafo em suas dimensões epistemológicas e metodológicas.
420
E todo esse movimento foi pré-determinado pelo “enquadramento almejado”, ou seja,
pelo objetivo específico deste terceiro campo analítico que consistiu em: conhecer as culturas
da infância a partir de percepções ontológicas e interpretativas da própria criança, ou seja, da
necessidade de produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil,
desde a seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e significados relativos à sua
própria história de vida. Desse modo, as composições fotográficas produzidas durante a geração
de dados funcionaram como um diário fotoetnográfico, enquadrando momentos e experiências
no campo de pesquisa através da minha própria percepção de investigadora, nas palavras de
Aumont (2016, p. 158):
O enquadramento é, pois a atividade da moldura, sua mobilidade potencial, o deslize interminável da janela à qual a moldura equivale em todos os modos
da imagem representativa baseados numa referência, primeira ou última, a um
olho genérico, a um olhar, ainda que perfeitamente anônimo e desencarnado, cuja imagem é o traço.
Com vistas em tal objetivo, retomei a dinâmica de exposição da imagem185 para elaborar
três processos fundamentais que garantiram a harmonia metodológica: a abertura do
diafragma – entrada e permanência no campo (profundidade do campo); a velocidade do
obturador – flexibilidades e negociações (tempo de abertura); a sensibilidade do sensor –
percepções e interpretações (incidência de luz).
O primeiro processo refere-se à abertura do diafragma, processo que controla a
entrada de luz, permitindo maiores e menores entradas de luz no obturador que refletirá no
sensor a imagem a ser produzida, esse controle determina o enquadramento da imagem e com
isso, interfere na profundidade de campo. No contexto da pesquisa com criança, a abertura
representou a entrada no campo, o estabelecimento de empatia com os sujeitos, a definição da
identidade de pesquisador em campo, a conquista da confiança e o respeito mútuo entre os
envolvidos diretos e indiretos na pesquisa, principalmente, da própria criança e de seus pais.
Portanto, a abertura variava conforme as negociações em campo e de acordo com os
interesses da própria criança, desse modo, busquei dar total liberdade em seus argumentos e
expressões. A intenção deste processo foi transformar a profundidade de campo em
profundidade do campo, ou seja, a partir das negociações, permissões e intimidades em campo,
a realidade era desmistificada e desvelada em narrativas orais, escritas e visuais,
complementando-se e dialogando-se entre si através de um constante processo mágico de
185 Ver esquema 6, ensaio 1, subcapítulo 1.3.
421
relações reversíveis (FLUSSER, 2002, p. 8) em busca de informações que me ajudassem a
compreender a autobiografia da criança-sujeito, para só então, entender quem era ela, como ela
vivia sua infância e como se reconhece nela (infância).
Outro fator que decorreu da profundidade do campo foi o acesso a determinados espaços
e contextos que precisariam ser selecionados ou magicizados em peles (fotografados) para
compor a narrativa fotoetnográfica autobiográfica da criança, como no caso, o acesso ao acervo
de fotografias do álbum de família e o registro do cotidiano infantil. Assim, quanto mais eu
investia em confiança, respeito e ética junto aos sujeitos, mais abertura adquiria em relação às
particularidades da realidade investigada, consequentemente, alcançando maiores
profundidades do campo.
Na mesma sintonia, o segundo processo corresponde à velocidade do obturador,
componente que determina o tempo de abertura do diafragma. No contexto da pesquisa de
campo, para obter uma boa fotografia foi preciso controlar o tempo de exposição à luz, e esse
controle dependia do foco seletivo e de um olhar sensível. Em outras palavras, no jogo de
aberturas entre pesquisador e criança-sujeito, a velocidade do obturador representou o tempo
de negociações e seu caráter flexível e volátil na geração de dados, pois, a velocidade estava
diretamente relacionada à disponibilidade da criança, da sua atração pela ação, evidentemente,
da possibilidade lúdica que determinada situação pudesse lhe oferecer. Foi preciso controlar o
tempo de exposição à luz, pois, era necessário discernir quando se estava sendo invasiva demais
ou quando se podia dar mais tempo de abertura para que a criança pudesse se expressar com
mais liberdade e criação. Cada situação em campo foi única, desde o momento em que
direcionei a criança a produzir sua autobiografia até o momento em que apenas observei seus
modos de ser e interagir com/no ambiente.
Durante a experiência fotoetnográfica autobiográfica, as diferentes perspectivas
metodológicas ajudaram a tornar a pesquisa mais atrativa e menos densa para a participação da
criança, o que exigiu um intenso esforço criativo, flexível e de improvisação nas estratégias de
geração de dados, além de muita sensibilidade para entender as linguagens corporais da criança,
inclusive em se tratando de fadiga ou falta de vontade em continuar, pois, dificilmente ela
expressava tais desconfortos de forma oral, era perceptível sua preocupação em não me magoar,
mas, seu corpo me dava pistas quando era hora de parar e só “brincar”. Portanto, o tempo de
abertura era totalmente variável e interdependente dos fatores que compunham o contexto
temporal e espacial do campo. Relembrando que, no jogo de aberturas os resultados são
inversamente proporcionais, ou seja, pequenas aberturas, maior o contexto da cena, grandes
aberturas, mais definido é o assunto ou o motivo da cena, então, durante as pequenas aberturas
422
foi possível perceber os sentidos da criança e os significados culturais que ela elaborava frente
aos objetos e o ambiente, e de maneira contrária, durante as grandes aberturas só era possível
dimensionar parte da realidade com poucas interlocuções com o contexto geral da pesquisa. O
que significa afirmar que, a quantidade de tempo de abertura junto à criança não determinava o
resultado desejado, esse processo era gradual, extremamente flexível e variava de acordo com
cada situação em particular.
O terceiro processo comporta o ISO, o componente da câmera fotográfica que controla
a sensibilidade do sensor, funciona como um regulador de luz ambiente, tanto pode dar
qualidade à fotografia quanto pode comprometer seu resultado, pois o ISO varia de acordo com
o que se quer captar de cada cena. Por exemplo, uma fotografia realizada em ambiente claro,
exige um ISO baixo, e em um ambiente escuro, usa-se um ISO alto. O ISO fornece níveis de
iluminação ao ambiente e sua regulação depende, particularmente, de cada câmera fotográfica
e do ambiente a ser fotografado, podendo variar entre uma escala mais comum de 100 a 3.200
e em câmeras mais potentes até 102.400. Entretanto, cada vez que o ISO é aumentado,
compromete a qualidade da foto, causando o chamado “efeito granulado” ou ruído, deixando a
foto menos nítida. Nesta perspectiva, para usar o ISO é preciso dominar todas as outras regras
de iluminação, pois se ele for alterado, todos os demais também precisarão ser novamente
regulados. Portanto, tudo isso dependerá da percepção do fotógrafo em relação à interpretação
do ambiente.
No âmbito da Fotoetnografia com criança, o ISO pode ser entendido a partir de três
perspectivas: i. como a sensibilidade do pesquisador em registrar as particularidades concretas
que dão sentido à ação da criança durante a pesquisa e no contexto observado; ii. como a
sensibilidade do pesquisador em desvelar a realidade a partir da escuta sensível e apurada das
narrativas subjetivas e interpretativas da criança-sujeito; iii. como a sensibilidade em
dimensionar o aprofundamento interpretativo do pesquisador e da criança-sujeito a partir do
movimento memento e em diálogo com pressupostos epistemológicos que pautaram a
investigação. Nesse movimento,
A perspectiva do investigador configura o trabalho em moldes bastante
particulares. Trata-se mais de algo pessoal do que de organização teórica ou tradições disciplinares – algo que inclui experiência pessoal, memória,
identidade e as nossas esperanças tácitas sobre as crianças e o seu lugar na
sociedade (GRAUE e WALSH, 2003, p. 95).
No contexto da pesquisa autobiográfica, considerando que o controle da exposição da
imagem envolve a quantidade de luz - entendida aqui como conhecimento, combinado à
423
velocidade do diafragma – que seria o olhar sensível do pesquisador e do sujeito, e ao tempo
de abertura – que se refere à profundidade do campo, a sensibilidade do ISO pode ser entendida
como a interpretação ontológica e subjetiva da criança em relação a sua própria história de vida,
ou seja, através das percepções da criança estimuladas pelo movimento de interpretação
memento. Em suma, o ISO é o controle de sensibilidade do movimento de percepção,
interpretação e análise dos dados, o que torna possível desvelar a realidade a partir do próprio
ponto de vista infantil.
