Arquivototal.pdf - Repositório Institucional da UFPB

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FERNANDA MENDES CABRAL ALBUQUERQUE COELHO

CRIANÇAS, INFÂNCIAS E CULTURAS INFANTIS: EPISTEMOLOGIAS E

SUBJETIVIDADES EM NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS

JOÃO PESSOA-PB

2018

FERNANDA MENDES CABRAL ALBUQUERQUE COELHO

CRIANÇAS, INFÂNCIAS E CULTURAS INFANTIS: EPISTEMOLOGIAS E

SUBJETIVIDADES EM NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação da Universidade

Federal da Paraíba, na Linha de Pesquisa Políticas

Educacionais, como um dos requisitos para

obtenção do título de Doutora em Educação.

Orientadora: Profª. Dr.ª Adelaide Alves Dias

JOÃO PESSOA-PB

2018

Sempre ouvi dizer que lá no céu vivem pessoas que viraram

estrelas, mas, isso nunca foi fácil de entender. Será que não

seria, justamente, o contrário? As estrelas cadentes virariam

pessoas quando caíssem aqui na terra? Bem... hoje, o que

sei é que tenho uma estrelinha que vive comigo o tempo

todo e todo o tempo, e, é a esta pequena princesa brilhante

Ingrid, minha Ink, que dedico essa tese. Obrigada filha,

por ter sido minha inspiração. Em cada momento dessa

caminhada, senti mais forte e vivo o nosso amor.

Estendo também esta dedicatória, a todas as crianças que

iluminaram as narrativas fotoetnográficas deste estudo.

Suas infâncias, me ensinaram que as crianças são,

excentricamente, plurais, divertidas e cheias de vontade de

vida.

AGRADECIMENTOS

A Deus, toda honra e glória, por ter me dado esta oportunidade e condição de chegar até aqui.

Obrigada por Sua generosidade e grandioso amor, sem Seu consolo e direcionamento, nada teria sido possível.

A minha mãe, Maria das Graças Mendes Lira, obrigada por sempre estar ao meu lado, és a

minha fortaleza, tudo que sou devo aos seus sábios conselhos, é por ti que continuo caminhando. Ao meu pai, Antônio Fernando Cabral de Carvalho, de quem herdei toda a ousadia, teimosia, e

sem dúvida, a habilidade com textos e falas. Meu grande exemplo de honestidade e dedicação à família, obrigada por estar sempre disposto a me ajudar.

A minha filha, Yasmin Cabral Coelho. Obrigada por ser tão maravilhosa. Durante esses anos sua (in)dependência sempre me surpreendia, desde o nível de compreensão em relação a minha

ausência (na presença), até sua independência nos estudos. Minha filha, você é meu orgulho, meu tudo. Obrigada pelo seu amor, carinho e paciência, agora viveremos outras e melhores

aventuras!

Ao meu esposo, Herbet Albuquerque Coelho, que aguentou firme mais este desafio, enfrentou minhas ausências, angústias e enfim, compartilha esta vitória. Juntos desbravaremos novos

horizontes.

A minha família, que ao longo desses anos têm estado presente, incondicionalmente. Obrigada

por cada palavra de incentivo, cada abraço, cada ajuda que vocês dispenderam a mim. Não poderia deixar de destacar alguns nomes, Juliana e Romualdo (meus irmãos), Mônica (prima)

e é claro, Nicole Júlia (sobrinha), quem passou meses ao meu lado, virando noites e noites em claro, e ainda, me acompanhou nas pesquisas de campo, não tenho palavras para descrever sua

importância para a realização deste trabalho. Também agradeço a minha sogra Josélia Coelho e toda sua família (nossa), pela torcida e carinho de sempre.

Aos que partiram, Vovó Neném, seu sorriso estampa meus pensamentos. Sr. José Coelho, meu

sogro, gostaria muito que estivesse aqui, sei que estaria orgulhoso. Minha Tia Bebé, com certeza teria lido cada linha deste trabalho, seu entusiasmo e apontamentos me fizeram muita falta.

A princesa “blogueirinha” Maria Clara, que me encantou com seu jeitinho carinhoso e

surpreendente de ser. Obrigada minha linda por ter feito deste trabalho uma aventura maravilhosa! À Neyângela Oliveira de Freitas, mãe de Clarinha, obrigada por tudo, pela

confiança, respeito e contribuição com a minha pesquisa, seu apoio foi imprescindível, muito obrigada. Ao pai de Clarinha, João Pereira Soares e ao querido João Pedro, seu irmão, obrigada

pelo apoio, pelas brincadeiras e participação.

Ao meu amigo filósofo Daniel Figueiredo. Desde aquela tarde de defesa do projeto de doutorado eu já sabia que você era “o cara”, uma mistura híbrida de máquina e humano

programado para ser bom. Não tenho como agradecer a parceria desses anos, mas o universo acabou de agradecer por mim e Deus te deu o melhor dos presentes, o dom de ser pai. Parabéns

amigo e obrigada por tudo, você foi fundamental!

A minha estimada orientadora, Adelaide Alves Dias. Tem sido uma honra conviver e aprender com você durante todos esses anos (desde o mestrado), você é um exemplo de vida, de mãe, de

amiga, de profissional e de mulher política e guerreira, obrigada pela sua generosidade, compreensão, respeito e principalmente, pela paciência que teve comigo. Parabéns pela sua

incansável luta em defesa da criança e da Educação Infantil.

Aos professores Mariângela Momo, Rita Porto, Mauro Koury e Jorge Hermida, obrigada por fazerem parte deste momento tão significativo, é uma grande honra para mim. Suas histórias de

vida são marcadas por preciosas contribuições à educação brasileira, além de profissionais e cidadãos, são seres humanos essencialmente, amorosos. Desde o trato com as palavras até o

modo de lhe darem com o outro. Buscam dentro de si aquilo de mais belo para ofertar ao próximo, é dessa essência que falo, da educação com amor, assim como Freire (1992) outrora

afirmou.

À minha ex-coordenadora e querida amiga professora Maria Cacilda Marques de Souza Rêgo, a quem tenho grande admiração e apreço por tudo que representa para a educação na Paraíba.

Uma pessoa muito especial para mim, um exemplo de educadora e ser humano.

À querida professora Otaviana Maroja Jales Costa, minha primeira orientadora, uma inspiração, quem me ensinou a amar esta profissão.

Às amigas de longas jornadas, Patrícia Gondim, Fabrícia Medeiros, Cristhiane Cavalcanti,

Norma Lima, Da Luz Olegário, Thaís Vasconcellos, Érika Souza, Valquíria Villas, Lindsay Darlany e Aricellys Lopes. Cada uma de vocês e em momentos diferentes, teve um papel

importante para minha vida e para a realização deste trabalho, foram dias e noites de muita reflexão, debate, leituras e mão na massa. Muito bom saber que podemos contar umas com as

outras.

Aos estimados Coronel Alexandre Sobreira, Coronel Carlos Eduardo, Coronel Onivan e Capitão Fábio França e amiga Iris Oliveira do Centro de Educação e Pós-Graduação e Pesquisa

da Polícia Militar da Paraíba e demais Capitães e discentes dos Cursos de Especialização em Segurança Pública, pelo apoio, amizade e trocas de experiências acadêmicas.

Na pessoa do Professor Wilson Honorato Aração, agradeço a todos os professores, funcionários

e coordenadores do Centro de Educação - CE e demais departamentos; à Escola de Educação Básica – EEBAS; ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da

Universidade Federal da Paraíba – PPGE-CE-UFPB, por toda contribuição direta e indireta para minha formação acadêmica e profissional.

Ao Grupo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança – GRUPEC, pela parceria, amizade e

incentivo ao longo dessa jornada. Obrigada por me incentivarem, por estarem do meu lado sempre que precisei e por acreditarem no meu trabalho.

Enfim, também agradeço a todos os interlocutores, desde os que já contribuíram com palavras, imagens, fotografias e olhares, até os que estão lendo estas linhas agora, que hão de contribuir

ainda mais com novas formas de se perceber, relacionar, compreender e narrar as muitas infâncias que nos encantam. Convido-os, portanto, através desta leitura, a despertar a criança

que ainda está aí, dentro de você.

Agradecimento Especial

Peço licença aos ilustres colegas acadêmicos, para acrescer esta lauda em minha tese.

Nasci numa família de trabalhadores que sonhavam um dia ver seus filhos formados e

numa condição melhor de vida. Hoje, esse sonho se torna realidade. Cheguei ao nível

de escolaridade mais alto da academia, tenho um dos empregos mais desejados da

minha classe trabalhadora, mas esse feito só foi possível porque outro trabalhador teve

de pagar, e ainda paga o preço por acreditar que a igualdade de oportunidades deveria

ser para todos.

Obrigada Luiz Inácio Lula da Silva. Obrigada por lutar por meu futuro, obrigada por

lutar contra a privatização das universidades públicas, obrigada por segurar a

economia brasileira nos momentos mais cruciais de subsistência da minha família,

obrigada por assegurar e ampliar o acesso de estudantes em pós-graduações públicas

no Brasil e no exterior, e ainda mais, por garantir milhões de empregos através de

concursos públicos, em um deles a vaga foi minha. Obrigada por não desistir de um

povo que tem memória fraca e muitas vezes se deixa manipular por armadilhas

midiáticas e articulações partidárias de golpistas. Desculpa essa gente alienada, isso é

falta, justamente, do que era prioridade no seu governo – EDUCAÇÃO.

E, aproveitando a conjuntura polícia atual, após um golpe à democracia, quero

reafirmar neste trabalho que: Eleições sem Lula, é fraude.

Estudar as crianças – para que?

Eis a nossa resposta:

Para descobrir mais.

Descobrir sempre mais, porque, se o não fizermos,

alguém acabará por inventar.

De fato, provavelmente já alguém começou a inventar,

e o que é inventado afecta a vida das crianças;

afecta o modo como as crianças são vistas

e as decisões que se tomam a seu respeito.

O que é descoberto desafia as imagens dominantes.

O que é inventado perpetua-as.

(GRAUE; WALSH, 2003, p. 12)

CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Crianças, Infâncias e Culturas Infantis: epistemologias e subjetividades em narrativas fotoetnográficas.

João Pessoa, 2018. 503f. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO

Esta pesquisa investiga as imagens e fotografias que revelam concepções sobre crianças e

infâncias construídas e propagadas pelas Ciências Sociais e Humanas pertencentes à estudos e

pesquisas científicas relacionadas às culturas infantis contemporâneas e suas singularidades,

bem como, discute as concepções de crianças e infâncias presentes na indústria cultural e

midiática digital que repercutem diretamente na formação das culturas infantis. Assim, trava

uma discussão no âmbito das abordagens clássicas da Sociologia, Antropologia Visual e

Fotoetnografia em diálogo com as perspectivas epistemológicas atuais da Sociologia da

Infância que desbrava um novo paradigma social na Ciência moderna para os estudos da

criança. Metodologicamente se caracteriza como uma pesquisa transdisciplinar de abordagem

interpretativa e método fotoetnográfico, que combinou diferentes estratégias de geração,

tratamento e análise de dados. Em vista disso, inicialmente foi proposto o movimento de análise

e interpretação memento, que foi confrontado e discutido à luz do rigor interpretativo,

transdisciplinar multireferencial e crítico-cultural da Cultura Visual tendo suas implicações

discorridas em três campos investigativos: a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia; a História,

a Sociologia da Infância e a Cultura Visual; a Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica

e o protagonismo infantil. Cada campo exigiu estratégias metodológicas específicas, desde

pesquisa documental, pesquisa fotoetnográfica e pesquisa fotoetnográfica autobiográfica que

teve como sujeito 1 criança, com 6 anos de idade, residente em João Pessoa. A produção de

narrativas fotoetnográficas em cada campo de análise permitiu o conhecimento,

aprofundamento e desvelamento interpretativo da realidade da infância refletida na imagem da

criança legitimando-se, assim, como uma estratégia metodológica potencial para estimular a

interpretação e compreensão das identidades, subjetividades e alteridades da criança produzidas

nos entre-lugares e entre-culturas da infância. Em vista disso, foi constatado que as narrativas

fotoetnográficas de crianças, em cada tempo histórico e contexto cultural desvelam e legitimam

um protagonismo criativo e subversivo nas relações de alteridade constituídas durante a

infância, desse modo, as crianças têm desenvolvido formas de participação e enfrentamento

das circunstâncias culturais e sociais das quais participa, o que consiste numa nova imagem

sociológica - a da criança protagonista, um criança que subverte os limites e imposições das

culturas visuais e de forma criativa reinventa modos de ser e de viver na contemporaneidade.

PALAVRAS CHAVES: Imagem. Fotoetnografia. Crianças. Infâncias. Culturas Infantis. Fotoetnografia autobiográfica.

CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Children, Infants and Children's Cultures: epistemologies and subjectivities in photoetnographic narratives. João

Pessoa, 2018. 503f. Doctoral Thesis. Graduate Program in Education, Federal University of Paraíba.

ABSTRACT

This research promotes epistemological and empirical interlocutions on the conceptions of

children, childhood and children's cultures through photoetnographic narratives. It holds discussions within the classical approaches of Sociology, Visual Anthropology and

Photoetnography in dialogue with the current epistemological perspectives of the Sociology of Childhood that breaks a new social paradigm in modern Science for the studies of the child.

Methodologically it is characterized as a transdisciplinary research of interpretative approach and photoetnographic method, that combined different strategies of generation, treatment and

data analysis. In view of this, the memento analysis and interpretation movement was initially proposed, which was confronted and discussed in the light of the interpretive, transdisciplinary

and critical-cultural rigor of Visual Culture, having its implications discussed in three complementary analytical fields: the first one comprises the image, photography and

Photoetnography; the second relates to the Social History of Childhood, the Sociology of Childhood and Visual Culture; and the third presents Photoetnography in an autobiographical

perspective as a research strategy with children. Each analytical field required specific methodological strategies, ranging from documentary research, photonnographic research and

autobiographical photoetnographic research, the latter of which had as subject one 6-year-old children living in João Pessoa. Thus, the production of photoetnographic narratives in each field

of analysis allowed the knowledge, deepening and interpretive disclosure of the reality of childhood reflected in the image of the child thus legitimizing itself as a potential

methodological strategy to stimulate the interpretation and understanding of identities, subjectivities and alterities of the child produced in the inter-places and between-cultures of

childhood. In view of this, it was found that the photoetnographic narratives of children, in each historical time and cultural context reveal and legitimize a creative and subversive protagonism

in the relationships of otherness constituted during childhood, thus, children have developed forms of participation and coping with cultural and social circumstances in which he

participates, which is the defense of a new sociological image - that of the child protagonist, a child who subverts the limits and impositions of visual cultures and creatively reinvents ways

of being and living in the contemporary world.

KEYWORDS: Child. Childhood. Child Cultures. Image. Photoetnography. Autobiographical photoetnography. Sociology of Childhood. Child Protagonist.

CABRAL. Fernanda Mendes Cabral [Fernanda M. C. Albuquerque Coelho]. Niños, Infancias y Culturas Infantiles: epistemologías y subjetividades en narrativas fotoetnográficas. Y en el

caso de las mujeres. Programa de Postgrado en Educación, Universidad Federal de Paraíba.

RESUMEN

Esta investigación investiga las imágenes y fotografías que revelan concepciones sobre niños e infancias construidas y propagadas por las Ciencias Sociales y Humanas pertenecientes a

estudios e investigaciones científicas relacionadas a las culturas infantiles contemporáneas y sus singularidades, así como, discute las concepciones de niños e infancias presentes en la

industria cultural y mediática digital que repercuten directamente en la formación de las culturas infantiles. En este sentido, se plantea una discusión en el ámbito de los enfoques clásicos de la

Sociología, Antropología Visual y Fotoetnografía en diálogo con las perspectivas epistemológicas actuales de la Sociología de la Infancia que desbraba un nuevo paradigma

social en la Ciencia moderna para los estudios del niño. Metodológicamente se caracteriza como una investigación transdisciplinaria de enfoque interpretativo y método fotoetnográfico, que

combinó diferentes estrategias de generación, tratamiento y análisis de datos. En vista de ello, inicialmente se propuso el movimiento de análisis e interpretación recuerdo, que fue

confrontado y discutido a la luz del rigor interpretativo, transdisciplinario multireferencial y crítico-cultural de la Cultura Visual teniendo sus implicaciones discursivas en tres campos

investigativos: la imagen; la fotografía y la fotoetnografía; la historia, la sociología de la niñez y la cultura visual; la Fotoetnografía en una perspectiva autobiográfica y el protagonismo

infantil. Cada campo exigió estrategias metodológicas específicas, desde investigación documental, investigación fotoetnográfica e investigación fotoetnográfica autobiográfica que

tuvo como sujeto a 1 niños de 6 años de edad residente en João Pessoa. La producción de narrativas fotoetnográficas en cada campo de análisis permitió el conocimiento, profundización

y desvelamiento interpretativo de la realidad de la infancia reflejada en la imagen del niño legitimándose, así como una estrategia metodológica potencial para estimular la interpretación

y comprensión de las identidades, subjetividades y alteridades del niño producido en los entre-lugares y entre-culturas de la infancia. En vista de ello, se constató que las narrativas

fotoetnográficas de niños, en cada tiempo histórico y contexto cultural, desvelan y legitiman un protagonismo creativo y subversivo en las relaciones de alteridad constituidas durante la

infancia, de modo que los niños han desarrollado formas de participación y enfrentamiento las circunstancias culturales y sociales de las que participa, lo que consiste en una nueva imagen

sociológica - la del niño protagonista, un niño que subvierte los límites e imposiciones de las culturas visuales y de forma creativa reinventa modos de ser y de vivir en la contemporaneidad.

PALABRAS-CLAVES: Imagen. Photoethnography. Los niños. Infancias. Culturas Infantiles.

Photoethnography autobiográfica.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Esquema 1 Organização da tese. 57

Esquema 2 Sistematização do Campo Analítico I. 58

Esquema 3 Sistematização do Campo Analítico II. 62

Esquema 4 Sistematização do Campo Analítico III. 67

Esquema 5 Movimento de interpretação da imagem – memento. 120

Esquema 6 Processo de exposição da imagem fotográfica. 131

LISTA DE QUADROS

Quadro 01 Levantamento de Pesquisas em Fotoetnografia (1997-2017). 141

Quadro 02 Pesquisas selecionadas para análise fotoetnográfica dispostas em

ordem de narração

142

Quadro 03 Cronograma de encontros executados – janeiro a julho de 2017 427

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

BVO Brasil Vale Ouro

CAPES Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior

CE Centro de Educação

CETIC Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico

CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

CONAR Conselho Nacional de Autorregulamentação

EC Estação Conhecimento

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

EEBAS Escola de Educação Básica

FNPETI Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil

GRUPEC Grupo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança

IBICT Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia

ISO International Standards Organization

JP João Pessoa

NUPEC Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre a Criança

OIT Organização Internacional do Trabalho

ONG Organização Não Governamental

PB Paraíba

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação

QRcode Código Quick Response

RD Repositório Digital

SciELO Scientific Electronic Library On-line

SEGAT Secretaria Geral e de Apoio Técnico-administrativo

TA Termo de Assentimento

TAI Termo de Autorização do Uso de Imagem

TCC Trabalho de Conclusão de Curso

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UFGRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UFPA Universidade Federal do Pará

UFPB Universidade Federal da Paraíba

UFPR Universidade Federal do Paraná

UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ULBRA Educação pela Universidade Luterana do Brasil

UnB Universidade de Brasil

UNCRC Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

UVA Universidade Estadual Vale do Acaraú

LISTA DE QRCODE

QRcode 01 Comercial dos brinquedos Estrela. 32

QRcode 02 Para conhecer a história da empresa de brinquedos Estrela. 32

QRcode 03 Comercial Melissinha. 33

QRcode 04 Jornal Nacional (04/07/2017). 34

QRcode 05 Folha de São Paulo (30/07/2017). 34

QRcode 06 Matéria: O fim dos programas de infantis na TV. 35

QRcode 07 Canal no YouTube Master Chef Junior. 35

QRcode 08 Fundação Vale/Estação Conhecimento. 39

QRcode 09 Selo Amazônia, Município Aprovado. 40

QRcode 10 Martins Filho e Ferreira Martins (2012). 51

QRcode 11 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989. 67

QRcode 12 Trailer do filme Memento - YouTube filmes. 82

QRcode 13 Resumo on-line da dissertação de Achutti (1997). 138

QRcode 14 Trois (2012). 146

QRcode 15 Villas Boas (2016). 146

QRcode 16 Organização Internacional do Trabalho no Brasil (on-line). 150

QRcode 17 Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008). 150

QRcode 18 Convenção da Idade Mínima para Admissão no Trabalho (nº

138/1973).

150

QRcode 19 Plano Nacional de Prevenção e Erradicação Trabalho Infantil e

Proteção ao Adolescente Trabalhador (nº 138/1973).

150

QRcode 20 Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho

Infantil (FNPETI, 2015).

150

QRcode 21 Estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil. 151

QRcode 22 Aprato (2016). 156

QRcode 23 Menezes (2016). 160

QRcode 24 Reportagem intitulada: “Sexualização de Mc Melody reacende

discussão sobre funkeiros mirins”.

195

QRcode 25 Texto: Retórica Distintiva no Funk Ostentação (BRAGA,

2014).

196

QRcode 26 Matéria jornalística on-line intitulada: “Mc Melody, de 8 anos, 197

fatura até R$ 40 mil ao mês com carreira polêmica”.

QRcode 27 Silva R. (2016). 198

QRcode 28 Ver “The Principles of Psychology” de Willian James (1890)

sobre estudo o self como sujeito (subjetivo) e self como objeto

(materiais e corporais).

199

QRcode 29 Camargo e Stefaniczen (2016). 200

QRcode 30 Tese: Jogos, brinquedos e brincadeiras - Trajectos

Intergeracionais (2010).

200

QRcode 31 Madonna do Goldfinch (1506). 221

QRcode 32 Chicangana-Bayona (2013). 222

QRcode 33 Biografia Franz Hals. 225

QRcode 34 Biografia Le Nain. 225

QRcode 35 Biografia Jan Steen. 225

QRcode 36 Dossier de presse Philippe de Champaigne (FRANCE, 2007). 256

QRcode 37 Jan Steen, Feast of St. Nicholas. Dr. Wendy Schaller. 231

QRcode 38 Pão doce tradicional holandês, apreciado na Festa de São

Nicolau, no Natal e no Ano Novo. (SCHALLER, 2017).

231

QRcode 39 Texto de Loic Chalmel (2004). 232

QRcode 40 Miller (2016, on-line). 232

QRcode 41 Monografia: “Rosa e azul em terra verde-amarela: a trajetória

do quadro de Renoir e sua presença no acervo do Museu de

Arte de São Paulo (1881-1967)” (MARTINS, A. 2013).

235

QRcode 42 Becker (2010). 235

QRcode 43 Versão em português publicada na Revista Pró-Posições sob o

título: “Apresentação Nove teses sobre a “infância como um

fenômeno social” Jens Qvortrup” (NASCIMENTO, 2011).

241

QRcode 44 Visibilidade Social e Estudo da Infância (SARMENTO, 2007). 244

QRcode 45 Políticas Públicas e Participação Infantil (Sarmento, Fernandes

e Tomás, 2007).

245

QRcode 46 Sarmento (2008). 253

QRcode 47 Tisott (2008). 262

QRcode 48 Abramowicz, et al. (2011). 265

QRcode 49 Silva, R. (2015). 267

QRcode 50 Kern et al. (2010). 272

QRcode 51 “5 campanhas publicitárias que foram censuradas”. Blog Rafaela

Maia (16 de agosto de 2015).

275

QRcode 52 “A infância roubada na publicidade da Couro Fino”. Site Carta

Capital. Natasha Cruz e Raquel Dantas (24 de maio de 2013).

275

QRcode 53 “Governo do Amazonas lança campanha de combate à

erotização de crianças e ganha adesão imediata e espontânea de

usuários de redes sociais de todo o Brasil”. Portal do

Amazonas. (10 de abril de 2017).

276

QRcode 54 Tese: Mídia e consumo na produção de uma infância pós-

moderna que vai à escola (MOMO, 2007).

288

QRcode 55 Coelho e Dias (2013). 291

QRcode 56 Barbosa R. e Gomes (2012). 291

QRcode 57 Barbosa R. (2013). 292

QRcode 58 Propaganda Comercial: “Porque nós somos mamíferos!” em

duas versões, a original com crianças pequenas (1995) e a

última versão com as mesmas crianças crescidas, após 12 anos

de campanha.

296

QRcode 59 Blog Mundo das Marcas. 297

QRcode 60 Propaganda comercial da Claro “A vida em sua mão”,

veiculada em 2012 no canal de Mariano Bolado no YouTube.

(2012).

298

QRcode 61 Instituto Alana (on-line). 299

QRcode 62 Propaganda Comercial da Grendene: “Nessa aventura o herói é

você” (2010), veiculada em 2012 no canal WMcCann BR no

YouTube. (2012).

299

QRcode 63 Conanda (on-line). 300

QRcode 64 Diário do Nordeste. Mc Melody. 306

QRcode 65 Página oficial de Mc Melody no Facebook. 307

QRcode 66 Site extra.globo. Mc Melody. 308

QRcode 67 Silva, P. (2016). 309

QRcode 68 Clipe “Deu Onda versão Falsete”. YouTube/Melody oficial. 310

QRcode 69 Clipe “Metralhadora – Versão Falsete - Melody”. 310

YouTube/Melody oficial.

QRcode 70 “Bang – Annita versão Melody. YouTube/Pânico oficial. 310

QRcode 71 Fashionkids. 312

QRcode 72 Facebook.com/kardashiankids. 312

QRcode 73 Matéria Revista Caras. 314

QRcode 74 Site Oficial da pesquisa EUKidsOnline. 318

QRcode 75 Site Oficial do CETIC/Kids Online Brasil. 318

QRcode 76 Canal Fran Nina e Bel para Meninas. 321

QRcode 77 Canal Juliana Baltar. 321

QRcode 78 Canal Julia Silva. 321

O Código QR é um código de barras bidimensional que é utilizado para codificar informações digitais e sua leitura pode ser realizada através de aplicativos para aparelhos celulares

equipados com câmera. Para acessar estes QRcodesé preciso baixar o aplicativo “Leitor de

QRcode” e escanear com a câmera do celular o código indicado nas notasde rodapé desta

pesquisa, imediatamente, o leitor abrirá o link do qual a informação foi retirada.

SUMÁRIO

CENÁRIOS INVESTIGATIVOS: subjetividades, epistemologias e

aportes metodológicos

23

Aproximações 23

Reminiscências: “Falo de mim” 31

Delineamentos Metodológicos 45

Dos Ensaios às Narrativas Fotoetnográficas 75

ENSAIO 1 - O HISTOGRAMA DA TESE: por uma Fotoetnografia da

Infância

81

PRÓLOGO: Sobre o memento... 82

1 DA CULTURA VISUAL À NOVA EPISTEMOLOGIA DA IMAGEM 89

1.1 Fotografia, um instantâneo da realidade? Reflexões antropofilosóficas sobre

a “pele-magia”

104

1.2 Memento: reviver, sentir e compreender como devir criador 113

1.3 Desvelando fotografias em high key e low key 124

2 A FOTOETNOGRAFIA NA OBJETIVA DA PESQUISA CIENTÍFICA 136

3 NARRATIVA FOTOETNOGRAFICA: Infâncias em fotoetnografias 167

3.1 O Privilégio de Estar com as Crianças: o currículo das infâncias (TROIS,

2012).

167

3.2 {Per[for(mar)]} Imagens das Crianças no Nêgo Fugido, Acupe/B (VILLAS

BOAS, 2016).

167

3.3 Crianças e Objetos: Narrativas Fotoetnográficas sobre Infâncias

Contemporâneas (APRATO, 2016).

168

3.4 Cultura Estética Indígena Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da

pintura corporal Parkatêjê (MENEZES, 2016).

168

3.5 Saberes Culturais Tentehar e Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral

(SÁ, 2014).

168

4 1º CLICK – INFÂNCIAS EM FOTOETNOGRAFIAS 169

EPÍLOGO 192

ENSAIO 2 - AS CULTURAS INFANTIS NAS MULTIMAGENS DE

CRIANÇAS: uma Fotoetnografia Panorâmica Conceptual

194

PRÓLOGO - ...Sobre uma infância estetizada 195

1 CULTURA E IMAGEM: ZONAS DE CONTATO NAS ENTRE-

CULTURAS E ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA

202

2 A I/MA(R)GEM DA CRIANÇA NAS PRIMEIRAS CONCEPÇÕES DE

INFÂNCIA

215

3 SOB A ÓTICA DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA: A EMERGÊNCIA

DOS NOVOS SUJEITOS SOCIAIS

240

3.1 Culturas Infantis em peles magicizadas: mementos em devir 255

4 A CULTURA VISUAL SOB OS HOLOFOTES DA ERA DIGITAL: A

REFLEXIVIDADE DA VIDA SOCIAL

278

4.1 Publicidade e Consumo: a estetização da infância contemporânea 287

4.2 NegAtivos em evidência: adultização e erotização 304

4.3 A imagem da criança protagonista: novas identidades para criança

sociológica na contemporaneidade

317

5 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: DO HOMÚNCULO À

CRIANÇA SOCIAL

323

5.1 A criança na I/MA(r)GEM 323

5.2 Pequenos Trabalhadores: infância e industrialização em Caxias do Sul - fim

do Séc. XIX e início do Séc. XX (TISOTT, 2008).

323

5.3 Imagens de Crianças e Infâncias: a criança na iconografia brasileira dos

séculos XIX e XX” (ABRAMOWICZ, et al. 2011).

323

5.4 Criança e Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação

Infantil (SILVA R., 2015).

324

5.5 A moda infantil no século XX: representações imagéticas na revista do globo

- 1929-1967 (KERN et al., 2010).

324

5.6 Crianças de Revistas - 1930/1950 (BRITES, 2000). 324

5.7 Dia das Crianças - Calçados Couro Fino (2015). 324

5.8 Mídia e consumo na produção de uma infância pós-moderna que vai à escola

(MOMO, 2007).

325

5.9 Bichinhos da Parmalat - Campanha “Mamíferos” (1995). 325

5.10 Mc Melody (2014-2017). 325

5.11 Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:

perspectivas para uma Escola da Infância”.

326

5.12 Fashionistas 326

6 2º CLICK - DO HOMÚNCULO À CRIANÇA SOCIAL: INFÂNCIAS

EM PELES MAGICIZADAS

327

EPÍLOGO 351

ENSAIO 3 - O PROTAGONISMO DA CRIANÇA NA ALTERIDADE

DA INFÂNCIA: da fotografia à voz

354

PRÓLOGO - Sobre a princesa “blogueirinha” Maria Clara no reino

encantado da Luz

355

1 CANTOS, CONTOS E ENCANTOS DE MARIA CLARA: UMA

FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA

361

1.1 Para início de conversa: os “magníficos” livros “leitura-imagem” de Maria

Clara

362

1.2 Cantos... Um reino encantado chamado Luz 373

1.3 Contos... Câmera, Flash e Clicks: diários de uma Fotoetnografia

389

1.4 Encantos... A princesa “blogueirinha” dos @achadinhosdemariaclara 397

2 A FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA NA PESQUISA COM

CRIANÇA

406

2.1 Abertura, Velocidade e Sensibilidade: a ação do pesquisador em foco 415

2.2 Seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito 423

2.3 Produção da Fotoetnografia Autobiográfica: mementos em devir 429

2.4 Produção do diário fotoetnográfico 433

3 3º CLICK: “- OI PESSOAAAL! EU SOU A BLOGUEIRINHA MARIA

CLARA!”: MANHAS E ARTIMANHAS DE UMA PRINCESA

“BLOGUEIRINHA”

436

EPÍLOGO 464

POR UMA IN/CONCLUSÃO... Afinal, o que desvelam as

fotoetnografias?

467

REFERÊNCIAS 476

ANEXOS 501

23

CENÁRIOS INVESTIGATIVOS:

epistemologias, subjetividades e aportes metodológicos

APROXIMAÇÕES

Uma criança sempre pode ensinar três coisas a um adulto: a

ficar contente sem motivo, a estar sempre ocupado com alguma

coisa, e a saber exigir - com toda força - aquilo que deseja

(COELHO, P., 1996, p. 152).

Se escutar essa criança que carrego na minha alma, meus olhos

tornarão a brilhar. Se não perder o contato com esta criança,

não perderei o contato com a vida (COELHO, P., 2015b, n.p.).

Antes de anunciar a pesquisa, optei por iniciar o texto acentuando justamente o que ela

não é. Não se trata de mais um estudo que tenta estabelecer conceitos lineares de criança e/ou

infância contemporânea destacando concepções teóricas e situações empíricas que expressam

formas e vivências que se assemelham, diferem e/ou descrevem os modos de ser e viver das

crianças atualmente. Nem de outra pesquisa que busca, na ausência de um conceito, descrever

as múltiplas formas em que as infâncias se constituem e são constituídas através das interações

sociais e culturais que permeiam as relações humanas sob influências das mudanças e

transformações advindas dos processos de globalização, dos adventos tecnológicos ou das

novas formas de comunicação humana, mesmo considerando a legitimidade e necessidade de

estudos como estes. Tampouco, se trata de uma pesquisa que procura os “vilões” da

contemporaneidade, apontando os “culpados” de um possível “desaparecimento da infância”,

pois, não acredito que tal façanha seja possível.

A priori, a intenção aqui, foi encontrar estratégias que pudessem possibilitar o

desvelamento crítico da realidade de forma a promover conexões epistemológicas e teórico-

metodológicas que permitissem não só investigar as situações singulares e subjetivas das

culturas infantis construídas, desconstruídas e discutidas histórica e socialmente no campo das

Ciências Humanas e Sociais, mas, sobretudo, conexões que tivessem a capacidade de me fazer

e de fazer o leitor/espectador, “reviver”, “sentir” e “compreender” as configurações culturais

da infância constituídas ao longo de diferentes épocas e contextos. Dessa forma, me desafiei a

24

produzir um texto que, além de abarcar conhecimentos epistemológicos e empíricos, fizesse

emergir as sensibilidades e subjetividades que envolvem o tema infância face à sua

familiaridade e complexidade. Assim, a partir destas três dimensões - “reviver”, “sentir” e

“compreender”, traço as reflexões que inspiraram os percursos metodológicos adotados nesta

tese.

Neste sentido, parto da premissa de que a infância, enquanto estrutura social

(QVORTRUP, 2010) precisa ser compreendida em sua integralidade e a Ciência, enquanto

campo de conhecimento que abrange a racionalidade, não deve negar a imaginação

metodológica (SARMENTO, 2007, p. 45) que, necessariamente, este campo de pesquisa

requer, e consequentemente, não deve desconsiderar também, as emocionalidades e

subjetividades que estão direta e indiretamente, envolvidas nos processos de investigação

empírica. Mas, como seria possível promover novas impressões acerca das concepções de

criança e infância de forma sólida e rigorosa na pesquisa científica e ao mesmo tempo,

considerar as emoções, subjetividades e criatividades que, “inevitavelmente”, envolvem (e

devem envolver) esse tema?

Afinal, todos nós já fomos criança, e em nosso dia-a-dia também testemunhamos outros

modos de ser e de viver a infância, com isso, irremediavelmente, armazenamos na memória

lembranças e impressões dessa fase da vida. No entanto, essas lembranças por vezes, foram

abandonadas, quando nos deparamos com as condições em que as crianças foram tratadas ao

longo da história, como quando são submetidas à fome, ao trabalho infantil, à violência, aos

abusos, à exploração, entre outros problemas que ainda atingem a atualidade. Diante de tais

circunstâncias, penso que a transformação social e política, consequentemente, educacional da

infância, precisa partir de uma perspectiva ontológica, ou seja, de uma consciência introspectiva

que traga à tona a sensibilidade dessa fase da vida (vivida, sentida, compreendida) reverberando

assim, posteriormente, em empatia no trato com a criança, seja em que espaço e circunstância

for.

Partindo dessas reflexões, proponho uma aventura ao mundo da imagem, das imagens

de crianças, infâncias e culturas infantis. Das imagens mais longínquas às mais próximas,

esquecidas e/ou guardadas em velhas caixinhas de sapatos. Das imagens de crianças que

marcaram a história social da infância nas pesquisas científicas e as imagens de crianças que

marcaram as “nossas” próprias histórias de vida. Neste sentido, durante a leitura desta tese,

pretendo estimular memórias, sensibilidades e reflexões acerca da criança que fui, das crianças

que “conheci” nas entrelinhas da “ciência” e das crianças com que tive o prazer de conviver e

de aprender a ser novamente “criança” para poder entender a realidade da infância.

25

Assim como na epígrafe desta introdução, nas palavras de Paulo Coelho, convido o

leitor/espectador1 a ouvir a criança que temos na alma, convido a se encantar sem motivo, a se

ocupar “ainda mais”, só que dessa vez, com as coisas simples da vida e a, novamente, sonhar,

sonhar os sonhos da imaginação infantil, pois, somente assim, poderemos descobrir o que a

criança que pretendemos conhecer, tem a nos dizer.

Destarte, há através da imagem a possibilidade de promover esse diálogo entre passado

e presente, considerando as dimensões ontológicas, empíricas e epistemológicas que cabem a

este estudo. Portanto, convoco as imagens como testemunhas da realidade, como estimuladoras

de memórias, lembranças e conhecimentos. Desse modo, considerando as imagens como

reflexos da realidade que materializam discursos (MARTÍNEZ, I., 2011, p. 16; MITCHELL,

1994, p. 23; SARDELICH, 2006, p.468) e demonstram nuances de presença para além de uma

recordação (KOURY, 1998, p. 72-73; ACHUTTI, 2004, p. 85; ROSE, 2007, p. 12; FLUSSER,

2007, p. 111; CARVALHO, C., 2011, p. 124; SAMAIN, 2012, p. 158-160; AUMONT, 2016,

p. 8), as imagens constituíram-se como elos fundamentais para a construção desta tese. Porém,

antes de anunciar os caminhos metodológicos da pesquisa, traço algumas considerações iniciais

nesse capítulo introdutório, que considero fundamentais para a compreensão do todo.

Nesta perspectiva, entendo que “as imagens, sejam do mundo físico, das representações,

do imaginário simbólico, sejam da virtualidade, constituem-nos sem nos darmos conta do

quanto elas formulam nossos modos de ver o mundo” (CUNHA, 2008, p. 129). Ou seja, através

da imagem, a realidade é representada, a memória é acionada, as emoções estimuladas e as

interpretações evocadas. Portanto, recorro à imagem enquanto um fenômeno, logo,

As imagens pertencem à ordem das coisas vivas, ao mesmo título que os

problemas de beleza, os caranguejos do mar, as orquídeas e os seres humanos.

Explico-me. Se admitirmos que a imagem (toda imagem) é um fenômeno, isto é, “algo que vem à luz [phanein]”, “algo que advém”, um “acontecimento”

(um “advento” como melhor se dizia, outrora), entender-se-ia que ela é, ainda,

uma “epifania”, uma “aparição” [epiphanein], uma “revelação”, no sentido até fotográfico do termo (SAMAIN, 2012, p. 157, grifos do autor).

De acordo com Samain (2012) se admitirmos a imagem a partir da dimensão de

fenômeno, ela passará a ser mais que um objeto, passará a ser um “lugar de um processo vivo”,

1 Uma tese é escrita para ser lida, compreendida e criticada, mas isso, não significa que precise apresentar

uma linguagem sisuda, situada apenas no carácter racional do conhecimento, dessa forma, quando teço

as narrativas deste texto, procuro oferecer uma linguagem que possa não só ser lida, mas também,

contemplada pelo leitor, por isso, faço uso do termo espectador, considerando o carácter emocional da

imagem. Importante ressaltar que, quando utilizo estes termos, estou me referindo também, às leitoras e espectadoras, no entanto, apenas por questões práticas e estéticas, não reescrevo os termos no gênero

feminino.

26

parte integrante de um sistema de pensamento, daí a ideia de imagens pensantes, posto que:

A imagem, assim entendida, é longe de ser uma abstração. Ela é a eclosão de

significações, num fluxo, amplo e contínuo, de pensamentos que sabe

carregar. É por essa razão que a imagem pode-se tornar um clarão numa noite profunda, a aparição de uma espécie fantasmal esquecida, que, de repente, se

desvela por um curto instante, se revela, nos lembra de outros tempos e de

outras memórias. O tempo das imagens é um pouco como o tempo dos rios e das nuvens. Ele rola, corre, murmura, quando não se cala. O que faríamos sem

as imagens? (SAMAIN, 2012, p. 158).

Para Carvalho, C. (2011, p.116) através das imagens contemplamos afetos porventura

esquecidos, tendo em vista que a imagem se encontra entre a dissolução inexorável do tempo e

àquilo que se buscou preservar ante a ansiedade e o remorso que o desaparecimento poderia

causar, pois, evidentemente, “a realidade fixada deixou de existir um segundo após sua

cristalização”. Em outras palavras, registra-se através de imagens o que não se quer esquecer.

Nesta dimensão, a imagem não é só uma pseudopresença, mas, também se torna símbolo

de uma ausência estimada, ou seja, “Está-se diante do processo de ‘congelamento do tempo’,

tratando-se de realizar o inventário da mortalidade e do envelhecimento de quem aparece nas

fotos” (CARVALHO, C., 2011, p. 116, grifo do autor). Nestes termos, é possível afirmar que

através da imagem, a ausência, supostamente, se faz presença – como uma revivescência2.

O conceito de revivescência compreendido a partir da teoria da Reminiscência em Platão

é fundamental para entender a perspectiva epistemológica adotada neste estudo. Para este

filósofo, a alma humana vivia anteriormente no mundo inteligível ou das ideias, tendo acesso e

domínio da verdade, ou seja, a alma possuía a ciência absoluta. Ao vir para o mundo sensível,

perdeu a noção de ciência absoluta e passou a ter acesso ao conhecimento através de

rememoração, de “revivescências”, que significa voltar a viver trazendo à tona as memórias já

vivenciadas no mundo das ideias, o que fundamenta o conceito de reminiscência em Platão, que

assume o conhecimento como um processo de anamnese, isto é, uma forma de recordação

(PLATÃO, 1972, p. 72e-77a).

As concepções ontológicas do processo de reminiscência em Platão, constituiu a base

epistemológica para se pensar as dimensões do “reviver”, “sentir” e “compreender”, assim,

busquei “reviver” alguns momentos históricos, “sentir” as emoções e singularidades desses

momentos e “compreender” as realidades e transformações culturais da infância a partir das

trajetórias e evoluções históricas e conceptuais de criança e infância em diferentes épocas e

contextos. Quando me refiro ao “reviver”, penso as imagens como forma de recordação do

2 Cf. “Fédon” de Platão (1972, 72e-77a).

27

passado para compreensão do presente, ao “sentir” como o conjunto de conexões emocionais

que interligam a imagem à sua representação, produzindo assim, sensações, expectativas,

sentimentos e interpretações acerca do representado, o que leva a “compreender” a imagem.

Esse movimento cíclico de rememorar, gerar emoções e reflexões através das imagens,

me inspirou a optar pelo uso de narrativas visuais, dado o potencial representativo e expressivo

das imagens para a compreensão da realidade. Situação a qual remontei a ideia de memento3,

utilizado nesta tese sob o influxo do conceito de reminiscência4 que é abordado nas obras de

Platão - “Fédon” (1972, 70c-77a) cujo tema central era a imortalidade da alma e “Mênon”

(2001, p. 79e7-86c6)5 na qual o filosófico consagra o imagético-metafórico na relação com a

aprendizagem como um ato de rememoração, de recordação (CARNEIRO, 2008), implicando

assim, no conceito de reminiscência. O processo dialético da anamnese junto ao escravo de

Mênon comprova a pedagogia socrática ao pôr em evidência “a sincronicidade harmônica

almejada para a relação mestre-discípulo quando mediatizada por uma dinâmica de

conhecimento” (CARNEIRO, 2008, p, 17).

Partindo dessas premissas, as narrativas visuais construídas através de perspectivas

fotoetnográficas, tornaram-se reminiscências, e aqui, memento, ou seja, lembranças vivas. A

categoria “memento” refere-se ao processo de percepção e interpretação da imagem ao envolver

de forma cíclica e interdependente três movimentos: o reviver – como reminiscências que

trazem à tona as memórias e experiências do sujeito; o sentir – como expressões emocionais e

subjetivas; e o compreender – como movimento de análise interpretativa e reflexiva acerca da

imagem e a partir das conexões estabelecidas entre elementos racionas e emocionais disparados

pelo acionamento da memória frente à imagem6.

Na perspectiva maffesoliana, razão e sentimento detêm relação na compreensão dos

fenômenos sociais, em vista disso, a integração dos sentidos à progressão intelectual

“atualizaria a exigência platônica que impõe a elevação do sensível ao inteligível. Entendendo-

3 Memento é uma categoria empreendida nesta tese para a análise e compreensão das narrativas

fotoetnográficas. Será abordado no ensaio 1, subitem 1.2. 4 De acordo com Carneiro (2008, p. 64) o termo em espanhol, significa reminiscencia ou rememoración,

em italiano reminiscenza, em inglês recollection ou reminiscence e em alemão rückerinnerung. “Em

língua vernácula, anamnese ou anamnésia, reminiscência ou rememoração, recordação, lembrança e memória. Em síntese, grosso modo, o vocábulo reminiscência nomeia o ato de algo entrar de novo na

memória”. 5 Platão concebe seu texto em longos e metafóricos diálogos entre quatro personagens: Sócrates, Mênon,

escravo de Mênon e Ânitos. Desse modo, Sócrates levara seus interlocutores a parirem a verdade,

comprovando assim, sua tese de que “não há ensinamento, mas sim rememoração” (PLATÃO, 2001, 82a3). 6 Abordado no ensaio I, seção 1.2.

28

se que tal ‘elevação’ reconhece o sensível como parte integrante da natureza humana e,

evidentemente, os efeitos sociais que isso pressupõe” (MAFFESOLI, 1998, p. 27, grifo do

autor).

Nesta direção, por meio de narrativas escritas e visuais, tentei tornar esta pesquisa uma

leitura atrativa, prazerosa e, principalmente, contributiva para o desenvolvimento de novas

possibilidades investigativas no campo das Ciências Humanas e Sociais, sobretudo, voltadas às

pesquisas com crianças e sobre infâncias e culturas infantis. Conforme ressaltou Emmanuel

Garrigues7, a forma narrativa que aproxima texto escrito e imagem é uma das abordagens mais

apaixonantes para trabalhos de pesquisa, pois:

[...] inventar uma linguagem que una a linguagem-imagem e a linguagem-

texto abre perspectivas experimentais tanto científicas quanto artísticas,

permite recorrer a encontros entre pesquisadores e criadores e articular também o sensível e o racional aprofundando essa necessidade cada vez mais

evidente de ter uma abordagem científica não-mutilante do emotivo e do

subjetivo como portadores de conhecimento da realidade (GARRIGUES, 1997, p. 171).

Nesta perspectiva, esta pesquisa aponta novas possibilidades de pesquisa com crianças

que avançam em direção a uma compreensão holística da realidade e, principalmente,

contribuem com a visibilidade e participação da criança nos assuntos relacionados a ela. Além

disso, sinalizo direcionamentos e vias de interpretações para a compreensão das multiplicidades

infantis em suas dimensões e complexidades culturais, sociais e subjetivas lançando mão de

propostas metodológicas que estabelecem conexões ontológicas, epistemológicas e empíricas

através do diálogo entre conhecimento (razão) e emoção (sensibilidade). Assim, faço minhas

as extensas e necessárias palavras de Duarte Jr. (2000):

Amor, beleza, encantamento: quantas palavras proibidas em nosso rigoroso meio acadêmico, sempre cioso por definir seus objetos de estudo em termos

de qualidades objetiváveis, isto é, mensuráveis - coisa que, definitivamente,

não parece possível com estas três, dentre tantas outras aqui empregadas. Contudo, é preciso ousar; é preciso furar a crosta cientificista que vem

tornando as reflexões acadêmicas impermeáveis à vida que realmente importa:

aquela levada a efeito em nosso dia-a-dia, semelhante às dos cientistas e luminares de conhecimentos parciais - na verdade, a única vida que se tem,

em que pese as abstrações conceituais com as quais se escrevem teorias, tratados e teses. A vida é exercida, antes de tudo, valendo-se desses saberes

sensíveis e conhecimentos que o arrogante intelectual apressa-se logo em

classificar como “não-científicos” ou próprios do “senso comum”, feito este não contivesse qualquer verdade ou validade prática (DUARTE JR., 2000, p.

32-33).

7 Pesquisador e fotógrafo francês, destacado por Achutti (2004, p. 86) em seu trabalho “Fotoetnografia da

Biblioteca Jardim”.

29

É desse “saber da vida” que estou a falar, ou seja, desses conhecimentos culturais e

saberes sensíveis que muitas vezes são descredibilizados pela supremacia da academia dura e

seu ‘suposto’ absolutismo científico. O que significa afirmar que, para refletir sobre a trajetória

conceptual de criança, infância e culturas infantis, considero necessário, sobretudo, reconhecer

as implicações sociais e subjetivas que se constituem no “interior da representação, através da

cultura, não fora delas” (HALL, 1997, p.26).

Neste prisma, àquilo que foi narrado, registrado, dito, investigado, afirmado, refutado,

entre outros discursos que circulam nos escritos das Ciências Humanas e Sociais, estão

permeados não só de conhecimentos teóricos, mas, de olhares e imagens que refletem

experiências cotidianas de sujeitos sociais que carregam em si memórias, reminiscências,

sentidos e emoções que não podem mais ser negados na práxis investigativa, pois, constituem

suas identidades sociais, e estas são, de acordo com Hall (1997):

[...] o resultado de um processo de identificação que permite que nos

posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas

subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo discursivo e

dialógico. Portanto, é fácil perceber porque nossa compreensão de todo este processo teve que ser completamente reconstruída pelo nosso interesse na

cultura; e por que é cada vez mais difícil manter a tradicional distinção entre

“interior” e “exterior”, entre o social e o psíquico, quando a cultura intervém (HALL, 1997, p. 27, grifos do autor).

Este desafio exigiu uma perspectiva teórico-metodológica que ainda não havia me

deparado como pesquisadora em Educação, o que me fez caminhar em outros campos

científicos como Sociologia, Filosofia, Semiótica, Antropologia e, mais especificamente, a

Antropologia Visual, onde encontrei na Fotoetnografia do antropólogo brasileiro Luiz Eduardo

Robinson Achutti (1997)8, a inspiração que eu precisava. De acordo com Achutti (1997, p. 14)

a Fotoetnografia consiste “no uso da fotografia como uma narrativa imagética capaz de

preservar o dado e convergir para o leitor uma informação cultural a respeito do grupo

estudado”. O termo foi difundido no Brasil em sua dissertação de mestrado intitulada

“Fotoetnografia: um estudo de Antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho”, defendida

no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que consiste

no uso da fotografia como uma narrativa imagética integral (ACHUTTI, 1997, p. 87).

A abordagem fotoetnográfica procura construir através de imagens uma forma narrativa

da realidade, aproximando as linguagens visuais do universo da escrita, possibilitando ao

8 O ano de defesa de dissertação é 1996, mas o ano de publicação é 1997.

30

pesquisador e leitor uma “escritura por inteiro, [isso ocorre] quando se para de recorrer às

palavras para se deixar levar em uma viagem visual reveladora, abrigando o inefável que

igualmente encerra conhecimento e sentido” (ACHUTTI, 2004, p. 87, grifo meu), o que de

certa forma, tornou possível a rememoração, reflexão e compreensão histórica, social e cultural

das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis abordadas nesta pesquisa.

Portanto, a partir de um olhar curioso, sensível, porém, sistemático e apurado, estabeleço

um diálogo com a construção histórico-social e cultural das concepções de criança e infância a

partir de uma perspectiva fotoetnográfica, em que a principal forma de narrar foi o uso de

imagem, através de um exercício de antropologia visual (ACHUTTI, 1997, p. 12).

Destarte, ao produzir esta tese tive o cuidado de dar ênfase às representações imagéticas

acerca da trajetória e evolução das concepções de criança e infância em diferentes épocas,

destacando os contextos históricos e significados sociais que constituem e são constituídos

pelas culturas infantis, com o intuito de possibilitar ao leitor não só conhecer as particularidades

e pluralidades culturais da infância, mas, sobretudo, provocar o diálogo reflexivo em relação ao

que lhe proporcionarei a ver (considerando o meu próprio entendimento e sensibilidade).

Tal gesto, corrobora com a percepção de Koury (2011) ao afirmar que, o olhar sensível

do leitor passa a debruçar-se nas evocações racionais e sentimentais já provocadas no autor,

não para contraporem-se, mas, para “deliciarem-se” na emoção e revelação da produção, dessa

maneira, “autor e leitores dialogam, em entendimentos variados da narrativa proposta”, para,

[...] só depois sonhar, no estranho e necessário diálogo entre a proposta

enredada e os diversos enredos possíveis de serem propostos, no constructo simultâneo de vários fatos sobre os mesmos atos que se não são seus,

observadores, mas a eles foram oferecidos como produção em ato que gerou o fato enredado [...] (KOURY, 2011, p. 34).

Esses breves apontamentos anunciam a exposição dos caminhos que trilhei, das

reminiscências que tive, das imagens que levo nas memórias de infância, das experiências de

formação e profissão docente, das crianças que “conheci” nas entrelinhas da ciência, inclusive

até dos momentos de conflito epistemológico e metodológico que passei durante esses últimos

quatro anos de percurso produtivo e analítico. Experiências estas, que marcaram minha

biografia de maneira bastante significativa e que me direcionaram a empreender esta tão

enriquecedora etapa de formação acadêmica.

31

REMINISCÊNCIAS: “FALO DE MIM...”

Falo de uma infância vivida, inventada, sentida;

Falo de uma menina criativa, engraçada, desinibida;

Falo de um olhar curioso, teimoso e corajoso;

Falo de uma criança cheia de histórias para contar

e que acabou se tornando uma professora;

Falo de mim...

As questões relacionadas às infâncias e culturas infantis sempre fizeram parte de minhas

inquietações e motivações pessoais, principalmente, no que se refere ao protagonismo da

criança frente aos desafios impostos pela indústria cultural moderna, mais especificamente

relacionada às novas culturas visuais reconfiguradas pelas mídias digitais. Quando penso na

infância contemporânea, inevitavelmente, remeto às reminiscências da minha própria

experiência como criança.

Em 1984, por volta dos 7 anos de idade, eu e minha irmã mais nova de 5 anos,

brincávamos com várias miniaturas de móveis de madeira que reproduziam uma casa de

“verdade”, presente da nossa tia que morava no interior da Paraíba. Tentávamos imitar as

rotinas da família utilizando bonecas e utensílios de brinquedo. Fazíamos de conta que éramos

vizinhas e que cada uma havia construído sua própria família, mas, sempre parecida com a

nossa da “vida real”. Neste mesmo período, também brincávamos na rua com as coleguinhas

da vizinhança, sempre ao final da tarde, quando chegávamos da escola. Brincadeiras como

“amarelinha”, “pega-pega”, “toca-gelo”, “esconde-esconde”, “pula corda”, “batatinha-frita

1,2,3”, “pula-elástico”, entre outras. Além é claro, de brincar com a imaginação assumindo

vários papéis sociais como: “cientista” - fazendo perfumes com folhas e flores dos jardins,

misturando cores e cheiros; “padeiro” – fazendo pães e biscoitinhos com farinha de trigo e água

e outras comidinhas com alguns grãos que conseguíamos pegar “escondido” na cozinha e de

“professora” - fazendo de conta que estávamos na escola com todas as rotinas de uma sala de

aula.

Até os 9 anos, brincávamos com uma réplica da tradicional boneca Barbie e também,

com a boneca “Meu Bebê” da marca Estrela, uma empresa multinacional que dominava o

mercado econômico de brinquedos infanto-juvenis da época. Lembro-me que essas bonecas

eram muito caras e meus pais não tinham condições de comprá-las, só depois de algum tempo,

com muito sacrifício, o “Papai Noel” nos presenteou na noite de Natal. Logo, eu e minha irmã,

batizamos asbonecas “gêmeas” de Ana Cristina e Ana Paula, pois vinham com pulseirinhas de

32

identificação, aquelas de maternidade. Essas bonecas eram as nossas prediletas, pois por muito

tempo já sonhávamos em tê-las, acredito que parte dessa vontade era decorrente dos inúmeros

comerciais de TV9 que nos envolviam com lindas canções e imagens de crianças felizes

brincando com seus “bebês”. Guardei essa boneca até os 14 anos, mas cedi às minhas primas

que ainda eram pequenas e também não tinham condições de adquirir10.

Em 1986, entre 9 e 10 anos de idade, as atenções voltaram-se para a chegada do

programa de TV, “Xou da Xuxa”, a programação infantil de maior repercussão midiática da

época, comandado pela apresentadora Maria das Graças Xuxa Meneguel, mundialmente

conhecida como Xuxa. As lembranças desse tempo são bastante significativas. Eu e as mesmas

amigas reproduzíamos o programa com frequência. Nossa brincadeira envolvia mais de 30

crianças, entre meninos e meninas de todas as idades que moravam na vizinhança, algumas

estavam sempre acompanhadas de seus familiares. Lembro-me de cada detalhe minimamente

organizado, o cenário decorado, as brincadeiras, as músicas, os sorteios de cartinhas em cada

suposto “intervalo comercial”, (algumas confeccionadas por nós, outras por crianças da

vizinhança), líamos dezenas dessas durante o “xou”. Mas, a recordação mais interessante era

como nos preocupávamos em nos vestir igual a Xuxa, principalmente com botas compridas,

acessórios nos cabelos e muita maquiagem no rosto, lógico!

Buscávamos manter a mesma organização do programa original, inclusive cada uma de

nós exercíamos papéis referentes a cada personagem: a Xuxa, as Paquitas, o Praga, o Dengue,

o Moderninho e até o cameraman11, que fazia de conta que filmava todo o programa. Quando

não estávamos no “xou”, também procurávamos parecer exatamente iguais à Xuxa, as roupas

do cotidiano, os penteados e como sempre, a maquiagem. Não recordo quanto tempo isso durou,

mas sei que em muitas tardes todo esse processo se repetiu.

Outra forte lembrança refere-se aos intervalos comerciais que ocorriam durante o

9 QRcode 01: Comercial dos brinquedos Estrela. A boneca Bebezinha aparece logo na abertura da mídia.

10 Os brinquedos Estrela eram veiculados na mídia televisiva e se tornavam o sonho de consumo de meninas

e meninos que vivenciaram a infância nos anos 80. QRcode 02: Para conhecer a história da empresa de

brinquedos Estrela.

11 Palavra inglesa que significa operador de máquina de filmar (PRIBERAN, 2016).

33

programa, mostravam produtos alimentícios, brinquedos, vestuários como as sandálias da

Melissinha12 que vinham com pochete e relógio. Sem querer aprofundar as lembranças, ainda

destaco os desenhos animados, os musicais infantis e outras programações televisivas como

Show Maravilha, Sítio do Pica-pau Amarelo, Castelo Ra-tim-bum, Turma do Chaves, e muitas

outras programações específicas para crianças.

Essas recordações demonstram que a mídia televisiva já era bem presente no cotidiano

das culturas infantis nos anos 1980, no entanto, isso não limitava as interações infantis nem

substituía as brincadeiras de rua, como tem sido visto nos dias de hoje. De acordo com pesquisas

que discutem as relações da infância na contemporaneidade relacionadas às mídias, tecnologias

e culturas é possível afirmar que fatores como a violência urbana, as alterações nos modos de

vida familiar, a saída da mulher para o mercado de trabalho, a institucionalização da infância,

a apropriação dos saberes científicos sobre a infância, a demanda da educabilidade e proteção

das crianças, o aumento do uso das tecnologias nas rotinas domésticas como a própria televisão,

o computador, o celular, os jogos eletrônicos, a Internet, as redes sociais, entre outras mudanças

culturais, sociais e econômicas decorrentes da modernidade, desencadearam outras formas de

vivenciar a infância, consequentemente, as crianças tiveram de se adaptar às novas

possibilidades do brincar e com isso, as brincadeiras de rua foram sendo substituídas pelas

brincadeiras eletrônicas e virtuais (AMARAL, 2010; CABRAL, 2008; DORNELLES, 2005;

DUARTE JR, 2000; FISCHER, 2008; GIRADELLO, 2005; PACHECO, 2004; SARMENTO,

2003).

Atualmente, já não se veem mais crianças nas ruas brincando como antes, as cidades

foram se modificando, as casas passaram a ter grades, portões eletrônicos, câmeras de

segurança; as famílias já não se sentem seguras em deixar seus filhos e brincando em ambientes

públicos sem a supervisão de adultos, a procura por condomínios horizontais e verticais é cada

vez maior dada à segurança que oferecem. Além de tudo que já foi dito, a “rua” foi proibida, o

que em minha opinião, contribuiu bastante com a reconfiguração das culturas infantis na

atualidade, conforme, profeticamente, ressaltou Amaral (2010, p. 55) “[...] estamos

constituindo uma sociedade em que os indivíduos vivem enclausurados em condomínios,

apartamentos, shoppings e escolas, na maioria das vezes, vigiados 24 horas por dia”. Conforme

havia ressaltado Duarte Jr. (2000, p. 87):

12 QRcode 03: Comercial Melissinha.

34

[...] às crianças não se oferecem mais oportunidades de contato com a natureza, com a cidade e os seus iguais, em situações mais desprendidas e

abertas do que aquelas verificadas nos parcos espaços livres de nossos

edifícios. As crianças, tanto quanto os adultos, não contam mais com espaços e locais amorosos e sensíveis para caminhar e correr em nossas cidades

modernas. Cidades cujo propósito vem se restringindo ao estritamente econômico, ao estritamente prático, funcional e utilitarista. Cidades

desprovidas de alma e apelos à sensibilidade de todos nós, a não ser no modo

inverso e negativo. Assim, hoje, como caminhar e brincar nesses nossos neuróticos centros urbanos? (DUARTE JR., 2000, p. 87).

A realidade de crianças pobres, moradoras de comunidades carentes, não é muito

diferente, pois a violência entre facções criminosas e entre polícia e traficantes, muitas vezes

criam pânico na população, restando o enclausuramento também a essas crianças. Dois

exemplos dessa violência puderam ser verificados recentemente, em dois trágicos desfechos na

cidade do Rio de Janeiro, um no Complexo do Lins, onde uma menina de 10 anos foi morta por

bala perdida13, e outro em Duque de Caxias, onde um bebê foi baleado ainda dentro do útero

da mãe, vindo a falecer um mês depois.14

Todavia, não significa que as crianças de hoje não gostem mais de brincadeiras de “rua”,

mas, significa que principalmente elas, sofreram as consequências da modernidade tardia que

caminha para uma sociedade de relações líquidas, superficiais e instáveis (BAUMAN, 1998).

Segundo o estudo “O auge e o declínio da programação infantil na TV comercial

brasileira” realizado por Borges, Arreguy e Souza (2012, p. 90), o período entre 1984 e 2000

pode ser considerado o auge da programação infantil em TV aberta no Brasil, considerando a

segunda geração de programas feitos exclusivamente para crianças, o que gerou grandes

investimentos em publicidades de marcas e produtos, assegurando significativa audiência

inclusive fora de horário nobre. A partir de 2001, iniciou o que os autores chamaram de declínio,

destacando algumas dificuldades que as emissoras tiveram de enfrentar como: denúncias,

críticas e avaliações sobre o target15 infantil e a propaganda publicitária voltada para esse

público, realizadas por organizações não governamentais (ONGs) Instituto Alana, a Agência

13 QRcode 04: Jornal Nacional (04/07/2017).

14 QRcode 05: Folha de São Paulo (30/07/2017).

15 Termo em inglês usado para designar o público alvo de um produto ou serviço filmar (PRIBERAN,

2016).

35

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Conselho Nacional de Autorregulamentação

(CONAR), perda de receita publicitária e redução do espaço dos programas para crianças.

Notadamente, ainda é bem presente esse declínio na TV brasileira, por exemplo, quando

paro para pesquisar a programação infantil dos canais abertos de televisão me deparo com uma

grande lacuna, lacuna esta, preenchida com programações que parecem ser infanto-juvenis, mas

que nada oferecem como entretenimento propriamente direcionado à criança, não há mais

programas de auditório, apresentadoras como Xuxa, Angélica, Mara-maravilha, os grupos

musicais para o público infantil desapareceram, as mídias tratam as crianças como pré-

adolescentes, restando apenas a imensa indústria comercial, que ainda explora espaços na mídia

televisiva com publicidades que tentam abarcar a nova infância, agora, ainda mais consumidora

(MOMO, 2007), mesmo após a implementação da Resolução Nº 163 do Conselho Nacional dos

Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que dispõe sobre a abusividade do

direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente16

(CONANDA, RESOLUÇÃO Nº 163, 2014).

Para destacar alguns exemplos atuais de programação que se dizem voltadas ao público

infantil na TV aberta cito o “The Voice Kids” na Rede Globo e o “MasterChef Junior”, na Rede

Band, programas de curta temporada com altos índices de audiência, que têm como seus

principais participantes, crianças. No entanto, partindo de uma breve avaliação, no primeiro

caso, é possível observar crianças com repertórios musicais que destoam das particularidades

do universo linguístico infantil, a exemplo da música “Can't remember to forget you” da cantora

Shakira, com forte tendência à erotização e a música “Inútel” da Banda Ultraje a Rigor, de

cunho extremamente crítico, político e ideológico17, poucas crianças cantam musicais infantis.

No segundo caso, trata-se de um programa de culinária onde crianças entre 9 e 13 anos

competem entre si como se fossem chefes de cozinha profissionais, tendo de produzir pratos

complexos e diferenciados que vão desde massas italianas até frutos do mar à francesa18. Os

dois programas são releituras de produções internacionais que consistem em eliminatórias e

16 Tratarei, especificamente, dessa discussão no ensaio 2. 17 QRcode 06: Matéria: O fim dos programas de infantis na TV.

18 QRcode 07: Canal no YouTube Master Chef Junior.

36

competições com premiações em dinheiro e/ou contratos de trabalho.

Hoje, essas memórias me fazem refletir sobre alguns pontos que considero importante

para compreender as muitas infâncias atuais que a todo o momento me surpreendem. O primeiro

corresponde ao poder de persuasão e dominação (FERRÉS, 1998; POSTMAN, 1999) que a

indústria cultural, “a gigantesca maquinaria econômica” e suas várias ramificações exercem na

sociedade (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 119); o segundo relaciona-se às imagens e

representações sobre crianças e infâncias que são absorvidas, reproduzidas e construídas a partir

dos modelos efêmeros impostos pela mídia e seus variados segmentos (PACHECO, 2004;

MOMO, 2007; ALANA, 2009; CARLOS, FAHEINA, 2010; BECKER, 2010) reconfigurados

na/pela era digital e terceiro no que diz respeito à importância de discernir as subjetividades e

peculiaridades da imaginação infantil a partir das próprias narrativas e experiências culturais da

criança, mesmo partindo de um olhar, de uma consciência e de uma formação adulta

(SARMENTO, 2007; CORSARO, 1997; MÜLLER, 2010). Essas reflexões repercutiram

diretamente na minha trajetória acadêmica e profissional, o que, consequentemente, me levou

a desenvolver estudos e pesquisas nessas áreas, culminando também, na própria tese em

questão.

Em 2001, ao final do curso de Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal da

Paraíba (UFPB) realizei estudo monográfico sobre os jogos e as brincadeiras como elementos

fundamentais do processo ensino-aprendizagem na Educação Infantil. Este estudo partiu do

princípio de que o brincar constitui uma característica fundamental do imaginário da criança,

logo, o jogo e a brincadeira ganham espaço como recursos estimuladores para a aprendizagem

na medida em que se propõe estímulo ao interesse da criança. Constatei que a brincadeira

possibilita à criança justamente o prazer de se sentir atuante frente à situação não dominada por

ela, ou seja, através do brincar a criança resolve as situações de difíceis enfrentamentos, como

medo, insegurança ou inibição, para isso, ela recria as situações combinando modos de

compensação dos aspectos menos facilmente assimiláveis. Conclui que quanto mais difícil de

ser assimilada uma situação, mais a criança a modificará do seu jeito, até que, frente às situações

penosas e desagradáveis, ela assimilará progressivamente, revivendo as situações em contextos

mais acessíveis (CABRAL, 2001).

Em 2004, já trabalhando como professora de Educação Infantil em escola privada,

ingressei no curso de Especialização em Psicopedagogia, e como trabalho de conclusão realizei

o estudo monográfico intitulado “O uso de jogos como subsídio para o atendimento às crianças

com dificuldades de aprendizagem no Ensino Fundamental”. Os resultados apontaram que

através dos jogos de memorização e de montagem as crianças conseguem estabelecer ligações

37

cognitivas que permitem a compreensão de conteúdos de leitura, escrita e raciocínio

matemático, diminuindo as dificuldades de aprendizagem relacionadas à dislexia (deficiência

na área de leitura), disgrafia (deficiência na área da escrita física) e discalculia (deficiência na

área da matemática).

Ao concluir a especialização, recebi o convite da professora Maria Cacilda de Souza

Marques Rêgo (a quem tenho como inspiração e agradeço imensamente seus ensinamentos e

sábios conselhos), coordenadora pedagógica da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)

para exercer a função de professora em nível superior no Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Uma experiência que me permitiu conhecer professores da Educação Infantil de várias cidades

da Paraíba. Na UVA permaneci por 4 (quatro) anos, fazendo parte da equipe de Prática de

Ensino e Estágio Supervisionado, grupo responsável pela orientação dos trabalhos de conclusão

de curso (TCC), experiência que me rendeu significativas aprendizagens, principalmente, em

relação às peculiaridades da docência em escolas públicas paraibanas, e dos modos de ser

criança e de se vivenciar a infância na contemporaneidade dentro do espaço escolar.

Durante este mesmo período (2004-2005), iniciei o Mestrado em Educação pelo

Programa de Pós-Graduação em Educação na UFPB e passei a fazer parte do Grupo de Pesquisa

e Estudos sobre a Criança - GRUPEC vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Estudo sobre a Criança

- NUPEC e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) do Centro de Educação na

UFPB, coordenado pela pesquisadora e orientadora desta tese, Dr.ª Adelaide Alves Dias. O

grupo tem o objetivo de desenvolver atividades de pesquisa, ensino e formação de recursos

humanos em nível de graduação e de pós-graduação. As discussões se baseiam nas concepções

de criança, infância e culturas infantis a partir das bases teóricas da Sociologia da Infância, da

Antropologia da Criança, da Psicologia da Infância e da Pedagogia. Promove investigações

relacionadas à formação do educador infantil, políticas públicas, currículos, metodologias e

práticas educacionais mais especificamente na área de Educação Infantil, além de discutir

também sobre o lugar da infância nos Direitos Humanos (ABREU, 2005; MACÊDO, 2005,

DIAS, 2007; ESCARIÃO, 2009; LEMOS, 2009; AMORIM, 2011; NÓBREGA, 2012; LIMA,

2015; SILVA, T. 2015; MEDEIROS 2015). O GRUPEC/NUPEC também tem desenvolvido

estudos sobre as culturas midiáticas no contexto da Educação Infantil, mais especificamente,

direcionadas à mídia televisiva e desenhos animados (CABRAL, 2008; SILVA, M., 2010).

Em 2008, ao concluir o Mestrado acadêmico, defendi a dissertação intitulada:

“Representações infantis sobre desenhos animados televisivos: um estudo com crianças entre 4

e 5 anos”, com o objetivo de investigar a mídia televisiva e suas implicações nas culturas

infantis, contextualizando e discutindo a relação das crianças com a televisão e os desenhos

38

animados sob enfoque das abordagens psicossociais da educação. A intenção surgiu de

observações que realizadas junto às crianças em seus horários de “recreio”19, pois

constantemente percebia suas imitações e referências aos seus personagens prediletos da TV,

tais imitações constituíam também suas linguagens e brincadeiras. Isso me chamou atenção e

me fez questionar até que ponto esta relação poderia influenciar e/ou interferir no

desenvolvimento cognitivo, cultural e social infantil.

Esta referida pesquisa revelou que as crianças investigadas passavam cerca de 4 horas

diárias assistindo televisão, especificamente, desenhos animados da programação aberta ou

assistiam filmes em DVD de seus personagens prediletos. Além disso, de acordo com relatos

das próprias crianças e de suas mães, as crianças costumavam imitar o comportamento dos

personagens animados diariamente e buscavam adquirir produtos com as imagens desses

personagens, comprovando como isso, que a indústria cultural impõe modelos e estimula o

consumo na infância influenciando suas escolhas e consumos.

Dessa forma, foi constatado que a criança formula concepções do real a partir do

imaginário e vivencia suas fantasias e experiências ampliando seus repertórios culturais a partir

das relações que também estabelece com os desenhos animados e personagens prediletos. Além

disso, foi verificado que os recursos midiáticos fazem parte das culturas infantis, apoiando o

pensamento, a imaginação e os significados da criança, ajudando-a a desenvolver a linguagem,

memorização e aprendizagem, ou seja, constituindo-se como elementos presentes e atuantes

para sua formação cultural e cognitiva. Destarte, a pesquisa evidenciou a importância de

promover diálogos entre educação e mídia televisiva para ampliar as possibilidades

imaginativas, criativas, reflexivas e críticas das crianças em relação ao que assistem e

reproduzem (CABRAL, 2008).

Logo que concluí o Mestrado acadêmico, parti (junto com a família) em busca de

“melhores condições de vida”, assim seguimos para uma região que estava despontando no

cenário econômico como uma área promissora para profissionais qualificados20, já que em João

Pessoa as oportunidades eram mais escarças e a concorrência mais acirrada. Fixamos residência

no município de Tucumã, localizado na região sudeste do estado do Pará, pertencente à

microrregião de São Félix do Xingu, distante cerca de 980 km da capital Belém. Lá permaneci

por 5 anos, período em que tive a oportunidade de exercer a docência em cursos de graduação

19 Recreio - forma popularmente conhecida na Paraíba como o período de pausa entre as aulas, momento

em que as crianças lancham e brincam. 20 Profissionais com formação em nível superior. No caso, minha formação - mestrado em educação, e a do

esposo - cirurgião-dentista.

39

e pós-graduação em educação e de ocupar um cargo de gestão21, mais especificamente como

coordenadora pedagógica em um dos maiores projetos de atuação da Fundação Vale - a Estação

Conhecimento (EC)22.

A Estação Conhecimento foi idealizada para atuar nas áreas de esporte, cultura, geração

de renda, educação, saúde e proteção social, sendo inaugurada sua primeira unidade em 2008

em Tucumã- PA. Em se tratando de esporte, a EC está vinculada a outro programa de atuação

da Fundação Vale, o Brasil Vale Ouro (BVO)23 que é voltado para crianças e adolescentes entre

6 e 17 anos e tem o objetivo de ensinar práticas esportivas de alto rendimento estimulando o

desenvolvimento da convivência social, a promoção da saúde e o aprimoramento da consciência

crítica e cidadã. A base da proposta pedagógica da EC e do BVO foi inspirada nos conceitos

que fundamentaram o relatório enviado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (UNESCO) pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século

XXI (1999), coordenado por Jacques Delors, os chamados pilares da educação - aprender a

conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. A partir destes fundamentos,

elaborávamos as atividades teóricas e práticas da EC, contemplando todas as suas modalidades

de atendimento à comunidade.

Esta experiência foi um grande desafio para minha carreira profissional, talvez a mais

significativa e prazerosa de todas, em função da responsabilidade de ser a primeira

coordenadora pedagógica deste empreendimento e pela dimensão social e política desta missão,

que envolvia tanto o caráter educacional quanto as concepções de participação democrática,

conscientização da população em relação ao exercício da cidadania e os princípios de saúde e

bem-estar necessários à qualidade de vida.

Apesar de funcionar em Tucumã, tudo que era pensado e produzido in loco, visando a

sistematização de um modelo padrão de funcionamento a ser implementado nas demais

unidades, desse modo, as reuniões de planejamento e avaliação eram realizadas em São Paulo,

no escritório central da fundação e contava com a participação de inúmeros profissionais e

21 A gestão democrática da EC é desenvolvida por uma equipe formada por um coordenador administrativo,

um coordenador esportivo, uma coordenadora pedagógica e uma psicóloga. 22 A Fundação Vale tem o objetivo de promover o desenvolvimento territorial integrado (econômico,

ambiental e social) em áreas de operação da Vale, visando o fortalecimento do capital humano nas

comunidades por meio de iniciativas sociais voluntárias e de caráter estruturante. O projeto visa a

instalação de 33 unidades no Brasil, porém, apenas 6 foram inauguradas até agora. 23 QRcode 08: Fundação Vale/Estação Conhecimento.

40

consultorias referentes a cada área de atuação, inclusive com a participação de atletas

profissionais do esporte brasileiro24. Desse modo, como coordenadora, fui corresponsável pela

implantação, sistematização e funcionamento da Estação Conhecimento, onde tive a

oportunidade de conviver com mais de 700 crianças e adolescente em programas regulares de

esporte, cultura e lazer (natação, atletismo de alto rendimento, futebol, informática, mídia,

teatro, xadrez) e mais de 900 jovens e adultos em cursos técnicos profissionalizantes regulares

com certificação (elétrica, hidráulica, alvenaria, informática, biojóias, recepcionista, camareira,

garçom, vendas, dentre outros).

Na EC participei diretamente da produção de materiais didáticos, formação de

profissionais, sistematização de ações voluntárias, implementação de cursos profissionalizantes

desde a elaboração curricular até o acompanhamento pedagógico junto aos professores, ações

integradas entre família e comunidade, ações culturais e esportivas junto às crianças e jovens

atendidas pelo projeto, entre outras atividades de gestão e ação social comunitária, sendo

representante da EC em solenidades municipais como no I Fórum Comunitário UNICEF -

Fundo das Nações Unidas para a Infância - “Selo UNICEF Município Aprovado” 25 que visou

o monitoramento e a avaliação do município a partir de 3 eixos temáticos: Impacto Social,

Gestão de Políticas Públicas e Participação Social das crianças e adolescentes, com o objetivo

de contribuir para que os direitos da criança e do adolescente no Brasil sejam protegidos,

respeitados e garantidos, principalmente em se tratando de reunir esforços para a redução das

desigualdades e a melhoria da vida de crianças e adolescentes em situação vulnerável.

Esta experiência na Estação Conhecimento mostrou outra dimensão da minha profissão

- a do compromisso social. Ser professora hoje, para mim, tem um peso maior. Tem o peso da

responsabilidade com o outro e o compromisso de promover mudança, de provocar a

transformação da realidade de pessoas que, assim como eu, sonham com uma oportunidade de

viver melhor. Durante esse período, convivi com muitas crianças e adolescente, em sua maioria

24 Apesar de buscar um modelo de implementação e funcionamento, cada Estação Conhecimento era

pensada a partir de um estudo piloto sobre as características locais e particularidades culturais de cada

região, buscando promover a produção econômica da região a partir de suas peculiaridades e produções

econômicas, por exemplo: em Tucumã, há uma frente para produção de biojóias, peças produzidas a partir

do beneficiamento de sementes da região que foram comercializadas no Brasil e no exterior por incentivo da Fundação Vale. Na unidade de Brumadinho, há o incentivo e apoio aos produtores rurais nas ações de

extensão rural. 25 QRcode 09: Selo Amazônia, Município Aprovado.

41

de baixa renda, algumas não tinham nem o que comer em casa, e faziam suas refeições na

própria EC, muito menos tinham dinheiro para comprar roupas e brinquedos.

Lembro-me que um dos destaques do atletismo, era uma menina chamada Rosilane

Cavalcante da Silva (Laninha) com 14 anos na época, ela obteve por duas vezes o segundo lugar

na Corrida de São Silvestrinha (2009 e 2010) e era uma grande promessa para representar o

Brasil em Olimpíadas. No entanto, ela vivia em condições precárias de moradia e alimentação,

situação que sensibilizou a Fundação Vale, a ponto de promover a construção de sua casa,

disponibilizando também um auxílio financeiro, inicialmente oriundo da EC e posteriormente,

assumido pelo Programa Bolsa Atleta, uma iniciativa do Ministério do Esporte pela Secretaria

Nacional de Esporte de Alto Rendimento. Não entrarei na discussão que engendra interesses

aristocratas das grandes corporações públicas e privadas brasileiras, apenas quero demonstrar

com esse exemplo que, através de uma iniciativa como esta, foi possível transformar a realidade

e o futuro de uma adolescente que não tinha nenhuma perspectiva de se tornar uma atleta

profissional, foi através da educação e pela pedagogia do esporte que ela pode sonhar com uma

vida melhor.

Essa ideia de que “a educação é o caminho para melhorar de vida” incorporada pela

classe trabalhadora de baixa renda se materializou no meu discurso e no discurso de tantos

outros que conheci. Por isso, não hesito em afirmar que através da educação é possível sonhar

com uma sociedade mais equânime, mais consciente de sua potência crítica, enquanto força

política. Foi a educação que me possibilitou chegar até aqui, promovida por grandes mestres e

pelas oportunidades que tive, e são estas oportunidades que quero oferecer, em qualquer espaço

em que eu atue, convicta de que,

A leitura crítica do mundo é um que-fazer pedagógico-político

indicotomizável do que-fazer político-pedagógico, isto é, da ação política que envolve a organização dos grupos e das classes populares para intervir no

reinventar da sociedade. A denúncia e o anúncio criticamente feitos no

processo de leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos (FREIRE, 2000, p. 21).

Em 2012, a mineração Vale, situada em Ourilândia do Norte, cidade vizinha de Tucumã,

passa por uma reestruturação gerencial devido a problemas administrativos e técnicos na

extração de níquel, o que acarreta numa paralisação de quase 2 anos da produção, e com isso,

provocando uma série de consequências para a região: súbita queda no volume de funcionários,

passando a operar com aproximadamente 40% do quadro; “esvaziamento” nas duas cidades;

aumento do desemprego e falência de muitas micro e pequenas empresas, em virtude disso, a

decisão de retornarmos para João Pessoa.

42

Logo que retornei, voltei a trabalhar na UVA onde permaneci por mais 2 (dois) anos,

ministrando disciplinas na Licenciatura em Pedagogia (2013 e 2015). Concomitantemente,

iniciei o curso de Doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade

Federal da Paraíba e assumi, nesta mesma instituição, o cargo de professora substituta pelo

Departamento de Habilitações Pedagógicas da UFPB, Campus I, ministrando disciplinas nas

áreas de Currículo, Política e Planejamento Educacional (2013-2015). Já no final de 2014, fui

aprovada em concurso público na Prefeitura Municipal de João Pessoa e assumi a função de

professora de Educação Básica em 2015 uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental na Escola

Municipal David Trindade situada em Mangabeira (JP/PB), onde permaneci por apenas um

semestre letivo, pois ainda em 2015, fui aprovada em outro concurso público na UFPB, desta

vez em dedicação exclusiva, lotada como professora na Escola de Educação Básica vinculada

ao Departamento de Educação Básica, Técnica e Tecnológica no CE-UFPB, onde estou tendo

a oportunidade de exercer a docência e perceber a complexidade do universo infantil,

descobrindo como as crianças se relacionam com os fenômenos a sua volta e como usam a

criatividade para elaborar estratégias e soluções para contornar as realidades econômicas e

sociais nas quais estão inseridas, mantendo-se “antenadas”26 com as novidades e artefatos do

mundo contemporâneo como tablets, jogos eletrônicos, computadores e principalmente com o

uso de celulares cada vez mais sofisticados e práticos, que permitem a produção e reprodução

de imagens através de vídeos e fotografias digitais, além da possibilidade de acesso à Internet

e toda a rede de informações que dispõe.

As experiências na condição de professora, aluna e pesquisadora proporcionaram a

ampliação das minhas convicções sobre Educação Infantil, ao entender a criança a partir das

singularidades culturais que permeiam o universo infantil que se constituem nas interações

sociais estabelecidas com o universo adulto, porém, nas especificidades das culturas infantis,

as crianças vão resistindo, transgredindo, dando sentidos e significados ao mundo a sua volta e

desconstruindo conceitos que as inferiorizam e as desqualificam como sujeitos protagonistas

de suas histórias.

O desafio de ser aluna e professora ao mesmo tempo não me fez desistir, pois, minha

maior motivação sempre foi a qualidade no trabalho docente que exige acima de tudo

conhecimento, qualificação e o compromisso social em busca da transformação da realidade

dos indivíduos em que pese principalmente a desigualdade econômica, levando-os a refletir

26 O significado cultural desta expressão significa estar atualizada com determinados artefatos tecnológicos

da geração ciber. Cf. Amaral (2010) e Dornelles (2005).

43

sobre suas condições de vida, sobre como é possível superar as dificuldades através do

conhecimento e da educação, e sobre como esta superação pode e deve fortalecer nossas

convicções abrindo portas para uma vida mais digna e autônoma.

São reminiscências que afloram sentimentos de pertencimento social que foram dando

formas e significados à minha identidade pessoal, política e profissional. Emoções que me

ligam à importância das imagens que construo como narrativas autobiográficas que me ajudam

a compreender o espaço que ocupo, as relações que estabeleço e as construções epistemológicas

das quais compartilho. Lembranças que me direcionaram a perceber que, mesmo considerando

as particularidades e singularidades das muitas infâncias que conheci, é possível perceber certa

sintonia em aspectos que universalizam as concepções de infância como: a essência da

criatividade da criança em modificar, criar, transformar, e “re”produzir situações culturais; a

capacidade de lidar com a imaginação no enfrentamento de condições adversas; a

potencialidade de subverter padrões e imposições culturais; a facilidade com que a criança

exerce sua alteridade entre pares e com os adultos. Estas e outras impressões me fazem crer que

o protagonismo infantil está presente na realidade da criança e essa conquista é, principalmente,

mérito dela. Esta afirmação, um tanto que presunçosa, está implicada na ação da criança em seu

cotidiano social, tendo em vista que ela marca seus territórios e contextos com suas identidades

culturais de criança como protagonista de sua própria história de vida.

Como a pouco revelado nas reminicencias de minha própria infância, onde não só revivi

as singularidades das experiências de criança, mas, sobretudo, compreendi as formas de

enfrentamento com que eu, minha irmã e algumas amigas, enfrentávamos a realidade social e

econômica na qual estávamos inseridas e que, em certa medida, não nos dava condições de

usufruir de todas “aquelas formas perfeitas” de ser e de viver das crianças que víamos

magicizadas nas imagens televisivas.

Entretanto, isso não nos impediu de sonhar, imaginar e “fazer-de-conta”. Não éramos

perfumistas, mas criávamos linhas inteiras de fragrâncias florais, herbais e cítricas; não éramos

padeiras, mas fabricávamos os melhores pães e biscoitos da vizinhança; não trabalhávamos em

escolas, mas nossos/as “alunos/as” eram os mais inteligentes e “bagunceiros” que se poderia

imaginar; Não tínhamos as Barbies originais da Mattel e seus castelos encantados que

apareciam nos comerciais de TV, mas as nossas “Barbies” eram as mais “descoladas’ e

elegantes do bairro; Nunca participamos do Programa “Xou da Xuxa” no Rio de Janeiro, na rua

“Saturnino de Brito” (o restante do endereço, não lembro mais), nem sequer conseguimos

conhecer a Xuxa pessoalmente, mas todos os dias “ela” chegava em sua nave espacial para

apresentar seu “xou” no quintal das nossas casas; não tínhamos celular, computador, tablet,

44

Internet, mas haviam dois artefatos que nunca nos deixava entediados: a televisão e sua imensa

variedade cultural, e a “rua” que era o palco das nossas grandes “invenções”.

São estas percepções que direcionam neste processo de doutoramento, investigações

mais aprofundadas acerca das singularidades da criança, das pluralidades da infância e da

complexidade das culturas infantis, que, embora pareçam tratar de uma mesma temática,

constituem-se em perspectivas distintas entre si, como almejo evidenciar mais adiante.

Interessou-me perceber também, como a criança vem sendo representada histórica e

socialmente através da Ciência, da Cultura Visual e da sociedade para reflexionar seus modos

de ser e de viver em cada época e compreender suas formas de enfrentamento, resistência e

subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido a ela (criança) como

informação e cultura.

Para além de tais elucubrações, dou continuidade ao capítulo introdutório, elucidando a

sistematização teórico-metodológica adotada neste estudo. Sendo assim, apresento alguns

aspectos conceituais à medida que contextualizo o objeto, indicando sua relevância para

academia, e mais especificamente, para as novas possibilidades de intervenção em pesquisas

com crianças. Nesta mesma direção, destaco o cenário transdisciplinar que constitui os três

campos de análise empreendidos na tese e discorro sobre os elementos fundamentais que

conduziram a pesquisa: objetivo, problema, referencial teórico e metodológico, sumariando

procedimentos e instrumentos utilizados ao longo da investigação.

45

DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS

O que se preconiza, em alternativa, é uma mudança de

perspectiva no campo interdisciplinar dos estudos da criança,

em especial no campo sociológico. A investigação das crianças

com base na infância como categoria geracional própria, o

reconhecimento crítico da alteridade da infância (a par do

esclarecimento dos diversos sentidos em que essa alteridade

se exprime, no quadro de um reconhecimento das crianças

como os múltiplos-outro, perante os adultos, por efeito da

variedade de condições sociais) e ainda o balanço crítico das

perspectivas teóricas que construíram o objecto infância como

a projecção do adulto em miniatura ou como o adulto

imperfeito em devir, tudo isso é o que aqui se preconiza, num

esforço simultaneamente desconstrucionista de constructos

pré-fixados e de investigação empírica. Esta mudança de

perspectiva – ou, se preferirmos esta “mudança

paradigmática” (James et al., 1998) – constitui o esforço

teórico principal da sociologia da infância (SARMENTO,

2005, p. 372-373, grifos do autor).

Criança e Infância, palavras aparentemente sinônimas, no entanto, complexamente

diferentes e complementares. Em que se diferem, em que se aproximam ou como são

aproximadas? São questões como estas que me acompanham e estão presentes em vários

trabalhos de pesquisa acadêmica e científica nas Ciências Humanas e Sociais. No entanto,

quando tento elaborar uma síntese conceptual, me deparo com inúmeras possibilidades de

representação, o que torna essas questões ainda mais provocativas, pertinentes e atuais.

Dos “sem-fala”27 à “ciberinfância28”, pensar a questão da infância na atualidade requer

uma postura teórica transdisciplinar que contemple as multiplicidades do ser criança, além

disso, é preciso ter ciência de que cada criança tem sua própria história e que as relações que

elas estabelecem entre pares, delineiam os contornos do que se conhece hoje como infância29,

27 De acordo com a própria etimologia da palavra “in-fans”, “infância é a idade do “não-falante”, o que

transporta simbolicamente o lugar do detentor do discurso inarticulado, desarranjado ou ilegítimo”

(SARMENTO, 2005, p. 368). 28 Termo cunhado por Dornelles (2005) que corresponde à infância on-line, conectadas à esfera digital, que

utilizam computadores, internet, games, controles-remoto, joysticks, ou seja, a infância da modernidade

líquida - da multimídia e das novas tecnologias da informação e comunicação. 29 O termo infância aqui não é dito e entendido na origem lexical da palavra escrita no singular, tampouco

numa unicidade de representação, mas na pluralidade conceptual que esse termo carrega, então, quando

tomo o termo infância no singular, refiro-me também ao seu léxico plural, de forma que infância

corresponde também às várias infâncias em suas multiplicidades culturais especificamente heterogêneas.

46

assim, não é possível formular um único conceito de criança e/ou infância, pois elas são

múltiplas, plurais e, surpreendentemente criativas para mostrar outros modos de ser, antes

mesmo que seja possível conhecê-las e apreendê-las (DORNELLES, 2005).

Neste cenário, não tive a intenção de formular conceitos para os termos, mas sim,

promover aproximações e ideias que ajudem a entender melhor as transformações históricas e

sociais pelas quais estes conceitos foram sendo construídos nas ciências modernas, o que

culminou nas perspectivas atuais da nova Sociologia da Infância que consagrou a criança como

ator social integrante da categoria infância.

Contrariando a orientação do senso comum, que aborda os termos com o mesmo

significado, a Sociologia da Infância faz uma distinção semântica e conceptual entre infância e

criança. O sentido etimológico da palavra infância apresenta uma ideia de ausência de

capacidade de expressão, a partícula latina “in” usada como prefixo significa “não; negação;

negativo”, agregada ao prefixo particípio presente de “fãri” - “falar”, e seus derivados “fans”

ou “fantis”, passa a configurar “ter a faculdade da fala”, o agrupamento das expressões forma

o adjetivo latino “infans” ou “infantis”, que significa “aquele que não fala”, ou seja, que “tem

pouca idade” e que “ainda é criança”. O adjetivo “infantilis” diz respeito à criança infantil e o

substantivo “infantia”, caracteriza a incapacidade de falar, dificuldade em se exprimir. Na

tradição filosófica ocidental, não ter linguagem significa não ter pensamento, não ter

conhecimento, não ter racionalidade. Etimologicamente o termo “criança” vem do latim

“creare” que significa “produzir, erguer”, está implicado no termo “crescere” que significa

“crescer, aumentar” decorrente do indo-europeu “ker” - “crescer”. Nesse sentido, de acordo

com a origem das palavras, fica evidente que a criança é vista como um ser menor, como alguém

que precisa ser moralizada, protegida e educada (VANTI, 2004, p.13).

De acordo com Sarmento (2005, p. 371) o termo infância constitui uma categoria social

do tipo geracional e criança refere-se ao indivíduo concreto que integra essa categoria

geracional como sujeito ativo e social que interpreta e age no mundo, consequentemente,

estruturando e estabelecendo suas culturas, as culturas da infância. Em vista disso, a construção

conceptual de infância vem passando por inúmeras transformações, potencializadas sobretudo,

pela cultura em toda sua complexidade e multiplicidade, uma das principais vertentes de

inteligibilidade humana. Seguindo a mesma tendência, o conceito de cultura tem sido palco de

[continuação] Da mesma maneira, a palavra criança é representa na particularidade de cada sujeito e na

pluralidade dos modos de ser e viver das crianças, dessa maneira, nesta pesquisa, criança e crianças

assumem significados que integram tanto o caráter lexical singular quanto plural para designar o/s sujeito/s criança/s em suas especificidades.

47

sistemáticos debates nas Ciências Humanas e Sociais, tornando-se um grande divisor de águas

em estudo e pesquisas científicas de todas as áreas de conhecimento.

Neste contexto, para adentrar no universo de sentidos e significados da criança torna-se

necessário compreender o contexto cultural, histórico e social que marcaram as sociedades ao

longo dos séculos repercutindo direta e indiretamente na formação das culturas infantis

contemporâneas. Sarmento (2007) propõe um novo paradigma social atento à complexidade

das condições de existência das crianças, capaz de combinar os vetores da socialização com os

da subjetivação, realizada entre pares e com os adultos. Para este autor, a infância como grupo

geracional na sua existência histórica concreta é construída pela criança, ator e autor da sua

história singular de vida. Portanto, “as culturas infantis constituem, com efeito, o mais

importante aspecto na diferenciação da infância” (SARMENTO, 2007, p. 36).

Reconhecer a infância como construção cultural, considerando-a como categorial social

e geracional (SARMENTO, 2005, p. 372), significa perceber a criança como agente de

transformação, produtora de cultura, intérprete e biográfica de sua história. Neste caso, pensar

a infância como fenômeno social é reconhecer a criança como um sujeito histórico em interação

com o meio e com o contexto cultural no qual está vivendo, em pleno e constante

desenvolvimento de suas habilidades e inteligibilidades.

Sendo assim, a pluralidade das infâncias precisa ser compreendida em sua conexão com

a diversidade das realidades históricas e sociais, bem como, das culturas e das socializações

humanas, por conseguinte, às ciências cabe investigar a criança pelo que ela é e pelo que ela

faz, ouvir suas vozes, dar visibilidade social às suas formas de ver e interagir com/no mundo,

perceber como vão desconstruindo e produzindo sentidos, reproduzindo e transgredindo

padrões sociais, intervindo e organizando suas formas de participação na sociedade e nas

culturas dos mundos adultos (KRAMER, 2002; TREVISAN, 2007; SARMENTO, 2007).

O estudo das concepções da infância chama a atenção para a diversidade de formas de

relacionamento das crianças entre pares e com os adultos, em função da sua pertença cultural,

isto é, sustenta que a infância constitui e é constituída pela cultura e fatores como classe social,

grupo étnico ou nacional, religião predominante, nível de instrução da população, fazem variar

a concepção de infância no interior do mesmo espaço cultural (SARMENTO, 2007). E assim

acrescento, que as transformações políticas, econômicas e tecnológicas da sociedade na era

digital também têm gerado significativas mudanças nas condições de vida das crianças na

contemporaneidade30.

30 Tratarei dessas questões no ensaio 2.

48

Nesta perspectiva, a Sociologia da Infância vem propondo mudanças paradigmáticas na

direção do reconhecimento da criança como sujeito social que constrói suas próprias culturas

nas relações de alteridade que estabelece entre pares e entre adultos. Conforme dito na epígrafe

que inicia esses caminhos metodológicos, trata-se de um esforço “desconstrucionista de

constructos pré-fixados e de investigação empírica [...]”, o que constitui o principal objetivo da

Sociologia da Infância (SARMENTO, 2005, p. 373). Com esta tese, assumo essa

responsabilidade e compromisso.

Müller (2010) com base nos aportes teóricos de James, Jenks e Prout (1998) ressaltam

que o novo paradigma social da infância rompe com a perspectiva de analisar a cultura infantil

como um fenômeno único e universal, mas, reconhece que as culturas infantis se apresentam

de formas múltiplas, inserida em contextos sociais amplos e complexos, nesse sentido, as

relações sociais das crianças e suas culturas são dignas de estudo em seu próprio direito, as

crianças são e devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas próprias

vidas sociais, inclusive da vida de todos aqueles que convivem na mesma sociedade da qual

participam (MÜLLER, 2010).

Na investigação dos mundos da criança, os dados culturais não são constituídos por

valores ou crenças, mas, por “[...] aquilo que os conforma. E o que os conforma é uma lógica

particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada momento para dar sentido

a suas experiências”, ou seja, é o sistema simbólico produzido na e pela sociedade que dá

sentido à cultura (COHN, 2005, p. 19). Deste modo, a cultura sobressai às mudanças e

transformações impostas pela modernidade porque a cultura se produz no conjunto das relações

sociais humanas, nos sentidos e significados produzidos constantemente pelas interações.

Como consequência, urge a necessidade de entender a cultura em sua pluralidade, na

compreensão dos sistemas simbólicos instituídos pelos diferentes grupos sociais, e, neste caso

em particular, a infância.

Para James e Prout (2003, p. 8) “proclamar um novo paradigma da Sociologia da

Infância é também engajar-se e responder pelo processo de reconstrução da infância na

sociedade”. Isso significa afirmar que, para compreensão da infância como estrutura social,

torna-se imprescindível contextualizar, problematizar e discutir as categorias história,

sociedade e cultura, sendo instaurada uma nova ruptura conceptual no entendimento da criança

em sua alteridade e em suas próprias expressões culturais, gerando com isso, repercussões

significativas na própria prática de pesquisa.

Para tanto, às Ciências Humanas e Sociais cabe a responsabilidade de explicar,

compreender, prever e potencializar os fenômenos e fatos sociais que permeiam a vida humana

49

em todas as suas relações com a sociedade, com o meio ambiente e com a cultura, independente

do grupo geracional a que investiga. Neste cenário, o paradigma social da infância amplia

conceitos e ressalta novas formulações, identificando valores estruturantes que constroem e

constituem as culturas infantis e sistematizam informações empíricas acerca dos modos de ser

e de viver da criança.

Visando esboçar um panorama geral da Sociologia da Infância no cenário das Ciências

Humanas e Sociais, sintetizo a seguir algumas considerações elaboradas a partir de produções

divulgadas em repositórios digitais31 junto à: Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Educação (ANPEd); Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); publicados na Scientific Electronic

Library On-line (SciELO); e em parte da literatura teórica selecionada para fundamentar esta

pesquisa. No entanto, essa breve explanação literária também estará contextualizada junto aos

campos analíticos dos demais contextos da tese, de modo que, nesta introdução, destaco apenas

parte do “corpus” que foi investigado.

Neste momento, priorizo duas pesquisas que apresentaram revisões de literatura

realizadas durante as últimas três décadas, o que compreende o período de maior emergência

da Sociologia da Infância no cenário das Ciências Humanas e Sociais no Brasil e em Portugal

(MARTINS FILHO e FERREIRA MARTINS, 2012; CUNHA e FERNANDES, 2012). Para

seleção das produções utilizei o indexador “Sociologia da Infância”, em seguida, foram feitas

leituras minuciosas para mapear informações e lacunas que pudessem justificar o avanço da

temática, bem como, para identificar as principais bases teóricas e metodológicas que têm

fundamentado as pesquisas nesta área.

O passeio on-line pelo banco de dados ratificou que as produções têm sido marcadas

por variadas concepções e representações acerca do conceito de criança que ao longo dos

séculos foram sendo modificadas em função, principalmente, das necessidades específicas de

cada fase de desenvolvimento e em relação com os fatos históricos, sociais e culturais de cada

época. Desse modo, há uma convergência em relação aos pressupostos teórico-metodológicos

utilizados em pesquisa com crianças que se distanciam de uma visão adultocêntrica e buscam

dar voz32 e visibilidade à criança na sua alteridade e participação crítica, política, social e

31 Os repositórios digitais (RDs) são bases de dados on-line que reúnem de maneira organizada a produção

científica de uma instituição ou área temática (IBICT, 2017). 32 Na perspectiva da Sociologia da Infância, “dar a voz” às crianças “[...] não é simplesmente ou apenas

deixar as crianças falarem, é, sobretudo, explorar a contribuição única para nossa compreensão e teorização sobre o mundo social que a perspectiva das crianças pode fornecer”. Cf. James, A. (2007, p.

262); Graue e Walsh (2003); Trevisan (2007).

50

cultural nos diversos espaços ocupados por ela.

O campo da Sociologia da Infância apresenta influência de vários segmentos científicos

como a Antropologia, a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia e a Educação, além de outras

ramificações teóricas que se desmembraram dessas áreas clássicas do conhecimento. Florestan

Fernandes (1979) e Philippe Ariès (1981) geralmente, pioneirizam as discussões sobre infância,

além de autores mais contemporâneos como Corsaro (1997); Fernandes (2009); James, Jenks

& Prout (1998); Montandon (2001); Prout (2005); Sarmento (2002, 2007); Sirota (2001);

Trevisan (2007); Qvortrup (1994; 2010; 2015). Pesquisadores estes, que problematizam a

infância em sua integralidade como estrutura social geracional híbrida e complexa,

reconhecendo a criança como protagonista de sua história, produtora de cultura, capaz de se

expressar de forma inteligível, crítica e emancipatória.

Dentre os autores brasileiros, os de maior evidência são Kuhlmann Jr. (2004),

Rosemberg (1989), Martins, J. (1993), Kramer (1999), Freitas (1997), Gusmão (1997),

Quinteiro (2005), Demartini (2002), Müller (2010), Dornelles (2005; 2007), que consolidaram

a Sociologia da Infância no rol das Ciências Humanas e Sociais e influenciaram mudanças

significativas nas políticas públicas direcionadas à infância no Brasil. Vale ressaltar também,

alguns autores que contribuíram com o estado da arte acerca das pesquisas em Sociologia da

Infância como Delgado e Müller (2005), Müller e Carvalho (2009), Martins Filho e Dias Prado

(2011), Dornelles e Fernandes (2012).

A maioria desses autores fundamentam suas concepções em estudos empíricos

realizados em contextos educacionais, salvo alguns realizados em espaços públicos

direcionados ao estudo de determinados grupos e fenômenos culturais. Algumas contribuições

resultam também de estudos teóricos que reconhecem e ressaltam a importância dos métodos

de pesquisa com criança que priorizam a escuta da voz infantil em contextos educacionais e

científicos (MARTINS FILHO e DIAS PRADO, 2011; DORNELLES e FERNANDES, 2012).

Em se tratando de metodologia de pesquisa, os trabalhos se organizam a partir de

abordagens qualitativas e interpretativas, métodos empíricos, etnográficos, participativos,

estudos de caso, com uma variedade significativa de instrumentos como observações,

entrevistas, desenhos, brincadeiras, jogos, rotinas escolares, produções interculturais e

midiáticas produzidas para e pela infância, músicas populares e/ou tradicionais da cultura

infantil, observação das culturas de pares, rodas de conversa, entre outros, cujos registros foram

feitos através de cadernos de campo, gravadores de voz, fotografias e/ou vídeos.

Em meio às produções referenciadas, a pesquisa de Martins Filho e Ferreira Martins

(2012) intitulada “A complexidade da Infância: balanço de uma década das pesquisas com

51

crianças apresentadas na ANPEd/Brasil” foi realizada junto a 25 trabalhos apresentados na

Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/ANPEd,

especificamente, no Grupo de Trabalho Educação de Crianças de zero a seis anos/GT07, entre

1999 e 2009. A investigação examinou as pesquisas realizadas com crianças na área da

Sociologia da Infância, destacou as metodologias utilizadas e as concepções de criança e

infância subjacentes às escolhas dos pesquisadores33. Os resultados indicam que as pesquisas

em geral, utilizam métodos empíricos de abordagem qualitativa e interpretativa, onde a opção

do estudo de caso realizado em contextos de educação coletiva em creches e/ou pré-escolas é,

praticamente, unânime nas intervenções. E em menor número, foram encontrados registros de

pesquisas realizadas junto a crianças indígenas no contexto de suas respectivas tribos.

Dos 25 trabalhos analisados por Martins Filho e Ferreira Martins (2012), 22 ressaltam

a importância de “dar a voz” às crianças nas pesquisas, ou seja, ouvir o que elas têm a dizer,

desse modo, o registro etnográfico, registro fotográfico, filmagens em vídeo, uso de desenhos

das crianças e a observação participante foram utilizados como procedimentos de recolha de

dados. Os autores concluíram o texto destacando que a concepção de infância e de criança

consiste em afirmar que a infância é uma condição da criança, mas, não se pode negar a

imaturidade biológica desses sujeitos. Finalizam levantando um questionamento que bastante

pertinente: “[...] com a renovação conceptual da categoria infância é possível ou não falarmos

da existência de uma autonomia conceptual das culturas infantis?” (MARTINS FILHO e

FERREIRA MARTINS, 2012, p.11).

Outro importante texto de revisão intitulado “Participação infantil: a sua visibilidade a

partir da análise de teses e dissertações em Sociologia da Infância” foi desenvolvido por Cunha

e Fernandes (2012) sobre as produções científicas defendidas entre 2003 e 2011 nos programas

de mestrado em Sociologia da Infância e Doutoramento em Estudos da Criança, ambos

oferecidos pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho em Portugal. Nesse texto, os

autores ressaltam as tensões e contradições que se colocam no desenvolvimento de pesquisas

que defendem a participação das crianças. Uma delas é o fato de que dos 53 trabalhos que

analisaram (41 dissertações e 12 teses), apenas 9 (sendo 5 dissertações e 4 teses) tratam da

participação infantil. Esse fato revela que mesmo em se tratando de um dos principais centros

de referência mundial em estudos da criança, ainda eram poucas as produções acadêmicas que

33 QRcode 10: Martins Filho e Ferreira Martins (2012).

52

mobilizam a participação das crianças na pesquisa, para tanto, Cunha e Fernandes (2012, p. 10)

alertam à necessidade de manter uma cautela epistemológica e metodológica acerca dos estudos

da infância e citam três aspectos anunciados por Fernandes e Tomás (2011) quanto às técnicas,

métodos e procedimentos de pesquisa:

i.Não podem ser planas nem lineares, porque os mundos da infância são complexos e plurais; ii. Não podem ser herméticas e estandardizadas, porque

as características cognitivas, sociais, culturais e emocionais das crianças são

diversas e heterogêneas; iii. Não podem ser, em síntese, assumidas como adquiridas, exigindo uma constante prudência metodológica de forma a

adequar os processos de investigação às crianças, aos seus contextos e ao investigador (CUNHA e FERNANDES, 2012, p. 10).

Ainda de acordo com a revisão de literatura realizada por Cunha e Fernandes (2012),

dentre os 9 trabalhos analisados que apresentaram metodologias participativas, predominaram

as abordagens críticas e interpretativas e o estudo de caso com orientação etnográfica,

sobressaindo as técnicas de observação participante, entrevista, análise documental, métodos e

técnicas visuais, o desenho, o vídeo, fotografia, registros escritos da criança, diários de campo,

organização de grupos de interesse e pequenos grupos de discussão. Segundo as autoras, é

preciso o investimento por parte do pesquisador em considerar outras formas de fazer

investigação sobre os mundos sociais e culturais das crianças, outros modos mais genuínos,

mais democráticos e mais éticos, chamando assim, a atenção para outro importante desafio:

O desafio que se coloca a essas pesquisas converge na medida em que cada uma delas, a seu modo, potencializa, ratifica, valoriza e valida a urgência de

um olhar diferenciado para as crianças como sujeitos pensantes, atores sociais

criativos e competentes, a importância de as envolver substantivamente na construção de conhecimento acerca de si mesmo e dos seus mundos, bem

como a importância de reconhecer modos alternativos de pensamento e ação

investigativa com elas (CUNHA e FERNANDES, 2012, p.11).

Na pesquisa realizada por Siqueira (2011) cujo título: “Do Silêncio ao Protagonismo:

por uma leitura crítica das concepções de infância e criança”, foram investigadas as produções

dos grupos de pesquisa ligados à área de Educação e Psicologia, que apresentam em seu escopo,

pesquisas relacionadas aos campos criança e infância, cadastrados no Diretório de Pesquisa do

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). A pesquisa abrangeu

os anos de 2007 a 2010 e apontou que as concepções de criança se pautam principalmente na

ideia de sujeito de direito, no entanto, a criança tem sido nomeada de fora para dentro e de cima

para baixo, conforme designam os marcos legais/institucionais, reafirmando com isso, uma

identidade marcada por discursos psicológicos e sociológicos nos quais as crianças e suas

53

subjetividades também estiveram, por vezes, subsumidas. Cabendo agora, a necessidade

desconsiderá-la como sujeito da História. Surge então, a necessidade do resgate histórico

conceptual de categoria criança para entender a trajetória social da concepção de infância,

visibilizando assim, os momentos de conflito epistemológico desde a ideia do “homúnculo” até

a concepção de “criança social”.

Considerando os indicadores de publicação dos grupos de pesquisa, Siqueira (2011)

revela que as produções na área da Sociologia da Infância no Norte e no Nordeste do Brasil

correspondem a cerca de 10 investigações anuais por grupo de pesquisa, enquanto em outras

regiões brasileiras, o número de investigações chega a 25 trabalhos por grupo de pesquisa

(SIQUEIRA, 2011, p.18). Apontamentos que Macêdo (2014) corroborou em sua pesquisa

doutoral intitulada “A infância resiste à Pré-escola?”, onde a autora fez uma leitura crítica sobre

a consolidação da Sociologia da Infância no Brasil, chegando à conclusão de que as produções

na área ainda são bastante restritas a três regiões do país: Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Com

base nisso, a autora também acentua que a infância é o grupo geracional mais atingido pelas

mazelas sociais, nesta perspectiva, “o status de minoria, impetrado socialmente às crianças, em

especial as oriundas dos rincões mais pobres carrega com ele a exclusão social, política e até

mesmo científica” (MACÊDO, 2014, p. 65).

Estes dados preocupantes comprovam que ainda é preciso promover estudos e pesquisas

nas regiões Norte e Nordeste para erigir e firmar as perspectivas teóricas e metodológicas da

Sociologia da Infância junto às instituições e segmentos direcionados à criança, garantindo

assim, produções científicas que promovam a participação das crianças nas investigações, o

rigor epistemológico e metodológico e a ética na pesquisa com crianças (KRAMER, 2002;

DELGADO e MÜLLER, 2005; PROUT, 2005; CARVALHO e MÜLLER, 2009; MARTINS

FILHO e PRADO, 2011).

Nesse escopo, quero destacar um ponto fundamental que dialoga diretamente com meu

tema de investigação, a saber - as concepções de crianças e infâncias expressas em narrativas

fotoetnográficas. Ao analisar a presença de imagens nas pesquisas analisadas, particularmente,

as fotográficas, identifiquei que seu uso ainda se resume ao registro dos contextos e cotidianos

da pesquisa, ou seja, como registro imagético das intervenções de campo e como fonte de

informação acerca do objeto de análise. Em vista disso, a fotografia não vem sendo utilizada

com status de narrativa integral, em que a linguagem visual adquire a mesma importância da

linguagem escrita no texto acadêmico, como é o caso da Fotoetnografia, caracterizada como

uma “escritura por inteiro, quando se para de recorrer às palavras para se deixar levar em uma

viagem visual reveladora, abrigando o inefável que igualmente encerra conhecimento e

54

sentido.” (ACHUTTI, 2004, p. 87).

Nesta perspectiva, a Fotoetnografia aparece como uma possibilidade metodológica

profícua para promover a interlocução acerca das culturas infantis, haja vista que a linguagem

visual passou a ter a mesma importância da linguagem escrita, por isso, a ideia de

Fotoetnografia como forma narrativa integral (ACHUTTI, 1997, p. 87). Desse modo,

considerando a importância da fotografia como um meio de interpretação da realidade, Achutti

(2004, p. 73) defende que é preciso desenvolver o potencial narrativo da imagem fotográfica e

ressalta a necessidade de sua legitimação no cenário científico para preencher a lacuna existente

na área das Ciências Sociais e pontua:

É chegada a hora da conquista e da legitimação de um espaço para que a

fotografia possa ser aceita como mais um meio de produção de ideias,

produção de sentido, para contar o cotidiano do Homem e a vida no mundo contemporânea (ACHUTTI, 1997, p. 73).

As imagens fotográficas fazem parte do universo infantil, seja no convívio familiar, na

escola ou nos diversos espaços de convívio social, no entanto, a utilidade deste artefato tem

variado significativamente, principalmente, em se tratando de uma Cultura Visual efêmera e

multicultural como a que estamos vivenciando na contemporaneidade. Ante tal contexto, torna-

se oportuno discorrer sobre alguns exemplos, com base inclusive em experiências do cotidiano,

as quais me incluem.

Nas escolas, as fotografias registram os eventos culturais, as práticas pedagógicas, as

atividades lúdicas, servem como recordações de eventos e processos educacionais, etc.; Nos

livros, as fotografias revelam informações acerca dos fenômenos abordados em qualquer

assunto ou área do conhecimento, sendo instrumentos capazes de contribuir para o

entendimento dos conteúdos de forma mais acessível e objetiva; Em espaços públicos e

privados em meios urbanos e/ou rurais, as fotografias são exibidas em painéis de lojas, outdoors

nas ruas e avenidas, em publicidades plotadas em veículos, nas praças, bancas de revista,

vestuários, restaurantes e lanchonetes, shopping centers, igrejas, teatros, cinema, centros de

cultura, e tantos outros lugares; Na publicidade midiática, nas redes sociais da Internet, as

fotografias se espalham no universo da cibercultura de maneiras inimagináveis. Mas, sobretudo,

é no seio familiar que a fotografia tem ganhado espaços significativos como expressão

linguística visual, cultural e histórica, tanto no meu contexto34, quanto no contexto de outras

34 Já não é possível saber, ao certo, quantas imagens fotográficas guardamos em celular, computador, HD

externo, e mais recentemente, nas chamadas “memórias em nuvens”, como Dropbox, Google Drive e

55

famílias.

Com o avanço tecnológico e midiático decorrente da globalização e influenciado pelo

barateamento e popularização dos equipamentos de geração de imagens (SANTOS, 2002;

GIDDENS, 1991; PEIXOTO, 1998), a fotografia ultrapassou os limites da tradição familiar,

desde a produção restrita ao acesso às imagens, alcançando um patamar de “presença” cultural

e social que modificou muitas formas de convívio, “acompanhando transversalmente todos (ou

quase todos) os grupos e classe sociais” (CARVALHO, C., 2011, p. 109, grifo do autor). Por

consequência, as famílias passaram a registrar ocasiões cada vez mais pormenorizadas e

cotidianas, como uma saída para caminhar, um lanche na esquina, um passeio na praia, almoços

em família, visita a parentes, brincadeiras com animais de estimação, reuniões de amigos,

situações domésticas, etc., incluindo os famosos “selfies” que já fazem parte do dia-dia de

muitas famílias, e principalmente, de muitas crianças.

Atualmente, com o impacto das tecnologias digitais, a imagem de si passou a fazer parte

do cotidiano dos indivíduos de forma mais intensa e significativa, reconfigurando algumas

formas de linguagem visual, por conseguinte, as culturas contemporâneas adaptaram ao

conceito de self o ato de retratar-se através de autofotografias (fotografia realizada pelo próprio

fotografado), fazendo exibições de várias situações de seu cotidiano, assim, o self na linguagem

da hipermídia passou a representar o “selfie” – o autorretrato de um indivíduo ou de um grupo,

um fenômeno de expressão e reforço da identidade em que pessoas fazem registros digitais de

si mesmas, podendo ser tratada na perspectiva de uma autoimagem. Sem contar também, com

as tradicionais fotos de nascimentos, aniversários, casamentos, batizados, festas populares e

folclóricas, entre outras ocasiões.

Além dessa cotidianidade, os progressos tecnológicos não somente fizeram aumentar o

número de imagens oferecidas, como também facilitaram o acesso do público à sua produção e

visualização. Assim, a fotografia também deixou de ser algo privado, guardado para posteridade

da família e passou a ser uma fonte de informação pública, o que pode ser facilmente observados

em redes sociais como Facebook, Instagram e WhatsApp, onde milhares de famílias expõem e

socializam quase em tempo real suas fotografias. No entanto, concordo com Peixoto (2011)

que:

Embora essas novas tecnologias de publicização individual e familiar (blogs, Facebook, Orkut, home page, webs, etc.) tenham se expandido

aceleradamente nos últimos anos, o que me interessa aqui é muito menos a

relação das imagens de família com o mundo virtual, mas como os filmes ou

[continuação] Onedrive, realmente, não dá para contar... Nuvem ou disco virtual é um sistema de dados on-line que permite o armazenamento e compartilhamento de arquivos e pastas de maneira segura, pois,

elimina o risco de perder o material por vírus, quebra de equipamentos, entre outros.

56

vídeos podem ser apropriados enquanto fragmentados da história social

(PEIXOTO, 2011, p. 14-15).

Essa visão aponta que estamos imersos num mundo de imagens e cada vez mais

dependentes das visualidades que consumimos e produzimos. O uso de artefatos tecnológicos

de última geração como celulares, computadores, câmeras digitais que fotografam e filmam

com qualidade e precisão nas imagens, consequentemente, o visual e a mídia passaram a

desempenhar papéis importantes na vida social, política e econômica. Eles se tornaram ‘fatos

sociais’, no sentido de Durkheim35, e como fatos sociais, precisam ser discutidos e considerados

nas pesquisas científicas como elementos,

[...] fundamentais para os registros históricos da humanidade, fornecem informações e representações acerca dos cotidianos vivenciados em cada

cultura, tendo em vista a realização intencional de conservação da memória,

transmissão de ideias, valores e saberes, localização no espaço e no tempo, constituição de determinados tipos de padrão de conduta e de sujeitos,

identificação de classes, de grupos sociais e de indivíduos na hierarquia social (CARLOS, 2010, p. 11).

Entre os registros, se incluem as fotografias, com o poder de “eternizar” pessoas e

momentos que de algum modo são importantes para serem lembrados/as na posteridade

configurando os registros antigos como resgates imediatos de memória. Em outras palavras, a

fotografia revela a história que a memória esqueceu, ou seja, trata-se de uma “antiguidade

instantânea” (SONTAG, 1981) que gera informações, emoções e reflexões acerca da realidade.

Nesse sentido, através da fotografia, instantaneamente é possível rememorar, sentir e

compreender os contextos e as subjetividades que permeiam os elementos implícitos e

explícitos contidos na imagem.

A fotografia traz consigo, como forma de perceber e apresentar, toda a

tradição imbricada na sua própria criação somada à interferência daquele que a produziu no tempo, no espaço e na cultura na qual estava imersa e em

relação. É, portanto, o resultado de várias forças construtivas. A imagem

fotográfica integra o cenário dos dispositivos imagéticos contemporâneos e nele propõe novas subjetividades, adaptando-se aos regimes de visão e de

subjetividade, e neles interferindo (GONÇALVES, 2013, p. 16).

Pensando nessa polissemia imagética e nas múltiplas possibilidades de narrativas

visuais, a Fotoetnografia surge como via teórica e caminho metodológico para a implementação

desta pesquisa, tendo em vista o potencial das imagens para “reviver, sentir e compreender”

35 Para Durkheim (2002), o conceito de fatos sociais abrange a percepção do indivíduo, sua maneira de agir

e pensar o mundo e seu funcionamento.

57

situações históricas e culturais das trajetórias conceptuais de crianças, infâncias e culturas

infantis como fenômenos sociais que influenciam e são influenciados pela cultura,

principalmente, pela Cultura Visual no contexto da sociedade contemporânea.

Considerando a importância da imagem como elemento fundamental para o

conhecimento, análise e compreensão da realidade das culturas infantis, as concepções de

crianças e infâncias expressas em narrativas fotoetnográficas constituíram-se como objeto de

estudo desta tese. Nesta perspectiva, o problema de pesquisa buscou responder a seguinte

questão: como a Fotoetnografia contribui para a produção de conhecimento e a compreensão

histórica, social e cultural das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis? No entanto,

outras questões foram sendo levantadas e contextualizadas em momentos oportunos e

necessários à elucidação do problema, as quais estão discutidas na sequência do texto.

Portanto, esta pesquisa teve o objetivo geral de promover interlocuções epistemológicas

e empíricas sobre as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de narrativas

fotoetnográficas. Em vista disso, esteve atrelada a três campos analíticos diferentes, porém,

complementares: I - a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia; II - a História, a Sociologia da

Infância e a Cultura Visual; III - a Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica e o

protagonismo infantil. Conforme organizado a seguir, no esquema 1.

Esquema 1 - Organização da tese.

Fonte: Elaboração própria (2017).

58

Com base no esquema 1, o primeiro campo analítico compreende a relação entre três

fenômenos: a imagem; a fotografia e a Fotoetnografia. Neste sentido, as seguintes questões

serviram de norteamento para a organização e geração de dados: como ampliar as perspectivas

teórico-metodológicas da Fotoetnografia a partir de uma epistemologia da imagem

fundamentada em princípios antropológicos, filosóficos e educacionais? Como as infâncias têm

sido contempladas pela Fotoetnografia nas Ciências Humanas e Sociais?

Tendo em vista a forte influência das imagens para a compreensão e construção das

narrativas que compõem a História das Civilizações e, principalmente, o patamar de

importância que a imagem conquistou na atualidade, procurei promover interlocuções

antropofilosóficas de educação através da imagem, com o designo de estabelecer um percurso

epistemológico e empírico para a sistematização metodológica da tese sob a óptica da

Fotoetnografia. A seguir, no esquema 2, apresento a sistematização do primeiro campo

analítico.

Esquema 2 - Sistematização do Campo Analítico I.

Fonte: Elaboração própria (2017).

Parto do princípio de que as imagens revelam um registro narrativo que materializa o

discurso e demonstra nuances da realidade que permitem além de uma descrição, sua

59

compreensão. Nesse contexto, ciente de que a metodologia deve ser capaz de discutir relações

abstratas e empíricas entre fatos, fenômenos, conceitos e processos; organizar, ordenar e

sistematizar o pensamento articulando-o com o real e interagir de forma inteligível com

questões práticas, abordo a Fotoetnografia como forma narrativa integral (ACHUTTI, 1997, p.

87) e através de metáforas, explicito as propostas metodológicas adotadas neste estudo. De

acordo com Umberto Eco (1994, p. 20) as metáforas podem ser representadas a partir de

elementos como: “símbolo, ideograma, modelo, arquétipo, sonho, desejo, delírio, rito, mito,

magia, criatividade, paradigma, ícone, representação – e também, como é óbvio, linguagem,

signo, significado, sentido”. Na perspectiva da semiótica, a metáfora é considerada um tipo de

representação icônica que é determinada pela sua semelhança ao objeto, tal representação é

capaz de compartilhar das “mesmas convencionalidades do símbolo e de sua representação”

(PEIRCE, 1990, p. 64).

Dito isto, a metáfora aqui é entendida como representação associativa, ou seja, uma

conotação de sentidos e significados correlatos que oferece possibilidades de interpretação a

partir do código e do contexto em que opera. Portanto, uma imagem oferecida à interpretação

terá mais implicações simbólicas do que no próprio ato de sua criação, logo, a metáfora é

compreendida como a “imagem” das ideias criadoras de percepções e sensibilidades. Para

Marcuschi (2000, p. 73) a metáfora deve ser entendida como estrutura de conhecimento que

formado a partir da intersubjetividade do sujeito com a realidade, ou seja, a metáfora é um

conhecimento específico acerca da realidade que busca reestruturar o conhecimento a partir de

uma perspectiva criativa e nova. As próprias metáforas platônicas são exemplos de uma

linguagem criativa que objetiva ser inteligível a seus interlocutores, cuja metodologia

imagística colabora também para a produção do conhecimento filosófico que se faz realidade

intersubjetiva e ontológica.

Nesse escopo, na primeira metáfora proponho um olhar epistemológico sobre a

fotografia a partir da junção de duas concepções antropofilosóficas - “pele” (SAMAIN, 2012,

p. 160) e “magia” (FLUSSER, 1985, p. 5) dialogando com as bases teóricas fundamentais para

se pensar uma nova epistemologia da imagem a partir da Filosofia da Fotografia (ACHUTTI,

1997; AUMONT, 2016; BAUDRILLARD, 1981; BURKE, 2004; FLUSSER, 1985, 2007;

KOSSOY, 2012; KOURY, 1998; PENN 2002; SAMAIN, 2012).

Na segunda metáfora, me inspiro na produção norte-americana “Memento”, traduzido

para o Brasil como “Amnésia”, um filme que apresenta um drama relacionado à memória,

percepção e vingança, vivido por um personagem que perde parte de suas memórias a cada 10

ou 15 minutos, que recorre a estratégias de rememoração utilizando registros fotográficos e

60

tatuagens em seu corpo, que para ele, são as únicas evidências de verdade em relação à sua

realidade. No contexto da pesquisa, o memento foi adaptado ao processo de construção e

interpretação das narrativas fotoetnográficas, para tanto, se estabeleceu a partir de três

movimentos simultâneos: o “reviver” as imagens fazendo leituras contextualizadas e em

conexão com as concepções teóricas problematizadas; o “sentir” considerando os elementos

significantes provenientes da imagem que produzem sentidos e emoções no sujeito que

contempla, que é contemplado e que produz a Fotoetnografia, e, consequentemente, “atraem”

a selecioná-las e compreendê-las em suas dimensões históricas, sociais e culturais. Em vista

disso, estabeleço o diálogo com a Filosofia clássica, revisitando as bases epistemológicas de

Platão sobre a Teoria do Conhecimento e da Reminiscência (PLATÃO, 2001, p. 81a1-d5, p.51-

53; PLATÃO, 1972, p. 72e-77a) para explicitar o processo de rememoração, e aqui o memento.

E na terceira metáfora abordo o processo de sistematização técnica e de análise das

narrativas fotoetnográficas a partir da linguagem fotográfica utilizando as características e os

componentes necessários à sua produção técnica como expressões simbólicas correlatas aos

procedimentos metodológicos empreendidos na tese, desde os primeiros passos como

sensibilidade, abertura e velocidade, até os componentes específicos necessários à obtenção da

imagem esperada, como: o foco, o diafragma, a objetiva e a exposição. Para tanto desenvolvo

a ideia de descrição em high key e low key36 como estratégia de leitura e compreensão integral

da imagem, sobretudo para o desvelamento das infâncias magicizadas37 em narrativas

fotoetnográficas. Desse modo, estabeleço um diálogo entre a Antropologia Visual e a Filosofia

da Fotografia e suas ramificações críticas e transdisciplinares no campo da Cultura Visual e da

educação estética (HERNÁNDEZ, 2000; MARTINS, 2007; MARTINS e TOURINHO, 2010;

MIRZOEFF, 2003; SANTAELLA, 1989, 2009; SARDELICH, 2006).

Após a apresentação da sistemática epistemológica e metodológica da tese, discorro

sobre a emergência da Fotoetnografia no contexto da pesquisa científica e sumarizo as

produções a partir dos registros evidenciados junto aos repositórios digitais da CAPES, ANPEd

e SciELO, nos quais existem: 26 (vinte e seis) pesquisas registradas na CAPES desde 1996,

mas apenas 4 (quatro) especificamente relacionadas à crianças e infâncias; 9 (nove) pesquisas

registradas na SciELO, sendo apenas 1 (uma) na área de Educação e Gênero. E apenas 2 (dois)

registros relacionados à Fotoetnografia junto à ANPEd.

36 Procedimentos de análise da imagem sistematizados para esta pesquisa em particular. Será melhor

esboçado na seção 1.2 do ensaio 1. 37 Este termo será retomado no ensaio 1. Cf. Flusser (2007).

61

Desse modo, a seleção iconográfica para a composição da pesquisa Fotoetnografia em

questão, partiu das imagens de crianças discutidas no âmbito de 5 (cinco) trabalhos relacionados

ao objeto desta tese, priorizando o de Trois (2012) que discute o currículo das infâncias no

contexto das ações e interações escolares; e o de Villas Boas (2016) que investigou a construção

de si das crianças que participam da manifestação Nêgo Fugudo em Acupe-BA, a escolha se

deu por tratarem, especificamente, de questões relacionadas à criança, infâncias, cultura e

educação e por apresentarem em seu corpus um acervo rico em imagens fotográficas.

O segundo campo analítico promove uma interlocução entre a História, a Sociologia

da Infância e a Cultura Visual. Refere-se ao estudo das concepções de crianças, infâncias e

culturas infantis presentes nas Ciências Humanas e Sociais que dialogam mais especificamente

com os pressupostos da História Social da Criança, da Sociologia da Infância e da Cultura

Visual. Tendo em vista a importância dos registros históricos e dos debates científicos para a

compreensão da evolução das civilizações humanas, suas tensões e contradições sociais,

culturais, políticas e econômicas e suas implicações nas condições de vida infantil, visando

responder os seguintes questionamentos: que imagens de crianças e infâncias têm sido

discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências Humanas e Sociais? Que imagens

de crianças e infâncias têm repercutido na Cultura Visual e implicado diretamente nos modos

de ser e de viver da criança na contemporaneidade?

Desse modo, este campo analítico buscou discutir as principais concepções de crianças

e infâncias histórica e socialmente constituídas a partir do pressuposto de que as culturas visuais

permeiam o universo infantil de modo significativo ampliando seus modos de ser e viver como

criança. Em função disso, direcionei o olhar para as imagens de crianças expressas através de

imagens técnicas fixas (fotografias) e em movimento (audiovisuais), dispostas em pesquisas

científicas e nas visualidades presentes em mídias televisivas, redes sociais, sites de moda e de

entretenimento que dialogam com assuntos relacionados ao público infantil e que estão

diretamente, associados às realidades culturais da infância projetando modelos e padrões de

comportamento que precisam ser tensionados no campo científico. Conforme apresento no

esquema 3.

62

Esquema 3 - Sistematização do Campo Analítico II.

Fonte: Elaboração própria (2017).

Neste sentido, interessou-me investigar como a criança vem sendo representada

histórica e socialmente através da Ciência e da Cultura Visual para reflexionar as concepções

acerca dos significados sociais e culturais que fundamentam as imagens de crianças em

diferentes épocas e contextos, visando, sobretudo, compreender suas formas de enfrentamento,

resistência e subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido a ela (criança)

como cultura e projeções sociais.

Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental junto a livros impressos

pertencentes ao acervo pessoal e à biblioteca pública da UFPB, além de textos dispostos em

repositórios digitais do banco de teses e dissertações da CAPES e em artigos publicados na

SciELO e na ANPEd.

No primeiro momento, utilizei como principal critério de seleção o indexador

“Sociologia da Infância”, em seguida, outros indexadores foram necessários para a seleção das

pesquisas: “História da criança”, “História da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”;

“culturas infantis”; “Fotoetnografia”; “imagem de criança”; “infância Idade Média”; “infância

Idade Moderna”. O cruzamento dos indexadores foi realizado a partir da leitura dos títulos,

resumos e das palavras-chaves de cada pesquisa, respectivamente.

63

Importante ressaltar que o recorte histórico foi codependente das revisões de literatura

teórica e empírica realizadas, assim, o movimento de seleção iconográfica partiu das teorizações

promovidas e não das imagens em si, ou seja, as imagens de crianças e as cenas de infância

foram surgindo à medida que emergiam as discussões e eram estabelecidas conexões de

sentidos e significados entre concepções e imagens. Em outras palavras, as imagens eram

selecionadas a partir dos diálogos epistemológicos estabelecidos no âmbito dos estudos e

pesquisas científicas referentes ao objeto de estudo, em seguida, através de uma leitura

flutuante, as pesquisas que apresentavam em seu corpus imagens de crianças nas discussões,

eram revisitadas e analisadas conforme a problematização do campo.

No segundo momento, com base no caráter transdisciplinar da tese, o corpus se

constituiu a partir dos seguintes debates: a criança na Cultura Visual contemporânea;

visibilidades publicitárias direcionadas ao público infantil; formas de expressão da criança em

redes sociais, suas alteridades e subversões potencializadas pela efemeridade e multiplicidade

de tecnologias visuais; e em contrapartida, situações de risco à criança e suas infâncias como

adultização e erotização; abuso da condição de criança frente à crescente demanda do consumo

e da estetização da cultura. Tal intento foi pensado a partir das visualidades evidenciadas pela

Cultura Visual na era digital que compõe o cenário da sociedade atual, principalmente, em se

tratando de publicidade televisiva e Internet, tendo em vista o papel social e cultural do visual

e da mídia na vida das crianças para a in/formação de suas culturas.

Neste sentido, a partir do indexador “Cultura Visual”, fiz outras intersecções utilizando

os seguintes termos: “Sociologia da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”; “culturas

infantis”; “mídia televisiva”; “mídias digitais” “Internet”; “Fotoetnografia”; “imagem de

criança”; “infância contemporânea”; “ciberinfância”. No entanto, além desta revisão literária,

adicionalmente, foram utilizados alguns indexadores relativos à infância visibilizada na Cultura

Visual com o intuito de tencionar as discussões acerca do objeto de investigação ampliando o

corpus de imagens que iriam compor a narrativa fotoetnográfica do ensaio em questão, como:

“moda infantil”; “consumo infantil”; “consumismo infantil”; “adultização infantil”; “erotização

infantil”; “publicidade infantil”; “políticas de proteção e cuidado à infância”, mesclando-as

entre si. Temas estes que, surgiram em meio à própria revisão de literatura, prioritariamente,

empreendida.

Neste segundo momento, o recorte histórico compreendeu os acontecimentos

relacionados às últimas três décadas marcadas pela passagem do século XX ao século XXI

(1990-2017) em que ocorreram consideráveis transformações acerca do conceito de infância e

de criança, principalmente, no que se refere aos direitos civis e à proteção (DIAS, 2007;

64

SILVEIRA, 2007), a exemplo do emergente campo da Sociologia da Infância (CORSARO,

1997) no hall das Ciências Humanas e Sociais. Entretanto, para pensar sobre as concepções de

infância na contemporaneidade também foi necessário refletir sobre as imagens de crianças que

estão em evidência na mídia televisiva, na publicidade e nas redes sociais da Internet como

Facebook, YouTube e Instagram38, porém, frente à extensão de visualidades disponíveis,

selecionei três cartografias que ajudam a pensar os mapas da infância na contemporaneidade: i.

a crescente demanda do consumo para a formação de crianças consumidoras, a publicidade

televisiva para crianças e a resolução nº163 do CONANDA (2015) sobre publicidade infantil.

ii. os processos de adultização e erotização da criança considerando a trajetória da funkeira

mirim Mc Melody e a moda veiculada pela Internet direcionada à infância; iii. a pesquisa TIC

KIDS on-line Brasil (2015) que discorre sobre o uso de Internet por crianças e adolescentes e a

participação dos youtubers mirins e suas implicações para a construção das culturas infantis.

Todos estes indexadores serviram de parâmetro para o levantamento da literatura sobre

o tema proposto a fim de ampliar as discussões acerca do objeto de investigação e angariar, por

meio das pesquisas selecionadas, o corpus de imagens que faria parte da composição

fotoetnográfica do ensaio em questão. Após leitura flutuante, foram selecionadas fontes e

informações iconográficas referentes às concepções de crianças, infâncias e culturas infantis na

contemporaneidade.

Desse modo, a Fotoetnografia foi construída a partir do diálogo epistemológico e

empírico estabelecido entre imagens do passado (pinturas e fotografias), versus imagens do

presente, agora produzidas através de novos artefatos midiáticos digitais disponibilizados em

redes on-line, buscando oferecer uma fotografia panorâmica acerca da trajetória conceptual das

imagens de crianças e infâncias ao longo do tempo, para em seguida, compor uma narrativa

imagética integral com sentidos e significados em si, mesmo tendo sido construídos de maneira

interdependente.

Portanto, as análises empreendidas pautaram-se em obras seminais no campo da História

Social da Criança (ABRAMOWICZ, 2011; ARIÈS, 1981; BECKER, 2010; BURKE, 2004;

HEYWOOD, 2004; KUHLMANN Jr., 2004; LOIC CHALMEL, 2004), da Sociologia da

Infância que surge quebrando paradigmas sociais e desconstruindo conceitos rígidos que

desconsideram as culturas infantis em suas especificidades como uma categoria social própria

(CORSARO, 1997; JAMES, JANKS e PROUT, 1998; KRAMER, 1999; MONTANDON,

2001; MÜLLER, 2010; PROUT, 2005; QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2004, 2005, 2007;

38 Os detalhes pormenorizados dessas escolhas serão apresentados no ensaio 2.

65

SIROTA, 2001; TREVISAN, 2007) e da Antropologia da Criança que discute a condição social

da criança como autora e produtora de cultura (COHN, 2005; MATTOS, 2011).

Da mesma forma, em contribuições epistemológicas que tratam das mudanças

paradigmáticas e transformações culturais, econômicas e sociais decorrentes de processos

macroestruturais como a globalização (SANTOS, 2002); indústria cultural (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985); hipercapitalismo (LIPOVETSKY, 2004; LIPOVETSKY e SERROY,

2011); consumismo (MOMO, 2010; SCHOR, 2009); virtualização da comunicação na

cibercultura (LEVY, 1999), que marcam a sociedade em tempos de segunda modernidade, que

historicamente correspondente à idade contemporânea (BAUMAN, 1998; BECKER, 1997;

BHABHA, 2013; GEERTZ, 1989; GIDDENS, 1991; LASH, 1997; SARMENTO, 2004), e

neste contexto, as contribuições relacionadas às concepções de crianças e infâncias,

considerando as visualidades promovidas e propagadas pelas mídias digitais (CABRAL, 2008,

2015; DORNELLES e BUJES, 2012; BUCKINGHAM, 2006, 2012; GIROUX, 1995, 2003;

MOMO, 2010; POSTMAN, 1999; SCHOR, 2009; STEINBERG e KINCHOLOE, 1997).

Em síntese, o referido corpus discursivo contribuiu para a rememoração (reminiscência)

e compreensão (memento) histórica, social e cultural da vida infantil em sociedade no bojo das

transformações da segunda modernidade (SARMENTO, 2004).

O terceiro campo analítico da pesquisa, aborda a Fotoetnografia numa perspectiva

autobiográfica e aponta para a importância do protagonismo infantil. Em outras palavras,

consiste no uso da Fotoetnografia como uma possibilidade narrativa autobiográfica para

pesquisas com crianças.

A intenção surgiu da necessidade de conhecer as culturas da infância a partir de

percepções ontológicas39 e interpretativas da própria criança, ou seja, da necessidade de

produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil, desde a seleção

de imagens até a descrição narrativa dos significados relativos à sua própria história de vida.

Dessa forma, os seguintes questionamentos serviram de parâmetros para a sistematização deste

campo analítico: quais as concepções de criança e infância na perspectiva da própria criança,

ou seja, como ela se vê e se reconhece nas relações culturais e sociais que estabelece com seus

pares e com os adultos? Como se relaciona com a Cultura Visual e quais as implicações dessa

relação para a construção de sua identidade? Sobretudo, como a Fotoetnografia autobiográfica

pode evidenciar o protagonismo da criança e a alteridade da infância ao promover sua

39 Etimologicamente, a palavra ontologia “οντολογία” vem do grego, resultado da combinação entre o

prefixo “ontos” que significa “ser” e do sufixo “logoi” que significa “ciência do ser”. Na perspectiva

platônica, a ontologia corresponde à natureza do argumento que dá suporte à interpretação da realidade.

66

participação na construção de conhecimento científico?

Nessa perspectiva, busquei identificar nos modos de ser e de viver da criança, evidências

de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica, visando

perceber como as culturas infantis aproximam-se e/ou distanciam-se das imagens

im/dis/postas40 nas culturas visuais investigadas.

Este campo analítico justifica-se pela importância da participação da criança em exercer

seu papel social como sujeito ativo e crítico em assuntos relacionados a ela, dessa forma,

contraria os “ditos” homogeneizadores e limitadores da participação da criança em pesqu isas

científicas que desconsideram a subjetividade da criança e sua condição de interpretar a

realidade e de produzir sua própria cultura.

Neste entendimento, a Sociologia da Infância defende a participação da criança nos

âmbitos histórico, cívico e científico da sociedade (SARMENTO, 2007), o que reforça a

coerência em incluir este campo analítico para demonstrar que a Fotoetnografia como narrativa

autobiográfica pode ser um recurso metodológico adequado à pesquisa com criança ao permitir

o reconhecimento das culturas infantis a partir das subjetividades infantis expressas nas

percepções e significações da própria criança.

Nesta direção, o esquema 4 apresenta os elementos que estruturaram o terceiro campo

analítico.

40 Essa fragmentação lexical indica que as imagens estão tanto dispostas quanto são impostas na/pela

Cultura Visual, se projetam como padrões e modelos de condutas e/ou comportamentos. Neste sentido,

algumas imagens também são ‘impostas’ às crianças de forma incisiva e , portanto, torna-se incoerente

afirmar com precisão se as imagens ‘postas’ estão ‘dispostas’ ou são ‘impostas’ à criança como modelos

de comportamento social, tendo em vista que é uma questão muito subjetiva, porém, importante a ser

investigada.

67

Esquema 4 - Sistematização do Campo Analítico III.

Fonte: Elaboração própria (2017).

De acordo com Passeggi et al. (2016, p. 114) a narrativa autobiográfica parte do “[...]

reconhecimento da legitimidade da criança, do adolescente, do adulto, enquanto sujeitos de

direitos, capazes de narrar sua própria história e de refletir sobre ela”, envolve a complexidade

das relações humanas na medida em que as crenças, os valores, as identidades e as percepções

vão sendo estabelecidas com a realidade, num movimento constante de reflexividade

autobiográfica. No contexto das pesquisas com criança, Passeggi (2016, p. 114) chama atenção

para a importância da participação da criança em assuntos relacionados a ela, o que corrobora

com visibilidade da criança nos cenários políticos e científicos, nos quais a Sociologia da

Infância também tem defendido esta participação (SARMENTO, 2007).

A participação da criança requerida pela Convenção sobre os Direitos da Criança é

assegurada pelo decreto nº 99.710de 21 de novembro de 1990 em seu Art. 12, que resguarda a

todas as crianças, em função da idade e maturidade, o direito de expressar suas opiniões

68

livremente e, sobretudo, o direito de serem ouvidas, sobre assuntos que lhes dizem respeito.41

Essa participação se estende à infância como uma forma de evidenciar o protagonismo

da criança e seus modos de ser e viver a vida a partir das relações de alteridade que estabelece

na sociedade. Pensando nisso, percorri um caminho metodológico pautado no respeito às

especificidades e inteligibilidades da criança. Desse modo, procurei elaborar estratégias que

promovessem a participação da criança na produção da Fotoetnografia da infância

contemporânea, visando reconhecer como os fenômenos da Cultura Visual se manifestam nas

experiências cotidianas da criança, fazendo um contraponto com as Fotoetnografias

desenvolvidas tanto no primeiro, quanto no segundo campo analítico, bem como, para mostrar

que a Fotoetnografia autobiográfica é uma estratégia promissora para a produção do

conhecimento no campo da Sociologia da Infância, no que tange ao desvelamento das

realidades culturais e identidades sociais da criança.

Assim, o movimento de interpretação memento novamente me inspirou, dessa vez a

pensar sobre a participação da criança nesse processo de investigação, pois, não fazia sentido

promover conhecimento sobre infância sem dialogar com a própria criança, sem ouvir o que ela

tinha a dizer sobre si e sobre suas relações com a cultura e a sociedade. Ou seja, minha intenção

foi dar vez e voz à criança (MÜLLER; CARVALHO, 2009), para entender suas próprias

concepções e subjetividades em relação a sua história de vida contada a partir de imagens42.

Neste contexto, o memento envolveu duas dimensões, ambas implicadas no movimento

cíclico de interpretação: “reviver”, “sentir” e “compreender” a imagem: primeiro, na percepção

do sujeito que investiga (pesquisador) - durante o processo de análise das narrativas

fotoetnográficas à luz das concepções teóricas que pautaram as interpretações; segundo, na

percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - quando a criança elabora sua compreensão

no processo de reprodução interpretativa dos fatos (CORSARO, 1997) dando sentidos e

significados às narrativas visuais. Segundo Aumont (2016, p. 8) no campo das teorias da

imagem, percepção visual é uma atividade complexa que não se pode, na verdade, separar das

grandes funções psíquicas, a intelecção, a cognição, a memória, o desejo.

Porém, para além dessas dimensões, o memento também possibilita ao leitor/espectador,

uma viagem no tempo, na história, nas memórias e reminiscências de sua própria infância, tendo

41 QRcode 11: Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989. Nações Unidas do Brasil.

42 Os pormenores dos procedimentos metodológicos empreendidos neste campo estarão no ensaio 3.

69

em vista a potencialidade das imagens fotográficas em promover conexões de sentidos e

significados ontológicos e imaginativos, conforme realça Achutti (1997b):

A fotografia é uma espécie de gesto, a explicitar uma intenção. Com ela

arbitra-se uma porção de espaço e de tempo que devem ser realçados e oferecidos a público. Uma fotografia guardada não é nada. Ela veio para ser

contemplada, para evocar a memória e instigar a sensibilidade. É quando a

humanidade olha para si própria. São vários os olhares. Ela não deve ser aleatória, nem mistificadora, não precisa ser espetacular ou ameaçadora.

Construída pelo gesto mínimo, pelo olhar franco, a fotografia é cotidiano

(ACHUTTI, 1997b, p. 5).

Entretanto, no contexto das pesquisas com crianças, Demartini (2002, p. 14) alerta que

o maior desafio do pesquisador é captar os relatos infantis com uma construção teórico-

metodológica de adultos e analisar o material empírico coletado também por adultos, nas

palavras da autora “como entender o que as crianças falam, com seu mundo de fantasias, com

suas construções próprias e entendê-las a partir da nossa visão, de quem não é mais criança?”.

Neste prisma, compreender as representações infantis não significa interpretá-las sob as nossas

próprias formas de pensar o mundo, mas respeitar as subjetividades e construções intelectuais

da criança, dando a elas o poder e a autonomia da voz social.

Dornelles e Bujes (2012, p. 27) advertem que essas práticas de escuta e interpretação

devem, necessariamente, ser feitas a partir de formas específicas de narração produzidas dentro

de um conjunto de possibilidades de subjetivação previamente estabelecidas nos limites e

controles exercidos pelas relações de poder nas/das quais as crianças participam. Desse modo,

o autogoverno se dá,

[...] quando as crianças são instadas a fazer escolhas, a tomar decisões, a

construir regras, isso não é feito ao acaso, mas a partir de um repertório previamente estabelecido, balizado por uma lógica normativa, que define

limites e “critérios racionais” para o que é dela esperado, e que funciona como um conjunto de princípios para a regulamentação da conduta (DORNELLES

e BUJES, 2012, p. 27).

Nesta perspectiva, Sarmento (2007, p. 44) enfatiza que na investigação dos mundos

sociais da infância, é preciso utilizar procedimentos que permitam uma efetiva escuta da voz

das crianças, no quadro de uma reflexibilidade metodológica que recusa o etnocentrismo

adultocêntrico. Para esse autor, as crianças são sujeitos do conhecimento, parceiras na

investigação.

Portanto, através da Fotoetnografia foi possível trazer à tona a referida reflexividade

metodológica por meio do olhar antropológico de Achutti (1997, p. 95), o qual defende a

70

fotografia como prática etnográfica ao estabelecer um diálogo com o campo de conhecimento

da Antropologia Visual. Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua totalidade,

partindo da compreensão de fenômenos particulares e dialogando com a teoria selecionada,

bem como, com as vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais. Por esse motivo,

a inspiração etnográfica abarca a perspectiva dialética, assim como, a comparação, a densidade

descritiva, o significado, sua organização e variações (GEERTZ, 1989; MATTOS, 2011).

Etimologicamente, a palavra etnografia deriva do grego “graphein” significa escrever

sobre um tipo particular, um “etn(o)” ou uma sociedade em particular, remete à descrição de

um povo “ethnos”. A etnografia desenvolve-se no final do século XIX e início do século XX,

como a “escrita do visível” que dependerá “das qualidades de observação, de sensibilidade ao

outro, do conhecimento sobre o contexto estudado, da inteligência e da imaginação científica

do etnógrafo” (MATTOS, 2011, p. 54).

Para Geertz (1989) o método etnográfico representa um risco elaborado para uma

descrição densa da realidade, pois, envolve uma observação intensiva no ambiente natural e a

imersão do pesquisador na situação para permitir a compreensão do fenômeno estudado.

Corroborando com essa visão, Mattos (2011) afirma que a etnografia busca uma descrição mais

completa possível sobre a ação do sujeito e o significado das percepções imediatas que eles têm

acerca do que ele faz, esta descrição é sempre realizada com a comparação etnológica em mente,

pois constitui a escrita do visível.

Diante deste desafio, foi preciso fazer algumas adaptações ao método fotoetnográfico

adequando-o ao entendimento infantil, facilitando, assim, seu manuseio e compreensão. Assim,

seguindo essas premissas fundamentais, integrei às perspectivas fotoetnográficas a

reflexividade autobiográfica, construída através do uso combinado de narrativas imagéticas e

autobiográficas agregadas a estratégias etnográficas desenvolvidas junto à criança-sujeito.

Neste arranjo ensaístico, a pesquisa fotoetnográfica de caráter autobiográfico foi

realizada durante os meses de janeiro a julho de 2017, junto a uma criança de 6 anos, do sexo

feminino, de classe média, nascida em pleno século XXI e que participa ativamente da cultura

virtual através de redes sociais como Facebook e Instagram, de desfiles de moda, concursos de

beleza e programa de TV local, onde divulga seus vídeos e fotografias. O processo de geração

de dados43 intercalou diferentes procedimentos, desde observações participantes, conversas

informais, diário fotoetnográfico, narrativas autobiográficas, seleção de fotografias dispostas

fisicamente em álbuns de família e disponíveis digitalmente em pen-drives, além de imagens

43 Serão especificadas no ensaio 3 deste estudo.

71

publicadas em redes sociais como Facebook, YouTube e Instagram. Como processo etnográfico

integrado à metodologia fotoetnográfica, também foram realizadas saídas externas em espaços

públicos como shoppings e eventos sociais que faziam parte das rotinas da criança-sujeito, na

tentativa de registrar através de fotografias e filmagens44 situações do cotidiano e conhecer suas

particularidades culturais.

A seleção das imagens para compor a narrativa fotoetnográfica autobiográfica foi

realizada pela própria criança, desde escolha à contextualização histórica e cultural da imagem

a partir da estratégia de interpretação memento. Retomei, neste aspecto, a perspectiva heurística

e metodológica do memento, como movimento de interpretação para aproximação e

compreensão do objeto de investigação, onde a criança pôde reviver cenas de sua própria

infância dando novos sentidos e interpretações aos fatos e experiências, levando-a, em seguida,

a compreender a realidade retratada de forma crítica e reflexiva.

Portanto, o corpus imagético selecionado serviu de base para composição da narrativa

fotoetnográfica produzida, narrada e interpretada pela própria criança-sujeito. Concomitante a

essa etapa, também analisei a Fotoetnografia produzida pela criança a partir do olhar ético,

crítico e analítico de pesquisadora, estabelecendo para tanto, o diálogo transdisciplinar entre as

bases epistemológicas da Sociologia da Infância e as demais ciências que integraram a pesquisa.

Tendo em vista a complexidade metodológica deste ensaio, foi necessário desenvolver

outros caminhos investigativos, principalmente, relacionados à geração de dados durante a

pesquisa empírica junto à criança, desse modo, retomarei no próprio contexto do ensaio 3, os

fundamentos teóricos e metodológicos elaborados e empreendidos, especificamente, para este

fim.

Em suma, como investigadora, busquei compreender o objeto de estudo a partir desses

três campos analíticos, clarificando não somente o resultado, mas o processo e suas implicações

para a compreensão da criança, de suas infâncias e culturas. Neste diapasão, esta tese

caracteriza-se como uma pesquisa transdisciplinar de abordagem interpretativa (GRAUE;

WALSH, 2003)45 e método fotoetnográfico, que combinou diferentes estratégias de geração,

tratamento e análise de dados. Em vista disso, inicialmente, as análises foram realizadas a partir

do movimento de interpretação memento, em seguida, confrontadas e discutidas à luz do rigor

44 As gravações em vídeo serviram apenas como recurso de apoio às descrições e análises dos dados. 45 Graue e Walsh (2003, p. 34, grifo do autor) preferem a denominação interpretativa à qualitativa dada à

sua amplitude e por “evitar a conotação de não quantitativa que o termo ‘qualitativa’ adquiriu. Os autores

fazem uma releitura do termo proposto para designar de forma mais abrangente as abordagens “alternativamente designadas por etnográficas, qualitativas, com observação dos participantes, estudos de

caso, interaccionisto-simbólicas, fenomenológicas, construtivistas ou interpretativas”.

72

interpretativo (GRAUE; WALSH, 2003), transdisciplinar multireferencial (SARDELICH,

2006) e crítico-cultural da Cultura Visual (HERNANDEZ, 2000; MIRZOEFF, 2003;

KELLNER, 2013; CARLOS; FAHEINA, 2010).

O tratamento transdisciplinar surge do questionamento do modelo firmado de ciência

cartesiana que estabelecia a investigação do fenômeno a partir de limites nítidos entre

disciplinas, em contraposição, assume uma racionalidade holística do conhecimento onde o

processo de construção do conhecimento passa a ser dinâmico, complexo e híbrido, no entanto,

“não se trata da velha interdisciplinaridade, cujo objetivo consiste apenas em cruzar dados e

procedimentos de vários ramos do saber moderno, de modo a produzir um discurso sobre o

objeto de estudo a partir de vários ângulos ou diversos pontos de vista” (DUARTE JR., 2000,

p. 34). Essa mudança de visão de conhecimento científico ocorre em decorrência das

modificações culturais da sociedade atual marcada pela globalização e pelas novas formas de

conhecimento, comunicação e informação.

Portanto, o projeto de uma transdisciplinaridade parece ter seu ponto de

partida num estágio anterior ao da constituição mesmo da razão pura. Ou seja,

antes de esta razão criar as normas para a sua atuação dentro de um rigor científico que ela mesma engendra, há que se construir um entendimento mais

amplo do mundo, no qual os dados sensíveis da realidade não sejam elididos.

O conceito de transdisciplinaridade deve, pois, começar na atitude humana perante a vida, em que estejam presentes tanto a abstração generalizante

quanto a percepção concreta de particularidades (DUARTE JR., 2000, 36).

Em diálogo com as concepções transdisciplinares de produção de conhecimento, as

pesquisas interpretativas assumem necessariamente, a dimensão qualitativa para descrever a

complexidade de uma determinada hipótese ou problema, analisam a interação de certas

variáveis, compreendem e classificam processos dinâmicos experimentados por grupos sociais,

apresentam contribuições no processo de criação ou formação de opiniões de determinado

grupo e permitem, em maior grau de profundidade, a interpretação das particularidades dos

comportamentos ou atividades individuais (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

À exemplo do caráter transdisciplinar, a abordagem qualitativa, assumida nesta tese

como interpretativa, permitiu descrever a complexidade do problema e compreender os

processos dinâmicos experimentados durante a pesquisa, tal perspectiva, contribuiu para o

processo de criação e sistematização das análises, e em maior grau de profundidade, possibilitou

a interpretação das particularidades do objeto e do sujeito investigado (BOGDAN; BIKLEN,

1994; GRAUE; WALS, 2003).

Para Graue e Walsh (2003) o estudo interpretativo tem o objetivo de investigar a

73

realidade manifestada nas experiências e comportamentos humanos em seus contextos reais,

descreve consubstancialmente as situações do cotidiano para melhor compreender as

particularidades do objeto, daí a necessidade de criar estratégias e procedimentos rigorosos

quanto ao registro e à condução da pesquisa.

Portanto, partindo da concepção sociocultural de construção do conhecimento, a leitura

da realidade foi feita de forma interpretativa, baseada na interação entre pesquisador-objeto e

sujeito-objeto, através de uma prática relacional e dialógica.

O ato de ler um texto ou uma imagem é, pois, um processo interpretativo. O

sentido é gerado na interação do leitor com o material. O sentido que o leitor vai dar vai variar de acordo com os conhecimentos a ele(a) acessíveis, através

da experiência e da proeminência cultural. Algumas leituras poderão ser bastante universais dentro de uma cultura, outras serão mais idiossincráticas

(PENN, 2002, p. 324).

De acordo com Martins (2012, p. 73) “na perspectiva da cultura visual a interpretação

se constitui como prática social que mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da

memória social construída pelo sujeito”, deste modo, as interpretações são representações

decorrentes do imaginário social do qual o sujeito faz parte, consequentemente,

A interpretação é um ato complexo que se realiza a partir da interpelação de várias práticas sócio-ideológicas e, por esta razão, está implicada em relações

de concordância, resistência ou crítica a algo já valorado e de alguma maneira

organizado, algo diante do qual se adota, de modo responsável, uma posição valorativa (MARTINS, 2012, p. 75).

Nesta mesma perspectiva, a análise transdisciplinar multireferencial da Cultura Visual

direciona o olhar para a compreensão integral da imagem, desde os aspectos valorativos até os

significados culturais que dão sentido ao representado, identificando sentimentos,

subjetividades e identidades do representante, ou seja, daquele que vê (SARDELICH, 2006, p.

465).

Com base no método fotoetnográfico, o caráter descritivo no tratamento das narrativas

visuais à luz de concepções históricas, culturais e sociais estabelecidas sobre as categorias

crianças, infâncias e culturas infantis ao longo dos séculos, possibilitou a análise interpretativa

referente a cada campo de análise. Dessarte, a interlocução entre concepções de crianças e

infâncias remeteu a este movimento dialógico em que a qualidade dos resultados estava sempre

em vias de se transformar, sempre em direção a um novo começo, por outro lado, condicionava-

se, reciprocamente, pelos fenômenos que as rodeavam. Nessa perspectiva, os aspectos da

realidade foram analisados do ponto de vista das condições que os determinavam e, assim, os

74

explicavam em cada situação singular refletida.

Portanto, através da perspectiva interpretativa que exige do investigador a descrição

precisa das informações sobre os fatos e fenômenos de determinada realidade (TRIVIÑOS,

1987) busquei retratar quem são essas crianças e compreender como as concepções de infância

e culturas infantis foram sendo histórica e socialmente constituídas para perceber em que

circunstâncias a criança exerce sua alteridade sendo protagonista da sua própria história.

Por fim, cumpridas todas as etapas éticas como: submissão do projeto ao Comitê de

Ética em Pesquisa do Centro de Ciência da Saúde da UFPB; coleta das assinaturas nos Termo

de Assentimento (TA); Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), Termo de

autorização do uso de Imagem (TAI), foi dado prosseguimento à pesquisa.

A seguir, sistematizo a estrutura da tese que está dividida em três ensaios e quatro

narrativas fotoetnográficas.

75

DOS ENSAIOS ÀS NARRATIVAS FOTOETNOGRÁFICAS

A composição da tese foi pensada como uma tentativa de exploração da imagem como

narrativa integral, desse modo, inicialmente, os capítulos foram intitulados de “ensaios” 46,

fazendo alusão à linguagem fotográfica. No ensaio fotográfico, “as escolhas devem responder

aos próprios interesses e critérios do autor, sendo extremamente pessoais”, portanto, o fotógrafo

tem maior autonomia sobre sua produção e em todos os seus estágios (FIUZA e PARENTE,

2008, p. 173). Portanto, esta tese, inicialmente, assumiu a ideia do ensaio fotográfico para

estruturação de seus capítulos, onde as escrituras imagéticas corresponderiam às narrativas

fotoetnográficas produzidas a partir do diálogo entre a problematização e a análise das

produções epistemológicas e empíricas dispostas nas escrituras textuais que comporiam cada

ensaio.

De acordo com Parente e Fiuza (2008, p.164) a ideia de ensaio tem suas origens no

campo da Filosofia, mas logo ganhou força, experiência e novo significado na arte e na cultura,

ajustando-se ao campo da fotografia, e neste se destaca o aspecto experimental, ou seja, está

relacionado ao treino, teste, podendo ser utilizado em diversos seguimentos. Nesta óptica, o

ensaio não tem a obrigatoriedade de ser composto por fotografias profissionais de alta

qualidade, produzidas por equipamentos de última geração, pelo contrário, poderia assumir

formas livres e criativas de exploração da imagem através de esboços e delineamentos

produzidos em diferentes circunstâncias, deixando a critério do fotógrafo as escolhas, as

criações e as apresentações de sua composição.

No entanto, o aprofundamento da metodologia me direcionou a novas acepções acerca

desta estrutura, desta vez, caminhei pelas ciências literárias, onde a escrita ensaística, enquanto

forma e estilo de linguagem escrita, aproxima-se do método buscando construir e enunciar a

ciência (RODRÍGUEZ, 2012, p. 11). Parente e Fiuza (2008, p.164) argumentam que o ensaio

configura um estudo “menor que um tratado formal e acabado” e o ensaísta, refere-se a algum

“escritor autor de ensaios”, nos dois casos, há uma ligação com a literatura. E assim, fui tecendo

novos caminhos para apresentação da tese.

Segundo Rodríguez (2012, p. 32) escrever uma tese através de ensaios possibilita novas

“interpretações em vez de construir a sua própria, sobre um objeto definido”, pois a escrita

46 Ensaio. [do lat. Tardio Exagiu.] Significados: 1. Prova, experiência; 2. Exame, estudo; 3. Tentativa,

experiência; 4. Treino, treinamento; Ensaio [do fr. essai] Estudo sobre determinado assunto; Ensaísta [do

fr. essayiste] Escritor, autor de ensaios (FERREIRA, 1999, p. 765).

76

ensaísta é transitória, revela um “[...] conjunto de ideias que nasce para ser superado”, assim

como “no jargão dos fotógrafos, é apenas ‘um olhar’” (RODRÍGUEZ, 2012, p. 33, grifo do

autor). Neste sentido, o texto que narro imprime minhas próprias marcas, porém, se coloca

como uma narrativa que desafia novas interpretações,

E a tese, por sua vez, tem o mesmo status da narrativa: também é a representação de um conceito principal que assume no início uma missão, a

de interagir, combinar-se e sobreviver, como um protagonista de histórias

antigas, aos extremados desafios que lhe serão impostos, aos desafios da dialética (RODRÍGUEZ, 2012, p. 77).

Ao tecer esta tese, intencionei não só a legitimidade científica, mas, a produção de um

texto narrativo harmônico que motivasse a sua própria escrita, e consequentemente, sua leitura.

Dessa forma, manter o diálogo com o leitor foi um dos motivos que me fizeram optar pela

escrita da tese como ensaio, pois, o ensaio abre espaço para o diálogo e para uma narrativa

criativa. Assim, conduzi a narrativa através do ensaio-tese, que conforme Rodríguez (2012, p.

58) traz uma vantagem, a de “[...] assumir a existência de um narrador e, daí, de todas as suas

limitações”.

Nesta óptica, estou ciente de que as lacunas que nela [a tese] se formam, serão

preenchidas em seu processo de compreensão a partir do olhar do Outro. Dito isto, o texto que

narro, pretende ser:

[...] um espaço de criação e desenvolvimento [...] porque devolve ao leitor seu

raciocínio, suas lembranças. Não é mentira que o bom texto científico leia ao

leitor, amarrado por esses elementos amplos de subjetividade e remissão intertextual: aquela imagem de que à roda da bicicleta não são tão importantes

os raios de alumínio quanto o espaço que há entre eles (RODRÍGUEZ, 2012, p. 95).

Nesta perspectiva, estes espaços também me interessam. E “Se posso demonstrar tal

aproximação, justifico que o ensaio seja um modo mais realista de expor a ciência humana”

(RODRÍGUEZ, 2012, p. 58). No entanto, chegar ao enquadramento do método exigiu não só

esforço intelectual, como também certo esgotamento emocional, em que a solidão da escrita

dava vazão às incertezas, dúvidas e o medo de errar. Incertezas, pela escolha metodológica - a

fotoetnografia, por se tratar de uma abordagem recente que se arquiteta principalmente, no

campo da Antropologia Visual mirando seus olhares para o estudo de determinados grupos

étnico-culturais e fenômenos sociais com foco nas experiências etnográficas direcionadas

principalmente à geração adulta. Dúvidas - quando me questionava sobre a construção das

narrativas imagéticas, no que concerne à seleção de imagens para compor as fotoetnografias,

77

se eu poderia utilizar imagens não produzidas por mim que estavam dispostas em estudos e

pesquisas científicas ou em acervos familiares, tendo em vista que a intenção da revisão de

literatura era justamente selecionar imagens em trabalhos com fotografias produzidas pelo/a

pesquisador/a durante a pesquisa empírica. Ou quando me ocorria pensar na possibilidade de

mesclar as imagens desses acervos com fotografias produzidas por mim durante a pesquisa

empírica no intuito de compor a fotoetnografia e consequentemente, como manter a coerência

e o rigor da Fotoetnografia nas interações junto às criança-sujeitos e nessa construção utilizar

fotografias de forma mesclada. E o medo de errar – quando após muitos momentos de profunda

reflexão, monólogos e “diálogos” epistemológicos, optava por uma ou outra decisão. Ah, como

eu queria uma conversa com Achutti!

Como isso não foi possível, o que me restou foi a intuição e com ela a ousadia de criar.

Arrisquei-me a aventurar por mares nunca antes navegados e permaneci (não só por teimosia),

com o desafio de cumprir a pretensiosa, e até audaciosa, missão de manter a amplitude do tema.

Assim, neste trabalho de tese, tento seguir o rigor acadêmico da pesquisa científica, mas, faço

alguns ‘contornos’ metodológicos necessários à aplicabilidade dos procedimentos e,

consequentemente, à sua inteligibilidade. Neste sentido, as próximas páginas pretendem ser

apenas uma síntese reflexiva de uma estudante de doutorado em educação comprometida com

os estudos da criança, que pretende contribuir com a visibilidade da Sociologia da Infância nos

cenários educacionais, políticos e científicos no Brasil, sobretudo, na região Nordeste do país.

E, principalmente, contribuir com outras formas de reflexionar a criança, reconhecendo o papel

da Cultura Visual na in/formação das culturas infantis, bem como, a importância da

fotoetnografia como estratégia metodológica viável e eficaz aos estudos e pesquisas

relacionados à infância a partir de um diálogo transdisciplinar.

Feitos esses esclarecimentos, a tese que ora intento defender está organizada em três

ensaios, onde apresento as discussões e análises das narrativas fotoetnográficas referentes aos

determinados campos analíticos. Cada ensaio é precedido de um prólogo, que dá início à

discussão introduzindo o tema com o qual os demais elementos dialogam. E sucedido de um

curto epílogo que resume a discussão empreendida e aponta direcionamentos para os próximos

textos.

Para facilitar a leitura e compreensão das narrativas fotoetnográficas, os ensaios se

apresentam subdivididos em capítulos e subcapítulos. As narrativas que possuem intenções

visuais em si, possuem uma sequência lógica e necessária que abriga conhecimento e sentido

(ACHUTTI, 2004, p. 87) dialogando, diretamente, com os textos anteriormente escritos, por

conseguinte, se oferecem, novamente, ao olhar, como reminiscências e projeções que se

78

entrecruzam com a realidade e a subjetividade de quem as vê.

Em se tratando da disposição das imagens, Achutti (2004, p. 109) também sugere que

as narrativas sejam compostas por uma sequência de fotografias relacionadas entre si, sem

nenhum texto intercalado, desse modo, a narrativa “deve ocorrer unicamente pelas imagens que

apresentem, em si e entre si, uma construção de sentido” (BIAZUS, 2006, p. 304). No entanto,

isso não significa afirmar que as informações escritas percam seus espaços e importância para

a composição narrativa visual, pois,

Essa precaução não impede que certas informações escritas possam ter sido

anteriormente dadas àqueles que vão mergulhar na narrativa visual, isto é, a justaposição dessas duas formas narrativas é possível e mesmo desejável, mas

é importante notar que o ideal seria que cada tipo de escritura fosse oferecido ao leitor separadamente, de forma que cada uma conservasse todo o seu

potencial. Trata-se de escrituras diferentes que devem ser então oferecidas e

abordadas de maneiras diferentes (ACHUTTI, 2004, p. 109).

Nesta perspectiva, o que Achutti (2004) propõe não é uma ruptura, mas, uma análise

que demonstre o potencial narrativo de cada escritura, favorecendo o enriquecimento da

descrição do fenômeno em toda sua complexidade. Porém, conforme alertou Achutti (2004, p.

85), para não “cair na armadilha do estetismo e do puro espetáculo” a disposição das duas

escrituras deve dar atenção particular aos contextos culturais, históricos e sociais de cada

detalhe empírico da vida cotidiana, neste caso, da realidade social das crianças, que muitas

vezes permanecem invisíveis à primeira vista, mas logo são descobertos “por detrás das

aparências”, ou seja, são os “não-ditos” da imagem que também “expressam a realidade e que,

escapando do discurso verbal [...] podem ser captados e restituídos por meio da fotografia”.

Portanto esta tese apresenta-se dividida em 3 ensaios.