Resumidamente, a pesquisa empírica se deu a partir de três processos: primeiro, através
da abertura do diafragma – entrada em campo e negociações que envolveram confiança,
respeito mútuo e ética junto aos sujeitos, reverberando assim, em maior profundidade do
campo; segundo - a velocidade do obturador - abertura entre pesquisador e sujeitos, e a
organização sistemática do plano de ação e seu caráter flexível, considerando as especificidades
da criança, seus desejos e limites; e terceiro - a sensibilidade do sensor - processos de
interpretação e análise dos dados a partir das percepções e interpretações epistemológicas do
pesquisador ou ontológicas e subjetivas da criança-sujeito. Cabe ressaltar que, esses três
processos ocorreram de maneira interdependente e complementar, variando conforme o tempo
e o espaço em que se dava a pesquisa empírica. Em síntese,
Para administrar todas essas decisões e proceder a essa série de manipulações elementares, e isso tanto mais quando se quer fotografar a vida em movimento,
é preciso não apenas ter habilidade, mas também saber manter o espírito livre
para poder se dedicar a todas as outras tarefas necessárias e, principalmente, a mais difícil e a mais importante de todas: saber olhar (ACHUTTI, 2004, p.
97, grifo meu).
Optei por iniciar e concluir este subcapítulo com dois dos preceitos achuttianos
indispensáveis a quaisquer circunstâncias de pesquisa fotoetnográfica, o “saber jogar” e o
“saber olhar”, neles me apoiei para tentar ao menos, uma aproximação do que é fazer
Fotoetnografia.
2.2 Seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito
Como já relatado no prólogo deste ensaio, meu primeiro contato com Maria Clara foi
inusitado e surpreendente. Não houve uma procura, e sim um encontro. Num shopping, numa
noite de novembro de 2016 e na informalidade de duas famílias que passeiam em busca de
diversão para as crianças. Maria Clara ao patinar, chamou nossa atenção pela forma com que
424
se comportava na de gelo. Diferente de todas as outras crianças, ela criava uma forma própria
de diversão e com muita desenvoltura, fazia performances corporais no ritmo dançante das
músicas eletrônicas que embalavam sua criatividade, e mesmo diante de olhares curiosos, como
o nosso, ela continuava a dar seu show. Após a magicização de sua performance em vídeo e
fotografia, nos conhecemos, mas, esse primeiro contato não teve nenhuma relação com a
presente pesquisa, só aproximadamente, 2 meses depois, esse encontro tornou-se fundamental.
Os detalhes da história já foram contados, então, para não ser repetitiva, seguirei com o segundo
momento, também no shopping, e desta vez, já diretamente, relacionado à tese.
Como não havíamos estabelecido nenhum tipo de aproximação, tive de marcar o
segundo encontro também no shopping, pois, esta seria uma conversa importante e ao mesmo
tempo difícil, dada a necessidade de a pesquisa ser desenvolvida na residência do próprio sujeito
e a necessidade de deslocamento para minha casa (do qual eu seria a responsável). Nestas
circunstâncias, escolhi para este encontro um ambiente agradável, principalmente, para Clara,
um lugar em que ela se sentisse confortável. Esse encontro ocorreu no final do mês de janeiro,
dia 23. Na ocasião, estavam presentes, a mãe – Neyângela (40), o irmão – João Pedro (9 anos)
e Maria Clara (6 anos), ela com seu tênis de rodinha (lembrando um patins), já vinha fazendo
malabarismos entre as mesas do shopping, sempre sorridente, com um batom vermelho nos
lábios, uma tiara no cabelo, e muitos acessórios para compor seu look fashion. Sentamos na
praça de alimentação e antes de me identificar, formalmente, percebi que ela estava ansiosa
para saber o que eu tinha para lhe dizer, então, fui logo fazendo uma pequena brincadeira para
abrir o diálogo:
P – Oi Maria Clara, tudo bom? Sabe quem encontrei no caminho vindo para cá? MC - Quem? (risos) P - Um coelhinho. E sabe o que ele me pediu? MC -
O que? (risos) P - Pediu para lhe entregar esse presentinho! (um coelhinho e
alguns ovinhos de chocolate, comprado momentos antes. Ela abriu um sorrisão e foi logo tratando de falar). MC - como você encontrou um
coelhinho? Como ele era? [...] - Adoro esse chocolate! Olha mãe que delícia! [...] - Já pode comer tia? P – Claro que pode!
Neste momento, continuei com o diálogo sobre o coelhinho, enquanto ela ia comendo
os chocolates. Logo em seguida, a conversa com a mãe foi fluindo e Clara sempre atenta a tudo
que a gente dizia. Identifiquei-me como professora da UFPB e pesquisadora do NUPEC, senti
que minha identidade profissional transmitiu segurança à mãe da criança. Em seguida, expus a
pesquisa para a mãe, apresentei o pré-projeto e as sequências iniciais de visita. Em seguida, fiz
outra apresentação para Maria Clara, tentando argumentar de uma forma mais simples o quanto
425
seria divertido construir sua própria história através de fotografias que ela mesma escolheria.
Prontamente, as duas aceitaram participar.
A informalidade do encontro no shopping favoreceu nossa aproximação, conversamos
sobre vários assuntos, lanchamos e passeamos um pouco pelos corredores. Foi um momento
importante de conquista para adquirir a confiabilidade necessária para o empreendimento, nada
convencional, da pesquisa. Após essa conversa, voltamos a nos encontrar nos dias 26 de janeiro
para outro passeio, dessa vez em um shopping de menor porte.
2.3 Sistematização dos encontros domiciliares e externos
Neste segundo momento, combinamos sobre o desenvolvimento das etapas de geração
de dados, quando, onde e como seriam os encontros e o que faríamos em cada situação.
Ressaltei que o planejamento era flexível, e que, a cada encontro reavaliaríamos o andamento
das ações, inclusive, respeitando os limites e as necessidades da própria criança. Nesta ocasião,
expliquei o quanto seria importante mantermos uma relação harmoniosa, prazerosa e respeitosa.
Também alertei que a qualquer momento, caso preferissem, elas teriam total liberdade para
cessar nossos encontros sem nenhum contratempo, para tanto, informei que todo material
produzido seria de minha responsabilidade, mas, sua utilização e divulgação seriam diretamente
vinculadas ao consentimento da criança e de seu responsável – no caso, a própria mãe.
Consequentemente, combinamos que ao final de todo o processo, ela teria acesso ao material
produzido para, novamente, validar seu consentimento.
Desse dia em diante, nos encontrávamos semanalmente e também, mantivemos uma
comunicação constante através do WhatsApp. A geração de dados ocorreu entre os meses de
janeiro a julho de 2017, intercalando visitas domiciliares e saídas externas em espaços públicos
como shoppings e eventos sociais que faziam parte das rotinas da criança. Até o terceiro mês –
a primeira fase da pesquisa, as visitas eram semanais, uma ou duas vezes, ora na minha
residência, ora na residência da criança e depois passou a ser ocasionalmente, dependendo das
rotinas e compromissos sociais da criança – a segunda fase da pesquisa.
A opção por desenvolver parte da pesquisa com a criança na minha própria residência
decorreu de três fatores: primeiro, considerando que eu era, de certa maneira, desconhecida pela
família, isso poderia causar estranhamento e desfavorecer o acesso direto à sua residência.
Segundo, porque atualmente, os registros pessoais passaram a ser produzidos em imagens
virtuais, ou seja, os álbuns de família passaram a ser organizados também, em mídias digitais
como computadores, pen drives, HDs externos, redes sociais, entre outros, consequentemente,
426
tornando indispensável o uso do computador para o acesso e seleção do corpus fotográfico, e
mesmo tendo acesso à residência da criança, não seria adequado utilizar os equipamentos
tecnológicos da família. Terceiro, para otimizar a narrativa visual, preparei um pequeno espaço
adequado à seleção, organização e montagem dos mosaicos fotoetnográficos, assim, dispus de
uma sala com uma mesa, um bom computador, um monitor de 42”, um scanner, uma
impressora, câmera de vídeo e câmera fotográfica, bem como, acesso rápido e ilimitado à
Internet para acessar sites de busca, editores de imagens, visualização de imagens lado a lado,
manipulação cronológica, entre outros recursos que se fizeram necessários no dia-dia da
pesquisa, como acesso à redes sociais, editores de texto, montagens de mosaicos, etc.
Importante ressaltar que a própria criança também manipulava o computador selecionando suas
próprias imagens e dando sentido cronológico e temático às narrativas. Durante a pesquisa, fui
responsável por todos os deslocamentos, em carro particular, inclusive em saídas externas como
shoppings e eventos sociais que faziam parte da rotina social da criança.
Nesta primeira fase, as visitas tinham o objetivo de identificar nos modos de ser e de
viver da criança, evidências de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia
autobiográfica. Desse modo, entre janeiro e abril, ao longo de 18 visitas, intercalas em 2 vezes
no shopping, 5 vezes na minha casa e 11 vezes na casa da criança, ocorrendo geralmente, duas
vezes por semana e com duração de aproximadamente, 2 a 3 horas por encontro, a criança foi
tecendo suas narrativas a partir de vivências e imagens do acevo particular da família disposto
em álbuns impressos e mídias digitais como celular, pen drive, Internet (redes sociais). Esta
duração não representa necessariamente, o tempo de produção da criança, abrange também as
conversas informais, as brincadeiras livres, os lanches, as rotinas do lar e as situações que a
própria criança criava, como dançar, cozinhar, mostrar suas bonecas, suas roupas, acessórios,
seus livrinhos de colorir, enfim, o tempo era o que menos importava, pois quando estava em
campo, mergulhava no universo criativo de Maria Clara, me deixava levar pelas minhas
próprias reminiscências de infância e assim, era embalada pelos cantos e encantos desta
“princesa”. Como afirmam Graue e Walsh (2003, p. 157): “Gerar dados é um desafio, mas o
trabalho de campo, “estar lá”, depressa se torna agradável, emocionante e, até viciante. Lá é
muito mais hospitaleiro”.