No ensaio 1, “O Histograma da Tese: por uma Fotoetnografia da Infância”, discuto as

bases epistemológicas e metodológicas que fundamentaram a pesquisa, enfatizando as

construções metafóricas nas quais as análises foram empreendidas. Neste sentido, reflexiono a

fotografia enquanto fenômeno, ação da memória capaz de (des)velar a realidade a partir dos

conceitos de “pele” (SAMAIN, 2012, p. 160) e “magia” (FLUSSER, 1985, p.5) e à luz das

perspectivas antropofilosóficas da imagem; Na sequência, destaco o memento como movimento

de interpretação da imagem através do reviver, sentir e compreender como devir criador,

empreendido durante a análise de dados da pesquisa e complemento descrevendo a

sistematização da leitura e compreensão das imagens a partir da descrição em high key e da

contextualização em low key. Após a caracterização das bases epistemológicas e metodológicas,

discorro sobre a Fotoetnografia no cenário acadêmico, ressaltando, principalmente, as pesquisas

79

relacionadas à infância. Por fim, exponho a narrativa visual construída a partir da realidade das

infâncias magicizadas em peles que performatizaram as culturas infantis nas pesquisas

fotoetnográficas empreendidas no Brasil.

No ensaio 2, “As culturas infantis nas multimagens de crianças: uma fotoetnografia

panorâmica conceptual”, problematizo as concepções e representações de crianças, infâncias e

culturas infantis sob perspectivas históricas e sociais, evidenciando os marcos paradigmáticos

da História Social da Criança, da Sociologia da Infância e da Cultura Visual. Em seguida,

adentro no universo das visualidades, procurando estabelecer conexões teóricas e empíricas

sobre as concepções de crianças e infâncias presentes na Cultura Visual em contraponto com o

que se narra e se discute sobre infância contemporânea, considerando três eixos: publicidade e

consumo; adultização e erotização da infância e as novas e atuais identidades infantis. Na

sequência, apresento as concepções de participação e protagonismo infantil a partir da imagem

da criança sociológica e finalizo com uma narrativa visual que abrange pinturas e fotografias

de crianças que expressam suas culturas e realidades através de olhares que permeiam desde as

invisibilidades ao protagonismo da criança, ou seja, do homúnculo à criança social.

No ensaio 3, “O protagonismo da criança na alteridade da infância: da fotografia à voz”,

desenvolvo a Fotoetnografia como uma estratégia narrativa autobiográfica para pesquisa com

criança. Desse modo, sistematizo os procedimentos metodológicos da pesquisa empírica em

quatro passos: seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito; sistematização dos

encontros domiciliares e externos; produção do diário fotoetnográfico e produção da

Fotoetnografia Autobiográfica – memento. Por conseguinte, ressalto algumas evidências do

protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica e reflito sobre as

implicações da Cultura Visual para a construção da identidade da criança na

contemporaneidade. Neste ensaio, apresento narrativas visuais que intercalam fotografias do

acervo familiar e fotografias realizadas durante a pesquisa de campo. Trata-se de uma

fotoetnografia autobiográfica construída pela criança sujeito da pesquisa, em que ela discorre

sobre sua história de vida a partir de imagens selecionadas e narradas sob suas próprias

percepções. Desvela também o cotidiano da pesquisa empírica realizada junto à criança,

destacando seus modos de ser e de constituir sua cultura. Intencionei com este ensaio, defender

uma nova imagem para a criança sociológica na perspectiva da Sociologia da Infância – a

imagem da criança protagonista, que exerce sua participação na sociedade de forma ativa,

criativa e reflexiva.

Por fim, tendo em vista que o conhecimento científico é um processo que está sempre

sujeito a refutações e ampliações discursivas e conceptuais, não seria pertinente encerrar a tese

80

com uma conclusão “fechada” em argumentos fixos, portanto, retomo os resultados dos três

ensaios para compor o que intitulo de “Por uma in/conclusão”, pois, considerando a

complexidades das infâncias em suas variadas manifestações culturais, em suas relações de

alteridade e em suas potencialidades criativas, participativas e autênticas, será preciso olhar

para elas com,

[...] os olhos de Alice e ver que tudo que se vive nela, se vive com os olhos

fechados e que basta abri-los para que a vida desponte a sua frente. Olhar para

estas infâncias, quem sabe, com os olhos cheios de vida que queremos para todas as crianças, porque só as crianças conseguem espelhar a vida no seu

olhar. Olhar [...] olhar as infâncias com óculos dos sonhos infantis. E, como

Alice, viver de novo toda a astúcia de jogo de cada uma das infâncias e dos dias passados nos verões e invernos, não só de seu futuro, mas acima de tudo

do seu presente. Talvez assim cada criança possa jogar o jogo da vida sem que seja preciso que um Rei ou uma Rainha continue gritando: cortem a cabeça

daquele! Cortem a cabeça daquele! (DORNELLES, 2005, p. 102).

E cada olhar é único.

81

ENSAIO 1

O HISTOGRAMA DA TESE…

Por uma Fotoetnografia da Infância

Na linguagem fotográfica, o histograma é um gráfico

produzido pela câmera que representa o nível de exposição

da imagem. Nele se encontram as informações técnicas

adequadas à luminosidade necessária para a obtenção de

uma imagem ideal. O histograma mede o equilíbrio entre

luzes e sombras, determina a estabilidade perfeita entre as

cores buscando, juntamente com a percepção do olhar do

fotógrafo, obter o resultado esperado para a fotografia.

Portanto, o histograma é um componente fundamental

para a produção da imagem técnica e sua leitura

indispensável para a compreensão da realidade congelada

no click fotográfico. Nesta perspectiva, o histograma da

tese foi organizado com o objetivo de apresentar a

sistematização da pesquisa, destacando os elementos que

compõem o trabalho teórico e metodológico que dão

sustentação e equilíbrio à tese que intento defender. Com

isso, neste espaço, procuro facilitar a leitura e compreensão

global da tese como ensaios fotoetnográficos orquestrados

mediante a harmonia de palavras e imagens que propõe o

diálogo entre si, mas, que em cada situação particular,

refletem e promovem novas narrativas e interpretações

mediante outros e novos olhares...

82

PRÓLOGO

...Sobre o Memento

Certa ocasião, o grande amigo filósofo Daniel Figueiredo, da mesma turma de

doutorado, leu um pequeno trecho da minha tese e disse: “essa parte que você coloca como

reviver, sentir e compreender, me lembra um filme chamado “Memento”, assista que você vai

gostar, pois dialoga exatamente com o que você está tentando elaborar”. Essas palavras,

inicialmente, soaram como uma simples e interessante indicação, mas, não me parecia ser uma

ideia legal para tese, pois eu já tinha um “corpus” bastante diversificado e acrescentar filme à

discussão me traria outras problematizações necessárias que, infelizmente, não daria tempo de

cumprir. No entanto, assim que cheguei em casa, imediatamente localizei o filme na Internet e

assisti, não só uma vez, duas vezes, dada a sua complexidade. E a todo o momento cada cena

me fazia perceber que meu amigo tinha razão.

O filme “Memento” 47, traduzido para o Brasil como “Amnésia48”, é uma produção

norte-americana escrita e dirigida por Chistopher Nolan que trata de questões relacionadas à

memória, percepção e vingança. O drama vivido por Leonard (Guy Pearce), também chamado

de Lenny por alguns personagens, gira em torno de sua perda de memória causada por uma

pancada que recebeu na cabeça por ocasião de um assalto, que resultou no estupro e possível

assassinato de sua esposa. Neste ensejo, ele consegue matar um dos dois assaltantes, mas o

outro consegue escapar. E assim começa a saga de Lenny: encontrar e matar o outro assaltante.

O filme se inicia pelo final da história, isso cria certa nostalgia, mas, as narrativas que

acontecem em seguida dão todo sentido à trama. O filme é apresentado em cenas súbitas,

algumas em preto e branco, outras coloridas, e por vezes desconexas, levando-nos a falsas

47 Ficha técnica do filme Memento (2000): Origem: EUA; Gênero: drama suspense; Duração: 113 minutos.

Elenco: Guy Pearce, Carrier-Anne Moss e Joe Pantolian. QRcode 12: Trailer do filme Memento - YouTube

filmes.

48 “Amnésia” refere-se à ausência de memória ou perda de memória constante ou episódica, temporária ou

permanente, é classificada em: amnésia anterógrada que ocorre após a lesão causando deficiência em

formar novas memórias e amnésia retrógada também ocasionada após uma lesão acarretando a perda da memória anterior ao trauma (ZIMERMAN, 2012). O filme tenta caracterizar a perda de memória de

Lenny como anterógrada, no entanto, o próprio Lenny não assume seu problema como amnésia.

83

impressões. Desse modo, as cenas decorrentes mostram a difícil situação de Lenny em enfrentar

a perda de memória para conseguir atingir seu objetivo. Tendo em vista que ele não consegue

armazenar mais do que 10 ou 15 minutos de novas memórias, ou seja, a cada intervalo, ele

recomeça todo o processo de rememoração e investigação, duas das poucas memórias que

permanecem são as vividas com sua esposa antes do crime e uma em que ela aparece ferida no

chão do banheiro.

Para superar o problema da falta de memória, Lenny registra os acontecimentos através

de fotografias que ele guarda sempre consigo e faz inúmeras tatuagens em várias partes do seu

próprio corpo. Estas situações acarretam uma série de consequências na trama, por isso, o

enredo é construído de forma fragmentada, como se o espectador estivesse com a mesma

síndrome (ironicamente falando). Por isso, a necessidade acompanhar cada detalhe das cenas

para não perder nenhuma pista desse curioso mistério. Minha intenção aqui não é resenhar o

filme, mas, destacar a importância dos registros imagéticos na perspectiva do Memento, para a

interpretação das reminiscências (memória). Ainda darei alguns spoiles49 do filme, mesmo

assim, vale a pena assistir, surpreendam-se.

Mas, voltando à questão, como eu poderia articular e fundamentar o Memento à

perspectiva do “reviver, sentir e compreender” na minha tese? E como estabelecer esse diálogo

com a Fotoetnografia?

As respostas estavam justamente nas estratégias que Lenny utilizava como artefatos

acionadores de memória, ou seja, as fotografias e as tatuagens. Nas imagens ele registrava suas

rotinas e investigações e nelas colocava algumas anotações como lembrete, e nas tatuagens ele

gravava as principais pistas e as futuras ações que ele deveria realizar. Para Lenny, a verdade

estava naquilo que ele mesmo havia registrado como fato. Neste sentido, as fotografias e

tatuagens adquiriam poder de verdade, por mais que surgissem novas situações, ele só confiava

em seus registros imagéticos e no que seu corpo o fazia lembrar. Desse modo, o corpo (matéria)

sofria ação da memória (alma) e, consequentemente, a memória deixava de ser apenas uma

abstração, materializando-se através das imagens.

Da relação entre corpo-matéria e alma-memória muito já foi dito, mas, este assunto está

longe de ser esgotado. Não pretendo fazer nesse ponto do texto, um diálogo aporético sobre

estes dilemas, o qual será realizado nos ensaios a seguir, mas, considero importante revisitar

alguns conceitos da Filosofia clássica que são bem representativos para ressignificar o conceito

49 Spoiler é um termo de origem inglesa que deriva do verbo spoil, significa estragar, desse modo, dar

spoiler significa revelar informações sobre o conteúdo de algum filme ou livro para alguém que ainda

não o tenha visto.

84

de memento, assim, remeto às reminiscências do idealismo platônico como bases para inspirar

novas possibilidades metodológicas de se trabalhar as visualidades, considerando tanto os

aspectos da racionalidade científica quanto às abordagens ontológicas e reflexivas da imagem

através do “reviver, sentir e compreender” empreendido nesta pesquisa.

O conceito de reminiscência em Platão assume o conhecimento como um processo de

anamnese, isto é, uma forma de recordação (PLATÃO, 2001, 81a1-d5, p.51-53).

Para o filósofo a alma humana vivia anteriormente no mundo inteligível ou das ideias

tendo acesso e domínio da verdade, possuía uma ciência absoluta. Ao vir para o mundo sensível,

perdeu a noção de ciência absoluta, tornando-se necessário uma rememoração, uma

“revivescência”, que significa voltar a viver trazendo à tona as memórias já vivenciadas no

mundo das ideias (PLATÃO, 1972, p.72e-77a). Portanto, para este filósofo, a imortalidade da

alma coloca a reminiscência no centro do conhecimento, de modo que despertam as lembranças

adormecidas/esquecidas.

Na óptica do filme, o conceito memento significa a ação de recordar, lembrar,

rememorar fatos e informações do passado e do presente a partir de elementos visuais, ou seja,

o memento se inicia num processo de identificação imagética, em que através das fotografias e

tatuagens as memórias são acionadas e o conhecimento rememorado. Deste processo, decorrem

lembranças, reminiscências do passado que se entrecruzam a elementos do presente e do futuro,

gerando outras sensações que reforçam e/ou modificam as concepções ontológicas e subjetivas

do sujeito, com isso, o passado é constantemente submetido a novas interpretações que

direcionam e projetam o pensamento em ações.

Esse processo pode ser entendido a partir da concepção flusseriana sobre pensamento

imagético e pensamento conceptual. Para Flusser (2007, p. 117) pensamento imagético é a

tradução do fato em imagem e pensamento conceptual a tradução da imagem em conceito, e

nesse movimento de retroalimentação, se elabora um modelo de pensamento adequado a

determinado fato. Ou seja, “o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos.

Ele é capaz de transformar o conceito em seu ‘objeto’ e pode, portanto, tomar-se um

metapensamento de um modo de pensar conceptual” (FLUSSER, 2007, p.118).

Por exemplo, no caso do filme, as fotografias e tatuagens são traduções do pensamento

imagético de Lenny que representam situações reais que ele mesmo registrou como verdade.

Ao formular explicações sobre as imagens que vê, ele traduz a imagem em pensamento

conceptual, o que resultará, necessariamente, em pensamento imagético, que, novamente serão

traduções dos fatos em outras imagens. Considerando que “os filmes são fotografias que

‘falam’" (FLUSSER, 2007, p. 109, grifo do autor), eles também podem ser entendidos a partir

85

deste processo de retroalimentação.

Portanto, na sequência explicito algumas conexões que foram fundamentais para este

processo de ressignificação conceptual da categoria memento para tese. No entanto, estou ciente

de que as relações inteligíveis que estabelecemos entre assistir um filme e ver uma imagem são

diferentes, porém, em muitos pontos se convergem e se complementam, bem como ressaltou

Samain (2012):

Pois, é verdade, não olhamos da mesma maneira uma fotografia ou as imagens

que um filme desenrola. Nossas posturas são fenomenologicamente diversas.

Ver um filme não é olhar para uma fotografia. São atos de observação, posições do olhar, distintas. “Assiste-se” a um filme, “mergulha-se” numa

fotografia. De um lado, um olhar horizontal, do outro, um olhar vertical,

abissal. Enquanto as imagens projetadas levam o espectador num fluxo temporal contínuo, que procura seguir e entender, as fotografias, por sua vez,

o fixam num congelamento do tempo do mundo e o convidam a entrar na espessura de uma memória. Diante da tela, somos viajantes e navegadores;

diante da fotografia, tornamo-nos analistas e arqueólogos (SAMAIN, 2012, p.

159).

O reviver - conhecimento que retorna, revivesce, rememora (mimese). São

reminiscências, lembranças, mementos em busca da verdade, do discernimento. Nesta

perspectiva, “sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar

de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante”

(SAMAIN, 2012, p. 158).

A vida de Lenny é constituída de recomeços, cada vez que ele esquece e todo o processo

de recordação se reinicia, ele passa a estabelecer novas conexões entre seu corpo e sua alma,

não que essas conexões o levem de fato à verdade, mas para ele, a verdade sempre estará nesses

pequenos flashes de memória que, ora sentidos na alma, ora visíveis no corpo. Quando Lenny

recorre às fontes imagéticas, ele está à procura de significados, para tanto, aciona na memória

as lembranças que foram esquecidas, assim, ele revive cada cena na transição entre o real, o

imaginário, a consciência e a razão, o pensamento e o sentimento, despertando assim, em sua

alma as lembranças adormecidas.

Esse movimento constante entre ignorar e saber, tal como compreendido na

revivescência do pensamento platônico, remete à ideia do “reviver” aqui empregado como

trazer à tona as informações que permeiam determinada imagem, desde sua descrição semiótica

até a contextualização histórica, cultural e social da representação.

Neste aspecto, as imagens tornam-se reminiscências, memórias de um passado vivido

que desencadeiam novas concepções do real, evidenciando formas de comportamento e de

86

relações sociais da vida cotidiana e com isso dão “pistas seguras para a compreensão de

aspectos fundamentais daquilo que se encontra guardado no mais impenetrável dos materiais,

o ser humano” (GURAN, 1998, p. 90).

O sentir - contemplação do belo. A contemplação da beleza não busca a forma estética,

mas, a essência do conhecimento. O belo, nesse contexto, torna-se a própria reminiscência

contemplada pelo olhar da alma, “é, pois, o Belo um resplandecer, um esplendor, uma cintilação

com que o supra-sensível Bem se revela na dimensão do sensível, atraindo-nos” (NOUGUÉ,

2013, p. 4).

As reminiscências que a memória de Lenny trazia no Memento desdobravam-se em

dilemas cognitivos e conflitos emocionais que inicialmente o confundiam, mas, logo em

seguida, o conformavam, à medida que as imagens iam compondo os cenários do pensamento

e transformando o cérebro (memória) de Lenny em uma nova tela para imagem (DELEUZE,

2003, p.264), permitindo ao protagonista dar outros contornos e interpretações aos fatos. Neste

contexto, pensar o Memento a partir das ideias de Platão significa afirmar que as imagens

provocam reminiscências carregadas de sensações e supostos discernimentos (verdades), sendo

necessário a reorganização do conhecimento/pensamento a partir de um diálogo inteligível e

contemplativo com a realidade (passado, presente, futuro).

Partindo desse olhar, as imagens são fenômenos, memórias, arquivos e desejos

(SAMAIN, 2012), a memória tem lugar na imagem, assim como a imagem tem lugar na

memória, é neste processo de retroalimentação que se manifesta o memento, sem começo, sem

fim, como rizomas que conectam múltiplas cadeias semióticas ramificadas em revivescências,

saberes, sentidos e emoções. Neste sentido, a perspectiva heurística e metodológica do “sentir”

no memento está implicada na chamada “civilização da imagem” que corresponde à

[...] essa chuva de imagens que, ao mesmo tempo, nos provoca, nos ensina,

nos inunda e nos satura. Imagens que chegam a nos fazer descobrir, é verdade, cantinhos de nossa aldeia planetária até que envesguemos. Imagens que, por

outros motivos e segredos (de estado) nos mentem ou nos foram, de antemão,

confiscadas [...]. Temos, assim, que redescobrir não apenas as funcionalidades heurísticas diversas das imagens, mas seus profundos e necessários valores de

uso (SAMAIN, 2012, p. 155).

O compreender - discernir a verdade à luz da sabedoria. A partir do dimensionamento

platônico, isto significa possuir a sabedoria de distinguir o bem, o verdadeiro, àquilo que

Sócrates chamou de “inteligência do bem” (PLATÃO, 1988, p. 215). Pensar o “compreender”

no conjunto da categoria memento, é estabelecer conexões epistemológicas com o

87

conhecimento aplicado à ciência, à cultura e à sociedade. Nesta acepção, o compreender, passa

a significar a transformação do conhecimento sensível em conhecimento inteligível, ou seja, as

ações de questionar, interpretar e confrontar as reminiscências com o que já foi refutado,

refletido e desvelado, ou seja, com àquilo que já está “bem” conhecido. Para Paviani (2012,

p.79), o termo “bem” assume distintos significados:

[...] se, de um lado, o bem é necessário para entender a justiça, de outro, a justiça não pode existir sem o bem. É nessa elasticidade e coerência dialética,

feita de divisões e sínteses, que a verdade da questão tende a se mostrar. As

ideias ou formas são alcançadas de modo processual nos debates em que as crenças dão lugar à ciência.

Lenny, tomado pelo desejo de vingança, não conseguia discernir o verdadeiro

conhecimento, a lembrança real. Tudo que ele construía a partir das imagens se transformavam

em flashes de memória que ele mesmo se fazia acreditar. Inclusive, suas próprias anotações

junto às fotografias eram equivocadas e enganadoras, tendo em vista a sua condição de

“amnésia”, pois, ele podia ser manipulado por falsas percepções, caindo em contradição com

suas próprias memórias. Como nas cenas em que Lenny contracenou com Natalie (Carrie-Anne

Moss), uma personagem intrigante que teve seu namorado assassinado e que também buscava

se vingar. Natalie se envolve com Lenny tanto para ajudá-lo, quanto para usá-lo na própria

vingança. Em uma das cenas, ela fica irritada com a perda de memória de Lenny e começa a

humilhá-lo, ele corresponde às provocações e a agride com um soco, ela continua com as

provocações, mas logo em seguida, se afasta por alguns minutos à espera que ele esqueça tudo.

Ele consciente de que vai esquecer tudo, tenta fazer alguma anotação sobre ela, mas não

encontra meios de fazer o registro. Após alguns minutos, ele esquece tudo e ela dá outra versão

aos fatos. Ele, novamente, acredita no que ela diz, e no que vê em suas fotografias.

Para Lenny, as imagens continham a “verdade”, no entanto, essa suposta verdade,

poderia também ser a manipulação de sua própria realidade. Ou seja, mesmo partindo do

princípio de que as imagens têm poder de verdade, não se pode dar a elas o status de verdade

absoluta. Daí a necessidade do discernimento – da compreensão. Nesta perspectiva, a teoria da

reminiscência invoca a consciência, o sentimento e a ação de maneira racional, pois, a razão é

o atributo da alma, em outras palavras, a razão é a conciliação da alma para sua ascensão e/ou

transição.

Este processo de compreensão me faz também dialogar com as contribuições freireanas

sobre conhecimento, pois se fundamentam no princípio do estímulo à reflexão e ação verdadeira

dos sujeitos sobre suas próprias realidades, onde o conhecimento e o saber constituem fontes

88

de libertação, esclarecimento e autonomia. Dessa maneira, priorizando a reflexão sistemática e

crítica dos sujeitos a partir do autoconhecimento, o ser humano torna-se capaz de perceber e

reconhecer seus limites e desafios, tornando-se capaz de passar de uma consciência ingênua

para uma consciência crítica (FREIRE, 2002, p. 34).

Destarte, o memento50 é assim entendido como um processo estimulador de

interpretações, que através de uma abordagem heurística e transdisciplinar consegue ser

aplicado ao contexto da Fotoetnografia na perspectiva do reviver, sentir e compreender as

imagens.

Portanto, sendo as imagens constituídas de sentidos e significados, o que as imagens de

crianças revelam sobre suas infâncias? E ainda, é possível reconhecer o protagonismo infantil

nas imagens de crianças e infâncias que apoiam os conceitos e concepções que pautam a

Sociologia da Infância nas Ciências Humanas e Sociais?

Com essas provocações, encerro esse prólogo, ciente dos limites de um trabalho

audacioso e cheio de labirintos imagéticos em que os/as convido a contemplar para “reviver”,

“sentir” e “compreender” essas infâncias que nos desafiam em suas enigmáticas e contagiantes

culturas. Desse modo, ofereço através desta pesquisa, desde a produção à apreciação, em cada

situação do olhar, uma narrativa e a possibilidade de várias significações. Todavia, destas

narrativas, sou apenas a “contadora de histórias”, onde o protagonismo é, e sempre será, das

crianças.

50 A sistematização do memento, enquanto processo metodológico, será retomada, categoricamente, na

seção 1.2 deste ensaio.

89

1 DA CULTURA VISUAL À NOVA EPISTEMOLOGIA DA IMAGEM

“A Cultura Visual é uma velha ideia pintada com tintas novas”

(TAVIN, 2008, p. 11)

Investigar as concepções sobre crianças e infâncias requer reflexionar as experiências e

comportamentos humanos em seus contextos reais, considerando as situações do cotidiano

social e cultural das culturas infantis manifestadas nas relações de alteridade e protagonismo

infantil. Neste sentido, a defesa da tese aqui empreendida, promove uma releitura crítica no

quadro estrutural funcionalista das perspectivas epistemológicas historicamente constituídas

sobre a infância, “que leva não só a considerar a criança como um ator social, mas a despir de

‘naturalidade’ e ‘desinteresse’ a visão moderna” na qual se pautou a ideia de infância e,

consequentemente, de sua educação (MARCHI, 2011, p, 392, grifos da autora).

Embora a Sociologia da Infância tenha contribuído, e ainda contribua, contínua e

significativamente para a elucidação e problematização das causas relacionadas à criança,

considero a Cultura Visual como um campo teórico indispensável para reflexionarmos as

tensões, evoluções e reconfigurações conceptuais sobre crianças, infâncias e culturas infantis.

Assim, pensar a infância enquanto fenômeno social inclui discutir sua relação com a Cultura

Visual e a Educação, tendo em vista as implicações diretas e indiretas que estas duas estruturas

ideológicas exercem no cotidiano da criança.

Para uma melhor compreensão da Cultura Visual e suas implicações na vida cotidiana,

considerei necessário flexionar os conceitos de cultura e visual a partir de uma visão crítica,

heurística e ontológica. O conceito de cultura, na Antropologia, origina-se nos princípios da

semiótica peirceana com o objetivo de investigar e apreender os significados e a densidade

simbólica que a cultura representa, considerando o contexto histórico cultural no qual foram

produzidos, assim, a cultura se constrói como um sistema simbólico, construtor de sentidos e

significados acerca das coisas, assumindo diferentes configurações. O campo da semiótica teve

como um de seus precursores o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989)

considerado desde 1945 como fundador da teoria moderna dos signos (SANTAELLA, 1989).

Para Geertz (1989, p. 135) cultura “são as estruturas de significado através das quais os homens

dão forma à sua experiência [...] e a política [...] uma das principais arenas na qual tais estruturas

se desenrolam publicamente”. Tal conceito implica diretamente na concepção e entendimento

da realidade.

O termo semiótica origina-se do grego “semeiotikos” e significa “a ótica dos sinais”,

90

portanto, é a ciência que estuda os signos e seus significados. Aplica-se ao sistema sígnico as

artes visuais, música, fotografia, cinema, vestuário, gestos, religião, entre outros signos que

estão disseminados na cultura. O campo da semiótica difere-se do campo da semiologia

(SAUASSURE, 2001), “a semiótica forma um todo do qual a semiologia é uma parte”

(DEELY, 1990, p.23). Enquanto a semiologia preocupa-se com a união do sentido com a

imagem acústica da tradição linguística, a semiótica refere-se à tradição filosófica dos signos

(SANTAELLA, 1989).

De acordo com Santaella (1989, p. 2) a semiótica norte-americana de Charles Peirce se

funda na criação de conceitos e dispositivos de indagação permitem descrever, analisar e

interpretar linguagens, porém, não substituem em si, a atividade de leitura e desvendamento da

realidade e tem como objeto de investigação “todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem

por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno

de produção de significação e de sentido”.

Peirce (2005) fundamenta a análise semiótica através de três instâncias de categorias

universais que partem da compreensão dos signos e significados inter-relacionados, podendo

se constituir como uma ciência interpretativa ou obter conceitos mais definidos de cultura e

imagem. Fenomenologicamente, a semiótica peirceana divide-se em três categorias:

primeiridade que consiste na representação do signo tal qual ele se apresenta, ou seja, momento

em que a consciência imediata experiência a realidade pura, não há organização, a

representação é espontânea, não há inter-relação com outros signos; secundidade que

corresponde à reação e/ou conflito diante do que a consciência imediata reconhece da realidade

cotidiana, ou seja, a consciência julga o existente relacionando o signo e seu objeto; e

terceiridade, materializa-se na inteligibilidade a partir da correlação entre o objeto e

interpretante, a interpretação da realidade, compreende o processo de mediação interpretativa,

signo de generalidade. Isso significa que, dependendo do contexto social, as ideias e os

conceitos são instituídos e culturalmente adotados por determinados grupos sociais.

De acordo com a tríade semiótica de (PEIRCE, 2005) o signo corresponde à imagem

imediata de qualquer coisa perceptível, o signo representa o sentido do objeto. O objeto é a

configuração do signo, pode ser perceptível ou imaginável, o objeto determina o signo a partir

da percepção da realidade, o signo é o próprio significado. O sujeito interpretante elabora o

signo através do pensamento inteligível, qualquer interpretante poderá lançar novos signos ao

mesmo objeto.

Geertz (2008, p. 3) avança e preconiza outros modos de conceber a análise semiológica

da cultura acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de

91

significados que ele mesmo teceu e assume “a cultura como sendo essas teias e a sua análise;

portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência

interpretativa, à procura do significado”, dessa forma, o conceito de cultura para Geertz (2013,

p.4) é essencialmente semiótico, abrange os sistemas de signos e significados,

[...] como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria

símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os

comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos

com densidade (GEERTZ, 2013, p. 10, grifos do autor).

Com isso, Geertz (2013, p. 20) ressalta que a abordagem semiótica auxilia o diálogo

com o sujeito na busca de compreender seus atos simbólicos através do diálogo e da análise do

discurso social produzido na/pela cultura, portanto, “as formas da sociedade são a substância

da cultura”. Em síntese, parto da ideia de cultura como o conjunto de experiências e

comportamentos expressos nas formas de vida humana associado diretamente aos contextos e

momentos históricos, políticos e sociais pelos quais a sociedade se constitui e é constituída.

O termo visual deriva do latim “visuālitā” [visuālis] refere-se ao “sentido da vista, a

faculdade de ver”, ou seja, compreende àquilo que pertence ou que é relativo à visão, comporta

o sentido humano da visão, corresponde a percepção do olhar em relação ao que se vê51. Essa

percepção, numa perspectiva semiótica, é a representação dos sentidos e significados dados aos

signos imagéticos num movimento de compreensão crítica e contextualização da própria

linguagem ou representação visual (SANTAELLA, 2005). Porém, a representação visual muda

de acordo com a sua relação com a realidade externa e em determinados momentos da história

e da cultura, portanto, não é estável, mas, torna-se um lugar de criação e significação

epistemológica (MIRZOEFF, 2003).

Nesse sentido, cultura e visual estão intrinsecamente interligados e retroalimentados

pelas subjetividades e diversidades humanas. As culturas compõem as visualidades e as

visualidades compõem as culturas, essa composição se dá de forma complexa, diversa e fluida,

consequentemente, subjetiva. Assim, a junção dos termos – Cultura e Visual - representa a

composição do processo inteligível e interpretativo das visualidades manifestadas nas

polissemias das culturas humanas. De acordo com Martínez, I. (2011), vista por este ângulo, a

51 As palavras em latim utilizadas ao longo da tese foram retiradas do Dicionário Latino Português

(TORRINHA, 1942) e do Dicionário Escolar Latino-Português (FARIA, 1962), em concordância com

outros sites on-line na área de linguística.

92

Cultura Visual é muito mais do que um conjunto de artefatos, imagens e leituras de superfície,

e passa a ser,

[...] el conjunto de discursos capaces de construir y desbaratar

posicionamientos acerca del modo en que estas imágenes se crean, presentan

y repercuten en las prácticas sociales. No obstante, lo que se sabe acerca de lo visual, proviene de saberes académicos, en muchos casos, ajenos al mundo

real y a las prácticas cotidianas que los jóvenes desarrollan con el mundo de

las tecnologías y los medios. Esto permite constatar que los modos y los médios de circulación de las imágenes y sus atributos han cambiado

radicalmente. Consecuentemente con ello se ha evidenciado y desposicionado la hegemonia de la academia respecto de la forma de construir y circular los

saberes. Dicho de otro modo, al nivel experiencial masivo de los usuários ante

lo visual, no es proporcional a la restringida elite dedicada al estúdio de los mismos. Evidentemente se ha re-colocado el nivel experiencial y el nivel

teórico (MARTÍNEZ, I., 2011, p. 16).

Desse modo, a Cultura Visual amplia o olhar da ciência para as imagens do cotidiano,

reivindicando o mesmo espaço e valoração dado às belas artes nos estudos das civilizações

humanas. Trata-se de uma outra forma de reflexionar a realidade visual na qual se imprimem

modos de ser, de viver e de representar as culturas e relações humanas em seus contextos

diversos, conforme destacou Mirzoeff (2003):

Una de las principales labores de la cultura visual consiste en comprender de qué modo pueden asociarse estas complejas imágenes que, al contrario de lo

que sostendrían las exactas divisiones académicas, no han sido creadas en un

medio o en un lugar. La cultura visual aleja nuestra atención de los escenarios de observación estructurados y formales, como el cine y los museos, y la

centra en la experiencia visual de la vida cotidiana (MIRZOEFF, 2003, p.

25).

Como consequência, a emergência de uma nova epistemologia da imagem, justamente

por considerar os ícones imagéticos presentes na Cultura Visual como lugares de criação e

discussão de significados (MIRZOEFF, 2003), nesta perspectiva, a importância da imagem não

está apenas no seu valor estético, mas, sobretudo, no papel social que exerce na formação das

culturas humanas (MARTINS, 2007, p. 26). De acordo com Mirzoeff (2003) não se trata de

reconfigurar o objeto de estudo da Cultura Visual, mas de ampliar sua dimensão analítica na

contemporaneidade, tendo em vista que “ahora surge la necessidad de interpretar a

globalización posmoderna de lo visual como parte de la vida cotidiana” (MIRZOEFF, 2003,

p. 19).

Em outras palavras, os estudos da Cultura Visual problematizam a forma como os tipos

93

de imagem perpassam a vida cotidiana constituindo e sendo constituída pelas experiências e

complexidades das relações humanas procurando compreender de que maneira os indivíduos

dão sentido aos acontecimentos visuais. Portanto, a Cultura Visual passa a investigar como as

experiências do cotidiano produzem, criam e disputam significados culturais que, direta ou

indiretamente, exercem forte poder de verdade, “um poder intervencionista que acaba

transformando o mundo imagético na própria vida” (MARTINS; TOURINHO, 2010, p. 138).

As pesquisas sobre Cultura Visual apresentam uma variedade conceptual que

inicialmente e de forma isolada limitavam seus estudos às disciplinas voltadas para História da

Arte e da Imagem, no entanto, com a profusão dos suportes imagéticos decorrente das

transformações tecnológicas da modernidade (GIDDENS, 1991; SANTOS, 2001) ou 2ª

modernidade (LASH, 1997; SARMENTO, 2004) em tempos de globalização (SANTOS,

2001), de expansão da indústria cultural (ADORNO, 2009; ADORNO e HORKHEIMER,

1985), eclosão da cibercultura (LEVY, 1999) e efervescência da publicidade e da moda

(LIPOVETSKY, 2009) [1] os elementos visuais passaram a ser utilizados de maneiras

inimagináveis na vida cotidiana, seja em espaços sociais e/ou científicos (BAUDRILLARD,

1991; FLUSSER, 2007; SAMAIN, 2007; KOSSOY, 2012). Este impacto tecnológico e

imagético repercutiu diretamente no campo conceptual da Cultura Visual, que passou a ser vista

como “una disciplina táctica y no acadêmica”, ou seja, “una estructura interpretativa fluida,

centrada en la comprensión de la respuesta de los individuos y los grupo a los medios visuales

de comunicación” (MIRZOEFF, 2003, p. 21-22).

Como um campo emergente, recebeu diferentes denominações. Pegoraro (2011) em

artigo esclarecedor resume os principais: Estudos Visuais (MITCHELL, 1994), Cultura Visual

(MIRZOEFF, 2002) e Estudos da Cultura Visual (SMITCH, 2008).

Mitchell (1994) compreende os Estudos Visuais como o campo de estudo e Cultura

Visual como o objeto de estudo, logo, “Estudos Visuais são o estudo da Cultura Visual”. Em

sua obra “Teoría de la Imagen”, cuja abordagem está situada na percepção da dimensão cultural

da imagem, sugere que a Cultura Visual deve ser pensada na combinação de significados e

temas historicamente específicos tendo em vista que o campo visual é constantemente

transformado pelas diversas possibilidades de ação interpretativa, as quais se constituem de

forma variada e específica inaugurando uma nova relação entre o espectador/intérprete e o

objeto do seu olhar. Nesta perspectiva Pegoraro (2011, p. 42) reafirma que Mitchell “[...] centra

suas análises na crítica à construção cultural do visual em artes, mídia e até mesmo da

experiência na vida cotidiana, enfocando a formação social do campo visual ou a sociabilidade

visual”.

94

Prerrogativas, estas, que marcaram a emergência do que Mitchell chamou de “virada

pictórica”, assim, o autor apresenta uma teoria da visualidade que concebe os estudos em sua

dimensão cultural suscetíveis à percepção e interpretação do sujeito que olha. Portanto,

[...] se trata más bien de un redescubrimiento poslingüístico de la imagen

como un complejo juego entre la visualidad, los aparatos, las instituciones, los discursos, los cuerpos y la actividad del espectador (la visión, la mirada,

el vistazo, las prácticas de observación, vigilancia y placer visual) puede

constituir un problema tan profundo como las varias formas de lectura (deciframiento, decodificación, interpretación, etc.) y que puede que no sea

posible explicar la experiencia visual, o el ‘alfabetismo visual’, basándose

sólo en un modelo textual (MITCHELL, 1994, p. 23).

Nicolas Mirzoeff (2003) na obra “Una introducción a la cultura visual” concebe a

perspectiva crítica dos Estudos Culturais, porém, dá maior ênfase à questão da cultura. Destaca

a genealogia e a condição da visualidade global/local a partir dos pressupostos dos Estudos

Culturais, assim prefere o termo Cultura Visual expandindo os objetos de estudo para o campo

das visualidades dispostas no cotidiano em suas diferentes expressividades.

Segundo Sardelich (2006), o fato de Mirzoeff (2003) afirmar que o mundo

contemporâneo é caracterizado pela visualização, não significa que, necessariamente, as

pessoas conheçam aquilo que observam. É no campo da reflexividade que os sentidos e

significados sociais se re/estabelecem.

Mirzoeff (2003) ressalta que as pesquisas desenvolvidas na perspectiva dos Estudos

Culturais buscam, em sua maioria, compreender as formas pelas quais as pessoas dão sentido à

cultura, pelo viés da Cultura Visual. Além disso, examinam como as experiências cotidianas

com o universo visual, dos vídeos às obras de arte, produzem, criam e disputam os significados

culturais. Neste sentido, as novas possibilidades de narrativas imagéticas foram os pontos de

partida para uma rede epistemológica multidimensional que buscou nos pressupostos

antropológicos e sociológicos uma redefinição conceptual e paradigmática do campo de

investigação da Cultura Visual, onde “la distancia entre la riqueza de la experiencia visual en

la cultura posmoderna y la habilidad para analizar esta observación crea la oportunidad u la

necesidad de convertir la Cultura Visual en un campo de estúdio” (MIRZOEFF, 2003, p. 19),

o que rendeu uma significativa importância para a dimensão cultural (JENKS, 1995), política

(MIRZOEFF, 2003) e crítica (HERNANDÉS, 2000) das narrativas imagéticas.

Na visão de Smith (2008) os Estudos da Cultura Visual adquirem uma perspectiva

“híbrida e inter ou multidisciplinar” prefere essa denominação para defender o potencial de

criar novos objetos de estudo, dada a “[...] convergência, ou empréstimo, de uma variedade de

95

disciplinas e metodologias” (PEGORARO, 2011, p. 42). Essa visão reforça o que outrora

Mitchell (2003) afirmou:

Los estudios visuales no son meramente una “indisciplina” o un suplemento

peligroso para las disciplinas que abordan el asunto de la visión desde una

óptica tradicional, sino que, más bien, exigen ser contemplados como una “interdisciplina” que se vale de sus fuentes y de aquellas otras disciplinas

para construir un nuevo objeto de investigación específico (MITCHELL,

2003, p. 39-40).

Ante o exposto, opto pelo termo Cultura Visual52 por desafiar as práticas do sistema das

belas artes e estender o seu foco para as visualidades produzidas socialmente ou localizadas

culturalmente na contemporaneidade e, por convergir, diretamente, com o objeto de estudo da

tese, as Fotoetnografias de crianças, infâncias e culturas infantis em suas diferentes expressões.

Assim, conforme Mirzoeff (2003), assumo a Cultura Visual como a interface entre todas as

disciplinas que dialogam com a visualidade no contemporâneo.

Sob as reconfigurações crítica e interdisciplinar, a Cultura Visual teve grande

repercussão principalmente nos Estados Unidos e Canadá a partir de estudos e pesquisas que

desenvolveram modos particulares de análise da realidade através das imagens produzidas

na/pela visualidade (FREEDMAN, 2001; 2003; DUNCUM, 2002; KINDLER, 2003, ROSE,

2007). Ramifica-se no Brasil na virada do século tornando-se uma literatura sólida

fundamentada em autores nacionais e internacionais (HERNÁNDEZ, 2000,2005; FRANZ,

2003; MITCHELL, 2003, 2009; MIRZOEFF, 2003; BARBOSA, 2005; DIAS, B., 2008;

MARTINS e TOURINHO 2009). Consolidando-se como um campo transdisciplinar ou pós-

disciplinar (MARTINS, 2008) e trans-metodológico (DIAS, B., 2008), considerado

“extraordinariamente fluido, um conceito mutável sujeito a múltiplos conflitos” (MARTINS,

2008, p. 38).

A Cultura Visual congrega discussões sobre vários aspectos da visualidade em

confluência com outros campos de estudo como a Sociologia, a Antropologia, a Semiótica, os

Estudos Culturais e Feministas e da História Cultural da Arte, sob diferentes perspectivas

teórico-metodológicas que problematizam e contextualizam os fenômenos que perpassam a

vida cotidiana e suas visualidades

Martins (2008, p. 32, grifo do autor) ressalta a volatilidade do deslocamento das imagens

e suas peculiaridades simbólicas ao afirmar que as imagens “oferecem conexões rizomáticas

52 Porém, para melhor entender a complexidade do campo de estudo, este posicionamento não

desconsidera o diálogo junto a outras perspectivas teóricas.

96

que articulam a dissolução de espaços ‘originários’ e de identidades ‘autênticas’, noções

herdadas da modernidade com a pretensão de carregar verdades insondáveis sobre arte, ciência,

história, realidade, etc.”. Como rizomas53, as imagens entrelaçam-se em conhecimentos

empíricos, estabelecem relações holísticas e interculturais com o entorno e se manifestam de

forma híbrida e complexa.

Para Jenks (1995) a Cultura Visual oferece uma teoria social da visualidade que à

vincula de maneira mais dinâmica ao contexto da cultura e da sociedade a que pertence, onde

os conceitos e concepções são construídos socialmente a partir das interpretações do ato de ver

e não de atos miméticos ou apenas perceptíveis. Já Mirzoeff (2003) amplia a discussão e destaca

a função política da Cultura Visual como elemento fundamental para o processo de

conhecimento, reflexão e compreensão da vida humana em toda sua complexidade. Assim, para

Mirzoeff (2003) a Cultura Visual não depende das imagens em si mesmas, “sino de la tendencia

moderna a plasmar en imágenes o visualizar la existencia” (MIRZOEFF, 2003, p. 19), ou seja,

parte da captura imagética das realidades que, conjecturadas e contextualizadas, transmitem

sentidos e dão significados aos fenômenos, possibilitando a compreensão da própria existência.

A partir de uma leitura crítica da Cultura Visual, Hernández (2000, p. 128) defende que

a cultura surge como um "sistema organizado de significados e símbolos que guiam o

comportamento humano, permitindo-nos definir o mundo, expressar nossos sentimentos e

formular juízos”, caracterizando assim, o papel interpretativo e reflexivo das narrativas

imagéticas. Em outras palavras, “trata-se de compreender o que se representa para compreender

as próprias representações” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 136).

Sardelich (2006, p. 465) concorda com Hernandez quando ele assume o vocábulo

“crítica” como avaliação e juízo, os quais resultam de diferentes modos de análise, como o

semiótico, estruturalista, desconstrucionista, intertextual, hermenêutico e discursivo, bem como

das ideias provenientes do pós-estruturalismo e do feminismo pós-estruturalista. Neste sentido,

ambos assumem a Cultura Visual como um campo de estudo transdisciplinar multireferencial

que transita entre:

[...] referentes da arte, da arquitetura, da história, da psicologia cultural, da

psicanálise lacaniana, do construcionismo social, dos estudos culturais, da antropologia, dos estudos de gênero e mídia, sem fechar-se nessas ou somente

sobre essas referências. Essa proposta ampla e aberta enfatiza que o campo de

estudos não se organiza a partir de nomes de artefatos, fatos e ou sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à noção de mediação de

53 Na concepção deleuziana, rizomas são sistemas conceituais abertos, que se ramificam entre si num

processo contínuo de retroalimentação. Cf. Deleuze (1995, p. 17).

97

representações, valores e identidades (SARDELICH, 2006, p. 465).

Para Hernández (2006, 2007) as imagens são mediadoras das relações sociais, derivam-

se e interagem-se reciprocamente nas formas de socialização e aculturação humanas, nas quais

cada um/a se encontra imerso, desse modo, constituem-se e são constituídas de/pelas

identidades e subjetividades que estão permeadas de efeitos de poder, saber e controle. Nas

palavras do autor: “as representações visuais contribuem, assim como os espelhos, para a

constituição de maneiras e modos de ser” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 31).

Neste sentido, torna-se necessário pensar as implicações da Cultura Visual no campo

das Ciências Humanas e Sociais, mais especificamente, no campo de uma pedagogia

intercultural. Em convergência com tal perspectiva, Sardelich (2006) sumariza algumas “pistas

de caminhos possíveis em um trabalho para a compreensão crítica da cultura visual” com base

nas contribuições de Hernandez (2000, 2002):

i. Explorar os discursos sobre os quais as representações constroem relatos do mundo social e favorecem determinadas visões sobre ele e sobre nós mesmos;

ii. Questionar a tentativa de fixar significados às representações e como isso afeta nossas vidas;

iii. Discutir as relações de poder que se produzem e se articulam por meio das

representações, e que podem ser reforçadas pela maneira de ver e produzir essas representações;

iv. Elaborar representações por procedimentos diversos, como forma, resposta e

modo de diálogo com as representações existentes; v. Construir relatos visuais utilizando diferentes suportes relacionados com a

própria identidade e contexto sociocultural que ajudem a construir um posicionamento (SARDELICH, 2006, p.468).

Gillian Rose (2007, p. 12)54 corroborando com a compreensão crítica da Cultura Visual

acrescenta três instâncias que devem preceder à análise: a primeira corresponde à “takes images

seriously” (levar a sério as imagens), ou seja, considerar o caráter legítimo da imagem para

além do contexto no qual foram produzidas, pois as representações visuais têm seus próprios

efeitos55; a segunda consiste em “thinks about the social conditions and effects of visual

objects” (pensar sobre as condições sociais e os efeitos dos objetos visuais), sendo assim, as

produções culturais são representações visuais que produzem e reproduzem inclusões e

exclusões sociais, consequentemente, é preciso refletir sobre o processo de produção da

54 QRcode 14: Gillian Rose (2007). 55 Texto original: “It is necessary to look very carefully at visual images, and it is necessary to do so because

they are not entirely reducible to their context. Visual representations have their own effects” (ROSE,

2001, p. 12).

98

imagem, as condições, os meios e as consequências sociais dessa produção56, “as

representações visuais têm seus próprios efeitos”. E a terceira "considers your own way of

looking at images” (considere sua própria maneira de olhar as imagens), neste ponto, ressalta

que as formas de ver são historicamente, geograficamente, culturalmente e socialmente

peculiares ao próprio sujeito que olha. Disto, implica a importância da reflexividade do olhar57,

em outras palavras, é preciso considerar a subjetividade de quem olha (tradução própria).

Partindo dessas premissas, esta tese considera a imagem como objeto cultural,

linguagem imagética da realidade, fonte histórica e narrativa de acontecimentos e experiências

humanas, capaz de desvelar significados e provocar sentimentos em quem registra, foi ou é

registrado, visualiza, foi ou é visualizado, sente ou é sentido através do olhar.

De maneira transversal, as imagens solidificam emoções, histórias, narrativas e

experiências que, para além de um ícone, revelam intensas características, peculiaridades e

contextos da realidade retratada, a saber, a intencionalidade da produção dessas imagens, ou

seja, por quem, para quem e sobre o que essas dialogam. Dessa forma, as imagens se tornam

“fragmentos de comunicação, memória e marca identificatória” (CARVALHO, 2011, p. 124).

Como um desmembramento do campo de estudos da Antropologia Visual, a Cultura

Visual estuda as representações que os indivíduos constroem da realidade segundo suas

características sociais, culturais e históricas refletidas em registros imagéticos. Nas palavras de

Cunha (2007, p. 138) as imagens, editadas pelos meios de comunicação ou mesmo as

fotografias amadoras familiares, “definem realidades, quem somos e quem são os outros,

levando-nos a vê-las como sendo verdadeira”, desse modo, “a função da Cultura Visual é dar

sentido a variedade infinita da realidade exterior mediante a seleção, interpretação e

representação da dita realidade” (MIRZOEFF, 2003, p.65).

Conforme a vertente transdisciplinar multireferencial, Sardelich (2006, p. 465) alerta

para o fato de que a Cultura Visual “não se organiza a partir de nomes de artefatos, fatos e ou

sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à noção de mediação, de

representações, valores e identidades”, assim, a perspectiva crítica da Cultura Visual se

direciona para a compreensão dos significados a partir da reflexão intrapessoal do sujeito que

observa e é observado, que representa e é representado, que produz conhecimento e é

56 Texto original: “Cultural practices like visual representations both depend on and produce social

inclusions and exclusions, and a critical account needs to address both those practices and their cultural

meanings and effects” (ROSE, 2007, p. 12, et. seq). 57 Texto original: “Considers your own way of looking at images. […] to this issue of reflexivity” (ROSE,

2007, et seq.).

99

conhecido, que identifica valores, sentimentos e significados e é identificado por estes mesmos

sentidos, nesta perspectiva,

O diferencial da Cultura Visual, em relação a outras propostas para o trabalho

com as imagens, seja da arte ou não, é focalizar a interpretação daquele que

vê e não o objeto que é visto, nem o produtor desse objeto. A Cultura Visual privilegia a interpretação daquele que vê, os significados que aquele que vê

constrói na medida em que se relaciona com os artefatos visuais, fala e é

escutado, sobre a relação que estabelece entre aquilo que vê e seu próprio contexto (SARDELICH e PAIVA, 2015, p 6).

Sardelich (2006) sugere que a compreensão crítica desses significados culturais implica

considerar quatro aspectos não sequenciais e interconectados: histórico-antropológico; estético-

artístico; biográfico e crítico-social. Em relação ao aspecto crítico-social, Sardelich (2006)

ressalta a importância de estabelecer conexões entre as representações e artefatos visuais e suas

significações, tendo em vista que são produzidos e legitimados no contexto das relações sociais

tradicionais que envolvem costumes, crenças, ideias políticas e religiosas. Sobre o aspecto

estético-artística, Sardelich (2006) refere-se aos sistemas de representação compreendidos no

cerne da cultura de origem da produção e não em sua universalidade.

Quanto ao aspecto biográfico, ela defende que as representações e artefatos fomentam

através dos processos identitários, a construção de valores, crenças e visões sobre a realidade.

E o aspecto crítico-social corresponde à contribuição das representações e artefatos visuais para

configuração atual das políticas da diferença e das relações de poder na sociedade.

No contexto do século XXI a Cultura Visual se re/configura na multiplicidade das

tecnologias e mídias digitais e seus artefatos visuais que transformaram completamente as

formas de comunicação, linguagem e informação, penetraram na vida humana de maneira

irreversível, mudando as formas de consumo e comercialização, influenciando e direcionando

interesses e interessados. Apresentam-se na contemporaneidade como “vetores das interações

dos grupos que se diferenciam culturalmente e que transformaram radicalmente as experiências

sociais nos últimos tempos com a difusão da conexão e do acesso à Internet” (PEREIRA, E.,

2013, p. 58).

Nesse sentido, a Cultura Visual contemporânea além de ampliar sua dimensão crítica,

também experimenta uma expansão nos modos de expressão e produção das visualidades

através das tecnologias visuais que, segundo Mirzoeff (2003, p.19) se caracterizam como

“cualquier forma de aparato diseñado ya sea para ser observado o para aumentar la visión

natural, desde la pintura al óleo hasta la televisión e Internet”.

100

A palavra tecnologia tem sido amplamente utilizada e seu conceito, consequentemente,

evoluiu ao longo do desenvolvimento da humanidade. Etimologicamente a palavra tecnologia

tem origem no grego "tekhne" que significa "técnica, arte, ofício" juntamente com o sufixo

"logia" que significa "estudo", portanto, pode-se afirmar que originalmente a tecnologia é um

conjunto de técnicas, métodos e instrumentos que tem o objetivo de estudar os fenômenos em

benefício da humanidade.

Para Castells (2007) a tecnologia é parte integrante da sociedade, porém não determina

a sociedade, influencia direta e indiretamente a construção de sentidos, significados e

comportamentos dos indivíduos. Neste mesmo sentido Bunge (2006) define tecnologia como

o:

O ramo do conhecimento interessado em projetar artefatos e processos, e em

normatizar e planejar a ação humana. [...] A tecnologia não deve ser

confundida com a ciência aplicada que é, na realidade, a ponte entre ciência básica e tecnologia, uma vez que ela busca novo conhecimento com potencial

prático (BUNGE, 2006, p. 275).

Dito de outra forma, a tecnologia seria uma aplicação prática do conhecimento científico

em diversas áreas da pesquisa em função de promover recursos para sobrevivência e melhoria

das condições de vida humana. Consequentemente, a Cultura Visual ampliada pelas tecnologias

e mídias digitais está diretamente relacionada a eventos visuais (MIRZOEF, 2003), cujas

informações, significados e emoções são registrados por variados artefatos tecnológicos que

permitem sua visualização, reprodução e representação imagética, tornando possível a

acumulação e multiplicação de imagens em todos os setores da sociedade.

A produção e proliferação de imagens têm recebido forte impacto dessas tecnologias

tornando-se cada vez mais acessíveis e sofisticadas, sendo utilizadas principalmente nas redes

midiáticas e nas chamadas redes sociais58. De acordo com Carlos (2010, p. 15) “[...] a imagem

aparece com uma presença pujante, mediando o jogo de força e de interesses que pautam os

cenários sociais mundiais”.

Para Mcluhan (1969, p. 36) “[...] As sociedades sempre foram moldadas, mais pela

natureza dos meios que os homens usam para comunicar-se que pelo conteúdo da

comunicação”. Então, como perceber as nuances culturais no contexto das visualidades que se

58 As redes sociais são comunidades virtuais que congregam interesses diversos e servem como espaço de

socialização, interrelação e comunicação entre pessoas de todas as partes do mundo. As redes sociais mais utilizadas por crianças e adolescentes no Brasil são: Facebook, WhatsApp, Instagram, Snapchat e Twitter

(TICS KIDS BRASIL, 2016).

101

expandem e penetram em todos os espaços do cotidiano?

Os artefatos, e as imagens estampadas neles, cumprem a função de representar, apresentar, nomear, situar, identificar, etiquetar e traduzir tanto os

sujeitos quanto grupos sociais, para outros grupos. Muito mais do que

representar os sujeitos e os grupos, os artefatos e imagens instituem os modos de vermos os outros e de nos relacionarmos com o mundo (CUNHA, 2010, p.

135).

De acordo com Flusser (1985) os objetos culturais são aparelhos59 que portam

ontologias, desse modo, são objetos trazidos da natureza para satisfazer os desejos humanos.

Neste sentido, pensar uma nova epistemologia da imagem a partir da filosofia é entender os

artefatos como objetos culturais. Para este autor, existem dois tipos de objetos culturais:

[...] os que são bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que são

bons para produzirem bens de consumo. (instrumentos). Todos os objetos culturais são bons, isto é: são como devem ser, contêm valores. Obedecem a

determinadas intenções humanas (FLUSSER, 1985, p.13).

Consequentemente, as imagens se vinculam às práticas culturais, às experiências do

desejo e às formas de socialização nas quais os indivíduos compartilham significados

fundamentais para a construção das subjetividades e identidades humanas.

Dito isto, imagem e mídia como artefatos culturais, passam a configurar contextos e

significados ideológicos que ao se projetarem nas visualidades do cotidiano produzem sentidos

e subjetividades, o que posteriormente podem se tornar objetos de investigação da Cultura

Visual na qual se buscam tencionar e compreender as práticas sociais de modo complexo,

híbrido e crítico (HERNÁNDEZ, 2007; MARTINS, 2007).

Nesse cenário da mediação cultural proporcionado pela mídia, a imagem

aparece como ímpeto de sua singularidade, submetendo a população local e global a um regime de verdade enquadrado na visão e na particularidade da

coisa vista. Nessa ordem epistêmica cultural, ela não somente confere visibilidade aos produtos e as concepções de mundo dominantes, a fim de que

devam ser consumidos, assumidos e experimentados no solo do cotidiano,

mas também atribui visualidade ao que se quer circular, sugerindo e imprimindo um modo reticular e espetacular de conhecer as coisas, o mundo,

as pessoas, os lugares, os acontecimentos, enfim, a vida. A mídia assume, portanto, o ver como saber, instalando e consolidando uma espécie de

epistemologia: a da visualidade (CARLOS e FAHEINA, 2010, p.30).

59 As imagens são produzidas por aparelhos técnicos e esses aparelhos sob a óptica da Cultura Visual,

correspondem aos artefatos culturais.

102

Destarte, a sociedade contemporânea não pode mais ser pensada numa perspectiva de

totalidade estática, como se os fenômenos, as pessoas, os objetos, os comportamentos e as

identidades pudessem ser classificados e/ou compreendidos igualitariamente.

As características dos fenômenos contemporâneos são complexas, múltiplas,

momentâneas, flexíveis e voláteis, não se manifestam e não se reproduzem da mesma maneira

nos indivíduos, ainda que ocorram no mesmo período/tempo e espaço/lugar, bem como, as

visualidades postas no cotidiano sublimam relações de poder, influenciam os modos de vida e

estabelecem padrões sociais de conduta.

Uma vez que as subjetividades são produzidas e transitam de maneiras reflexivas e corporificadas, a relevância das representações visuais adquire um

papel fundamental. Não apenas por sua onipresença, mas pelo seu forte poder

persuasivo: associam-se a práticas culturais (o que significa que fazem parte do que está acontecendo), vinculam-se experiências de prazer (apresentam-se

de forma agradável, com uma retórica visual e narrativa atrativa e trazendo satisfação) e estão relacionadas a formas de socialização (os sujeitos sentem-

se como parte do grupo com o qual se identificam) (HERNÁNDEZ, 2007, p.

31-32, grifos do autor).

Portanto, há que se questionar o que está sendo visibilizado no cotidiano e de que forma

essa visualidade é recebida pelos sujeitos, conforme alertaram Sardelich e Paiva (2015, p. 6-7)

“Mais do que pensar em representações e artefatos, a Cultura Visual explora os discursos sobre

os quais as representações constroem relatos do mundo que habitamos e favorecem

determinadas visões sobre o mundo e nós mesmos”.

Neste diapasão, para pensar sobre as culturas da infância na contemporaneidade é

preciso estabelecer relações dialógicas com o campo da Cultura Visual, tendo em vista que as

crianças absorvem das visualidades, conhecimentos e representações que podem repercutir,

consideravelmente, em seus comportamentos, seja no modo de falar, vestir, se relacionar com

o outro, interagir, produzir e consumir, entre outros.

Conforme ressaltou Dias, B. (2008), estamos inseridos num universo tecnológico e

visual onde as imagens se transformaram no produto mais essencial de nossa informação e

conhecimento, desta feita, o autor se refere ao aspecto da visualidade, considerando que o nosso

próprio modo de,

[...] olhar, ver, contemplar, fitar, mirar, observar, testemunhar, examinar,

vislumbrar, olhar de relance, espiar, espreitar, e entrever o mundo, é particularmente relevante para a construção da representação do

103

conhecimento e revela a necessidade de uma exploração adicional dos

conceitos da comunicação e de representação cultural (DIAS, B.., 2008, p. 282).

Nesta perspectiva, a Cultura Visual passa a ser um importante meio para representar as

mudanças e significações sociais de diferentes épocas e culturas, consequentemente, torna-se

um dos principais campos de análise científica ara interpretar e refletir sobre a realidade da

infância e sobre como a cultura visual têm repercutido na vida das crianças na sociedade

contemporânea. Parto do pressuposto de que a Cultura Visual oferece à infância uma infinidade

de informações visuais que, em algumas circunstâncias desconsideram suas especificidades de

criança e por isso, precisam ser questionadas em sua complexidade, desde a dimensão política

até seus impactos sociais na infância, o que posteriormente trataremos com afinco no ensaio II.

Após essa breve explanação, destaco a seguir um dos artefatos visuais mais significantes

da Cultura Visual contemporânea, a saber, a fotografia. De acordo com Flusser (1985, p. 13) o

aparelho fotográfico produz imagens técnicas e serve de modelo para todos os aparelhos

característico da atualidade e do futuro imediato, desse modo,

Analisá-lo é método eficaz para captar o essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) até os minúsculos (como os chips),

que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente supor que todos os traços aparelhísticos já estão prefigurados no aparelho fotográfico,

aparentemente tão inócuo e “primitivo” (FLUSSER, 1985, p. 13, grifos do

autor).

Portanto, entender a complexidade antropofilosófica da fotografia como imagem magia

(FLUSSER, 1985) torna-se fundamental para a compreensão das representações e concepções

de crianças e infâncias no contexto da Cultura Visual na contemporaneidade. Em vista disso,

abordarei não só a técnica em si, mas, sobretudo, o que a fina camada de nitratos de prata, pele

e película (SAMAIN, 2004) tem representado para a ciência, para as relações humanas e para

a cultura na atualidade.

104

1.1 Fotografia, um instantâneo da realidade? Reflexões antropofilosóficas sobre a

“pele-magia”

[...] as imagens são nossos olhos passados, presentes e futuros,

olhos da história, roupas, nudezas e paredes da história.

Roupagens e montagens de tempos heterogêneos. De vivências

presentes, de sobrevivências, de ressurgências, de tantas outras

memórias (individuais e coletivas) (SAMAIN, 2012, p. 162, grifo do autor).

Para os homens que estão programados pelas imagens, o

tempo flui no mundo assim como os olhos que percorrem a

imagem: ele diacroniza, ordena as coisas em situações. É o

tempo do retorno, de dia e noite e dia, de semente e colheita

e semente, de nascimento e morte e renascimento, e a magia

é aquela técnica introduzida para uma determinada experiência

temporal. Ela ordena as coisas do modo como elas devem se

comportar dentro do circuito do tempo. E o mundo desse modo

codificado, o mundo das imagens, o "mundo imaginário",

programou e elaborou a forma de existência (Daseinsform) de

nossos antepassados durante inúmeros milhares de anos: para

eles o "mundo" era um amontoado de cenas que exigiam um

comportamento mágico (FLUSSER, 2007, p. 132, grifos do autor).

De natureza semelhante à escrita, a fotografia surgiu como linguagem e expressão.

Desde a sua invenção na Idade Moderna, mais, especificamente, no início do século XIX

(1826), evocou para si a responsabilidade verossímil de ser um simulacro do real, capaz de

evidenciar e legitimar a existência. Partindo dessa premissa, dou início neste subcapítulo, a uma

sequência dialógica que se pretende metafórica, no sentido de explicitar as propostas

metodológicas adotadas nesta tese. A opção pelo uso de metáforas partiu da proximidade que

esta figura de linguagem tem com a vida cotidiana, nesta perspectiva, assim como Marcuschi

(2000), abordo a metáfora não como:

[...] propriedade de eleitos e eruditos, mas como o fato mais normal da vida cotidiana. Ela é inclusive o estado normal da criança, que convive com a

palavra do mesmo modo que convive com os objetos. Uma convivência com

o mundo muito aproximada daquela dos poetas. Sob este aspecto, seguindo o psicólogo russo Vygotsky, diríamos que a metáfora é anterior à razão e serve

de meio para aferir a capacidade criativa natural do homem (MARCUSCHI,

2000, p. 77).

Para além de um simples fenômeno linguístico de natureza semântica, Marcuschi (2000,

p. 73-75) define a metáfora como modo de conhecimento específico que comunica

intersubjetivamente uma realidade. Desse modo, ela não é uma simples comparação, ela

105

funciona como apoio para a “análise de capacidade criativa espontânea do indivíduo”, na óptica

operacional, é uma “transposição de significado” e na perspectiva genética e psicológica, é a

“criação de novos universos de conhecimento”, a metáfora é potencialmente criadora de novas

realidades.

A metáfora não se esgota, pois, nos limites da linguagem nem no âmbito das

relações lógicas. Ela é, em certo sentido, a dimensão mais radical da linguagem, uma vez que é a convivência direta da linguagem com o mundo e

não uma convivência com o mundo pela razão. Com isto, tornamo-nos infiéis aos propósitos iniciais de resgatar a metáfora para o plano da teoria do

conhecimento, pois tudo indica que o conhecimento por ela gerado tem

estruturas que as usuais teorias do conhecimento ainda desconhecem (MARCUSCHI, 2000, p. 87).

A possibilidade criativa e inteligível da metáfora abre possibilidades para se pensar a

relação da fotografia com a realidade na medida em que o olhar epistemológico é lançado sobre

as concepções antropofilosóficas da imagem como expressões ontológicas e subjetivas do

humano, buscando nelas [as concepções], a inspiração para compreensão da realidade que se

reflete no documento fotográfico. Assim, caminho na história da fotografia para entendê-la

como fenômeno, memória, “pele” [existência] e “magia” [eterno retorno]. Segundo Flusser

(1985, p. 7) no tempo da magia, um elemento da realidade explica o outro, e este explica o

primeiro, sucessivamente, assim, “o significado das imagens é o contexto mágico das relações

reversíveis”.

Segundo o fotógrafo e historiador Boris Kossoy (2012) a fotografia surgiu no contexto

da Revolução Industrial, mais, especificamente, no momento em que a sociedade passava por

um conjunto de transformações sociais, culturais e econômicas, fato que repercutiu também no

cenário científico, contribuindo na elaboração de conhecimentos, análises documentais,

elucidação de fatos Históricos, entre outros. Mas, foi como registro imagético do cotidiano

social que a fotografia se consagrou como uma das maiores invenções da modernidade, tendo

em vista a crescente facilidade de acesso e produção de imagens. Assim, a fotografia passou a

fazer parte de todas as instâncias da sociedade como expressão cultural:

A expressão cultural dos povos exteriorizada através de seus costumes,

habitação, monumentos, mitos e religiões, fatos sociais e políticos passou a ser gradativamente documentada pela câmera. O registro das paisagens urbana

e rural. A arquitetura das cidades, as obras de implantação das estradas de

ferro, os conflitos armados e as expedições científicas, a par dos convencionais retratos de estúdio – gênero que provocou a mais expressiva

demanda que a fotografia conheceu desde seu aparecimento e ao longo de toda a segunda metade do século XIX, são alguns dos temas solicitados aos

106

fotográficos do passado (KOSSOY, 2012, p. 27-28).

Kossoy (2012) ressalta que a partir da década de 1860, com a enorme aceitação que a

fotografia teve na sociedade, surgiram verdadeiros impérios industriais e comerciais,

consequentemente, o desenvolvimento da indústria gráfica, tornou mais emergente a

divulgação de fontes iconográficas por meio da imprensa. E a partir do início do século XX “o

mundo tornou-se, assim, portátil e ilustrado” (KOSSOY, 2012, p. 29, grifos do autor). Foi neste

cenário que a “fotografia de fato se tornou uma linguagem, ela não é mais o resultado de uma

prática ingênua, mas o resultado de um ato intencional e que, portanto, carrega a marca de seu

autor" (ACHUTTI, 2004, p.80). Nesta concepção, o historiador e fotógrafo Kossoy (2012, p.32)

acrescenta que a fotografia como fonte documental utilizada no contexto da pesquisa científica

deve ser questionada e criticada em diálogo com outras fontes históricas (orais e escritas).

Para os estudiosos da história social, da história das mentalidades e dos mais diferentes gêneros de história, assim como para os pesquisadores de outros

ramos do conhecimento, são as imagens documentos insubstituíveis cujo

potencial deve ser explorado. Seus conteúdos, entretanto, jamais deverão ser entendidos como meras “ilustrações ao texto” (KOSSOY, 2012, p. 34, grifo

do autor).

No entanto, Kossoy (2012, p. 32) também ressalta que a fotografia enfrentou certo

preconceito na sua utilização como fonte histórica ou instrumento de pesquisa por duas razões

principais: a primeira de ordem cultural, pois mesmo a sociedade estando imersa em imagens

“[...] existe um aprisionamento multissecular à tradição escrita como forma de transmissão do

saber, como bem esclareceu Pierre Francastel décadas atrás; nossa herança livresca predomina

como meio de conhecimento científico”. E a segunda, decorrente da primeira refere-se à

expressão registrada visualmente, como um obstáculo para o pesquisador, tendo em vista que

há uma forte “resistência em aceitar, analisar e interpretar a informação quando esta não é

transmitida segundo um sistema codificado de signos em conformidade com os cânones

tradicionais da comunicação escrita” (KOSSOY, 2012, p. 32). Sobre isso, Peter Burke,

historiador inglês afirma que para utilizar as evidências que a imagem apresenta de maneira

segura e eficaz, “[...] é necessário, como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente das

suas fragilidades.” (BURKE, 2004, p.18).

Apesar dessa resistência, a fotografia como fonte de pesquisa associou-se às ciências

antropológicas e trouxe para a humanidade uma possibilidade de registrar o passado e resgatar

a história (BONI e MORESCHI, 2007, p. 142), processo que foi fundamental para sua

107

legitimação nas Ciências Sociais. Alguns estudos se tornaram clássicos para a fotografia como

o trabalho de Bronislaw Malinowski intitulado “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922),

o trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson, a obra “Balinese Character” (1942), os

pioneiros na utilização de fotografias como recurso principal para o levantamento de dados

etnográficos, trabalhos que abriram as portas para o que se denomina hoje de Antropologia

Visual (ACHUTTI, 1997, p. 25; 2004, p. 79). No campo da História, o trabalho de Philippe

Ariès (1981) que utilizou imagens para discorrer sobre as bases conceptuais e as condições

históricas da infância em obras como “Séculos de Infância” (1960), traduzida no Brasil como

“História Social da Criança e da Família” (1973) tornando-se uma referência mundial.

Achutti (1997, p. 94) destaca que a fotografia surgiu num momento bastante propício,

pois nesse período os teóricos estavam preocupados em estudar a evolução humana, do ponto

de vista das variedades culturais e etnológicas. Conforme levantamento realizado por Kossoy

(2012) sobre dissertações e teses no Brasil em diversas áreas de aplicação da fotografia, a partir

de 1990 há um aumento considerável de trabalhos acadêmicos, até fevereiro de 1999 foram

defendidos 73 trabalhos, um número significativo se comparado à produção da década de 1980,

com 12 trabalhos e da década de 1970, com apenas 4 trabalhos (KOSSOY, 2012, p.33).

Portanto, a fotografia foi conquistando cada vez mais seu espaço nas ciências modernas

contribuindo para a produção e elucidação do conhecimento antropológico e historiográfico da

humanidade, considerando seu potencial para desvelar a realidade.

Como bem destacou Achutti (2004, p. 71) a matéria-prima da fotografia é a realidade

refletida, em vista disso,

Se fotografar é dar a ver, fotografar é também, a priori, uma forma de pensar e olhar o real. Nesse sentido, todos aqueles que abordam a realidade, artistas,

fotógrafos, escritores, cientistas, poetas e, certamente os etnógrafos,

encontram-se na mesma situação: ver e pensar a realidade. O que os diferencia verdadeiramente são apenas as diferentes linguagens utilizadas, linguagens

que com o tempo vão se inspirar mutuamente na incansável busca por melhor compreender e expressar, ou seja, restituir o real (ACHUTTI, 2004, p. 99).

Na contemporaneidade, quase onipotente, a fotografia chega para revolucionar o

paradigma da comunicação humana e consequentemente, demandar à ciência, uma nova

epistemologia da imagem, o que impulsionou essa discussão para outras áreas do conhecimento,

como no caso, a Filosofia.

O filósofo e antropólogo, especialista em fotografia e comunicação humana, Etienne

Samain (2012) em seu emblemático artigo: “As peles da fotografia: fenômeno,

108

memória/arquivo, desejo” discute a fotografia como um evento, uma revelação, um lugar de

memórias vivas. Para este autor, enquanto fenômeno, “o que as imagens mostram nunca será

um pensamento único e definitivo” (SAMAIN, 2012, p. 158), assim, em cada olhar, uma nova

percepção. Nesta perspectiva, as imagens não se limitam a figuras planas e mudas, elas se

convergem em conceitos em movimento, “lugares de questionamentos, lugares dentro dos

quais, escrevemos, também, nossa história.” (SAMAIN, 2012, p. 163).

Conforme outrora afirmou Koury (1998, p. 75) “Entre o olho e a memória, entre a

visibilidade e a latência, bate a foto”, é na fotografia que se é possível encontrar abrigo para

alma, morada para as lembranças, respostas para as questões mais improváveis, nela a solidão

já não é sentida e a memória se apresenta como um permanente devir. Portanto, a fotografia

não é um símbolo de ausência, mas, sobretudo, ela é pseudopresença, são memórias, arquivos

e confidências (SAMAIN, 2012, p. 160). Símbolo da personificação da alma, as fotografias são

reminiscências.

Eis que o cérebro – como assinala justamente Gilles Deleuze (2003, p.264) – é a “tela da imagem”. É com este cérebro – suas lembranças, suas memórias

e esquecimentos nele contidos – que toda imagem se choca, arrebentando uma

espiral de novas e outras operações sensoriais, cognitivas e afetivas (SAMAIN, 2012, p. 158).

Para Samain (2012), a fotografia, assim como outros artefatos que vão desde “pastas,

relatórios, diários de campo [...]” até “um chapéu de palha e um lenço de pescoço pendurados

numa parede clara” constituem arquivos de memória, registros vivos que se manifestam em

visualidades e estão sempre à disposição de novas histórias, novas interrogações, desse modo,

“O arquivo, penso, é uma memória em latência, uma memória que cochila, que, encoberta,

poderá ser, amanhã, descoberta, re-aberta. [...]. Memórias que não morrem, que viajam,

inquietas.” (SAMAIN, 2012, p. 160). Samain, conclui que as fotografias enquanto fenômenos,

arquivos de memória, desejam ser contempladas em suas histórias e desveladas em seus

segredos. Em seus devires, as fotografias se oferecem aos nossos olhares e subjetividades como

um memento à espera de ser revivido, sentido e compreendido.

Neste contexto, pensar o “real” a partir da fotografia não é algo simples, um conjunto

de questões deve ser levado em consideração, pois, ao mesmo tempo em que a fotografia se

mostra clara, decifrável e revelativa, ela também poderá camuflar, enganar e omitir a realidade,

levando nossa mente a cair em suas armadilhas,

[...] ela pode ser este instantâneo, congelado, cravado para sempre no tempo

109

e no espaço, resta que esta superfície lustrada como um lago no inverno,

petrificada, mumificada e lisa, apenas o é parcialmente. Nosso olhar a desmantela e a reconstrói a cada captura. Nosso espírito não sabendo

geralmente por que lado prendê-la e, sobretudo, compreendê-la, pulveriza-a a

cada vez num mosaico de signos luminosos rolando sob os prismas/espelhos de um caleidoscópio vivo: nosso olho, tanto olhar quanto pensamento. A

fotografia que, metaforicamente, é uma "forma que pensa" (Aumont 1996),

gosta de frequentar e de viajar nos corredores da mente humana, quando nossa memória gosta, por sua vez, de caçar na escuridão dos seus signos (SAMAIN,

2003, p.51, grifo do autor).

Na mesma vertente filosófica, Vilém Flusser (2007) avança e discute as implicações da

fotografia no contexto das civilizações contemporâneas. Segundo este autor, para além de

aparelhos técnicos, as fotografias transcodificam conceitos em cena, são materializações do

pensamento humano em “superfície” 60 (2007, p. 111). Transformadas em cenas, readquirem o

caráter mágico da imagem técnica, fundamental para a compreensão das suas mensagens. Nas

palavras do autor,

Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas.

Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas.

E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de

forma incomparável (FLUSSER, 2007b, p.7).

Para Santaella (2005) a fotografia aporta três paradigmas: pré-fotográfico-relacionado

ao conjunto das imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de

sua habilidade e imaginação para plasmar o visível; o fotográfico-diz respeito às imagens

produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível com a

mediação de um aparato ótico-mecânico: a câmera fotográfica (a caixa-preta), de vídeo ou de

TV; pós-fotográfico-que se refere às imagens sintéticas e infográficas (virtuais), pré-

modelizadas e matematicamente elaboradas através do computador (SANTAELLA, 2005, p.

295-304).

Flusser (2007) ressalta que, devido ao avanço tecnológico da mídia de superfície61

(surfasse media), as ciências e outras articulações do pensamento linear, tais como a poesia, a

literatura e a música, cada vez mais se apropriam das imagens - “pensamento-em-superfície”,

60 Para Flusser a atual cultura oferece três tipos de mídia, as lineares que são as escritas, as de superfícies

que são imagens, e mais recentemente, as de superfícies em movimento que são os filmes, a TV e a tela de computador. Cf. Flusser (2007)

61 De acordo com Flusser (2007) as fotografias, bem como, as inscrições rupestres, os vitrais, os tapetes, as

pinturas, as telas de tv e cinema, os cartazes, as páginas de revistas ilustradas, os anúncios publicitários, entre outras formas de comunicação visual da atualidade, são exemplos de mídias de superfícies que

representam o mundo com o mesmo potencial e importância que as superfícies em linhas (escrita).

110

isto significa que “[...] o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos.”

(FLUSSER, 2007, p. 118). Essa discussão tem sido bastante intensa no pensamento flusseriano

que aponta para uma suposta “crise dos textos”. Para entender tal posicionamento, torna-se

necessário retomar um pouco do seu raciocínio:

A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a

consciência mágica caracteriza a História toda. E terá consequências imprevistas. [...]. Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do

mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aquém das imagens e não de um passo em direção ao

mundo. Os textos não significam o mundo diretamente, mas através de

imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenômenos, significam ideias. Decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função

dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros

termos: a escrita é meta-código da imagem (FLUSSER, 1985, p. 30).

Nesta perspectiva, Flusser (1985) chama atenção para a ambiguidade histórica dos

textos em tentar desmagicizar as imagens, ou seja, refere-se à busca excessiva pela conceituação

e explicação dos fenômenos através dos textos, a “textolatria”62. Porém, a própria trajetória

científica, inclusive nas ciências exatas, consagrou a potencialidade das imagens em se

tornarem cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos, consequentemente,

“a hierarquia dos códigos vai se perturbando: embora os textos sejam metacódigo de imagens,

determinadas imagens passam a ser metacódigo de textos”, desse modo,

A relação texto-imagem é fundamental para a compreensão da história do

Ocidente. Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e

as ideologias imaginísticas. A luta, porém, é dialética. À medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele próprio vai absorvendo

imagens e se paganizando; à medida que a ciência vai combatendo ideologias,

vai ela própria absorvendo imagens e se ideologizando. Por que isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens são capazes de

ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação e

conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando (FLUSSER, 1985, p. 30).

No entanto, para Flusser o derradeiro significado dos conceitos são imagens,

consequentemente, “Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a

62 Flusser chama de textolatria a exagerada “fidelidade ao texto”, em outras palavras ele define como a

incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, não obstante a capacidade de lê-los, portanto, adoração ao texto. Como exemplo de cita as ideologias (cristã, marxista) e as ciências exatas. Cf. Flusser,

1985.

111

história para. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da

atualidade” (FLUSSER, 1985, p.31), nesse instante, novamente surgem as imagens, na tentativa

de ultrapassar essa suposta “crise”. Portanto, segundo o autor, a crise dos textos implica “o

naufrágio da História toda, que é, estritamente, processo de recodificação de imagens em

conceitos”, logo, surgem as imagens técnicas a fim de superar a crise dos textos, sendo a

fotografia, uma das primeiras e mais significantes invenções.

Assim como nas referidas epígrafes dispostas no início deste subcapítulo, a imagem

técnica perpassa o tempo e a vida em cenas magicizadas que foram programadas e elaboradas

para mediar e direcionar o comportamento humano, são representações, mapas, caminhos

traçados, peles de existência humana repletas de memórias e histórias que se dão ao olhar, à

contemplação e a transcodificação dos sentidos e significados que damos ao mundo. Porém, a

partir da visão flusseriana, a aparência objetiva da imagem técnica poderá ser ilusória, à medida

que são tão simbólicas quanto abstratas suas codificações, isto significa afirmar que, para captar

seus significados é preciso decifrá-las a partir dos conceitos que carregam, é preciso

compreender a imagem como metacódigos de textos. Desse modo, ao contemplar as imagens

técnicas, não vemos ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo, tendo em vista

a automaticidade da impressão do mundo que se materializa sobre a superfície da imagem,

consequentemente,

[...] as imagens técnicas, longe de serem janelas, são imagens, superfícies que

transcodificam processos em cenas. Como toda imagem, é também mágica e

seu observador tende a projetar essa magia sobre o mundo. O fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno.

Vivemos, cada vez mais obviamente, em função de tal magia imaginística:

vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia é essa (FLUSSER, 1985, p. 31).

Portanto, a linguagem fotográfica exerce fascínio, não só pelo que comunica, mas

também pelo que toca a alma humana. Neste sentido que penso a nova epistemologia da

fotografia (e toda a imagem) como uma reminiscência, que ressignifica o passado aos olhos do

presente, que busca no olhar contemplativo, a essência do conhecimento que se faz narrativo.

Como ressaltou Aumont (2016, p. 205) a imagem só existe para ser vista, por um espectador

historicamente definido, desse modo, segundo este autor, a imagem representativa tende a ser

uma imagem narrativa, “mesmo que o acontecimento contado seja de pouca amplitude” e para

saber o que a imagem representa é preciso “que se comece por indagar qual é sua relação com

a narratividade em geral” (AUMONT, 2016, p. 254).

112

Sendo assim, a fotografia é ação, ação da memória, uma ação que se comunica

diretamente com a subjetividade e as emoções, ação que aflora no pensamento sensibilidades e

reflexões que estão permeadas de concepções circunstanciadas por diferentes e particulares

visões do real, construídas a partir da realidade de quem a produziu, de quem dela participou e

de quem a contempla. Daí o caráter camaleônico do universo fotográfico, aquele em que,

[...] sua coloração cambiante, não passa de fenômeno da “pele”. Quanto à sua estrutura profunda, o universo fotográfico é um mosaico. Muda

constantemente de aspecto e cor, como mudaria um mosaico onde as

pedrinhas seriam constantemente substituídas por outras. Toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico: superfície clara e diferente das outras

(FLUSSER, 1985, p. 34, grifo do autor).

Destarte, as ideias um tanto quanto apocalípticas de Flusser (1985) assumem a filosofia

da fotografia enquanto reflexão sobre a autonomia humana em um mundo programado por

aparelhos, onde só através de uma conscientização da práxis fotográfica é possível apontar para

o caminho da liberdade, neste sentido,

Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais,

expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas. Que

significam tais fotografias? Segundo as considerações precedentes, significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de

seus receptores. Mas não é o que se vê quando para elas se olha. Vistas

ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies. Mesmo um observador ingênuo admitiria que as cenas se

imprimiram a partir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento não

lhe convém. O fato relevante para ele é que as fotografias abrem ao observador visões do mundo. Toda filosofia da fotografia não passa, para ele, de ginástica

mental para alienados (FLUSSER, 1985, p. 22).

Partindo dessas premissas, como instrumento de pesquisa científica, a fotografia mostra

todo seu potencial inquisidor, ela é ao mesmo tempo o “ponto de partida e o resultado final”

(GURAN, 1998, p. 90). Nesta perspectiva, as discussões heurísticas que o pensamento em

superfície provoca são caminhos interpretativos que permitem desvelar as realidades

investigadas, e no contexto da Fotoetnografia empreendida nesta tese, a fotografia como “pele-

magia”, assume o caráter de narrativa integral capaz de criar, preservar, informar e representar

determinada realidade, tendo em vista que as relações estabelecidas entre os sujeitos –

fotógrafo, fotografado, espectador – estão permeadas de concepções, subjetividades e emoções

(AUMONT, 2016), pois, “fotografar não é apenas refletir a realidade, é também reflexionar

sobre ela e nela refletir-se” (ACHUTTI, 2004, p. 71).

113

1.2 Memento: reviver, sentir e compreender como devir criador

Memórias são imagens,

Armazenadas no pensamento.

Revelam quem fomos,

E o que nos tornamos.

São fragmentos de ‘nós’ nos outros,

E dos outros em ‘nós’.

Preservam nosso reflexo,

E eternizam nossas histórias.

A imagem narra a memória,

Que sente, saudosamente,

Através do olhar.

Imagens são memórias. Souvenires de um tempo, um lugar, um contexto vivido, há

muito tempo ou em um minuto atrás. Imagens que produzimos, que são produzidas e que se

produzem a todo instante através dos olhares humanos. Imagens nas quais nos refletimos, que

são refletidas por nós, que refletem os outros e que nos outros se refletem. Temos vivido em

tempos de imagens, elas nos interpelam (MARTINS, 2012), nos provocam, nos põe à prova,

assim como outrora afirmou Samain (2012, p. 155): “Imagens que nos iludem, nos fazem perder

a visão e, mais gravemente, a consciência, isto é, o discernimento e a responsabilidade face à

nossa própria história”.

Memórias são imagens. Concepções da alma que se convertem em cenas. Nelas

contemplamos o belo, o trágico e o nostálgico, a realidade e a ilusão. Da alegoria à pareidolia63,

da cultura às mitologias, do cenográfico à cotidianeidade, as imagens reproduzem cenas que

são elaboradas a partir de determinadas referências e percepções. Em cada imagem, uma

memória, uma história, uma recordAção, uma rememoração, ou até mesmo, imaginAção.

Ressalto em maiúsculo, não de forma aleatória, mas para mostrar que no ato de recordar ou

rememorar está implícita a ação. Ação que se revela e é revelada na imagem, e ação que aciona

e é acionada no pensamento, na imaginação. São atos reflexivos, racionais, intuitivos, sensíveis,

perceptíveis e inteligíveis. Como ressaltou Samain (2012, p. 162) “A imagem não é um objeto,

não é uma coisa, Ela é um ato posto diante de nós, oferecido aos nossos destinos.”.

Não há como separar imagem-ação-história-memória, esses fenômenos estão

63 Etimologicamente derivado do grego espectro “εἴδωλον” que representa “figura” ou “imagem” que

podem ser percebidas de várias maneiras e com variados sentidos dependendo do funcionamento do

cérebro humano. Por exemplo, ver rostos em manchas na parede, dragões, cavalos, anjos em nuvens, monstros em florestas, entre outras. Hawkins e Blakeslee (2005) desenvolve essa discussão a partir da

Neurociência em sua teoria da previsão de memória.

114

entrelaçados de tal maneira que devemos admitir: toda imagem é produzida na ação da memória

e toda memória é construída na ação das imagens, nas palavras de Delgado, L. (2003, p. 19):

A memória, em sua extensa potencialidade, ultrapassa, inclusive, o tempo de

vida individual. Através de histórias de famílias, das crônicas que registraram

o cotidiano, das tradições, das histórias contadas através de gerações e das inúmeras formas de narrativas, constrói-se a memória de um tempo que

antecedeu ao da vida de uma pessoa. Ultrapassa-se a cronologia atual e o

homem mergulha no seu passado ancestral. Nessa dinâmica, memórias individuais e memórias coletivas encontram-se, fundem-se e constituem-se

como possíveis fontes para a produção do conhecimento histórico (DELGADO, L., 2003, p. 19).

Acrescento ainda, toda imagem “[...] é um advento/evento estruturado, um ‘fenômeno’

(aparição, manifestação) estruturado, uma estrutura que conecta um conjunto de elementos e de

formas que se pensam entre si” (SAMAIN, 2003, p. 56, grifos do autor). Nesta percepção,

Se admitirmos que a imagem (toda imagem) é um fenômeno, isto é, “algo que vem à luz [phanein]”, “algo que advém”, um “acontecimento” (um “advento”

como melhor se dizia, outrora), entender-se-ia que ela é, ainda, uma

“epifania”, uma “aparição” [epiphanein], uma “revelação” (SAMAIN, 2012, p. 157).

Através dos sentidos do corpo, as imagens se formam em nosso pensamento, criam e

acionam memórias e sensibilidades, nos ajudam a entender os caminhos e as curvas sinuosas

da vida, armazenam conhecimentos e histórias, constituem-se de culturas e subjetividades

humanas, desse modo, dialogam com o corpo e a alma. Têm o dom de nos fazer rememorar - o

amor, a dor, a solidão, a imensidão da vida. São essas imagens: vivências, afetos, reflexões da

alma, que se materializam no corpo, no nosso corpo, no corpo do outro, no corpo da imagem,

no corpo da Fotoetnografia que vão inspirar a categoria memento empreendida nesta tese.

As metáforas do pensamento dialético que iluminam os diálogos socráticos nos escritos

de Platão assumem o ser humano a partir da dualidade entre corpo e alma, e, afirmam que a

essência dos seres é um fenômeno imortal.

Essas concepções, acrescidas das contribuições filosóficas acerca da imagem, ajudaram-

me a compor a categoria memento, a qual pode ser considerada a espinha dorsal da tese, pois

toda a estrutura se ramifica a partir dos três movimentos que o compõe, a saber - reviver, sentir

e compreender. Etimologicamente, a palavra memento origina-se do latim, palavra

substantivada do verbo “meminisse” que significa “lembra-te” e deriva de “memor”, “aquele

que se lembra”. De raiz indo-europeia “men” passa a significar “pensar”, essa relação entre

115

lembrar e pensar me fez caminhar pelas filosofias platônicas sobre a Teoria das Reminiscências,

na qual fundamentei a categoria memento empreendida nesta tese.

Platão explica que, anteriormente ao corpo, a alma vive no mundo das ideias, inteligível,

da perfeição, do conhecimento pleno, inato, possuindo a verdade absoluta. No entanto, ao vir

para o mundo sensível numa vida terrena e adquirir um corpo corruptível, a alma passa por um

processo de esquecimento e essa situação se prolonga até novamente alcançar a sabedoria.

Assim, segundo a filosofia platônica, para reascender ao mundo das ideias, o ser humano

precisa ter acesso novamente ao conhecimento perfeito e esse processo se dá por rememoração,

lembrança, recordação, e revivescência, implicando no que ele define como reminiscência.

A alma é imortal. Renasceu repetida vez na existência e contemplou todas as coisas, existentes tanto na terra como no Hades, e por isso não existe nada que

ela não conheça. Não é de espantar que ela seja capaz de evocar a memória a

lembrança de objetos que viu anteriormente e que se relacionam tanto com a virtude quanto com as outras coisas existentes. Toda a natureza, com efeito, é

uma só, é um todo orgânico, e o espírito já viu todas as coisas. Logo, nada impede que, ao nos lembrarmos de uma coisa (o que nós, homens, chamamos

de saber), todas as outras coisas ocorram imediata e maquinalmente é nossa

consciência. A nós, compete unicamente o esforço, a procura sem descanso (PLATÃO, 2001, 81, p. 79).

Nas obras “A República” (Livro X), “Fédon” (1972) e “Mênon” (2001), Platão

desenvolve a ideia da imortalidade da alma e nelas também fundamenta o conceito de

reminiscência. A metapsicologia platônica se fundamenta no argumento de que a alma possui,

desde sempre, a verdade (PLATÃO, 2001, 82a-86c), é incorruptível e imortal (Fédon, 72e-78a)

e todo saber é em sua essência uma reminiscência (PLATÃO, 2001, 81d). A Teoria da

Reminiscência, invocada por Sócrates em seus diálogos, busca afirmar a,

[...] convicção de que pesquisar e aprender não é mais do que recordar, ou

seja, reencontrar um saber que já existe; o conhecimento é definido como reconhecimento ou anamnese, significa um esforço para recordar aquilo que

a alma já sabia antes de habitar o corpo, visto que as almas eram dotadas de conhecimentos, revelando a imortalidade da alma. Sócrates procurou

demonstrar a existência da alma antes do nascimento, convicção imbuída pela

crença platônica de que os homens já teriam alcançado a sabedoria suprema quando contemplavam o Mundo das Ideias, resultando que a alma é imortal e

renasce várias vezes (JARDIM, 2015, p.27).

Nesta perspectiva, a pedagogia socrática se fundamenta na ideia de que não existe

ensinamento, e sim, rememoração (PLATÃO, 2001, 82a3), ou seja, através de estratégias

imagéticas e questionadoras o sujeito faz emergir o conhecimento que possuía no mundo

116

perfeito. Dessa forma, as concepções filosóficas de educação socráticas e platônicas

fundamentam a aprendizagem como um ato de reminiscência, um processo de anamnese64,

recordação. Sobre isso, Paviani (2008, p. 23) destaca que:

Platão possui a vocação de escritor e de professor. Quem observa o estilo

e os processos dialéticos de seus textos, os procedimentos das perguntas e das respostas não têm dúvidas sobre essas características marcantes do

escritor e do professor. Por isso, e também por outros aspectos intrínsecos

ao pensamento dos diálogos, ele nos oferece uma filosofia e uma pedagogia indissolúveis. Não se trata de duas dimensões arbitrariamente

unidas, mas a unidade de uma face de múltiplos aspectos.

Em um dos diálogos presente no livro Mênon (PLATÃO, 2001, p. 79e7-86c6), Platão

discorre sobre a teoria da reminiscência a partir de uma experiência vivida entre quatro

personagens: Sócrates, Mênon, escravo de Mênon e Ânitos. A narrativa apresenta Sócrates

interrogando um escravo sobre o princípio pitagórico da duplicação do quadrado, no entanto,

este escravo nunca havia sido letrado, mesmo assim, através das provocações de Sócrates, o

escravo demonstrava sua sabedoria, a qual existia desde sempre na alma deste indivíduo

(PLATÃO, 2001, 86b). Dessa maneira, Sócrates consegue provar que através de reminiscências

é possível a rememoração do conhecimento, o que pode ser entendido a partir de suas próprias

palavras:

SO. [...] Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto tanto as coisas <que estão> aqui quanto as <que estão> no Hades, enfim

todas as coisas, não há o que não tenha aprendido; de modo que não é de

admirar, tanto com respeito à virtude quanto aos demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já antes conhecia. Pois, sendo a

natureza toda congênere e tendo a alma aprendido todas as coisas, nada

impede que, tendo <alguém> rememorado uma só coisa – fato esse precisamente que os homens chamam aprendizado –, essa pessoa descubra

todas as outras coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar. Pois, pelo visto, o procurar e o aprender são, no seu total, uma rememoração (PLATÃO,

2001, p. 81a1-d5, p.51-53, grifos meu).

Essas premissas filósofo-metafóricas serviram de inspiração pensar a categoria

memento como um processo de pesquisa que se articula a três ações que compõem o movimento

interpretativo de sistematização e análise das Fotoetnografias: o reviver – como reminiscências

do passado refletido no registro imagético (o que as imagens pensam e me fazem rememorar?);

64 Na dialética socrática representada como Anámnêsis ou seja, reminiscências que corresponde à memória,

recordação, relembrança, revisão, anamnese (JARDIM, 2015).

117

o sentir – como emocionalidades e subjetividades (o que isso representa para mim? E o que tem

haver com o outro? O que sinto com essas reminiscências?); e o compreender – como

interpretação e reflexão da imagem, aqui vista como cena (como isso que vejo dialoga com a

realidade da qual faço parte? Quais são seus devires?). Entretanto, apesar de estarem descritas

numa sequência, esses movimentos ocorrem de forma integrada e cíclica, quase inseparáveis65.

De acordo com Aumont (2016, p. 79) a relação da imagem com a realidade deve ser

entendida a partir de três dimensões: como um valor de representação das coisas concretas;

como um valor de símbolo que representa as coisas abstratas; e como um valor de signo cujo

significante visual tem uma relação totalmente arbitrária com seu significado. Desse modo, as

imagens serviram de símbolos, de representação epistemológica e narrativa (AUMONT, 2016,

p. 80), e por que não, como objeto estético dado à contemplação de seu leitor/espectador?

O memento assumiu um papel fundamental para o processo de interpretação tendo em

vista suas implicações diretas e indiretas na formulação das ideias. Primeiro, na percepção do

sujeito que investiga (pesquisador) - durante todo o processo de seleção e análise das narrativas

fotoetnográficas à luz das concepções teóricas que pautaram as representações em high key e

low key; segundo, na percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - neste caso, a criança,

ao elaborar sua compreensão num processo de reflexão interpretativa de si (CORSARO, 1997),

dando novos sentidos e significados à sua própria história de vida através de narrativas

autobiográficas visuais; e terceiro, na percepção do leitor/espectador - à medida que as

narrativas fotoetnográficas novamente se oferecem ao olhar, à espera de outras reminiscências

e interpretações, como um devir criador. Neste sentido, no memento, “História e narrativa, tal

qual História e memória, se alimentam” no entrelaçamento de “Narrativas, sujeitos, memórias,

histórias e identidades”, nesta compreensão, as reminiscências são “olhares que permeiam

tempos heterogêneos. São a História em construção. São memórias que falam.” (DELGADO,

L., 2003, p. 23).

Em se tratando de Culturas Infantis, as imagens também passam a representar

lembranças, comportamentos, situações “eternizadas”, como “pedaço de vida” que precisam

ser pensadas a partir de um “conceito ampliado de infância que leva em conta as

temporalidades, práticas e visões, impossíveis de serem reduzidas a uma única perspectiva”

(MARTINS; TOURINHO, 2010, p. 10). Portanto, as imagens surgem como registros

fundamentais para reflexões sobre a realidade da criança e da infância, seus sentidos e

65 Refiro-me aqui ao memento empregado nesta tese. Pois, se o considerarmos fora desse contexto, há

movimentos do olhar que não necessariamente estão pré-condicionados a estas circunstâncias.

118

significados sociais e culturais construídos a partir de uma longa trajetória de negação, de

ausência e de (in)visibilidades histórica, cívica e científica. Mas, que tem conquistado seu

espaço como sujeito social crítico e participativo no atual cenário (SARMENTO, 2007).

A partir da óptica do memento, as imagens são acionadoras de reminiscências. Através

das imagens as lembranças são imediatamente trazidas à memória, são revividas, e, por

conseguinte, estão conectadas às nossas emoções e subjetividades, dando sentido ao imagético.

As imagens provocam sensações, interpretações e reflexibilidades, além disso,

prospectivamente, estimulam a compreensão “daquilo" que foi refletido. Logo, deste

movimento heurístico, emergem novas reminiscências, sensações, concepções e emoções.

Ariano Suassuna (2007) no texto “Teoria Platônica da Beleza” ressalta que o caráter de

conhecimento atribuído à fruição da Beleza em Platão - entendida como Verdade, causava,

[...] antes de mais nada, enlevo, prazer, arrebatamento, deleitação. E se alguma

dúvida houvesse, seria antes sabre a caráter de deleitação, também emprestado no texto platônico citado, é sabedoria, é Verdade, a qual, segundo suas

palavras, “despertaria amores veementes”, coma se fosse também uma espécie

de bem a ser fruído e não somente conhecido. Isto leva Maritan a afirmar que “a sabedoria é amada par sua beleza, enquanto que a beleza é amada par si

mesma”, distinguida ele que “a beleza é essencialmente deleitável: par isso,

par sua própria essência e enquanto beleza, move a deseja e produz a amar, enquanto que a verdade, coma tal, faz somente iluminar” (SUASSUNA, 2007,

p. 48).

Portanto, no contexto da Fotoetnografia, um conjunto de imagens deve ser apreciado

lentamente e, para bem apreciar, é preciso saber se dar tempo e se deixar tocar pela emoção.

(ACHUTTI, 2004, p. 108). Nesta perspectiva, o memento à luz da teoria da reminiscência

revisitada pelo debate contemporâneo da Cultura Visual, pode ser pensado como:

[...] um ato complexo que se realiza a partir da interpelação de várias práticas

sócio-ideológicas e, por esta razão, está implicada em relações de concordância, resistência ou crítica a algo já valorado e de alguma maneira

organizado, algo diante do qual se adota, de modo responsável, uma posição valorativa (MARTINS, 2012, p. 75).

A partir desta reflexão, o conhecimento - enquanto beleza, verdade, entendido sob a

óptica da Cultura Visual, compreende o memento, ou seja, a interpretação - vista como prática

social que "mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da memória social

construída pelo sujeito. [nessas circunstâncias] Influenciadas pelo imaginário do lugar social,

as interpretações configuram processos de construção de sentidos e significados” (MARTINS,

119

2012, p. 73). Desse ângulo, a interpretação da memória, acionada através da imagem e,

posteriormente, analisada à luz dos contextos de produção, desvelam conhecimentos subjetivos

e reflexivos que permitem compreender o fenômeno em suas dimensões epistemológicas e

empíricas66.

Para Baudrillard (1981, p.13) as imagens podem ser: reflexo de uma realidade profunda;

podem mascarar e/ou deformar uma realidade profunda; podem mascarar a ausência de uma

realidade profunda; e ainda, podem não ter nenhuma relação com qualquer realidade, ou seja,

a imagem pode ser seu próprio simulacro puro.

No primeiro caso, a imagem é uma boa aparência - a representação é do

domínio do sacramento. No segundo, é uma má aparência - do domínio do malefício. No terceiro, finge ser uma aparência - é do domínio do sortilégio.

No quarto, já não é de todo do domínio da aparência, mas da simulação (BAUDRILARD, 1981, p. 13).

Nesta perspectiva, as imagens em high key correspondem aos elementos visíveis da

imagem, o que foi superexposto propositadamente na cena, preparado para refletir o que se quer

representar em sua síntese real. Em low key, estão os elementos subexpostos que podem tanto

mascarar, deformar ou simular uma realidade. Cabe ao olhar a capacidade de discernir,

desvelar, reflexionar e compreender a imagem em sua complexidade, ou seja, cabe ao meu olhar

de pesquisadora, ao olhar do sujeito refletido, ao olhar do sujeito que faz refletir, ao olhar do

sujeito contemplativo, ao olhar do sujeito leitor/espectador. Para Aumont (2016, p. 82),

reconhecer algo em alguma imagem, “é identificar, pelo menos, em parte, o que nela é visto

com alguma coisa que se vê ou se pode ver no real. É pois um processo, um trabalho, que

emprega as propriedades do sistema visual” em duas dimensões: o reconhecimento das

características visuais do mundo real e o prazer do reconhecimento proporcionado pelo

“reencontrar” uma experiência visual em uma imagem.

E esse reconhecimento está ligado à rememoração (AUMONT, 2016, p. 84), às

reminiscências, memórias, histórias e representações, que partem do “princípio de equivalência

do signo e do real (mesmo se esta equivalência é utópica, é um axioma fundamental)”, no

entanto, as imagens também podem ser simulação, que “[...] ao contrário da utopia, do princípio

de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e

aniquilamento de toda a referência” (BAUDRILARD, 1981, p. 13, grifo do autor). No entanto,

66 O compreender aqui é entendido sob o sentido atribuído por Max Weber, onde o pesquisador explora o

caráter subjetivo que é atribuído ao fenômeno, interpretando-o a partir das relações interdependentes que

este mesmo fenômeno faculta em seu meio.

120

Aumont (2016, p. 103) alerta para o fato de que,

É preciso também distinguir a imagem ilusionista do simulacro. O simulacro não provoca, em princípio, ilusão total, mas ilusão parcial, forte o suficiente

para ser funcional; o simulacro é um objeto artificial que visa ser tomado por

outro objeto para determinado uso – sem que, por isso, lhe seja semelhante (AUMONT, 2016, p. 103).

Neste sentido, para a compreensão da imagem sugeri, inicialmente, “revivê-la” em suas

descrições primárias, destacando os elementos superexpostos que refletem a realidade objetiva

equivalente ao real, rememorado, experienciado, reconhecido e reencontrado. Em seguida,

“senti-la” em sua dimensão emocional, valorativa, sensitiva, ressaltando os elementos

subexpostos que permeiam as subjetividades, as percepções e as sensibilidades do olhar

humano. E consequentemente, “compreendê-la” em suas dimensões epistemológicas e

empíricas a partir do contexto de produção, contemplação e análise da realidade e/ou a

simulação em diálogo com as interpretações e reflexões empreendidas. Conforme estruturado

no esquema 5, a seguir.

Esquema 5 - Movimento de interpretação da imagem – memento.

Fonte: Elaboração própria (2017).

121

Portanto, através das Fotoetnografias construídas sob o influxo do memento, tornou-se

possível conhecer histórias de vida e reflexionar-se nelas (ACHUTTI, 2004, p. 71), tendo em

vista que “toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si fragmento

determinado da realidade registrada fotograficamente” (KOSSOY, 2012, p.47). Entretanto,

deve-se ter a consciência de que,

As fontes fotográficas são uma possiblidade de investigação e descoberta que

promete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações,

estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para a decifração de seus conteúdos e, por consequência, da realidade que os originou

(KOSSOY, 2012, p. 32).

Nesse sentido, as Fotoetnografias revividas, sentidas e compreendidas, tomaram para si,

efeitos de veracidade e de subjetividade, intercruzando-se de forma dialógica com o hibridismo

cultural e a transdisciplinaridade científica na produção/construção do conhecimento, desse

modo,

No processo de construção/produção do conhecimento há uma valorização do

ato criador e, consequentemente, da percepção, também entendida como intuição e compreensão existencial, como sendo o que pode disparar o

processo de compreensão intelectual, também denominada racional, que

envolve fantasia, imaginação, comparação, categorização, relações diversas como todo-parte, configuração do percebido que é expressa em diversas

linguagens possíveis, como gráfica, mítica, da pintura com suas formas e cores, da música, da ciência e que caminha em direção à interpretação e

comunicação do produzido (BICUDO, 2008, p.147).

Partindo dessas premissas, as imagens tornam-se reminiscência, e aqui, memento67, ou

seja, lembranças vivas, devires criadores de conhecimento, de modos de ver, sentir e

compreender a si ao outro. Pensar o memento como devir no contexto do objeto da tese - as

concepções de crianças e infâncias expressas em narrativas fotoetnográficas – é tomar a ideia

de infância como um espaço de socialização, alteridade, construção de sentidos e significados

antropológicos, filosóficos, sociais, políticos e culturais, é reconhecer a criança em seu próprio

modo de agir, de exercer seu protagonismo e de enfrentar com criatividade os desafios da vida

cotidiana, ou seja, é preciso considerar também a infância como um devir-criança, não no

sentido do que ela “não é”, mas, no sentido do que “ela é” e do que ela “faz” como um incessante

67 Abordado no ensaio I, seção 1.2.

122

“vir a ser” imaginativo e criativo, ou seja, deve-se considerar a capacidade da criança em estar

sempre em processo de criação incessante, como visto na perspectiva deleuziana. Segundo

Macedo, R. (2013, p. 28) esse “vir a ser” é “apanhado na sua virtualidade ineliminável sem que

uma lógica etapista do desenvolvimento infantil seja a última palavra [...]”, neste sentido, o

autor complementa que,

A positividade do Ser-criança em incessante auto-organização, em incessante criação (poiesis), chega primeiro, sem se desconsiderar obviamente, o que a

criança tem de espécie humana, mas essa não emerge sem aquela, é uma

impossibilidade na emergência própria humanidade do Ser-criança. Vir a ser significa, concordando com Deleuze, [...] a emergência poiética inarredável

de toda criança (MACEDO, R., 2013, p. 28).

Em síntese, o memento como movimento de interpretação do/no universo infantil não é

uma questão de reprodução no sentido de simples imitação, mas é a “captura de código, mais-

valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995,

p.18).

Portanto, em se tratando da imagem, o memento refere-se ao movimento de percepção

e interpretação que envolve de forma cíclica e interdependente três processos em devir criador:

o reviver – como reminiscências que trazem à tona as memórias e experiências do sujeito; o

sentir – como expressões emocionais e subjetivas; e o compreender – como movimento de

análise interpretativa e reflexiva acerca da imagem e a partir das conexões estabelecidas entre

elementos racionas e emocionais disparados pelo acionamento da memória frente à imagem.

Neste cenário, do ponto de vista científico, todo esse processo de interpretação

estabeleceu conexões epistemológicas entre o visível e o escrito, não necessariamente nesta

ordem, mas, submeteu as subjetividades magicizadas nas imagens técnicas a uma análise

interpretativa à luz das concepções teóricas que pautaram a investigação, pois, a linguagem

visual é um meio de conhecimento e interlocução com a realidade pela qual,

[...] visualizamos microcenários do passado; contudo, ela não reúne em si o

conhecimento do passado. O exame das fontes fotográficas jamais atingirá sua finalidade se não for continuamente alimentado de informações iconográficas

(necessárias aos estudos comparativos) e das informações escritas de

diferentes naturezas contidas nos arquivos oficiais e particulares, periódicos da época, na literatura, nas crônicas, na história e nas ciências vizinhas. De

outra forma, jamais trataremos elementos sólidos de apoio e as pistas necessárias para a correta identificação dos assuntos apresentados. É um

engano pensar-se que o estudo da imagem enquanto processo de

conhecimento poderá abdicar do signo escrito (KOSSOY, 2012, p.82).

123

O sentido do memento reforça a ideia de que não se trata da busca de interpretações

técnicas da imagem, que somente um grupo seleto (do qual não faço parte) que se apresenta

como “detentor” de determinados conhecimentos, seria capaz de realizar, mas sim, trata-se de

oferecer a oportunidade de “voarmos nas asas do imagético” à procura de novas

“reminiscências”, e com elas, novas interpretações. É como o “voo” dos versos de Rubem Alves

(2008, p. 29) que “já nasce dentro dos pássaros” e, exatamente por essa razão, “não pode ser

ensinado. Só pode ser encorajado”.

A Fotoetnografia, como campo metodológico, ainda é movediço em minha própria

capacidade de investigar, tendo em vista que, quando uma nova possibilidade metodológica

surge, ela está aberta a muitas outras ações, tanto de ordem teórica quanto empírica, se constitui

um território do saber que se pretende ainda sedimentar e se retroalimentar de novos olhares e

possibilidades, portanto, este trabalho está sujeito a erros, indagações e transformações. No

entanto, assumo os riscos de minhas prováveis lacunas e deslizes e, novamente, me faço

aprendiz, mas, ainda prefiro a dúvida que alimenta, à certeza que poda.

Afinal, como outrora afirmou Santaella (2005) “o peso das certezas é sempre mais forte

que o das dúvidas. [...]. Por que haveremos nós de cruzar os braços, ficando à espera dos restos

de sopa científica que os outros poderão, porventura, nos deixar de sobra?".

A tarefa que assumi pode parecer ousada - desenvolver um caminho metodológico

transdisciplinar para a sistematização interpretativa do método Fotoetnográfico aplicado ao

contexto da infância, no que tange ao desvelamento das culturas infantis - que por ocasião,

cognominei de memento, mas faço como a “Pantera Cor-de-rosa” de Deleuze e Guattari (1995,

p. 19), nada imito, nada reproduzo; pinto o mundo com minha cor, rosa sobre rosa, esse é o meu

devir-mundo, meu devir-criador, o devir-memento da Fotoetnografia.

124

1.3 Desvelando fotografias em high key e low key

As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos.

Precisam de nós para que sejam desdobrados seus segredos.

As fotografias são memórias, histórias escritas nelas, sobre

elas, de dentro delas, com elas. É por essa razão, ainda, que

as fotografias se acumulam como tesouros, dentro de pastas,

de caixinhas, de armários, que elas se escondem dentro de

uma carteira. Elas são nossos pequenos refúgios, os

envelopes que guardam nossos segredos. As pequenas

peles, as películas, de nossa existência (SAMAIN,

2012, p. 160, grifo meu).

A compreensão das imagens, sobretudo, as fotográficas utilizadas para compor esta tese,

partiu de um movimento heurístico e transdisciplinar guiado pelo imperativo de reflexionar as

concepções de crianças, infâncias e culturas infantis. Desde a localização e seleção das fontes,

busquei traçar um panorama geral da imagem de criança nas pesquisas científicas e na Cultura

Visual para compreender a trajetória histórica, cultural e social da infância a partir das imagens

de crianças do passado em diálogo com as imagens do presente, contudo, perspectivando a

condição da infância no futuro próximo.

Nessa intenção, este estudo fotoetnográfico oferece ao leitor/espectador um

mapeamento dos modos de vida infantil em épocas e contextos diferenciados que desvelam

olhares de crianças que protagonizam suas histórias mesmo no silêncio, na submissão, na

opressão; que subvertem as condições de desigualdade sociais e, criativamente, inventam

modos de ser e de viver suas culturas, que exercem sua participação social marcando

subjetivamente e de forma autônoma suas relações de alteridades entre pares e entre adultos.

O contexto discursivo da tese seguiu uma perspectiva interpretativa da realidade

(GRAUE; WALSH, 2003) a partir dos elementos que compuseram os campos analíticos da

pesquisa, constituídos em duas diferentes formas de narrativa: a escrita e a visual, desse modo,

cada tipo de escritura apresentou uma sequência narrativa que buscou desvelar as concepções

de crianças, infâncias e culturas infantis expressas e magicizadas em concepções teóricas e

imagens técnicas, procurando, sobretudo, desnaturalizar a infância e desconstruir as imagens

historicamente formuladas sobre a infância, reforçando assim, a ideia de infância como

categoria social e da criança como produtora de cultura.

Concomitantemente, o processo de análise partiu do diálogo entre: os pressupostos

crítico, transdisciplinar e multireferencial da Cultura Visual na direção de uma antropofilosofia

125

da imagem; os aportes epistemológicos e ontológicos do memento à luz das contribuições

platônicas do conhecimento como reminiscências, buscando “reviver, sentir e compreender” a

imagem a partir de sua contextualização descritiva, interpretativa e reflexiva; bem como, das

bases conceptuais que fundamentaram cada campo analítico da tese.

Portanto, este subcapítulo destaca, principalmente, a sistematização do processo

descritivo, interpretativo e reflexivo no qual o referido movimento de análise se constituiu.

Após lançar um olhar epistemológico sob as perspectivas antropofilosóficas da fotografia como

“pele” (SAMAIN, 2012) e “magia” e de caracterizar o movimento de interpretação memen to,

componho os passos da descrição em high key e da contextualização em low key, tomando como

empréstimo termos próprios da linguagem fotográfica como figura metafórica, promovendo,

assim, outras possibilidades de análise interpretativa da imagem no conjunto de uma narrativa

fotoetnográfica. Segundo Marcuschi (2000, p. 75) magia e metáfora têm muito em comum, no

entanto,

A magia é um modo de conhecer o mundo a fim de agir sobre ele, influenciando-o, ao passo que a metáfora é um modo novo de conhecer e

comunicar o mundo assim conhecido. Ela é, de certa forma, um recurso

reestruturador da realidade, criando novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo restrito à realidade puramente factual. É em parte isso que leva todas

as correntes linguísticas e filosóficas de cunho positivista a não tratarem a metáfora ou simplesmente a descartá-la (MARCUSCHI, 2000, p. 75-76).

De modo contrário às concepções positivistas, reconheço as metáforas como linguagens

potencialmente disparadoras de conhecimento, reminiscências, memórias. As metáforas

legitimam a criatividade e a habilidade humana em fazer-se entender, comunicar-se, tornar-se

inteligível, promover o diálogo entre a epistemologia e a ontologia do conhecimento através do

desvelamento da realidade, visto pelo prisma da fenomenologia existencial heideggeriana que

estabelece o conceito de verdade como “aletheia” – “unverborgenheit” (desvelamento),

diferente da concepção platônica de verdade como adequação – “paidéia” (essência).

Embora, reconheça a adequação e importância da filosofia platônica na teoria da

reminiscência e no contexto do memento elaborado para o processo de análise das narrativas

visuais, remeto à perspectiva fenomenológica de Heidegger (1960) como inspiração

epistemológica e ontológica para descobrir, refletir e compreender o fenômeno a partir da

concepção de desvelamento (unverborgenheit). Tendo em vista que, a fenomenologia “[...] é o

método que permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o. [consequentemente] A

ontologia somente é possível como fenomenologia” (HEIDEGGER, 2012, p. 123, grifo meu).

126

Na perspectiva heideggeriana (1960, p. 28) a fenomenologia torna possível descobrir a

essência do fenômeno - “phainomenon”, também identificado como “o ente”, em outras

palavras, seu desvelamento “aletheia” busca conduzir o fenômeno à luz, trazer à tona seu

sentido oculto. Nessa dimensão conceptual, Heidegger (1960, p. 35, tradução minha) define

fenômeno por “[...] aquilo que primeiramente, e o mais das vezes, não se manifesta, ainda que

pertença ao mesmo tempo e essencialmente àquilo que primeiramente e, o mais das vezes, se

manifesta, e de tal maneira que constitua seu sentido e fundamento”.

No entanto, esta inspiração aplica-se apenas ao contexto de análise interpretativa que

busca o desvelamento das imagens numa perspectiva heurística e transdisciplinar na medida

em que dialoga com outros campos epistêmicos e ontológicos. De acordo com Holanda (2006,

p. 368) a palavra “heurística” decorre do verbo grego “heuriskein”, que significa “encontrar”,

“descobrir”. A abordagem heurística na pesquisa científica rompe com os padrões tradicionais

de pesquisa científica que desprezam a criatividade e a intrínseca participação do pesquisador

na pesquisa, isto é, “na efetiva colocação da subjetividade do pesquisador no ato de pesquisar”,

desse modo,

Refere-se a um processo de pesquisa interna através do qual se descobre a

natureza e o significado da experiência, e desenvolve métodos e procedimentos para investigações futuras. Neste modelo o self do pesquisador

está presente ao longo de todo o processo, ou seja, o pesquisador experiencia

self-awareness (auto-consciência) e auto-conhecimento (HOLANDA, 2006, p. 368, grifo do autor).

Desse modo, procurei “desocultar” àquilo que se encontra magicizado nas imagens

técnicas da Fotoetnografia partindo primeiro, das minhas próprias percepções de pesquisadora

à luz das concepções teóricas que pautam a tese e das descrições em high key e low key

elaboradas segundo as dimensões e contextualizações dos respectivos campos analíticos.

A Fotoetnografia propõe uma narrativa que integra memória, história e imagem, situada

nas traduções da realidade fixada nas peles magicizadas da fotografia, onde o fotógrafo delimita

em suas margens, recortes arbitrários do tempo e do espaço através de “um gesto último e

definitivo, aquele de apertar o disparador; é um ato intencional determinado pelo ponto de vista

particular daquele que olha e adota certa posição frente à realidade” (ACHUTTI, 2004, p. 111).

Assim como Flusser (1985), Achutti (2004, p. 111) concebe a fotografia como a “materialização

de um olhar”, ela “é o discurso de um olhar”. Da mesma forma, Samain (2012) reafirma a

imagem como lugar de história, de questionamento, de vivências e de criação.

127

Pelo viés da semiótica, o signo fotográfico é tanto ícone da realidade que o representa

quanto um é índice de ligação física da realidade indexicável, ou seja, a indexicalidade é a

existência e a iconicidade uma lembrança de algo (PEIRCE, 2005). Essa visão foi prenunciada

por Barthes (1964, p.28) ao afirmar que "a imagem faculta imediatamente uma mensagem, cuja

substância é linguística", porém, foi evoluída por Flusser ao tratar do deciframento das

fotografias através de duas intencionalidades - a do emissor e a do receptor.

O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um

golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o

significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela

superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning. O

traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas também impulsos no íntimo do observador (FLUSSER, 1985, p. 7, grifos do autor).

Dar à imagem o patamar de linguagem no contexto da ciência é reafirmar seu caráter

epistemológico e ontológico. De acordo com Dubois (2010, 25) o documento fotográfico

adquiriu credibilidade singular devido à sua fidelidade em reproduzir o real, processo que ele

chamou de automatismo de sua gênese técnica, em seu modo específico de constituição e

existência, referindo-se ao processo mecânico de produção da imagem fotográfica.

Por um lado, a fotografia veio responder a uma demanda crescente de imagens

e de autorrepresentação da burguesia em ascensão, buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas fiéis aos seus referentes. De

outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de

controlar e disciplinar um contingente diversificado de sujeitos em uma sociedade de massas, criando a foto de identificação (MONTEIRO, 2012, p.

11).

Conforme também ressaltou Gonçalves (2013) há uma relação muito intensa entre o real

e o virtual na fotografia, o signo construído se torna real, subvertendo a totalidade espacial e

temporal, dessa forma, o signo que a fotografia gera pode ser considerado a materialização da

realidade. Nesta perspectiva, Carvalho, C. (2011, p. 114) acentua a imagem como uma invenção

socialmente construída que se tornou um importante instrumento de registro, memória ou

simples diversão na contemporaneidade. Conforme foi dito, vivemos no mundo da imagem,

estejam elas fixas ou em movimento, as imagens acompanham quase cada instante de nosso

quotidiano, são fenômenos permeados de subjetividade e memória.

Ao evocar a memória, a imagem transforma-se em um lugar de processo vivo, torna-se

testemunha de um sistema de pensamento em que ela própria se desvela pensante (SAMAIN,

128

2012, p. 158). Partindo da perspectiva heurística e metodológica do memento, as imagens

promovem conexões de sentidos e significados entre reminiscências e experiências visuais do

passado e do presente, que incidem diretamente no futuro. Ao articular conhecimentos abstrato

e real, cada instante imagético fixado pela objetiva da câmera fotográfica, registra, representa e

“personifica” pessoas, lugares, situações que ultrapassam as fronteiras do tempo e do espaço.

Desse modo, na imagem, o passado se torna pseudopresença, o presente vira lembrança e o

futuro uma nova simulação mental que se constrói na ação do real no presente que se quer

magicizar no instante do click fotográfico, a ser contemplado no futuro, como assevera Flusser

(1985, p.38):

[...] o universo fotográfico não é apenas um evento relativamente inócuo do funcionamento, mas pelo contrário, é o modelo de toda vida futura. E que a

filosofia da fotografia pode vir a ser o ponto de partida para toda disciplina,

que tenha como objeto a vida do homem futuro.

Consequentemente, as técnicas fotográficas em high key e low key permitem, além de

uma decodificação visual, o diálogo com a subjetividade, emocionalidade e o conhecimento

humano para o desvelamento da realidade magicizada em imagens técnicas fotográficas que

apontam direcionamentos e projeções futuras. Neste contexto, Flusser (1985) ressalta que a

realidade pode ser significada a partir de três deslocamentos temporais: o pré-histórico, o

histórico e pós-histórico. No período pré-histórico as imagens significavam a realidade

magicizadas em pinturas e figuras pictóricas. No período histórico, surge a escrita e com ela, a

idolatria aos textos, que passa a significar a realidade por meio de conceitos, teses e pela

Ciência, desmagicizando, assim, as imagens. A atualidade, segundo o filósofo, é o tempo pós-

histórico, no qual surgem as imagens técnicas na tentativa de (re)magicizar e (re)significar a

realidade através das imagens, outrora negada pela textolatria do tempo histórico, portanto, “o

caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas mensagens” (FLUSSER,

1985, p. 7).

O período atual marca uma revolução na função e no sentido das imagens para a

humanidade, passando a mediar a relação homem-mundo. Nesta perspectiva a imagem adquire

o significado de “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente” e

essa magia é a própria “existência no espaço-tempo do eterno retorno” (FLUSSER, 1985, p. 5).

Tempo e memória se comunicam para magicizar o mundo em cenas, a imagem técnica que

inaugurou esse tempo foi a fotografia, e ela própria nos programou para pensar assim.

129

A estrutura pós-histórica do nosso pensamento pode ser encontrada em vários

outros terrenos: biologia, psicologia, linguística, informática, cibernética, para citar apenas alguns. Em todos, estamos já, de forma espontânea, pensando

informaticamente, programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente.

[...]. Penso que estamos pensando de tal maneira porque a fotografia é o nosso modelo, foi ela que nos programou para pensar assim (FLUSSER, 1985, p.

39-40, grifos meu).

Pensar imageticamente, eis a ideia flusseriana central de representação da realidade

magicizada em cenas. Vista por Aumont (2016, p. 275), “A imagem representativa, sempre, foi

também imagem abstrata”. Sob a mesma percepção, penso que, ora as imagens se formulam no

pensamento a partir da realidade perceptível e, ora o pensamento se materializa em realidade

através da imagem. Neste sentido, antes de materializar-se em imagens técnicas, os

pensamentos são formulados no imaginário humano, como se a mente registrasse a cada

percepção, uma nova fotografia mental, ao mesmo tempo em que as imagens visuais da

realidade se constituem, por si próprias, a materialização do pensamento humano.

No entanto, segundo a “apocalíptica” visão de Flusser (1985, p. 40-41), as sociedades

contemporâneas têm vivido em função das imagens, o próprio mundo passou a se constituir

como conjuntos de cenas, esses processos, se, não entendidos a partir de uma postura crítica e

reflexiva, tornam-se um meio de idolatria e consequentemente, de alienação dos homens em

relação a seus próprios instrumentos68. Disto, a necessidade de uma filosofia da fotografia,

porque no mundo programado por aparelhos, ela vai “apontar o caminho da liberdade” perdida

no tempo histórico em que a textolatria dominou o conhecimento,

No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a

própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade. Não se trata, nesta

revolução fundamental, de se substituir um modelo pelo outro. Trata-se de saltar de um tipo de modelo para outro (de paradigma em paradigma). Sem

circunlocuções: a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos (FLUSSER, 1985, p. 40).

Neste diapasão, torna-se necessário agora, explicitar o processo combinatório de aportes

variados necessários para a produção de uma imagem técnica – a fotográfica. Para tanto,

subscrevo as palavras de Samain (2012, p. 157, grifos do autor):

68 Flusser (1985, p. 13-14) define instrumentos como simulações dos órgãos do corpo humano que

prolongam. São exemplos desta analogia: a enxada prolonga o alcance do dente; a flecha prolonga o

alcance do dedo; o martelo prolonga o alcance do punho, e “como prolongações, alcançam mais longe e

fundo a natureza, são mais poderosos e eficientes”. Nesta perspectiva, o autor entende o aparelho fotográfico enquanto prolongamento do corpo humano por simular o olho.

130

A imagem é um fenômeno na medida em que torna sensível todo um processo

que combina aportes dos mais variados. Tomemos como exemplo a imagem fotográfica. A que processo combinatório ela deve sua existência? Para se

moldar, precisou de um suporte: uma máquina captadora de luz, jogos de lentes, diafragma e obturador, uma placa sensível. Para se construir, precisou

de uma pessoa, do seu talento, de sua maneira de observar, de pensar e de

expressar o que viu, de enquadrar, de retocar, de manipular. Para emergir, ela precisou da existência do tempo, do espaço, da luz e da sombra, das cores, das

linhas, dos volumes, das formas, do ambiente... Em poucas palavras, a

fotografia precisou da longa história de uma “aventura” icônica. Para viver enquanto imagem, foi necessária a existência de espectador(es), isto, de seres

vivos, “aptos a saberem olhar uma imagem [...], capazes de discernir ‘lá onde ela arde’” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 33, grifo do autor).

De forma prática, Samain (2012, p. 157) resume quatro elementos necessários: o

suporte técnico, o fotógrafo, a película icônica e o espectador. Com base em seus

argumentos, farei um breve panorama desses elementos e suas implicações para o entendimento

da gênese fotográfica no contexto da Fotoetnografia.

O suporte técnico corresponde ao equipamento fotográfico, é um instrumento óptico

que comporta espelhos, primas, lentes e sensor. Para funcionar é preciso a harmonia em três

processos: a abertura do diafragma – estrutura responsável pelo controle de entrada de luz no

sensor para produzir a imagem, funciona como a íris das câmeras e se encontra dentro da lente;

a velocidade do obturador – o obturador é o elemento responsável por proteger o sensor e

controlar a entrada de luz no sensor, sua velocidade determina a abertura do diafragma; e o ISO

(International Standards Organization) – que indica a sensibilidade do sensor da câmera em

capturar a luz. (Ver esquema 6). Esses processos são fundamentais para controlar a exposição

da imagem, neste sentido, é preciso combinar cada elemento para obter a imagem desejada, a

alteração de um deles, implica em mudanças diretas no resultado da imagem.

131

Esquema 6 - Processo de exposição da imagem fotográfica.

Fonte: Elaboração própria (2017).

Conforme o esquema 6, o controle da exposição da imagem envolve a quantidade de luz

que incide diretamente no obturador, combinando à velocidade do diafragma ao tempo de

abertura, e a decisão de apertar o disparador deve ser tomada mediante o equilíbrio desses

elementos. O controle da exposição é realizado junto ao histograma da fotografia que apresenta

o nível de exposição da luz através de um gráfico. O histograma funciona como um termômetro

da imagem, nele identificam-se os pontos de equilíbrio, iluminação, contrates da foto. No

entanto, importante destacar que cada fotografia é única, como também é seu histograma, em

outras palavras, o histograma é a identidade do documento fotográfico, sua representação é a

alma da fotografia, esta, por sua vez, torna-se o corpo, a pele magicizada na imagem técnica.

Evidentemente, o controle do aparelho depende de alguém que o manipule, portanto,

para que a imagem se materialize, a ação do sujeito, fotógrafo/pesquisador, é fundamental.

Segundo Achutti (2004, p. 96) no contexto da Fotoetnografia, para se ter êxito é preciso além

de dominar essas técnicas, ter clareza do objeto escolhido, “seja por meio de objetivas e de

aberturas determinadas”, seja por “movimentos de aproximação ou de distanciamento”, sempre,

“aquele que fotografa é constantemente submetido a escolhas”.

É por isso que o pesquisador deve saber “jogar com o foco seletivo, a velocidade de

obturação, as objetivas, definir a abertura desejável, tudo isso em razão de uma profundidade

ISO Sensibilidade

(incidência de luz)

VELOCIDADE Diafragma

(tempo de abertura)

FOTOGRAFIA Exposição da

imagem

ABERTURA Profundidade de

campo (entrada da luz)

132

de campo determinada pelo enquadramento almejado” (ACHUTTI, 2004, p. 97). E como diriam

Graue e Walsh (2003, p. 94) “O objetivo da investigação enquadra a sua natureza”, ou seja, o

enquadramento é definido pelo próprio objetivo da pesquisa.

Retomando os elementos combinatórios necessários à produção da imagem fotográfica,

Samain (2012, p. 157) destaca que para emergir, a fotografia precisou de uma aventura icônica

que, segundo o autor, compreende o jogo de linhas, o contraste das cores, o volume e as formas

que comunicam pensamentos “[...] não apenas visual, e sim, sensorial, na medida em que todos

os nossos cinco sentidos participam, em graus variáveis, de tais (re-) elaborações cognitivas”.

Nesta mesma perspectiva, Recuero (2008, p. 45) ressalta que,

O esboço fotográfico é sempre repleto de significância e permite uma análise atenta e diversas leituras, assim como o scanner faz ao ler e copiar um

trabalho, com idas e vindas sobre a matriz. Este processo permite ler os

elementos que compõem aquele fragmento. Os registros intencionais capturados pelo olhar atento do fotógrafo e aqueles que apenas se tornarão

perceptíveis a partir de uma leitura mais atenta por parte do observador.

E, a última condição - para sobreviver, a imagem precisa de um observador, um

espectador, alguém que a contemple em sua profunda relação ontológica, que mergulhe em

suas próprias subjetividades, percepções e emoções. Como ressalta Samain (2012, p. 56)

qualquer imagem na sua essência, é um signo de recepção, é um fenômeno estruturado, uma

manifestação, “uma estrutura que conecta um conjunto de elementos e de formas que se pensam

entre si”.

Ante tais elucubrações, o desvelamento da fotografia permeou a “desocultação” das

partes claras - superexpostas na imagem, que corresponde à descrição dos elementos em

primeiro e segundo plano enquadrados pela objetiva; e das áreas escuras - subexpostas, que se

refere à contextualização dos elementos ocultos da imagem, vistos pelo olhar de quem

fotografou, pelo meu olhar como pesquisadora ou pelo olhar da criança-sujeito, portanto,

desvelando a fotografia a partir do diálogo entre o visível e o oculto, as aparências e as

(dis)simulações, o racional e o sensível, o simulacro e o real, a pele e a magia, ou seja, buscando

nela (fotografia) sua descrição em high key (chave alta) e sua contextualização em low key

(chave baixa).

Dito isto, adentro na particularidade da fotografia produzida em high key e low key,

técnicas de manipulação e exposição da luz para obtenção de resultados extremamente claros

ou escuros na fotografia. As imagens em high key concentram suas informações em tons claros

nas áreas superexpostas (muito clara) da fotografia, e em low key as informações se concentram

133

em tons escuros nas áreas subexpostas (muito escura) da fotografia69.

Portanto, em alusão à linguagem fotográfica, a descrição em high key no contexto

particular da pesquisa, refere-se àquilo que Aumont (2016, p. 79) entende por valor de

representação das coisas concretas na relação da imagem com a realidade, acrescentamos

também, a percepção das características primárias e secundárias da fotografia, os elementos que

foram enquadrados por esse ângulo, àquilo que se encontra magicizado na pele, no corpo da

fotografia.

Importante, ressaltar que a imagem representativa também se caracteriza como imagem

narrativa, independente da dimensão do “acontecimento contado”, desse modo, quando se

deseja interpretar o que imagem representa, “é lógico que se comece por indagar qual é sua

relação coma narratividade em geral” (AUMONT, 2016, p. 255).

A contextualização em low key compreende um valor de símbolo que representa as

coisas abstratas. De acordo com a abordagem semiológica, a codificação da imagem fornece

diversos códigos determinados pelo contexto que são mobilizados universalmente,

relativamente e socialmente pelos sujeitos, por isso “o domínio desses diferentes níveis de

códigos será desigual segundo os sujeitos e sua situação histórica, e as interpretações resultantes

serão proporcionalmente diferentes” (AUMONT, 2016, p. 262). Desse modo, a fotografia

enseja,

Um mesmo olhar direcionado para dois pontos de fugas: o do estudo e o do

imaginário. São, efetivamente, dois portos de embarque e duas viagens

complementares. A fotografia permite e favorece esta confluência de significações e de desdobramentos. Para quem olha para ela, nunca será

apenas o que ela mostra (SAMAIN, 2003, p.63).

Além disso, tanto a descrição em high key quanto a contextualização em low key

possuem representação valorativa de signo, cujo significante visual tem uma relação totalmente

arbitrária com seu significado (AUMONT, 2016, p. 79). Desse modo, as duas leituras da

imagem ocorrem de forma interdependentes, porém, complementares.

As dimensões descritivas (high key e low key), estéticas (sensitivas) e interpretativas

(epistemológica e empírica) realizadas através do memento, serviram de símbolos, de

representação epistemológica e ontológica, bem como, de objeto estético dado à contemplação

de seu leitor/espectador.

69 Algumas informações acerca da linguagem fotográfica podem ser verificadas junto aos sites

www.fotodicasbrasil.com.br; www.tecmundo.com.br; www.cameraneon.com.

134

Em vista disso, o conjunto de significados produzidos por esse método resultou da

síntese entre duas “intencionalidades” que se retroalimentaram: a do emissor e a do receptor

(FLUSSER, 2007, p.21). Assim, as narrativas fotoetnográficas constituíram-se de

representações, símbolos e significantes visuais carregados de sentidos, significados, histórias

e memórias (AUMONT, 2016, p. 80). O desafio, portanto, passa a ser decifrá-las, como bem

alertou Flusser (1985, p.25).

Decifrá-las é descobrir o que os conceitos significam. Isto é complicado,

porque na fotografia se amalgamam duas intenções codificadoras: a do

fotógrafo e a do aparelho. O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das

fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se. A

fotografia é, pois, mensagem que articula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir crítica fotográfica que revele essa ambiguidade do

código fotográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a intenção humana.

Dado o exposto, a leitura das imagens fotográficas em high key efetuou-se a partir das

seguintes dimensões: i. Descrição das informações e análises originais encontradas na fonte em

que a imagem foi encontrada; ii. Identificação dos elementos perceptíveis, os pontos claros, as

áreas planas, àquilo que primeiro apreende o olhar, ou seja, os “ditos” da fotografia. iii.

Percepção das intencionalidades explícitas da fotografia segundo sua fonte original.

Em relação à leitura das imagens em low key, ampliam-se as dimensões do olhar,

considerando os seguintes elementos: i. Contemplação subjetiva e ontológica do belo na

fotografia para encontrar sua verdade; ii. Scanning da imagem em busca dos “não-ditos”; iii.

Desvelamento dos elementos ocultos na fotografia que emergiram através de reminiscências,

memórias, subjetividades e emocionalidades do olhar. iii. Contextualização crítica e

interpretativa à luz dos pressupostos teóricos adotados no estudo.

Desse modo, essas técnicas foram fundamentais para perceber nas áreas claras, as

infâncias expostas nas imagens fotográficas construídas como fruto direto das intervenções

midiático/culturais e desvelar as áreas escuras e escondidas das infâncias veladas em cenas

magicizadas, que despertaram reminiscências e reflexões acerca das concepções de crianças,

infâncias e culturas infantis discutidas ao longo da tese.

Em síntese, o movimento de análise interpretativa das narrativas fotoetnográficas

empreendidas na tese, seguiu, consecutivamente, as seguintes etapas: i. Seleção das fontes de

pesquisa, bem como, das respectivas fotografias; ii. Contemplação e interpretação das imagens

– memento; iii. Seleção das fotografias para compor a narrativa fotoetnográfica; iv.

135

Organização da narrativa textual em diálogo com a narrativa visual; v. Descrição em high key;

vi. Contextualização em low key; vii. Análise interpretativa e reflexiva sob perspectivas

transdisciplinares, heurísticas e críticas.

Entretanto, importante relembrar que todo o movimento empreendido em função das

análises foi desenvolvido a partir de diálogos epistemológicos, ontológicos e antropofilosóficos

com os campos da Fotografia, Fotoetnografia, História Social da Infância, Sociologia da

Infância, da Cultura Visual e da Educação Estética.

Após contextualizar os delineamentos metodológicos empreendidos na tese, sintetizo a

seguir, trajetória da Fotoetnografia como campo de pesquisa científica, destacando,

principalmente, suas implicações para os estudos na área da infância e da Educação.

136

2 A FOTOETNOGRAFIA NA OBJETIVA DA PESQUISA CIENTÍFICA

Fotografia - junção do original grego φως (fós) que

refere-se à "luz", à γραφις (grafis) que aplica-se à

"estilo", "pincel" ou γραφη (grafê), que refere-se a

"desenhar com luz e contraste. Etnografia - junção

do original grego έθνος (ethno) que significa “nação,

povo” e γράφειν (graphein) que refere-se a

“escrever”. Recursos seculares que desdenham,

eternizam, interpretam e comunicam os emaranhados

da realidade humana. Desse entrelaço - a

Fotoetnografia.

Achutti (1997, p. 13) defende a fotografia como prática etnográfica estabelecendo

assim, um diálogo com o campo de conhecimento da Antropologia Visual. Neste sentido, a

Fotoetnografia evoca o potencial narrativo da imagem fotográfica para falar da realidade.

“Trata-se de uma nova forma narrativa concebida na perspectiva de uma antropologia

interpretativa tendo como uma de suas características a de se oferece como escrita, “construção

das construções dos outros” 70, aos esforços interpretativos do leitor/espectador” (ACHUTTI,

2004, p.72).

Para isso, Achutti (1997, p. 12) utilizou uma abordagem descritiva, associada às técnicas

antropológicas de pesquisa de campo, em que a imagem fotográfica foi sua principal forma de

narrar, assim, buscou investigar os elementos com os quais a população construía seus traços

identitários.

A Antropologia tem crescido, gradativamente, para outros campos de produção de

conhecimento e seu desafio não está em reconhecer o papel do visual na pesquisa científica,

mas, em saber o que fazer com ele, como problematizar e contextualizar as imagens na análise

da investigação, nesse contexto, a Fotoetnografia propõe uma interlocução entre os métodos

antropóligos da pesquisa etnográfica aos métodos de análise dialético, holístico,

transdisciplinar e subjetivo das Ciências Humanas. Para Cavedon (2005, p. 21) “a fotografia e

a etnografia requerem a capacidade de lidar com a emoção e de saber utilizar a mesma para o

descortinamento de elementos recônditos no cerne do fazer científico”.

De acordo com Achutti (2004, p. 81) “apesar de a fotografia ser a mãe das técnicas

modernas de registro e de reprodução de imagens tomadas da realidade, não é ela, mas o cinema,

70 Aqui, Achutti faz referência à Geertz (ACHUTTI, 1989, p. 79).

137

que se encontra na origem daquilo que chamamos de antropologia visual”. Desse modo,

Antropologia, fotografia e cinema dialogam sobre formas e conceitos que se pretendem fontes

de interpretação da realidade e devem ser aprofundados no contexto científico, “não porque

estas tecnologias nos permitiriam registrar e salvar cultura em extinção, como queria Margaret

Mead em meados dos anos 70, mas porque fotografia e cinema nos ajudam a pensar e a fazer

Antropologia” (NOVAES, 2009, p. 22-23).

Achutti (2004, p.95) destaca que o cinema etnográfico adquire valor científico em 1952,

na ocasião do segundo Comitê Francês do Filme Etnográfico na Sala de aula de Cinema do

Museu do homem, em Paris, quando um seleto grupo de antropólogos ao definir filme

etnográfico, estabeleceram o diálogo entre o rigor científico e a arte cinematográfica. Neste

contexto, o uso da imagem passou a ter o status de Ciência sendo considerado como técnica

metodológica no campo das Ciências Sociais a partir das interlocuções entre Antropologia e

fotografia, quando os antropólogos passaram a ir pessoalmente ao encontro dos povos de

diferentes culturas, marcando assim, o início do trabalho de campo etnográfico na

Antropologia, onde o uso da fotografia é conhecido principalmente como técnica de pesquisa

aplicada ao trabalho de campo.

De acordo com Achutti (2004, p. 105) a pesquisa etnográfica de Malinowski “Os

Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922) foi pioneira na Antropologia a utilizar a fotografia

como técnica de pesquisa aplicada ao trabalho de campo, desde então, outros trabalhos também

contribuíram para a consolidação da Antropologia Visual no campo científico, como os de

Gregory Baterson e Margaret Mead (1942), John e Malcolm Collier (1967), Pierre Verger

(1999), Samain (1995), Garrigues (1997), dentre outros. Daí em diante as imagens adquiram

maiores implicações na pesquisa em Antropologia Visual, o que culminou também em outras

possibilidades teórico-metodológicas como é o caso da Fotoetnografia.

Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua totalidade, porém, partindo

da compreensão de fenômenos particulares, dialogando com a teoria selecionada e com as

vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais. Apesar de o método ter sido

empreendido para investigar comportamentos adultos e no campo da Antropologia, aos poucos

foi tomando proporções em outras áreas das Ciências Humanas e Sociais, tendo em vista sua

adequação transdisciplinar teórica e metodológica para estudos dos vários grupos humanos.

Quando uma narração visual que utiliza a fotografia é articulada com um texto

escrito que, por sua vez, já alcançou sua legitimidade, ela só tem a contribuir

[...] para enriquecer e facilitar as interpretações dos dados, particularmente quando estes resultam de universos sociais cuja densidade e complexidade

138

crescem a cada dia e nos quais as imagens se impõem cada vez mais como

elementos próprios à sociabilidade, como reveladores das diferentes práticas culturais (ACHUTTI, 1997, p. 83).

Para Cavedon (2005, p. 22) a Fotoetnografia surge da união entre a fotografia com a

etnografia. Tal junção exige a capacidade de dominar dois aspectos: o primeiro refere-se ao ato

de fotografar, que exige conhecimento técnico relativo ao uso de equipamentos adequados e

domínio da percepção visual e o segundo corresponde à imersão do pesquisador no universo

pesquisado de modo a participar da realidade cultural investigada. A combinação desses dois

saberes exige habilidade e disposição do/a pesquisador/a em produzir a narrativa pela via do

imagético. Desse modo, a fotografia se torna elemento principal de descrição em pesquisas

antropológicas para a obtenção dos dados e interpretação da realidade. Ondina Leal71, citada

por Achutti (1996, n.p.) no resumo de seu trabalho de dissertação, ressalta:

A fotografia é um aprendizado de observação paciente, de elaboração

minuciosa de diferentes estratégias de aproximação com o objeto, de

desenvolvimento de uma percepção seletiva, de uma vigilância constante e de prontidão para captar o acontecimento no momento do acontecimento. A

dupla capacidade da câmara de subjetivar e objetivar a realidade, a constante consciência de que se é responsável por este processo, por uma técnica de

apreensão da realidade, de que se é sujeito deste conhecimento, é um

ensinamento epistemológico e uma forma de fazer antropologia (ACHUTTI, 1996, n.p.).

Portanto, a pesquisa fotoetnográfica abrange o caráter etnográfico da Antropologia,

quando a fotografia é utilizada como instrumento principal na realização de um trabalho de

campo (BONI e MORESCHI, 2007). O que requer uma descrição densa e legítima do fenômeno

abordado, no entanto, a fotografia ganha outra valoração na pesquisa científica que até então,

não havia sido dada pelos etnólogos fundadores da Antropologia Visual, que mesmo tendo

utilizado a fotografia em suas pesquisas, sempre a relegaram um lugar secundário (ACHUTTI,

2004, p. 109).

O método etnográfico representa um risco elaborado para uma descrição densa da

realidade (GEERTZ, 1973), envolve uma observação intensiva no ambiente natural e a imersão

do pesquisador no contexto para permitir a compreensão do fenômeno estudado. De acordo

71 QRcode 13: Resumo on-line da dissertação de Achutti (1997).

139

com Matos (2008) através da etnografia busca-se uma descrição mais completa possível, sobre

o que um grupo particular de pessoas faz e o significado das percepções imediatas que eles têm

acerca do que eles fazem. Esta descrição é sempre escrita com a comparação etnológica em

mente, constitui a “escrita do visível”. Dessa forma, a pesquisa etnográfica abarca a perspectiva

dialética, assim como a comparação, a densidade descritiva, o significado, sua organização e

variações (MATTOS, 2011). Esse modelo dialético permite conhecer a realidade em sua

totalidade, porém partindo da compreensão de fenômenos particulares, dialogando com a teoria

selecionada e com as vivências e falas dos sujeitos em seus contextos culturais.

Neste sentido, a Fotoetnografia caracteriza-se como método de descrição e interpretação

cultural, tendo em vista que, utiliza a imagem, mais especificamente, a fotografia, como recurso

narrativo para a obtenção dos dados e interpretação da realidade e tem o objetivo de mostrar

visualmente os conceitos que estão sendo investigados. Dessa forma, uma narrativa

fotoetnográfica deve se apresentar “[...] na forma de uma série de fotos que estejam relacionadas

entre si e que componham uma sequência de informações visuais.” (ACHUTTI, 2004, p. 109).

A Fotoetnografia, como perspectiva teórico-metodológica, permite não só examinar as

narrativas imagéticas que compõem os discursos e as teorias que fundamentam e

fundamentaram estudos e pesquisas científicas, como também, amplia as possibilidades de

investigação empírica, tendo em vista seu potencial narrativo imagético para compreensão da

realidade, o que de certa forma, torna possível rememorar momentos históricos, narrar e

ressignificar as singularidades desses momentos e compreender a evolução dos conceitos de

criança, infância e culturas infantis em épocas e contextos diferenciados. Além disso,

A fotografia ajuda da mesma forma e a recolher mais rapidamente certos detalhes próprios a rituais ou a cultura material – adornos, vestimentas,

ferramentas de trabalho etc. Ela pode também representar uma grande fonte

de inspiração para o pesquisador, após ter deixado seu trabalho de campo, permitindo-lhe chegar a novas conclusões (ACHUTTI, 2004, p. 95).

No entanto, cabe ressaltar que, diferente dos primeiros trabalhos etnográficos com

imagens que eram produzidos durante anos de incursão do pesquisador no campo, as pesquisas

fotoetnográficas não são determinadas pela quantidade de tempo empreendida na observação e

coleta junto ao fenômeno, mas sim, pela intensidade das relações estabelecidas entre

pesquisador-sujeito-objeto durante a realização da observação e coleta (não necessariamente

nesta ordem). Nesse sentido, trabalhos fotoetnográficos podem apresentar variedade no tempo

de duração da pesquisa, isso vai depender do que será determinado como o objeto de

investigação. O que não significa afirmar que a Fotoetnografia perde sua propriedade

140

etnográfica, pelo contrário, evidencia que a antropologia nos dias de hoje, tem ampliado seu

campo de abordagem e intervenção nas pesquisas científicas, contribuindo com novas formas

e contextos de se fazer registros descritivos da cultura na atualidade, nesta perspectiva, a

preocupação de ordem epistemológica dos antropólogos não está apenas direcionada “[...] à

teoria e aos problemas de ética e da palavra de pesquisa que ocorrem em campo, mas também

se interessam pela questão da restituição e dos diferentes estilos e possibilidades de escritura”

(ACHUTTI, 2004, p.103).

Por conseguinte, Achutti (2004, p. 96-97) ressalta que a Fotoetnografia requer o domínio

da técnica fotográfica a fim de se proporem textos antropológicos utilizando a linguagem visual

como forma de transcrever dados obtidos na pesquisa de campo. Porém, trata-se de uma

perspectiva ainda recente que aos poucos vai se estabelecendo nas Ciências Sociais e agora,

mais recentemente, com algumas tímidas produções em Ciências Humanas.

Com base no levantamento de literatura realizado junto aos repositórios digitais da

CAPES, SciELO e ANPEd, a Fotoetnografia ainda é uma metodologia pouco explorada nas

pesquisas científicas brasileiras, fato que me leva a afirmar que, apesar da sua densidade

epistemológica e empírica, ainda se trata de um campo em emergência que precisa ser ampliado

e aprofundado nas Ciências Humanas e Sociais.

A partir do indexador “Fotoetnografia”, totalizam-se até o corrente ano, 37 trabalhos,

sendo, 8 teses, 18 dissertações e 11 artigos. Destes, 26 pesquisas foram registradas junto à

CAPES desde 1996, sendo apenas 5 relacionadas direta e indiretamente à crianças e infâncias;

9 pesquisas encontradas junto ao banco de dados da SciELO, nenhuma dessas sobre infância.

Junto à ANPEd, foram encontrados 2 registros, um sobre a exposição fotográfica "Olhares e

Vozes do Cárcere", apresentada na ANPEd Sul 2016, onde socializou o resultado da tese de

Liviski (2016) intitulada “Retratos de detentas na etnografia do espaço prisional: trajetórias,

imagens e representações fotografias das próprias detentas de presídios do Paraná” e um recorte

de tese em andamento na área de Educação e Infância, intitulado “Crianças e Objetos: narrativas

fotoetnográficas sobre infâncias contemporâneas”. O quadro 1 esboça as pesquisas separadas

por categorias de trabalho acadêmico e áreas de conhecimento.

141

Quadro 1 - Levantamento de Pesquisas em Fotoetnografia (1997-2017).

Programas CAPES SciELO ANPEd

Teses Dissertações Artigos

Administração - 6 2 -

Ciências Sociais 1 2 - -

Multimeios 1 - -

Antropologia 2 4 -

Sociologia Política 1 - 1

Educação 4 3 1 1

Estudos Culturais - 1 - -

Letras 1 - -

Comunicação e

Cultura

- 2 - -

Performances

Culturais

- 1 - -

Dinâmicas

Territoriais

- 1 - -

Saúde - - 1 -

Antropologia em

novas mídias

- - 1 -

Total 8 18 9 2

Fonte: Elaboração própria (2017).

Após a leitura de todos os respectivos resumos das pesquisas categorizadas por área,

foram selecionados para análise e produção da narrativa fotoetnográfica apenas 5 trabalhos

relacionados direta e indiretamente com as categorias criança, infância e culturas infantis, sendo

4 junto à CAPES - 1 dissertação em Antropologia Social (VILLAS BOAS, 2016); 1 dissertação

em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (MENEZES, 2016); 1 teses e 1 pesquisa

em Educação (TROIS, 2012; SÁ, 2014). E junto à ANPEd apenas 1 recorte de pesquisa em

andamento foi analisado por abranger um estudo fotoetnográfico (APRATO, 2016).

Neste capítulo, a seleção iconográfica para a composição da narrativa fotoetnográfica,

partiu das imagens de crianças discutidas no âmbito destes trabalhos, lidos na íntegra, porém,

priorizando duas pesquisas diretamente relacionadas às culturas da infância, tais trabalhos

apresentaram em seus corpus um maior número de imagens de crianças, são eles: a tese de

Trois (2012) que discute o currículo das infâncias no contexto das ações e interações escolares;

e a dissertação de Villas Boas (2016) que investigou a construção de si das crianças que

participam da manifestação Nêgo Fugudo em Acupe-BA. No entanto, das demais produções

também foram selecionadas informações e imagens referentes às culturas infantis de cada

contexto investigado. Conforme quadro 2:

142

Quadro 2 - Pesquisas selecionadas para análise fotoetnográfica dispostas em ordem de narração.

Autor (ano) Título Tipo/Área

Instituição

Palavras-chave

TROIS (2012) O privilégio de estar com

as crianças: o currículo

das infâncias.

Tese.

Pós-Graduação em

Educação, UFGRS.

Infância;

Educação Infantil;

Fotoetnografia;

Currículo;

Currículo das

Infâncias.

VILLAS BOAS

(2016)

{Per[for(mar)]} Imagens

das crianças no Nêgo

Fugido, Acupe/B.

Dissertação.

Pós-Graduação em

Antropologia Social,

UnB.

Criança; Performance;

Cultura Popular;

Recôncavo;

Baiano.

APRATO (2016) Crianças e objetos -

narrativas

fotoetnográficas sobre

infâncias contemporâneas

Recorte de Dissertação

em andamento na

Universidade Luterana do

Brasil, ULBRA,

apresentado no XI

Seminário de Pesquisa em

Educação da Região Sul

(ANPEd SUL).

Não apresenta

palavras-chave em seu

escopo, mas se trata de

pesquisa com criança

no contexto escolar.

MENEZES

(2016)

Cultura Indígena Híbrida:

uma abordagem

interdisciplinar acerca da

Pintura Corporal

Parketêjê.

Dissertação.

Pós-Graduação em

Dinâmicas Territoriais e

Sociedade da Amazônia.

UNIFESSPA.

Cultura estética

indígena;

Hibridismo cultural

indígena; Pintura

corporal

Parkatêjê.

SÁ (2014) Saberes Culturais

Tentehar e Educação

Escolar Indígena na

Aldeia Juçaral

Dissertação.

Pós-Graduação em

Educação, UFPA.

Educação Indígena.

Saberes culturais

Tentehar.

Saberes escolares.

Interculturalidade.

Fonte: Elaboração própria (2017).

Os demais 29 não foram analisados, mas a partir da leitura de seus resumos, sintetizo

alguns temas abordados: cultura, urbanismo, turismo, lugares históricos, festas e religiosidades,

sociedade, estudos sobre cotidianos sociais, identidades, fronteiras culturais,

fotoetnotextografia, mídias e marketings, culturas indígenas, teatro e performance,

apresentando em seus corpus imagens fotográficas como escritas narrativas.

Na sequência, discorro sobre os trabalhos analisados a partir do memento como

143

movimento de interpretação empreendido nesta tese, à luz da Sociologia da Infância e da

perspectiva crítica, transdisciplinar e multireferencial adorada nesta tese, assim, o corpus

imagético e discursivo foi constituído pelos trabalhos de: Trois (2012), Villas Boas (2016) e

Aprato (2016) que abordam diretamente a infância a partir da perspectiva fotoetnográfica; e

pelas pesquisas de Sá (2014) e Menezes (2016) que discutem culturas humanas e indiretamente

lançam olhares sobre as infâncias que se constituem nos territórios investigados.

A tese de Trois (2012), intitulada: “O privilégio de estar com as crianças: o currículo

das infâncias” 72 desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) é o primeiro trabalho em Educação

Infantil que utiliza a Fotoetnografia como estratégia metodológica para pesquisas com crianças

no Brasil. A tese teve o objetivo de refletir, compreender e interrogar sobre como acontece a

participação das crianças na escola e quais as marcas que registram e produzem o currículo da

infância, sendo realizada em uma escola infantil da rede municipal de Porto Alegre. Evidencia

a importância da fotografia como narrativa visual que ajuda a ver, registrar e pensar as infâncias

e suas pluralidades, pois, para a autora, “Toda fotografia é um olhar sobre o mundo, levado pela

intencionalidade de uma pessoa procurando dar significado a este mundo” (TROIS, 2012, p.

35).

Através da Fotoetnografia, narrada em 123 imagens, Trois (2012) apresenta narrativas

visuais que permeiam os espaços escolares revelando as brincadeiras no pátio, as linguagens e

expressões em momentos de leitura e em interações na horta da escola, nas relações entre

crianças e a professora e em momentos de socialização. O trabalho é rico em imagens

fotográficas, revela as singularidades das infâncias nas margens do processo educativo e

demonstra o potencial narrativo da Fotoetnografia para o trabalho etnográfico com crianças.

Segundo a autora, o registro fotográfico já não causa estranhamento, tampouco, encantamento

nas crianças, pois já está imerso no cotidiano escolar. A autora conclui que o currículo da

infância é atravessado pela emergência de uma “infância plural que pulsa, que vibra, que

silencia, que interroga e que, sobretudo, age” (p. 161).

Trois (2012) abre sua pesquisa com uma imagem que transmite a “liberdade infantil”.

Crianças correm livremente no pátio da escola, sem regras, sem medo, sem cobranças, mas,

com muita, muita pressa! Exibem em seus lábios, sorrisos infinitos e em seus olhares, um

72 QRcode 14: Trois (2012).

144

universo de significados que só sendo criança para entender! Esta cena em high key, é composta

por uma imagem ampla, clara e repleta de vida. Nela, é possível visualizar 11 crianças, na faixa

etária entre 3 e 5 anos, meninas e meninos vivendo a plenitude de uma infância colorida cheia

de sonhos e muita “correria”! Quando penso no que esta cena reflete em low key algumas

perguntas me vêm à memória como provocações: por que correm sem parar? Qual direção e

propósito tem essa forma “aligeirada” de se expressar? O que estão sinalizando com essa

cinesia? Talvez, não consiga responder agora, mas formulo algumas percepções sobre isso,

como um memento inspirado em minhas próprias reminiscências de infância e experiências de

“observadora”, e convido o leitor/espectador a experimentar este mesmo movimento.

Quando “correm”, um misto de diversão e alegria toma conta dessa suposta “pressa”,

como se houvesse uma constante “competição” - a da criança mais rápida, mais esperta, a que

consegue “chegar”, “tocar”, “pegar” ou “ser” a “primeira”! Mas a “primeira” em que? Pois tudo

ocorre ao mesmo tempo e em todo lugar! Será que é possível saber o que de fato significa ser

“a primeira”? Creio que essa “pressa em ser a primeira” significa a vontade de viver e ser feliz.

Ter pressa para viver cada momento com intensidade e ser a primeira a conseguir a tão sonhada

felicidade. Ser criança é ter pressa, muita pressa em ser feliz e ser a primeira a “chegar”!

As crianças são ávidas por movimento, essa inquietude, mesmo no silêncio, permitem-

nas experimentar, descobrir, inventar e compreender o mundo a sua volta. É nas relações de

alteridade que as crianças elaboram suas próprias “explicações” e “percepções” da vida, e

exercem seu protagonismo ao subverter situações e recriarem soluções para os problemas e

conflitos que surgem no cotidiano de suas experiências, e assim, vão construindo e inventando

passo a passo suas culturas e identidades infantes.

Os novos agrupamentos das crianças podem ser entendidos como a

constituição de um espaço em que a diversidade e as diferenças das crianças

são potencializadas. As interações ocorridas no hall da escola ou nos pátios deflagram esta ‘mistura’ das crianças (TROIS, 2012, p.59).

Esse espaço de liberdade e alteridade precisa ser garantido no contexto escolar, assim

como essa “vontade de felicidade” que está, principalmente, relacionada ao brincar, precisa ser

entendida como processo fundamental para se pensar práticas, rotinas e currículos pedagógicos

que priorizem uma educação estética.

A filosofia platônica introduz o caráter estético à educação ao apontar que “a boa

educação é aquela que oferece toda beleza e perfeições possíveis ao corpo e à alma”

(ORMEZZANO, 2008, p. 16). É nesta perspectiva, que a educação estética deve ser pensada

145

no contexto da Educação Infantil, como um processo estimulador de percepções, emoções,

sensibilidades e criatividades na infância, com isso a importância da liberdade no brincar.

Conforme apontou Trois (2012, p. 58-59):

A brincadeira é a cultura da infância, produzida por aqueles que dela

participam e ativada pelas próprias atividades lúdicas. Brincar não é uma preparação para nada, é fazer o que se faz em total aceitação, o brincar conduz

aos relacionamentos grupais, à comunicação consigo mesmo e com os outros,

favorece o crescimento, o desenvolvimento de habilidades e produz desafios à razão e à imaginação (TROIS, 2012, p. 58-59)

Outras imagens presentes no trabalho de Trois (2012) foram produzidas em uma área

externa da escola onde estão localizados os parques (de ferro e madeira) e um jardim. Destas

selecionei mais imagens para compor a narrativa fotoetnográfica.

Em high key, a primeira fotografia apresenta uma imagem em profundidade, dividida

em três planos: no primeiro plano duas crianças de aproximadamente 3 anos brincam de

gangorra, se olham e exibem um enorme “bocão”, como expressões de entusiasmo e diversão.

Em segundo plano, duas crianças da mesma faixa etária, brincam de balanço, dando a ligeira

impressão de que uma criança (de pé) está balançando a outra (que está sentada no balanço), as

crianças demonstram concentração na brincadeira. E em terceiro plano, ao longe dá para

perceber mais duas crianças, uma subindo no escorrego 73 e a outra correndo na mesma direção

do referido brinquedo.

Em high key, a segunda imagem corresponde à captura de um momento em que uma

das meninas “inventa” uma maneira diferente de descer no escorrego. Aparentemente, com 3

anos, ela senta com os joelhos dobrados e coloca as pernas para trás se preparando para a

descida. Sua expressão demonstra segurança e tranquilidade. Com uma das mãos segura no

apoio do escorrego e com a outra, ainda procura como apoiar-se. Ela analisa as condições para

em seguida, “se jogar” na descida.

Em high key, a terceira imagem é composta por 8 crianças, de faixa etária entre 1 e 2

anos. Sentadas no chão de areia de um coreto com grades de ferro coloridas e alguns detalhes

em coração, interagem entre si e com brinquedos específicos para este tipo de atividade como

baldinhos, pás, peneiras, entre outros. Todas concentradas e juntinhas.

Em high key, a quarta imagem mostra um cenário predominantemente natural, com

árvores, gramados, canteiros e caixotes cheios de plantas. Em primeiro plano, duas crianças

73 Também conhecido como escorregador em outras regiões no Brasil.

146

com aproximadamente 4 anos estão “trabalhando”, digo, brincando de trabalhar. Enquanto uma

observa, a outra junta com um ciscador, as folhas caídas no canteiro do pátio coberto da escola,

como se estivesse preocupado com a limpeza do lugar. Ao longe, à esquerda, duas crianças

maiores, brincam de bola.

Segundo Trois (2012) essas cenas envolvem cuidado e exploração do meio ambiente.

As crianças experimentam o mundo e se sentem parte dele, desse modo, “Ser sensível à infância

é não infantilizá-la, mas assumir uma atitude de confiança em seu poder de enfrentar a vida”

(p. 71). Esse enfrentamento capturado pela autora revela autonomia, subversão e criatividade

das crianças nas relações de protagonismos e alteridades estabelecidas durante a infância que

se constituem e são construídas em espaços escolares, domésticos e culturais,

[...] ao subir no escorregador mais alto, nas mãos que seguram os degraus para

conseguir atingir seu objetivo, nos ajustes lentos do corpo que se equilibra, na

posição das mãos que firmes enfrentam o desafio e buscam que a segurança se reestabeleça. Ou ainda quando os joelhos se dobram inventando um modo

outro de descer do escorregador, um modo que avalia com cautela as

exigências necessárias implicadas neste ato. [...] São crianças, são sujeitos que vivem suas vidas. Nesse sentido, a criança produz mudanças no sistema que

está inserida, altera rumos, indaga os pares, os adultos. É preciso sermos capazes de entender a criança e seu mundo a partir de seu ponto de vista, do

que fazem e como fazem (TROIS, 2012, p. 72).

Assim como demonstrou a recente pesquisa fotoetnográfica de Villas Boas (2016) 74,

um trabalho de cunho etnográfico intitulado “{Per[for(mar)]} Imagens das crianças no Nêgo

Fugido, Acupe/BA” desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da

Universidade de Brasília (UnB), apresenta uma fantástica narrativa fotoetnográfica que trata da

construção de si das crianças que participam da manifestação popular Nêgo Fugido em uma

pequena vila chamada Acupe, no distrito de Santo Amaro, localizado no Recôncavo Baiano.

Trata-se de um evento cultural em que adultos e crianças encenam a história de luta pela

libertação escrava durante todos os domingos do mês de julho. Villas Boas (2016) buscou

investigar como as crianças vivenciam suas infâncias localmente, como constroem suas

relações entre pares e intergeracionais e como performatizam essa manifestação cultural

formando a si mesmas nessa conjuntura.

A dissertação de Villas Boas (2016) mostra performatividades que são profundamente

74 QRcode 15: Villas Boas (2016).

147

enraizadas em construções sociais, onde as crianças, no ato de “{per[for(mar)]}”, “formam a si

mesmas através da performance e expressam essa formação de si, contínua e ciclicamente”

(p.191). A autora ressalta que a experiência da criança é culturalmente estabelecida no

cotidiano, e isso garante performatividades que são profundamente enraizadas em construções

sociais, o que a faz afirmar também, que, “a relação intergeracional garante que essas crianças

sejam atrizes chave na manutenção da cultura afro-brasileira” (p. 192).

Villas Boas (2016) identificou que as infâncias em Acupe se constituem através de um

número intenso de atividades que envolvem brincadeiras e responsabilidades. Quando não estão

na escola, as crianças passam maior parte do tempo pelas ruas em longas tardes de atividades

diversas que vão desde brincadeiras ao trabalho pesqueiro, onde, “[...] adultos e crianças se

lançam rio adentro para mariscar”, uma atividade que marca a cultura e a economia da região.

As crianças menores ajudam realizando algumas atividades como “[...] tirar água da canoa ou

segurar baldes e sacos. Tudo com muitas histórias e brincadeiras, risos e birras, a seguir os

passos de seus pais, avôs, tataravôs” (VILLAS BOAS, 2016, p. 28-30).

Desse modo, a autora chama atenção para o fato de que as crianças “acompanham

familiares e amigos na atividade econômica”, ao mesmo tempo em que também “realizam

práticas lúdicas, compartilham o lugar e se apropriam dele” (VILLAS BOAS, 2016, p. 27),

além disso, as crianças mais velhas passam a ter responsabilidades com os irmãos mais novos

e assumem papéis no cotidiano doméstico. Conforme descreve a autora:

[...] a maioria das crianças gostava da rua, e que muitas de suas brincadeiras

estavam associadas ao ambiente externo ao de suas casas, ainda que, em algumas situações, principalmente entre as meninas menores, nunca se

distanciassem muito delas. Algumas vezes elas estavam inseridas no mundo

adulto, acompanhando e ajudando os pais na pescaria e na mariscagem, contribuindo com a limpeza da casa ou do estabelecimento comercial da

família, cuidando dos irmãos mais novos, limpando os mariscos junto aos pais

e/ou avós nas calçadas. Em outros momentos, elas constituíam suas próprias realidades, conhecendo e apreendendo o mundo de um modo particular:

brincavam no atracadouro das canoas, nadavam no rio do Pavão, iam à praia de Itapema, brincavam com suas bonecas e de comidinhas de areia,

empinavam pipa, jogavam futebol e bolinhas de gude, brigavam na rua, etc.

(VILLAS BOAS, 2016, p. 111).

Trata-se de infâncias que emergem de profundos laços tradicionais de uma cultura

intergeracional, que, “constrói gente dotada de espírito de luta em defesa de si, de seus corpos

e de sua cultura” (VILLAS BOAS, 2016, p. 193). Assim, as imagens que selecionei para

compor a narrativa fotoetnográfica revelam quem são essas crianças e como elas vivem suas

infâncias. Desse modo, das 195 fotografias dessa dissertação, revivi 11 cenas que serão narradas

148

na sequência. Priorizei situações que dialogavam, diretamente, com os modos de vida das

crianças e seus protagonismos nas experiências de infância.

O primeiro conjunto de fotografias é formado por 3 imagens que dão foco à ação das

crianças em seus ofícios de “pescador" e de “rotina doméstica”. Em high key a primeira

fotografia mostra 2 crianças na faixa etária de 10 anos, sendo um menino e uma menina,

navegando numa jangada para “mariscar”. A cena, um tanto quanto poética, exibe uma extensa

paisagem, onde as águas do rio, as árvores, o mangue e o céu azul com nuvens brancas,

transmitem calmaria e beleza. E a jangada, abre caminho neste cenário, como se estivesse

“cortando” a cena ao meio. Nas palavras da autora,

Pai, filhos e noras partem para mariscar numa região que eles chamam de Alagados, uma parte do mangue mais distante da costa que quase sempre está

encoberta de água. A menina, neta, carrega um pote de plástico e uma colher.

Dentro do recipiente já há minúsculos siris tentando sobreviver à brincadeira de fazer comidinha. O menino, um pouco mais velho, não faz parte da família.

É um vizinho que costuma acompanhar o grupo na mariscagem. Ele tem medo de siri, por isso fica incumbido de tirar uma água da embarcação com a

concha- garrafa improvisada, feita de garrafa de plástico verde de água

sanitária, cuja alça facilita o manuseio. Ainda assim, ele tem que lidar com os pequenos crustáceos vivos que a menina joga nele, numa brincadeira sem

piedade: nem do siri, nem do menino (VILLAS BOAS, 2016, p.109-110).

A segunda fotografia mostra em high key uma cena do cotidiano das famílias de Acupe.

Trata-se de uma atividade rotineira que é vista em várias ruas da cidade. A fotografia é composta

por três pessoas, uma mulher aparentemente com idade acima de 40 anos e duas meninas com

idade acima de 10 anos. Elas estão sentadas na calçada de uma rua movimentada, em que

circulam alguns moradores. Com faquinhas nas mãos e bacias cheias de crustáceos, elas

“limpam” os pescados que serão comercializados. A terceira imagem mostra outra menina,

aparentemente com 12 anos, descendo uma ladeira situada em um estreito “beco” com uma

grande bacia nas mãos, cheia do frango temperado que, segundo a sequência das imagens, ela

havia “limpo” e temperado em momentos antes.