Entretanto, em nenhum momento essas condições foram impostas como pré-requisitos
à participação da criança na pesquisa, caso não tivessem sido acatadas, evidentemente, as
estratégias teriam de ser repensadas. Mas, com base nesta experiência de pesquisa e com estes
sujeitos em particular, esses deslocamentos procedimentais não foram empecilho para o
desenvolvimento da geração de dados. Pelo contrário, tornou ainda maior a abertura entre
427
pesquisado e sujeitos envolvidos. Inclusive, foi a própria mãe quem tomou a iniciativa de me
convidar para sua residência para facilitar o acesso às fotografias impressas nos álbuns de
família.
A partir do quarto mês, as visitas tiveram outro foco, o objetivo passou a ser conhecer
os modos de ser e de viver da criança procurando perceber como ela constituía sua infância e
de que forma as culturas visuais permeavam seu universo de sentidos e significados culturais,
por conseguinte, as visitas passaram a ocorrer uma vez por semana, sendo realizada na
residência da criança, na minha casa e sempre que ela tinha algum compromisso social ou
quando combinávamos algum passeio fotográfico. Nesta segunda fase, prestei atenção às
“particularidades concretas” da vida da criança, considerei seus “contextos específicos, com
experiências específicas e em situações de vida real” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 21-22).
Então, acompanhei Maria Clara em alguns eventos sociais a convite da sua mãe como:
desfiles de moda, concursos de beleza, curso de culinária para crianças, mais passeios ao
shopping, musicais, compras, baladinhas, filmagens para programas de TV, entre outras.
Inclusive tive a oportunidade de participar de seu aniversário, presenteando-a com um bolinho
da Frozen, já que sua mãe havia dito que não iria fazer esse ano porque havia feito um
investimento de mais de 3 mil reais em sua carreira de modelo fotográfica junto à empresa do
grupo Passarela. Essa fase durou 3 meses (entre maio e julho), totalizando 22 encontros, sendo
15 encontros externos, 4 encontros na casa da criança e 3 encontros na minha casa.
Portanto, o processo de geração de dados foi desenvolvido em 40 encontros, entre visitas
domiciliares na casa da criança, em minha casa e em encontros externos em locais públicos,
conforme esboçado no quadro 3:
Quadro 3 – Cronograma de encontros executados – Janeiro a Julho de 2017.
ENCONTROS 26 de janeiro a
30 de abril
1ª fase
01 de maio a
31 de julho
2ª fase
Total
Casa da Criança 11 4 15
Casa da
Pesquisadora
5 3 8
Externos 2 15 17
Geral 18 22 40
Fonte: Elaboração própria (2017).
428
Durante as primeiras visitas, buscando dar maiores abertura à interação entre
pesquisador e sujeito, me aproximei da criança em suas rotinas, assim, acompanhei Maria Clara
em dois passeios, um no dia 26 de janeiro para o Shopping Manaíra (de grande porte) e outro
no dia 31 de janeiro para o Mag Shopping (de pequeno porte), ambos situados próximos a sua
casa. Durante esses encontros, apenas observei Maria Clara brincando com os games e
passeando nos corredores das lojas, percebi que ela já conhecia os ambientes, sabia em que
direção estavam suas lojas prediletas, àquelas em que ela mais encontrava “produtos legais em
promoção” para postar nos @achadinhosdemariaclara. Apesar de Clara fazer a divulgação dos
produtos, ela pouco os adquiria, sua intenção era apenas divulgar, em nenhum momento ela
insistiu para a sua mãe comprar algo, não sei por imposição ou porque ela sabia exatamente
qual era a função de seu “blog” que era apenas divulgar186.
O Shopping Center tem sido um dos principais ambientes da infância na
contemporaneidade, conforme ressaltou Coutinho (2009, p. 79) são “lugares de criança”
preparados especialmente para abrigá-las, consequentemente, constituindo-se, como o próprio
“templo do consumo” no mundo contemporâneo (MOMO, 2007, p. 207). Nas palavras de
Coutinho (2012, p. 104-105), entende-se o shopping center como:
Uma instância cultural na medida em que é um espaço de produção social que, por meio de diversos mecanismos de sua organização e de seu funcionamento,
expressa determinados valores, regras, normas e códigos pelos quais seus
frequentadores interiorizam certos modos de agir. E as crianças, por serem frequentadoras cada vez mais assíduas [...] acabam inseridas num complexo
espaço (acentuadamente regulado pela lógica do mercado) que, de certa
forma, está também ensinando-as, desde pequenas, a corresponderem a certos códigos contemporâneos.
Portanto, o shopping é um ambiente bastante presente na vida de Clara. Segundo relatos
da sua mãe, isso se deu pela facilidade do acesso e pela comodidade em encontrar tudo que
precisava por lá, desde diversão às necessidades cotidianas. Inclusive, este foi um dos objetivos
do instablog de Maria Clara, ou seja, divulgar ofertas e promoções comerciais, daí o nome:
“@achadinhosdemariaclara”187. No entanto, preocupada com as consequências desse estímulo
na vida de Clara, sua mãe deu outro direcionamento às postagens, mostrando também cenas do
cotidiano familiar, cultural, social e educacional da criança, variando entre fotografias e
filmagens do seu dia-dia. A mesma postagem que é publicada no Instagram também é repostada
186 Apesar de Maria Clara se autodenominar “blogueirinha”, ela não possui um blog, sua mãe criou uma
conta no YouTube, mas teve dificuldades em mantê-la, assim, suas postagens são feitas no Instagram e
na conta de sua mãe no Facebook. 187 Será melhor apresentado na sequência deste ensaio.
429
no Facebook, no usuário de sua mãe.
Maria Clara vive as consequências de uma cultura-mundo hipercapitalista e
hipermoderna (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 32) que testemunha o nascer de uma
infância que desafia os discursos homogeneizadores, que participa ativamente da cultura e
exerce influência política e social nas decisões que dizem respeito aos seus modos de vida. Essa
infância, vista por Dornelles (2012, p. 95) é produzida por crianças que não pedem licença para
saber ou pensar, elas agem, pensam e sabem sem a permissão dos adultos, são crianças que
desenvolvem sua autonomia através de uma participação ativa no processo de interpretação da
realidade.
Os debates sobre autonomia e competência (JAMES, JENKS e PROUT, 1998) tem
reverberado em todas as instâncias da infância na atualidade, decorrência das mudanças
paradigmáticas do mundo contemporâneo que se edifica sob uma crescente valorização da
autonomia individual (COUTINHO, 2008, p. 122). Para Dias (1999, p. 12) a autonomia infantil
“é um processo inerente ao desenvolvimento e se dá de forma gradual e progressiva. Portanto,
depende do tipo de relações sociais que as crianças experienciam”, nesta mesma perspectiva,
Medeiros (2015, p. 70) afirma que a partir das interações com o mundo as crianças estruturarem
as bases para desenvolver sua autonomia, participando ativamente do meio social, refletindo,
questionando e avaliando suas ações e as possíveis consequências que estas lhes trazem.
Portanto, buscando conhecer ainda mais essa infância, procurei desenvolver as demais
etapas da pesquisa, garantindo a autonomia da criança, estando atenta às suas iniciativas e
inteligibilidades.
2.4 Produção da Fotoetnografia Autobiográfica: mementos em devir
A Fotoetnografia como uma estratégia narrativa autobiográfica para pesquisa com
criança, prioriza o ponto de vista infantil garantindo sua efetiva participação em todos os
procedimentos, ou seja, a criança tem a oportunidade de construir sua história de vida a partir
de fotografias selecionadas e desveladas sob suas próprias percepções e reflexões. Nesta
perspectiva, o memento, como um movimento de interpretação heurístico, ontológico e,
particularmente, subjetivo, deu à investigação o suporte necessário à produção da autobiografia
da criança sob o enfoque fotoetnográfico.
Neste sentido, assim como na pedagogia socrática que propõe uma dinâmica do
conhecimento baseada no processo dialético entre mestre-discípulo, a metodologia empregada
no memento ocorreu de forma dialógica, problematizadora e crítica. O que também me remeteu
430
aos pressupostos da pedagogia freireana ao tentar estimular Maria Clara a fazer uma leitura
crítica de si (FREIRE, 2003, p. 196), através de um “que-fazer pedagógico-político” implicado
num “que-fazer político-pedagógico” (FREIRE, 2000, p. 21) em que a reflexividade
interpretativa autobiográfica pudesse desvelar em seus modos de ser e de viver, sua identidade
social e cultural.