Em low key essas imagens mostram uma infância, particularmente, incomum, se

comparada às infâncias dos grandes centros urbanos. São crianças que desde cedo adquirem

comportamentos que exigem, além de esforços físicos, responsabilidades próprias do universo

adulto. Seus olhares, seus corpos e suas mãos em movimento, me fizeram refletir sobre os

limites da condição cultural em que essas infâncias se encontram. Ao mesmo tempo, pensei em

como essas mesmas crianças gostariam de viver suas infâncias, quais seus sonhos e “vontades

de felicidade”? Fico curiosa em saber o que elas próprias pensam quando ajudam seus pais na

149

subsistência da família ou quando preparam suas refeições. Será que se sentem crianças em

papéis de adultos ou adultos em corpos de crianças? Ou, até mesmo, será que não mudariam

nada em suas vidas por serem felizes assim.

Diante dessas provocações, cabe fazer um pequeno parêntese. Se, passo a discutir tais

práticas como diferença cultural (BHABHA, 2013, p. 69-76) e objeto de reflexão

epistemológica, preciso questioná-las radicalmente em seus fundamentos colonizadores de

autoridade dos adultos em relação à criança, contrapondo tais fundamentos à luz das políticas

de proteção à infância. Neste sentido, as relações entre trabalho e infância necessitam ser

investigadas para além de uma diferença cultural, mas como um problema social e político, que

de acordo com Bhabha (2013, p. 69, grifos do autor) trata-se de um “processo de significação

através do qual, afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam

a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade”,

A enunciação da diferença cultural problematiza a divisão binária de passado

e presente, tradição e modernidade, no nível da representação cultural e de sua interpelação legítima. Trata-se do problema de como, ao significar o presente,

algo vem a ser repetido, relocado e traduzido em nome da tradição, sob a aparência de um passado que não é necessariamente um signo fiel da memória

histórica, mas uma estratégia de representação da autoridade em termos do

artifício do arcaico. Essa iteração nega nossa percepção dos efeitos homogeneizadores dos símbolos e ícone culturais, ao questionar nossa

percepção da autoridade da síntese cultural em geral (BHABHA, 2013, p. 71).

No entanto, por hora, não entrarei neste debate crítico e complexo, dada as limitações e

delimitações do objeto de investigação desta tese. Mas, como proposição, para futuras

pesquisas, deixo as seguintes questões: até que ponto essas tradições, respeitam as

particularidades do ser criança? Que concepções de infância esses modos de vida legitimam?

Como assegurar o respeito à integralidade da infância em um contexto de fortes tradições e

diferenças culturais que atribuem às práticas de trabalho infantil à “suposta” identidade

cultural? Essas e outras questões precisam ser tensionadas e refletidas nas Ciências Humanas e

Sociais para além de uma visão magicizada.

À criança, sujeito de direito, entendida nos discursos oficiais das Nações Unidas e seus

documentos internacionais - Declaração dos Direitos da Criança (1924); Convenção das Nações

Unidas sobre os Direitos das Crianças (UNCRC, 1989), bem como, em documentos nacionais

- Constituição Brasileira (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1992), é resguardada

o desenvolvimento pleno; a integridade física, psíquica e moral; e a efetivação dos direitos

facultados à infância no que tange à saúde, educação, cultura, liberdade, convivência familiar e

150

comunitária, entre outros aspectos relativos à vida. No entanto, tais iniciativas políticas ainda

enfrentam sérias situações na realidade da criança brasileira, principalmente, em se tratando de

questões relacionadas ao trabalho infantil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (PNAD, 2015) em 2014 cerca de 70 (setenta) mil crianças de 5 a 9 anos foram

submetidas a algum tipo de trabalho infantil, passando para 79 mil em 2015, o que equivale a

um aumento de 12,3%.

Atualmente 187 países, sob a direção da Organização Internacional do Trabalho (OIT)75

estão engajados no combate a este problema através da implementação de políticas

internacionais - Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008)76; Convenção da Idade

Mínima para Admissão no Trabalho (nº 138/1973)77; Convenção das Piores Formas de

Trabalho Infantil (nº 182/1999), e políticas nacionais - Plano Nacional de Prevenção e

Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2011)78, além das

iniciativas do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (FNPETI,

2015)79.

Vale ressaltar que, a OIT considera trabalho infantil o trabalho realizado por crianças e

adolescentes abaixo da idade mínima de admissão ao emprego/trabalho estabelecida no país de

origem, desse modo, no Brasil, considera-se trabalho infantil aquele realizado por crianças ou

adolescentes com idade inferior a 16 (dezesseis) anos de acordo com o Art. 7º, XXXIII da

Constituição Federal (1988), que corresponde à “[...] atividades econômicas e/ou atividades de

75 QRcode 16: Organização Internacional do Trabalho no Brasil (on-line).

76 QRcode 17: Decreto das Piores Formas (Lista TIP - 6481/2008).

77 QRcode 18: Convenção da Idade Mínima para Admissão no Trabalho (nº 138/1973).

78 QRcode 19: Plano Nacional de Prevenção e Erradicação Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente

Trabalhador (nº 138/1973).

79 QRcode 20: Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (FNPETI, 2015).

151

sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou

adolescentes [...].” (OIT-BRASIL, 2017, on-line). Portanto, o trabalho doméstico e o trabalho

pesqueiro estão inseridos na lista TIP80, e precisam ser discutidos sob tal perspectiva, pois, sob

uma suposta “diferença cultural” de tradição histórica e familiar, pode estar escondido formas

de violência e opressão contra a criança.81

Apesar das concepções críticas que sustento contra o trabalho infantil, compreendo que

o olhar de Villas Boas (2016) tinha outras pretensões - a de revelar o protagonismo da criança

ao se relacionar com a cotidianidade do lugar, como em suas palavras:

Percebi o quanto as imagens revelavam que as crianças estavam mostrando

estar integradas em um grupo no qual fazem parte, ou no qual gostariam de participar, compartilhando elementos que acreditam caracterizá-las enquanto

coletivo, seja geracional, racial, local e de gênero (VILLAS BOAS, 2016, p. 180).

Portanto, partindo desta perspectiva, ao buscar os elementos em low key subexpostos

nas películas magicizadas deste mosaico, tentei compreender essas atividades a partir das

rotinas próprias da cultura local, como parte da tradição histórica e geracional deste povo.

Assim, o memento partiu de reminiscências relacionadas a papéis culturais assumidos pelos

atores sociais identificados nos relatos da autora quando descrevia cenas do cotidiano, como os

momentos em que famílias ensinavam as crianças rotinas que envolviam a profissão que

desempenhavam, quando ensinavam as tarefas domésticas, quando solicitavam o auxílio dos

irmãos mais velhos no cuidado com os menores, quando se preocupam em manter tradições

religiosas que ultrapassam gerações familiares, o cuidar da alimentação, do marisco, das

performatividades do Nêgo Fugido, entre outras nuances específicas de cada núcleo familiar

narrado.

O segundo conjunto de fotografias é composto por 4 cenas que remetem ao brincar em

Acupe. A liberdade e independência das infâncias vividas em Acupe também são visíveis nas

fotografias que revelam crianças brincando nas ruas da pequena cidade, “pulando e cantando

musiquinhas em seus elásticos”, “jogando futebol com bolas de borracha ou feitas saco

plástico”, “assistindo outras crianças brincarem ou jogarem joguinhos virtuais em seus

80 Cf. Conferir Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (LISTA TIP). 81 QRcode 21: Estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil.

152

aparelhos”, “subindo nos muros e lajes para arrancar pipas e plantas emaranhadas, entrando e

saindo de bares, casas, mercados e lan houses” (VILLAS BOAS, 2016, p. 61). Ou

simplesmente, andando pelas ruas em busca de aventuras, como na fotografia de uma menina

de 4 anos que caminha com um tipo “improvisado” de carrinho, feito com um velocípede 82

(quebrado) e uma corda que foi amarrada para puxá-lo. A menina descalça, com os cabelos

amarrados para o alto, encontra um gato na rua e logo, o coloca em seus braços, em seguida,

tranquilamente, continua sua caminhada. Para a autora, cenas como estas, demonstram a

capacidade criativa das crianças, ao exercerem pequenos papéis sociais com autonomia e

liberdade:

Em diferentes contextos, as crianças de Acupe assumem protagonismos e realizam atividades de várias ordens com significativa autonomia. Desde as

experiências de aprendizagem até as brincadeiras e relações com outros

espaços, seres e coisas, elas se expressam com certa liberdade e alguma independência (VILLAS BOAS, 2016, p. 114).

Siqueira (2011, p. 171) ao tratar sobre o protagonismo e as subjetividades da criança

afirma que “[...] nenhuma nomeação de infância e de criança pode se constituir como produto

psicológico, mas como processo interno que envolve as manifestações da vida objetiva e

subjetiva”. Neste sentido, a cultura da infância é construída no pleno exercício do protagonismo

da criança que é manifestado na subjetividade, autonomia e reprodução interpretativa de sua

cultura.

O que determina, então, a infância e a criança é a relação entre indivíduo-sociedade, mediada pela objetividade das condições sociais, históricas e

concretas. Nesse campo, a subjetividade se faz pelo exercício da razão

crítica, pela autonomia do pensamento, pela capacidade de estranhamento-diferenciação e pela tensão dialética entre passado-presente, todo-parte,

universal-singular (SIQUEIRA, 2011, p. 171).

As contribuições significativas do sociólogo norte-americano William A. Corsaro83

ajudam a entender as formas de socialização que as crianças estabelecem na sociedade em

decorrência de sua ação nas relações institucionais grupais, entre crianças e seus pares e entre

crianças e geração adulta, para tanto, o conceito de reprodução interpretativa compreende a

82 Também conhecido como “triciclo” em outras regiões no Brasil. 83 Bacharel em Sociologia pela Universidade de Indiana (1970); Doutor pela Universidade da Carolina do

Norte (1974). Seus principais estudos e pesquisas abordam a Sociologia da Infância, as culturas de pares,

as relações entre adultos e crianças e entre crianças, os métodos etnográficos e o processo de socialização

na infância (MÜLLER, 2007). Cf. Corsaro, 1997, 2002.

153

infância a partir da ideia de criança como produtora de cultura, não numa perspectiva de

imitação do adulto, mas, de recriação, reelaboração e modificação de suas próprias

representações.

Nesta perspectiva, Corsaro (1997) entende que o processo de socialização das crianças

na construção das culturas da infância se dá mais como um processo reprodutivo do que como

um processo linear, tendo em vista que, ao internalizarem individualmente a cultura adulta de

maneira interpretativa e criativa, passam também, a fazer parte dela. Portanto, as crianças

apropriam-se ativamente das informações do mundo adulto para criarem suas próprias formas

de viver e de se relacionar.

De acordo com Corsaro (1997, p. 95) o termo cultura de pares significa “um conjunto

estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e

compartilham na interação com seus pares”, sendo a brincadeira um espaço primordial para a

formação das culturas infantis e para o desenvolvimento da criança em sua integralidade.

Segundo Corsaro (1997) as crianças usam as brincadeiras para expressar suas opiniões

e vontades, se apropriam de novos conhecimentos necessários à vida em sociedade e nas

relações que estabelecem na cultura de pares e com os adultos, produzem suas culturas.

Portanto, através da brincadeira, as crianças se apropriam das informações dos mundos adultos

de maneira interpretativa, não por simples imitação, mas, pela criatividade com que se relaciona

com a informação, desse modo, “Tal apropriação é criativa na medida em que, tanto expande a

cultura de pares (transforma a informação do mundo adulto de acordo com as preocupações do

mundo dos pares), como simultaneamente, contribui para a reprodução da cultura adulta”. A

esse processo de apropriação criativa, Corsaro (1997) deu o nome de reprodução interpretativa,

tendo como argumento a Teoria da Estruturação de Giddens (1984, p. 67) que consiste no

conjunto de regras e recursos gerados de modo recursivo na reprodução social.

Para Giddens as estruturas auxiliam na construção e regulação das atividades a partir de

elementos normativos e códigos de significação organizados no fluxo contínuo da conduta

humana, nesta direção, “analisar a estruturação de sistemas sociais significa estudar os modos

como tais sistemas, fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localizados que se

apoiam em regras e recursos na diversidade de contextos de ação, são produzidos e

reproduzidos em interação” (GIDDENS, 1984, p. 30).

A festa popular do Nêgo Fugido 84 é um exemplo de reprodução interpretativa em que

as crianças se apropriam das tradições culturais étnico-raciais e das histórias de escravidão e

84 Cf. Villas Boas (2016, p. 73, et seq.).

154

sofrimento de seus antepassados. O terceiro mosaico mostra a performance das crianças em

cenas magicizadas que emocionam e revelam a coragem de um povo que lutou e ainda luta por

sua liberdade. O Nêgo Fugido manifesta-se como expressão da cultura popular que,

[...] re-presentifica (o que não quer dizer representar, mas apresentar de novo,

no sentido de comportamento restaurado) identidades negras na luta pela autoafirmação do povo negro em uma sociedade racializada que expressa a

desigualdade em suas estruturas, contra o risco de ser subjugado, seja cultural,

social, política e economicamente, tanto quanto psicologicamente, pela supremacia branca e pela ideologia de mestiçagem embranquecida (VILLAS

BOAS, 2016, p. 104, grifo da autora).

Em high key, o terceiro conjunto de imagens mostra, as crianças sendo preparadas para

participar da performance do Nêgo Fugido, elas se arrumam entre si e com a ajuda dos adultos,

pintam seus rostos com “óleo e carvão, boca ensanguentada de anilina vermelho sangue” (p.

75) para só assim, adentrar em suas personagens. Em outras duas fotografias, “Calor, cheiro de

suor e carvão. A efervescência é potencializada pelos sons dos tambores. As crianças começam

os movimentos, as falas de cada performance” (p. 44), as crianças em roda, cantam, dançam e

iniciam as encenações que intercalam “pedidos de clemência aos caçadores, pedidos de ajuda

aos deuses, golpes de maculelê, capoeira e evocam o trabalho nas lavouras, na pesca e outras

situações cotidianas vividas pelos escravos e guardadas na memória local” (p. 51).

As cenas revelam em low key a potencialidade das crianças em “{per[for(mar)]}” os

personagens, introjetam medos, dores, sofrimentos, sonhos e esperança. Em seus olhos

expressões que variam da profunda tristeza à exaltação emocional que embala as batidas do

tambor com o pulsar do coração. Dá para sentir a vibração dos seus corpos, as marcas históricas

de violência, ameaça e medo que envolve as memórias do Nêgo Fugido. Um misto de prisão e

liberdade toma conta do lugar, caçadores apontam suas espingardas ameaçadoras e caçam as

“nêgas” 85 de forma impiedosa.

A manifestação aponta para a direção de um fenômeno ritualístico de

preparação para uma vida de adversidades enquanto sociedade pós-colonial cujas máculas configuram-se concretamente como constrangimentos sociais à

existência plena dos grupos que foram e continuam no lugar de oprimidos e de minorias. Conjecturo que os membros elaboram a si mesmos de modo

particular através da manifestação. Mesmo não sendo uma iniciação

tradicional, engessada, o Nêgo Fugido apresenta uma forma da comunidade reinventar as identidades de seus membros, atualizando-as (VILLAS BOAS,

2016, p. 114).

85 Nêgas é o nome dado à personagem do escravo negro fujão que é aprisionado, sofre e agoniza após sua

captura pelo caçador, a mando do capitão do mato (VILLAS BOAS, 2016, p. 44).

155

Villas Boas (2016) conclui que as crianças em Acupe contribuem com a organização do

dia-a-dia, participam do cotidiano dentro e fora de casa de maneira ativa, dessa forma, definem

seus protagonismos nas experiências que compartilham. As brincadeiras estão por todo lado,

seja na rua, em casa ou nas manifestações do Nêgo Fugido, desde muito pequenas, as crianças

dão sentidos às suas culturas por meio das relações de alteridade que estabelecem com seus

pares e com os adultos, no entanto,

Esses sentidos tem uma particularidade, e não se confundem nem podem ser

reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural frente ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida e também

relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural.

Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos (COHN, 2005, p. 35).

Na perspectiva da Sociologia da Infância, Corsaro (2002, p. 131) afirma que as crianças

se apropriam de forma ativa das informações do mundo adulto e assim, criam “rotinas

interativas estáveis e coerentes na cultura de pares”. As brincadeiras são o palco dessas

apropriações. O autor contextualiza o brincar como rotina cultural a partir de três componentes:

o enquadre – princípio de organização que abrange o reconhecimento dos elementos que

constituem a brincadeira; a contextualização – os elementos imaginativos que se estruturam na

comunicação verbal e não-verbal da brincadeira; e o embelezamento - como a estética do

brincar, forma criativa de apropriação e empoderamento de sub-rotinas que prolongam ou

ressaltam aspectos importantes da brincadeira, ou seja, as crianças produzem sentidos através

de repetições e/ou formas criativas no jogo de representação de papéis. Assim, as crianças de

Acupe, se apropriam das rotinas sociais e familiares, internalizam e reproduzem suas culturas

ressignificando e dando novos sentidos às suas brincadeiras.

Para Corsaro (2009) este movimento socializador na infância compreende uma

reprodução interpretativa da realidade, na qual a criança ege de maneira ativa na sociedade,

considerando o fato de que “[...] as crianças criam e participam de suas culturas de pares

singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos

seus interesses próprios enquanto crianças” (CORSARO, 2009a, p. 31). Desse modo, não é uma

questão de simples imitação, mas, sobretudo de apropriação criativa das informações do

universo adulto para produzir suas culturas próprias.

Outra pesquisa fotoetnográfica que está sendo realizada com foco nas culturas infantis

foi apresentada no XI Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul (ANPEd SUL) que

156

ocorreu em julho de 2016 na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Trata-se de um recorte

de dissertação em andamento, empreendida por Aprato (2016) 86, no curso de mestrado em

Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). O artigo “Crianças e Objetos:

narrativas fotoetnográficas sobre infâncias contemporâneas” apresenta de forma sucinta, três

narrativas visuais produzidas junto a crianças que frequentam o 1º, 2º e 3º ano do Ensino

Fundamental da Escola Estadual Fortaleza em Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul. Os

objetivos da pesquisa caminharam em direção à construção de narrativas fotoetnográficas sobre

a relação contemporânea entre crianças e objetos relacionada a espaços intra e extraescolares,

fartamente explorados nas representações imagéticas sobre a infância através dos tempos,

dando ênfase às questões do consumo na produção das infâncias pós-modernas. Como

fundamento, Aprato (2016) sumariza as recomendações de Achutti (2004) acerca da

composição de uma Fotoetnografia em 10 pontos:

[...] domínio da técnica fotográfica; consideração da fotografia para além de

um simples instrumento técnico de trabalho; preservação das condições usuais de iluminação do ambiente; preservação de um ritmo sem atropelos; retorno

frequente ao campo para conhecer melhor as pessoas e o ambiente; familiaridade e proximidade com o campo da pesquisa; adoção de um caderno

de campo para anotações sobre as singularidades, detalhes, curiosidades;

opção por uma narrativa composta de uma série de fotos relacionadas entre si, para serem olhadas calmamente e proporcionar uma leitura pessoal e

subjetiva; ausência de legendas abaixo das fotografias, assim como de textos

teóricos entre as imagens (APRATO, 2016, p. 7-8).

A pesquisa de Aprato revela que as questões do consumo na infância repercutem de

forma incisiva na relação das crianças com os objetos que as conectam com seu tempo, gerando

consequências nas relações interpessoais e sociais que estabelecem entre si e com o outro no

contexto escolar e doméstico. Segundo a autora, “o que consumimos diz muito sobre quem

somos”, neste sentido, o consumo é traço cultural contemporâneo, que invade o espaço escolar

e as mais variadas instâncias da vida em sociedade, nessa perspectiva, “comportamentos de

consumo e condutas consumistas são vistos quase em sua totalidade como resultante de

interpelações midiáticas que capturam e inebriam sujeitos, em alguns casos, acabando também

por consumi-los.” (APRATO, 2016, p.10-11).

86 QRcode 22: Aprato (2016).

157

Das 23 imagens dispostas no trabalho de Aprato (2016), selecionei 6 (seis) fotografias

para composição da narrativa fotoetnográfica. A escolha das fotografias teve relação direta com

a discussão sobre o brincar, priorizando o contexto da infância, sobretudo na Educação Infantil.

Deste modo, o primeiro conjunto de fotografias, apresenta em high key, 6 crianças de

aproximadamente 7 a 8 anos posicionadas em cima de camas elásticas individuais, fotografadas

em movimento (pulando) durante uma aula de Educação Física87. As crianças não usam

uniforme escolar e estão vestidas com calça e camisetas, duas delas também usam casacos com

estampas xadrez. As crianças demonstram entusiasmo através de sorrisos e olhares em direção

a quem faz o registro. A falta de informação acerca do contexto de produção da imagem limita

a descrição, porém, em se tratando dos pontos superexpostos da imagem, cabe fazer uma

observação. Um dos meninos interage com seu celular ao mesmo tempo em que pula na cama-

elástica, essa cena chama atenção, principalmente, em dois pontos: primeiro para o fato de que

a criança executa as duas ações ao mesmo tempo – cumprir a atividade solicitada pelo professor

e usar o celular (aparentemente, a criança está jogando); e a segunda, para o fato da criança

estar utilizando este aparelho durante uma atividade pedagógica (na escola).

Para problematizar em low key estas questões, abordo a concepção de ciberinfância

estudada por Dornelles (2010) que trata da infância globalizada contemporânea afeta às novas

tecnologias. As crianças na atualidade fazem parte de uma geração que nasceu em contato com

diferentes recursos tecnológicos e descobriu o mundo por meio de diversas mídias,

consequentemente, adquirem habilidades precocemente que nos surpreendem constantemente.

E são estas crianças que, segundo Momo (2007, n.p.) 88 tem desestabilizado as pedagogias

tradicionais, pois elas, as crianças, “[...] causam inquietações, minam o pensamento binário, porque

não é mais possível classificá-las, cartografá-las, enquadrá-las nos lugares tradicionalmente designados

para infantis e para escolares”.

Assim, as crianças têm subvertido as normas tradicionais de ensino bancário e apontado

para a necessidade de uma nova pedagogia que a entenda como autora e construtora de

conhecimento e cultura, que ofereça formas outras de comunicação, interação e socialização,

que potencialize a criatividade infantil através das múltiplas linguagens escritas e imagéticas

provenientes dos artefatos visuais, culturais e midiáticos dispostos na Cultura Visual

contemporânea, “é preciso compreender o que essa nova geração de criança traz para as escolas

87 A composição desta imagem dispõe de duas fotografias lado-a-lado, do lado esquerdo duas meninas e

dois meninos; do lado direito uma menina e um menino permanecem na cena e surgem mais duas meninas.

88 Trecho retirado do resumo (MOMO, 2007).

158

e como os professores podem aliar-se as potencialidades das redes e dos softwares sociais”

(DORNELLES, 2010, p. 10).

O segundo conjunto de imagens, apresenta 4 fotografias registradas durante um

espetáculo teatral realizado em dezembro de 2015, no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora

do Rosário em Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul. De acordo com Aprato (2016)

trata-se do “show Disney Frozen89, uma adaptação dos personagens Anna, Elsa (Frozen),

Kristoff e Olaf, da Walt Disney Animation Studios” (2016, p. 14). Em high key a primeira

fotografia, mostra uma encenação em que aparecem 3 personagens – Elsa (Frozen), Kristoff

(Homen rude, vendedor de gelo) e Olaf (um boneco de neve), e várias crianças de pé assistindo

a cena, atenciosamente. O registro foi feito de frente para o cenário, deste modo, todas as

crianças estão de costas para a fotógrafa (pesquisadora). A segunda imagem mostra uma criança

que olha fixamente na direção do espetáculo, ela aparenta ter entre 3 ou 4 anos e está vestida

com a roupa da personagem Frozen. Na terceira fotografia, uma menina de aproximadamente

2 anos segura um balão inflável com a estampa da personagem Frozen que acabara de

“comprar” numa lojinha improvisada para o evento. E a quarta fotografia mostra em primeiro

plano, uma criança apanhando “flocos de neve”, feitos de isopor, que estão espalhados pelo

chão. Ao lado direito da criança, alguns adultos de pé, e mais acima, outras crianças também

“aparecem” apanhando a “neve” 90.

Apesar das poucas informações acerca dessas imagens, algumas reflexões em low key

são possíveis. Os ícones imagéticos dos personagens animados da Disney e sua influência

mercantil na indústria cultural, principalmente, em relação às implicações dos significados

culturais para a formação do imaginário infantil. Ao projetar modelos de personagens animados,

as crianças podem legitimar culturas globais da “memória popular que aparece sob o disfarce

de um anseio por inocência infantil e aventura saudável” que se organizam através de apelos

afetivos e ideológicos de interpelação e de consumo (GIROUX, 2013b, p. 134). Esta discussão

tem sido bastante efusiva nas teorias críticas (ADORNO; HORKHEIMER, 1985; GIROUX

2013; KELLNER, 2001), porém, longe de ser esgotada, é fundamental para se pensar as culturas

infantis contemporâneas, sobretudo, no que diz respeito ao controle ideológico hegemônico e

mercadológico que a grande indústria Disney exerce em sua totalidade nas construções

conceptuais de infância, sob as quais se esconde “o poder de um conglomerado multinacional

89 Maiores detalhes sobre o filme Frozen na página 378. 90 Devido ao enquadramento da fotografia, das crianças posicionadas no canto superior da imagem só é

possível visualizar seus membros inferiores (pernas) e superiores (braços), do mesmo modo, os adultos

posicionados ao lado direito da criança ao centro, só aparecem seus membros inferiores (pernas).

159

que tem pouco respeito pela liberdade de expressão e pela crítica pública” (GIROUX, 2013b,

p. 137). Portanto, é preciso analisar criticamente as representações da Disney nos contextos

discursivos sobre infância na atualidade.

O “Maravilhoso mundo da Disney” é mais que uma logomarca. Ele demonstra

como o terreno do popular tornou-se central ao processo de mercantilização da memória e de reescrita de narrativas de identidade nacional e expansão

global. O poder e o alcance da Disney na cultura popular combinam uma

desinteressada ludicidade com a fantástica possibilidade de fazer com que os sonhos da infância tornem-se verdadeiros, mas isso ocorre apenas através de

papéis escritos de gênero, de um nacionalismo questionável e de uma noção

de escolha que está ligada à proliferação de mercadorias (GIROUX, 2013b, p. 136, grifo do autor).

Giroux (2013) afirma que por trás do apelo inocente e nostálgico das produções da

Disney como o “lugar mais feliz do globo”, existe o poder institucional e ideológico de um

conglomerado multinacional que exerce uma enorme influência social e política que repercute

diretamente na questão do poder cultural e da autoridade de seus discursos para a construção

de uma identidade nacional e ideológica. Como resultado, a noção de “pedagogia da inocência”

que o autor atribui às das narrativas históricas, das representações e práticas culturais

particulares que a Disney reinventa como instrumentos pedagógicos e políticos para assegurar

seus próprios interesses mercadológicos, sua autoridade e poder (GIROUX, 2013b, p. 134). E

propõe como processo de resistência e ativismo político, a “pedagogia crítica” capaz de

construir uma visão contra hegemônica ao poder de persuasão dos meios mercadológicos e

midiáticos, tendo em vista que,

A pedagogia representa um modo de produção cultural implicado na forma como o poder e o significado são utilizados na construção e na organização de

conhecimento, desejos, valores. A pedagogia, neste sentido, não está reduzida ao domínio de habilidades ou técnicas. Em vez disso, ela é definida como uma

prática cultural que deve ser responsabilizada ética e politicamente pelas

estórias que produz, pelas asserções que faz sobre as memórias sociais e pelas imagens do futuro que considera legítimas (GIROUX, 2013a, p. 97).

Kellner (2013, p. 108) ao tratar das questões relacionadas à pedagogia crítica destaca

que a publicidade tem papel importante no contexto da educação, “A própria publicidade é uma

pedagogia que ensina os indivíduos o que eles precisam e devem desejar, pensar e fazer para

serem felizes, bem-sucedidos e genuinamente americanos [...]”, daí a ideia psicologizante da

pedagogia da inocência nas mensagens e modelos sociais dos personagens da Disney que

através de apelos emocionais, ditam padrões de consumo e de comportamento a partir uma

160

ideologia dominante que, segundo Giroux (2013b, p. 136), incansavelmente, ressalta um

modelo de sociedade branca, de classe média e heterossexual, assim, “A aparência de aventura

feliz e inocência infantil, embora atraente, encobre, neste caso, um universo cultural

amplamente conservador em seus valores, colonial em sua produção de diferenças raciais e

classe média em sua descrição dos valores de família.”.

Adorno e Horkheimer (1985, p. 128), um dos pioneiros na discussão sobre o poder

ideológico da indústria cultural, afirmam que o controle sobre os consumidores é mediado pela

diversão e pela identificação com a necessidade produzida, as mensagens não exigem esforço

intelectual, ao sujeito é dada apenas a condição de espectador e potencial consumidor.

A pedagogia crítica vem desconstruir essas práticas hegemônicas a partir de uma visão

política e reflexiva que visa criar condições alternativas que permitam reconhecer nos discursos

ideológicos da Disney, formas de dominação, controle e manipulação cultural que objetivam,

quase que exclusivamente, formar consumidores passivos e fiéis. Retomarei este tema no ensaio

2 quando discuto a “nova” indústria cultural a partir das transformações tecnológicas do século

XX, sobretudo no diz respeito à Internet.

Retomando a Fotoetnografia no contexto das pesquisas científicas, destaco agora duas

pesquisas realizadas em programas de Pós-Graduação em Educação que investigaram mais

especificamente a cultura indígena como tradição e saberes culturais, porém, não abordaram

diretamente as questões relacionadas à infância.

O trabalho de dissertação de Menezes (2016) intitulado “Cultura Estética Indígena

Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da pintura corporal Parkatêjê”91 desenvolvido

junto ao Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade da Amazônia,

vinculado à Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), teve o objetivo de

apontar as dimensões das fronteiras culturais entre cultura indígena e cultura não indígena que

se entrelaçam na tradição da pintura corporal Parkatêjê, ressaltando as narrativas que definiram

por muito tempo e ainda continuam à influenciar a imagem estereotipada dos “índios do Brasil”.

Para tanto, a autora mergulha no universo cultural dos “Gaviões Parketêjê” para conhecer os

costumes, crenças, tradições familiares que estão estampadas nas pinturas corporais que

atravessam gerações. As imagens presentes no estudo revelam cenas do cotidiano social, das

91 QRcode 23: Menezes (2016).

161

paisagens naturais, das expressões estéticas da pintura corporal e suas representações culturais

e ideológicas. A autora parte da premissa de que,

Se a beleza remete ao entendimento que brota do uso da sensibilidade e

racionalidade ao mesmo tempo, o corpo humano é o veículo propulsor do belo,

pois essa relação se afirma porque dispomos de sentimentos, emoções, sensações, percepções e pensamentos que se apresentam por meio dos

sentidos [...] Nessa perspectiva, percebe-se que a arte corporal Parkatêjê

apresenta imagens visuais que vinculam a sabedoria desse povo frente ao contexto físico, cósmico, material e imaterial das territoriedades que os

rodeiam, tanto geográfica quanto cultural. É nessa dimensão que os Parkatêjê definem os elementos de suas pinturas corporais, as técnicas, os materiais

utilizados e os saberes estabelecidos (MENEZES, 2016, p. 15).

De acordo com Menezes (2016, p. 131) a pintura corporal faz parte de uma encenação

estética, filosófica, social e histórica à medida que se concretiza a partir de rituais que

entrelaçam cultura e educação, pois o grafismo e a estética corporal “[...] exercita, educa e

constrói os valores culturais que conduzem às identidades culturais, coletivas e individuais dos

sujeitos que compõem essa forma de organização social [...]”, isso implica em ver a arte

corporal Parkatêjê como práticas sociais que conjugam as tradições culturais desse grupo.

Em termos de fotografia, o trabalho de Menezes apresenta em seu corpus apenas 43

imagens, destas, só foi possível destacar 4 fotografias, dada a quantidade ínfima de imagens

relacionadas às crianças. Todavia, as imagens destacadas revelaram percepções, emoções e

reflexões acerca da essência infantil, sua simplicidade, singularidade, subjetividade e

expressividade. As imagens fazem emergir reminiscências sobre como as crianças exercem seu

protagonismo na liberdade de viver suas vidas na floresta, a ‘floresta’ que encanta o imaginário

infantil através de tantos contos-de-fadas.

A primeira imagem selecionada desvela, justamente, essa infância que é feliz e livre,

que vive intensamente suas emoções. Duas crianças aproximadamente de 8 anos, mergulhadas

nas águas límpidas do rio, pousam para a pesquisadora com enormes sorrisos que envolvem

toda sua corporeidade. Em low key, demonstram alegria, diversão, cumplicidade. Tocam a

nossa alma com vontade de liberdade através da imagem de uma infância sem pressa e sem

cobranças, que se contenta apenas com a natureza e as aventuras que ela pode oferecer.

São olhares que me interpelam com tamanha beleza, essa beleza que busco encontrar,

enquanto pesquisadora e educadora de infância. A beleza que se revela na criatividade, na

imaginação, no faz-de-conta, no brincar infantil, a beleza que produz conhecimento e que se

faz e se refaz na cultura da criança e na alteridade da infância. Junto à imagem, Menezes (2016)

convoca Nietzsche para explicitar essa ‘tal’ beleza:

162

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas

coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo

acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!

(MENEZES, 2016, p. 18).

A segunda fotografia em high key, apresenta 3 meninas indígenas sentadas, uma ao lado

da outra, em um objeto que parece um pneu. A cena é realizada junto à natureza exibida em

verde exuberante. Duas crianças demontram em seus olhares certa timidez e uma delas, a maior,

tem seu corpo pintado e olha, desenvolta, diretamente para a fotógrafa. As três vestem roupas

cheias de detalhes cor-de-rosa, o que remete à represetação de gênero e a influência pós-

colonial, assim, a autora chama atenção para o fato de que a infância dos Parkatêjê se constitui

em construções culturais pós-coloniais que se dão no entre-lugar da cultura do urbano com a

floresta.

O pirulito na mão da menina da esquerda, o vestuário não indígena que se

interpela com o indígena que neste caso é a pintura corporal, a vergonha em falar com estranhos nos confirma que essas crianças nascem e se criam entre

as ambivalências do passado com o presente. A maior parte das brincadeiras

das crianças da aldeia, ainda se conserva na liberdade da vida na floresta, os brinquedos industrializados não dominam o imaginário infantil, e assim, a

pintura corporal é sempre uma grande e prazerosa experiência estética que

instiga o imaginário infantil porque é um objeto estético zoomórfico (MENEZES, 2016, p. 113-114).

Desse modo, Menezes (2016, p. 139) destaca que a pintura corporal é um processo de

hibridismo cultural, “[...] de construção e desconstrução identitária, que está na dependência do

deslocamento das fronteiras culturais [...]”, no entanto, sua tradição é uma forma de resistência,

de pertencimento e valorização da cultura Parkatejê. O que pode ser observado na terceira

imagem fotográfica que apresenta em high key o momento de criação da experiência estética

do trabalho da pintora corporal Parkatêjê, chamada Kwyiapa. Segundo Meneszes (2016) nesta

imagem, a pintora Kwyiapa grafita o corpo da filha, que será posteriormente, pintado. A cena

se passa em sua casa, sentada numa cadeira desenha, cuidadosamente, os traços na altura da

cintura de sua filha que está com os braços levantados e apoiados na cabeça. A criança aparenta

ter 6 ou 7 anos, seu olhar compenetrado demonstra a seriedade com que a tradição da pintura

corporal é mantida e renovada na cultura.

A quarta fotografia registra 2 crianças de, aproximadamente, 10 anos, uma pinta o corpo

163

da outra, a que pinta está agachada com a mão na perna da que está sendo pintada, olha para a

pesquisadora e sorri para a fotografia. A outra está de costas e mantém a postura ereta. Segundo

Menezes (2016), na tradição Parkatêjê, as mães, avós, tias ou pintoras, ensinam às meninas a

arte da pintura corporal ainda quando são crianças. Vale ressaltar que, as crianças dessa imagem

vivem na aldeia, mas não são biologicamente indígenas, isso prova que a etnicidade dos

Parkatêjê não se resume à questão genética, mas à prática e ao respeito dos valores culturais

dos Parkatêjê, assim elas [as meninas da fotografia] são consideradas como membros do grupo.

Menezes (2016) conclui que a pintura corporal compõe as dimensões estética, filosófica,

social e histórica da cultura, a medida que envolve rituais do grafismo e da estética corporal,

tais dimensões estão diretamente relacionadas com a educação dos Parkatêjê, pois, segundo a

autora, a pintura corporal exercita, educa e constrói valores culturais e identidades sociais em

diálogo com a estética e a arte.

Nesta mesma vertente empírica, a dissertação de Sá (2014) intitulada “Tentehar e

Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral” teve o objetivo de analisar como ocorre o diálogo

intercultural entre saberes e práticas culturais Tentehar e os saberes escolares (técnicos/

científicos) na escola da aldeia Juçara. A pesquisa apresenta um acervo fotográfico

diversificado que revela cenas do cotidiano da aldeia, seus costumes e tradições que estão

presentes nas práticas socioeducativas que compõem o núcleo diversificado do currículo da

escola indígena Santarena Kapi. De acordo com os achados da pesquisa, apesar da escola ter

sido criada como um espaço de fortalecimento da cultura local onde as disciplinas são

trabalhadas com o objetivo de contribuir para o fortalecimento dos saberes culturais locais e

valorização da língua Tentehar, ainda persistem práticas descontextualizadas e colonizadoras.

Nas palavras de Sá (2014):

[...] a prática educativa da escola da aldeia Juçaral, ao invés de promover o

fortalecimento das práticas socioculturais locais colabora mais no sentido de enfraquecê-las, porque o saber disciplinar e livresco do modelo escolar

tradicional, a base do currículo com sete disciplinas, permanece a ser ensinado

na escola, com raríssimas exceções com o saber local (SÁ, 2014, p. 206).

Desse modo, a autora ressalta a necessidade de pensar a escola como espaço de

valorização e fortalecimento dos saberes da vida dos diferentes universos culturais indígenas,

rompendo com a uma educação bancária, formal, rígida, fechada como a que constatou através

de sua pesquisa, onde crianças Tentehar são alfabetizadas em português e os professores dos

demais componentes do núcleo comum, em sua maioria não-indígenas, desenvolvem uma

prática de ensino tradicional, também em português, que mantém uma concepção convencional

164

que minimiza os saberes e práticas culturais locais.

Das 67 imagens, selecionei apenas 3 que apresentavam referências às culturas infantis.

A primeira fotografia revela uma infância que reproduz um modelo de comportamento adulto.

Ela com aproximadamente 9 anos, caminha numa estradinha de barro e carrega uma pequena

panela na cabeça. Em low key seu sorriso discreto mostra uma face da infância que desde cedo

exerce papéis e responsabilidades sociais que extrapolam o limite das suas especificidades de

criança, em que o brincar perde espaço para o auxílio com as tarefas domésticas, sobretudo para

as meninas, em quem as questões de gênero são bastante marcadas pela identidade da mulher

pacata, cuidadora do lar, dos filhos e do esposo. Em contrapartida, a autora posiciona outra

imagem ao lado desta que mostra 4 crianças sentadas no chão brincando com gravetos e areia,

a qualidade da imagem dificulta um pouco a identificação de 2 das crianças, mas,

provavelmente, se trata de 4 meninos. Em seguida, a autora tece o seguinte comentário:

O valor de levar uma vida tranquila é refletido na liberdade que as crianças

Tentehar têm para brincar no espaço dos grandes quintais, na frente das casas, a exceção da hora em que estão na escola, o dia é livre para que possam

brincar. [e complementa] no decorrer do dia as crianças são apenas colaboradores dos adultos, na maioria das vezes apenas ajudam, buscam ou

levam comida para os animais criados em chiqueiros, como os porcos, ou

ainda para dar um recado ou trazer algum objeto de empréstimo de uma casa para outra (SÁ, 2014, p. 68-69).

Mas, por que será que a autora ao tratar do brincar, selecionou uma menina ajudando

nas tarefas domésticas e os meninos brincando no quintal? Pelo que pude compreender em high

key, a intenção da autora foi de demonstrar formas de brincadeira infantil, obviamente, não

tendo foco nas questões de gênero e de trabalho doméstico, mas ao “reviver, sentir e

compreender” a fotografia através do memento, minhas percepções caminharam em direção a

apreensão do visível em diálogo com a função simbólica das imagens (AUMONT, 2016).

Assim, reflito sobre como as situações de “colaboração” nas tarefas do lar, no dia-dia de

crianças pertencentes, principalmente, dos grupos sociais minoritários, podem simular

ocorrências de trabalho doméstico infantil e como as identidades de gênero instituídas em

culturas sexistas podem engendrar formas sociais de discriminação, exclusão, violência e

preconceito contra as mulheres desde a infância.

Conforme discutido anteriormente, é preciso refletir para além do que se vê magicizado

nas imagens técnicas. É preciso compreender as formas visuais a partir de uma concepção

reflexiva que também considere as implicações históricas, políticas, ideológicas e sociais de

uma representação imagética. Através de uma educação conscientizadora (FREIRE, 1992)

165

torna-se possível garantir que no âmbito das tradições culturas, estejam resguardadas a saúde e

o bem-estar das crianças como requerido pela Sociologia da Infância e pelas políticas públicas

para infância no Brasil. Esse é o verdadeiro papel e compromisso social da educação, a garantia

dos direitos de cidadania da infância.

Em síntese, a Fotoetnografia na pesquisa científica relacionada à crianças e infâncias

ainda se mostra um campo em evolução, não por sua indefinição teórica, mas pelo caráter

transdisciplinar e transmetodológico que abarca. O passeio teórico e visual empreendido neste

subcapítulo junto aos 35 trabalhos visitados, revela uma diversidade de métodos e técnicas de

utilização, disposição e composição de narrativas visuais que deixa claro a possibilidade de

criação e autonomia do pesquisador, o que coloca a Fotoetnografia como conhecimento

científico e estratégia metodológica aplicada a todas as áreas que compreendem as Ciências

Humanas e Sociais.

Dentre os trabalhos analisados, as pesquisas de Menezes (2016) e Sá (2014) ainda se

mostram tímidas ao utilizarem a Fotoetnografia como fundamento metodológico. Apesar de

mencionarem o indexador “Fotoetnografia” em seus resumos, não apresentam em seu escopo

quaisquer fundamentação acerca do método, tampouco, empreendem as narrativas imagéticas

como escritura independente, consequentemente, utilizam as imagens de forma ilustrativa e

representativa, assim como nos trabalhos pioneiros da Antropologia Visual. O trabalho de

Aprato (2016) apresenta uma perspectiva mais aproximada das concepções teóricas e

metodológicas da Fotoetnografia como narrativa imagética, porém, também deixa um pouco a

desejar informações mais precisas sobre o contexto em que as imagens foram realizadas e sobre

quem são os sujeitos que estão sendo magicizados na imagem técnica.

As pesquisas de Villas Boas (2016) e Trois (2012) seguem com rigor as premissas da

Fotoetnografia elaborada por Achutti (1997) sob perspectivas de uma narrativa imagética

integral, dispondo em seus trabalhos textos e imagens que falam entre si e por si, fotografias

que encantam, interpelam, silenciam, calam e trazem à tona reminiscências da alma que a

memória esqueceu; fotografias que desvelam infâncias plurais, divertidas e cheias de vontade

de felicidade. São em suas estruturas escritas e imagéticas, grandes exemplos de uma

Fotoetnografia que segue o rigor epistemológico e metodológico da proposta e, sobretudo,

tratam da realidade de forma ética e, esteticamente, bela, tanto no sentido platoniano quanto no

sentido de uma educação estética.

A Fotoetnografia, portanto, se mostra um campo fecundo para o re/conhecimento das

crianças, seus lugares, seus modos de vida, suas subjetividades e culturas. Abre caminhos para

a imagem, enquanto escrita narrativa de memórias, histórias e reminiscências, bem como,

166

possibilita a interpretação da realidade a partir do movimento memento – reviver, sentir e

compreender a imagem em suas dimensões históricas, culturais, ontológicas e sociais,

consequentemente, indica sua potencialidade para o campo educacional numa perspectiva de

educação estética que visa promover o conhecimento através das visualidades que compõem a

Cultura Visual em diálogo com uma pedagogia crítica e emancipatória pautada no amor, no

diálogo, no encantamento, na beleza e na criatividade humana, pressupostos estes, que defendo

nesta tese.

Assim, neste trabalho ofereço novas possibilidades de narração fotoetnográfica ao

ampliar suas dimensões descritivas (high key e low key), estéticas (sensitivas) e interpretativas

(epistemológica e empírica) através do memento, com a intenção de propor não uma luta entre

as duas formas de escritura: textos e imagens, mas sim, uma interlocução que facilite a

compreensão dos fenômenos a partir de abordagens heurísticas e transdiciplinares. Desse modo,

as duas leituras ocorrem de forma interdependentes, porém, complementares.

167

3 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: INFÂNCIAS EM

FOTOETNOGRAFIAS

3.1 O Privilégio de Estar com as Crianças: o currículo das infâncias (TROIS, 2012).

3.2 {Per[for(mar)]} Imagens das Crianças no Nêgo Fugido, Acupe/B (VILLAS BOAS, 2016).

168

3.3 Crianças e Objetos: Narrativas Fotoetnográficas sobre Infâncias Contemporâneas (APRATO, 2016).

3.4 Cultura Estética Indígena Híbrida: uma abordagem interdisciplinar acerca da pintura

corporal Parkatêjê (MENEZES, 2016).

3.5 Saberes Culturais Tentehar e Educação Escolar Indígena na Aldeia Juçaral (SÁ, 2014).

169

1° Click

A fotografia é um clic tecnológico que desencadeia fenômeno

químico-físico [...] eternizando uma imagem.

(MILLÔR FERNANDES, prefácio ACHUTTI, 2011, p.23).

Infâncias em Fotoetnografias

170

“Era uma tarde de sol, as crianças corriam pelo pátio livremente, muitas risadas,

barulhos preenchiam o espaço da escola. Ao cruzar o portão de entrada pude perceber

que ali habitavam muitas e diversas crianças”

(TROIS, 2012, p. 28)

171

172

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174

175

176

“Em Acupe, cada brincadeira tem seu tempo. O modo de brincar se

aperfeiçoa na repetição e na permanência delicada na memória e corpo

das crianças.”

(VILLAS BOAS, 2016, p. 36)

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181

182

“O feitiço se inicia. Óleo, anilina vermelho sangue, carvão em pó também são

ingredientes da transformação. Tudo para as crianças serem vivamente as nêgas do Nêgo

Fugido. Elas se preparam juntas, são pintadas por adultos ou por elas mesmas. Assim

como as nêgas, outras personagens também se preparam em algum canto da rua.”

(VILLAS BOAS, 2016, p. 48)

183

184

“Desde cedo, as crianças começam a aprender que o que vestem, os objetos

que carregam, os programas que assistem, os jogos que preferem, etc., agregam

significados às suas identidades, repercutindo nos modos como são valorizadas e

aceitas nos grupos de que fazem parte.”

(APRATO, 2016, p. 2)

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188

“VIDA NA FLORESTA: OLHAR, VER, DESCOBRIR”

(MENEZES, 2016, p. 61)

189

190

191

192

EPÍLOGO

Conhecer a infância é reviver a criança.

Falar de criança é rememorar a infância.

Entender a infância é sentir-se criança.

É mergulhar em suas culturas,

para poder compreender,

o que elas têm a nos dizer

E tudo começou pelas fotografias e tatuagens de Lenny...

Afinal, como eu poderia articular e fundamentar o memento à perspectiva do “reviver,

sentir e compreender” na minha tese? E como seria possível estabelecer esse diálogo com a

Fotoetnografia? A resposta pode até parecer simples, mas seu percurso foi bem complexo.

Parti do princípio de que a Cultura Visual oferece uma infinidade de suportes imagéticos

que direcionaram a ciência a estabelecer uma nova epistemologia para a imagem, nesta direção,

a filosofia da fotografia protagonizou outras reflexões que conduziram a investigação a entender

a fotografia como pele e magia. “Pele”, porque nela se imprime a realidade, a existência ou até

o simulacro. “Magia”, porque a fotografia em sua essência é um eterno retorno, tem o poder de

magicizar a vida ao transformar conceitos em cena e materializar o pensamento humano. Visto

por esse ângulo, as fotografias são imagens cheias de memória, de história, de vida. Assim

como as fotografias e tatuagens de Lenny, as imagens evocam lembranças, reminiscências de

um passado-presente, desvelam emoções, sentimentos e percepções que formulam e direcionam

o pensar, o agir e o ser do ser humano. Neste contexto, o memento ajuda a trazer à tona o que

a pele magicizou da vida, o que nela se esconde, o que dela se pensa e o que ela nos quer dizer.

Ao longo desse capítulo metodológico, o que era intenção tornou-se constatação. O

memento como movimento de interpretação adquiriu teoria e técnica. Através de interlocuções

transdisciplinares e heurísticas, o memento trilhou um caminho próprio. Inspirado em

fundamentos fenomenológicos, epistemológicos e ontológicos, foi possível estabelecer o

diálogo com procedimentos e instrumentos da Antropologia, da Filosofia e da Cultura Visual.

Mas, foi na Fotoetnografia que o memento fez morada - como procedimento de análise

interpretativa das narrativas fotoetnográficas.

193

Para não cansar o leitor/espectador, não me deterei, novamente, em caracterizar o

memento, mas quero apenas apontar para sua importância no contexto das pesquisas

fotoetnográficas em Ciências Humanas e Sociais, principalmente, nos campos da Infância, da

Cultura Visual e da Educação Estética, que foram trabalhados ao longo da tese.

O memento envolve, basicamente, três movimentos de interpretação da imagem: o

reviver - fazer emergir as informações em high key do contexto original da realidade magicizada

e as reminiscências que envolvem o instante fixado na pele da fotografia; o sentir - buscar em

low key, os elementos velados da imagem seus elementos significantes considerando as

percepções, subjetividades e emoções que acompanham o sujeito que contempla, que é

contemplado e que produz a Fotoetnografia; e o compreender – que nada mais é, se não, a

própria interpretação epistemológica e empírica da fotografia.

Dada a sua dimensão transdisciplinar e heurística, o memento se aplica a contextos de

pesquisas que envolvam a leitura de imagens fotográficas que priorizem a subjetividade, a

criatividade e a reflexão do sujeito, no caso específico deste estudo, o memento serviu para

facilitar o desvelamento das concepções de crianças, infâncias e culturas infantis que permeiam

as imagens dispostas em pesquisas científicas, na Cultura Visual, na Cultura Infantil e na

Educação. É nesta direção que ressalto a sua importância. Por sua flexibilidade, adaptabilidade

e principalmente, por priorizar o olhar humano, suas subjetividades, emoções e interpretações.

As imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: são

símbolos “conotativos”. O tempo projectado pelo olhar sobre a imagem é o do

eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imagética por ciclos. Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para os elementos

preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais

do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico:

tempo de magia. [...] O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis (FLUSSER, 1985, p. 28, grifos do autor).

Portanto, as bases teóricas que fundamentaram o memento em narrativas escritas, agora

se traduzem em narrativas visuais, para que, com o olhar sensível e atento, se possa vaguear

nas superfícies mágicas da Fotoetnografia. Deixemo-nos embalar nas reminiscências de

infância para poder nos aproximarmos do que é ser criança.

194

ENSAIO 2

AS CULTURAS INFANTIS NAS MULTIMAGENS DE CRIANÇAS:

Uma Fotoetnografia panorâmica conceptual

Pele e Magia

Não mais sombras projetadas em paredes de cavernas,

Não mais reflexos monocromáticos, desfocados e surreais,

Não mais fogueiras e frestas de luz.

As projeções ganharam cores, linguagens, vida.

Viraram imagens.

Imagens produzidas por aparelhos mágicos

Que conseguem transformar cenas da realidade

em peles fotográficas magicizadas.

Peles de memória, sentimentos e racionalidades.

Pele e magia, assim são as fotografias.

195

PRÓLOGO

...Sobre uma infância estetizada

Fale bem ou fale mal

Mas fale de mim

Eu não tenho culpa se você não é feliz

Eu entendo as recalcada

Que me ofendeu

Se eu fosse elas também queria ser eu

Pra ser a top das top

A famosa Cinderela

Arlequina é estilosa

Matando as outras de inveja

Para todas as recalcada

Aí vai minha resposta

Enquanto tu fala mal

Eu tô ficando mais famosa.

(Mc Melody, 2015) 92

Este ensaio chama atenção para um problema que considero central aos debates sobre a

infância na contemporaneidade: a desqualificação conceptual de um tipo de infância nas

multimagens de crianças dispostas na Cultura Visual. Especialmente, refiro-me ao perigo da

“adultização” e, consequentemente, da “erotização” de crianças expressos nas visualidades

im/dis/postas em mídias digitais93 que permeiam os espaços sociais e educacionais das culturas

infantis na atualidade, que desrespeitam as condições de direito, proteção e educação da criança

92 Letra da Música “Fale de mim” da funkeira mirim Mc Melody. O clipe da música apresenta em um trecho

a seguinte afirmação: “[...] se é bonito ou se é feio, mas é foda ser gostosa”. Valendo-se de direitos

autorais, o clipe original foi retirado do ar por ordens judiciais em 2016, porém ainda é possível ver partes deste vídeo na reportagem do Domingo Espetacular. QRcode 24: Matéria: “Sexualização de Mc Melody

reacende discussão sobre funkeiros mirins” postada em: 28 de abril de 2015.

93 Imagens produzidas pelas mídias digitais em seus diversos formatos textual, fotográfico, audiovisual e

compartilhadas nas redes digitais presentes na cultura contemporânea, marcada pelas interações com as

tecnologias comunicativas digitais que promove a Cibercultura (LEVY, 1999).

196

de forma tão sutil e “naturalizada” que, muitas vezes, passa despercebido em nossas próprias

rotinas sem que possamos dimensionar as consequências desses fenômenos na realidade da

criança e para a constituição de suas infâncias.

Pensando nisso, as questões referentes às concepções de crianças e infâncias que

emergem, sobretudo, na contemporaneidade, me inquietam a ponderar sobre que valores e

sentimentos permeiam as culturas infantis, levando as crianças a seguirem padrões de conduta

que expõem sua intimidade e extrapolam os limites da sexualidade em função de uma

autoimagem narcisisticamente desejada para satisfazer os impulsos do que passei a chamar de

cultura do exibicionismo94. Mas, que imagens são essas? O que as crianças têm buscado como

inspiração? É preciso tencionar as construções conceituais históricas e culturais de criança e

infância que ainda persistem na ideia do “homúnculo” impondo comportamentos que ferem e

desrespeitam a dignidade da criança.

Essa tendência à auto apreciação inspira a letra deste funk ostentação que selecionei

como ponto de partida para esse prólogo, porém, não dá para imaginar que quem o interpreta é

uma criança de 10 anos95, chamada Gabriella Abreu Severino, mais conhecida como Mc

Melody, cantora de música pop e funk ostentação96, que tem chamado atenção nas redes sociais

como YouTube97 onde possui mais de 517.179 mil inscritos no seu canal oficial, alcançando a

marca de 75.069.567 milhões de visualizações98, considerando todos os vídeos postados. Além

do YouTube, Mc Melody possui 19,8 mil seguidores no Twitter, 1.937,327 seguidores e

1.942,336 curtidas em sua página no Facebook e 309 mil seguidores no Instagram. Além desta

repercussão nas redes sociais, a pequena artista também é notícia em programas televisivos e

94 Cultura do exibicionismo, termo cunhado para referir-se à manifestação de padrões de conduta que

objetivam expor uma autoimagem narcisisticamente perfeita, nem que para isso, a realidade deixe de

existir e passe a ser simulacros e simulações. “Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real.” (BAUDRILARD, 1981, p. 9). Será

discutido ao longo do ensaio. 95 Quando a música foi utilizada na pesquisa em 2015, Mc Melody tinha apenas 8 anos. 96 Funk Ostentação é um termo criado em 2008 em São Paulo que trata de um estilo musical brasileiro

proveniente do funk carioca, aborda temas como consumo e ostentação, geralmente usam carros,

motocicletas, bebidas, objetos de valor, mulheres, bens materiais para exaltar a ambição de sair da favela e conquistar objetivos. Faz apologia explícita do consumo de bens distintivos, de modo a enaltecer os

adeptos de dado padrão de consumo (p. 23). QRcode 25: Texto: Retórica Distintiva no Funk Ostentação

(BRAGA, 2015).

97 No canal de internet YouTube é possível visualizar uma série de vídeos e reportagens sobre essa criança

e sobre as polêmicas que envolvem seu comportamento e carreira. 98 Dados atualizados em 08 de janeiro de 2017, diretamente nas páginas oficiais de cada rede social citada.

197

alvo de polêmicas que envolvem seu comportamento e carreira, como na reportagem que foi ao

ar pelo programa Domingo Espetacular produzido pela Rede Record, onde foram apresentadas

histórias de “funkeiros mirins” enfatizando, justamente, a tendência precoce à sexualidade

infantil, erotização precoce, consumismo e riscos à dignidade humana, entre outros fatos sobre

a carreira artística e as consequentes polêmicas na justiça.

De acordo com o Jornal Extra on-line, a menina já faturava em 2015 cerca de R$ 40 mil

ao mês decorrentes de apresentações em matinês e eventos, tornando-se o ícone de sua

geração99. Na perspectiva da Sociologia da Infância, geração é um “constructor sociológico”

(SARMENTO, 2005, p. 366) que se constitui a partir das interações dinâmicas entre crianças,

e entre crianças e adultos, que vão sendo historicamente produzidos e elaborados nas relações

estruturais e simbólicas que são continuamente reinvestidas de estatutos, papéis e práticas

sociais diferenciadas e ocorridas em cada período histórico. Se Mc Melody é considerada pela

mídia televisiva como ícone de uma geração - a infância, significa que temos um grave

problema para refletir. O fato é que as músicas, as danças, as roupas, a linguagem e o

comportamento da artista mirim estão longe de ser considerados adequados à criança.

Em fotografias, a menina aparece usando roupas minúsculas, sutiã com enchimento para

destacar os seios, maquiagem forte e vários adereços que remetem à adultização da criança.

Além disso, nos videoclipes de suas músicas ela sempre erotiza o corpo, rebolando e fazendo

poses sensuais. Uma de suas aparições mais polêmicas foi durante o show de seu pai, Thiago

Abreu, 27 anos, também funkeiro conhecido por Mc Belinho, principal incentivador da carreira

da filha. Durante o evento, a criança canta e faz poses sensuais bem perto do público, ficando

exposta à violência física e moral (Ver figura 9).

Em uma busca no YouTube é possível visualizar outros clipes da menina que contém

cenas que violam o direito ao respeito e à dignidade infantil, conforme Estatuto da Criança e

do Adolescente:

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da

99 QRcode 26: Matéria jornalística on-line intitulada: “Mc Melody, de 8 anos, fatura até R$ 40 mil ao mês

com carreira polêmica”, datada em 19 de abril de 2015. A reportagem refere-se ao termo “geração” para

indicar um grupo etário de pessoas de várias idades que compõem a infância contemporânea.

198

imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos

espaços e objetos pessoais (BRASIL, ECA, 2013).

Este caso já está sendo investigado, em segredo de justiça, desde 2015 pela Promotoria

de Justiça de defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude de São Paulo,

sendo resultado de denúncias e representações encaminhadas para Ouvidoria do Ministério

Público sobre a exposição de funkeiros mirins. As denúncias apontam a violação dos direitos

das crianças e adolescentes tendo em vista a exploração da imagem, identidade, autonomia,

valores, crenças e integridade física, psíquica e moral desses artistas.

De acordo com uma das representações do inquérito, Mc Melody “canta músicas

obscenas, com alto teor sexual e faz poses extremamente sensuais [...]”. Tal exploração precisa

ser amplamente discutida nos cenários das Ciências Sociais, pois coloca em cheque os avanços

da categoria infância nos cenários políticos, civis e científicos atuais relacionados diretamente

aos direitos sociais das crianças criados nas últimas décadas através de esforços legislativos

consubstanciados em documentos como a Declaração de Genebra (1923), a Declaração

Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção dos Direitos da Criança (1989) e o

Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

A letra da música ressalta com ênfase a expressão popular “Fale bem ou fale mal, mas

fale de mim”, muito utilizada como justificativas para autoafirmação de posturas e atitudes em

relação a um determinado fenômeno social, no caso desta música de Mc Melody, a expressão

indica que a repercussão gerada em função da forma de vida que ela leva, enquanto cantora,

que é mais importante do que os sentidos e significados sociais deste tipo de comportamento.

Ou seja, o fato dela ser uma criança, não a impede de sensualizar, erotizar e “adultizar” seu

comportamento em função de atingir a “sonhada” fama, consequentemente, ou por influência,

a criança “encantada” com as possibilidades emergentes desse universo, personifica uma

identidade social egocêntrica e esnobe, e de forma ousada, protagoniza cenas que supostamente,

elevam ainda mais sua autoestima ao ponto de achar (ou querer) que seu modelo de vida cause

inveja e a infelicidade de outrem, sendo explicitamente, uma intenção hostil.

Para Silva, C. (2016, 51) o consumo cultural das músicas pop com conteúdos eróticos

contribui na constituição de uma identidade infantil erotizada, nessa perspectiva, “crianças

pequenas consomem esse tipo de música e criam uma cultura infantil [...] caracterizada por

práticas discursivas que estabelecem um jogo de disciplinamento, definindo modos de ser

199

criança, de ser menino e de ser menina”100. No entanto, segundo a autora, as crianças não

recebem passivamente e de modo inocente esses conteúdos, pelo contrário, elas reagem a essas

pedagogias e “em alguma medida, adequam e delineiam as suas identidades”, portanto,

Compreender a rede de relações que se estabelece entre o consumo cultural de

músicas pop com conteúdos eróticos e a constituição das identidades infantis – como a identidade infantil erotizada - significa articular pontos de uma rede

que tem como base as cenas da vida real que nutre, sustenta e constitui as

práticas culturais (SANTOS, R., 2016, p. 54).

Lipovetsky e Serroy (2011, p. 46-48) afirmam que na escala da história, somos

testemunhas de uma nova era - a do individualismo acabado, extremo - “um

hiperindividualismo centrado na primazia da realização de si e, especialmente condicionada a

uma relação narcisista com o corpo, “cada vez mais voltada para si mesma, à busca de um bem-

estar pessoal e consumidor”.

Essa relação de alteridade conflituosa entre o “eu” famoso e feliz, e o “outro” invejoso

e infeliz, entendida a partir da construção das identidades nacionais, que não são coisas com as

quais nós nascemos, mas, são formadas e transformadas no interior da representação (HALL,

2006), tal circunstância, me direciona a refletir sobre os símbolos e discursos que permeiam as

representações do “eu” (self)101 e sua autoimagem no contexto da fama que é mitizada pelo

poder econômico e pelo sucesso social, principalmente, em se tratando de crianças.

As culturas midiáticas digitais do século XXI, ao atribuir novos sentidos para o “self”,

readaptaram esse conceito ao ato de retratar-se através de imagens (CAMARGO,

STEFANICZEN, 2016), ou seja, há uma tendência à auto apreciação através da imagem

autoproduzida individual ou coletivamente, o que ficou conhecido culturalmente como

100 QRcode 27: Silva, R. (2016).

101 Willian James (1890), um dos fundadores da Psicologia Moderna, afirma que o self representa uma

consciência reflexiva a respeito do conhecimento de si, da sua autoimagem e autoestima. QRcode 28: Ver “The Principles of Psychology” de Willian James (1890) sobre estudo o self como sujeito (subjetivo) e

self como objeto (materiais e corporais).

200

“selfie”102. Dito de outra forma, as pessoas passaram a se autorretrar, estando sozinhas ou

acompanhadas, e ao retratarem-se, expõem suas identidades e projeções sociais; buscam o

anúncio de suas convicções; e ao mesmo tempo, esperam a apreciação e aceitação do outro em

relação a si. Este não é um comportamento apenas do mundo adulto, é uma tendência que se

tornou universal, basta observar as imagens dispostas em redes sociais como Facebook e

Instagram, os grandes palcos desse espetáculo.

O selfie é uma das características marcantes das culturas midiáticas emergentes da

segunda modernidade, onde a cultura veiculada pela mídia digital tornou-se uma força

dominante de socialização e uma potente vitrine de exibição de rostos e corpos que se tornaram

(ou pretendiam se tornar) “[...] modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e

comportamento”, substituindo inclusive, “a família, a escola e a igreja como árbitros de gosto,

valor e pensamento [...]” (KELLNER, 2001, p. 27). Para Camargo e Stefaniczen (2016, p. 36-

37, grifo do autor) “O conceito de ‘experiência do selfie’ carrega a ideia de identidade em

processo de composição, uma busca constante pela experimentação visual, cênica,

narratológica, performática. A experiência do selfie significa performance identitária, isto é,

identidade em constante processo de construção, obra eternamente inacabada”103.

Neste diapasão, o universo social urbano contemporâneo, marcado pela efemeridade da

imagem e pelas novas formas de expressões culturais, onde tudo parece ser permitido e as

censuras se desmistificaram nos “sem limites” da Internet, torna-se fundamental para a

construção e compreensão das concepções de crianças e infâncias, discutir as culturas infantis

visibilizadas na cultura visual e estigmatizadas em redes sociais na Internet. Ou seja, até que

ponto essa cultura “selfie” narcisista, egoísta e consumista atinge as culturas infantis na

contemporaneidade? E o que seria ainda mais grave: é justo sensualizar, erotizar e adultizar a

infância em nome da liberdade cultural, da moda e da fama? Neste sentido, não cabe fazer aqui

posicionamentos precoces quanto à imagem da criança na contemporaneidade, visto que, esta

102 O termo selfie deriva da palavra inglesa self-portrait e significa um autorretrato produzido por celular,

webcam ou câmera digital e compartilhado pelas mídias sociais (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016,

p. 35). De acordo com Wikipédia, o selfie é a agregação do substantivo “self” (eu) de origem inglesa ao prefixo “ie” que representa o termo em diminutivo “euzinho(a)”, significa “uma fotografia, geralmente

digital, que uma pessoa tira de si mesma (autorretrato)”, podendo ser realizada também em grupo. 103 QRcode 29: Camargo e Stefaniczen (2016).

201

é uma discussão complexa que está apenas começando, por isso, neste ensaio, opto pela reflexão

e maturação deste assunto que considero relevante, polêmico e intrigante.

De acordo com Del Priore (1999) considerando a realidade da infância descrita pelas

organizações governamentais brasileiras e internacionais, “[...] o mundo no qual a ‘criança

deveria ser’ ou ‘ter’ é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes sobrevive” (DEL

PRIORI, 1999, p. 8). As crianças continuam a reproduzir culturas sociais adultas, e o que é pior,

os próprios adultos estão convivendo com este retrocesso sem perceber as graves consequências

que isso pode gerar na vida da criança, pelo contrário, há uma total permissividade em relação

às práticas de reprodução, os adultos, até familiares, acham comum e engraçado, o que também

caracteriza um processo de adultização da infância.

Comparando com o que Ariès (1981, p. 100) apontou sobre a condição da infância no

século XVII, os comportamentos infantis, por serem ingênuos e engraçados, viravam

“distrações” para os adultos nas sociedades medievais. Neste contexto, deixo ao

leitor/espectador a seguinte provocação: será que as marcas da sociedade medieval que

consideravam a criança como um adulto em miniatura, desrespeitando suas especificidades e

limites, ainda estão presentes nas relações sociais estabelecidas em pleno século XXI?

202

1 CULTURA E IMAGEM: ZONAS DE CONTATO NAS ENTRE-CULTURAS E

ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA

As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo

genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções

políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a

criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu

desejo (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21).

A infância é uma fase de descobertas, sonhos, imaginações, criticidades, representações

e subjetividades para a criança. O universo infantil está repleto de significações e concepções

de mundo. Sobre isso, Pinto e Sarmento (1997, p. 22) afirmam que “as culturas infantis não

nascem no universo simbólico exclusivo da infância, este universo não é fechado-pelo

contrário, é mais do que qualquer outro, extremamente permeável-nem lhes é alheia à

reflexibilidade social global”. Apesar de sofrerem influências das culturas adultas, possuem

características e ações próprias. As crianças constroem suas culturas, a partir de cenas já

vivenciadas no seu dia-dia que vão dando possibilidades imaginativas e concretas de

racionalização:

O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento

da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece

no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem

perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o

controle da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua dimensão

simbólica nas culturas da infância (SARMENTO, 2003, p. 2).

A Sociologia da Infância concebe as crianças como corresponsáveis por suas infâncias,

afetam e são afetadas pelo mundo adulto e como parte da sociedade, são agentes ativos que

constroem suas próprias culturas (CORSARO, 1997; MÜLLER e CARVALHO, 2009).

Conforme ressaltou Sarmento (2007), as crianças são atores e agentes sociais de pleno direito

que interpretam seus mundos e modos de viver a vida nas múltiplas interações simbólicas

estabelecidas entre si e com os adultos, desse modo, as culturas infantis,

[...] vivem do vai-vém das representações do mundo feitas pelas crianças em

interação com as representações adultas dominantes. As duas culturas – a

especificamente infantil e as da sociedade – que se conjugam na construção das culturas da infância, na variedade, pluraridade e até contradição que

internamente enforma uma e outra, referenciam o mundo de vida das crianças e enquadram a sua ação concreta (SARMENTO, 2007, p. 23).

203

Para discutir este problema, é fundamental voltar um pouco na história da infância para

entender o que significa “adultização”. Como já dito, Ariès (1981, p. 50) compreende a infância

como uma construção histórica que surge da necessidade de submissão e adestramento das

crianças em decorrência das influências escolásticas na Idade Média, período em que não havia

um sentimento de infância compartilhado, a criança convivia na sociedade como um homúnculo

- pequeno homem, termo que designava a criança como um projeto de homem futuro, ou seja,

as crianças tinham as mesmas condições de vida dos adultos, consequentemente, não existia

um tratamento diferenciado para adultos e crianças, pelo contrário, as crianças acompanhavam

e realizavam as mesmas atividades dos adultos, trabalhavam, participavam de festas, reuniões

sociais, e tantas outras situações que desconsideravam suas limitações e entendimentos.

Entretanto, Ariès (1981, p. 99) faz uma ressalva “na sociedade medieval, que tomamos como

ponto de partida, o sentimento de infância não existia – o que não quer dizer que as crianças

fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas”.

Mas, ao reduzir a infância a uma única visão sobre suas condições históricas, Ariès

(1981, p. 50-55) sucumbiu à ideia de pluralidade das condições próprias de vida de cada criança

e em cada contexto social, negando, com isso, as singularidades, as especificidades, as

necessidades e as vozes das crianças. Contudo, não se trata agora de negar a ideia do

“homúnculo”, mas, de reconhecer nela, elementos que ainda continuam sendo reproduzidos na

sociedade atual que precisam ser tencionados nos âmbitos acadêmicos, para que através da

educação, se criem estratégias de enfrentamento e solução.

As sociedades dos séculos XX e XXI têm testemunhado fenômenos que impactaram

diretamente as formas de civilização como a revolução industrial, o advento da indústria

cultural, o processo de globalização, a multiplicidade e a diversidade cultural, a chegada das

tecnologias digitais de informação e comunicação, a Internet, os avanços científicos, novas

formas e constituições dos núcleos familiares, as reconfigurações nos âmbitos da civilidade, da

escolarização e da profissionalização dos indivíduos, entre outros104.

A pesquisa de doutoramento de Silva, A. (2010)105, realizada no Instituto de Educação

da Universidade do Minho traz uma consistente explanação sobre a condição social da infância

104 Tais fenômenos serão abordados ao longo dos capítulos da pesquisa. 105 QRcode 30: Tese: Jogos, brinquedos e brincadeiras - Trajectos Intergeracionais (2010).

204

e destaca a falta de atenção às crianças pelas próprias famílias em espaços determinantes para

sua formação, mas que lhes são negados em função da falta de tempo:

Na verdade, passamos o tempo a dizer que queremos e gostamos muito de

crianças, mas ou as temos cada vez menos e mais prisioneiras dum tempo e

dum espaço que não é o delas ou abandonadas à sua (má) sorte algures; proclamamos a necessidade de uma maior presença dos pais junto dos filhos

e, em troca, damos-lhes a tristeza da nossa persistente ausência; exaltamos a

sua espontaneidade, mas formatamos as suas vidas até ao mais ínfimo dos pormenores; afirmamos que as crianças deviam estar em primeiro lugar, mas

nem as temos ou achamos para ouvir num pequeno contributo sequer que seja para a tomada de uma decisão, por muito que com elas tenha a ver (SILVA

A., 2010, p.118).

Nessa ausência, as culturas infantis se aproximam e são aproximadas cada vez mais das

culturas adultas, seja nas formas de se comportar, nas maneiras de vestir, dançar ou cantar,

mesmo situações que expõe seu corpo e sua sexualidade, sobretudo, as imagens impostas nas

mídias televisivas, nas publicidades e nos estigmas da indústria cultural (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985). Estes foram alguns dos argumentos que levaram Baudrillard (1997, p.

68-69), de forma bem pessimista, a declarar o “contingente negro da infância” que radicaliza a

“exorcização e eliminação” da criança enquanto ser natural para emergir a infância “anormal”,

geneticamente fabricada e condenada à obsolescência acelerada do tempo. Em relação à

condição da criança na contemporaneidade Baudrillard (1981) foi assertivo ao afirmar que:

Estamos em face deste sistema numa situação dupla e insolúvel «double

bind»*106 - exatamente como as crianças perante as exigências do universo adulto. São simultaneamente intimidados a constituir-se como sujeitos

autónomos, responsáveis, livres e conscientes, e a constituir-se como objectos submissos, inertes, obedientes, conformes. A criança resiste em todos os

planos, e a uma exigência contraditória responde também com uma estratégia

dupla. A exigência de ser objecto opõe todas as práticas da desobediência, da revolta, da emancipação, em suma, toda uma reivindicação de sujeito. À

exigência de ser sujeito opõe, de maneira igualmente obstinada e eficaz, uma

resistência de objecto, isto é, exactamente o oposto: infantilismo, hiperconformismo, dependência total, passividade, idiotia. Nenhuma das suas

estratégias tem mais valor objetivo que a outra (BAUDRILLARD, 1981, p.110, grifo do autor).

Apesar de Baudrillard (1981) não se debruçar, especialmente, no tema, esse impasse a

que ele se refere, permite-nos entender a complexidade particular das múltiplas infâncias que

se constituem em tempos históricos e espaços sociais com diferenças significativas em relação

106 Tradução em português: impasse.

205

às condições em que a criança se encontra, infâncias que surgem e ressurgem entre referências

do passado e do presente, infâncias que criam suas próprias estratégias de relacionamento com

o mundo, infâncias construídas nas singularidades de crianças que, mesmo compartilhando de

tempo e espaço semelhantes, não manifestam jamais comportamentos similares, de modo que

não é possível reduzi-las a um discurso histórico linear, homogeneizado em etapas e/ou fases

pré-definidas, tampouco, capturá-las em conceitos universais, e foram, principalmente, nessas

lacunas, que se manifestaram as críticas aos contributos de Ariès (1981).

Já Postman (1999, p.93) ao considerar a condição da criança na contemporaneidade,

destaca alguns aspectos alarmantes em relação aos segredos revelados sobre sexo, violência,

morte, incentivo ao consumismo (entre outros), veiculados diariamente pela mídia, o que o leva

a defender o declínio da concepção de um determinado tipo de infância na atualidade. Para esse

autor, a nova concepção de infância na modernidade é análoga ao aprendizado da linguagem,

tal mudança decorre das transformações culturais relacionadas à necessidade de alfabetização

provocada pelo aparecimento da tipografia, e posteriormente, pelo desenvolvimento do

telégrafo, da fotografia, do telefone, do cinema, do rádio e da televisão, o que provocou uma

ruptura entre os universos adulto e infantil. Essa ruptura desencadeou transformações radicais

na estrutura familiar e nas relações culturais e sociais da modernidade, sobretudo, considerando

os avanços tecnológicos midiáticos decorrentes do século XX, em que os mistérios do sexo, da

violência e da morte foram revelados, nesta concepção, sem a linha divisória, a mídia eletrônica

não retém segredos e “Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância”

(POSTMAN, 1999, p. 94). Há nesse movimento, a base de argumentação da tese do

“desaparecimento da infância” com a destruição da “linha divisória” entre a infância e a idade

adulta, argumento muito polêmico e criticado por estudiosos e especialistas em infância

(KUHLMANN JR., 1998; SIROTA, 2001; SARMENTO, 2002).

Corroborando com as críticas, defendo que essa linha divisória é, e sempre foi uma

ilusão, uma utopia que muitos ainda insistem em defender. Porque, em se tratando de culturas,

não há como separar. As crianças desde sempre viveram e conviveram nessa suposta “linha

divisória”, não através de rupturas, ora no mundo dos adultos, ora no mundo das crianças, mas,

numa condição de prolongamentos e deslocamentos no “entre” culturas e lugares, nesta

perspectiva, não se trata de uma linha que divide, que separa, e sim, de uma linha que une, que

conecta, que se comunica em fluxos contínuos, portanto, a criança se encontra sempre no meio,

entre as coisas. Suas culturas constituem e são constituídas no intermezzo, ou seja, nos “entre

lugares” e nas “entre-culturas”.

Embora não compartilhando da ideia de desaparecimento, considero pertinente o alerta

206

proferido por Postman (1999, p. 94) sobre os riscos das imposições midiáticas para a construção

das culturas infantis, principalmente, quando se refere à adultização das crianças explicitamente

apresentada nas maneiras de vestir, nas atitudes mentais e emocionais refletidas em cada gesto

representado ou na erotização precoce exposta na aparência física (como no caso da Mc

Melody), o que nessas condições, segundo o autor, as crianças estão se tornando cada vez mais

indistinguíveis dos adultos, e necessariamente, “sem um conceito claro do que significa ser um

adulto, não pode haver conceito claro do que significa ser uma criança” (POSTMAN, 1999, p.

112).

Tal qual Ariès (1981) e Baudrillard (1997), Postman (1999) me direciona a pensar não

o “desaparecimento da infância”, mas, o “desaparecimento das fronteiras culturais” que por

muito tempo “tentaram” fixar contornos definidos do que seria pertencente ao mundo adulto e

ao mundo infantil, por conseguinte, esse esforço desconstrucionista sinaliza para a concepção

de culturas infantis que se constituem no “entre” como espaços interstícios fluxos,

desterritorializados, que se cruzam em linhas rizomáticas que conectam de forma inseparável

estes dois universos.

Nesta perspectiva, se as culturas infantis contemporâneas manifestam concepções de

crianças e infâncias formadas a partir das culturas visuais impostas pela indústria cultural

moderna, onde as fronteiras culturais adultas e infantis se penetram, se confundem e em

algumas situações, não existem. As crianças permanecem vulneráveis aos modelos imagéticos

midiáticos que apresentam concepções adultizadas de crianças, estimulam o consumismo, o

exibicionismo, a erotização precoce e a inversão de valores culturais gerando conflitos

identitários em que adultos “se infantilizam” e crianças “se adultizam” (POSTMAN, 1999).

Com os conflitos identitários, a indústria cultural moderna fere os direitos políticos e

sociais constituídos através de esforços legislativos circunscritos em documentos como a

Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção dos Direitos da Criança

(1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), gerando uma série de

consequências na vida das crianças. Nesse contexto, outra questão se torna pertinente: as

infâncias ao constituírem seus territórios, transgredirem padrões e reinventarem modos de ser

e de viver, se dispersam ou resistem às imposições presente nas visualidades midiáticas da

contemporaneidade?107

No fazer científico, é preciso levar em consideração as expressões singulares de cada

107 Embora não seja o objeto de estudo desta tese, implica, diretamente, nas problematizações que serão

discutidas ao longo do ensaio 2.

207

criança, suas condições particulares de vida e suas próprias produções culturais. As crianças

são únicas, como também são seus pensamentos e comportamentos. Nesta perspectiva, é

necessário reconhecer as particularidades da criança e considerar que, para além das condições

históricas, há uma construção social e cultural que contribui, direta e indiretamente, para a

in/formação dessas infâncias, bem como, para a construção de narrativas e concepções que

explicam, caracterizam e perpetuam ideias sobre crianças e infâncias, gerando com isso, uma

série de implicações nas condições em que sobre/vivem essas crianças.

Desse modo, só é possível pensar a infância enquanto categoria social, resultado de um

processo de reflexividade moderna108 (SARMENTO, 2015, p. 35) que se constitui e é

constituída no limiar das relações de alteridade da criança, mas, sobretudo, são dirigidas e

conduzidas pelos adultos, é nessa interdependência que surgem os mundos culturais da infância,

em sua pluralidade de conceitos e significados que se configuram na medida em que as

transformações sociais se tornam cada vez mais complexas e efêmeras.

A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas

societais atravessadas por relações de classe, de género e de proveniência

étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a ‘marca’ da geração

torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais para

além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção

cultural (SARMENTO, 2002, p. 4).

Entretanto, as ideias de “exorcização e eliminação da infância” e de “desaparecimento

da infância”, realmente são um tanto quanto inadequadas, pode-se dizer que, até exageradas.

Etimologicamente, na tradução grega a palavra “exorcismo”, significa “exorkizein”, formada

pelo prefixo “ex”, que significa “fora” e pelo sufixo “horkos”, que representa “juramento”;

traduzido para o latim como “exorcismus”, que significa “afastamento de espíritos maus” e a

palavra “eliminação”, na tradução latina “eliminare”, que representa “excluir, expulsar, matar”,

o que preconiza a morte da infância. Numa mesma direção, o termo “desaparecimento”,

derivado do latim “abitus”, significa desaparição, partida, saída; forma-se do oposto de

“apparere”, que significa “surgir, aparecer”, nesse sentido, desaparecer é sumir, ou seja, a

108 Abordo o conceito de reflexividade moderna apontado nas contribuições do filósofo social britânico

contemporâneo Anthony Giddens em “As consequências da Modernidade” (1991) e em Giddens; Lash;

Beck (2012) e suas interlocuções em “Modernização Reflexiva” (2012). No entanto, essa perspectiva não contradiz as considerações da Sociologia da Infância ao configurar a sociedade moderna a partir das

contribuições de Lash (1997) e Sarmento (2002; 2004; 2005; 2007) ao denominarem de 2ª modernidade.

208

criança chegaria a idade adulta sem passar pela infância, já que esta estaria “sumida”. Utilizar

estes argumentos, sem as devidas críticas, seria o equivalente a afirmar que a ideia de infância,

surgida na modernidade, tornava-se a inexistir na segunda modernidade, tal qual em épocas

medievais, o que não seria uma verdade, evidentemente.

O leitor/espectador, brevemente, há de convir que estes termos não condizem com as

variadas infâncias desveladas nas multimagens deste ensaio, desse modo, prefiro a ideia de

“invisibilidade da infância” sugerida por Sarmento (2005) para indicar a ausência da criança

nos âmbitos cívico, político e científico, revelando assim, uma visão de infância mais

apropriada para entender as condições em que se constituíram e constituem as narrativas e

concepções de crianças e infâncias na literatura e na sociedade. A palavra “invisibilis” em latim

representa “o que não pode ser visto”, deriva-se de “neuter invisibile” que significa “não

visível”. Neste prisma, a infância não desaparece, mas vive à margem da sociedade, torna-se

invisível, desconsiderada, fica fora do alcance do olhar. No entanto, a infância, enquanto

fenômeno social continua existindo nas entrelinhas da cultura e das relações que estabelece no

meio, nos “entre”, neste sentido, o que vai determinar as concepções sobre crianças e infâncias

é o contexto no qual “essas” ou “aquelas” infâncias se constituem. Portanto, proponho

pensarmos essa “invisibilidade” também na perspectiva da cultura, que talvez, seja um caminho

para problematizarmos a infância contemporânea. Inclusive, ressignificando os próprios termos

“adultização” e “desaparecimento”.

Destarte, este ensaio foi direcionado pelos seguintes questionamentos: que imagens de

crianças e infâncias têm sido discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências

Humanas e Sociais? Que imagens de crianças e infâncias têm repercutido na Cultura Visual e

implicado diretamente nos modos de ser e de viver da criança na contemporaneidade? Nesta

direção, objetivou discutir as principais concepções de crianças e infâncias histórica e

socialmente constituídas a partir de determinados momentos históricos.

Para tanto, foram utilizadas imagens técnicas fixas (fotografias) e em movimento

(audiovisuais) de crianças dispostas em pesquisas científicas e nas visualidades presentes em

mídias televisivas, redes sociais, sites de moda e de entretenimento diretamente associados às

questões culturais da infância. O recorte histórico desta etapa da pesquisa compreende aos

acontecimentos relacionados às transições seculares entre a idade moderna (séc. XVIII) e a

contemporaneidade (séc. XX - XXI) em que ocorreram consideráveis transformações acerca

das formas de representação da infância e de criança, principalmente, no que se refere aos

direitos civis e à proteção (DIAS, 2007; SILVEIRA 2007), a exemplo do campo da Sociologia

da Infância (CORSARO, 1997) que aborda o estudo da infância como construção cultural,

209

considerando a criança e seus saberes, suas possibilidades de criação e recriação da realidade

social em que está inserida.

O estudo da infância tem sido marcado por variadas concepções e representações acerca

do conceito de criança que ao longo dos séculos foi sendo modificado em função principalmente

das necessidades específicas dessa fase de desenvolvimento. Teóricos como Sarmento (2007);

Qvortrup (2010; 2015); James; Jenks & Prout (1998); Sirota (2001); Montandon (2001);

Corsaro (1997) contribuíram, significativamente, com o avanço desta literatura no mundo.