Portanto, partindo do pressuposto de que as fotografias são lembranças vivas do passado
(SAMAIN, 2012, p. 158) que ajudam a compreender o presente, o memento se estabeleceu
nesta fase da pesquisa a partir de três processos: o reviver – como reminiscências e memórias
que emergem das experiências magicizadas em peles fotográficas; o sentir – como as emoções
e subjetividades estimuladas durante o desvelamento da cena; e o compreender – como a
análise interpretativa e reflexiva de si a partir do que se desvela.
A construção narrativa se deu a partir de conversas, brincadeiras, perguntas, enfim, de
diálogos que surgiam no momento da contemplação das fotografias. Neste contexto, a
percepção da criança-sujeito materializava-se através de uma reprodução interpretativa dos
fatos (CORSARO, 1997) dando novos sentidos e significados às narrativas visuais. Desse
modo, para “reviver” as cenas, a criança fazia leituras da imagem que descreviam em high key
os elementos que chamavam a sua atenção, concomitantemente, ela fazia conexões de sentido
e emoções que a “atraíam” ou não a selecionar determinadas fotografias. E por fim, frente às
fotografias selecionadas, ela organizava as posições das imagens contextualizando-as em low
key, ou seja, dando significados sociais e culturais para a narrativa visual num processo de
reprodução interpretativa holística e reflexiva.
Desde a escolha das fotografias, a contextualização social e cultural das cenas, até a
composição da narrativa fotoetnográfica, foi dada à criança a oportunidade de produzir, narrar
e interpretar sua própria história, garantindo assim, sua participação ativa no processo,
corroborando assim, com as propostas metodológicas empreendidas em pesquisas com crianças
no campo da Sociologia da Infância.
As narrativas escritas da Fotoetnografia autobiográfica foram produzidas a partir do
discurso de Maria Clara agregado às fotografias correspondentes, compondo vários mosaicos
que desvelaram sua história magicizada em peles fotográficas, constituídas nos “entre-lugares”
que viveu e vive, e pelas “entre-culturas” das quais participa. Destarte, as fotografias em seus
devires, ofereceu à criança a possibilidade de compreender sua história a partir do
autoconhecimento (FREIRE, 2002, p. 34), bem como, refletir sobre suas relações de alteridade
e se emocionar com cada momento revivido, consequentemente, o memento tornou-se
fundamental para compreender e reflexionar as experiências de protagonismo e alteridade
431
infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica de Maria Clara.
E como diria Freire (1997, p. 53), ao reconstruir sua história, Maria Clara de maneira
criativa, curiosa e indagadora, acrescentou no mundo que não fez, algo que ela fez - seu mundo,
ou seja, ela ressignificou sua vida e nos contou sua própria versão da história.
Com a ajuda de sua mãe, Maria Clara separou as fotografias impressas dispostas nos
álbuns de família e em seguida, escolheu algumas imagens para compor sua autobiografia. Com
relação às fotografias digitais, o volume de imagens e a forma de disposição aleatória exigiram
uma organização prévia. Esta percepção, só foi possível diante da primeira vez em que tivemos
de selecionar imagens digitais, em que Maria Clara ficou um pouco agitada e demonstrou certo
desconforto diante de tantas imagens “desorganizadas”. MC – “Ixiii tia, tá muito difícil, não dá
pra ver assim, tá tudo misturado”. Ela não se concentrava, ficava inquieta, porque vez ou outra,
as idades em que ela aparecia, era diferente da que estávamos buscando. Por exemplo, em uma
mesma pasta digital da família haviam fotografias de Maria Clara com 2 anos e com 5 anos.
Consequentemente, foi preciso organizar, previamente, as imagens em pastas de acordo com
minha própria percepção sobre a idade aproximada da criança na imagem e em seguida, validar
com sua mãe essa organização, evitando assim, o desgaste emocional e físico da criança diante
dessa dificuldade. Este procedimento foi fundamental para o desenvolvimento das demais
etapas.
Nesta perspectiva, inicialmente, não foi colocado limite para quantidade de fotografias
que Maria Clara poderia selecionar, ou seja, ela fazia uma seleção geral baseada em seus
próprios critérios de escolha, que em sua maioria, girava em torno de sua autoimagem, ou seja,
se ela estivesse “fofa”, “lindinha”, “engraçada”, com alguém que gosta; fazendo coisas que
gosta; ou até mesmo, aparecendo de um jeito estranho ou constrangedor, em que ela selecionava
a fotografia para fazer a crítica.
As imagens selecionadas foram catalogadas em pastas digitais de acordo com a idade
da criança, inclusive as imagens impressas foram digitalizadas e distribuídas também, nestas
pastas. As pastas foram organizadas a partir das seguintes divisões: 0 a 1 ano; 2 a 3 anos; 4 a 5
anos e 5 a 6 anos, assim, em cada encontro, uma determinada fase era trabalhada. Portanto,
nesta fase da pesquisa, 256 imagens foram selecionadas por Maria Clara.
Do universo de 256 fotografias, pedi que Clara selecionasse apenas 15 de cada pasta
para compor seu “livro leitura-imagem”. Esta foi uma etapa mais exigente, Maria Clara teve de
tomar decisões importantes, pois o fato de selecionar “uma” fotografia implicava na eliminação
de “outra”, ou seja, o objetivo era reduzir o número de imagens para 60.
Após a seleção das imagens, partimos para a composição dos mosaicos. Os mosaicos
432
são pequenos agrupamentos de fotografias que contam em si e entre si uma história. Desse
modo, Maria Clara, com meu auxílio, separou as fotografias de acordo com a idade que tinha e
com os temas como família, aniversário, escola, diversão, carreira artística, entre outros,
buscando dar uma sequência cronológica e temática à narração visual. As fotos selecionadas
eram “coladas” em sequência em um documento do Word, algumas com figuras e formatos
escolhidos por Maria Clara, outros, sem maiores designs. A sequência das imagens na narrativa
imagética, não necessariamente ocorre na mesma sequência da narrativa escrita, tendo em vista
que foram realizadas em momentos distintos. Não insisti em dar a mesma sequência para não
cansar a criança, desestimulando-a para os próximos encontros. Portanto, as transcrições e
discursões escritas e imagéticas possuem cada uma sua própria construção, na disposição escrita
intervi de certa maneira na ordenação das transcrições, procurando dar sentido ao texto. Na
disposição imagética, a autonomia foi de Clara.
Após esta seleção, tratei da apresentação estética da narrativa visual, inspirada nos
trabalhos de Achutti (2011), Trois (2012), Villas Boas (2016) e Bruno (2009), senti a
necessidade de editar algumas imagens em relação a cores e enquadramentos, para isso, utilizei
o programa Adobe Photoshop Lightroom, dando especial atenção à ação da criança no contexto
da cena. Para a edição dos mosaicos, utilizei o PowerPoint, o Word e alguns programas
gratuitos de fotomontagens on-line como fotojet.com; pixiz.com e fotor.com. Esta construção
priorizou o diálogo entre as narrativas escritas e visuais produzidas a partir da autobiografia de
Maria Clara, do meu olhar de pesquisadora e dos pressupostos que embasam a Sociologia da
infância, o qual direcionou todo o processo de fotomontagem dos mosaicos. Em relação à
identificação dos mosaicos, optei por não legendar e enumerar as fotografias, seguindo as
orientações de Achutti (2004, p. 109) ao destacar que: “Uma narrativa fotoetnográfica deve se
apresentar na forma de uma série de fotos que estejam relacionadas entre si e que componha
uma sequência de informações visuais. Série de fotos que deve se oferecer ao olhar, sem
nenhum texto intercalado.”.
Conforme visto em Villas Boas (2016, p. 21), os mosaicos são “camadas de encontros,
reflexões e sentimentos” e cada fotomontagem anuncia uma história, um conjunto de
informações acerca de quem é Maria Clara, como ela protagoniza sua vida em sociedade e que
produções culturas se manifestam em seu dia-dia. Por conseguinte, promover no
leitor/espectador novas leituras, reflexões e até reminiscências sobre as múltiplas referências
culturais da infância contemporânea, vivida e produzida através do protagonismo da criança e
sua participação ativa e criativa na sociedade.
Portanto, nesta etapa, foi necessário intervir, diretamente, na composição visual da
433
Fotoetnografia, mas, procurei priorizar a narrativa oral de Clara em cada fotomontagem. Para
isso, mais uma vez, fiz algumas adaptações à forma visual da narração fotoetnográfica,
acrescentando parte da narrativa oral de Clara às fotografias, para poder melhor situar o
leitor/espectador sobre suas percepções e expressões.188
2.5 Produção do diário fotoetnográfico
O diferencial da etnografia no contexto da pesquisa fotoetnográfica consiste no fato de
que o principal recurso utilizado nas observações e descrições da realidade é o registro
fotográfico. Portanto, as fotografias dos álbuns de família e as fotografias produzidas durante a
pesquisa com a criança, constituem o principal veículo de informação e narração do fenômeno
investigado. Neste sentido, o diário fotoetnográfico corresponde ao diário de campo em uma
pesquisa qualitativa, nele se projetam os fatos observados e produzidos durante a geração de
dados. Todavia, Achutti (2004, p. 113) alerta para o fato de que o fotoetnógrafo não deve apenas
fazer uma simples transcrição visual dos dados em campo, ele precisa elaborar “uma narração
visual eficaz” que contenha “informações interpretativas de uma determinada realidade”. Para
isso, deve-se ter em mente a intencionalidade da observação, ou seja, “é ao longo do trabalho
em campo que os enquadramentos são claramente decididos e realizados”.