Também podemos destacar o estudo clássico de Florestan Fernandes (1979), o pioneiro na

discussão científica sobre infância, não só no sentido de ouvir o que as crianças tinham para

falar, mas também para ouvi-las criticar as observações que ele fazia. Além das contribuições

de Rosemberg (1989); Martins, J. (1993); Kramer (1999); Gusmão (1997); Quinteiro (2005);

Qvortrup (1994); Demartini (2002); Müller (2010) e Dornelles (2007).

Neste sentido, para compreender como se constituem as infâncias e suas representações

tornou-se primordial resgatar a trajetória histórico-social desta categoria no campo das Ciências

Sociais e Humanas, considerando, principalmente, os aspectos culturais que estão entrelaçados

na construção destas infâncias. Neste intento, as contribuições de Ariès (1981), Sarmento

(2007) e Corsaro (1997) são indispensáveis para desconstrução das concepções que

desconsideram a infância e a criança em suas especificidades para dar lugar às concepções de

criança como sujeito social que possui suas próprias formas de vida, de desenvolvimento e de

significações, e de infância como categoria social do tipo geracional ‘e cultural’. Desse modo,

a cultura torna-se o ponto fulcral de todo o processo narrativo, partindo do princípio de que,

A infância é, simultaneamente, uma categoria social do tipo geracional, e um grupo social de sujeitos ativos, que interpretam e agem no mundo. Nessa ação

estruturam e estabelecem padrões culturais. As culturas infantis constituem,

com efeito, o mais importante aspecto na diferenciação da infância (SARMENTO, 2007, p. 36).

A contemporaneidade tem recebido várias configurações lexicais que buscam através

da perspectiva da cultura, explicar as abruptas mudanças e transformações da sociedade

contemporânea. Em meio a tensões e distintas concepções que vão desde a concepção de

modernidade tardia (GIDDENS, 1991), modernidade reflexiva (BECK, 1997), modernidade

líquida (BAUMAN, 2001), 2ª modernidade (LASH, 1997; SARMENTO, 2004) até a

hipermodernidade (LIPOVETISKY e SERROY (2011), não é possível determinar e reconhecer

um único modelo de sociedade, mas sim, reafirmar sua multiplicidade. Consequentemente, cada

concepção revisitada discute os impactos decorrentes, principalmente, do advento da

210

globalização (SANTOS, 2002) e dos fenômenos que impactaram novos paradigmas políticos,

econômicos e culturais que permeiam as formas de vida e as relações sociais deste novo

milênio, como o crescimento exponencial da Indústria Cultural e suas novas mídias digitais

audiovisuais (ADORNO, 2009; ADORNO; HORKHEIMER, 1985; LIPOVETSKY e

SERROY, 2011), bem como, a eclosão da Internet como novo espaço de comunicação e

socialização humana, constituído na/pela cultura-ciber ou cibercultura (LEVY, 1999).

De acordo com Hall (1997, p.2) desde o século XX vem ocorrendo uma “revolução

cultural” 109 que expandiu o domínio e as práticas culturais para além das fronteiras. Segundo

o autor, nem as Ciências Sociais e Humanas deu à cultura a centralidade e valorização que se

tem dado hoje para a compreensão das relações humanas na sociedade e nunca o acesso, a

informação e a comunicação entre os diferenciados e mais distantes povos e culturas tiveram à

disposição tamanha facilidade de produção, circulação e trocas culturais.

Essas novas condições de espaço e tempo gerados a partir das tecnologias e da revolução

da informação deram à cultura um significado público e global, “a cultura se torna pública

porque seu significado o é” (GEERTZ, 1978, p. 23). Neste sentido, a cultura já não é mais vista

como um território fixo, determinado e impenetrável, está sempre em transformação, mesmo

que os mecanismos de reprodução e reificação garantam a permanência de elementos

identificatórios de determinada cultura. Assim, a cultura contemporânea existe para além das

dicotomias, alta cultura/baixa cultura, cultura Europeia/Americana, cultura Arte/cotidiano,

cultura ideológica/material, e precisa ser entendida em toda sua complexa e cíclica extensão

estrutural, desse modo,

Ao mundo de ontem, no qual a cultura era um sistema de signos comandados pelas lutas simbólicas entre grupos sociais e organizava-se em torno de pontos

de referência sagrados, criadores de um universo estável e particular, sucede

o da economia política da cultura, da produção cultural, proliferante, indefinidamente renovada. Não mais o cosmo fixo da unidade, do sentido

último, das classificações hierarquizadas, mas o das redes, dos fluxos, da moda, do mercado sem limites nem centro de referência. Nos tempos

hipermodernos, a cultura tornou-se um mundo cuja circunferência está em

toda parte e o centro em parte alguma (LIPOVETISKY e SERROY, 2011, p. 9).

109 Stuart Hall (1997, p. 2) refere-se ao impacto que as novas tecnologias em escala e escopo globais

causaram nos modos de vida da sociedade acarretando mudanças na consciência popular e gerando uma rápida transformação social, principalmente em se tratando de “circuitos globais de trocas econômicas

dos quais depende todo o movimento mundial de informação, conhecimento, capital, investimento,

produção de bens, comércio de matéria prima e marketing de produtos e ideias [...]. É, especialmente,

aqui, que as revoluções da cultura a nível global causam impacto sobre os modos de viver, sobre o sentido que as pessoas dão à vida, sobre suas aspirações para o futuro — sobre a “cultura” num sentido mais

local”.

211

No contexto da cultura-mundo (LIPOVETISKY e SERROY, 2011), as culturas visuais

permeiam o universo infantil de modo significativo ampliando suas relações sociais e

estabelecendo novas formas de expressão e diálogo na contemporaneidade, consequentemente,

é preciso considerar a potência criadora da criança em produzir sua própria cultura a partir das

significações que estabelece frente às informações presentes nas pluralidades culturais que

constituem seu cotidiano.

Nesta direção, Sarmento (2007, p.36) reforça a ideia de que não há uma cultura infantil

pura, mas, uma “entre-cultura”, em que cada criança vive seu espaço social administrado por

sistemas simbólicos em que são permitidos ou não determinados comportamentos, nessa

perspectiva, as crianças criam estratégias para incorporar, interpretar e re/construir

“continuamente informações culturais, constituídas por valores, normas sociais, ideias, crenças

e representações sociais [...]”.

A partir da crítica pós-colonial (BHABHA, 2013, p. 29) a cultura é compreendida como

um lugar híbrido construído através de deslocamentos sociais projetados nas identidades que se

formam a partir das relações de alteridade. Nesta perspectiva, a criança vive também no “‘entre-

lugar’ de uma condição geracional em transformação, combinando em cada momento concreto

um passado e um futuro que se fundem, por vezes de forma caótica e através de impulsos

contraditórios” (DELGADO; MULLER, 2006, p. 19, grifo das autoras). Nas palavras de

Sarmento (2005):

O lugar da infância é um entre-lugar (Bhabha, 1998) o espaço intersticial entre

os dois modos – o que é consignado pelos adultos e o que é reinventado nos mundos de vida das crianças – e entre dois tempos – o passado e o futuro. É

um lugar, um entre-lugar, socialmente construído, mas existencialmente renovado pela acção coletiva das crianças (SARMENTO, 2005, p. 10).

As concepções de “entre-cultura” e “entre-lugar” remetem ao reconhecimento de

fronteiras110 culturais complexas e contingenciais que se entrelaçam nas relações estabelecidas

entre crianças e seus pares e entre crianças e adultos. Nesta perspectiva, as culturas infantis se

constituem nos espaços interstícios das fronteiras, aqui considerados como zonas de contato ou

contágio entre diferentes culturas, ou seja, a “entre-cultura” vista como intermezzo orquestrado

110 Do ponto de vista conceptual, fronteiras representam não só marcos divisórios, mas, uma realidade

transcendente, móvel, uma construção simbólica passível de ressignificações que ultrapassam limites geopolíticos. Na concepção de cultura, a dimensão de fronteira abrange a ideia de pertencimento,

identidade definida pela diferença e alteridade com relação a outros (BHABHA, 2013).

212

sob a regência infantil e o “entre-lugar” como o tempo e o espaço em que essa regência se

orquestra. Portanto, o “entre” significa o espaço intermediário, um intermezzo, localizado entre

as margens fronteiriças, assim,

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não

seja parte do continnum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o

passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e

interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver” (BHABHA, 2013, p. 29, grifo do

autor).

Disso decorre a noção de “entre-cultura” e “entre-lugar” como zonas de contato. Pensar

como se contactam, interagem e estabelecem trocas nas fronteiras é entender que as culturas

enquanto processos sociais e históricos, são contingenciais e híbridas, “mesmo que possuam

sofisticados mecanismos de reprodução e reificação; elas se transformam no tempo, assimilam,

rejeitam, reelaboram, recriam e mesclam coisas e ideias de outras culturas” (CARVALHO, C.,

2006, p. 55).

Nessa concepção, as crianças constroem suas culturas e criam possibilidades

imaginativas e concretas de racionalização, neste movimento, “a condição comum da infância

tem a sua dimensão simbólica nas culturas da infância” (SARMENTO, 2003, p. 2), no entanto,

“este universo não é fechado - pelo contrário, é mais do que qualquer outro, extremamente

permeável - nem lhes é alheia à reflexibilidade social global” (PINTO; SARMENTO, 1997,

p.22).

As tendências da sociedade moderna são globalizantes e abrangem a complexidade do

local e do global, numa constante adaptação entre a tradição e as mudanças e experiências da

vida cotidiana. Para Giddens (2012, p. 91) o reverso da medalha é menos evidente, tendo em

vista que as ações cotidianas de um indivíduo produzem consequências globais, portanto,

globalização e tradição se entrelaçam no contexto da sociedade contemporânea e estão

interligados ao caráter multidimensional da modernidade, caracterizando assim uma

“modernização reflexiva” (BECK, 2012, p. 12). O termo foi proposto para acentuar as ideias

de individualização e destradicionalização em que a tradição muda seu status e é contestada nas

experiências humanas constantemente, alterando o equilíbrio entre tradição e modernidade

(GIDDENS, 2012, p. 148). Tendo em vista que,

A experiência global da modernidade está interligada – e influência, sendo por

ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos acontecimentos

213

da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as características

intimas da vida pessoal e do eu tornam-se interligadas a relações de indefinida extensão no tempo espaço. Estamos todos presos às experiências do cotidiano,

cujos resultados, em um sentido genérico, são tão abertos quanto aqueles que

afetam a humanidade como um todo (GIDDENS, 2012, p. 94, grifo do autor).

Optei por dialogar com o campo da Cultura Visual por contemplar todas essas mudanças

em que se constituem as novas perspectivas culturais da infância na atualidade e por se tratar

de um campo aberto ao diálogo epistemológico transdisciplinar, crítico e interpretativo,

fundamentais para compreensão dos modos de ser e de viver das crianças e o desvelamento de

suas culturas. As visualidades são artefatos culturais que compõe o cenário da infância

moderna, exercem forte poder de persuasão, constituem e são constituídos nas diversas formas

de interação que estabelecem no ambiente social cotidiano. Partindo de uma visão crítica da

Cultura Visual, o que vai determinar a representação da imagem é o próprio sentido que cada

sujeito dará, e, em cada contexto, tendo em vista que a imagem tem caráter subjetivo,

multicultural e contingencial. Por isso, não se pode reificar a dimensão sociocultural da atenção

dada pelas crianças aos artefatos culturais, sobretudo, midiáticos, disponíveis em seus

cotidianos. Aliás, ignorar tal fato seria incorrer no erro de visualizar uma manifestação

importante e significativa da cultura infantil como se fosse algo comum e sem relevância,

A ausência de um olhar crítico e sem sentido de responsabilidade, pode deixar as pessoas vulneráveis à manipulação da crescente e inesgotável diversidade

de imagens - de arte, publicidade, ficção e informação - que, de múltiplas maneiras nos interpelam, invadem e sitiam nosso cotidiano. Imagens têm vida

cultural e exercem poder psicológico e social sobre os indivíduos. Este é o

princípio que fundamenta e orienta a cultura visual (MARTINS, 2008, p.34).

A indústria cultural no contexto da Cultura Visual em tempos de globalização e

cibercultura, apresenta um vasto repertório de representações e significados que individualizam

e ao mesmo tempo pluralizam a tradição no prisma de modernização, ainda assim, os novos

artefatos culturais do mundo globalizado que potencializam as estratégias econômicas,

tomaram proporções irredutíveis que impactam diretamente e indiretamente as formas de vida

e de convivência social, o local e o global se comunicam e se integram incessantemente ao

fluxo de visualidades, informações e realidades múltiplas e cada vez mais incertas.

Consequentemente, as culturas infantis contemporâneas convivem neste fluxo e precisam

estabelecer relações críticas e de resistência aos impulsos e imposições midiáticas inadequadas

à sua condição de criança.

Dado o exposto, a problemática da vida social moderna retoma a importância de

214

reflexionar as concepções de criança, infância e culturas infantis presentes na

contemporaneidade tanto no campo da Sociologia da Infância quanto na Cultura Visual e

entender como se estabelecem as zonas de contato fronteiriças nas entre-culturas e entre-lugares

da infância. Considerando que a “fronteira” é um lugar de produção de culturas e de negação

da unicidade, linearidade e homogeneidades e o “lugar” compreende o espaço social, cultural e

político no qual a criança se faz presente e é presença. Destarte, pensar no universo das culturas

infantis na perspectiva da Cultura Visual requer um movimento constante de reflexão sobre que

espaços e territórios pertencem às crianças e como estes espaços são ou não respeitados nas

visualidades midiáticas.

Tais reflexões me direcionaram a outros questionamentos relevantes: Como as crianças

e as infâncias estão sendo representadas na indústria cultural moderna e como essas

representações repercutem nos modos de ser e viver das crianças ao constituírem suas culturas?

Como reconhecer o que é próprio de cada cultura? É possível falar de fronteiras quando se trata

de Cultura Visual?

Parto do princípio de que as culturas infantis estão entrelaçadas ao conceito geral de

culturas, assim, nossa pretensão não é separar esses conceitos, mas, especificar, contextualizar

e relacioná-los entre si. Afinal, um depende diretamente do outro e ambos se constroem

mutuamente. Neste sentido, as culturas infantis são constituídas e constituem o contexto mais

amplo de realidade cultural das crianças, ou seja, emergem nas entre-culturas e entre-lugares

das infâncias que surgem do entrelaçamento de várias culturas e no contexto de vários lugares.

Ante o exposto, este ensaio oferece uma visão panorâmica sobre as principais

concepções histórico-sociais de crianças e infâncias narradas em textos escritos e imagéticos

que circulam nos entre-lugares da Ciência e da Cultura Visual, convidando o leitor/espectador

a novamente mergulhar em reminiscências, memórias, histórias e realidades nas quais a criança

marcou sua passagem.

215

2 A I/MA(r)GEM DA CRIANÇA NAS PRIMEIRAS CONCEPÇÕES DE

INFÂNCIA

A conhecida história é contada por Watter Benjamin:

um bêbado procurava afanosamente sob um candeeiro uma

moeda que perdera. Perguntado onde a tinha deixado cair,

respondeu que havia sido algures sob a sombra; mas

procurava-a ali, sob o candeeiro, não porque ela lá estivesse,

mas porque' só aí havia luz e esta era condição para a achar.

Demasiada luz encandeia; a possibilidade de encontrar a

moeda sob uma luz que exclui para a sombra o espaço que não

atinge é altamente remota. Nesta relação, entre uma luz que

aumenta a escuridão do que não atinge e uma sombra que

aumenta a sua inacessibilidade pela vizinhança de uma área

iluminada, encontramos um dos efeitos perversos do

conhecimento constituído. O que é iluminado pela ciência torna

duplamente desconhecido tudo aquilo que a ciência (ainda?)

não pôde alcançar: desconhece-se o que está oculto e não é

susceptível de ser procurado, porque não está previsto o seu

achamento, mesmo que esteja ali ao lado, como a moeda,

escondida péla escuridão redobrada pela luz vizinha

(SARMENTO, 2007, p. 25).

Esta saudosa história transcrita por Sarmento (2007, p. 25) em seu texto “Visibilidade

Social e Estudo da Infância” problematiza, justamente, a invisibilidade da criança nos âmbitos

histórico, cívico e científico. Faço essa escolha para corroborar com a ideia de marginalidade

social da criança que venho discorrer nas páginas subsequentes. Para Sarmento, as concepções

historicamente construídas sobre as crianças e os modos como elas foram representadas em

imagens sociais, ora esclarecem, ora ocultam a realidade dos mundos sociais e culturais das

crianças, na complexidade da sua existência social, como consequência, as vivências, culturas

e representações das crianças “escapam ao conhecimento que delas temos”, pois são produzidos

a partir de uma perspectiva “adultocentrada” (SARMENTO, 2007, p. 25). E apesar das

inúmeras iniciativas científicas em qualificar, classificar e homogeneizar a criança e seu

desenvolvimento, as ciências não conseguiram descobrir e conhecer de fato quem são essas

crianças, porque longe de etapas e níveis, elas (as crianças) não se enquadram em modelos,

padrões ou conceitos fechados.

216

Portanto, assim como a moeda perdida na escuridão, aumentada pela luz do candeeiro

que não a atinge, a infância permaneceu por muito tempo à margem da vizinhança iluminada

que redobrava a escuridão na qual, logo ali ao lado, ela se encontrava. Desse modo, este

movimento de “iluminação-ocultação exprime-se nos saberes constituídos sobre as crianças e

a infância” que se conhece, há tempos, nos livros. Neste sentido,

Uma ruptura epistemológica no conhecimento sobre a infância e sobre as crianças - que tem vindo a ser defendida no interior do campo dos "estudos da

infância" em plena constituição - é condição essencial para procurar a luz que

nos permita ir tacteando as sombras (SARMENTO, 2007, p. 25, grifo do autor, grifo do autor).

Neste capítulo procuro responder a seguinte questão que imagens de crianças e infâncias

têm sido discutidas nos estudos e pesquisas científicas nas Ciências Humanas e Sociais? Para

tanto, evidenciei as principais concepções de crianças e infâncias histórica e socialmente

constituídas a partir de determinados momentos históricos. As concepções de criança e infância

vinculam-se à construção social que se desenrola de acordo com cada período histórico, cujos

acontecimentos constroem suas respectivas facetas. Logo, a dicotomia “passado versus

presente”, já anunciada pelo positivismo, se re/estabelece num processo ad infinitum

repercutindo diretamente numa mudança dialética paradigmática, agora, conjugada na

inseparabilidade desses fenômenos. Nesta perspectiva, para pensar as culturas infantis na

contemporaneidade torna-se necessário revisitar o lugar da criança na história, reestabelecendo

diálogos epistemológicos entre infância, cultura e sociedade, para só então, compreender as

concepções atribuídas à criança ao longo de diferentes épocas e contextos.

Nesta perspectiva, este capítulo rememora fatos históricos relacionados às crianças,

infâncias e culturas infantis que foram representados através da imagem, à medida que os

modos de ser e de viver das crianças em cada época, eram representados através do olhar

artístico e discutidos à luz das Ciências Humanas e Sociais. Fatos esses que nos ajudam a

reviver o processo de construção histórica e social da infância, à medida que esta discussão

reapresenta imagens que foram retratadas a partir de fontes históricas e científicas,

possibilitando assim, reflexionar as concepções, as condições em que viviam, os lugares, o

tempo e espaço ocupados pela criança na sociedade.

Desse modo, a partir de uma interlocução transdisciplinar entre História, Sociologia e

Cultura Visual e seus segmentos nas Ciências Humanas e Sociais, destaquei a trajetória

conceptual de infância considerando as implicações históricas e sociais dos modos de vida das

crianças em diferentes épocas e contextos a partir da História Social da criança e da Sociologia

217

da Infância sob perspectivas fotoetnográficas, adaptadas à perspectiva do memento que, neste

contexto em particular, consistiu em “reviver” os momentos históricos, “sentir” as emoções e

singularidades desses momentos e “compreender” a infância a partir dos modos de ser e viver

das crianças em cada época retratada.

A presente investigação foi desenvolvida a partir de referências teóricas e iconográficas,

ora de fontes escritas, e ora de fontes imagéticas. Foram consultados os principais estudos

clássicos que fundamentaram a História da Criança e a Sociologia da Infância, cruzando

informações com as fontes iconográficas da Cultura Visual europeia. Tanto as já discutidas nas

fontes escritas quanto as que foram encontradas em coleções de museus e de historiadores em

particular, inventariadas e catalogadas em acervos digitais CAPES, ANPEd e SciELO.

As imagens estão dispostas ao longo da narrativa escrita, porém, seguindo a dimensão

conceptual de uma narrativa visual. Apesar de estarem fixas, indicam um movimento sequencial

e dinâmico revelando que a infância passou por várias concepções e situações que não cabem

em um único conceito, mas aproximam-se de concepções e construções teóricas produzidas a

partir de cada contexto histórico e social no qual as imagens foram produzidas. Entretanto, a

ideia sequencial não obedece necessariamente um tempo cronológico determinado, mas aponta

para a trajetória conceptual da categoria infância à luz das teorias abordadas, na tentativa de

mostrar visualmente os conceitos empregados (ACHUTTI, 2004), desse modo, as imagens

caminharam entre os séculos XV e XX, centrando-se, principalmente, no século XVII, em que

ocorreram as principais mudanças conceptuais e iconográficas na perspectiva de Ariès (1981,

p. 65).

Neste contexto, a influência da Cultura Visual pode ser vista sob dois ângulos: o

primeiro como expressão cultural que tenta reproduzir contextos, costumes, crenças, cotidianos

e imaginários que compõem cada realidade retratada; o segundo como fonte documental direta

e/ou indireta que influenciou e ainda influencia, a construção de narrativas sobre história,

cultura e sociedade, e em particular, sobre a infância. Portanto, nesta Fotoetnografia tentei

contemplar esses dois aspectos.

A iconografia da criança tem sido muito pesquisada no campo das Ciências Sociais. As

contribuições de teóricos internacionais como Ariès (1981), Del Priore (1999), Rice e Rice

(1998), Sirota (2001), Sarmento (2002), Loic Chalmel (2004) e Heywood (2004), além de

nacionais como Freitas (1997), Kuhlmann jr. (1998), Abramowicz (2011), entre outros, foram

fundamentais para a consolidação histórica e social destas categorias. Destes contributos, dois

autores se destacam veemente na literatura: Philippe Ariès (1981), importante historiador

francês que contribuiu com os estudos sobre criança e infância, descrevendo a evolução

218

histórica desses conceitos em obras como “Séculos de Infância: História Social da Criança e da

Família”, publicado originalmente na França e Inglaterra em 1960, nos Estados Unidos em 1962

e em 1973 no Brasil (contando atualmente com várias reedições), tornando-se referência

mundial para a compreensão das transformações culturais vivenciadas por crianças em épocas

medievais; e Manuel Jacinto Sarmento (2007), sociólogo português, precursor da nova

Sociologia da Infância, tem sido o grande interlocutor entre pesquisadores brasileiros e

europeus na contemporaneidade. Ambos indispensáveis para a investigação das concepções de

criança, infância e culturas infantis em diversas áreas do conhecimento. Porém, outros autores

também servirão de aporte teórico para problematização desta temática.

A trajetória conceptual de crianças e infâncias decorre de um longo percurso histórico-

social de inferioridade e marginalidade construídos a partir da ausência do sentimento de

infância, dada sua inferioridade em relação aos adultos e sua exclusão social, quer seja familiar,

moral ou econômica (ARIÈS, 1981, p. 156). Tais circunstâncias relegara à infância um não-

lugar na sociedade e a condição de não-falante, daí a nomenclatura infância (in-fans – sem fala)

que define o conceito de criança em períodos medievais. Etimologicamente o termo origina-se

do Latim “infantia” que corresponde a junção de “in” que significa negação de um verbo e

“fari” que significa “falar”, onde sua conjunção “fan” significa “falante”, portanto, “infans”

refere-se aos indivíduos que ainda não possuem a linguagem, o infante é aquele sem fala

(SIROTA, 2001). A infância durante os séculos XII até meados do século XVIII era uma fase

da vida anônima e as crianças eram consideradas como adultos em miniaturas “homúnculo”

(ARIÈS, 1981, p. 51).

A cultura europeia exerceu significativa influência nos primeiros registros iconográficos

de crianças sobre como viviam e eram representadas pela sociedade medieval. Ariès (1981) foi

o “pioneiro da história da infância, bem como no uso de imagens como evidência” (BURKE,

2004) para referenciar a criança através das concepções histórica e cultural estabelecidas sobre

a imagem do “homúnculo111”, ou seja, do “adulto em miniatura”.

Para tanto, Ariès (1981, p. 51-52) dá ênfase à pintura barroca e renascentista da arte

europeia para referenciar a representação da criança e designar a ausência do sentimento de

infância, destaca as obras de pintores famosos para evidenciar que “no mundo das fórmulas

românticas, e até o fim do século XVIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão

particular, e sim homens de tamanho reduzido”. Para chegar a esta conclusão, Ariès (1981)

111 Em latim, "homúnculus” palavra derivada no plural que se origina de “homullus” que significa “pequenos

humanos”.

219

estudou escritos da época, observou a representação das crianças e da infância na arte pintura

europeia, atentando para seus modos de vestir e de conviver com o adulto, em particular,

também olhou para a história dos jogos e passatempos. Fundamenta seus achados através de 26

pinturas, em que crianças eram retratadas como uma projeção do adulto.

De acordo com o historiador, a família, como estrutura social paradoxalmente não tinha

lugar na sociedade dos séculos XII ao XV, tampouco existia sentimento que lhes conferisse

status e valor. Até o final do século XVI e início do século XVII a sociabilidade se restringia

aos indivíduos das classes abastadas, das famílias ricas do campo ou da cidade, da aristocracia

ou da burguesia e sem distinção geracional. Num contexto de ausência de sentimento de família,

as crianças misturavam-se aos adultos e após a 1ª idade aos 7 anos ingressavam, imediatamente,

na grande comunidade dos homens, participando de todas as atividades públicas sociais e de

trabalho.

Na cultura europeia a identificação de criança era baseada em características físicas

entre o nascimento e a aparição dos dentes, conforme descrição de Le Grand Propriétaire, citado

na obra de Ariès (1981):

A primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando

a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não-falante, pois nessa idade a

pessoa não pode falar bem nem tomar perfeitamente as palavras, pois ainda

não tem seus dentes bem ordenados nem firmes (ARIÈS, 1981, p. 36).

As crianças só recebiam tratamentos diferenciados até o desmame, quando não mais

dependiam da mãe ou das amas de leite, passavam a conviver em sociedade com os adultos

participando ativamente das rotinas familiares, das reuniões sociais e das jornadas de trabalho,

inclusive não eram poupadas nem de assuntos íntimos, sendo expostas à cenas libidinosas em

festividades. Essa falta de atenção específica, explica o alto índice de mortalidade da época, por

isso, as famílias eram numerosas e não tinham muito apego às crianças (ARIÈS, 1981, p. 56-

57).

De acordo com Ariès (1981, p. 9-27) quando as crianças apareciam em pinturas e

esculturas tinham uma musculatura adulta, não se considerava idade biológica, apenas o

tamanho remetia à altura de uma criança. Outra forte evidência eram as vestimentas, pois os

trajes apenas indicavam a condição social dos indivíduos, não havia distinção nítida entre

roupas infantis e adultas, femininas e masculinas de crianças, o que levou o autor a afirmar a

ausência da “consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue

essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (ARIÈS, 1981, p. 156). De acordo com o

220

autor, as etapas da vida humana estão divididas em seis fases: a 1ª idade - do nascimento até 7

anos; a 2ª idade - dos 7 anos até 14 anos; e a 3ª idade - dos 14 aos 21 anos; 4ª idade - dos 21

anos até 45 anos; a 5 ª idade (a senectude) - considerava a pessoa que já tinha passado pela

juventude e que não era velha; a 6ª idade (a velhice) - a partir dos 60 anos. As três primeiras

idades não eram valorizadas somente a partir da 4ª idade as pessoas eram reconhecidas

socialmente. Até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância, sendo as duas

palavras ambíguas.

Em se tratando da representação iconográfica, Ariès (1981, p. 50-51) afirma que as

crianças raramente eram retratadas no período medieval, que compreende o período entre o

século V ao século XV, havia uma indiferença generalizada em relação às crianças,

principalmente relacionada à sua morte precoce e frequente. As famílias não se apegavam às

crianças, pois era muito comum perdê-las logo cedo. Nesta perspectiva, a infância era uma fase

sem importância e a morte de crianças era considerada uma perda eventual, portanto as crianças

não eram dignas de lembranças.

Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil,

em que a possibilidade de perda é muito grande, no fundo não está muito longe

da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas, que praticavam o abandono das crianças recém-nascidas. Compreendemos então o abismo que

espera a nossa concepção da infância anterior à revolução demográfica ou a

seus preâmbulos (ARIÈS, 1981, p. 57).

Isto explica a falta de registros na Idade Média e a iconografia tardia, limitando assim,

as informações e demonstrando principalmente a influência dos ‘modos de vida adulto’ na vida

das crianças, essa influência se materializou nas imagens que revelam comportamentos e

sentimentos de uma ‘não infância’.

De fato, tornou-se difícil até mesmo imaginar quão poucas imagens estavam em circulação geral durante a Idade Média, uma vez que manuscritos

ilustrados que hoje nos são familiares em museus ou em reproduções

encontravam-se geralmente nas mãos de particulares, deixando apenas retábulos de altar ou afrescos em igrejas visíveis para o público em geral

(BURKE, 2004, p. 21).

Desse modo, as imagens selecionadas para análise se referem à Idade Moderna, esta

escolha se deu em função da discussão empreendida na obra de Ariès (1981, p. 156) que defende

a ideia da infância como uma invenção moderna e sua possibilidade de emergência relaciona-

se ao desenvolvimento da escrita e da escola, além de outros fatores, tais como o decréscimo

221

da mortalidade infantil, a influência do cristianismo e as novas formas de vida familiar. Porém,

dialogamos também com outros corpus investigativos, como artigos científicos, livros de

História relacionados aos aspectos sociais e culturais da infância nesta época, além de sites e

blogs de Arte.

Ariès (1981, p. 54) assevera que entre os séculos XII e XV, a criança foi representada

na imagem a partir de uma forte influência religiosa, caracterizada pela tríade: imagem do “anjo

adolescente” (aparência de um rapaz jovem para designar a criança); a imagem do “menino

Jesus” (a infância aparece relacionada aos mistérios da maternidade), com um acento de ternura

e ingenuidade, onde o menino Jesus nunca aparecia despido, um reflexo da ideologia religiosa

e sagrada que envolvia a representação de Cristo como Salvador; E a imagem da “criança nua”,

a primeira referência na arte medieval da consciência da particularidade infantil (ARIÈS, 1981,

p. 64). Os artistas exploravam imagens de crianças nuas como uma pequena versão de adulto,

com rostos e características “crescidas” e corpos alongados. Na arte medieval francesa a alma

era representada por uma criancinha nua e geralmente assexuada. Entretanto, o menino Jesus

nunca aparecia despido, “era castamente enrolado em cueiros ou vestido com uma camisa ou

camisola” (ARIÈS, 1981, p. 53).

Já na Idade Moderna, durante o século XVI surge à imagem do “putto”, a representação

de uma criancinha nua, que lembra um querubim, representa uma revivescência do Eros

helenístico. Nesta representação, a nudez foi bastante acentuada na Europa em pinturas de

Madonna, crianças e inclusive do menino Jesus. No entanto, o putto nunca foi uma criança real

e histórica, segundo Ariès: “Não se imaginava a criança histórica, mesmo muito pequena, com

a nudez da criança mitológica e ornamental, essa distinção persistiu durante muito tempo”

(ARIÈS, 1981, p. 63).

Na tela “Madonna do Goldfinch” (1506) 112 de Raffaello Sanzio, um dos ícones da

pintura Renascentista do início do século XVI, muito conhecido pelas suas Madonnas (quadros

que remetiam à imagem da Santíssima Virgem e narravam histórias bíblicas), é possível

observar em high key que o artista apresenta uma figura feminina em momento devocional junto

a duas crianças que interagem entre si, uma que remete à imagem da criança nua e a outra à

figura de um putto, características da transição entre o século XV e o século XVI. Ariès relata

112 QRcode 31: Madonna do Goldfinch (1506).

222

que as figuras do putto invadiram a iconografia do século XVI, se tornando um motivo

decorativo repetido “ad náuseam” (ARIÈS, 1981, p. 62).

O foco principal da imagem está na relação afetiva entre a figura materna e às crianças.

Em low key as vestes da Madonna lembram a imagem religiosa da mãe de Jesus, porém, dá tons

mais acentuados como azul e vermelho. Em high key, a mão esquerda da Madonna segura um

pequeno livro aberto, provavelmente contendo assuntos religiosos. E com a mão direita apoia

suavemente uma das crianças (a real) o que também a faz direcionar seu olhar, desviando assim,

a atenção da leitura devocional, no entanto, esse olhar é delicado e de admiração, esta criança

veste um traje próprio da sua idade. A outra criança (mitológica) está representada como um

putto e tem seu corpo nu.

Raffaello Sanzio desenha os traços do corpo infantil com contornos bem acentuados,

quase musculosos. Ao comparar a expressão facial das crianças, percebe-se em low key que

umas delas (putto) tem um olhar denso, quase perverso, diferente do olhar da outra criança

(real) que tem feições mais angelicais. Nesta perspectiva, é visível a referência à ideologia

religiosa, inclusive, o próprio cenário da imagem mostra-se como parte do Jardim do Éden,

onde foi narrada a história de Adão e Eva presente no Livro de Gêneses (Gen., 2;3), pois é

composto por algumas árvores, um riacho, nuvens em um céu azulado, pequenas flores pelo

chão, gramas, rochas e montanhas ao fundo.

O Éden frequentemente fez parte da arte europeia, inspirando muitas lendas e mitos em

relação ao bem e ao mal, ao pecado do homem e ao fruto proibido113. Desta forma, a leitura

sensível desta cena permite idealizar quatro aspectos: o paraíso através dos tons clássicos da

natureza celeste; a inocência do putto em contraponto com um olhar mais endurecido das

feições adultas presentes no desenho da criança desta época; a necessidade da purificação da

alma adulta em busca de sua salvação e a interação afetiva entre as crianças com a natureza,

considerando que ambas acariciam uma espécie de ave. As cenas de cunho religioso geralmente

apresentam contradições entre o puro e o profano, o sagrado e mitológico, o bem e o mal, essas

contradições dialogam com as perspectivas do arbítrio humano, no qual tenciona-se a essência

da alma humana em permanecer ou desviar-se do caminho da purificação.

Em síntese, a iconografia referente à infância na Idade Média limita as informações e

113 QRcode 32: Chicangana-Bayona (2013).

223

demonstra principalmente a influência dos modos de vida adulta na vida da criança. Essa

influência se materializava nas imagens que expressavam comportamentos e sentimentos de

uma “não-infância”. No entanto, se considerarmos que a infância retratada por Ariès tinha um

tempo e um modo próprio daquele contexto e daquela cultura, não se pode aplicar, portanto,

tais representações a todas as crianças e em todos os contextos.

Porém, entre os séculos XVI e XVII se desenvolve o sentimento de infância, e se estende

a todas as camadas sociais, no entanto, à custa de isolamentos demográficos e sociais. Cada

núcleo familiar exercia sua função mantenedora, mas relegava o campo da sensibilidade. Neste

sentido, em uma de suas afirmações mais polêmicas, Ariès (1981) afirma que na sociedade

medieval, a ideia de infância não existia, sendo, portanto, uma invenção moderna, sendo que

sua possibilidade de emergência, relaciona-se ao desenvolvimento da escrita e da escola, além

de outros fatores, tais como o decréscimo da mortalidade infantil, a influência do cristianismo

e as novas formas de vida familiar.

A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e

XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente

numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII (ARIÈS, 1981, p. 65).

Associado ao “novo” sentimento de infância, uma evolução nas representações

imagéticas de crianças marca o século XVI. Influenciada pelas ideias do cristianismo europeu,

as sociedades passaram a registrar as crianças com maior frequência, tanto as que sobreviviam

às suas ‘não-infâncias’, quanto as que morriam ainda pequenas, desse modo, o registro artístico

era feito com o objetivo de conservar sua lembrança, pois segundo Ariès (1981, p. 58) “o retrato

da criança morta, particularmente, prova que essa criança não era mais tão geralmente

considerada como uma perda inevitável”.

Neste contexto, a mortalidade infantil tornou-se uma preocupação social, em vista disso,

as famílias passaram a considerar a criança em suas limitações e fragilidades enquanto seres

dependentes e fracos, porém, contraditoriamente, mantiveram as atribuições direcionadas à

criança que desconsideravam as limitações do corpo infantil, levando-as a trabalhar nas mesmas

condições dos adultos, sem tratamentos diferenciados na saúde, tampouco na convivência social

em festas de todos os gêneros, desde festas religiosas à jogos de azar (Ariès, 1981, p. 87-88).

De acordo com Ariès (1981, p. 277), no início do século XVII, com a influência

eclesiástica e o sentimento de infância, principalmente, no contexto burguês, a família assumiu

funções morais e espirituais “passando a transformar os corpos e as almas”, consequentemente,

224

“o cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos” que refletiram,

diretamente, na iconografia daquela época, a qual “exprimiu com insistência e gosto: o [novo]

sentimento moderno da família”. Com isso, Ariès (1981, p, 61) afirma que nessa época,

Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo, em estabelecer

apenas alguns deles, desinteressando-se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho - e, no

fim do século XVII, até mesmo às meninas - uma preparação para a vida.

Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola (ARIÈS, 1981, p. 272).

Além da escola, havia a preocupação da igreja em relação ao infanticídio e com a

interferência dos poderes públicos, a proteção e o cuidado passaram a ser uma prioridade

principalmente para as mulheres, no caso, amas e parteiras, criando uma nova concepção sobre

a manutenção da vida infantil, “[...] como se a consciência comum só então descobrisse que a

alma da criança também era imortal”, essa importância estava diretamente associada a uma

cristianização mais profunda dos costumes (ARIÈS, 1981, p. 61). No entanto, ao ingressar na

escola, a criança imediatamente passava a fazer parte do mundo dos adultos, “essa confusão,

tão inocente que passava despercebida, era um dos traços mais característicos da antiga

sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida em que correspondia a

lago enraizado na vida” (ARIÈS, 1981, p.109).

Em meio a essas reconfigurações históricas e sociais que sinalizaram a mudança de

paradigmas entre a Idade Média e a Moderna, o século XVII configura-se como um período de

grande importância para a evolução dos temas relacionados à infância. Segundo Ariès (1981,

p. 58) a criança começa a ser retratada sozinha e sua expressão é menos desfigurada que na

Idade Média. Neste período, iniciam-se também os primeiros estudos sobre a psicologia

infantil. Estes estudos buscavam compreender melhor a mente da criança para melhor

adaptação dos métodos utilizados na educação.

Segundo Ariès (1981, p. 60) os pintores buscavam conservar através da arte o aspecto

fugaz da infância, neste sentido, a criança passou a ser retratada com alguns traços mais

225

singulares através das mãos de artistas famosos Rubens, Van Dyck, Franz Hals114, Le Nain115

e Philippe de Champaigne. As pinturas clássicas estavam presentes, principalmente, na vida das

famílias burguesas que podiam encomendar a arte e subsidiar os artistas que durante meses e

anos, produziam cenas da vida real com precisão. No entanto, alguns artistas como Franz Hals,

Le Nain e Jan Steen116 também retrataram a vida de famílias camponesas através de trabalhos

para caridade ou para seus acervos pessoais.

Na sequência, apresento uma narrativa escrita referente à trajetória conceptual de

infância no século XVII, inspirada nas contribuições de Ariès (1981). Narrativa esta, que fez

parte da Fotoetnografia disposta no 2º Click desta tese117.

Um dos primeiros artistas a acrescentar em suas obras representações de crianças foi

Peter Paul Rubens, um pintor flamengo de estilo barroco, cujas obras são principalmente

baseadas em assuntos mitológicos e alegóricos. Rubens misturava temas que variavam entre

fantasias e realidades, apelando até para sensualidade muito presente nas lendas romanas. As

crianças não eram o interesse deste artista, mas em algumas pinturas encomendadas ou de seu

acervo pessoal, ela compunha o cenário pintando crianças.

Como no caso da tela “Deborah Kip, épouse de Sir Balthazar Gerbier et ses enfants”

(1629-1645), em que o artista retratou em gratidão ao anfitrião e para sua própria recordação, a

esposa e os filhos de seu amigo - Balthasar Gerbier, que lhe hospedou por meses em sua

residência em Londres. A tela apresenta em high key uma cena doméstica de uma família

abastarda holandesa composta por quatro crianças e sua mãe, de nome Deborah Kip. O cenário

é composto por um amplo terraço que tem em sua extremidade esquerda cariátides que se

entrelaçam como colunas suportando o pavilhão, dando um ar suntuoso à cena. Outro detalhe

114 QRcode 33: Biografia Franz Hals.

115 QRcode 34: Biografia Le Nain.

116 QRcode 35: Biografia Jan Steen.

117 Ensaio II, capítulo 6: 2º click - do homúnculo à criança social: infâncias em peles magicizadas.

226

é a presença de um papagaio azul pousado na cadeira em que Deborah está sentada, símbolo da

riqueza aristocrática e influência da mitologia grega que remete à ideia de mãe perfeita. Mesmo

com todo esse glamour, é perceptível em low key que Rubens deu maior ênfase na relação

afetuosa entre mãe e filhos, como foco central desta obra de arte.

O luxo também pode ser percebido nas vestimentas da família. Deborah veste uma

elegante saia verde com bordados dourados e uma blusa de cetim brilhante que varia entre um

azul bem claro ao prateado, também usa um gorro bordado do mesmo tecido da blusa. O filho

George, à esquerda da sua mãe, vestido de mangas longas vermelhas, segura com sua mão

direita uma cortina vermelha volumosa com franjas douradas e olha fixamente para sua mãe.

Ao seu lado sua irmã Elizabeth, usando um longo vestido preto com um pequeno detalhe de

tecido transparente nas costas, olha de modo sereno diretamente para o espectador (no momento

da cena, o pintor).

Do mesmo modo sua irmã Suzan, de expressões mais angelicais, usa vestido longo azul

escuro com avental sobreposto feito de cetim branco, olha mais timidamente para direção do

espectador/pintor, apoiando seu braço direito no colo de sua mãe e o braço esquerdo segura

discretamente seu vestido, ressaltando ainda mais sua timidez. Deborah levemente inclina seu

rosto e mantém um olhar discreto e distante, quase triste, olhando em direção ao vazio. Segura

em seu colo um bebê aparentemente nu, remetendo a imagem do putto, não encontrei

informações sobre o sexo e o nome deste bebê. As descrições em high key desvelaram uma

imagem com tons escuros que sinalizam elementos de uma família da classe alta que exibem

belos trajes de nobreza. Porém, em seus olhares tímidos e distantes, percebe-se em low key certa

melancolia, até mesmo tristeza.

Portanto, na iconografia do século XVII, as crianças aparentam traços mais delineados,

perdendo, de certa forma, o peso da adultez, o modo de vestir as crianças se diferencia das

vestimentas dos adultos. Como visto na tela de Van Dyck, outro artista flamengo de estilo

barroco, o principal pintor da corte inglesa. A pintura “Los hijos mayores de Carlos I” (1637),

representa os cinco filhos mais velhos do rei Carlos I da Inglaterra, trata-se de uma cena

especialmente, organizada para a ação do retratista.

A tela apresenta em low key cinco personagens, a criança no centro é o futuro herdeiro

Charles II (7 anos) que exibe uma solene veste vermelha composta de tecido brilhoso e rendas

brancas, usa sapatos dourados de salto e ponta fina, com detalhe na frente em tecido que imita

uma rosa vermelha, sobressaindo-se assim, dos demais. À esquerda estão Mary, a princesa Real

(6 anos) e James II de Inglaterra (4 anos), ambos exibem vestimentas longas feitas de seda

brilhosa com aplicações de rendas delicadas, ela com arranjo de flores no cabelo e colar de

227

pérolas, e ele com gorro bordado na cabeça. À direita, duas filhas mais novas, Isabel também

representada de maneira suntuosa com um longo vestido de seda azul com rendas brancas, um

gorro de renda na cabeça, e portando brinco e colar de pérolas. E Ana, nascida há poucos meses,

no colo da irmã Isabel. Em low key, pode-se afirmar que a aparência de Ana remete à ideologia

religiosa do putto, nu e semi-envolto no lençol branco de linho sobre o qual está deitado

(ARIÈS, 1981, p. 64), também tem uma touca bordada na cabeça, sinalizando os traços de

realeza da época.

O cenário foi especialmente preparado para a cena, sendo notável o luxo impetuoso da

realiza. As crianças estão postas em uma possível sala de refeições em que ao fundo abre-se

uma cortina verde aveludada com franjas douradas nas pontas, com isso, avista-se uma pequena

paisagem que aparece logo na abertura, clareando o ambiente. Também compõe o cenário dois

utensílios de ouro, uma jarra e uma fruteira, dispostos numa enorme mesa coberta com uma

toalha de veludo vermelho. Destaca-se também na imagem, a figura de dois cães, que na época

era símbolos de fidelidade e lealdade, segundo Hickman (2013, p. 132) os “cães eram pintados

porque eram adorados”. Apoiando o braço esquerdo do príncipe, um enorme mastiff, que porta

uma larga coleira de bronze marcada com o brasão real.

Partindo de um olhar contemporâneo, seria impossível distinguir o sexo masculino de

James II de Inglaterra (4 anos) ao olhar para as crianças desta cena, cujo traje se iguala ao de

sua irmã Mary, a princesa Real (6 anos). Nesta época era muito comum o uso de saias em

crianças, principalmente no contexto real. Também se percebe nas partes ocultas da cena, que

as posturas das crianças maiores demonstram seriedade, provavelmente, devido às

responsabilidades e comportamentos de uma família real, de modo contrário, as crianças mais

novas demonstram atitudes mais infantis.

Com um ar menos formal, a pintura de Le Nain presente na coleção particular do Castelo

de Lowther em Penrith, Inglaterra, intitulada de “Preparations for the Dance” (1643) apresenta

em high key seis crianças dançando ao som de um flautista, aparentemente, de 3ª idade na

perspectiva de Ariès (1981), acompanhados por uma babá que, provavelmente, também orienta

os preparativos da referida merrymaking (atividade festivas).

Algumas observações em low key são percebidas em três das crianças retratadas – duas

ao centro e uma na extremidade direita - olham diretamente para o espectador (pintor), suas

expressões parecem comunicar certa preocupação com o andamento da apresentação, ora

demonstrando timidez, ora chegando ao desprazer em tal exposição. Do mesmo modo, a postura

e a expressão facial da menina à esquerda, que veste saia vermelha e avental sobreposto azul,

não parecem demonstrar satisfação. De maneira contrária, a menina maior, de vestido amarelo-

228

esverdeado e avental sobreposto azul, aparentemente sorri e movimenta-se performaticamente

demonstrando prazer em sua apresentação. Assim como, a criança de casaco vermelho ao seu

lado, também expressa um discreto sorriso, mostrando-se compenetrada na dança e na canção.

Notadamente a babá é mais sorridente na imagem, sua fisionomia revela alegria, satisfação e

entusiasmo, como se estivesse orgulhosa da apresentação das crianças.

As vestimentas remetem às pessoas camponesas, feitas de tecido simples e com alguns

pequenos retalhos. Quase todos estão usando adornos na cabeça como gorros e chapéu. Tanto

o flautista quanto uma das crianças, a de maior idade em comparação a outras, estão com os

pés descalços, os demais personagens estão usando sapatos. O artista não investe muito no

cenário, que apesar de ser muito escuro, parece ser um espaço doméstico, pois ao fundo dá para

perceber uma grande lareira, alguns jarros e um porta-retratos. Contudo, em low key, a cena não

realça a infância, não tem alegria nos olhares, falta à leveza nas crianças.

A forte tendência em dominar e moldar o comportamento infantil levavam as crianças

a se submeterem aos modelos dos adultos, tanto nas vestimentas quanto nos modos de se

expressar. Essa tendência se materializava no cotidiano das famílias onde se estabeleciam

padrões de comportamento como forma de dominar e controlar os impulsos infantis (ARIÈS,

1981). No século XVII também emerge outra concepção de criança marcada pelas

transformações sociais, reformas religiosas e pela afeição no que se refere ao apego das famílias

às crianças. Surge, portanto outra concepção de sentimento de infância, mas com tendência ao

que Ariès (1981, p. 158) chamou de paparicação, ou seja, "a criança, por sua ingenuidade,

gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto"

Entretanto, Ariès (1981) caracterizou esse sentimento como “superficial”, pois assim

que as crianças cresciam, logo eram misturadas aos adultos e perdiam as regalias dos primeiros

anos de vida. Portanto, não havia um lugar específico para as crianças na sociedade, inexistia

ainda um sentimento de infância, assim como conhecemos hoje, tampouco consideravam as

crianças como um grupo social com características e necessidades próprias, havia, sim, uma

confusão de sentimentos em relação às crianças e suas infâncias que variavam do cômico à

irracionalidade, da distração à servidão, do cuidado à rígida disciplina.

Essas mudanças contribuíram para a consolidação das primeiras abordagens do

sentimento de infância e, consequentemente, deram início à preocupação com a higiene, a saúde

física da criança, principalmente, relacionada com o tratamento de doenças e a formação moral

da criança, ainda com forte tendência à religiosidade. De acordo com os fundamentos da igreja

era preciso conhecer melhor a criança para poder corrigir os desvios e guiá-las para o caminho

do bem, inclusive estabelecendo a cultura de recompensas para as crianças bem-comportadas,

229

o “apego à infância e à sua particularidade não se exprimia mais através da distração e da

brincadeira, mas através do interesse psicológico e da preocupação moral. A criança não era

nem divertida nem agradável” (ARIÈS, 1981, p. 162).

Mesmo na tentativa dos artistas da época, em aparentar a leveza da alma infantil, é

possível perceber que a tendência da aparência adulta ainda se faz presente nas posturas e nas

faces das crianças mais velhas, que logo se misturam ao universo adulto, como também revela

a obra “Les enfants de Habert de Montmor” (1649), de Philippe de Champaigne118, um artista

de origem flamenga e de movimento barroco, cujas pinturas eram clássicas e essencialmente

religiosas. O artista representa os sete filhos da família Herbert Montmor, uma família

tradicional e afortunada da corte parisiense (ARIÈS, 1981, p 56). A luxuosidade da cena mostra

crianças em trajes elegantes e adequados ao tamanho de cada um. Interessante destacar que os

nomes e as idades das crianças aparecem esculpidos numa coluna posicionada no lado esquerdo

da tela, o que facilita a identificação das crianças. Ao todo são seis meninos e uma menina,

todos usando saias, que conhecemos hoje como vestidos, o que ainda indica ausência de gênero

nas vestimentas.

A cena é produzida em um terraço ao ar livre, o cenário divide-se em dois ambientes,

no lado esquerdo e de modo mais extenso há duas colunas separadas por uma longa e suntuosa

cortina vermelha, nota-se um pequeno pássaro pousado numa das colunas; no lado direito, uma

paisagem composta por riacho, uma videira com frutos, céu azulado, nuvens, algumas árvores

e bem distante avista-se uma construção que aparentemente pode ser um castelo.

No primeiro plano estão todas as crianças e um pequeno cachorrinho tentando subir na

mesa onde as crianças menores estão sentadas. À esquerda está o irmão mais velho Henry Louis

(2ª idade, 10 anos) e do seu lado Jean-Balthazar (2ª idade, 7 anos e 6 meses) ambos se vestem

como adultos em miniatura, apresentam vestimentas iguais, longas e douradas, com golas altas

e mangas compridas, também usam uma capa sobreposta feita do mesmo tecido, porém, com

um forro interno azulado. Ao lado dos irmãos mais velhos está François (1 idade, 1 ano e 8

meses) usa um longo vestido de tecido cintilante e tem uma touca na cabeça feita do mesmo

material. Ele encosta a mão direita no ombro da irmã ao centro, olhando-a como se estivesse

comunicando algo. Segundo Ariès (1981, p. 57) era costume na época vestir os meninos com

118 QRcode 36: Dossier de presse Philippe de Champaigne (FRANCE, 2007).

230

vestidos de menina, e as meninas com modelos de roupa adulta.

A irmã no centro da imagem é Anne Louise (3 anos e 5 meses), ela está usando um

elegante vestido azul com rendas douradas e alguns detalhes em transparências sobrepostos

lembrando um avental. Em sua mão esquerda segura uma fruta amarela que parece uma laranja.

À direita da imagem estão os gêmeos abraçados e de mãos dadas, exibem vestimentas

compridas idênticas, feitas em cetim vermelho, fechado na frente com botões em detalhes

bordados em dourado.

Entre a única irmã e os gêmeos, está o bebê Jean Louis (8 meses), vestido idêntico à

François, segura um amuleto de ouro com uma pimenta vermelha, usado como símbolo de

proteção desde a Grécia antiga. A disposição das crianças foi planejada de modo a deixá-las

numa mesma altura, para tanto, posicionou-se uma mesa e uma cadeira, ambos cobertos por um

tecido fino vermelho, na mesa estão sentados o bebê e Anne Louise, e em pé na cadeira está

François, os demais irmãos posicionados de pé nas extremidades da cena. E Henry Louis, apoia

seu braço esquerdo na cadeira.

Estas informações em high key sinalizam para a contextualização da imagem em low

key que desvelam nas crianças expressões suaves, olhares ternos que demonstram certa

simpatia, há um sentimento de fortes laços afetivos entre eles, apenas o irmão mais velho exibe

certo ar de superioridade, ao colocar a mão direita no quadril, erguer seu pescoço para o alto e

suspender a sobrancelha para manter um olha fixo na direção diagonal do espaço em que se

encontra a cena e o pintor, uma postura bem condizente ao comportamento de um adulto da

realeza.

Outro artista de destaque na época que não está citado na obra de Ariès (1981), mas foi

selecionado devido à sua importância na arte, principalmente, pelo registro de crianças, é Diego

Rodrigues de Silva y Velázquez, pintor realista e impressionista do período barroco, o retratista

oficial da corte espanhola. Uma de suas pinturas mais famosas é a “Infanta Margarida” (1653-

1654), que expressa a postura e as vestimentas usadas pela criança da realeza. A tela é um

retrato individual da filha do rei Filipe IV de Espanha e de sua segunda esposa Mariana de

Áustria, a infanta Margarida Maria Teresa. A criança está no auge da sua 1ª idade (3 anos), usa

um luxuoso vestido de tecido brilhoso com aplicações em rendas vermelhas e detalhes

dourados. Apoia a mão direita em uma pequena mesa que contém um vaso de vidro com uma

rosa, uma margarida e alguns lírios. Com a mão esquerda a infanta Margarida segura um leque

fechado. Apresenta-se numa postura ereta e séria, porém em low key é possível desocultar um

olhar melancólico que tenta minimizar a semelhança com o adulto e a inexistência de

características próprias da infância, o que remete também ao peso imposto às crianças reais em

231

ter que cumprir com as obrigações do reino herdando sua coroa.

Jan Steen, outro famoso pintor neerlandês, retratava cenas do cotidiano de famílias

camponesas ressaltando situações animadas e caricatas, algumas vezes até um tanto caóticas.

A pintura intitulada “Feast Of St. Nicholas” (1660-1665) retrata um momento de convivência

social familiar realizado durante a Sinterklaas119, uma celebração holandesa que expressa bem

essa ideia de recompensa. Segundo Ariès (1981, p. 21) “não se trata mais de uma grande festa

coletiva, e sim de uma festa de família em sua intimidade; e, consequentemente, essa

concentração da família é prolongada por uma contração da família em torno das crianças”.

Em high key, a imagem compõe uma família numerosa reunida em meio à farta

comilança e com certo teor de brincadeira. Aparentemente são: quatro adultos, sendo dois

homens, um jovem rapaz na 3ª idade (14 a 21 anos) e um adulto na 5ª idade (a senectude); duas

mulheres, sendo uma na 5 ª idade (a senectude) e uma na 6ª idade (a velhice); seis crianças,

sendo um bebê e uma menina na 1ª idade (0 a 7 anos), e uma jovem garota na 3ª idade (14 a 21

anos); e três meninos, sendo dois na 2ª idade (7 a 14 anos) e um na 1ª idade (0 a 7 anos). As

vestimentas são simples, os meninos estão com roupas que parecem uniformes e as meninas

usam vestidos e toucas na cabeça. O bebê também está com touca e usa uma manta comprida.

Os adultos usam trajes camponeses. As cores são opacas e os tons esverdeados.

A cena é retratada a partir de um interior doméstico que lembra uma sala de refeições,

ao fundo uma cortina separa um cômodo que provavelmente deve ser um quarto, logo acima

um janelão fechado. No chão, do lado esquerdo, uma grande cesta com pães, doces, waffles,

roscas e frutas espalhadas pelo chão. Do lado direito uma cadeira ornately também cheia de

guloseimas no assento. Também chama atenção na cena um enorme loaf do tipo duivekater120

açucarado e decorado, propositadamente inclinado na cadeira e de frente para o pintor

119 A Festa de São Nicolau, comemoração da chegada do São Nicolau. Conta-se a lenda que as crianças no

dia 06 de novembro, véspera de São Nicolau, penduravam meias nas laterais das casas ou sapatinhos na janela e durante a madrugada ele enchia de doces e presentes os objetos das crianças que tinham se

comportado bem o ano todo. QRcode 37: Jan Steen, Feast of St. Nicholas. Dr. Wendy Schaller.

120 QRcode 38: Pão doce tradicional holandês, apreciado na Festa de São Nicolau, no Natal e no Ano

Novo. (SCHALLER, 2017).

232

(SCHALLER, 2017).

Em low key, a disposição dos personagens dá uma impressão de movimento, em que as

pessoas, mesmo de forma desordenada, têm uma ação/função bem definida na cena. Pode-se

afirmar que o ponto central da imagem é a filha mais nova da família que acaba de ganhar uma

recompensa de Saint Nicholas, por ter se comportado bem durante todo o ano, ela segura firme

uma boneca e um balde cheio de brindes e guloseimas. A mãe sorridente estende os braços para

a filha como se a quisesse abraçar dando os parabéns pelo seu bom comportamento.

De modo contrário, provavelmente por não ter se comportado bem, seu irmão aparece

chorando por ter seu sapato vazio nas mãos de uma jovem empregada doméstica, que também

ri da situação. Outro irmão vê a cena e também sorri orgulhoso por ter ganhado um taco de kolf

e uma bola de presente (utilizado em esporte de inverno). No entanto, lá no fundo da imagem,

a avó das crianças de modo quase imperceptível, abre uma cortina e faz um gesto com a mão

querendo indicar algum possível “presente” escondido. Do lado direito da imagem, um irmão

mais velho, segura o bebê e aponta para o alto como se estivesse explicando a lenda de St.

Nicholas, outro irmão menor ao seu lado, espantado, arregala os olhos e boca. O pai sentado,

com certo aspecto cansado, assiste a brincadeira, mas também se diverte.

Telas como a de Rubens, Van Dyck e de Champaigne fizeram alguns pesquisadores

contestar os achados de Ariès. Por exemplo, Loic Chalmel (2004) em seu artigo “Imagens de

Crianças e Crianças nas Imagens: representações da infância na iconografia pedagógica nos

séculos XVII e XVIII” 121 ressalta que durante os séculos XV e XVI uma iconografia laica e

burguesa da infância substitui a iconografia religiosa (CHALMEL, 2004, p. 60), contestando

assim, os achado de Ariès ao afirmar que este, baseou suas considerações a partir de imagens

de crianças pertencentes às altas classes burguesas, que por terem condições econômicas

favoráveis poderiam subsidiar artistas e registrar suas histórias. Chalmel (2004) atesta que a

arte também é governada e está sob tutela de uma entidade governante que impõe de fato, estilos

e imagens. Complementa sua fala com Debray (1992, p. 254) ao citar que, “por ser quem os

encomenda, compra e promove, é também, muito naturalmente, o arbítrio das elegâncias e o

indício dos valores” à quem encomendou.

121 QRcode 39: Texto de Loic Chalmel (2004).

233

No entanto, Ariès também faz referências a artistas que registraram as camadas mais

populares na primeira fase da Idade Moderna (século XV a XVII), como Franz Hals122 e Le

Nain que retrataram o cotidiano de famílias camponesas através de obras produzidas para

acervos pessoais e/ou destinados à caridade. Além de Jan Steen que também retratava cenas da

vida cotidiana enfatizando a moralidade religiosa, os contos mitológicos e as festividades

culturais, quase caóticas.

Como na imagem “The Cholmondely Family” (1732), do pintor inglês e crítico social,

William Hogarth, é possível perceber a realidade de uma família nobre. A criança pequena teve

maior destaque na iluminação da cena e encontra-se ao lado de seus pais, ocupando lugar

privilegiado na imagem. A cena a partir da descrição em high key, se passa numa impetuosa

biblioteca doméstica, própria dos grandes castelos da época. Ao fundo três grandes estantes

repletas de livros enfileirados, à direita, uma parede composta por inúmeras obras de arte e uma

cortina comum verde musgo. Do alto desce um castiçal para iluminar o espaço.

Os personagens estão dispostos em lados opostos. Na frente das estantes ao redor de

uma mesa estão: a Sra. Mary, sentada numa cadeira almofadada, vestida com um elegante traje

de luxo platinado e uma touca do mesmo tecido, com uma postura ereta, olha diretamente para

o espectador/pintor e segura sua filha, que está em cima da mesa sob uma almofada. Um detalhe

importante é que a Sra. Mary havia falecido no ano anterior à confecção da pintura, sendo

simbolizada a inclusão póstuma com a imagem de dois “puttos” sobre sua cabeça, à esquerda e

segurando uma aveludada cortina vermelha com franjas douradas.

A filha mais caçula veste uma roupa semelhante a da mãe, porém, na cor branca. À

direita da criança está o Sr. George Cholmondeley, Visconde Malpas, também ocupa posição

central, está sentado numa cadeira, vestido de um longo casaco azul escuro com aplique

dourados, com uma calça até a altura do joelho no mesmo padrão do casaco e usa uma faixa

vermelha transpassada em seu tórax. Ele apoia seu braço direito em um livro aberto e o esquerdo

no braço da cadeira, inclina seu pescoço e olha olhar carinhosamente para sua filha. Do seu

lado esquerdo, um homem de pé, vestido com uma espécie de uniforme vermelho com dourado,

apoia seus braços em outra cadeira e olha fixamente para o lado direito do espaço onde estão

122 QRcode 40: Miller (2016, on-line).

234

mais duas crianças brincando. Em low key, ao retratar dois irmãos brincando a cena apresenta

a essência lúdica da natureza infantil, no entanto, é possível perceber que não existe nenhum

objeto que remeta à infância. Mais uma vez, as imagens representam as crianças vestidas como

adultos. Tal opção reforça a ideia do “pequeno homem”, ou seja, da adultização da infância

vista em épocas medievais.

A criança maior (2ª idade, 7 a 14 anos), veste camisa e calça esverdeada com uma capa

marrom, meia longa branca e sapatos preto. Olha com ar de espanto, o seu irmão menor (2ª

idade, 0 a 7) que está com um pé numa cadeira e o outro em cima de uma pilha de livros

posicionada sob um pequeno puff de madeira talhada e pintura dourada coberto com uma toalha

vermelha. Apoia-se com uma das mãos no encosto da cadeira, dando uma impressão de

movimento, de desequilíbrio. Também compondo a cena de maneira bem sutil, no canto inferior

da cena próximo das crianças que brincam, um pequeno animal, deitado.

Em low key esta cena mostra a irreverência infantil na subversão dos padrões

comportamentais esperados para um registro como este. As crianças usam da criatividade para

re/construir, a seus modos, formas de interação que conseguiram reverter o que seria um

momento “monótono” e “desinteressante” em uma situação lúdica e agradável. Pelo que está

explícito na cena, esse comportamento infantil, não gerou transtornos para a família, nem para

o pintor, foi de certa forma “respeitado” e considerado necessário para retratar a realidade

daquela família, que aparentemente, demonstravam apego e carinho para com seus membros,

tendo em vista, que todos os personagens expressam fisionomias suaves e certa simpatia nos

traços da boca e dos olhos.

O século XVIII também exprime com veemência a influência dos eclesiásticos na

preparação moral da criança para a vida em sociedade e a preocupação passou a ser com a

moralização da sociedade e a nova ordem, e principalmente, a educação dos jovens e das

crianças, pois se acreditava que a criança precisava ser cuidada e preparada para viver junto aos

adultos, submetendo-a a um regime especial, uma espécie de quarentena. De acordo com os

fundamentos da igreja era preciso conhecer melhor a criança para poder corrigir os desvios e

guiá-las para o caminho do bem (ARIÈS, 1981).

A partir do final do século XIX percebemos que as especificidades da criança vão sendo

mais ressaltadas na arte, refletindo a mudança cultural acerca da condição infantil. Assim, a

criança começa a apresentar marcas das transformações culturais que diferenciam crianças e

adultos, desde as posturas até as vestimentas. Nesse sentido Ariès (1981, p. 33) salienta afirma

que o traje das crianças se tornasse mais adequado à fase infantil, deixando as crianças mais à

vontade em seus movimentos e ritmos.

235

A pintura nesse período dá cores e formas mais delicadas aos traços da criança,

diferenciando-as dos adultos em aspectos como vestuário, expressão facial e adereços no

cabelo, no caso das meninas, como encontramos na obra “As meninas Cahen d’Anvers” (1981),

mais conhecida como Rosa e Azul, de Pierre Auguste Renoir, pintor impressionista francês que

buscou retratar as irmãs Alice e Elisabeth, filhas do banqueiro Judeu Louis Raphael Cahen

d’Anvers.

A tela foi objeto de estudo na pesquisa de Martins, T. (2013) “Rosa e azul em terra

verde-amarela: a trajetória do quadro de Renoir e sua presença no acervo do Museu de Arte de

São Paulo (1881-1967)”. A pesquisa indica que o quadro referido não representaria uma

composição tradicional, mas sim uma forma moderna de retratos, ignorada pelo âmbito erudito,

fugindo da proposta de legitimação da família Cahen d’Anvers, como membros da alta

burguesia (MARTINS, T., 2013, p. 33) 123.

Os trajes ganham cores e delicadeza nos tons pastéis, transmitindo o frescor e a

inocência do sentimento de infância. A menina de azul tem em seu semblante um ar vaidoso e

a de rosa aparentemente transmite certo desconforto. Esta imagem revela em low key a ruptura

cultural entre a representação das crianças como adultos em miniatura, diferenciando as

crianças com vestes e utensílios que remetem ao sentimento de infância.

Aline Silveira Becker (2010), pesquisadora em Artes Visuais, também discute as obras

de Renoir em seu artigo “História e Imagens: a visualidade produzindo infâncias”124 e ressalta

que a tela revela uma “uma infância bonita, delicada, mas também, introspectiva, passiva,

comportada e devidamente amparada pela maternidade” (BECKER, 2010, p. 96). A autora

destaca o texto que acompanha a tela de Renoir exposta no Museu de Arte de São Paulo:

Renoir, pintando Rosa e Azul, mostra na vibração da superfície e das

cores vivas que compõem os vestidos das meninas toda a vivacidade e a

graça instintivamente feminina que se esconde atrás da convenção da pose, todo o frescor e a candura da infância. As meninas quase se

123 QRcode 41: Monografia: “Rosa e azul em terra verde-amarela: a trajetória do quadro de Renoir e sua

presença no acervo do Museu de Arte de São Paulo (1881-1967)” (MARTINS, T. 2013).

124 QRcode 42: Becker (2010).

236

materializam diante de observador, a de azul com o seu ar vaidoso e a de

rosa com um certo enfado, quase beirando as lágrimas (BECKER, 2010, p.133).

A Europa continua exercendo forte influência nas construções conceituais de criança e

infância no mundo, porém, em consequência das transformações culturais, sociais, políticas e

econômicas da sociedade moderna perde sua supremacia, principalmente em relação às

pesquisas científicas que se difundiram em vários países, trazendo novas concepções de

crianças, assim, os debates assumiram formas cíclicas, evolutivas e não lineares (KUHLMANN

JR., 1998).

A obra de Ariès (1981) reinou nas pesquisas científicas como referência para a história

da infância ocidental por mais de 25 anos (KUHLMANN Jr., 2005), embora seus estudos

tenham sido importantes para historiografia, também foram alvos de críticas por historiadores

como Colin Heywood (2004) e Peter Burke (2004), além de educadores como Loic Chalmel

(2004) e Kuhlmann Jr. (1998), entre outros.

Heywood (2004), crítico norte americano, tece algumas críticas ao estudo de Ariès em

sua obra “Uma história da infância: da idade média à época contemporânea no Ocidente”, ao

afirmar que sentimento de infância é uma expressão ambígua, pois contém a ideia implícita de

consciência da infância e um sentimento em relação a ela. Para Heywood (2004), a infância

passou por várias “descobertas”, porém, mesmo diante de relatos como “inexistência do

sentimento de infância” e “adultização da criança”, muitas crianças foram poupadas de traumas

e viveram infâncias conforme suas condições de criança. Nesta concepção, a construção da

ideia da infância não parte de uma trajetória linear, mas, depende de vários contextos políticos,

econômicos e sociais. Consequentemente, não há como se conceber a infância a um só modo,

e sim, a partir de diferentes perspectivas.

Heywood (2004) afirmou também, que as crianças que foram submetidas ao trabalho

não eram vítimas passivas dos adultos, conseguiam “[...] transformar o chão de fábrica em um

lugar de diversão para si próprio, subvertendo a atenção dos adultos” (2004, p. 179). Kuhlmann

(2010, p. 22) compartilha da concepção de infância abordado por Heywood e discorda de que

o sentimento de infância era inexistente em tempos antigos ou na Idade Média, para esses

autores a criança e a infância sempre existiram, o que fazia variar eram as estruturas sociais e

culturais de cada sociedade.

Kuhlmann Jr. (1998) em “Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica”

enfatiza que os registros iconográficos destacados nas obras de Ariès (1981) favoreciam uma

ideia de monopolização do conceito de crianças a partir das visões do setor dominante:

237

Mesmo em abordagens que tomam a infância em sua referência etimológica,

como os sem-voz, sugerindo certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos vencidos, essa visão monolítica permanece e

mantém um preconceito em relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações sociais. Embora reconhecendo o papel

preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as

fontes disponíveis, como, por exemplo, o diário de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que essas camadas sociais

teriam monopolizado a condução do processo de promoção do respeito à

criança (KUHLMANN JR., 1998, p. 24).

Já na visão de Burke (2004), as contribuições de Ariès negligenciam a história das

mudanças nas convenções de representação da imagem visual da infância, tal fato, segundo

Burke, pode ser devido à falta de registros documentais em outras fontes na época. Nas palavras

do autor,

Ariès não conseguiu efetuar a leitura das convenções visuais do início da época medieval, uma linguagem artística que está extremamente distanciada

da nossa, nem avaliar que temas eram considerados apropriados para

representação visual naquela época, assuntos religiosos na sua maioria, nos quais crianças, com exceção de Cristo menino, não se encaixavam facilmente

(BURKE, 2004, p. 131).

Burke (2004) se refere às concepções de crianças representadas em obras artísticas.

Afirma que Ariès subestimou as funções e os usos das imagens, tendo em vista que suas

representatividades testemunhariam mais a história de um sentimento de família do que de um

sentimento de infância, pois naquela época, entre séculos XVII e XVIII, as crianças eram

representadas de duas maneiras: como parte de grupos familiares ou como símbolos de

inocência, com isso, “certas pinturas eram alegóricas, ou quase alegóricas” (BURKE, 2004, p.

132). Neste sentido, analisar as concepções de infância tendo por base as vestimentas era

equivocado, assim, faz uma crítica à primeira obra de Ariès (1960):

Contudo, Séculos de infância tem sido frequentemente criticado durante os

quarenta e tantos anos desde sua publicação. Por exemplo, o argumento de que as crianças costumavam ser vistas como adultos em miniaturas, apoiado

pelo testemunho de imagens de crianças vestindo versões em miniatura de roupas de adultos (um argumento que havia aparecido antes de Ariès, mas que

é central em seu trabalho), revela indiferença em relação ao contexto, mais

precisamente uma falha no sentido de levar em conta o fato de que nem crianças nem adultos vestiam suas roupas do cotidiano quando passavam para

retratos (BURKE, 2004, p.131).

238

É preciso reconhecer as fragilidades da tese de Ariès (1981) quando pensamos nas

pluralidades da infância, nas infâncias pobres, nas crianças trabalhadoras, nas relações sociais

estabelecidas entre elas e com os adultos, nas multiplicidades dos contextos familiares e

educacionais e, sobretudo, quando reconhecemos que mesmo vivendo influências das culturas

adultas, as crianças elaboram suas visões de mundo, são sujeitos sociais (SIROTA, 2001) e

produzem suas próprias culturas (SARMENTO, 2002).

Numa perspectiva semiótica, as cenas do cotidiano representadas na Cultura Visual de

cada época, expressam signos e significados que contribuem para a mediação entre o processo

de produção de sentidos e formação da consciência cultural de pertencimento social da criança

e apontam para uma perspectiva de ausência, invisibilidade e de não-infância. Ou seja, até

meados do século XVI as pinturas renascentistas confirmam a inexistência da infância como

uma etapa da vida. No entanto, a inexistência do sentimento de infância não significava

ausência de afeto às crianças pelos familiares, o que pode ser percebido em imagens tanto do

século XVI quanto do século XVII.

No entanto, a relevância da imagem presente na pintura europeia subsidia informações

empíricas para as pesquisas históricas, mas, o aspecto estético artístico não deve ser

compreendido em termos universais, pois “o código europeu ocidental não é o único válido

para a compreensão crítica da cultura visual” (SARDELICH, 2006, p. 467). Destarte, as

pinturas que revelam as mudanças e transformações pelas quais as crianças foram submetidas

ao longo da história humana citadas tanto nos escritos de Ariès (1981) quanto nos registros da

história da arte são parâmetros de um período de transição entre sociedades medievais e

modernas que refletem a realidade da criança a partir da visão de determinados contextos

culturais e tempos históricos, e esta visão, apesar de favorecer e contribuir significativamente

com a compreensão da história social da criança, não pode ser pensada como verdade absoluta.

Ao comparar os signos expressos nas imagens é possível perceber que há uma tendência

comum na representação de elementos estéticos que fazem parte de uma sensibilidade

comunitária, nesse sentido, Geertz (2008) sugere que:

[...] a contextualização social de tais "indicadores" [dos elementos estéticos,

no sentido semiótico do índice, do signo] é uma forma mais útil de compreender a maneira pela qual "indicam", e o que significam, do que forçá-

los em paradigmas esquemáticos ou despi-los, transformando-os em sistemas

abstratos de regulamentos, que, de alguma maneira os "geraram". O que nos permite falar desses indicadores em uma linguagem comum e de uma forma

útil, é o fato de que todos registram uma sensibilidade comunitária, ou seja, que representam, para todos que participam daquela comunidade, uma

disposição de espírito comum (GEERTZ, 2008, p. 23).

239

Em outras palavras, a arte como elemento cultural em sua expressividade está

diretamente relacionada com o real, sustentam sentidos e significados produzidos entre os

indivíduos que foram transmitidos de geração em geração, com isso, demonstram indicadores

comuns da vida social que remetem a uma sensibilidade comum, permitindo assim, o

reconhecimento das características particulares de cada cultura. Essa sensibilidade comum

materializa-se nos signos imagéticos e permite a formulação de concepções e percepções mais

universais relativas a determinadas experiências e contextos históricos, como no caso da

representação da criança na Idade Moderna, e “sem essa experiência, sem essa ideação, sem

essa ‘variedade da vida’, esse ‘olhar de época’, talvez a pintura do século XV não adquirisse o

sentido, o significado, que adquiriu” (OLIVEIRA, R., 2012, p. 215, grifo do autor).

Desse modo, olhar a representação da criança ao longo dos séculos torna-se um

movimento necessário para a construção de narrativas sobre a infância em qualquer época, e

essa leitura deve ser realizada a partir de uma interlocução heurística e transdisciplinar,

respeitando as singularidades das crianças e de suas infâncias, mas, considerando a trajetória

universal de negação e invisibilidade nas quais essas infâncias “sobre/viveram”, para não

incorrermos no mesmo erro.

Na próxima seção, destaco as bases epistemológicas da Sociologia da Infância,

ressaltando as rupturas conceituais e paradigmáticas das categorias criança e infância no cenário

científico, em seguida, componho a narrativa textual a partir das leituras e análises das imagens

de crianças e infâncias discutidas nos estudos e pesquisas desenvolvidas no Brasil nas Ciências

Humanas e Sociais.

Nesta perspectiva, após contemplar as imagens de crianças magicizadas em pinturas

artísticas, agora, direciono o olhar para a vida magicizada em imagens técnicas, peles

fotográficas, fixas e em movimento, planas, escuras e claras, veladas e desveladas, pensantes,

falantes, cheias de memórias e grandes histórias. São imagens-testemunhas que constróem

teorias, que atestam realidades vividas e experienciadas por pesquisadores, professores e,

principalmente, por crianças. São imagens reais falando de gente real. Tal fato dá sustentação

ao argumento de que as imagens são reminiscências, memórias que transcendem tempo e

espaço, imagens que se narram e que nos narram. Cada uma com sua intencionalidade se

oferece ao nosso olhar, nos convidando a desvelar os encantos e mistérios que o universo

infantil tão bem esconde. Se a magia é fundamental para entendermos a linguagem da

fotografia, a criança é a pessoa mais experiente para nos ensinar a olhar. Afinal, sobre magia

elas entendem muito bem.

240

Portanto, das infâncias narradas em pesquisas científicas emergem concepções que

desafiam as imagens dominantes dispostas na Cultura Visual que desqualificam e desrespeitam

a dignidade infantil, consequentemente, é preciso estudar as crianças nos seus espaços, nas suas

especificidades e culturas num esforço desconstrucionista e de luta pela garantia de uma

infância digna e cidadã, que nem sempre é a que encontramos.

3 SOB A ÓPTICA DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA: A EMERGÊNCIA DOS

NOVOS SUJEITOS SOCIAIS

[...] a infância não é a idade da não-fala: todas as crianças,

desde bebés, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais,

plásticas e verbais) por que se expressam. A infância não é a

idade da não-razão: para além da racionalidade técnico-

instrumental, hegemónica na sociedade industrial, outras

racionalidades se constroem, designadamente nas interacções

entre crianças, com a incorporação de afectos, da fantasia e da

vinculação ao real. A infância não é a idade do não-trabalho:

todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que

preenchem os seus quotidianos, na escola, no espaço doméstico

e, para muitas, também nos campos, nas oficinas ou na rua. A

infância não vive a idade da não-infância: está aí, presente nas

múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua

heterogeneidade) continuamente preenche (SARMENTO,

2005, p. 25).

As palavras de Sarmento (2005) pré-anunciadas neste texto, dão o tom agudo desta

interlocução que se pauta numa distinção analítica do seu duplo objeto de estudo: “as crianças

como atores sociais, nos seus mundos da vida; e a infância, como categoria geracional,

socialmente construída” (SARMENTO, 2008, p. 22). Ou seja, trata-se da desconstrução da ideia

de negação atribuída historicamente à infância.

De acordo com Abramowicz e Oliveira (2010) o interesse pelos estudos da criança no

campo da Sociologia surge em 1920 nos Estados Unidos, no entanto, só a partir de 1980 tomam

novas projeções mundiais intensificando-se em pesquisas assinadas por Corsaro, James, Prout,

Jenks, Qvortrup, Sirota e Pinto. Porém, mesmo com a ampliação dos estudos sobre a criança, a

infância como objeto sociológico passou por um processo de “apagamento” ou

241

“marginalização” que a levou a ser ignorada, em sua autonomia conceptual (MARCHI, 2010,

p.2).

Na França, os estudos da criança despontam no campo da Sociologia da Educação, na

Inglaterra e Estados Unidos são influenciados pelos estudos feministas e pela Antropologia. No

Brasil, já na década de 90, sociólogos e pedagogos, prioritariamente, legitimam o campo,

fundamentados em teorias que permeiam desde as perspectivas durkheimianas em que

prevalece a “imposição dos valores adultos sobre a criança, levando estas a permanecerem no

silêncio, ‘mudas’, ou seja, em uma posição marginalizada e passiva diante do mundo adulto”

até os contributos da “sociologia interacionista, do movimento da fenomenologia, e dos

approches construcionistas que fornecem os paradigmas teóricos desta nova construção do

objeto” (ABRAMOWICZ e OLIVEIRA, 2010, p. 42), o que culmina na perspectiva atual de

criança como ator social e infância como estrutura/fenômeno social (QVORTRUP, 1993;

CORSARO, 1997; JAMES, JENKS e PROUT, 1998; SIROTA, 1998; SARMENTO, 2008;

PROUT, 2010).

James, Jenks e Prout (1998) distinguem criança como agente social e infância como

construção social e histórica, resultante da própria ação das crianças em interação com seus

pares e com os adultos. Assumem a perspectiva de criança tribal para representar que a ação

social da criança estrutura o sistema de representação cultural da infância, a partir de uma visão

potencialmente politizada e empírica da criança em detrimento de suas relações sociais.

Qvortrup (1993, p. 203) defende a ideia de que a infância é uma estrutura social

permanente, dessa forma, as crianças passam pela infância, mas, a infância permanece. Este

pesquisador dinamarquês foi um dos grandes responsáveis pela consolidação da nova

Sociologia da Infância ao defender as concepções de infância como fenômeno social e da

criança como construtora da infância e da sociedade, considerando digno de interesse dos

estudos da criança, seus saberes, suas possibilidades de criação e recriação da realidade social

em que está inserida. Portanto, o autor fundamenta a nova Sociologia da Infância em nove teses

125:

125 Síntese construída a partir das nove teses apresentadas no artigo publicado em Eurosocial Report

Childhood as a Social Phenomenon: Lessons from an International. Project, n. 47, 1993, p. 11-18 com o Título original: “Nine theses about ‘childhood as a social phenomenon’”. QRcode 43: Versão em

português publicada na Revista Pró-Posições sob o título: “Apresentação Nove teses sobre a “infância

como um fenômeno social” Jens Qvortrup” (NASCIMENTO, 2011).

242

Tese 1: A infância é uma forma particular e distinta em qualquer estrutura

social de sociedade; Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria social permanente, do ponto de vista sociológico; Tese 3: A ideia de

criança, em si mesma, é problemática, enquanto a infância é uma categoria variável histórica e intercultural; Tese 4: Infância é uma parte integrante da

sociedade e de sua divisão de trabalho; Tese 5: As crianças são coconstrutoras

da infância e da sociedade; Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e institucionalmente) às mesmas forças sociais que os adultos,

embora de modo particular; Tese 7: A dependência convencionada das

crianças tem consequências para sua invisibilidade em descrições históricas e sociais, assim como para a sua autorização às provisões de bem-estar; Tese 8:

Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças; Tese 9: A infância é uma categoria

minoritária clássica, objeto de tendências tanto marginalizadoras quanto

paternalizadoras (QVORTRUP, 1993, p. 203-210).

Nesta perspectiva, Qvortrup (1993, p. 210) defende uma abordagem multidisciplinar

que considera o conhecimento sobre infância desde o nível macro ao micro, ampliando “as

macrodiscussões a partir do insight das experiências diárias das crianças - individuais”.

Insistentemente, o autor defende que é preciso investigar com mais seriedade os problemas

experienciados pelas crianças no contexto da sociedade moderna para que se possa incluir a

infância na agenda crítica analítica da ciência, e assim, garantir a elas “ao menos um tipo de

cidadania científica” 126.

A cidadania da infância implica o preenchimento de condições estruturais,

relativas à organização do conjunto da sociedade, para o alargamento dos direitos das crianças, instituições para as crianças que sejam também

instituições das crianças e a generalização de uma cultura que permita a

inclusão democrática das crianças em todos os domínios da vida social e pessoal (FERREIRA e SARMENTO, 2008, p.72).

Sarmento (2005) ressalta que essa conquista se estabeleceu a partir de uma longa

trajetória de negatividade constituinte da infância, o que culminou também num processo de

distinção, separação e exclusão do mundo social, provocando tensões e conflitos

paradigmáticos que historicamente relegaram à criança uma condição de (in)visibilidade e

marginalidade social, tanto em relação à ideologia quanto à sua representação imagética no

passado.

126 Segundo Ferreira e Sarmento (2008, p.72) “a redefinição da cidadania da infância é o efeito conjugado

da mudança paradigmática na concepção de infância, da construção de uma concepção jurídica renovada, expressa sobretudo na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, e do processo societal de ampliação

das formas de cidadania”.

243

[...] a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da

menoridade: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a

processos de instrução), o que não tem valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente) (SARMENTO, 2005, p. 378, grifo

do autor).

Para Sarmento (2005, p. 378) essa falta de disciplina e de moralização da criança,

transporta simbolicamente o lugar do “detentor do discurso inarticulado, desarranjado e/ou

ilegítimo”, consequentemente, as crianças têm sido negadas também nos espaços jurídicos -

“são inimputáveis; juridicamente incompetentes” e interditadas socialmente, pois lhes são

retirados também direitos de cidadania - “não votar, não eleger nem ser eleitos, não se casar

nem constituir família, não trabalhar nem exercer uma actividade económica, não conduzir, não

consumir bebidas alcoólicas etc.” (SARMENTO, 2005, p. 378). Sobretudo, na perspectiva do

Estado desenvolvimentista, o conceito de criança se baseava em dependência econômica, as

crianças eram governadas por e em nome de seu futuro, suas opiniões e pontos de vista nunca

eram considerados. Tais interdições “se sustentam numa prática de proteção” e constituem

“avanços civilizatórios”, desse modo, o que a Sociologia da Infância defende não é sua

abolição, mas a reflexão sobre os “efeitos simbólicos de conceptualização e representação

sóciojurídica da infância”, sobretudo, no que diz respeito à sua exclusão, nesta perspectiva,

[...] a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da

menoridade: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a

processos de instrução), o que não tem valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente) (SARMENTO, 2005, p. 378, grifos

do autor).