Visando à qualidade dos registros, durante a pesquisa de campo estive munida de duas
câmeras fotográficas, uma semiprofissional Sony NEX-F3 com lente de 18-55 mm e superzoom
óptico, que além de facilitar a gravação de vídeos de até 29 minutos em Full HD com som
estéreo e utilização de zoom, tinha a vantagem de produzir imagens na função HDR que
mesclava diferentes exposições da luz para revelar melhor os detalhes claros e escuros da cena,
em outras palavras, essa função dava maior qualidade e nitidez à fotografia. E uma câmera
profissional Nikon D5100, com lente AF-S 18-55 mm VR, luz assistente de foco, Sensor CMOS
de 16.2 MP que produz fotos de até 28 x 42 com qualidade profissional de impressão, função
D-Lighting que intensifica os detalhes nas áreas de brilho e de sombra ao fotografar, e apesar
de ser uma câmera de entrada, dentre as DSLRs (Digital single-lens reflex) é a que melhor reúne
preço e qualidade nesta categoria. Além das câmeras fotográficas também utilizei um aparelho
celular da marca Asus ZanFone Selfie que possui uma câmera de 13 megapixels que permite
uma resolução de até 4128x3096 pixels na fotografia, além disso, possibilita a gravação de
188 Optei por dispor a fotoetnografia autobiográfica no início do ensaio para dar continuidade ao diálogo já
iniciado no prólogo.
434
vídeos em Full HD, com uma resolução de 1920x1080 pixels. Vale ressaltar que o celular
também foi utilizado como gravador de voz.
Desse modo, as observações foram pontuadas e registradas através do diálogo entre as
notas de campo e os registros visuais produzidos durante os procedimentos de observação
participante, conversas informais, durante o memento junto às fotografias de família e durante
as saídas externas, assim, entre linguagens escritas e visuais, diferentes informações eram
produzidas. Entretanto, Achutti (2004, p. 115) recorre à Guran (2000, p. 13) ao afirmar que
“uma única pessoa dificilmente poderá fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, por conseguinte,
ressalta que o fotoetnógrafo poderá dispor de colaboradores em campo, no entanto, estes devem
estar familiarizados com o processo de pesquisa a ser empreendido, mas alerta que o olhar
dificilmente será transferido, daí a importância de se definir, exatamente, os papéis em campo.
Logo nos primeiros encontros, senti a necessidade de ter um auxiliar de pesquisa, pois
muitas vezes, a responsabilidade em registrar notas e produzir imagens me impedia de manter
um diálogo sequencial com a criança, eu tinha de me dividir entre conversar com ela e fazer o
registro dessa conversa, ou conversar com ela e preparar um equipamento ou outro para usar,
enfim, convidei uma sobrinha, estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia (UFPB) para
me apoiar com os equipamentos, ela ficou como corresponsável pelos registros videográficos
das situações específicas da pesquisa. Este apoio foi fundamental para que eu pudesse me
movimentar de maneira mais livre junto à criança, sem grandes preocupações com o registro, e
evidentemente, para que a própria criança se sentisse menos observada, pois as imagens eram
feitas com distanciamentos adequados, por vezes, até imperceptíveis. A presença deste apoio
se tornou parte das rotinas de geração de dados e isso não causou estranheza, pois Maria Clara
envolvia a todas com suas interações, ela se sentia muito à vontade com os aparelhos e com a
nossa presença.
Portanto, a conexão entre fotografia, filmagem, áudio e escrita direcionaram a
construção do diário fotoetnográfico, permitindo assim, rever, reavaliar e redimensionar as
interpretações da criança a partir de seu próprio ponto de vista. Conforme aponta Sarmento
(2008, p. 84):
O trabalho hermenêutico de interpretação da voz das crianças encontra com a investigação etnográfica e participativa, uma possibilidade metodológica
fundamental, a qual permite ultrapassar velhas assumpções sobre a
“irracionalidade da infância”, da representação da infância como categoria geracional, caracterizada por um estatuto pré-social, uma forma de
pensamento “moldável” e uma presumida heteronomia, inibidora do exercício
de direitos participativos próprios.
435
Nesta perspectiva, apesar de ter sido uma construção minha, o diário fotoetnográfico
priorizou os elementos que fizeram parte da narrativa autobiográfica da criança-sujeito,
respeitando assim, suas subjetividades e interpretações.
Para sistematização escrita do diário fotoetnográfico, articulei os elementos produzidos
em campo à reflexão epistemológica das perspectivas teóricas empreendidas durante a
produção da tese. Assim, apresento as narrativas escritas em pequenos relatos que refletem o
cotidiano da pesquisa e dão apoio à produção da narrativa visual, compondo assim, a
Fotoetnografia pretendida neste ensaio – uma Fotoetnografia autobiográfica infantil.
Para Ceglowski (2003, p. 264) as histórias “comunicam um entendimento holístico e
naturalista de um projecto de investigação” e agrupadas com outros tipos de escrita iluminam
o trabalho de pesquisa. Desse modo, a opção por apresentar a trajetória dos dados em pequenas
histórias vem da preocupação em manter uma sintonia entre narrativas visuais e escritas,
buscando oferecer ao leitor/espectador uma visão integral do processo de investigação
empírica, sem cansá-lo com longos trechos narrativos.
Os pequenos relatos foram construídos de acordo com cada situação empírica,
mesclando falas, notas de campo, situações e percepções acerca do fenômeno observado, sendo
apresentadas, no contexto deste ensaio, sob trechos narrativos. Portanto, o diário
fotoetnográfico reescreve os acontecimentos e diálogos produzidos em campo e durante as
incursões analíticas.
Assim, a pesquisa fotoetnográfica autobiográfica emergiu do entrelaçamento entre
minha sensibilidade de pesquisadora - profundidade do campo; da sensibilidade de Maria Clara
– tempo de abertura; e da profundidade do conhecimento em suas dimensões epistemológicas,
subjetivas, ontológicas e metodológicas produzidas, oferecidas e captadas durante a pesquisa
empírica - incidência de luz. Importante destacar que, durante todo o processo, priorizei a
confiança, o respeito e a ética junto aos familiares e, principalmente, junto a Clara, que com
muito respeito, dei toda liberdade de criação, participação e interpretação189.
189 Cabe ressaltar que a narrativa fotoetnográfica que compõe o Click 3 foi construída a partir de imagens
selecionadas por Maria Clara, de seus álbuns pessoais e de imagens produzidas e/ou selecionadas por
mim, durante o processo etnográfico de pesquisa de campo. Deste modo, para uma melhor compreensão,
foi inscrita uma pequena observação indicando de onde partiu a seleção e sequência de imagens. No entanto, para estudos posteriores, sugiro a possibilidade de subdividir a narrativa fotoetnográfica em dois
clicks – um elaborado pela criança (autobiográfico) e outro elaborado pelo pesquisador/a (etnográfico).
436
3° Click
Debruçado sobre a fotografia, o observador se
encanta. Através dela, rememora. Por ela, o presente
é corporificado como elos fixos de uma presença
vivida. O passado torna-se uma rede de elementos
fixos, presentes e ao alcance das mãos, que
comprova o vivido e a vida do sujeito que as vê e as
possui.
(KOURY, 1998, p. 73).
“– Oi pessoal! Eu sou a blogueirinha Maria Clara!”
“- Oi Pessoaaal! Eu sou a blogueirinha Maria Clara!”
Manhas e artimanhas de uma princese “blogueirinha”
437
“Eu nasci nessa hora olha! esse relógio tava lá na sala do hospital...”
“Esse foi meu primeiro banho, meu papi que deu! (...) ele me virou pra lá e pra cá!
Depois a gente foi pra rede, olha essa carinha que liiinda!”
Por Maria Clara...
464
EPÍLOGO
Era uma vez
Um lugarzinho no meio do nada
Com sabor de chocolate
E cheiro de terra molhada
Era uma vez
A riqueza contra a simplicidade
Uma mostrando pra outra
Quem dava mais felicidade
Pra gente ser feliz
Tem que cultivar as nossas amizades
Os amigos de verdade
Pra gente ser feliz
Tem que mergulhar na própria fantasia
Na nossa liberdade
Uma história de amor
De aventura e de magia
Só tem a ver
Quem já foi criança um dia
Uma história de amor
De aventura e de magia
Só tem a ver
Quem já foi criança um dia
(Composição: Álvaro Socci/ Cláudio Matta)
Cantos, Contos e Encantos embalaram este ensaio. A princesa “blogueirinha” Maria
Clara deixou registrada sua história - “Uma História de amor, de aventura e de magia”.
Seu reino encantado é muito agitado, mas essa também é uma de suas principais características,
ela não para! Está sempre aprontando todas e não para de falar! Por isso, não foi necessário
muito esforço para realização desta pesquisa, justamente, pelo seu jeitinho alegre e expressivo
de se relacionar e se expressar.
O processo de pesquisa em campo proporcionou muita intimidade, envolvimento e
subjetividade. Especialmente, com Maria Clara, pois seria impossível manter-se distante.
465
Entretanto, o fato de estar bem próxima, não significou estar desprovida de críticas, reflexões e
interpretações. Tentei o equilíbrio entre epistemologias e subjetividades, porém, decisivamente,
rejeitei o distanciamento. Por isso, optei pelo caráter heurístico e ontológico da pesquisa
autobiográfica, tendo em vista que permite ao pesquisador participar, intrinsecamente e
subjetivamente, no ato de pesquisa (HOLANDA, 2006, p. 368).
No entanto, como se tratava de uma autobiografia, a descrição priorizou as percepções
e falas da própria criança, e como pesquisadora, fui sua ouvinte e espectadora. E assim, fui
aprendendo no dia-dia da pesquisa a desenvolver procedimentos e formas de descrição,
apresentação e análise da narração fotoetnográfica. Neste aprendizado, Maria Clara foi minha
principal referência. Com ela aprendi muito mais do que li nos livros, do que vi em imagens e
escrevi nestas linhas. É dela, o mérito destas minhas aprendizagens.
Clarinha é uma criança sapeca, cheia de aventuras para contar. Sua simplicidade está
nas suas pequenas ações do dia-dia, na escola com os amigos e, principalmente, com a família.
O universo da fama para ela é mais uma diversão do que uma forma de conquista financeira,
certa vez, conversamos sobre isso e sua resposta me surpreendeu: “P – Clarinha, a pessoa fica
famosa para ficar rica é? MC: É, pra fica rica, só com as propagandas ganham muito dinheiro,
ganha mais do que ser uma babá!”. Ela não tem dimensão ainda das relações econômicas que
estão atreladas a esse mundo de glamour e moda, para ela é diversão, aventura e magia.
Maria Clara é uma criança que constrói sua história de forma participativa e ativa. É
uma criança que sabe questionar, criticar, refletir e ter suas próprias opiniões. Essa autonomia,
desvela uma criança protagonista que quer participar de todas as decisões relacionadas a ela.
As falas de Clara demonstram empoderamento do que é ser criança e de saber o que é viver
com dignidade a sua infância. Essa visão é defendida pela Sociologia da Infância por acreditar
na autonomia da criança em relação aos seus modos de ser e de viver em sociedade.
Nesta perspectiva, é possível afirmar que crianças como Clara, refletem a imagem da
criança sociológica, o que corresponde a uma nova concepção de infância na
contemporaneidade, a criança protagonista de sua história, a criança como ator social e político,
rompendo com as visões de negação e (in)visibilidade que durante séculos silenciaram as
crianças. Portanto, na óptica da Sociologia da Infância, reconheço em Clara e outras tantas
Claras, a imagem da criança sociológica (SARMENTO, 2007, p. 29-33), que constrói suas
culturas e estabelece sentidos e significados nas relações entre pares e com os adultos de
maneira proativa e criativa que se reconhece como criança e conquista seus direitos de infância.
Para encerrar este ensaio, trago agora as palavras de Clara que, junto às minhas próprias
reminiscências de infância, me ajudaram a compreender um pouco mais sobre as concepções
466
de criança e infância:
P - Na sua opinião o que é ser criança? MC: Criança... é... [ficou pensativa]. MC - alguns pais querem que as crianças sejam sérias, bem chique sabe? mas
criança é brincar, se divertir, as crianças são do jeito que elas são, mas os pais
querem fazer uma orientação que querem que a criança fique grande, alguns, e não querem que elas sejam uma criança, porque é uma criança séria que fica.
P: Entendi, e na sua opinião ser criança é ser...? [insisti]. MC: Criança, é brincar, se divertir, eu sei que é meio doido a gente fazer algumas coisas
erradas, mas a gente gosta, faz parte do nosso dia-dia. P: Entendi, e o que é
coisa errada assim? MC: Eu gosto de ficar pegando algumas coisas da minha mãe enganando ela, e quando minha mãe vai me dar um abraço eu tento pegar
o celular dela e aí eu corro e coloco o celular na minha frente, só que aí ela
pega no flagra e eu também gosto de trocar coisas. Uma vez eu falei assim, quando eu era bem pequenininha, mãe vem limpar minha bunda, eu tô no
banheiro de cá, só que eu tava ali, aí eu enganava ela toda hora. (muitas risadas).
P: Você falou o que é ser criança, mas você sabe o que é a infância? MC:
Infância é quando a gente era pequeno, sabe? Ser bebê, ser criança, aí a gente vai crescendo até virar um adulto, o adulto aí sim pode ser sério, mas eu ainda
gosto de me divertir mesmo sendo adulta, não tem problema. P: Aí no caso,
você é uma pessoa bem alegre. MC: Sou. P: Você é feliz? MC: Sou.
P: E qual a melhor parte de ser criança? MC: A melhor parte é que a gente tem
que aproveitar as nossas brincadeiras, nossas aventuras, nossas amizades, o tempo livre da gente, pois quando a gente for adulto vai ter que ficar ocupado
e eu não gosto muito, por isso tenho que aproveitar por enquanto que sou
criança. P: E o que você diria pra um adulto? Pra ele entender o que é ser criança? MC: Eu diria que ser criança é ter liberdade de brincar, mesmo a
criança fazendo alguma coisa, ter quebrado alguma coisa ou se machucado,
faz parte do nosso dia-dia. A gente pode se machucar? Pode, mas a gente não se cansa de brincar, a gente quer conseguir as coisas, principalmente, um
menino que sonhava fazer skate, mas ele não tinha as pernas, mas aí ele fez todos quererem, mesmo ele não tendo pernas, porém ele conseguiu, ele só usa
as mãos. P: É só acreditar né? MC: Uhum, pra seu sonho se realizar.
Portanto, a história se encerra assim:
“Era uma vez... [...]
Uma história de amor
De aventura e de magia
Só tem a ver
Quem já foi criança um dia.”
467
POR UMA IN/CONCLUSÃO
Afinal, o que desvelam as Fotoetnografias?
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentando,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia.
(PESSOA, F., 1960, p.181)
468
Com a incumbência maior de promover interlocuções epistemológicas e empíricas sobre
as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de narrativas fotoetnográficas,
esta tese esteve atrelada a três campos analíticos diferentes, porém, complementares: a imagem;
a fotografia e a Fotoetnografia; a História, a Sociologia da Infância e a Cultura Visual; a
Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica e o protagonismo infantil. A escolha da divisão
da pesquisa em três ensaios se deu pela própria complexidade do tema, sendo a escrita ensaísta
a que mais se aproximou das minhas intencionalidades como autora. Assim como Rodríguez
(2012, 16) escreveu em seu post-it “a leitura dos livros para citação não pode significar a perda
do meu estilo”, eu também estava preocupada em não reproduzir grandes ideias apenas
parafraseando “microestruturas frasais, a pretexto do método”. Eu pretendia uma identidade
criativa para minha escrita, que falasse por si e que dialogasse com o seu leitor, respeitando as
especificidades da ciência, mas não sendo subjugada apenas ela.
Neste sentido, os três ensaios nasceram de diferentes percursos, volições, inquietudes e
algumas incertezas, porém, refletiram àquilo que mais acredito enquanto educadora e
pesquisadora da infância, refletem a importância do diálogo e do respeito à criança, suas
realidades e fantasias.
A produção de narrativas fotoetnográficas em cada campo de análise permitiu o
conhecimento, aprofundamento e desvelamento interpretativo da realidade da infância refletida
nas imagens de crianças expressadas na Cultura Visual e discutidas pela História Social da
criança e pela Sociologia da Infância. Legitimando-se, assim, como uma nova estratégia de
aproximação, reflexão e análise teórica e empírica para o desenvolvimento de pesquisas
direcionadas às temáticas crianças, infâncias e culturas infantis nas Ciências Humanas e Sociais,
tendo em vista sua potencialidade metodológica para estimular a interpretação e compreensão
das identidades, subjetividades e alteridades da criança produzidas nos entre-lugares e entre-
culturas da infância.
Nesta perspectiva, a Fotoetnografia foi utilizada como uma metáfora no trabalho de
campo, organizadas como narrativas visuais da realidade investigada, tomando para si, efeitos
de veracidade e de subjetividade, consequentemente, neste processo, elementos como tempo,
lugar e alteridades intercruzaram-se e dialogaram-se de forma híbrida e transversal, dando
sentido à dinâmica de análise. O movimento de interpretação memento, pautado em princípios
interpretativos, ontológicos e éticos, foi fundamental para reflexão e análise das narrativas
imagéticas à luz das abordagens teóricas investigadas, o que possibilitou a compreensão
política, conceptual e cultural das peculiaridades das infâncias ali refletidas, principalmente, em
se tratando de imagens da infância contemporânea que se propagam no seio de uma sociedade
469
midiática que precisa ser estudada e tensionada de forma crítica.