Segundo Sarmento (2007, p. 65) os traços de negatividade geraram consequências

diretas na sociedade e nas construções conceptuais de crianças e infâncias, o que desencadeou

a ausência da criança na vida social, sua subordinação ao mundo dos adultos, a sua

“privatização” e seu confinamento em espaços domésticos ou de educação e guarda, além disso,

a desqualificação do pensamento infantil nas Ciências Humanas e Sociais. Neste sentido,

Ferreira e Sarmento (2008, p. 65) afirmam que os modos particulares em que as crianças têm

sido representadas e as infâncias socialmente construídas nos discursos científicos dominantes

sob os paradigmas métrico, médico e psicológico, tem feito prevalecer as “noções e padrões

bio-ontológicos”, centradas nas dimensões físicas do corpo infantil. Além disso, voltam-se as

244

atenções para seus déficits em relação ao estado adulto, com isso, os discursos dominantes

equivalendo-se de propriedades e atributos cognitivos e sociais, mantém a ideia de negatividade

das crianças fundamentando-se na concepção de que as crianças são seres “biologicamente

imaturos, culturalmente ignorantes, socialmente incompetentes, moralmente irresponsáveis,

cognitivamente irracionais” (FERREIRA, SARMENTO, 2008, p. 65).

Por conseguinte, Sarmento (2007) defende a tese de que a criação de sucessivas

representações das crianças ao longo da História produziu um efeito de invisibilização da

realidade social da infância. Surge, assim, o termo (in)visibilidade para representar a ausência

da criança nos aspectos histórico, científico e cívico, situações em que a criança era vista a

partir do olhar adultocêntrico sobre a infância, registrando especialmente a “ausência, a

incompletude ou a negação das características de um ser humano completo” (SARMENTO,

2007, p. 33). 127

Na visão de Marchi (2011) a invisibilidade proposta por Sarmento (2007) pode ser vista

sob duas grandes ordens: de natureza social e de natureza epistemológica que “[...] imbricadas,

apoiam-se e legitimam-se mutuamente” (MARCHI, 2011, p. 397).

A causa de ordem social diz respeito à invisibilidade/subalternidade histórica

e cívica das crianças, [...] o afastamento do mundo da infância do mundo dos adultos, a separação de áreas de atividade relativamente ao mundo dos adultos,

à sua concepção de seres incompletos ou “em trânsito” para a idade adulta

[...], à sua “privatização” ou confinamento ao espaço doméstico ou instituições sociais de educação e guarda (escolas, creches, orfanatos, etc.). A causa de

ordem epistemológica (invisibilidade científica) diz respeito às críticas às

teorias da socialização e às teorias do desenvolvimento infantil presentes na pedagogia e na psicologia do desenvolvimento (MARCHI, 2011, p. 396-397,

grifo do autor).

Em se tratando de (in)visibilidade histórica, Sarmento (2007, p. 26) destaca que a

história por muito tempo considerou a criança como um ser incompleto, ausente de

características próprias, portanto, historicamente, invisível, quando a criança aparecia em

registros históricos era considerada como “memória infiel ou como legatária de uma tradição,

de um poder ou de bens a prosseguir como herança familiar”128 (SARMENTO, 2007, p. 27),

127 QRcode 44: Visibilidade Social e Estudo da Infância (SARMENTO, 2007).

128 Segundo Sarmento (2007) as crianças eras citadas apenas em referências autobiográficas - onde a infância

245

neste sentido, o autor afirma que há uma “marginalidade conceptual no que diz respeito à ideia

ou imagem de infância no passado, que é correlata da marginalidade social em que foi tida”.

O interesse histórico pela infância é relativamente recente. A referência

histórica à infância aparece muito tardiamente, e essa é, aliás, uma das razões

que levaram P. Aries a afirmar a inexistência do "sentimento da infância" até ao dealbar da modernidade. Apenas referências autobiográficas - onde a

infância aparece evocada pelo filtro, frequentemente crítico, do adulto que se

conta - e registos dispersos em testamentos, diários, documentos funerários ou evocações novelísticas assinalam a presença de crianças no passado

(SARMENTO, 2007, p. 3).

Portanto, o interesse histórico tardio pela infância traz consequências diretas para a vida

política da criança, daí a definição de (in)visibilidade cívica da criança, em que Sarmento

(2007, p. 36) destaca o processo de afastamento do mundo da infância do mundo dos adultos;

a separação de áreas de atividade reservadas para a ação exclusiva dos adultos e interditadas,

por consequência, à ação das crianças; e a colocação, sob forma direta (especialmente no espaço

familiar) ou sob forma institucional (especialmente no caso da escola) das crianças sob proteção

e tutela adulta (DIAS, 2007).

De acordo com Sarmento, Fernandes e Tomáz (2007, p. 184), o confinamento da criança

a um espaço social condicionado e controlado pelos adultos, produziu uma concepção

generalizada de que “[...] as crianças estão «naturalmente» privadas do exercício de direitos

políticos” (grifo dos autores). Toda essa marginalidade social relegou a criança à um não-lugar

na civilidade, de forma que os processos de qualificação da infância por negação constituem,

efetivamente, um ato simbólico de expressão de adultocentrismo e a projeção sobre a infância

de concepções ideológicas essencialistas sobre a condição humana. Desse modo,

As crianças permanecem sendo o único grupo social verdadeiramente

excluído de direitos políticos expressos. Sobretudo a partir do início do século

XX, com uma sinuosa história de lutas, avanços e recuos, movimentos cívicos de grande dimensão, graves conflitos e enfrentamentos, o direito de

participação política, especialmente sob a forma de escolha representativa dos

dirigentes políticos, foi sendo sucessivamente atribuído, especialmente na Europa e na América do Norte, aos responsáveis pelos agregados familiares,

a todos os homens brancos, aos analfabetos, às mulheres, aos negros e às minorias étnicas, aos imigrantes, aos jovens de mais de 18 anos (em alguns

poucos casos, aos maiores de 16) (SARMENTO, FERNANDES e TOMÁZ,

2007, p. 184).

[continuação] aparece evocada pelo filtro, frequentemente crítico, do adulto que se conta - e registos dispersos em testamentos, diários, documentos funerários ou evocações novelísticas assinalam a presença

de crianças no passado.

246

Quando os autores tratam da privação de direitos políticos, não estão se referindo apenas

ao poder de voto, mas da participação das crianças em manifestações políticas para além do

enquadramento jurídico ocidental, ou seja, tratam de uma invisibilidade na cena pública e não

de ausência de ações políticas para infância, implicando também na invisibilização política

(SARMENTO, FERNANDES e TOMÁZ, 2007)129. Esta concepção clássica de cidadania

recusa à criança o estatuto político e através da escolarização dá início ao processo de

institucionalização da infância que busca a disciplinarização da infância, fato inerente à criação

da ordem social dominante (SARMENTO, 2007), deste modo,

Ao mesmo tempo que a modernidade introduziu a escola como condição de acesso à cidadania, realizou um trabalho de separação das crianças do espaço

público. As crianças são vistas como os cidadãos do futuro; no presente,

encontram-se afastadas do convívio colectivo, salvo no contexto escolar, e resguardadas pelas famílias da presença plena na vida em sociedade

(SARMENTO, 2007, p. 14).

Além disso, a (in)visibilidade histórica e a (in)visibilidade cívica se alicerçam na

(in)visibilidade científica que, mais do que produzida por ausência de investigação sobre as

crianças e a infância, é produzida pelo tipo dominante de produção de conhecimento. De acordo

com Sarmento (2007), a (in)visibilidade científica resulta da influência de uma orientação

mainstream (convencional), em que predominam as concepções epistemológicas que

desqualificam as interpretações das crianças na ação social, desse modo, os estudos sobre a

infância, baseados principalmente nas teorias Piagetianas e em seus sucessores, consideravam

as crianças a partir de uma epistemologia “em trânsito”, ou seja, como seres que se

desenvolviam em etapas distintas, numa lógica cumulativa, linear e progressiva, até atingirem

os estágios cognitivos e morais ideais de um ser adultos (SARMENTO, 2007, p. 40).

Sarmento destaca que entre o final do século XIX e início do século XX, os estudos das

Ciências da Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, apesar de contribuírem em

grande parte com os avanços científicos sobre cognição e desenvolvimento, relegaram à

infância a mesma (in)visibilidade na qual as crianças mantém seu status de incapaz e de total

129 QRcode 45: Políticas Públicas e Participação Infantil (Sarmento, Fernandes e Tomás, 2007).

247

dependência física, mental e social, portanto, “vulneráveis e requerendo ser moldadas,

controladas e orientadas rumo a uma fase adulta desejável.” (LEE, 2009, p. 46).

Segundo Ferreira e Sarmento (2008, p. 68, grifos dos autores) isto significa afirmar que

“apesar das crianças existirem e estarem presentes, o que se tornou conhecido acerca das

instituições para a infância, ‘a família’ e a ‘escola’, tem sido estudado com a sua inclusão

mínima, permanecendo as crianças quase invisíveis e desconhecidas”. Desse modo, o

imaginário infantil foi concebido pelas correntes da Psicologia também com uma ideia em

comum: o déficit – ou seja, a falta de um pensamento objetivo e a imperfeição da formação

racional com a realidade.

Num certo sentido o que é inevitável encontrar nesse discurso infantil é o frame no qual ele previamente foi situado – o estágio de desenvolvimento

previamente definido e caracterizado. ‘Escutar a voz das crianças’ consiste,

em última análise, em escutar a voz do adulto que se revela num discurso previamente interpretado. Desenvolve-se assim um pensamento circular e

uma ciência de ‘certezas’ que continuamente se objetiva nos seus resultados (SARMENTO, 2007, p.42-43, grifos do autor).

Nesse contexto, o construtivismo psicológico desmerece o pensamento infantil por

considerá-lo incompleto, imperfeito, os significados que as crianças dão aos seus gestos ou

experiências, são considerados mais como uma falha do que como uma realização. Da mesma

maneira, as Ciências Sociais e a Sociologia em particular, nas suas abordagens dominantes,

contribuíram fortemente com essas concepções, pois adquiriram e atualizaram como válida a

teoria Lockiana da tabula rasa, em que a infância é a idade da inscrição direta e aproblemática

da norma social.

Esta ideia do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que constitui um pressuposto epistémico na construção social da infância pela

modernidade: criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno),

o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de razão, etc.

(SARMENTO, 2003, p. 2).

Portanto, as concepções de negação e (in)visibilidade presente na história social da

criança e nas concepções de infância instituídas pelas Ciências Humanas e Sociais, durante

séculos foram marcadas severamente pelo silêncio das crianças, consequentemente,

compuseram o cenário das imagens da criança em seus aspectos históricos, culturais e sociais

estabelecidos na Idade Moderna, os quais a Sociologia da Infância, sob sistematização de

James, Janks e Prout (1998), as reconhece a partir da construção das imagens historicamente

248

estabelecidas sobre a infância, subdivididas em dois períodos: o das imagens da criança pré-

sociológica, que compreende cinco imagens (concepções): criança má, criança inocente,

criança imanente, criança naturalmente desenvolvida e criança inconsciente. E o das

imagens da criança sociológica130 constituída pelas produções contemporâneas que resultam

de um juízo interpretativo das crianças a partir das novas propostas teóricas das Ciências Sociais

pautadas em processos de reinterpretação das representações anteriormente formuladas, com

revisão do seu fundamento pela compreensão da infância como categoria geracional e da

criança como ator social (SARMENTO, 2007, p. 29-33).

De acordo com Sarmento (2007, p. 30) esta separação implica no fato de que no primeiro

período a criança era considerada como uma “entidade singular abstracta” excluída do contexto

social donde é coprodutora de condições de existência e de formação simbólica. Tal

ambiguidade tem gerado fortes contradições entre a empiria na qual a criança estabelece suas

relações e experiências culturais e as teorias que “supostamente” tem tido a pretensão de

conceituar, descrever e analisar as crianças a partir de olhares adultocêntricos e fechados à

participação infantil nas produções que são realizadas a seu respeito. Na sequência, abordo a

construção histórica das imagens sociais da infância a partir das concepções da Sociologia da

Infância (JAMES, JANKS e PROUT, 1998; SARMENTO, 2007).

As imagens da criança pré-sociológica referem-se à criança concebida como uma

expressão de forças indomadas, dionisíacas, com potencialidade permanente para o mal -

criança má (the evil child), reforçando as intervenções paternalistas e a adoção de medidas de

repressão infantil. Sarmento (2007, p. 30) fundamenta-se nas obras de Thomas Hobbes, sobre

a exigência de controle dos excessos, pelo poder absoluto do Estado sobre os cidadãos e dos

pais sobre as crianças, como meio de evitar a anarquia social ou o transbordamento individual.

A segunda imagem da criança pré-sociológica é representada pela imagem da criança

inocente, lembra a ideia do mito romântico da “paparicação” apontada para fundamentar a ideia

da inocência, da pureza, da bondade e da beleza. Rousseau embasa esta concepção ressaltando

que a natureza do homem (quando nasce) é genuinamente boa e a sociedade a perverte, em sua

obra “Emílio ou Da Educação” (1992) encontra-se uma grande contribuição para a história

social da criança no século XVIII, para Rousseau, a criança deveria ser vista em seu próprio

mundo e não como uma mera projeção do adulto, para tanto, este autor defendia que a criança

adquiria características específicas e particulares que exigiam um tratamento diferenciado tanto

130 Sobre esta, me deterei com maior ênfase, na seção 2, deste ensaio, no qual dialogo com as concepções de

infância na contemporaneidade em interlocução com a Cultura Visual e a nova Sociologia da Infância.

249

pela família quanto pelo processo de educação (SARMENTO, 2007, p. 30), além disso, ele

concebia a criança em si mesma, considerando suas manifestações próprias, suas capacidades

imaginativas e criativas. Dessa forma, Rousseau (1999) conquistou o mérito da construção de

um conceito moderno de infância, embora ainda não como compreendido hoje, mas como o

início do despir-se de velhos conceitos e revestir-se da possibilidade de um novo olhar sobre a

criança. Nesta direção Sarmento (2007, p.28) afirma que a passagem dos séculos XVII e XVIII

constituem o período histórico em que a infância assume um caráter distintivo do adultez e

constitui-se como uma fase própria do desenvolvimento humano.

A partir de Rousseau, a infância foi considerada uma fase com características próprias

às quais deveriam ser cultivadas de forma a contribuir para o desenvolvimento da inteligência

da criança, considerando que cada estado da vida tinha sua perfeição conveniente, era preciso

desenvolver o tipo de maturidade próprio de cada fase. Neste sentido, Rousseau refere-se à

infância como um tempo agradável em que a criança tem atitudes espontâneas, é feliz e

inocente.

Outra tendência pode ser compreendida a partir da terceira simbolização apontada por

Sarmento (2007, p. 30) sobre a criança pré-sociológica, a criança imanente, surge da

possibilidade de aquisição da razão e da experiência que se fundamenta na teoria da Tábula rasa

de Jonh Locke, o conceito passa a ser mais aplicado ao intelecto, na tese epistemológica do

empirismo, vertente filosófica do século XVII, não existiam ideias inatas, todo conhecimento

se baseava em dados da experiência empírica, nesse sentido, a tendência era a crença na criança

como uma tabula rasa em que poderiam ser inscritos quer o vício quer a virtude, a razão ou a

desrazão, sendo missão da sociedade promover o crescimento com vista a uma ordem social

coesa.

O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos uma

afetividade nova que a iconografia do século XVII exprimiu com insistência e gosto: o sentimento moderno da família. Os pais não se contentavam mais

em pôr filhos no mundo, em estabelecer apenas alguns deles, desinteressando-

se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho - e, no fim do século XVII, até mesmo às meninas

- uma preparação para a vida. Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola (ARIÈS, 1981, p. 272).

Sarmento (2004, p.19) ressalta que a criação de escolas, o recentramento do núcleo

familiar no cuidado dos filhos, a produção de disciplinas e saberes periciais, a promoção da

administração simbólica da infância, radicalizou “[...] as condições em que vive a infância

moderna, mas não a dissolveu na cultura e no mundo dos adultos, nem tão pouco lhe retirou a

250

identidade plural nem a autonomia de acção [...]”, o que segundo o autor, contraria a concepção

de “morte”, “desaparecimento”, “exorcização” e “eliminação” da infância (POSTMAN, 1983;

BAUDRILLARD, 1997), mas admite a criança como “actora social” e a infância como

categoria social própria. Neste sentido, Sarmento também vai de encontro com a ideia de

infância como uma concepção moderna, no entanto, não nega sua existência desde sempre.

Com efeito, crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano, e a infância como construção social – a propósito da qual se construiu um

conjunto de representações sociais e de crenças e para qual se estruturaram

dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social própria – existe desde os séculos XVII e XVIII (SARMENTO, 1997, p.11).

Em se tratando da imagem da criança naturalmente desenvolvida, Sarmento (2007,

p. 31) destaca duas ideias centrais em torno desta imagem, a primeira em que as crianças são

seres naturais, antes de serem seres sociais e a segunda que a natureza infantil sofre um processo

de maturação que se desenvolve por estágios. Ambas fundamentadas, principalmente, nas

contribuições da psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget (1978, 1979) e Lev Vygotsky

(1991).

Em relação à imagem da criança inconsciente, a criança é vista como um preditor do

adulto - ‘homúnculo’ (SARMENTO, 2007, p. 31), pautado na Psicanálise, onde Freud é a maior

referência. Esta imagem social imputa ao inconsciente o desenvolvimento do comportamento

humano com incidência no conflito relacional na idade infantil, especialmente na relação com

as figuras materna e paterna.

Em síntese, as imagens da criança pré-sociológica demonstram a necessidade de

administrar a existência da criança no espaço social desconsiderando os “constructos

interpretativos” referentes às concepções modernas da Sociologia da Infância que,

consequentemente, pautam as imagens da criança sociológica como resultados de produções

contemporâneas das Ciências Humanas e Sociais, portanto, “constituem, de facto, processos de

reinterpretação das representações anteriormente formuladas, com revisão do seu fundamento

pela compreensão da categoria geracional” (SARMENTO, 2007, p. 30).

Neste diapasão, esta pesquisa se insere justamente na concepção da criança sociológica,

por considerar a infância possuidora de uma cultura própria, por acreditar que a criança formula

e interpreta o mundo de acordo com suas próprias representações e por defender a participação

da criança naquilo é produzido para ela e sobre ela. Para tanto, o processo de compreensão das

concepções de criança e infância assenta-se na ação reflexiva e interpretativa assumida

enquanto exercício metodológico que visa desvelar nas imagens de crianças e infâncias o

251

protagonismo e a alteridade infantil, contribuindo assim, com o avanço epistemológico do

paradigma social da infância na contemporaneidade através de novas imagens da criança

sociológica que emergem na atual ordem social científica. Para Sarmento “a alteridade da

infância constitui um elemento de referenciação do real que se centra numa análise concreta

das crianças como atores sociais”, portanto, “A porta de entrada para o estudo da alteridade da

infância é a acção das crianças e as ‘culturas da infância’” (SARMENTO, 2005b, p.373, grifo

do autor).

Sob o prisma da Sociologia da Infância, a cultura infantil é entendida como um conjunto

de ações e representações culturais nas quais as crianças estabelecem sentidos e significados

acerca dos elementos que constituem seu cotidiano social, deste modo, a infância compreende

a criança enquanto ator social e produtora de cultura. Para Sarmento, consiste na “capacidade

das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de

acção intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção.” (SARMENTO,

2003, p. 3-4).

Desse modo, os sujeitos infantis, enquanto seres sociológicos, (re)produzem os

símbolos culturais dando novas configurações que implicam na constituição de suas culturas,

além disso, através das relações de alteridade que estabelecem com seus pares e com os adultos,

a criança vai desenvolvendo suas expressividades culturais através da linguagem, da

imaginação, das brincadeiras e das reproduções interpretativas 131 que elabora (CORSARO,

1997, p. 95).

Portanto, é no exercício do protagonismo infantil que as culturas da infância emergem

de forma inteligível, subversiva e criativa, exercendo desse modo, sua participação social na

sociedade, desconstruindo assim, a ideia de (in)visibilidade histórica, civil e científica, o que

destaca a necessidade de garantir cada vez mais, a participação da criança em todos os âmbitos

da sociedade, principalmente, nos debates científicos que fundamentam concepções e

direcionam propostas e ações políticas, sociais e educacionais para a infância.

Desenhar e dar a ler a cartografia atual do campo implica mesclar aspectos

institucionais e publicações com a finalidade de revelar as diferentes linhas de

força e a efervescência que estruturam a aparição desse pequeno objeto de início frequentemente qualificado pelos sociólogos como fantasma

onipresente, terra incógnita, refugo, mudo, ou como quimera, na literatura de língua francesa; marginalizado, excluído, invisível, ou como categoria

minoritária na literatura de língua inglesa. Ato de nascimento marcado pois,

por uma constatação geral de carência, de fragmentação do objeto, onde se

131 Cf. Corsaro (2003).

252

entrelaçam o imaginário social e considerações teóricas, e que aponta uma das

primeiras dificuldades da construção do objeto: libertá-lo, por um lado, do implícito, por outro desvinculá-lo do combate militante, para fazê-lo emergir

por inteiro no discurso científico como objeto de trabalho (SIROTA, 2001, p.

8).

Neste sentido, nas últimas três décadas, marcadas pela passagem do século XX ao século

XXI, com a emergência da Sociologia da Infância como um campo epistemológico profícuo

para discussões teóricas e metodológicas, as crianças passaram a ser consideradas no meio

acadêmico científico, sendo-lhes assegurada (ainda que timidamente) a participação direta em

estudos e pesquisas em vários contextos investigativos. De acordo com Abramowicz e Oliveira

(2010) a Sociologia da Infância rompe com a ideia de criança universal e a-histórica,

problematiza as abordagens psicologizante e biologizante de compreensão da criança e recusa

concepções uniformes da infância, mesmo levando em consideração,

[...] os fatores de homogeneidade entre as crianças como um grupo com características etárias semelhantes, os fatores de heterogeneidade também

devem ser considerados (classe social, gênero, etnia, raça, religião etc), tendo

em vista que os diferentes espaços estruturais diferenciam as crianças. Por vezes o cardápio de sentidos de que dispomos é insuficiente para compreender

estas falas. A criança é portadora da diferença, da diversidade e da alteridade

(ABRAMOWICZ e OLIVEIRA, 2010, p. 44).

Diante deste novo paradigma, os estudos da criança defendem uma abordagem

multidisciplinar e recusam o centramento exclusivo nas ciências “tradicionais” como

Psicologia, Ciências Médias, Pedagogia, Sociologia, para dialogar também, com outros campos

disciplinares como a Antropologia da Infância, a Psicologia ou a Sociologia da Educação, por

conseguinte, ainda constitui um paradigma epistemológico em processo de institucionalização

científica em todo o mundo, dada a heterogeneidade do campo.

Trevisan (2007) e Sarmento (2007) concordam que as crianças são seres sociais plenos,

em pleno processo de ação social, as crianças são produtoras de culturas próprias, as culturas

da infância, portanto, “[...] as crianças são seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos

diversos modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o

gênero, a região do globo onde vivem” (SARMENTO, 2004, p. 10), assim, a infância é

entendida como uma condição da criança (KUHLMANN JR., 1991, p. 182). De acordo com

Sarmento (2007) a infância ao mesmo tempo em que é única, também se mostra múltipla,

marcada pelas diferenças de direitos, deveres, acessos, privilégios, faltas e restrições. Nesta

perspectiva, não se trata de uma única infância, mas de várias infâncias.

253

Sarmento (2008, p. 19-24) ressalta alguns pontos de confluência sumariados em 10

proposições que marcam as rupturas teóricas entre paradigmas, teorias e abordagens, as quais

tentei resumir na sequência:

i.“A infância deve ser estudada em si própria”, sendo a configuração histórica

das ideias e imagens sociais da infância, os principais elementos de interpretação desta categoria. Isso significa romper com a perspectiva

analítica do adultocentrismo que projeta seus entendimentos sobre crianças

e infâncias a partir das suas próprias expectativas e/ou experiências. ii.A infância deve ser estudada a partir da articulação dos elementos

homogêneos relativos às características comuns a todas as crianças,

independentemente da sua origem social, porém, respeitando os estatutos sociais, políticos e os elementos de heterogeneidade que as constituem como

categoria geracional. iii.“O conceito de geração é central na configuração sociológica da infância”

devendo ser entendido a partir de três abordagens: como grupo social

constituído, intemporalmente, por indivíduos do mesmo escalão etário; no plano histórico, como um grupo de pessoas do mesmo escalão etário que viveu

uma experiência semelhante; como grupo etário, formado em condições

históricas diferentes e precisas, ao longo do seu trajeto de vida. iv.“A construção social da infância, historicamente consolidada, realizou-se

segundo o princípio da negatividade” e consolidou-se em torno da ideia de que “todas as crianças são competentes no que fazem, considerando a sua

experiência e as suas oportunidades de vida”.

v.“A infância não é uma idade de transição”, mas uma fase etária com características próprias e as crianças são atores sociais competentes que se

exprimem na alteridade geracional.

vi.“As condições de vida das crianças necessitam, igualmente, de ser estudadas considerando a especificidade da infância perante as esferas sociais da

produção e da cidadania”, ao contrário do que vem sendo empreendido em indicadores estatísticos, que por invisibilizarem a infância, acabam por afetá-

la globalmente em relação a fatores como desigualdade social, conflitos

bélicos, políticas sociais e problemas sociais e ambientais. vii.“As crianças são produtores culturais”, deste modo, as culturas da infância

[...] são plurais e multiculturais, não são a reprodução das culturas adultas,

mas, “como seres biopsicosociais com características próprias”, criam suas próprias culturas, interpretam, simbolizam e comunicam suas percepções de

mundo a partir das interações estabelecidas entre pares e no contato com os adultos.

viii.Em larga medida, as instituições para crianças configuram o ofício de criança.

Enquanto as instituições desenvolvem processos de socialização vertical em que submetem à infância, normas, ideias, valores e crenças impostas pelas

culturas adultas. As crianças impõem suas ações como forma de resistência

através do protagonismo infantil nos espaços ocultos ou libertados da influência adulta nas quais se realizam processos de “socialização horizontal

(comunicação intrageracional, no âmbito das relações de pares.)”, daí a ideia de criança como ser social.

ix.“As mutações da modernidade têm implicações nas condições de vida das

crianças e no estatuto social da infância”. As crianças exprimem fortemente as mudanças sociais, interpretam e posicionam-se perante elas.

Dessa forma, a Sociologia da Infância se posiciona contrário ao desaparecimento da infância, e defende que as mudanças promovem

254

transformações estruturais e simbólicas nas condições de vida e nas culturas

da infância. x.“A Sociologia da Infância só poderá desenvolver-se se for capaz de se articular

com um programa em renovação” dentro do próprio pensamento sociológico.

Significa que a Sociologia da Infância precisa se concretizar como ciência assumindo a participação da criança nas investigações das quais lhe dizem

respeito. Constituindo-se assim, como “a ciência que busca o conhecimento

dos factos sociais, através das e com as crianças” (SARMENTO, 2008, p. 19-24, grifos do autor). 132

Os grifos de Sarmento ao longo das proposições compõem o universo paradigmático da

nova epistemologia da infância que rompe com a perspectiva analítica do adultocentrismo e o

princípio da negatividade e compreende as imagens sociais da infância a partir do próprio

protagonismo infantil expresso na socialização horizontal e nas relações de alteridade

geracional. Nesta perspectiva, os estudos e pesquisas acerca das concepções de crianças e

infâncias devem priorizar a competência infantil garantindo sua participação na construção

social das teorias e metodologias direcionadas à investigação das culturas da infância, e com

isso, desconstruir a ideia de infância como “um mero estado de passagem, que deve ser

superado a partir da acumulação de experiências e conhecimentos necessários à vida adulta”,

conferindo à infância uma condição de menoridade ao considerar seu estado “transitório,

inacabado e imperfeito”, há muito empregado pelas teorias do desenvolvimento humano e

Sociologia tradicional, bem como, pelas instituições direcionadas para criança que impõem

regimes rígidos e cristalizados de culturas adultas (HILLESHEIM; GUARESCHI, 2007, p. 86).

Consequentemente,

O estudo das concepções da infância deve, por isso, ter em conta os factores

de heterogeneidade que as geram, ainda que nem todas se equivalham,

havendo sempre, num contexto espaço-temporal dado, uma (ou, por vezes, mais do que uma) que se torna dominante. O estudo dessas concepções, sob a

forma de imagens sociais da infância, torna-se indispensável para construir

uma reflexividade fundante de um olhar não ofuscado pela luz que emana das concepções implícitas e tácitas sobre a infância (SARMENTO, 2007, p. 29).

Em síntese, a expressão “cultura infantil” defendida pela Sociologia da Infância entende

132 Os destaques em negrito nas proposições foram feitos no texto original para indicar as palavras-chave

que, segundo o autor, “constituem o léxico constante de um glossário de base da disciplina”, dessa forma, replico tais grifos para garantir o rigor interpretativo (SARMENTO, 2008, p. 19).

QRcode 46: Sarmento (2008).

255

a infância como espaço de produção cultural da criança enquanto ator social. Assim, os sujeitos

infantis (re)produzem cultura, seja na linguagem, nas brincadeiras, imitando, imaginando,

repetindo, inventando, na relação com os adultos ou com os seus pares. Desse modo, “[...] as

culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo

distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de

inteligibilidade, representação e simbolização do mundo” (SARMENTO, 2004, p. 22).

O texto ora discorrido, apresentou de forma sintética as principais mudanças

paradigmáticas da nova Sociologia da Infância visando contextualizar as concepções de

crianças pré-sociológicas e sociológicas, para só então, na sequência, dar continuidade à

narrativa fotoetnográfica a partir dos estudos e pesquisas que visibilizaram, narraram,

desvelaram e desmistificaram as infâncias magicizadas em cenas. Portanto, convido o

leitor/espectador a desvelar e desvelar-se nos olhares, corpos e movimentos dessas crianças

que, gentilmente, nos convidam a conhecê-las.

3.1 Culturas Infantis em peles magicizadas: mementos em devir

A imagem, em especial a imagem fixa, é complexa. Para

se dar conta disso, basta prolongar o tempo de um olhar

posto sobre ela, sobre sua face visível para, logo,

descobrir que a imagem nos leva em direção a outras

profundidades, outras estratificações, ao encontro de

outras imagens. É necessário, pois, abrir a imagem,

desdobrar a imagem, “inquietar-se diante de cada

imagem” (Didi-Huberman, 2006b). Furar e romper a

superfície (SAMAIN, 2012, p.159, grifo do autor).

Conhecer as crianças, desvelar suas infâncias e compreender suas culturas. Este foi o

enquadramento que a objetiva da narrativa fotoetnográfica buscou focar. Uma tarefa complexa

que exigiu um profundo mergulho no universo visual, que, para além de representações, me

fizeram reflexionar as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de imagens.

Partindo do entrelaçamento entre epistemologia e empiria, promovida e produzida à luz das

fontes investigadas, construí dois momentos de narração, a priori através do texto escrito, a

posteriori através do texto visual – as fotografias. Cada uma em seu momento particular e de

igual importância para o entendimento da narratividade como um todo. Tendo em vista que, “a

256

linguagem escrita e a linguagem visual são linguagens diferentes que fornecem informações

diferentes e que exigem do leitor operações mentais também diferentes” (ACHUTTI, 2004, p.

109).

Desse modo, a construção da narrativa fotoetnográfica se fundamentou nas perspectivas

heurísticas e ontológicas do memento estabelecendo conexões de sentidos e significados entre

as imagens do passado e as do presente, agora produzidas através de imagens técnicas – as

fotografias. Por conseguinte, para “reviver” as cenas busquei destacar em high key os elementos

que compuseram as particularidades superexpostas na fotografia; identificar as concepções que

originaram a discussão no texto original da cena, bem como, a intencionalidade de quem a

produziu; e refletir a realidade magicizada na cena buscando nelas reminiscências, memórias e

reencontros. Para “sentir” contextualizei a fotografia em low key a partir das subjetividades,

emoções e percepções provocadas pela contemplação e pelo scanning da cena, considerando os

elementos simbólicos e valorativos da imagem que me “atraíram” e me direcionavam a

compreendê-las em suas dimensões e complexidades. Por fim, para “compreender” estabeleci

interlocuções teóricas transdisciplinares a partir dos pressupostos epistemológicos da

Sociologia da Infância.

Em outras palavras, a descrição em high key - que corresponde aos movimentos de

descrição, identificação e percepção, ressaltou os pontos claros, superexpostos, que

magicizaram a vida das crianças em peles fotográficas e serviram de registro e/ou auxílio visual

para as narratividades de suas histórias e memórias. A contextualização em low key - que

compreende a contemplação, o scanning, o desvelamento e a contextualização, truxe à tona os

segredos e silêncios das imagens, os pontos escuros, subexpostos na magicização da vida que

não se revela em primeiros e segundo planos da pele, estão no nível do simulacro, no nível das

coisas que não se enxergam, apenas se sentem, àqueles que o primeiro olhar, olha e não vê,

porque não se expõe, estão ocultos à espera alguém que os desvele, alguém que olhe e sinta,

sinta o que a imagem pensa e comunica na vida “congelada” no instantâneo fotográfico. São os

elementos em low key que tornam a sequência fotoetnográfica inteligível e sensível às questões

que orientam e fundamentam o olhar de quem pesquisa, por isso, é fundamental que o objeto

do olhar esteja bem delimitado para que o memento aflore.

Porém, o movimento de interpretação excede o [meu] olhar de pesquisadora e convoca

o leitor/espectador a mergulhar junto na Fotoetnografia para reviver, sentir e compreender as

muitas infâncias alí narradas, através de histórias contadas, vividas, rememoradas,

testemunhadas, conhecidas, observadas por olhares investigativos, intencionais, e

principalmente, subjetivos. Como ressalta Aumont (2016, p. 8-9, grifo do autor): “[...] a

257

investigação, iniciada ‘do exterior’, ao seguir a luz que penetra no olho, leva logicamente a

considerar o sujeito que olha a imagem, aquele para quem ela é feita [...]”. Assim, a narrativa

fotoetnográfica surge das percepções subjetivas do pesquisador para alcançar o olhar

contemplativo do leitor/espectador, como um permanente devir criador, pois, para cada olhar

uma reminiscência, uma memória, uma interpretação que é única, como também é única cada

criança magicizada na fotografia. Portanto,

A fotografia que antes ilustrava galerias, informava em jornais e anunciava o

consumível, agora, ela busca no seio da ciência o lugar que ela lhe julga

reservado. Não ser arte, mas, conter a arte. Não ser realidade, mas, conter a realidade. Não ser a ciência, mas mostrar a ciência, pois é dotada, quando bem

utilizada, de uma narrativa eloquente (RECUERO, 2008, p. 35).

Após essa breve retomada da sistematização metodológica, dou prosseguimento às

discursões referentes à imagem das crianças na Cultura Visual discutidas e sedimentadas nas

Ciências Humanas e Sociais, mais especificamente, no campo da Sociologia da Infância.

Porém, antes faço um pequeno registro das mudanças paradigmáticas na produção e concepção

da imagem que ocorreram na transição dos séculos.

A passagem do século XVIII para o século XIX marca a transição histórica da Idade

Moderna à Idade Contemporânea, concomitante a esse processo, no campo da Cultura Visual,

a iconografia da imagem expressa na pintura artística, perde popularidade para a fotografia, da

câmera escura do século XVIII, à máquina fotográfica no século XIX e à câmera digital no

século XX quando as imagens foram se tornando cada vez mais nítidas e sofisticadas.

O século XIX foi palco para a expansão da energia elétrica, para o telégrafo, para o

cinema e principalmente para a história da imagem técnica, sobretudo, no contexto do cinema

e da fotográfica. Em função das transformações tecnológicas decorrentes da expansão

industrial, as imagens se popularizaram e se estenderam a todas as camadas sociais (PEIXOTO,

2011; CARVALHO, C., 2011), pois com a invenção da fotografia e o surgimento de estúdios

fotográficos, as famílias passaram a registrar cenas e cotidianos da vida social para serem

contempladas na posterioridade. Além disso, as fotografias também tiveram sua expansão na

indústria comercial, principalmente, em produções publicitárias, reportagens, anúncios de TV,

revistas e jornais, entre outras formas de comunicação e informação da época.

Segundo Achutti (2004, p. 98) a fotografia deve sua criação a descobertas de substâncias

fotossensíveis no campo da química e teve sua oficialização em 1839, então foi introduzida em

vários setores do conhecimento como na medicina pelo Dr. Etienne Jules Mareiy que a utilizava

para estudar o movimento animal e humano, consecutivamente, chegando até a botânica,

258

geologia, arqueologia e astronomia, além das demais áreas das Ciências Humanas,

principalmente, a Antropologia, tendo Pierre Verger, como um dos seus percussores

(ACHUTTI, 2004, p. 98-99). Consequentemente, à ciência coube dar maior abertura ao uso das

fotografias em pesquisas científicas, sobretudo, pela iniciativa da Antropologia, com visto

anteriormente. Na mesma direção, as demais ciências passaram a introduzir em seus escopos

imagens fotográficas como registros históricos e narrativos da realidade. Inclusive na arte, onde

os artistas passaram a utilizar a imagem fotográfica como expressão da realidade

(SANTAELLA, 1989, 2005; MARTINS e TOURINHO, 2010; GONÇALVES, 2013).

Já o século XX protagonizou grandes transformações econômicas e tecnológicas que

ampliaram o acesso, a produção e o uso dos artefatos visuais, sobretudo digitais, a exemplo da

primeira câmera fotográfica digital lançada em 1975 pela Kodak que revolucionou a história da

fotografia. Outro fator importante desta época foi o desenvolvimento da indústria cultural

ampliando o repertório das culturas visuais. A indústria cultural é composta pelas produções

artísticas e culturais organizadas em função das relações capitalistas de produção, consumo e

comunicação (FREITAG, 1987; ADORNO; HORKHEIMER, 1985). O desenvolvimento

industrial marcado pela expansão de indústrias de petróleo, siderurgia, mineração e hidrelétrica,

gerou um aumento considerável de demandas por mão de obra, porém, as crises econômicas

mundiais decorrentes da 2ª Guerra deflagraram intenso êxodo rural, consequentemente

desencadeando a extrema pobreza da população, levando às famílias, inclusive, as crianças a se

submeterem ao trabalho pesado como forma de sobrevivência, nesse contexto, crianças e

adultos dividiam as responsabilidades de produção. Essa situação demonstra a manutenção da

concepção de criança como pequeno adulto, desconsiderando os tímidos avanços do final do

século XVIII.

A passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade da informação traz

consequências diretas para o paradigma da fotografia. Segundo Rouillé (2009, p. 168) o caráter

de registro do visto é ampliado aos sentidos e significados que dialogam com o documento

fotográfico tornando-os anunciantes, dado o potencial narrativo das expressões visuais, assim,

a fotografia documento-designação passa a ser documento-expressão.

Corroborando com a visão de Rouillé (2009), Rossoni (2011, p. 9) afirma que na

fotografia como documento-expressão, “há uma inclinação de explorar as possibilidades de

dizer com as coisas, de expressar e não simplesmente representar”, nesta óptica, o sentido da

imagem é interdependente “das coisas e da linguagem, de referentes e de uma escrita que faça

a imagem transbordar ultrapassando os limites”, mas,

259

Essas novas concepções dinamizam uma possibilidade justa para a fotografia:

a migração do território utilitário da imagem fotográfica para o território expressivo da escrita fotográfica. A questão da verdade e os critérios formais

mudaram. Essa dinâmica aponta para a necessidade de reatar com a pluralidade

das práticas, das imagens e das obras, e trilhar um caminho de restituição de sua densidade histórica, social e estética (ROSSONI, 2011, p. 9).

Isto significa que a presença crescente e a qualidade das imagens que testemunhamos

atualmente na Cultura Visual passam a ter a mesma importância das outras linguagens da

expressividade humana, ou seja, as imagens adquiriram caráter de linguagem integral,

chegando até mesmo a dispensar oralidades e/ou legendas (ACHUTTI, 2004, p. 109), como

também proferiu Walter Benjamin:

Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada

das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão

desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração

que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral (BENJAMIN, 2012, p. 167).

Diante de tais mudanças paradigmáticas, as imagens passaram a fazer parte do cotidiano

social e cultural dos indivíduos através dos artefatos da indústria cultural e evidentemente, da

literatura. Segundo Carvalho, C. (2011) vive-se atualmente num mundo saturado de imagens,

como consequência, elas [as imagens],

[...] nos dominam. Estão por todos os cantos [...] hoje nos tornamos reféns

delas, na medida em que não paramos para pensar a respeito desse complexo

universo que nos invade pelos mais variados meios; alguns aparentemente muito “pacíficos” e “inocentes”, como os rituais de tirar fotografias em casa,

junto àqueles que nos são mais chegados. Mas não só: hoje a fotografia digital

no cerca de forma avassaladora (CARVALHO, C., 2011, p. 109).

Partindo dessas premissas, urge a necessidade de reconhecer a fotografia, enquanto

documento-expressão no contexto da Fotoetnografia, e sobretudo, estar ciente do papel ético

do pesquisador, que ao mesmo tempo, exerce as funções de observador, espectador e fotógrafo,

funções que o responsabilizam pelo registro, veracidade e solidez da realidade magicizada na

cena. Torna-se, portanto, fundamental, dominar a técnica, discernir os caminhos

epistemológicos e ontológicos da imagem e respeitar os preceitos teóricos que pautam a

discussão a ser empreendida, para não incorrer no erro da espetacularização imagética,

conforme alertou Achutti (2004):

260

Fotografias obtidas de maneira aleatória e desordenada tornar-se-ão, no

melhor dos casos, uma fonte de informação que terminará por encontrar talvez um dia seu lugar em alguma fototeca, mas que não poderão vir a ser uma obra

completa, uma narrativa fotoetnográfica. (ACHUTTI, 2004, p. 108).

Retomando as discussões empreendidas sobre as concepções de crianças, infâncias e

culturas infantis abordadas na interlocução entre História Social da Infância, Sociologia da

Infância e Cultura Visual, evidencio na sequência, sob a ótica fotoetnográfica, escrituras e

imagens que constituíram estudos e pesquisas científicas nacionais e internacionais produzidas

durante as últimas três décadas, período em que a Sociologia da Infância foi erigida no hall das

Ciências Humanas e Sociais no Brasil. No entanto, o corpus da tese, se constituiu de imagens

de crianças produzidas em diferentes épocas e contextos, a depender dos objetivos e fontes

visuais das pesquisas selecionadas para análise. Desse modo, a época estudada foi

interdependente da data de produção das pesquisas.

Para tanto, a revisão de literatura foi realizada junto aos repositórios digitais utilizando

o descritor “Sociologia da Infância”, em seguida, foi feito um novo cruzamento de informações

a partir dos descritores “concepções”, “imagens”; “criança” e “culturas infantis”,

concomitantemente ao processo de leitura dos resumos e identificação das concepções e seleção

das imagens, foram selecionadas algumas pesquisas para aprofundamento e seleção

iconográfica, as quais contribuíram para a construção da Fotoetnografia da infância

empreendida neste segundo ensaio.

Entretanto, cabe aqui, fazer um registro em relação às dificuldades enfrentadas durante

a realização da revisão de literatura junto à plataforma de busca de teses e dissertações da

CAPES, que acredito ser uma dificuldade generalizada. Ao definir inicialmente o indexador

“Sociologia da Infância” como critério para identificação e seleção das pesquisas, surge o

volume de 967.250 pesquisas, que resultam do cruzamento de todos os termos em separado, ou

seja, “Sociologia” – “da” – “Infância”, daí o resultado absurdo e irreal.

Para dificultar ainda mais, os refinamentos oferecem outras inúmeras possibilidades de

opções e algumas delas duplicam os termos que, aparentemente, seriam semelhantes, como no

caso da “grande área de conhecimento e área de conhecimento”, que ao buscar novos critérios,

eis que surgem outras informações dúbias: Ciências Sociais Aplicadas (88629) e Ciências

Sociais Aplicadas (40118); Ciências Humanas (112584); Ciências Humanas (49415) 133, não

precisa ser expert em sistemas de computação para saber que é possível desenvolver uma

133 Estes números referem-se à quantidade equivalente de pesquisa deste indexador, mas não se sabe se eles

se repetem entre si, o que também é um problema.

261

plataforma mais acessível e objetiva, o que nos pouparia de incontáveis e desestimulantes horas

de busca. Urge uma mudança nessa forma de acesso que simplifique e organize de forma mais

coerente esses critérios. A exemplo da plataforma de busca da ANPEd, que oferece um bom e

rápido serviço de indexação.

Em vista disso, optei pela busca direta no Google acadêmico, na ANPEd e na SciELO,

a partir do cruzamento dos seguintes indexadores: “Sociologia da Infância”, “História da

criança”, “História da Infância”; “concepções”; “crianças”; “infâncias”; “culturas infantis”;

“Fotoetnografia”; “imagem de criança”; “infância Idade Moderna”. No entanto, quando eu

identificava recortes ou inferências à tese e dissertações, recorria à plataforma da CAPES para

localizar as pesquisas a partir do nome do/a autor/a e/ou título da pesquisa, esse movimento não

agilizou o processo, apenas facilitou a busca. Neste movimento, o cruzamento dos indexadores

foi realizado a partir da leitura dos títulos, resumos, palavras-chaves de cada pesquisa,

respectivamente. Em seguida, as pesquisas que apresentavam em seus corpus, imagens de

crianças e infâncias eram selecionadas e lidas na íntegra, vale ressaltar, que, através de suas

próprias leituras, foi possível encontrar outras literaturas que necessariamente, não tinham a

Sociologia da Infância como indexador, mas suas abordagens se fizeram importantes na medida

em que as imagens me interpelavam e me direcionavam para outros campos de interlocução,

passando assim, a contribuir também com o corpus desta tese.

Desse modo, de forma cíclica, as imagens e as discursões tomavam suas próprias

direções, como um rizoma134, sem início, sem fim, mas, com elos de sentido e significados que

as uniam em um diálogo epistemológico e ontológico que priorizou em todo momento o olhar

subjetivo e heurístico presente no memento e nas relações “estabelecidas” entre os sujeitos -

fotógrafo, fotografado, leitor/espectador. Nesta perspectiva,

Entre as coisas [histórias, memórias e reminiscências magicizadas em

películas fotográficas] não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento

transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói

suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 4, grifos meus).

Com a emergência da nova Sociologia da Infância135, as narrativas acerca das crianças

134 Cf. Deleuze e Guattari, Mil Platôs (1995). 135 A partir das ideias de James, Jenks e Prout (1998), Qvortrup et. al. (1994) e Corsaro (1997) o paradigma

social da infância é marcado pelo interesse da Sociologia em criar um espaço para a infância no discurso sociológico e encarar a complexidade e ambiguidade da infância como um fenômeno contemporâneo e

instável, consequência das grandes mudanças sociais da modernidade.

262

passaram a considerá-las como autoras sociais e produtoras de cultura, protagonistas de suas

próprias formas de vida, de desenvolvimento e de significações. Tal perspectiva agregou novos

olhares e concepções sobre a infância enquanto entidade e/ou instituição socialmente

constituída, neste sentido, o estudo das concepções de infância são indispensáveis para

visualizarmos a desconstrução de conceitos rígidos que não consideram as crianças em suas

especificidades (CORSARO, 1997; PROUT, 2010). Convidando-nos assim, a perceber que a

diferença radical da infância consiste na ideia de que:

[...] as crianças são seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos diversos

modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região do globo onde vivem. Os diferentes espaços estruturais

diferenciam profundamente as crianças (SARMENTO, 2004, p. 10).

Em se tratando da iconografia da criança, a produção científica sobre crianças e

infâncias no Brasil é vasta e ampla, principalmente na última década. A Sociologia da Infância

tem sido a principal vertente teórica a garantir um espaço legítimo às crianças nos estudos e

pesquisas científicas, de modo que essa visibilidade tem gerado significativas mudanças em

todos os aspectos relacionados aos direitos de proteção, cuidado e legitimação das “crianças

como actores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como categoria social do tipo

geracional, socialmente construída” (SARMENTO, 2008, p. 07). Mas, afinal, o que os estudos

e pesquisas dizem sobre as infâncias? Como as narrativas imagéticas tem dialogado com as

concepções de crianças e infâncias contribuindo para a constituição e compreensão das culturas

infantis?

Ao pensarmos nas imagens de crianças que viveram no século XIX temos que fazer um

aporte teórico sobre alguns momentos históricos determinantes daquela época. As fotografias

referentes à infância desta época apresentam informações que corroboram com a ideia de

infância adultizada, por se tratar de um século de intensos acontecimentos desde guerras e

revoluções, crises econômicas, avanços científicos e tecnológicos, as pessoas tiveram de se

adaptar às diferentes realidades, principalmente, relacionadas ao mundo do trabalho que, ao

expandir a produção nas fábricas, substituiu sobremaneira a mão de obra masculina pela mão

de obra barata de mulheres e crianças.

A industrialização foi uma inimiga constante e terrível da infância. Com o crescimento da indústria e a necessidade de trabalhadores nas fábricas e nas

minas, a natureza especial das crianças foi subordinada à sua utilidade como fonte de mão-de-obra barata [...] um dos efeitos do capitalismo industrial foi

dar apoio aos aspectos penais e disciplinares da escola, que eram vistos como

263

um sistema para dobrar a vontade da criança e condicioná-la ao trabalho

rotineiro nas fábricas [...] isto se a criança tivesse a sorte de ir à escola, pois no século XVIII e em parte do séc. XIX, a sociedade inglesa foi especialmente

feroz na maneira de tratar os filhos dos pobres, que foram usados como

“combustível” no parque industrial inglês (POSTMAN, 1999, p. 67).

No contexto dessa discussão, o trabalho de dissertação de Tisott (2008) intitulado

“Pequenos trabalhadores: Infância e industrialização em Caxias do Sul (fim do Séc. XIX e

início do Séc. XX)” 136 desenvolvido junto ao Programa de Pós-graduação em História pela

Universidade do Vale do Rio dos Sinos investigou a infância nos primeiros anos do processo

de industrialização de Caxias do Sul visando relacionar os conceitos família e trabalho. Nele o

autor, identifica a noção de infância na região a partir de documentação estatal, mapeando

iniciativas de assistência às crianças e políticas de formação de mão de obra. Com um acervo

reduzido de imagens fotográficas, o autor discorre sobre o cotidiano da Ourivesaria e Funilaria

Central de Abramo Eberle e Cia, localizada na região sul de Caxias, os registros são referentes

ao seu funcionamento em meados de 1907. Das 13 imagens dispostas na pesquisa, apenas 4

apresentam crianças em suas composições, desta selecionei 2 para compor a narrativa

fotoetnográfica, em virtude da qualidade e do enquadramento da fotografia que deixa claro a

presença das crianças trabalhadoras em meio aos adultos.

A primeira imagem é composta em high key por aproximadamente de 60 trabalhadores,

maioria homens, algumas mulheres e cerca 15crianças, aparentemente meninos. Eles se vestem

semelhantes aos adultos. O registro foi feito em 1906 em tons monocromáticos com

predominância de áreas escuras, mas, nitidamente bem definidas. A fotografia foi produzida no

interior do terreno da oficina para registro interno, com a intenção de demonstrar as atividades

desenvolvidas nas rotinas habituais de trabalho, de modo que, é possível visualizar algumas

pessoas marretando, outros martelando e uns meninos empunhando limas e objetos em processo

de produção (TISOTT, 2008, p. 90).

A maioria das crianças faz pose para o registro, olhando diretamente para a direção do

fotógrafo, outros simulam suas funções, e outros apenas se observam. Algumas crianças para

aparecerem na fotografia sobem em degraus e pequenas calçadas, ou seja, tentando ficar um

pouco mais visível, elas buscam seus espaços na fotografia. Interessante destacar a seriedade

136 QRcode 47: Tisott (2008).

264

com que lidam com estas situações.

Em low key, é como se estivessem se sentindo importantes e valorizadas. Não aparentam

obrigação em posar, mas, sim satisfação em participar, como se sentissem orgulho de ser

trabalhador, principalmente, em se tratando das crianças, que se exibem para a fotografia com

posturas eretas e faces concentradas, empunhando suas ferramentas de trabalho. Tal

comportamento reforça a ideia de naturalização do trabalho infantil sob a indução da falsa noção

do “bom cidadão trabalhador”. Neste contexto, a inserção de crianças no mundo do trabalho

era comum e até mesmo valorizada, na sociedade desta época, isto “não representava o fim

desse período da vida”,

Ao contrário, a participação das crianças na produção fazia parte da infância, assim como a escola e as brincadeiras. Muitas vezes o trabalho era adaptado

para que as crianças pudessem participar da economia familiar como co-

provedores. Algumas famílias dispunham de instrumentos agrícolas de tamanho reduzido para que os pequenos executassem tarefas semelhantes às

dos adultos. Mas o que parece ter sido mais comum foi a atribuição de tarefas passíveis de serem cumpridas sem que precisassem ser adaptadas ao físico e

capacidade de responsabilização das crianças, principalmente aquelas

complementares às dos adultos envolvidos na produção (TISOTT, 2008, p. 143).

De acordo com Tisott (2008, p. 144) as crianças eram co-provedoras da manutenção

material de suas famílias e se submetiam ao controle das suas famílias que mantinham

privativas suas relações de trabalho, consequentemente, a sociedade organizada passou a

intervir através da formalidade do ensino teórico e técnico, intensificando assim, as iniciativas

de proteção da infância visando seu distanciamento do mundo do trabalho. Nessa direção, foi

criada a escola elementar industrial, uma “iniciativa estatal que visou formar mão-de-obra para

as fábricas, educando as crianças pobres”, na sequência, outra escola estatal foi criada para

atender os miseráveis e órfãos proporcionando-lhes “um teto”.

A segunda imagem retrata um grupo de internos do colégio Patronato Agrícola de

Caxias do Sul destinado ao recolhimento de crianças órfãs da cidade, datada em 1930. Em high

key a fotografia é composta por 15 meninos, aparentemente com idade entre 10 e 14 anos. Todos

têm seus cabelos raspados e usam uniformes escolares. A cena magicizada foi feita na área

externa da escola, mas ao fundo, dá para visualizar sua estrutura. As crianças foram

sistematicamente, organizadas para o registro fotográfico, de modo que, estão linearmente

posicionados, os 9 maiores em pé, alinhados logo atrás de 6 que estão sentados, estes, com as

duas mãos apoiadas nas pernas. Todos olham fixamente para o fotógrafo para aguardar o

momento do click.

265

Em low key percebe-se a tensão nos olhares densos e sofridos dessas crianças sem

infâncias, que já carregam a dor de serem órfãos. A cena remete à ideia de prisão e as crianças

lembram ‘jovens’ delinquentes de cabeça raspada. A dureza de suas realidades se impõe com

arrogância e poder. As crianças são a expressão visível da submissão e do medo. Segundo o

autor,

O ensino profissional passa a fazer parte da história da cidade como um instrumento de “recuperação” da infância. O trabalho, no período estudado,

ganha força como meio de inclusão das crianças na sociedade que se formava.

O trabalho ou a instrução para o trabalho passa a servir para a transformação das crianças “desvalidas” em pessoas “úteis” para a sociedade (TISOTT,

2008, p. 144, grifos do autor).

Nesta perspectiva, o projeto jurídico e institucional direcionados para os menores

desvalidos, voltava-se para um ensino “não punitivo, recuperador, disciplinar, tutelar e paternal

– e articulado a uma tentativa de reorganização da assistência prestada tornando-a mais ampla,

sistemática e organizada de forma mais científica”, no entanto, esse atendimento sob forma de

manutenção, também foi uma maneira de mantê-los sob controle do Estado (TISOTT, 2008, p.

140, grifos do autor).

A rara pesquisa de Abramowicz, et al. (2011) intitulada: “Imagens de crianças e

infâncias: a criança na iconografia brasileira dos séculos XIX e XX” 137 apresentada na Revista

Perspectiva, teve o objetivo de evidenciar a maneira pela qual a criança e sua infância foram

retratadas durante esse período, com foco especial na representação da criança negra, indicou

uma ambiguidade neste período, de um lado a existência de um sentimento de infância e do

outro a invisibilidade da criança e da infância, em especial, da criança negra. (ABRAMOWICZ,

et al. 2011, p. 286). As representações acerca das crianças que foram retratadas nos séculos

XIX e XX geralmente são marcadas pelo conformismo do comportamento infantil com a

intenção de “[...] configurar o caráter dos meninos para desde cedo moldar e formar o bom

cidadão e para as meninas a boa mãe e dona de casa” (ABRAMOWICZ, et al. 2011, p. 281.

Grifo do autor).

A partir de uma leitura semiótica, o estudo reafirma uma visão de mundo de uma

comunidade sociocultural e linguística que se encontra em um processo constante de

137 QRcode 48: Abramowicz, et al. (2011).

266

transformação, as representações acerca dos objetos são historicamente determinadas, onde os

modelos culturais são apreendidos no cotidiano das relações sociais, nessa perspectiva, as

concepções de gênero engendradas na sociedade também são refletidas nas formas de vida

infantil. De acordo com Abramowicz, et al. (2011), as fotografias desta época eram restritas à

um público economicamente estável que podiam pagar pelos serviços fotográficos.

As fotografias selecionadas para narrativa fotoetnográfica desvelam infâncias em

diferentes perspectivas. São fotografias produzidas em tons monocromáticos e apresentam

desgastes na qualidade da imagem por se tratarem de fotografias antigas, das 12 fotografias

dispostas na pesquisa, foram selecionadas 2 imagens, uma fotografia tem caráter documental,

produzida por Vincenzo Pastore em 1910 e localizada no acervo do Instituto Moreira Salles,

São Paulo. A outra refere-se a foto de família do acervo Militão Augusto de Azevedo - acervo

do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, sem data de registro.

A primeira fotografia trata-se de crianças que subvertem as circunstâncias em que

tiveram de assumir o papel de adulto trabalhador, e “voltando” a ser crianças no caminho para

o serviço. A autora discute a imagem de crianças “pequenos trabalhadores”, pobres e negros.

Em high key a imagem é composta por um grupo de crianças, em variadas idades, cada uma

com sua caixinha de engraxate, alguns estão de pés descalços. A imagem indica movimento e

o ambiente é a rua. Diante da imagem, podemos significar em low key que em um universo

marcado pelas culturas adultas, a criança vai tentando resistir através de suas fantasias e

criatividades transformando a hostilidade do trabalho em brincadeira de bola de gude na rua.

A vida é um processo contínuo de atos de conhecimento e atos de decisão, portanto, os

seres humanos através das relações e interações estabelecidas com/no meio, passam a ser

observadores e experimentadores deste meio, neste sentido, a ação do indivíduo decorre de uma

decisão que deve ser tomada a partir de uma consciência crítica como forma de resistência aos

padrões de dominação hegemônica. Conforme aponta Giroux (1986, p. 59) a resistência dos

indivíduos é uma forma de direcionar o conhecimento, não aceitando o mundo pré-dado e não

se limitando apenas às instruções externas, significa uma tomada de consciência que inspira ato

de resistência, por um lado, representa “os interesses específicos de classe, gênero ou raça” e

por outro lado, representa e expressa “os movimentos repressivos inscritos pela cultura

dominante ao invés de uma mensagem de protesto contra sua existência” (GIROUX, 1986,

p.141).

Segundo o paradigma sociocultural, os seres humanos são socialmente dependentes,

vivem num contexto histórico que o mundo oferece possuem visões e construções pessoais

diferentes deste mesmo mundo, ou seja, o pensamento humano é constituído de acordo com o

267

ambiente histórico e cultural.

A segunda imagem altera de certa maneira o foco da discussão anterior, adentrando

agora, nas questões de étnico-raciais. Dessa forma, em high key, a fotografia é composta por

três crianças negras enquadradas ao centro da fotografia. A criança da esquerda é uma menina

de aproximadamente 7 anos, ela usa trajes formais semelhante à vestimentas adultas, olha

fixamente para o fotógrafo. Apoia seu braço esquerdo no obro de outra criança, que

provavelmente é seu irmão, dada a semelhança da face. Ele veste camisa, terno e gravata.

Posicionado ao centro do enquadramento, olha com certa melancolia e exibe postura seria. À

sua esquerda, provavelmente outra irmã, mais nova, de aproximadamente 4 anos, veste um

conjunto elegante de blusa com gola alta e casaco. De forma semelhante à irmã, coloca seu

braço no ombro de seu irmão e olha fixamente e meio sisuda para o espectador. Em low key, a

cena reproduz o modelo patriarcal de família, cuja figura central é o pai, o chefe do grupo

familiar, esse modelo implica relação econômica e de poder. Geralmente em fotos de família,

o homem está posicionado ao centro, o que revela uma hierarquia familiar, neste sentido,

[...] há uma hierarquia de gênero que atua fortemente na sociedade patriarcal

e que aparece nas fotos. Esta marca vale para todas as famílias: negra, imperial

e do senhor de terra. Podemos dizer que é uma marca do ocidente, uma hierarquização das relações que independem da classe social e da raça

(ABRAMOWICZ, et al., 2011, p. 278).

Abramowicz et al. (2011) ao concluir a pesquisa, destaca que os poucos sinais de

infância encontrados nos registros fotográficos deste período, revelam a invisibilidade

considerável de crianças, sobretudo, negras, tendo em vista que a população era composta de

56% de pardos e pretos e 44% de brancos. Esses dados são importantes para tencionar essa

invisibilidade nos dias atuais, refletindo sobre a imagem de crianças negras representadas nas

culturas visuais contemporâneas.

Desse modo, ressalto um recente e importante trabalho de tese intitulado “Criança e

Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação Infantil” 138 realizada por Silva,

R. (2015) junto ao PPGE/UFPB. Nele a autora analisou os elementos que norteiam as práticas

pedagógicas antirracistas em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) da rede do

138 QRcode 49: Silva, R. (2015).

268

Recife e a sua influência na construção da identidade racial das crianças e negras. Para tanto,

fundamenta-se nos pressupostos de que uma educação pautada em/para os Direitos Humanos

deve ser incorporada desde a Educação Infantil, além disso, é uma forma de repensar os Direitos

Humanos frente às atuais demandas sociais, nesse escopo, Silva, R. (2015) discute as questões

de alteridade, os efeitos da colonialidade, as perspectivas multiculturais e de interculturalidade

crítica.

Uma das abordagens mais interessantes dessa tese girou em torno do seguinte

argumento: “O sonho de ser princesa esbarra na cor”. Disso, a autora faz inferências ao lugar

do negro na sociedade a partir da discussão da Lei nº 10.639/03 que trata da questão racial,

tendo como viés as interações entre as crianças de 0 a 5 anos, e sobretudo, das crianças meninas

e negras. Silva, R. (2015, p. 42) defende que as estratégias de afirmação (positiva) do ser criança

e negra estão mais centradas nas meninas, principalmente, devido às dimensões do cuidar e do

educar presente nas histórias apresentadas nos livros de literatura infantil que incentivam a

valorizar o corpo e o cabelo, já em relação aos meninos, essas estratégias são minimamente

apresentadas, porém, em ambos, há o desejo de mudar a sua cor/raça.

Silva, R. (2015) utiliza 37 imagens para ilustrar alguns espaços e situações do cotidiano

escolar, apesar de não mostrar diretamente o rosto das crianças, suas ações e interações em

grupo são bem perceptíveis, esse foi um dos critérios para a seleção de três imagens. A primeira

cena magicizada é um momento em que uma das meninas negras reconta a história “Menina

bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado (2000) para seus coleguinhas. A cena se passa

em um local dentro da escola. Em high key é possível perceber alguns elementos visuais que

indicam atividades pedagógicas em exposição, como na parede ao fundo alguns cartazes com

nomes de crianças e suas fotografias, letras do alfabeto e outros pequenos painéis pedagógicos.

A pequena “contadora” tem aproximadamente 5 anos, está sentada numa cadeira de madeira e

com suas mãos segura o livro aberto na direção de sua “plateia” formada por 4 meninas e um

menino que atentamente a observam. Todos usam uniformes escolar, todas as meninas com

cabelos amarrados, cada um diferente do outro, preto, castanho, liso, cacheado, ondulado,

crianças brancas, negras, coloridas, cada uma com suas características. A menina narra a

história e em seguida mostra as ilustrações, com suas mãos suspende o livro como se estivesse

fazendo um movimento circular para que sua “plateia” possa melhor visualizar. Em low key as

crianças olham diretamente para o livro como se estivessem mergulhando em suas tramas,

imaginando como seria a vida daquela menina negra do laço de fita que inventava várias

histórias para explicar a sua cor.

Mas, por que o negro precisa se justificar? E o branco, também se justifica? Essa não

269

tem sido uma discussão fácil nas entrelinhas da história, trata-se de um campo movediço em

que se travam duras e sofridas batalhas. O direito e a dignidade da criança devem ser garantidos

acima de qualquer condição, para isso, o preconceito e a discriminação precisam ser discutidos

desde a infância para que as crianças negras não cresçam tendo de “se justificar” por que são

diferentes, e para que o branco também não a veja assim. Segundo Silva, R. (2015):

Responsável pela apropriação do conhecimento sistematizado, a educação escolar precisa assumir o papel de mediadora da cultura, possibilitando que as

crianças se vejam de forma equivalente nas diferentes vivências propostas por

ela. Sabemos que a educação sozinha não é forte o suficiente para eliminar as desigualdades, entretanto ela pode e deve estar comprometida com a

afirmação das diferenças (SILVA R., 2015, p. 176).

Silva, R. (2015, p. 194) constatou que algumas práticas empreendidas no contexto da

escola estão comprometidas com uma educação antirracista no intuito de romper com as lógicas

da colonialidade, desde a Educação Infantil, essas práticas contribuem para a construção da

identidade das crianças, negras e de outras cores, “exacerbando e legitimando o sonho de que

um mundo melhor é possível. Mas que a sua construção está apenas começando!”.

As imagens dispostas no trabalho de Silva, R. (2015, p.33) desvelam crianças que são

alegres, que criam suas próprias maneiras de brincar, que entram e saem de espaços com

autonomia e espontaneidade, que participavam da rotina da escola de forma prazerosa, sem o

peso da marcação de poder.

A segunda imagem magiciza um momento de brincadeira livre realizada numa sala de

interatividades, chamada de “sala de movimento”, um espaço amplo e cheio de artefatos lúdicos

que estimulam as habilidades corpóreas das crianças. Em high key a fotografia é composta por

6 crianças de aproximadamente 3 e 4 anos, e do lado esquerdo aparece muito pouco uma das

professoras auxiliando duas crianças que brincam um dos sete pneus, espalhados na cena. Em

alguns cantos da sala, peças de brinquedos de montagem espalhadas pelo chão, mas o que

chama mais atenção na fotografia é o fato de uma das meninas ter transformado um daqueles

“cestos de roupa suja” (que provavelmente está servindo para guardar os brinquedos na sala)

em uma espécie de “cabana”, pelo menos é o que em low key se percebe. “Encolhidinha” ela

“se diminui” para caber dentro do cesto, assim como “Alice no País das Maravilhas” quando

ela toma um líquido que a faz encolher para entrar numa das portinhas do salão das portas.

A imaginação infantil, segundo Sarmento (2003, p. 14) é “um elemento nuclear da

compreensão e significação do mundo pelas crianças”. Através da imaginação, as crianças dão

270

sentido e significado ao mundo a sua volta, interpretam situações reais e incorporam novas

experiências imaginativas, por conseguinte, “[...] a imaginação do real é fundacional do seu

modo de inteligibilidade”.

Ao se esconder, encolher, inventar, fantasiar e imaginar, um universo de sentidos torna

possível a descoberta, a pequena “Alice”, não sabe o que a espera do ouro lado da porta, mas a

sua curiosidade é maior do que o medo porvir. Assim, é a menina do cesto, onde ela está

somente ela saberá, e por que quis estar lá, esse será sempre um novo mistério a desvendar,

como bem disse Larrosa (2010):

A verdade da infância não está no que dizemos dela, mas no que ela nos diz

no próprio acontecimento de sua aparição entre nós, como algo novo. E além disso, tendo-se em conta que, ainda que a infância nos mostre uma face visível,

conserva também um tesouro oculto de sentido, o que faz com que jamais possamos esgotá-la (LARROSA, 2010, p. 195).

A pesquisa de Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:

perspectivas para uma Escola da Infância” teve o objetivo de conhecer como os bebês vão

elaborando significado em suas experiências primeiras na escola de Educação Infantil, no

convívio com outros bebês e suas educadoras, visando contribuir para pensar a Escola da

Infância. De cunho etnográfico-interventivo, a autora investigou as rotinas de uma escola de

educação infantil em Porto Alegre. A autora parte do princípio de que a infância é uma condição

da experiência humana e é preciso garantir às crianças sua participação ativa em todo o processo

que envolve educá-las. Este trabalho apresenta em seu escopo mais de 250 imagens, dentre elas,

algumas fotografias foram produzidas em disparo contínuo, onde a câmera registrou

sequencialmente, as cenas observadas pela autora. Deste trabalho selecionei dois conjuntos de

imagens que demonstram atividades lúdicas desenvolvidas na creche. O primeiro conjunto é

composto por duas imagens em que dois bebês de 6 e 8 meses, interagem entre si com objetos

lúdicos, em seguida, passam a interagir com a pesquisadora.

A primeira imagem em high key mostra duas meninas sentadas no chão forrado, ambas

olhando fixamente para a câmera fotográfica (e/ou para a pesquisadora no ato fotográfico), a

cena acontece numa sala de “aula”, cheia de recursos pedagógicos e brinquedos infantis. O bebê

do lado esquerdo veste calça preta, meia branca e camiseta cor de rosa. Segura com seu braço

esquerdo uma cestinha azul cheia de brinquedos coloridos. O bebê da direita veste camisa de

mangas compridas de cor vermelha e calça azul marinho. O que pode ser verificado no seguinte

relato da autora:

271

[...] liguei a câmera e mirei para elas, então as duas instantaneamente pararam

o que estavam fazendo e começaram a me olhar. Elas tinham um olhar difícil de definir – e claro não pretendo atribuir uma interpretação ao olhar, mas me

senti sendo questionada, ambas, ao mesmo tempo em que me examinavam,

pareciam que me perguntavam: - Está olhando e filmando, por quê? E, então me deparei ficando embaraçada frente àquelas meninas tão pequenas (Diário

de Campo, outubro de 2012) (VARGAS, 2014, p. 16, grifo da autora).

Em low key, as crianças se comunicam através de expressões questionadoras, que de

certa maneira, nos interpelam com tamanha seriedade. Na primeira cena, seria como se

estivessem perguntando: “tá olhando o quê”? ou “O que é que você quer com a gente?”. Na

segunda imagem há poucas alterações, a mudança mais significativa está nas expressões faciais

das meninas, que parecem “pousar” para a fotografia, fazendo surgir levemente um sorriso nos

lábios. Dessa vez, o mesmo olhar que questiona, se sente acolhido, contemplado, entendido.

O universo infantil é repleto de sutilezas, particularidades que só através de um olhar sensível são possíveis de perceber. Do contato diário entre

pesquisador e sujeito emergem linguagens que extrapolam as formas de comunicação oral e escrita, são gestos, olhares, sorrisos, choros, entre outros

movimentos corporais que exprimem sentimentos e sensações que

comunicam algo, é essa sensibilidade que permite a autora afirmar que “Os bebês nos interrogam com seu modo de ser e estar no mundo, especialmente

como seres investigadores do seu meio e tudo o que os rodeia [...] que

considerei um modo de aprender junto” (VARGAS, 2014, p. 16).

A segunda sequência de imagens corresponde à “narrativa visual do bebê que, frente à

possibilidade ofertada a ele, questiona, duvida e mergulha para daí extrair uma possibilidade de

experimentar algo novo, uma experiência primeira de interagir com a bacia de tinta.”

(VARGAS, 2014, p. 16). A narrativa é composta por quatro imagens que revelam movimentos

de uma mesma criança (aparentemente, um menino de um pouco mais de 1 ano) em interação

com o objeto – uma bacia de tinta. Em high key, a sequência fotográfica mostra a criança de pé

em frente a uma grande bacia branca cheia de tinta nas tonalidades azul, verde e branco. Ela se

aproxima e olha em volta, na segunda imagem ela olha diretamente para a fotógrafa-

pesquisadora e com um olhar questionador coloca as mãos na cintura e inclina a cabeça, em

low key seria como se estivesse ainda tentando entender por que aquele balde estava alí em sua

frente, e talvez pensando se deveria ou não, mexer. Então, depois de refletir algum tempo, a

criança toca com a mão esquerda a tinta, e na sequência, ela já está completamente

“mergulhada” nas cores, pernas e braços “pintados” num belo colorido.

A pedagogia que se deseja para os bebês e as crianças até 6 anos – e poderia

272

ser até os 10 anos – é a que se apoia nas experiências vividas com o Outro,

num espaço-tempo social e cultural, que acolhe e sustenta essas experiências. A criança nessa pedagogia é competente e autora de suas aprendizagens. Ela

interroga o mundo, e nesse interrogar estão os aspectos que são o suporte para

suas aprendizagens. É considerar que as experiências educativas se dão pela intersecção das experiências do indivíduo com as do Outro, pela engrenagem

de umas nas outras e pela presença dos sujeitos no mundo (VARGAS, 2014,

p. 196).

Visando oferecer ao leitor/espectador, uma visão panorâmica da infância na

contemporaneidade, faço na sequência, uma breve explanação sobre as culturas infantis no

universo da moda, da fama e do consumo, que também são cenários significativos das atuais

culturas infantis.

A pesquisa realizada por Kern, et al. (2010) intitulada “A moda infantil no século XX:

representações imagéticas na revista do globo (1929-1967)” 139 realizada em 2010, buscou

analisar a história da indumentária infantil no século XX por meio de fotografias infantis

publicadas na Revista do Globo, a qual era editada na cidade de Porto Alegre/RS. O recorte

cronológico utilizado pelos pesquisadores foi de 1929 a 1967, os resultados apontam que a

roupa da criança era diferente da roupa do adulto, modelos típicos de crianças como vestidos

curtos, calças curtas, grandes laços na cabeça, sapato boneca, blusas de frio, casaquinhos eram

bem utilizados, e para compor o visual vestiam shorts e sapatos sociais com meias até a metade

do tornozelo.

Conforme pode ser visualizado em high key, as imagens são produzidas em cores

monocromáticas com predominância em preto e branco, mas conservam a qualidade da

imagem. Das 7 fotografias dispostas no nessa pesquisa, selecionei 3 que retratam crianças em

colunas de moda da revista. A primeira imagem é composta por duas meninas, com

aproximadamente 3 e 4 anos, uma sentada à direita da fotografia em um banco alto, a outra,

mais nova, em pé logo ao seu lado. Usam vestidos iguais, com altura acima do joelho, calçados

também iguais, mas o que se sobressai na fotografia são os enormes laços na cabeça, traço bem

característico da infância nesta época. Em low key, o rosto sério das duas, facilita a percepção

de que se trata de duas irmãs. As meninas não exibirem sorrisos, fazendo transparecer certo

desconforto, principalmente, considerando o olhar tímido da mais nova. E que me direciona a

139 QRcode 50: Kern et al. (2010).

273

pensar que elas não estão gostando muito da ideia de serem modelos fotográficos e de alguma

forma isso lhes foi imposto. De acordo com o relato das autoras, não há nenhuma alusão quanto

essa questão, até porque trata-se de imagens de acervos documentais antigos.

Na segunda fotografia, uma menina de aproximadamente 4 ou 5 anos, bem sorridente,

com cabelo curtinho, ela segura seu vestido rodado com a mão esquerda e com a direta segura

uma cordinha que puxa uma família de patinhos de brinquedo. A cena é produzida em um

estúdio fotográfico, dado o fundo branco na imagem. Em low key, a imagem monstra uma

criança com total desenvoltura como modelo fotográfico, faz caras e bocas para o fotógrafo.

Exibe uma postura nitidamente preparada para a fotografia, quase beirando a artificialidade.

A terceira fotografia é composta em high key por uma criança de 3 anos de idade, ele

veste uma combinação de blusa, blazer e short. Com o braço se apoia em uma almofada em

formato redondo que está colocada em cima de uma espécie de bancada. Seu cabelo chama

bastante atenção, porque lembra um penteado feminino, mas isso também era comum nesta

época. Segundo a autora, esses trajes aproximam-se das roupas usadas pelos adultos, com

exceção do short e isso reforça que “as crianças, mesmo em uma época em que o conceito de

infância já estava solidificado, continuavam se vestindo como adultos em miniatura” (KERN

et al., 2010, p. 418), em seguida, as autoras concluem que:

A moda infantil retratada nas imagens analisadas não vem ao encontro

das necessidades da criança, pois na maioria das vezes as roupas são desconfortáveis (cheias de babados e fitas), inapropriadas para o clima

(vestidos e calças curtas, em um Estado em que o inverno é longo e rigoroso) e muito sérias (cores sóbrias, modelos muito “certinhos”)

(KERN et al. 2010, p. 426, grifos da autora).

A pesquisa “Crianças de revistas (1930/1950)” desenvolvida por Brites (2000) analisou

imagens fotográficas de crianças dispostas nas revistas brasileiras “Vida Doméstica” e “Fon-

Fon!” publicadas entre 1930 e 1959 em matérias sobre infância. Considerando a fotografia

como produção social, a autora articula textos e imagens para refletir sobre diferentes

possibilidades do mundo infantil. Segundo a autora, as concepções de crianças e infâncias

projetadas nestes periódicos ressaltavam ideias como “fragilidade, ameaça sofrida, inocência,

perspectiva de futuro, possibilidades de transformação no presente e riscos de mortalidade”.

Segundo a autora, havia uma necessidade comum em transmitir uma visão idealizada de um

modelo de criança padrão a ser atingido que girava em torno da imagem de criança “forte,

saudável, estudiosa, familiar, escolarizada, religiosa, bem-comportada, com aspecto

higienizado, livre dos estigmas visíveis da carência” (BRITES, 2000, p. 163).

274

Das 14 imagens desta pesquisa, selecionei 3 que remetiam, exatamente, às percepções

de criança saudável como padrão de beleza e das práticas coletivas como modelos de controle

e poder ideológico da infância. A primeira imagem foi selecionada junto à Revista de São Paulo

em 1936, retrata um bebê de aparência saudável, vestido apenas com uma fralda e seu penteado

chama atenção, pois os cabelos lisos estão divididos para o lado. O bebê olha diretamente para

o foco da objetiva, em low key, seu olhar meigo se comunica com alguns gestos tímidos do

corpo como a boca que esconde os lábios e sua mãozinha direita quase fechada apoiada em uma

de suas pernas.

A segunda imagem é composta high key por outro bebê e sua mãe. Ambos com roupas

brancas e elegantes. A mãe exibe um enorme sorriso e ergue o bebê como um troféu, pousando

para a fotografia. O bebê com o mesmo penteado para o lado exibe aspecto saudável e limpo.

Em low key, a mãe “como frutos de grande cuidado, numa atitude de orgulho” exibe a beleza e

a “robustez” de seu filho, como numa vitrine, aguardando a admiração do público leitor da

revista. Enquanto isso, a criança olha meio inseguro como se estivesse desconfortável ou sem

entender o que está acontecendo. Segundo a autora, trata-se do “Concurso de Robustez Infantil”

em que os bebês eram fotografados usando “fraldas, sentados, de peitos nus” (BRITES, 2000,

p. 172).

A terceira imagem é composta por duas fotografias posicionadas lado-a-lado, nelas se

magicizam cenas que se passaram em atividades escolares e exibições cívicas. Brites (2000)

acrescenta que as publicações relacionadas a estes eventos sempre consideravam grandes

quantidades de alunos, ou seja, não se fotografava crianças individualmente. Portanto, a

fotografia da esquerda, apresenta em high key 19 crianças, de ambos os sexos e de idades

variadas, todas posicionadas em decúbito ventral (pessoa deitada de bruço ou de “barriga pra

baixo”) “coladas” uma na outra, em um gramado, que segundo a autora, trata-se de um parque

infantil. Seus braços não estão visíveis, mas, provavelmente, apoiam as cabeças que estão,

totalmente, viradas para o chão. Seus pés bem juntinhos também se esticam no chão. Seus

corpos magros, alinhados e enfileirados, lembram em low key cenas de um holocausto. Esta foi

a primeira impressão que tive, quando meu olhar vagueou sobre a pesquisa, antes de fazer sua

leitura textual. A forma com que estão posicionadas não transmite nenhum sentimento de

infância, mas sim de domesticação. O rigor com que se alinham, deixam seus corpos imóveis,

tensos, quase “mortos”. Nenhuma criança subverte, nenhuma criança se “mexe”, todas

rigorosamente imóveis. Até que ponto, essa imagem revela uma atividade física voltada para o

público infantil? Quais os benefícios dessa atividade à sua condição física da criança?

Talvez, essas respostas algum professor de Educação Física poderá dar, mas eu, nas

275

minhas limitações de pedagoga, não consegui enxergar. Minhas reminiscências só me

direcionam para a crítica do saudoso Paulo Freire quanto à ideia de uma educação bancária,

dominadora, castradora de liberdade. Àquela em que o professor reflete o comportamento da

sociedade opressora, reforça a “cultura do silêncio”, mantém e estimula a contradição, “Dai,

então, que nela [...] o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional,

que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações

daquele” (FREIRE, 1987, p. 34).

A quarta fotografia foi realizada durante um desfile cívico, nela também se fixa cerca

de 20 meninas com idade aproximada entre 6 e 7 anos. Elas perfomatizam com bambolês e

vestem roupas semelhantes. Interessante perceber que todas, aparentemente, apresentam o

mesmo corte de cabelo, estilo chanel bem curtinho. Em low key entendo esse comportamento

a partir de duas possibilidades: por uma condição solicitada ou imposta pela/o coreógrafa/o e/ou

pela/o professora/o ou por se tratar de uma tendência da moda daquela época. Esta fotografia

também apresenta crianças alinhadas, fazendo movimentos performáticos com o corpo,

linearmente coreografados. Diferente das crianças na imagem anterior, estas se “movimentam”,

se olham, se comunicam, mesmo com posturas sérias, comuns em apresentações cívicas, elas

demonstram cumplicidade e desenvoltura. Segundo Brites (2000, p. 171) essa apresentação foi

alvo de crítica popular devido aos “shorts” usados pelas meninas e mocinhas durante o desfile,

os quais foram “julgados ‘sumários’, exibidores do físico”, fato que virou matéria no jornal

paulista A Gazeta (1937).

Se neste período, usar short curto era considerado impróprio para crianças, imagina o

que esses críticos diriam daa imagens da Mc Melody? E das crianças usando salto alto e apenas

calcinha posando para campanha publicitária e sites de moda? Essa é uma das realidades que

temos atualmente circulando no universo das imagens técnicas, crianças que cada vez mais têm

seus corpos exibidos em outdoors (físicos e virtuais) apelativos e erotizados, a exemplo da

campanha publicitária para o “Dia das Crianças” da indústria de calçados Couro Fino140 que

leva uma criança de apenas 3 anos a sensualizar usando apenas calcinha e um salto alto. A

criança aparece em dois momentos, no primeiro a foto é produzida em superexposição, usa uma

calcinha branca, um salto alto vermelho, pulseira e colares de adulto. Está sentada no chão e

140 QRcode 51: “5 campanhas publicitárias que foram censuradas”. Blog Rafaela Maia (16 de agosto de

2015).

276

coloca a mão próxima da boca para fazer um “bico” e usa maquiagem forte. A matéria “A

infância roubada na publicidade da Couro Fino”, publicada pelo site Carta Capital, discorre o

seguinte trecho:

A garota-propaganda tem as unhas pintadas de vermelho, sombra nos olhos,

rímel, batom e blush. Ela leva as próprias roupas para o ensaio fotográfico, mas o produtor sugere que ela fique só de calcinha. Ficaria mais condizente

com a mensagem da campanha publicitária. O cenário está preparado. Ela

finge se maquiar em frente ao espelho, coloca colares e pulseiras de pérola. Ela manda beijo, faz movimento com o corpo para os cabelos voarem e faz

pose sensual em cima de salto alto (CRUZ e DANTAS, 2013, n.p.) 141.

Em outra fotografia, a mesma criança aparece de pé usando calcinha e salto alto amarelo.

O cenário é composto por vários pares de sapatos vermelhos, espalhados no chão junto a um

colar de pérolas. Em low key a cena magiciziza uma criança que homenageia o dia das mães,

indicando os calçados como presentes ideais. No entanto, a propaganda explora a imagem da

criança de forma abusiva ferindo, consubstancialmente, a sua dignidade. Contraditoriamente, a

sociedade tem reproduzido essas práticas em vários setores da vida social e cultural, no entanto,

o que mais impressiona é o fato da família permitir que tais abusos aconteçam, aliás, isso pode

até ter uma resposta óbvia, ou seja, a fama e com ela o dinheiro e o status social, mesmo que

isso custe a erotização de uma criança.