Reconheço que a imagem visual não é estável, mas muda sua relação com a realidade
externa em determinados momentos da história e da cultura, mais precisamente, a imagem
torna-se um lugar onde se pode criar e discutir os significados, nesta perspectiva, a cultura
visual não depende da imagem em si, mas da tendência de interpretações que ela permite
capturar ou exibir desta realidade (MIRZOEFF, 2003), neste sentido, a cultura visual aponta
signos e significados que contribuem para a mediação entre o processo de produção de
conhecimento e formação da consciência cultural de pertencimento histórico da criança.
Neste contexto, a fotografia, enquanto imagem técnica, torna-se elemento central para
discutir a subjetividade do sujeito. Em outras palavras, a fotografia apresenta-se como um
permanente devir-humano, constantemente, retroalimentado pela cultura visual que magiciza a
vida através das imagens técnicas, implicando assim, no contexto da infância que por sua vez,
passa a se constituir nas “entre-culturas” que se manifestam em microestruturas e/ou
macroestruturas sociais produzidas pela/sobre/na ação das crianças em meio às relações de
alteridade que estabelecem junto às culturas infantis, adultas e visuais. Ou seja, a fotografia
constitui e é constituída num permanente processo de devir-imagem, que no contexto da
Fotoetnografia se torna um “entre-lugar” do passado-presente, da ausência-presença, do
reviver-sentir-compreender.
A relevância da imagem presente na pintura realista subsidia informações teóricas para
pesquisas contemporâneas, nesse sentido, a influência da cultura europeia nos primeiros
registros iconográficos que expressam significados acerca de como viviam e eram
representadas as crianças pela sociedade medieval, citadas tanto nos escritos de Ariès (1981)
quanto nos registros da Sociologia da Infância, permitem esboçar nuances das culturas infantis
em diferentes épocas, isso reafirma que as culturas adultas exerciam e até hoje, exercem
significativa influência nas formas de viver e ser criança na atualidade, o que torna necessário
promover debates e políticas públicas que garantam a efetiva proteção aos direito da criança e
o compromisso social com a dignidade da infância em sua integralidade. Em outras palavras,
as narrativas fotoetnográficas desvelaram que as crianças exercem papéis sociais de acordo com
as concepções de infância estabelecidas em cada cultura e contexto específico,
consequentemente, as culturas infantis delineiam-se nas singularidades e subjetividades das
crianças, sendo produzidas em suas relações de alteridade entre pares, com os adultos e com as
produções culturais que fazem parte do cotidiano infantil.
Por conseguinte, tais concepções reforçam a ideia de que as crianças exercem papéis
sociais de acordo com as concepções de infância intensificadas pelas culturas visuais, pelos
470
discursos sociais e padrões culturais que tentam subsumir a criança a uma condição reducionista
de direitos e participação. Entretanto, desde a posição de marginalidade e invisibilidade social,
científica e política durante as idades Média e Moderna até a condição de sujeito social na Idade
Contemporânea, é possível perceber que as crianças têm demonstrado em suas culturas extratos
de subversão e resistência a concepções adultizadas de infância impostas pela história, pela
sociedade e pela cultura, fazendo emergir assim, suas subjetividades e identidades culturais
através do protagonismo infantil, agora ainda mais reforçado por iniciativas sociais, políticas e
educativas.
Os resultados também apontam que as concepções de crianças magicizadas em imagens
não se baseiam em idade biológica e em papéis sociais, e sim, na aparência de vestes que
indicam a condição social dos indivíduos e a falta de tratamentos diferenciados entre adultos e
crianças. No entanto, é preciso reconhecer os limites desta análise, quando pensamos nas
pluralidades da infância, nas infâncias pobres, nas crianças trabalhadoras, nas relações sociais
estabelecidas entre elas e com os adultos, nas multiplicidades dos contextos familiares e
educacionais e, sobretudo, quando reconhecemos que mesmo vivendo influências das culturas
adultas, as crianças elaboram suas visões de mundo como atores sociais (SIROTA, 2001;
SARMENTO, 2002) e nas alteridades da infância subvertem e resistem aos padrões e práticas
que tentam condicionar o comportamento infantil.
Em síntese, os conceitos e concepções sobre crianças, infâncias e culturas infantis se
constituem a partir de uma dupla hermenêutica: ora instituída pelas diversas Ciências Humanas
e Sociais, a priori, numa tentativa de homogeneização conceptual, desde a concepção do
“homúnculo” até a criança frágil, incapaz, inocente e totalmente dependente, a posterior i,
pautadas no novo paradigma social da infância cuja essência situa-se na singularidade infantil,
na sua participação política e social e na concepção de criança como produtora de cultura,
conhecimentos e subjetividades; bem como, ora sedimentadas na consciência reflexiva dos
próprios sujeitos sociais infantis na construção de suas práticas recursivas, dispondo em seus
modos de ser e viver novas reconfigurações conceptuais, simbólicas e/ou ontológicas em que a
realidade se contrapõe reflexivamente às imposições das culturas adultas em suas várias
manifestações.
Sob a ótica da Sociologia da Infância reitero que as infâncias interpretam seus mundos
e modos de viver a vida nas múltiplas interações simbólicas estabelecidas entre si e com os
adultos, num exercício contínuo de alteridade. À medida que a criança internaliza e interpreta
os processos sociais que vivencia, ela nos interpela com suas re/formulações e nos desafia a
entender o universo infantil a partir de seu próprio olhar e não do modo de como a vemos e/ou
471
pensamos (CORSARO, 1997; SARMENTO, 2002; MÜLLER e CARVALHO, 2009).
Portanto, a composição das análises empreendidas nesta pesquisa foi organizada na
defesa de que as fotoetnografias de crianças e suas infâncias em cada tempo histórico e contexto
cultural desvelam e legitimam modos de vida plurais, porém, singulares em suas essências;
multiculturais, mas, com papéis sociais e políticos bem definidos; dependentes, mas
especialmente, criativos e reflexivos; e por fim, multifacetados, sobretudo, subjetivos e
autênticos. Desse modo, independentemente das circunstâncias e contextos, as crianças
exercem seu protagonismo nas relações de alteridade constituídas durante a infância e
constroem, criativamente, formas próprias de subversão e enfrentamento das circunstâncias
culturais e sociais das quais participa, o que consiste numa nova imagem sociológica na
contemporaneidade - a da criança protagonista.
Ante esta defesa, a emergência do protagonismo infantil é percebida não só nos espaços
que lhes são garantidos como sujeitos de direito e em iniciativas que objetivam minimizar os
problemas e contradições sociais nos quais as infâncias se constituíram e se constituem na
atualmente, mas, sobretudo, na condição da criança como sujeito social, histórico, político e
cultural. Nesta perspectiva, as culturas infantis são delineadas nas singularidades e
subjetividades das crianças, sendo produzidas nas suas relações de alteridade entre pares, com
os adultos e com as produções culturais que permeiam as culturas infantis em cada tempo e
espaços específicos. Consequentemente, a concepção da imagem da criança protagonista
desvelada a partir das culturas, subjetividades e singularidades infantis investigadas, reconhece
o direito das crianças de serem autoras de sua própria história, protagonistas em suas relações
de alteridade.
Nesse exercício contínuo de protagonismo e participação, as culturas infantis afetam e
são afetadas pela pluralidade das culturas - da globalização, da indústria cultural, das
tecnologias, das culturas visuais, da cultura escolar e das culturas de pares, gerada na interação
das crianças com outras crianças, entre outras formas singulares de cultura (SARMENTO,
2007), mas, criam suas próprias formas de perceber o mundo a partir das re/significações e
re/produções que se desvelam nas interlocuções entre linguagens e expressões da cultura e da
alteridade infantil.
Portanto, esta tese alicerçou-se na necessidade da desestabilização dos conceitos e
concepções homogeneizadoras decorrentes das imagens da criança historicamente construída a
partir um estatuto social ideológico, normativo e referencial que relegou seu lugar na sociedade.
Conforme asseverou Sarmento (2005, p. 365) “esse processo, para além de tenso e internamente
contraditório, não se esgotou” e, consequentemente, a geração infância ainda encontra-se “num
472
processo contínuo de mudança, não apenas pela entrada e saída dos seus actores concretos, mas
por efeito conjugado das acções internas e externas dos factores que a constroem e das
dimensões de que se compõe” (p.366).
Dado o exposto, postula-se o caráter contributivo da Fotoetnografia como proposta
metodológica que favorece processos investigativos e empíricos com criança e sobre infância,
além disso, como caminho e possibilidades de análise fotoetnográfica, considerando as
dimensões estéticas e sensitivas do memento, as dimensões descritivas da imagem em high key
e low key, e as dimensões interpretativas e reflexivas promovidas pelo diálogo epistemológico
e subjetivo. Através dessas conexões, proporcionei não uma disputa entre as duas formas de
escritura: texto e imagens, mas sim, uma interlocução que facilitasse a compreensão dos
fenômenos a partir de abordagens heurísticas e transdiciplinares. Desse modo, suas produções
ocorreram de forma interdependentes, porém, complementares.
Além disso, a Fotoetnografia mostrou-se um campo fecundo para o desenvolvimento
de pesquisas no campo da Sociologia da Infância e da Cultura Visual, sobretudo, no que diz
respeito à participação da criança e o desvelar das culturas infantis. Como processo
investigativo, trata-se de uma “outra” possibilidade de reflexionar os conceitos de criança e
infância reconhecendo a importância das imagens como narrativas integrais fundamentais para
a compreensão dos fenômenos sociais e culturais presentes nas culturas infantis. Como processo
empírico à medida que contribuiu para o despertar do olhar criativo, construtivo e interpretativo
de si, per si (identidade) e do outro (alteridade), abrindo caminhos para novas leituras de mundo
que estimulem o re/conhecimento dos sentidos e significados que estabelecemos com o meio,
mais especificamente, com as visualidades que compõem a segunda modernidade.
Neste prisma, a narrativa Fotoetnográfica Autobiográfica materializa o discurso de
Clara através de seu próprio olhar (ACHUTTI, 2004, p. 111). Seu modo de ser e de viver
abrange aspectos inovadores e criativos da participação infantil na sociedade, Clara produz e
reproduz as culturas midiáticas ressignificando-as e dando a elas suas próprias e autênticas
formas de interpretação, o que corrobora com a perspectiva da reprodução interpretativa
(CORSARO, 2007). No contexto das relações de alteridade que estabelece entre pares, entre
demais culturas e na relação com os adultos, ela vai construindo seu repertório de significados
através da identificação, apropriação criativa e reprodução das informações do mundo adulto.
O termo reprodução inclui, neste sentido, a ideia de que a criança não se limita apenas a
internalizar a sociedade e a cultura, mas contribui ativamente para a produção e mudança
cultural (SARMENTO, 2011, p. 31). Isto significa reafirmar que as crianças e suas infâncias
afetam e são afetadas pelas sociedades e culturas que integram e essas sociedades e culturas
473
foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas e sociais que
repercutiram diretamente, nas formas de comunicação e socialização humana.
Nesta pesquisa foi possível reviver, sentir e compreender como viveram e vivem muitas
infâncias, cada época e contexto revelam cenários multiculturais e particularmente, marcados
pela ação da criança, mesmo em situações de marginalidade social. São infâncias marcadas por
histórias, memórias e intensas diferenças culturais, crianças que tiveram suas vozes ceifadas e
que viveram às margens da sociedade; crianças que mesmo em condições adversas,
conseguiram transgredir regras e subverter situações; crianças que aos poucos foram
conquistando o direito de ter uma infância; mas também, crianças que protagonizaram suas
histórias de forma criativa e divertida.
Vimos crianças que imaginaram, criaram e desenvolveram diferentes maneiras de
brincar e se expressar; crianças que se adaptaram facilmente às transformações tecnológicas e
culturais de cada contexto social; crianças que reproduziram, produziram e interpretaram as
multiplicidades culturais de uma sociedade “hiper” – hipermoderna, hiperglobalizada,
hiperconectada, hipercapitalista e hiperconsumista, das quais participa, enfim, são essas
crianças que fazem da infância um fenômeno impossível de ser apreendido em sua totalidade,
dada a diversidade, singularidade e complexidade desta geração.
Nesta perspectiva, as novas gerações no contexto da 2ª modernidade (LASH, 1997;
SARMENTO, 2004) desenvolvem-se em espaços com diferenças relevantes em relação às
gerações anteriores, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico em tempos de globalização
(SANTOS, 2001, p. 71) e cibercultura (LEVY, 1999, p. 111), onde as imagens passaram a
ocupar lugares significativos na vida social e cultural dos indivíduos, repercutindo diretamente
no contexto educacional da infância, uma vez que a escola não existe como instituição
independente, mas, inserida nesse tecido social contemporâneo.
Neste sentido, as crianças têm se projetado na alteridade da infância e na subversão das
imposições imagéticas da Cultura Visual e das culturas adultas num processo de reprodução
interpretativa (CORSARO, 1997) em que transgridem padrões e assumem papéis sociais ao
criarem suas próprias culturas, por um lado na reprodução dos modelos imagéticos que
estimulam a adultização infantil, o consumismo, o exibicionismo e a erotização precoce,
situações essas, que desconsideram as políticas de proteção e cuidado à infância, e por outro
lado, na re/criação de seus próprios modelos, considerando as subjetividades e especificidades
da potência pueril que faz da infância um permanente devir.
Portanto, as culturas visuais estão presentes no cotidiano infantil e dão suporte às
construções interpretativas e subjetivas da criança, consequentemente, demandam à escola a
474
necessidade de repensar as múltiplas realidades culturais da infância contemporânea. Em vista
disso, o complexo, variado e conflituoso cenário cultural em que estamos imersos se reflete nos
espaços da escola e afeta sensivelmente o trabalho pedagógico. Com o olhar inclinado ao objeto
de pesquisa, ressalto não só a ampliação da discussão sobre as relações entre as culturas visuais
e culturas infantis, como também sinalizo para a importância de se pensar sobre as implicações
e contribuições da fotoetnografia para o trabalho docente na perspectiva de uma educação
estética, considerando sua capacidade de estimular a criatividade, o conhecimento de si, a
compreensão do universo cultural em suas multiplicidades e expressões visuais e
principalmente, a sua potência intersubjetiva e ontológica em fazer emergir reminiscências,
memórias e sensibilidades do sujeito que investiga, que é investigado e que contempla a
investigação.
Como proposições futuras, a Fotoetnografia enquanto perspectiva teórico-
metodológica, revelou-se um campo fecundo para o re/conhecimento das crianças, seus lugares,
seus modos de vida, suas subjetividades e culturas. Abre caminhos para a imagem, enquanto
corpo que narra memórias, histórias e reminiscências, bem como, possibilita a interpretação da
realidade a partir do movimento memento – reviver, sentir e compreender, em suas dimensões
históricas, culturais, ontológicas e sociais, consequentemente, indica sua potencialidade para o
campo educacional numa perspectiva de educação estética que visa promover o conhecimento
através das visualidades em diálogo com uma pedagogia crítica e emancipatória pautada no
amor, no diálogo, no encantamento, na beleza e na criatividade humana. Abordagens que
aprofundarei em uma outra oportunidade, daí o carácter de uma produção inacabada, que ainda
tem muito a maturar, mas por hora, deixo aqui apenas como provocações.
Por fim, retorno ao início deste trabalho para escrever minhas últimas considerações.
Logo nas primeiras laudas convidei o leitor/espectador a se encantar, a ouvir a criança que
temos dentro da alma, a se embalar com suas reminiscências de infância e a vaguear com um
olhar sensível e atento sobre as superfícies mágicas da Fotoetnografia, toda essa orientação foi
pensada justamente para oferecer uma leitura viva e realista, pois de nada adiantaria se essas
linhas não fossem lidas com emoção e sensibilidade. A intensão foi reforçar que, para se
entender o universo infantil, é preciso aproximar-se da criança, compreendê-la em sua essência,
pensar seus pensamentos, brincar suas brincadeiras, chorar seus choros, sonhar seus sonhos e
sobretudo, se encantar com a beleza e o simples da vida.
Nesta direção, o poema de Fernando Pessoa (1960, p.181) que escolhi para estas
reflexões finais, traduz esse caminho introspectivo e ontológico do qual parti, pois ressalta que
o ponto de partida e de chegada para o entendimento humano é a nossa própria intuição, nossa
475
própria percepção de mundo, àquilo que trazemos nas reminiscências de nossa existência. Daí
a necessidade de revisitar também minha autobiografia, pois, nessas reminiscências pude
aprofundar este método de pesquisa – a fotoenografia autobiográfica. No entanto, ficarei
devendo minhas fotografias ao leitor/espectador.
Desse modo, o memento – reviver, sentir e compreender, me deu suporte para traçar
todas as etapas desse movimento de pesquisa, e espero também que tenha contribuído para o
processo de leitura da mesma. Agora deixo uma resposta ao poeta e falo de mim:
Sou ora princesa, ora infante...
Ora adormecida, outrora andante.
Sonho dormindo, desperto sonhando,
Vivo à espera, corro incessante.
Desisto às vezes, insisto outras,
Muitas e muitas outras...
Por inocência, por virtude ou teimosia,
Tento voar, mas quero sempre voltar.
Quando tenho medo, me excede a coragem,
Do silêncio, faço traquinagem.
Da tristeza, faço melodia,
Na dor (aí não me meto), terreno movediço,
Prefiro a “alegria” (mas, que alegria?)
Olho para estrada, traço o caminho,
No sonho procuro, na alma encontro.
Sigo imaginando, prefiro ousar,
Se falta a esperança, o belo me encanta,
Volto a sonhar.
Se é lenda? - É certo que não! (Certeza que não).
Minha alma quem diria...
Porque a princesa e o infante,
Toda hora e todo instante...
Em mim faz moradia.
476
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