Numa perspectiva crítica da cultura visual, este tipo de publicidade tenta impor um

modelo ideal de beleza reforçado pelos padrões hegemônicos de crianças brancas, ricas,

sensuais, atraentes e altamente erotizadas (FELIPE e GUIZZO, 2003, p. 128), como vimos ao

longo deste ensaio. Trata-se, portanto, de reconhecer esses riscos à infância numa perspectiva

contra-hegemônica que possibilite uma consciência crítica em relação às dimensões políticas e

ideológicas veladas nesses abusos. Como visto na recente campanha contra a erotização precoce

das crianças que foi lançada na página oficial no Facebook da Secretaria de Assistência Social

141 QRcode 52: “A infância roubada na publicidade da Couro Fino”. Site Carta Capital. Natasha Cruz e

Raquel Dantas (24 de maio de 2013).

277

do Amazonas em 5 de abril do corrente ano142, repercutindo significativamente nas redes sociais

e de acordo com o site Portal da Amazônia, obtendo a marca de 92 mil curtidas e 400 mil

compartilhamentos. A campanha traz o slogan “Criança não namora, nem de brincadeira", e foi

idealizada para mobilizar escolas, comunidades, psicólogos e pais contra a exploração infantil

e atingindo. Esta é uma iniciativa plausível e vem contribuir com o enfrentamento dos processos

de erotização precoce da criança no Brasil.

Em síntese, este é o retrato da “nova” indústria cultural que se instaurou em meio à

sociedade das massas (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), uma potência visual que visa única

e exclusivamente o lucro, em detrimento da alienação do consumidor. Chamo de nova a

indústria cultural em função da atual revolução cultural que decorrente dos avanços na

informática e nas telecomunicações, o que segundo Flusser (2008, p. 106) convergiu para

formar uma nova concepção de sociedade - a sociedade informática telematizada, ou seja, uma

sociedade que se constrói de imagens técnicas, uma sociedade que vive em função das imagens.

Portanto, trata-se de um jogo de força e de poder que se alimenta diariamente de apelos

publicitários que usam a imagem da criança como forma de convencimento do adulto através

da via emotiva, que segundo Ferrés (1998) age por comunicação persuasiva, por transferência

e proximidade emocional, na tentativa de seduzir o consumidor.

Nossos gestos passam doravante não apenas a se constituir como reações às imagens, mas passam a distinguir-se igualmente rumo às imagens. As imagens

passam a ser os nossos interlocutores, os parceiros na solidão a qual nos

condenaram [...]. Queremos e fazemos o que as imagens querem e fazem, e as imagens querem e fazem o que nós queremos e fazemos (FLUSSER, 2008, p.

106).

Portanto, com esta provocação, passo a discutir as imagens-técnicas de crianças que

circulam nesse novo ambiente telemático que tem reconfigurado a indústria cultural gerando

imagens que diariamente nos interpelam com suas contradições e paradoxos, que vão desde a

ideia de uma infância inocente, pura e manipulável até a ideia de uma criança participativa que

exerce seu protagonismo nas relações de alteridade que estabelece na cultura de pares, entre

142 QRcode 53: Matéria: “Governo do Amazonas lança campanha de combate à erotização de crianças e

ganha adesão imediata e espontânea de usuários de redes sociais de todo o Brasil”. Portal do Amazonas. (10 de abril de 2017).

278

adultos e com as novas tecnologias midiáticas. Desse modo, desvelo imagens de crianças e

infâncias no contexto da Cultura Visual que implicam diretamente nos modos de ser e de viver

da criança na atualidade.

Assim, através do olhar que vagueia, vou tateando os “entre-lugares” das infâncias

magicizadas na imagem, à procura de reviver, sentir e compreender o que dizem, pensam e

escondem em suas peles. Ao mesmo tempo, tento oferecer ao leitor/espectador uma narrativa

integral que possa reencantar a criança em suas reminiscências de infância e mergulhar nesse

universo tão instigante e curioso que muitas vezes deixamos de lembrar.

4 A CULTURA VISUAL SOB OS HOLOFOTES DA ERA DIGITAL: A

REFLEXIVIDADE DA VIDA SOCIAL

A educação da cultura visual é aberta a novas e diversas formas

de conhecimentos, promove o entendimento de meios de

opressão dissimulada, rejeita a cultura do Positivismo, aceita a

ideia de que os fatos e os valores são indivisíveis e, sobretudo,

admite que o conhecimento é socialmente construído e

relacionado intrinsecamente ao poder. Necessariamente, a

educação da cultura visual incentiva consumidores passivos a

tornarem-se produtores ativos da cultura, revelando e resistindo

no processo às estruturas homogênicas dos regimes discursivos

da visualidade (DIAS, B., 2008, p. 39).

Da era da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2012) à era da transformação digital

(JENKINS, 2003; CASTTELS, 2000), a vida social tem passado por mudanças e rupturas

significativas nas relações econômicas, políticas, educacionais e, sobretudo, culturais. A

expansão industrial, a globalização e as tecnologias da informação digital impactaram não só

as relações sociais humanas, mas, principalmente as formas de conhecimento e comunicação.

A informática como tecnologia intelectual, engendra um novo modo de pensar o mundo, de

entender a aprendizagem e as relações com esse mundo. Nessa perspectiva, a tecnologia seria

uma aplicação prática do conhecimento científico em diversas áreas da pesquisa em função de

promover recursos para sobrevivência e melhoria das condições de vida humana.

Para Mcluhan (1969, p. 36) “[...] As sociedades sempre foram moldadas, mais pela

natureza dos meios que os homens usam para comunicar-se que pelo conteúdo da

comunicação”, com essa visão o autor destaca a intencionalidade com os meios são utilizados

279

no cotidiano humano, chamando atenção para a dimensão social desse impacto. Nesta direção

Ribeiro (2005) afirma que os recursos digitais se tornaram “multipolares”, mudando

radicalmente as formas de comunicação humanas:

Na realidade, trata-se de uma mudança vertiginosa jamais verificada

anteriormente na história da humanidade, e os meios digitais são frequentemente apresentados como o ‘motor’ dessa mudança. [...]. O digital,

porém, tornou-se “metáfora cultural” de crise e transição – de passagem da

“representação” para a “simultaneidade”, “telepresença”, “interatividade”, “tele-ação” (RIBEIRO, 2005, p. 617, grifos do autor).

Pensar a Cultura Visual no contexto da reprodutibilidade na era digital requer uma

abertura conceptual crítica no que se refere ao entendimento do que veio a ser a chamada

“revolução tecnológica”. Segundo Castells (1999) as novas tecnologias são processos a serem

desenvolvidos e não ferramentas a serem aplicadas, nesta perspectiva, elas não determinam a

sociedade, mas são parte integrante desta, consequentemente, segundo o autor, a sociedade não

pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas (CASTELLS, 1999),

desse modo,

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa

informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de

processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso (CASTELLS, 1999, p. 50).

Assim, no contexto da revolução tecnológica, o mundo se tornou digital, o que

desencadeou uma súbita expansão na dimensão visual da cultura. Desse modo, o século XXI

se configura na multiplicidade das culturas visuais de proporções mais complexas e

sofisticadas, o que direciona à nova epistemologia da imagem, agora como objeto social e

acontecimento visual:

Las partes constituyentes de la cultura visual no están, por tanto, definidas

por el medio, sino por la interacción entre el espectador y lo que mira u observa, que puede definirse como acontecimiento visual. Cuando entramos

en contacto con aparatos visuales, medios de comunicación y tecnología, experimentamos un acontecimiento visual. Por acontecimento visual entiendo

una interacción del signo visual, la tecnología que posibilita y sustenta dicho

signo y el espectador. Al prestar atención a esta interacción múltiple, intento adelantar estrategias interpretativas más allá del ahora familiar uso de

terminología semiótica (MIRZOEFF, 2003, p. 34).

280

As infâncias estão imersas em visualidades, seja em casa ou na escola, são brinquedos,

roupas, produtos de beleza, calçados, materiais escolares, acessórios de moda, as escolhas

alimentares, entre outros inúmeros produtos em que estão impressos os personagens de filmes

ou desenhos animados prediletos, toda essa dinâmica visual compõe as culturas infantis e são

determinantes para construções de suas identidades. Por isso, é preciso entender como as

crianças e as infâncias estão sendo representadas na indústria cultural na atualidade e como

essas representações repercutem nos modos de ser e viver das crianças ao constituírem suas

culturas e identidade, mas, como reconhecer o que é próprio da cultura infantil? É possível falar

de fronteiras culturais quando se trata de Cultura Visual?

Na perspectiva da globalização, “a cultura é por definição um processo construído sobre

a intercepção entre o universal e o particular” (SANTOS, 2002, p. 47). Como fenômeno

universal, a cultura “local’ na sociedade contemporânea não assume uma única configuração, e

sim, múltiplas configurações grupais e culturais, que em suas particularidades apresentam

algumas universalidades, porém, cada vez mais o local e o universal se tornam fluídos, portanto,

“nas atuais circunstâncias, só é possível visualizar culturas globais pluralistas ou plurais”

(SANTOS, 2002, p. 48). Como fenômeno particular, a cultura cada vez mais se torna hibrida,

tendo em vista que os “próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão

consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ [...], estão

em profundo processo de redefinição” (BHABHA, 2013, p. 25, grifo do autor). Como já

anunciado por Giddens (1991, p. 29) “o que estrutura o local não é simplesmente o que está

presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua

natureza”. Neste sentido, falar de fronteiras é reconsiderar os fenômenos em suas dimensões

locais e globais em processos constantes de deslocamentos culturais, contingenciais e híbridos.

Partindo dessa óptica, na tentativa de ressignificar a criança através de imagens histórica

e socialmente contextualizadas, recorri à critérios locais, porém, que apresentam repercussões

globais na configuração das culturas infantis, na intenção de reflexionar seus modos de ser e de

viver, além de compreender suas formas de enfrentamento, resistência e subversão frente aos

abusos da cultura estetizada. Neste sentido, a discussão partiu da seguinte problematização: que

concepções e imagens circulam nas Ciências Humanas e Sociais, na mídia televisiva e na

Internet que dialogam com os seguintes debates: a criança na Cultura Visual contemporânea,

visibilidades publicitárias direcionadas ao público infantil, e consequentemente, o abuso da

condição de criança frente à crescente demanda do consumo e da estetização da cultura.

Desse modo, seguindo os critérios já apresentados na introdução desta tese, estabeleci,

consecutivamente, os seguintes parâmetros para a seleção e produção fotoetnográfica: imagens

281

de crianças que remetem à caracterização da infância, dispostas em estudos e pesquisas

científicas nas Ciências Humanas e Sociais desenvolvidas entre 1990 a 2017; imagens de

crianças envolvidas em polêmicas nacionais dispostas em redes sociais como Facebook,

YouTube e Instagram; imagens de crianças que estão em evidência nacional na mídia televisiva,

na publicidade ou na Internet; imagens de crianças relacionadas à moda, publicidade e

consumo.

Para compor as narrativas fotoetnográficas utilizo imagens expressas através de ícones

imagéticos fixos (fotografias) e em movimento (audiovisuais) dispostos em acervos públicos

impressos e/ou digitais (on-line). No entanto, a seleção das fontes não pretende descrever um

determinado tipo de infância, mas procura mostrar como as infâncias retratadas nas pesquisas

revelam informações acerca da condição social da criança em cada época e a partir dessas

informações, tenciona outras visões que em alguns momentos dialogam e em outros se

contradizem.

Com o intuito de representar a pluralidades de representações de crianças e infâncias

contemporâneas, opto por selecionar imagens que foram investigadas em pesquisas acadêmicas

e científicas no Brasil para tentar pelo menos uma aproximação do que seriam os conceitos de

criança e infância na contemporaneidade. Portanto, a partir do memento, para reviver, sentir e

compreender as imagens (reminiscência) dialoguei, diretamente, com as fontes selecionadas

buscando promover interlocuções teóricas e empíricas sobre a realidade da criança magicizada

na imagem técnica. Para tanto, desvelei em high key, os aspectos que estão em evidência nas

infâncias expostas pelas pesquisas científicas e aparelhos midiáticos, construídas como fruto

direto das intervenções imagéticas da Cultura Visual; e em low key, à luz das discursões

revisitadas durante a composição da narrativa escrita, busquei refletir sobre as concepções de

crianças e infâncias em cada tempo e espaço revelado, para redescobrir as culturas infantis que

se escondem na imagem, ou seja, àquilo que está subexposto, propositalmente, que só é possível

desvelar a partir de uma abordagem cultural, histórica e social, para além do contexto imagético

superexposto na “pele-magia’. Importante, ressaltar que, a partir de uma visão crítica da Cultura

Visual, o determinou a seleção foi o próprio sentido dado à imagem em cada contexto

investigado, assim, a imagem passou a ter suas próprias significações, dado o caráter subjetivo

e multicultural do signo iconográfico.

Neste sentido, considerando a extensão das visualidades encontradas no contexto da

Cultura Visual, selecionei a partir do memento e de acordo com o objetivo específico do campo

analítico que consiste em investigar como a criança vem sendo representada histórica e

socialmente através da Ciência e da Cultura Visual para reflexionar seus modos de ser e de

282

viver em épocas e contextos diferenciados, visando, sobretudo, compreender suas formas de

enfrentamento, resistência e subversão frente ao que se é imposto, direcionado e/ou oferecido

a ela (criança) como cultura e projeções sociais, apresento neste subcapítulo três cartografias

que ajudam a pensar os mapas da infância na contemporaneidade: i. a crescente demanda do

consumo para a formação de crianças consumidoras, a publicidade televisiva para crianças e a

resolução nº163 do CONANDA (2015) sobre publicidade infantil. ii. os processos de

adultização e erotização da criança considerando a trajetória da funkeira mirim Mc Melody e a

moda veiculada pela Internet direcionada à infância; iii. a pesquisa TIC KIDS on-line Brasil

(CGI.br, 2015) que discorre sobre o uso de Internet por crianças e adolescentes e a participação

dos youtubers mirins e suas implicações para a construção das culturas infantis.

Ao pretender situar a infância contemporânea nas culturas visuais, estou ciente de que

essas representações são referentes ao momento, contexto e espaço nos quais as imagens foram

produzidas, neste sentido, as análises realizadas foram construídas dentro de um campo

movediço, onde os resultados são fluidos e não-previsíveis. Portanto, nesse exercício seletivo,

o que mais se observa é a multiplicidade de culturas infantis contemporâneas, crianças que

brincam, criam, imaginam, subvertem, choram, crianças que sonham e fantasiam suas vidas,

que nos fazem “viajar” nos seus olhares in/discretos, crianças que nos surpreendem sempre, são

essas crianças que também compõem as entrelinhas da Ciência, são crianças sociais - críticas,

criativas e protagonistas em suas histórias de vida, mesmo em situações de in/visibilidade.

Nesta perspectiva, para pensar a Cultura Visual e suas implicações no cotidiano das

construções culturais da infância, cabe fazer uma interlocução com a perspectiva crítica da

indústria cultural e os impactos do capitalismo cultural no comportamento social humano

através da mídia, discutidos, consubstancialmente, nas obras “Dialética do esclarecimento:

fragmentos filosóficos” de Adorno e Horkheimer (1985) e “Indústria Cultural e Sociedade” de

Adorno (2009). De modo geral, os autores defendem a ideia de que a indústria cultural é o

mecanismo capitalista que reforça as condições vigentes produzidas para a maximização do

capital. De forma contundente, os autores afirmam que “A indústria cultural tem a tendência de

se transformar num conjunto de proposições protocolares e, por isso mesmo, no profeta

irrefutável da ordem existente” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). Inclusive, Adorno

(2009) promove duras críticas ao impacto da indústria cultural na arte medieval, destacando a

inversão dos valores na concepção de arte:

A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos, da

performance tangível, do particular técnico sobre a obra, que outrora trazia a

283

ideia e com essa foi liquidada. O particular, ao emancipar‐se, tornara‐se rebelde, e se erigira, desde o Romantismo até o Expressionismo, como

expressão autônoma, como revolta contra a organização. O simples efeito

harmônico tinha cancelado na música a consciência da totalidade formal; na

pintura, a cor particular tornou‐se mais importante que a composição do

quadro; o vigor psicológico obliterou a arquitetura do romance. A tudo isso a

indústria cultural pôs fim (ADORNO, 2009, p. 9).

Neste contexto, as atenções teóricas voltam o olhar para as bases epistemológicas da

teoria crítica para refletir as implicações do poder midiático e dos modelos hegemônicos que

impostos pelas grandes potências mundiais da indústria cultural. Parte do princípio de que a

sociedade burguesa e seus modelos de produção tornam ocultos e/ou mascaram as condições

de exploração para manter as próprias condições de exploração do proletariado, assim, a teoria

crítica toma a responsabilidade de fazer a crítica ao poder e controle ideológico que dão

sustentação às condições de exploração, portanto, a teoria crítica é um projeto de emancipação:

Formulado em linhas gerais, este juízo existencial afirma que a forma básica

da economia de mercadorias, historicamente dada e sobre a qual repousa a história mais recente, encerra em si as oposições internas e externas dessa

época, e se renova continuamente de uma forma mais aguda e, depois de um

período de crescimento, de desenvolvimento das forças humanas, de emancipação do indivíduo, depois de uma enorme expansão do poder humano

sobre a natureza, acaba emperrando a continuidade do desenvolvimento e leva

a humanidade a uma nova barbárie (HORKHEIMER, 1991, p. 57).

Para Adorno (2009), quando a cultura “se congela em ‘bens culturais’ e na sua

repugnante racionalização filosófica, os chamados ‘valores culturais’, pecam contra a sua

raison d'être” (ADORNO, 2009, p. 48, grifos do autor), ou seja, quando a cultura serve às

determinações do mercado de bens e consumo, ela perde sua essência, interrompe a consciência

de si mesma e se submete á crescente barbárie do predomínio do poder econômico,

consequentemente, a classe dominada e submetida à tal exploração não têm consciência das

manobras de manipulação com que as grandes corporações da indústria as acorrenta, a grande

massa manipulada pelas imagens que a indústria cultural impõe como verdade,

[...] não é capaz de compreender que a reificação da própria vida repousa não em um excesso, mas em uma escassez de esclarecimento, e que as mutilações

infligidas à humanidade pela racionalidade particularista contemporânea são estigmas da irracionalidade total (ADORNO, 2009, p. 50).

Aplle (1989, p. 19-24) ressalta que atravessamos uma crise nos processos de legitimação

e aculturação, na qual os aparatos produtivos e reprodutivos da sociedade (incluindo as escolas)

284

estão cindidos por tensões, na qual a própria essência da reprodução continuada das condições

necessárias para a manutenção do controle hegemônico é ameaçada; entretanto, torna-se difícil

de ver o impacto relacional que isso tudo tem sobre nossas vidas cotidianas. Por isso, a crise

não é só uma questão econômica, ela é também política e ideológica, “é na intersecção dessas

três esferas da vida social, na forma como elas interagem, na forma como cada uma delas se

sustenta e contradiz as outras, que podemos vê-la em sua plena forma” (APLLE, 1989, p. 20).

A indústria cultural, enquanto aparelho ideológico, político e econômico, mascara a

ideologia dominante, os meios de comunicação de massa servem apenas aos interesses de

mercado, visam produzir bens de consumo e um exército de consumistas. A mídia publicitária

produz cenas que magicizam diariamente a vida em simulacros imagéticos, que nada mais são

que, formas de expressão de uma massa manipulada regida e regulada pelas oligarquias da

indústria cultural que visam unicamente o lucro. Desse modo, a luta é por uma educação contra-

hegemônica que desmascare o sistema de produção e a consolidação do poderio econômico e

político das grandes corporações. É neste sentido que a teoria crítica vai estimular a

conscientização crítica do sujeito diante daquilo que, aparentemente, se mostra inofensivo e não

susceptível à crítica.

Para Kellner (2001, p. 44) a expressão indústria cultural indica “o processo de

industrialização da cultura produzida para a massa e os imperativos comerciais que impeliam o

sistema”, que segundo os frankfurtianos, buscavam legitimar ideologicamente as sociedades

capitalistas integrando os indivíduos em uma cultura de massa, ou seja, revertiam as produções

culturais de massa à condição de produção industrial, em que os produtos da indústria cultural

apresentavam as mesmas características dos outros produtos fabricados em massa, o que seria

a transformação da cultura em mercadoria, padronização e massificação.

No entanto, Kellner (2001, p. 45) faz duras ressalvas ao pensamento originário da teoria

crítica indicando a necessidade de uma atualização para incorporar os desenvolvimentos

contemporâneos da teoria social e cultural, para tanto, elenca as seguintes demandas:

[...] análise mais completa da economia política da mídia e dos processos de

produção da cultura; investigação mais empírica e histórica da construção da

indústria da mídia e de sua interação com outras instituições sociais; mais estudos de recepção por parte do público e dos efeitos da mídia; e

incorporação de novas teorias e métodos culturais numa teoria crítica reconstruída da cultura e, da mídia (KELLNER, 2001, p. 45).

Ao mesmo tempo em que a indústria cultural se firma, outro fenômeno transforma ainda

mais as formas de relações sociais e econômicas mundiais - a globalização (BECK, 1997;

285

GIDDENS, 1991, 2012; SANTOS, 2002, 2003). De acordo com Santos (2002) a globalização

trouxe ao cenário mundial uma nova forma de organização institucional, agora transnacional, e

com ela uma nova classe capitalista, que, por deter um terço do produto industrial mundial dita

padrões de consumo e exploração conduzindo a população às desigualdades sociais,

econômicas e culturais.

O que chamamos de globalização é apenas uma das formas de globalização, a globalização neoliberal, que é sem dúvida a forma dominante e hegemônica

de globalização. A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de

acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos

vínculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e por outro lado, submeter à sociedade a lei do valor, no pressuposto de

que toda a atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma

de mercado (SANTOS, 2003, p. 13).

O referido sociólogo explora os conceitos de globalização hegemônica e contra-

hegemônica, afirmando que o global acontece localmente e é preciso fazer com que o local

contra-hegemônico, também aconteça globalmente, neste prisma,

A globalização, longe de ser consensual, é um vasto e intenso campo de

conflitos entre grupos sociais, estados e interesses hegemônicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro, e mesmo no

interior do campo hegemônico há divisões mais ou menos significativas

(SANTOS, 2002. p. 27).

Santos (2002, p. 75) destaca que as transformações em defesa de uma contra-hegemonia

forte frente à hegemonia capitalista são formas autônomas de práticas sociais, políticas,

econômicas e culturais de resistência, nesse sentido, “[...] temos o direito de ser iguais quando

a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Nesse

contexto, cada grupo social produz e reproduz suas culturas adequando-se às suas realidades

locais e sofrendo influências de outras culturas globais. Reforçando a ideia de

complementaridade, destaca o autor: “é incorreto dar prioridade, quer às estratégias locais, quer

às estratégias globais [...]. Ao nível dos processos transnacionais, da economia à cultura, o local

e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda” (SANTOS, 2002, p.73).

Portanto, não há uma única forma de globalização, mas, formas múltiplas de

globalizações que permeiam questões locais em detrimento das transições complexas que

ocorrem nas sociedades semiperiféricas e periféricas, portanto, considerando as diferenças

sociais desiguais e excludentes, não é possível pensar numa linearidade nos processos de

286

globalização. Tal como aponta Giddens (2012):

A nova agenda da ciência social diz respeito a duas esferas de transformação, diretamente relacionadas. Cada uma delas corresponde a processos de

mudança que, embora tenham tido suas origens no início do desenvolvimento

da modernidade, tornaram-se particularmente intensas na época atual. Por um lado, há a difusão extensiva das instituições modernas, universalizadas por

meio dos processos de globalização. Por outro, mas imediatamente relacionados com a primeira, estão os processos de mudança intencional, que

podem ser conectados à radicalização da modernidade. Estes são processos de

abandono, desincorporação e problematização da tradição (GIDDENS, 2012, p. 91).

Nesta perspectiva, os processos de globalização intensificaram os avanços tecnológicos

gerando formas diversificadas de crescimento e desenvolvimento econômico e cultural, tal

impacto repercutiu diretamente nas formas de vida e comunicação na sociedade contemporânea,

em contrapartida, também geraram sérias consequências nos modos de vida social e de

produção, agora, o que se vê são fluxos cada vez mais desterritorializados, sob o constante

exame das práticas sociais caracterizadas por várias descontinuidades, observadas na questão

do tempo e do espaço, e na aceleração do ritmo de mudança intrínseco das instituições modernas

(GIDDENS, 1991, p. 45), marcadas pelo permanente avanço tecnológico, pela constante

mobilidade de pessoas e pelo caráter provisório das relações sociais e das identidades culturais

(HALL, 1996; 2004; KELLNER, 2001).

A partir da visão de Giddens (1991, p. 45) o termo “reflexividade” remonta ao

autoconfronto, à constante reflexão frente aos problemas reais sobre os quais não temos

controle, tampouco conhecimento (BECK, 1994, pp. 6, 176). Neste sentido, ao tratar dos

contornos da modernidade, o autor compreende a reflexividade da vida social moderna

enquanto práticas sociais, que precisam ser “constantemente examinadas e reformadas à luz de

informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu

caráter” (p. 49). Portanto, segundo Giddens (1991, p. 93) a reflexividade da vida social moderna

revela que vivemos sob o constante exame das práticas sociais caracterizadas por várias

descontinuidades, observadas na questão do tempo e do espaço, e na aceleração do ritmo de

mudança intrínseco das instituições modernas. Tais práticas sociais repercutem, diretamente,

no campo das investigações científicas nos direcionando para novas abordagens paradigmáticas

e interpretativas dos fatos, seja nas ciências, nas tecnologias ou no próprio comportamento

humano. Nessa perspectiva,

A criança do século XXI precisa de ferramentas que lhe desvendem o mundo

287

da globalização hegemônica em que está a crescer, mais problemático do que

alguma vez o foi, competitivo, incerto, de risco em riste, exigindo uma permanente reflexividade que promova ajustamentos adequados à realidade

aceleradamente mutante [...] (SILVA, T., 2010, p. 122).

Nesta vertente, Silva, T. (2011) defende o afastamento da perspectiva técnica, visando

demonstrar o quanto as teorias tradicionais falhavam na formação de um sujeito livre e capaz

de reflexão crítica e autônoma, revela que os presentes arranjos educacionais, afetados por

objetivos de interesse e poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia,

porém, afirma que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e chegar a um

conhecimento não mistificado do mundo social.

Tais elucidações abrem espaço para a discussão das imagens que dominam as culturas

midiáticas direcionadas à infância, desse modo, ao estabelecer uma postura crítica diante do

que se veicula na TV, nas redes sociais, na propaganda publicitária, e inclusive nas próprias

visualidades presentes na escola, apresento um panorama geral de uma “pequena” fatia do

universo visual da nova indústria cultural que produz e é produzida para a infância e pela criança

na contemporaneidade.

4.1 Publicidade e Consumo: a estetização da infância contemporânea

A cultura está presente nas vozes e imagens

incorpóreas que nos interpelam das telas, nos postos

de gasolina. Ela é um elemento-chave no modo

como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo

consumo, às tendências e modas mundiais. [...] É

trazida para dentro de nossos lares [...] Elas mostram

uma curiosa nostalgia em relação a uma

"comunidade imaginada", na verdade, uma nostalgia

das culturas vividas de importantes "locais" que

foram profundamente transformadas, senão

totalmente destruídas, pela mudança econômica e

pelo declínio industrial (HALL, 1997, p. 22).

Das pinturas nas cavernas à fotografia digital, o efeito representativo e chamativo das

imagens permanece em cada época e contexto com suas características próprias. Segundo

Postman (1999, p. 94) “[...] biologicamente estamos todos equipados para ver e interpretar

imagens e para ouvir a linguagem que se torna necessária para contextualizar a maioria dessas

288

imagens”. Neste subcapítulo, apresento as narrativas fotoetnográficas produzidas a partir de

imagens de crianças reflexionando sobre as diferenças entre como eram e são representadas as

crianças pela Cultura Visual e como essas representações repercutem nas interpretações e

(in)formações das culturas infantis na contemporaneidade. Busquei, então, nos registros

iconográficos reconhecer as nuances da modernização em confronto com a tradição nas

representações de crianças ao longo das transformações sociais e culturais da modernidade

reflexiva para percebemos que as imagens deste período são construções orientadas e

fundamentadas numa determinada visão de mundo e de cultura - a dos adultos.

Como visto anteriormente, em se tratando de história e memória, as imagens

representam lembranças, comportamentos, situações eternizadas como pedaços de vida

(MARTINS & TOURINHO, 2010, p. 10), são películas magicizadas de nossa existência

(SAMAIN, 2012; FLUSSER, 2007), são reminiscências da alma (PLATÃO, 1972, p. 81a1-d5,

p.51-53,), memórias são imagens, imagens são memórias - contadas, vividas, imaginadas,

contempladas, conhecidas ou sonhadas, sempre aberta a novas percepções e interpretações.

De acordo com Martins (2012, p. 73) “na perspectiva da cultura visual a interpretação

se constitui como prática social que mobiliza a memória do ver, aciona e entrecruza sentidos da

memória social construída pelo sujeito”, deste modo, as interpretações são sentidos e

significados decorrentes do imaginário social do qual o sujeito faz parte. Neste sentido,

revisitamos as imagens de crianças na contemporaneidade a partir de um “conceito ampliado

de infância que leva em conta a temporalidades, práticas e visões, impossíveis de serem

reduzidas a uma única perspectiva” (MARTINS & TOURINHO, 2010, p. 10).

Desse modo, destaco as concepções de crianças na sociedade contemporânea a partir

das rupturas conceituais e paradigmáticas das categorias criança e infância no cenário científico

à luz da Sociologia da Infância e no cenário da globalização, da Indústria Cultural e da era

digital. Tendo como recorte temporal os séculos XX e XXI que rompem com a hierarquia rígida

do comportamento humano, focalizando o caráter ideológico dos padrões usados para definir

qualidade estética, o que propicia o surgimento de uma pluralidade cultural, um intercâmbio

entre grupos culturais diferentes e a emergência da reflexividade da vida social moderna.

Momo143 (2007) em sua tese de doutorado: “Mídia e consumo na produção de

143 Doutora em Educação (UFRGS) e pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-graduação em Educação

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2007.

289

uma infância pós-moderna que vai à Escola”144 desenvolvida junto ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, ao tratar de infâncias contemporâneas e culturas midiáticas que envolvem a efemeridade

das imagens e significados de criança, destaca que estamos presenciando uma era em que:

[...] a produção, a circulação e o consumo de bens materiais e culturais se

caracterizam pela aceleração e a provisoriedade, os ícones infantis apresentam a possibilidade de fruição, mas essa deve acontecer no momento presente, já

que tais ícones são fugazes. Tal fruição envolve não apenas o deleite de bens materiais, mas também de bens culturais (MOMO, 2007, p. 69)

De acordo com Momo (2007) a “infância que vai à escola” leva consigo elementos da

cultura visual, sobretudo midiática, e elabora suas próprias concepções de realidade

transgredindo padrões e subvertendo aquilo que os adultos tendem a controlar e/ou conhecer,

nesta concepção, segundo a autora, o modo de ser criança na cultura contemporânea busca

infatigavelmente a fruição e o prazer, procura incansavelmente inscrever-se na cultura

globalizada tornando-se consumidores de artefatos midiáticos, esse processo ultrapassa as

fronteiras de classe, gênero e geração.

Uma criança que não tem saneamento básico em sua casa é capaz de saber detalhes sobre o uso e o funcionamento de notebooks, celulares e iPods tanto

quanto adultos ou quanto crianças de condições econômicas privilegiadas.

Aprendem por meio da mídia (principalmente televisiva) a dominar uma certa “gramática” da cultura tecnológica e por meio dela passam a pensar (MOMO,

2007, p. 233).

A pesquisa de Momo (2007) apresenta múltiplas possibilidades visuais que vão desde

anúncios de revistas, embalagens de produtos de consumo infantil, imagens dispostas em sites

até as próprias fotografias realizadas pela autora durante a pesquisa de campo. De um acervo

de 184 imagens, optei por selecionar as que dialogavam diretamente com as questões da

infância pós-moderna dos artefatos tecnológicos e do consumo, assim, selecionei 4 imagens

que compuseram 2 mosaicos.

144 QRCode 54: Tese: Mídia e consumo na produção de uma infância pós-moderna que vai à escola (MOMO,

2007).

290

A primeira imagem intitulada “tecnológica (celulares)” em high key mostra duas

meninas interagindo com celulares na sala de aula. As crianças aparentam ter entre 8 e 9 anos,

vestem casacos e usam batom nos lábios. Debruçam-se na mesa para melhor apoiar os braços

e facilitar o manuseio do celular (de brinquedo) que cada uma tem na mão. Em low key, parecem

muito entusiasmadas com o artefato, como se dominassem toda sua engrenagem. Nada mais as

distraem, elas olham compenetradas para o aparelho que, de acordo com os relatos da

pesquisadora, eram celulares de brinquedos ou quebrados que foram descartados. No entanto,

isso não as impedia de fantasiar seu uso, com a desenvoltura de quem realmente sabia como

eles funcionavam.

As crianças vivem o mundo das visibilidades no qual, mais do que ter, é importante parecer: parecer ter, parecer ser. Rádio-fone nos ouvidos, mobies

(também chamados de pagers) nas cinturas, celulares em cima das mesas,

calculadoras nas mãos e relógios nos pulsos. Crianças rodeando os portadores de tais objetos, propondo trocas e empréstimos. Objetos tecnológicos

geralmente proporcionam prestígio para quem os possui bem como promovem a inscrição em uma cultura globalmente reconhecida (MOMO, 2007, p. 230).

Momo (2007, p. 324) através de sua tese, reafirma a nova infância - a pós-moderna “[...]

fabricada pela cultura contemporânea, governada pela mídia e pelo consumo”. Nesta

perspectiva a autora destaca o caráter provisório, fugaz, instantâneo e efêmero da condição

cultural da pós-modernidade, e defende que a “[...] nova infância é aquilo em que as crianças

vão se tornando no interior dessa cultura”. Mas que cultura é essa? Segundo Momo (2007),

Essa cultura se caracteriza pela descontinuidade, pela efemeridade, pela

descartabilidade, pela instantaneidade, pela transitoriedade, pela constante

mudança, pois o que passa a importar é o momento presente, o tempo presente. Na cultura pós-moderna prevalece o fluxo de imagens, de saberes, de

mercadorias, de representações, de pessoas, de desejos, de pensamentos, de dinheiro e de tantas outras questões. Ela “funciona” como fluxo, ultrapassa

fronteiras e corrói o pensamento binário. Já não há como pensar por meio de

dois pólos (ou por meio de fronteiras), pois um fluxo está o tempo todo “circulando”, sendo modificado e constituído por múltiplos elementos

(MOMO, 2007, p. 35).

Desse modo, Momo (2007) chama atenção para a mercantilização da cultura infantil

para a formação de crianças consumidoras, através das grandes corporações empresariais norte-

americanas como Disney, Mattel e McDonald’s, além destas, aponta a comercialização de

ícones relacionados às marcas de personagens brasileiras como Xuxa, Sandy & Júnior, Eliana.

Para tanto, promove interlocuções com Giroux (1995) ao considerar que a mercantilização é

291

um dos princípios definidores da cultura infantil, citando que um grande exemplo disso, são as

produções fílmicas da Disney que criam uma cultura de mercado através de protótipos de

personagens como Mickey, Branca de Neve, Aladim e outros, estampados em brinquedos,

jogos, roupas e outros objetos comercializados no mundo todo. E cita Steinberg e Kincheloe

(2001), para afirmar que “a cultura infantil hoje é inventada predominantemente por adultos em

grandes corporações, cujas estratégias são os princípios do prazer e do livre mercado” (MOMO,

2007, P. 118). Tal influência pode ser percebida em inúmeras fotos produzidas em seu trabalho,

conforme imagens selecionadas para compor esta Fotoetnografia.

Em decorrência disso, Momo (2007, p. 218) afirma que o que as crianças levam para

escola é a “onda” do momento, são os artefatos que estão em voga na mídia do momento

presente, o que pode ser verificado na segunda imagem intitulada “B fashion” composta em

high key por uma menina, aparentemente com 9 anos de idade. A fotografia enquadra apenas o

rosto da criança que usa óculos “fashion” com lentes avermelhadas, uma camisa de mangas na

cor mostarda e na cabeça usa uma “touquinha da Milky”, personagem da novela Malhação

transmitida pela emissora Rede Globo de Televisão (2004). Ela exibe um leve sorriso e usa

batom cor-de-rosa. Em low key, provavelmente, inclina um pouco seu rosto para baixo na

intenção de destacar o uso dos óculos e parecer ser “fashion, “dentro” da moda do momento.

Seu jeitinho parece ser de menina vaidosa, que gosta de andar cheia de acessórios. Esse é um

exemplo de criança “antenada”, que sabe o que quer, que usa da criatividade para ser ou parecer

se fashion. Esse “ser fashion” é um exemplo da infância pós-moderna a que Momo (2007, p.

230) se referiu ao afirmar que o no mundo das visibilidades, o mais importante não é ter, e sim

parecer ter, parecer ser.

A terceira imagem “jogando sua teia” apresenta em high key uma criança do sexo

masculino, de aproximadamente 8 anos, vestindo um conjunto de moletom vermelho, sendo o

camisão com uma imensa estampa que se assemelha à roupa do Homem-Aranha, personagem

de filmes e desenhos animados da Disney. A cena se passa na sala de aula, a criança está

centralizada na imagem, se posiciona em pé para imitar o personagem, e com um largo sorriso

no rosto, “joga sua teia” gesticulando com a mão esquerda. Em low key, a fantasia de ser um

super-herói envolve todo um complexo jogo de significados que permeia imaginação e a

criatividade. Assim,

As crianças vão tecendo uma rede de significados e preferências que

constituirão suas culturas e representações, com isso, é possível perceber que

as formas de vivenciar cada ação na infância trazem consequências para a vida prática das crianças, e cada uma delas irá criar para si suas próprias

292

representações acerca de seus mundos e suas culturas (CABRAL e DIAS,

2013, p. 154). 145

Na brincadeira, a fantasia e a realidade se misturam num misto de performatividade e

agilidade. O corpo corresponde ao brincar. Barbosa R. e Gomes (2012, p. 154)146 discutem a

dinâmica brincante entre alguns super-heróis de desenhos animados como Power Rangers, Ben

10, Homem-Aranha e Homem de Ferro, assim como a orientação estética desta conexão e a

relação da criança com seus personagens, para esses autores,

Quando brincam de Homem-Aranha e Homem de Ferro, as crianças transferem essas imagens televisivas para o seu ambiente brincante, vindo

acompanhadas de diálogos e comportamentos específicos dos desenhos

animados, como a tentativa de salvar pessoas pelo poder de soltar teia (pronto para saltar em qualquer local, pendurado somente por teias), como faz o

Homem-Aranha, ou levantando o braço, indicando que irá voar como faz o Homem de Ferro. [...] formam-se um conjunto de narrativas socioculturais,

presentes na troca de repertórios brincantes, de desenhos animados e de

filmes, fortalecendo e inspirando suas brincadeiras por meio de suas ações lúdicas. No calor do clima de suas brincadeiras, as crianças chegam a misturar

os desenhos, realizando uma espécie de mutação (BARBOSA R. e GOMES,

2012, p. 154).

A quarta imagem “A escalada do Homem-Aranha” demonstra em low key os “sem-

limites” da fantasia e imaginação infantil. A cena se passa no em uma área externa da escola,

aparentemente, um corredor. Em high key a criança está “escalando” uma grade como se

estivesse imitanto o Homem-Aranha”, ela veste calça jeans, tênis e uma camisa com estampa

de teia de aranha na parte das costas. Segundo Momo (2007) as crianças interagem com a

cultura midiática e nessa ação, produzem “verdades”, para si, e sobre os modos de ser sujeito,

escolhem roupas, tomam atitudes e incorporam movimentos e linguagens dos personagens que

assumem, “Parece que as crianças estão completamente imbricadas nos sistemas de

145 QRcode 55: Cabral e Dias (2013).

146 QRcode 56: Barbosa R. e Gomes (2012).

293

significação e representação cultural quando se trata de alternativas de ‘escolha’ de

identidades’” (MOMO, 2007, p. 256, grifo da autora).

Sobre isso, Barbosa R. (2013, p. 31) em outro artigo sobre as influências que a TV

exerce sobre a imaginação infantil147, a partir da relação do adulto, da brincadeira e do desenho

animado, ressalta que através dessas brincadeiras, a criança satisfaz seus desejos brincando,

vivencia aventuras, evidencia a ludicidade de seu imaginário, experimentam sensações que vão

desde alegria ao medo, interagem e resolvem seus conflitos, ou seja,

Olham pelo “espelho do imaginário” e experimentam essa transformação: ser,

ver, sentir, construir e reconstruir o que desejam, além de se colocarem na situação do outro, neste caso, dos personagens, e tentam encontrar soluções

para as situações problema que podem aparecer. Essas interligações são

vivenciadas pela criança graças ao poder do imaginário, com o suporte de seu brinquedo televisivo (BARBOSA, R., 2013, p. 31).

Entretanto, é pertinente afirmar que a mídia não é a única responsável pelos problemas

que a infância tem enfrentado na atualidade, visto que a formação da criança é constituída a

partir de valores e habitus148 que organizam e são organizados por várias instituições e

instâncias que permeiam o meio social, adquiridos pela interiorização das estruturas sociais que

se constituem no nosso corpo e em nossa mente (BOURDIEU, 2012). O ser humano enquanto

ser cultural em constante relação com as práticas de produção, inclusive, industriais, precisa do

consumo como forma de satisfação de suas necessidades básicas. Porém, as sociedades que se

respaldam em economias globalizadas/industrializadas apreendem os conteúdos simbólicos da

cultura não apenas por intermédio do consumo, mas, sobretudo, por meio do consumismo como

forma de garantir a manutenção do sistema, conforme alertou Bauman (2008):

Para atender a essas novas necessidades, impulsos, compulsões e vicíos, assim

como oferecer novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana, a economia consumista tem de se basear no excesso e no

desperdício (BAUMAN, 2008, p. 53).

147 QRcode 57: Barbosa R. (2013).

148 O conceito de habitus define-se como um sistema socialmente constituído, onde a subjetividade é

reforçada pela objetividade da realidade social. Tal conceito nos auxilia a pensar a relação entre as

regulamentações sociais e a construção das subjetividades nas crianças como um sistema de orientação

consciente e/ou inconsciente que as fazem escolher consumir determinados produtos e serviços e não outros (BOURDIEU, 2012).

294

Nesta perspectiva, as propagandas publicitárias exibem imagens que buscam transmitir

aos telespectadores mirins o fascínio e a fantasia dos produtos, não considerando a

especificidade de cada contexto cultural, na verdade, a intenção é atingir o máximo possível de

consumidores. Daí a importância de acompanhar de forma crítica e reflexiva as mensagens

transmitidas através das publicidades infantis fazendo com que as escolhas e o consumo sejam

feitos da melhor maneira possível. De acordo com Momo (2007, p. 297):

As crianças dos artefatos midiáticos preocupam-se com o estilo das roupas

que vão vestir, usam com desenvoltura a Internet, escolhem o que vão consumir e convencem as outras crianças de que aquele produto foi feito

especialmente para elas.

No entanto, as imagens que se apresentam nas propagandas são constituídas de

mensagens e estas mensagens podem ou não gerar uma torrente de emoções no telespectador,

cada indivíduo reagirá conforme suas próprias representações acerca da cultura e seu contexto.

Para Momo (2007, p. 249) “a televisão compreende imagens em movimento, ritmo acelerado e

ausência de silêncio” no sentido em que há uma simultaneidade de informações e ações que

marcam as relações das crianças com a mídia.

O “estado televisivo” que as crianças vivem inclui, além da ausência de silêncio e da ininterrupta movimentação, falar constantemente de programas

televisivos, cantar e dançar os últimos lançamentos de músicas, operar com

brinquedos amplamente divulgados pela mídia e se “transformar” em personagens da mídia televisiva e cinematográfica (MOMO, 2007, p. 250,

grifos da autora).

É certo que as publicidades voltadas ao público infantil podem estar repletas de

informações e visualidades que estimulam o consumismo e aumentam a discriminação e a

segregação social, mas, é preciso perceber que tipo de informação está sendo recebida pelas

crianças por meio destas publicidades.

Ferrés (1998, p. 40-43) afirma que os seres humanos são influenciados

(intencionalmente ou não) por motivações prévias, condicionadas por temores, desejos, fatores

cognitivos ou emocionais. A comunicação exerce poder fundamental neste processo. Para este

autor, dois fatores conflitantes e ao mesmo tempo harmoniosos influenciam as decisões

humanas: os fatores racionais e os fatores emocionais, estes constituem as grandes vias de

295

comunicação persuasiva149 (FERRÉS, 1998).

A via racional é regida pelo pensamento lógico, atua por argumentação. Pretende

convencer, oferecer razões ou argumentos que levem o persuadido a assumir o ponto de vista

do que persuade. É forçosamente consciente, de forma que sua argumentação seja

compreendida. Exige atitude de reflexão, de análise, de compreensão, uma atitude consciente.

Ocorre quando se ativa no receptor de maneira prioritária ou quase exclusiva, atitudes racionais.

A via emotiva é regida pelo pensamento associativo, não age por argumentação, mas

por transferência, proximidade, semelhança, simultaneidade, associação emotiva ou simbólica.

Pretende seduzir, atrair o receptor pelo fascínio. É uma atitude inconsciente, com frequência

irracional, ilógica, alógica. Ocorre quando se ativa no receptor, de maneira prioritária, quase

exclusiva, atitudes emotivas. Sobre isso Ferrés (1998) afirma:

Os meios de massas audiovisuais são uma gigantesca indústria de sonhos e

mitos, uma poderosa indústria de criação de associações emotivas. Impõem imagens mentais que, a partir dos desejos e emoções que geram ou refletem,

orientarão a futura conduta dos sonhadores (FERRÉS, 1998, p. 43).

Para Ferrés (1998, p. 44) a emoção produz excitação/ativação, alteração da respiração,

modificação da pressão sanguínea, alteração nos batimentos cardíacos, modificação na

condutividade elétrica da pele, alteração da tensão muscular. Sem consciência deste peso

emocional, é impossível compreender o comportamento humano, em se tratando da televisão,

menos ainda o do telespectador, ou seja, tende-se a pensar que os telespectadores são

influenciados fundamentalmente pela razão, quando na realidade são influenciados

primordialmente pelas emoções. Portanto, de acordo com Ferrés (1998) a televisão pode ter

caráter libertador à medida que a postura crítica se sobressai à emoção:

Mas a televisão será instrumento de alienação somente quando as emoções e

sensações impedirem à pessoa encontrar-se a si mesma na reflexão e na consciência crítica. Mas a televisão pode ser um instrumento libertador. Será

isso quando for uma experiência integradora, quando unir os opostos, quando

resolver a dualidade radical que é pessoa. Quando permitir que a racionalidade e a emotividade interajam de maneira lúcida. Será uma

experiência libertadora quando unir matéria e espírito, consciente e inconsciente, conceito e sentimento. Quando a vivência emocional não

impeça o exercício da racionalidade, nem vice-versa. Quando o acesso ao

mais profundo do inconsciente não impeça o despertar da consciência, nem vice-versa. Será isso quando as mensagens [...] forem vividas de maneira

lúcida, consciente e integradora (FERRÉS, 1998, p. 275).

149 Comunicação persuasiva transmite informações motivadoras capazes de mobilizar as condutas e as

crenças numa determinada direção.

296

Portanto, para Ferrés (1998, p. 275) as imagens televisivas possuem a capacidade de

ativar as emoções e apontar a orientação que é preciso dar à energia, dependendo da

receptividade por parte do receptor, a imagens poderão orientar a conduta ou marcar uma

direção para a ação através da comunicação persuasiva transmite informações motivadoras

capazes de mobilizar as condutas e as crenças numa determinada direção. Todavia, Ferrés

(1998, p. 246) alerta que as mensagens televisivas sedutoras só terão eficácia mediante a

participação emotiva do receptor. Os efeitos da televisão dependem tanto do que a televisão

oferece ao telespectador como do que o telespectador oferece à televisão. Ou seja, se o modelo

não atrair o telespectador a comunicação não será persuasiva, caso contrário, o modelo atingirá

seu objetivo. Daí a importância de mediar a relação das crianças com as mídias no sentido de

estimular o senso crítico e a postura reflexiva em relação aos conteúdos que assiste, tal

responsabilidade está diretamente associada ao contexto escolar.

En la misma línea, habrá que considerar insuficiente una educación mediática que no atienda a la dimensión emocional de las personas que

interaccionan con las pantallas, porque hoy sabemos que la razón – y, en

consecuencia, el espíritu crítico– es totalmente vulnerable ante las acometidas de unas emociones que sean de signo contrario. La competência

mediática exige, pues, el desarrollo de una capacidad crítica respecto al propio espíritu crítico, porque, como consecuencia del predominio del

cerebro emocional sobre el racional, resulta más ajustado a la realidad

referirse al ser humano como un animal racionalizador que como un animal racional (FERRÉS e PISCITELLI, 2012, p. 78-79).

Neste, sentido, a escola deve reconhecer o poder emocional que as mídias geram no

indivíduo e pensar em estratégias de resistência, interagir com as culturas visuais e midiáticas

digitais sem cobrança educativa, mas a partir de sua adequação à proposta pedagógica em

questão, integrando-as aos processos educativos em consonância com as abordagens

curriculares educacionais, isto é, interagir com as mídias de forma problematizadora,

desafiadora, agregadora de valores e produtora de culturas e indivíduos pensantes que

constroem conhecimento de forma autônoma, crítica e colaborativa. Para tanto, as concepções

críticas de educação na relação das crianças com as culturas visuais no contexto da Educação

Infantil constituem elementos prioritários para reflexão acerca do que se espera do sistema

educacional contemporâneo.

Ao mesmo tempo, faz-se necessário a consolidação teórico-científica de estudos e

pesquisas que contemplem a infância como uma categoria social que possui suas próprias

características e representações, configuradas e reconfiguradas em culturas complexas,

297

múltiplas e em constante transformação. Isto representa um avanço e uma nova maneira de

conceber novas formas de aprendizagens na infância considerando as características peculiares

da sociedade deste novo século.

Dando continuidade às representações imagéticas de crianças e infâncias na

contemporaneidade, selecionei algumas imagens de propagandas publicitárias para tentar,

minimamente, demonstrar o poder de persuasão e uso abusivo da publicidade direcionada à

infância. O comercial dos “bichinhos da Parmalat” 150, personagens da campanha publicitária

“Mamíferos”, criada pela agência DM9 em 1995 foi muito veiculado na indústria cultural

durante mais de uma década, ganhando novas versões a cada período. A intenção da agência de

publicidade era de incentivar o consumo de leite da marca Parmalat, ressaltando os benefícios

desse consumo para o crescimento e desenvolvimento saudável das crianças, para isso,

utilizaram uma forte estimulação visual através da vinculação de imagens de crianças e animais

mamíferos.

As crianças vestiam roupas de pelúcia que eram fantasias de filhotes de animais

mamíferos, algumas crianças seguravam a caixa de leite, outras tomavam leite e outras faziam

alguns gestos e movimentos engraçados. Essa publicidade teve uma grande repercussão cultural

e conquistou não só crianças como adultos. Lembro-me que aos 19 anos, eu e as mesmas

colegas de infância, em um passeio ao shopping tivemos a oportunidade de vestir as roupinhas

dos “bichinhos Parmalat” e fazer o registro fotográfico do mesmo, que ainda hoje é motivo de

muitas risadas entre as mesmas amigas da época, cerca de quase 20 anos depois.

Portanto, a visualidade mais significativa do comercial não era a composição e os

benefícios do leite, mas sim, o estímulo visual que a propaganda impulsionava em relação aos

“mamíferos da Parmalat”, que logo a indústria cultural lançou para comercialização, criando

bichinhos de pelúcia referentes aos apresentados na propaganda, tornando-os economicamente

tão promissores quanto o leite. De acordo com o blog Mundo das Marcas151, que historiciza

150 QRcode 58: Propaganda Comercial: “Porque nós somos mamíferos!” em duas versões, a original com

crianças pequenas (1995) e a última versão com as mesmas crianças crescidas, após 12 anos de campanha.

151 QRcode 59: Blog Mundo das Marcas.

298

1.754 marcas, a promoção “Mamíferos da Parmalat” em sua primeira fase movimentou 1.2

milhões de unidades de 12 tipos de filhotes, que se esgotaram em 2 meses de promoção. O

sucesso da campanha foi tão grande que permaneceu por 3 anos, chegando a marca de 15

milhões de mamíferos de pelúcia em 21 tipos de animais diferentes.

O impacto da imagem marcou nossa geração, mas não só pelo consumo do leite, e sim,

pelos animais de pelúcia que representavam a marca que eram vendidos ou trocados por

embalagens durante campanhas promocionais, além disso, as propagandas de TV eram feitas

com crianças vestidas de bichinhos, embaladas com lindos musicais e no final da apresentação

sempre havia uma criança que perguntava: “tomou?”. O poder imagético da propaganda

comercial é indescritível, são inúmeras memórias que surgem quando remeto aos comerciais

de TV, como Chocolate Batom-garoto; Neston; Todynho; Margarina Delícia; Coca-cola; entre

muitos outros.

Para Giroux (1995, p. 49), a cultura infantil na atualidade se caracteriza como “[...] uma

esfera onde o entretenimento, a defesa de ideias políticas e o prazer se encontram para construir

concepções do que significa ser criança”. O entretenimento constituído por produções culturais,

promovido por políticas que envolvem aspectos econômicos direcionam o modo de ser da

infância contemporânea, Adorno (2009) ressalta a efemeridade dos conteúdos dispostos na

indústria cultural não deixam escolha aos consumidores:

Não obstante, a indústria cultural permanece a indústria do divertimento. O

seu poder sobre os consumidores é mediado pela diversão que, afinal, é

eliminada não por um mero diktat, mas sim pela hostilidade, inerente ao próprio princípio do divertimento, diante de tudo que poderia ser mais do que

divertimento (ADORNO, 2009, p. 18).

As representações acerca das propagandas publicitárias midiáticas apresentam

contextos diversos, mas no geral, demonstram o lado fantástico e benéfico dos produtos,

gerando a ilusão da felicidade e do bem-estar, consequentemente o desejo de possuir.

Nesse cenário da mediação cultural proporcionado pela mídia a imagem

aparece como ímpeto de sua singularidade, submetendo a população local e global a um regime de verdade enquadrado na visão e na particularidade da

coisa vista. Nessa ordem epistêmica cultural, ela não somente confere

visibilidade aos produtos e as concepções de mundo dominantes, a fim de que devam ser consumidos, assumidos e experimentados no solo do cotidiano,

mas também atribui visualidade ao que se que circular, sugerindo e

imprimindo um modo de reticular e espetacular de conhecer as coisas, o mundo, as pessoas, os lugares, os acontecimentos, enfim, a vida. A mídia

assume, portanto, o ver como saber, instalando e consolidando uma espécie de epistemologia: a da visualidade (CARLOS e FAHEINA, 2010, p.30).

299

A publicidade infantil “A vida em sua mão” 152 da marca Claro, empresa no ramo de

telefonia celular, mostra-se abusiva, tendo em vista a estimulação precoce à erotização e a forte

tendência à reprodução de comportamentos machistas. A narrativa do comercial apresenta um

casal de namorados, onde a menina aparentemente de 7 anos reclama porque o menino,

aparentemente da mesma idade, passou o dia todo sem ligar para ela, e ele sutilmente, mostra

o dedo “machucado” como desculpa da falta de atenção, o menino consegue convencer a

menina através de uma mentira como estratégia emocional, dada a sensibilidade geralmente

atribuída ao sexo feminino, como frágil e passível de manipulação.

[...] a televisão destrói a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras, todas relacionadas à sua acessibilidade indiferenciada: primeiro,

porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não

faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento, e terceiro porque não segrega seu público [...]. O novo ambiente midiático que está

surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. Dadas as condições que acabo de descrever, a mídia eletrônica acha impossível reter

quaisquer segredos. Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa

como infância (POSTMAN, 1999, p. 94).

Segundo Postman (1999, p. 94) estamos “biologicamente equipados” para ver e

interpretar imagens e linguagens. A publicidade televisiva costuma utilizar a imagem da criança

para comover o público, é uma estratégia muito usada para persuadir o consumo, Becker (2010,

p. 97) ressalta que “o uso de crianças muito pequenas, exibindo um discurso pernóstico e

imitando posturas adultas costuma encantar o público”.

O comercial em questão transmite a ideia de que as mulheres são ingênuas e facilmente

manipuladas e os homens espertos por serem desonestos e conseguirem driblar situações do

cotidiano através de mentiras e apelos afetivos. Esse tipo de mensagem que permeia o senso

comum pode ser entendido a partir do conceito de violência simbólica de Pierre Bourdieu

(2012, p. 45) em que os comportamentos opostos engendrados para o masculino e o feminino

se tornam elementos fundantes das desigualdades de gênero. Se esse tipo de comportamento é

152 QRcode 60: propaganda comercial da Claro “A vida em sua mão”, veiculada em 2012 no canal de

Mariano Bolado no YouTube (2012).

300

estimulado e reproduzido na infância, provavelmente, se estenderá à vida adulta.

Anúncios como este têm sido muito criticados por órgãos de defesa e proteção dos

direitos da criança e do adolescente, como o Instituto Alana, uma organização sem fins

lucrativos que procura fomentar e favorecer assistência social, educação, cultura, proteção e

amparo da população, especialmente a infância153.

O Instituto Alana atua na criação de políticas públicas pró-infância que visa “[...]

ampliar a conscientização da população sobre o consumismo na infância e defende a regulação

da comunicação mercadológica voltada às crianças, para garantir a proteção de seus direitos

nas relações de consumo.”. O Instituto Alana defende que a erotização precoce compromete a

formação da criança:

Ao ingressar prematuramente no mundo adulto, com o corpo e a mente ainda

em formação, a criança, ou mesmo o pré-adolescente, não tem estrutura física

e psicológica formada para defender seus direitos, controlar seus impulsos, reivindicar respeito e, muito menos, identificar em si um desejo genuíno de

relacionar-se sexualmente. Portanto, ao induzir as crianças a desejarem o que

nem sabem se desejariam e a adotarem valores distorcidos e artificiais, a publicidade atropela a infância [...] (ALANA, 2009, p. 29).

A propaganda da sandália do Homem Aranha “Nessa aventura o herói é você” 154,

produzida pela marca de calçados Grendene, a criança sobe escadas, anda em becos escuros,

enfrenta perigos como se fosse um super-herói. Esses tipos de estímulos põem em risco a

integridade física da criança por se tratar de situações suscetíveis de reprodução que poderão

causar acidentes.

De acordo com Momo (2010) a cultura televisiva reflete a efemeridade dos tempos

atuais, caracterizados pela velocidade e pelo contínuo estado de ansiedade e movimento:

[...] a linguagem televisiva, os significados, ícones infantis e artefatos que ela

153 QRcode 61: Instituto Alana (on-line).

154 QRcode 62: Propaganda Comercial da Grendene: “Nessa aventura o herói é você” (2010), veiculada em

2012 no canal WMcCann BR no YouTube. (2012).

301

põe em circulação mudam o tempo todo, pois se caracterizam pela

efemeridade, o que faz que as crianças também mudem constantemente o jeito de falar, os personagens que imitam, os assuntos e os desejos que expressam,

os interesses que têm, os artefatos que portam, as pessoas às quais se vinculam

e o próprio corpo (MOMO, 2010, p. 975).

Dentre as lutas em defesa da criança, a mais recente resolução aprovada foi a do

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda155, uma instância

federal responsável pela formulação, deliberação e controle das políticas públicas para infância

e adolescência, criada pela Lei nº 8.242 de 12 de outubro de 1991, tendo como uma de suas

principais funções: “apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e

do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou

violação dos mesmos” (BRASIL, CONANDA/Lei nº 8.242, Art. 2/VIII, 2014).

O Conanda aprovou em 4 de março de 2014 a resolução nº 163/2014 que dispõe sobre

a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e

ao adolescente, importante destacar que esta resolução considera abusiva a prática do

direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com o intuito de

influenciá-la ao consumo utilizando-se dos seguintes artifícios:

I-linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; II-trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;

III-representação de criança;

IV-pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; V-personagens ou apresentadores infantis;

VI-desenho animado ou de animação;

VII-bonecos ou similares; VIII-promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou

com apelos ao público infantil; e IX-promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil

(BRASIL, CONANDA/Art. 2º, 2014).

O Art. 2. § 1º destaca que esta resolução se aplica a quaisquer meios de comunicação,

ou seja, anúncios impressos, comerciais televisivos, páginas na Internet, embalagens,

promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição dos produtos

155 QRcode 63: Conanda (on-line).

302

nos pontos de vendas, que tenha por objetivo chamar a atenção da criança. A institucionalização

desta resolução segue e direciona à publicidade e à comunicação mercadológica os seguintes

princípios:

I - respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social,

às instituições e símbolos nacionais; IV - não favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação

de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, racial, social, política,

religiosa ou de nacionalidade; VI - não induzir, favorecer, enaltecer ou estimular de qualquer forma

atividades ilegais.

VII - não induzir, de forma alguma, a qualquer espécie de violência; VIII - a qualquer forma de degradação do meio ambiente; e

IX - primar por uma apresentação verdadeira do produto ou serviço oferecido, esclarecendo sobre suas características e funcionamento, considerando

especialmente as características peculiares do público-alvo a que se destina

(BRASIL, CONANDA/Art. 3º, 2014).

A aprovação desta resolução é alvo de discordâncias, principalmente, em relação aos

produtores/fabricantes, empresas publicitárias e órgãos comerciais brasileiros, tendo em vista

que o CONANDA não possui legitimidade constitucional para legislar e impor a resolução às

famílias o ao mercado publicitário. Por se tratar de uma resolução recente, o debate ainda se

apresenta com poucos resultados, o que torna a questão ainda mais difícil de aplicação jurídica,

tanto em relação às proibições quanto às punições.

Em relação à cultura midiática no âmbito da escola, pesquisa aponta que as imagens

reproduzem os mesmos personagens que estão presentes na mídia televisiva, tanto nos desenhos

animados quanto nas propagandas publicitárias “[...] o que vai para a escola é a “onda”, a moda

do momento, em um mundo que o que conta é o presente. São os artefatos que voga na mídia

do momento presente que aparecem nas escolas” (MOMO, 2012, p. 35).

Nessa perspectiva, a criança ao assistir as propagandas publicitárias pode ou não sentir-

se atraídas pelas imagens e mensagens transmitidas por essas imagens, dependendo de cada

representação que o objeto/imagem transmite naquele determinado contexto e naquela

determinada relação estabelecida pela própria criança com o objeto/imagem que está sendo

transmitido. Isto significa afirmar que a criança decide suas preferências e toma suas decisões,

porém, no campo da aquisição do produto em questão, entra a mediação da família, que neste

caso, dependendo de suas condições econômicas e culturais, decidirá ou não pela compra do

produto, é um direito do consumidor adulto (CABRAL e VASCONCELOS, 2015, p.313).

A indústria cultural e midiática abrange os vários públicos sociais e através de suas

mensagens publicitárias exerce forte influência no cotidiano e no consumo da sociedade, de

303

acordo com Adorno (2009), a indústria cultural faz uso de estratégias bem elaboradas que

procuram manipular o público através da técnica e do manejo psicológico da imagem.

Técnica e economicamente, propaganda e Indústria cultural mostram‐se

fundidas. Numa e noutra a mesma coisa aparece em lugares inumeráveis, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo

slogan da propaganda. Numa e noutra, sob o imperativo da eficiência, a

técnica se toma psicotécnica, técnica do manejo dos homens. Numa e noutra valem as formas do surpreendente e, todavia, familiar, do leve e contudo

incisivo, do especializado e entretanto simples; trata‐se sempre de subjuga!' o

cliente, representado como distraído ou relutante (ADORNO, 2009, p. 41).

Neste contexto, a infância tornou-se um dos principais focos de marketing e propaganda

de produtos e serviços variados. Porém, as crianças precisam estar protegidas do poder abusivo

das propagandas:

[...] a forte presença da propaganda comercial, no cotidiano da população,

submete o indivíduo aos ditames da linguagem persuasiva da publicidade

comercial, que articula recursos visuais, verbais, sonoros e técnicos a uma rede de significações associadas, sobretudo, ao mito da felicidade e da igualdade,

a qual se utiliza dos recursos mais sofisticados da tecnologia das técnicas de

produção, que seleciona o modo mais eficiente de combinar o roteiro, a gravação e a edição aos desejos do telespectador, tendo em vista o propósito

de gerar a necessidade de consumo de produtos, serviços, ideias, comportamentos e valores (CARLOS, 2010, p. 18-19).

Os órgãos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes devem se mostrar

presentes, acompanhando todos os anúncios voltados a este público. Urge a necessidade da

fiscalização, mas não com a proibição da veiculação, as propagandas também podem beneficiar

e favorecer informações importantes para as crianças, estimular seu desenvolvimento cognitivo,

linguístico e crítico-reflexivo.

Persuadindo e seduzindo, o telespectador assume a posição de comprador e

consumidor convicto e feliz. Nesse contexto, a atitude de comprar e de consumir não é fortuita, casual, mas intencional e deliberada. A tomada de

consciência e a difusão dos processos e dos mecanismos da linguagem

comercial da publicidade, por meio da escola, desenvolveriam uma postura crítica frente à ‘avalancha de informações imagéticas’ (CARLOS, 2010, p. 19,

grifo do autor).

A comunicação mercadológica é extremamente difundida através de vários suportes,

sobretudo, quando pensamos na autonomia e capacidade de produção midiática pelo próprio

sujeito que utiliza através da Internet. Os sujeitos tornam-se “atores”, “protagonistas”

304

produtores de inúmeras e incontroláveis informações que circulam na mídia através de redes

sociais e outros. Nesse sentido, é preciso uma compreensão mais política, conceptual e

culturalmente atualizada às demandas e peculiaridades de infâncias que se constroem no seio

de uma sociedade midiática e hiperconectada, pois,

[...] estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e

de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos

gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o

capitalismo de hiperconsumo (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 13).

É preciso refletir sobre a relação da publicidade direcionada ao público infantil para não

ruirmos no erro das generalizações e rótulos. Portanto, muito ainda se têm a discutir a respeito

dessa recente Resolução que, atualmente, é comemorada por uns e questionada por outros. No

entanto, algo é inquestionável, estou a problematizar apenas a ponta do iceberg, visto que, as

incertezas quanto ao futuro da indústria publicitária denotam caminhos ainda pouco

conhecidos, os quais, sem dúvida, darão condições de suscitar profícuas discussões. Caminho

assim, num brainstorming de imagens visuais reais e virtuais que me envolve e direciona a

entender as concepções de crianças e infâncias veiculadas na Cultura Visual na

contemporaneidade.

4.2 NegAtivos em evidência: adultização e erotização da infância

As atuais práticas de consumo infantil, guiadas por questões

sociais – expressas na mídia - que atribuem a criança um papel

cada vez mais parecido com o dos adultos, refletem esta nova

tipificação da criança: mais adulta, cheia de compromissos,

responsabilidades, com acesso ilimitado a conteúdos e

informações e muitas vezes erotizada (WEBER, B. e

FRANCISCO-MAFFEZZOLLI, 2016, p. 12).

É claro que as crianças podem resistir, ou recusar-se a

reconhecerem-se as definições adultas – e nesse sentido o

poder adulto está longe de ser absoluto ou incontestável. No

entanto, seu espaço de resistência é principalmente o das

relações interpessoais, na ‘micropolítica’ da família ou da sala

305

de aula. Além disso, as crianças podem ser cúmplices ativas na

manutenção das definições do que é ‘adulto’ ou ‘infantil’, ainda

que por omissão: as diferenças de idade, e os significados a elas

ligados, são um dos principais campos onde as relações de

poder são encenadas, não apenas entre adultos e crianças, mas

também entre as próprias crianças (BUCKINGHAM, 2006, p.

14).

As epígrafes dão o tom para a discussão que segue. Refiro-me aqui aos riscos imanentes

à infância na contemporaneidade que emergem das reconfigurações sociais, culturais e

tecnológicas da 2ª modernidade (LASH, 1997; BECK, 1999; SARMENTO, 2004) ou mundo

hipermoderno (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 32) em tempos pós-coloniais (BHABHA,

2013) e decorrentes de processos macroestruturais como a globalização (SANTOS, 2002), o

hipercapitalismo (LIPOVETSKY, 2004) e a cibercultura (LEVY, 1999). Essa complexa e

emaranhada teia de significados (GEERTZ, 1989), traça uma nova cartografia para a infância

repercutindo diretamente na constituição de suas culturas. O incomensurável ritmo com que as

coisas acontecem na atualidade impacta diretamente nas relações humanas de um modo geral,

e quando se trata da realidade da criança, as mudanças tornam-se ainda mais perceptíveis, me

atreveria a sugerir que, as crianças têm muito mais capacidade para lidar com o “novo” do que

nós, os adultos.

No entanto, o “novo” que chega para os adultos através dos variados artefatos culturais

dessa reconfiguração social, é o mesmo “novo” que chega para as crianças nos sem-limites da

imagem, a diferença está justamente na forma com que essa receptividade acontece. Daí a

importância de tencionar o impacto das novas mídias no contexto de uma análise crítica da

cultura visual na tentativa de criar formas de resistência e enfrentamento aos problemas que,

evidentemente, surgem com esse “novo” que chega. Desse modo, o “novo” se materializa no

trabalho fronteiriço da cultura, nos espaços contingenciais dos “entre-lugares” da mídia no

contexto da infância, consequentemente, esses ‘‘entre-lugares” tornam-se espaços de

“elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos

de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia

de sociedade” (BHABHA, 2013, p. 20).

De acordo com Felipe e Guizzo (2003, p. 120) as significativas transformações das

últimas décadas e o acesso infantil a informações pertencente ao universo adulto, especialmente

dispostas nas novas tecnologias de comunicação de massa e Internet, “têm afetado

drasticamente as vivências infantis”. Nesta óptica, penso o “novo” a partir das multiplicidades

306

visuais que circulam nas cibercultura, sobretudo, as imagens que alimentam as novas redes

sociais. E são elas, as imagens, que serão o palco para discussão acerca da protagonista dessa

história (que se pretende narrativa) que é a criança. Desse modo, discuto as realidades

magicizadas nas imagens técnicas fixas e em movimento que remetem às concepções de

crianças e infâncias que se constituem e são constituídas pela a ação da criança em constante

relação com o universo das visualidades que circulam nos “entre” das culturas infantis e adultas.

Esta conexão entre imagem-cultura-infância-sociedade é fundamental para compreender os

dilemas e as contradições que permeiam as discussões sobre fronteiras culturais entre o mundo

adulto e o mundo da criança que precisam ser refletidos (ainda mais) nos espaços sociais,

políticos e científicos, pois, implicam diretamente nas estruturas e agenciamentos da infância

na contemporaneidade.

As linguagens visuais onipresentes magicizam a vida, sobretudo, nas redes midiáticas

digitais em suas infinitas possibilidades de simular a realidade, desse modo, a imagem têm sido

presença e influência constante para a construção das culturas infantis. As crianças além de

consumirem imagens, são potencialmente produtoras delas, consequentemente, ora as imagens

magicizam as culturas infantis e ora as culturas infantis são magicizadas em imagens.

Por outro lado, a medida que a vida da criança passou a ser publicitada na mídia, a

fotografia de criança tornou-se um fenômeno sugestivo, o mercado publicitário logo se

apropriou da infância como objeto de desejo e de convencimento do público consumidor, assim,

a indústria cultural passou a investir em imagens que adultizam crianças e infantilizam adultos

(POSTMAN, 1999), nesse paradoxo, as fronteiras culturais vão sendo interpenetradas

constantemente, tornando-se um grande desafio tentar perceber o que é próprio de cada geração.

Em meio a este paradoxo, surgem dois problemas que considero indispensáveis para pensar a

imagem das crianças e infâncias na contemporaneidade: a adultização e a erotização infantil.

Como visto anteriormente, a questão da adultização infantil não é um debate recente,

desde a concepção de “homúnculo” (ARIÈS, 1981), à ideia de desaparecimento (POSTMAN,

1999) e de “eliminação” da infância (BAUDRILLARD, 1997) este tem sido um tema bastante

recorrente na academia. O estudo recente de Weber, B. e Francisco-Maffezzolli (2016, p. 12)

admite o processo de adultização infantil na relação de apropriação de “comportamentos,

atitudes, hábitos, formas de lazer, cuidados, responsabilidades e ações típicas de uma vida de

adulto [...] fora de um contexto de brincadeira”, para as autoras, estas situações podem ser

entendidas como o incentivo à inserção extrema da criança à questões não relacionadas à

infância, ou seja,

307

Crianças com muitos compromissos e responsabilidades, assim como crianças

preocupadas com cuidados com o corpo e aparência são um reflexo destes estímulos. Não caracteriza a adultização brincar de ser adulto, mas, sim,

quando a brincadeira passa a ser uma preocupação ou necessidade (WEBER,

B. e FRANCISCO-MAFFEZZOLLI, 2016, p. 12).

Ao longo deste texto, abordo tais apropriações a partir de imagens de crianças em

diferentes perspectivas, portanto, retomando a concepção de crianças e infâncias na Cultura

Visual, discuto na sequência, as imagens de Mc Melody (apresentada no prólogo desse ensaio)

que foram noticiadas através de informações pessoais e “profissionais” na mídia. No conjunto

de cenas, é possível perceber que a criança exibe seu corpo de forma sensual e pejorativa, exibe

dinheiro como troféu e apresenta expressões faciais que tentam esnobar quem a vê. Como já

destaquei, trata-se de uma criança, cantora de 10 anos, que atualmente, exerce forte influência

nas redes sociais. Nitidamente, suas imagens demonstram um comportamento de adulto, com

forte tendência abusiva. Desse modo, discorro sobre 6 imagens retiradas de sites jornalísticos e

de entretenimento, e também publicadas por “ela”, em sua página oficial do Facebook.

A primeira fotografia foi retirada da matéria “Sexualização de funkeiros mirins é

investigada pelo Ministério Público” postada em 24 de abril de 2015 no Diário do Nordeste

(on-line) 156. A imagem em high key apresenta Mc Melody posando com as mãos cheias de

dinheiro. A cena se passa em um cenário preparado para a realização do show de Mc Belinho

(pai), ao fundo da cena, dá para visualizar um painel com alguns patrocinadores do evento.

Enquadrada ao centro da fotografia, a criança usa roupas sensuais, faz pose ousada e segura

maços de dinheiro em cada uma de suas mãos, ela suspende a mão esquerda na direção do rosto,

chegando quase a encostar o dinheiro em sua pele, ao mesmo tempo, a cantora faz um “bico”

com a boca para insinuar certo ar de deboche, o que passou a ser uma de suas marcas registradas.

Esse gesto faz referência a outra funkeira adulta, a Valeska Popozuda, que lançou a música

“beijinho no ombro” e se tornou uma “febre” nas fotografias de “selfie”. Melody usa um batom

pink e tem as sobrancelhas delineadas. Exibe um enorme colar de ouro com um pingente em

forma de diamante.

156 QRcode 64: Diário do Nordeste. Mc Melody.

308

A segunda imagem foi retirada do Facebook oficial da cantora157, que é supervisionado

pelo pai. Em high key a fotografia retrata Mc Melody segurando uma mala cheia de dinheiro.

Provavelmente, registrada no mesmo evento da imagem anterior. Dessa vez, ela se veste com

uma blusa composta, continua com o colar de ouro e usa o mesmo batom cor-de-rosa para fazer

seu famoso “biquinho”. A postagem tem a seguinte descrição: “Essa foto eu dedico a todas as

recalcadas”158 fazendo alusão ao sentimento de superioridade em relação a quem não simpatiza

com ela, quem faz críticas sobre seu comportamento de “adulta” em comentários junto às suas

postagens. Em low key, são cenas fortes em que a ganância pelo poder e pelo dinheiro supera a

condição de criança e viola sua dignidade humana para adquirir formas adultizadas de

comportamento que traduzem as contradições de um sistema capitalista burguês e

inescrupuloso, onde o que importa é o “ter” e o “poder”.

Diante de tais imagens é possível afirmar que a infância de Melody se constrói sob sérios

apelos capitalistas e eróticos, que tendencionam uma sociedade produtora de cultura narcisistas

(LASCH, 1997), consumistas (MOMO, 2010) e performáticas (GOFFMAN, 1985),

relacionado à um padrão de beleza exaltado pela mídia e desejado pela maioria das pessoas que

se exibem em redes sociais com a intenção de denotar expressões de felicidade, superioridade

e completude, pessoas que buscam através de suas iconografias informar ao mundo virtual um

estado permanente de beleza, de desejos voláteis consumistas e de superioridade, gerando

assim, o que chamo de cultura do exibicionismo, entendida aqui como a supervalorização do

“eu” (self) em detrimento do outro. É um comportamento egocêntrico que tenta ao máximo

expor partes do próprio corpo em redes sociais, sobretudo, de forma erótica e sensual, através

de fotografias e vídeos; procura supervalorizar a aquisição de objetos com o intuito de

demonstrar poder, luxo e beleza; e além disso, procura demonstrar exaustivamente, o que faz,

onde e com quem está, o que come, o que veste, entre outras ações do seu próprio cotidiano. É

uma busca incansável pela publicização de sua autoimagem narcisista, são autorretratos que

anunciam uma identidade, no entanto,

A complexidade desses autorretratos envolve várias questões que passam

pelas relações entre identidade e corpo, público e privado, consumo e imagem,

157 QRcode 65: Página oficial de Mc Melody no Facebook.

158 Recalcada é um termo utilizado para ressaltar a inveja. No caso de Mc Melody, sua concepção de

recalcada refere-se àquelas que têm inveja dela, do que ela faz e do que ela tem.

309

culto e imagem, controle e estimulação, realidade e simulacro, máscara e

performance. Tais relações são permeadas por uma narrativa que tem como protagonista um Eu – construído, performático, objetificado. O selfie auxilia

na composição de uma identidade, portanto, seu discurso é atravessado por

narrativas que dão sentido e expressão às relações de consumo em nossa sociedade (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 38).

A terceira cena é composta por três fotografias em sequência em que Mc Melody exibe

seu corpo em gestos sensuais. A imagem demonstra a mesma tendência capitalista do “ter”

como “poder” com apelo à erotização infantil. Trata-se de uma sequência fotográfica retirada

da matéria “MC Melody, de 8 anos, causa polêmica e pai defende: ‘É só porque ela canta

funk’”159 publicada pelo site extra. globo. Em high key A cena registra Mc Melody em três

perspectivas, sob o mesmo enquadramento da objetiva. A funkeira veste um short curtinho cor-

de-rosa e um top parecido com biquíni de praia, também cor-de-rosa. Usa outro colar de ouro

com a mesma versão do pingente de diamante. A cena é realizada em um ambiente doméstico

(provavelmente em sua casa), pois ao fundo visualiza-se um guarda-roupa.

Na primeira posição, ela suspende os cabelos com seus braços de modo que todo seu

cumprimento desce até a linha da cintura em seu lado esquerdo e também faz uma leve

inclinação com o quadril para tornar a pose mais sensual. Na segunda posição, segura com a

mão esquerda os cabelos no alto, jogando-os dessa vez para o ombro direito. Tenta fazer uma

“piscadela” de olho para também indicar sensualidade. Na terceira posição, ela faz um

movimento específico do funk, inclina seu corpo para o lado esquerdo e apoia seu braço

esquerdo na perna esquerda. Com a mão direita faz um gesto indicando algum movimento. Usa

óculos de sol espelhado que é marca registrada do funk, assim como o colar de ouro. E com a

boca faz um “biquinho”.

Em low key essas cenas tipificam uma cultura que esbarra em muitas questões

relacionadas à infância contemporânea como o problema do consumo, da adultização e da

erotização infantil, entre outros. São imagens que demonstram um comportamento de adulto

que agride diretamente as noções de criança, seus limites e suas especificidades. Segundo Silva,

C. (2016, p. 29) são inúmeras as tentativas das crianças em “enquadrarem o seu corpo,

explorando o seu lado sexy em um perfil adulto, marcado pela quebra de fronteiras entre

159 QRcode 66: site extra.globo. Mc Melody.

310

meninas/meninos e mulheres/homens”, esse conjunto de práticas constituem e regulam as

identidades infantis erotizadas. Conforme ressalta Felipe e Guizzo (2003, p. 128), essas práticas

têm produzido efeitos na construção de identidades sexuais das crianças, principalmente, das

meninas:

Os corpos vêm sendo instigados a uma crescente erotização, amplamente

veiculada através da TV, do cinema, da música, em jornais, revistas, propagandas, outdoors, e, mais recentemente, com o uso da Internet, tem sido

possível vivenciar novas modalidades de exploração dos corpos e da sexualidade (FELIPE e GUIZZO, 2003, p.128).

O recente trabalho de Silva, C. (2016) intitulado “O Consumo cultural das músicas pop

com conteúdos eróticos: constituindo identidades infantis na contemporaneidade” 160 trata das

questões relacionadas à constituição de uma determinada identidade infantil – a identidade

infantil erotizada – a partir do consumo cultural das músicas pop com conteúdos eróticos e suas

manifestações em uma escola de educação infantil do Natal-RN. Para tanto, a autora analisa os

fragmentos das letras extraídas das músicas pop com conteúdos eróticos, evidenciando assim,

que a contemporaneidade marcada pelos efeitos das músicas pop com conteúdos eróticos,

produzem modos e práticas corporais que contribuem para a formação de um corpo sensual e

erotizado, com isso, estimulam a produção de modos “adultizados” de ser criança, contribuindo

em potencial, para a formação de identidades infantis erotizadas.

Um dos discursos recorrentes nessas músicas é a ênfase no apelativo que ditam

para pessoas: Sejam sensuais! Tal apelativo impulsiona uma precoce erotização das crianças, expressa através dos insinuantes movimentos

corporais utilizados para dançar as músicas pop com conteúdos eróticos. Ao

consumir essas músicas as crianças aprendem qual atitude se espera delas, isto é, espera-se uma atitude sensual/sexy e erótica, tornando-se menina-mulher e

menino-homem cada vez mais precocemente (SILVA, C., 2016, p. 91).

De acordo com Silva, C. (2016, p. 101) as identidades infantis erotizadas constituem e

são constituídas pelas formas com que os sujeitos infantis se “identificam com os discursos das

músicas pop com conteúdos eróticos, desenvolvendo posições de sujeito marcadas pela

160 QRcode 67: Silva, C. (2016).

311

sensualidade e erotização” e consequentemente, tal identificação estimula o exercício da

sexualidade precoce.

As imagens narradas na trajetória da Mc Melody fazem parte do cotidiano de milhões

de crianças independentes de classe, gênero, etnia. Neste recorte reflexivo, retomei alguns

apontamentos que trazem visões contundentes sobre a condição da infância contemporânea,

mas, esses elementos precisam ser questionados e problematizados diariamente em nossas

práticas cotidianas, seja na escola ou em casa, pois, por trás dos apelos da suposta “inocência”

da criança que erotiza, se ocultam mensagens que denigrem, condicionam e mantém o domínio

ideológico de um corpo que está sendo preparado para a cobiça e para o consumo.

Atualmente, Mc Melody tem 10 anos e sua carreira seguiu para outras tendências da

música e da produção de sua autoimagem, uma decisão tomada pelo pai da cantora Mc Belinho,

após ter sido investigado pelo Ministério Público de São Paulo acusado de "Violação ao direito

ao respeito e à dignidade de crianças/adolescentes" como já referido no prólogo do capítulo em

questão. Segundo relatos do pai da cantora, a intenção reformular as músicas e o visual da

garota evitando comportamentos sensualizados. No entanto, alguns de seus trabalhos ainda

permanecem com forte teor sensual, tendo em vista que a cantora passou a reproduzir clipes

musicais de artistas que estão no auge da mídia como o Mc G15 161, A Vingadora162 e Anitta163.

Melody sempre declarou ser fã de Anitta e seu comportamento assemelha-se

consideravelmente, com o da cantora pop.

Momo (2007, p. 327) ressalta que a cultura da mídia e do consumo atribuem formas às

crianças que são “[...] constantemente modificadas, substituídas, datadas, descartadas,

potencializadas, reinventadas, ressignificadas [...]”. Constituindo o que a autora denominou de

161 QRcode 68: Clipe “Deu Onda versão Falsete”. YouTube/Melody oficial.

162 QRcode 69: Clipe “Metralhadora – Versão Falsete - Melody”. YouTube/Melody oficial.

163 QRcode 70: Vídeo “Bang – Annita versão Melody. YouTube/Pânico oficial

312

“cultura do excesso” e da volatilidade, na qual acresço a cultura do exibicionismo. Com as

pressões visuais e as tendências culturais que estimulam a ganância, o consumo, a riqueza, o

corpo perfeito, enfim, a beleza, a vaidade saiu do controle e passou a ser palco de verdadeiros

espetáculos de exibição e desejo, tal é a intenção do selfie e dos inúmeros autorretratos de

Melody, ser objeto do desejo e da cobiça do outro, induzida pelo ambiente ideológico da

imagem performática na qual ela é apenas uma máscara, um fantoche.

O selfie protagoniza uma narrativa que traduz o Eu em alteridade e, durante

sua recepção (primeiro pelo sujeito, em seguida pelo público), ocorre um

processo de materialização/objetificação do sujeito em objeto fotográfico, criando uma identidade a partir de uma máscara performática, pronto para ser

consumido (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 40).

A fotografia, principalmente, as registradas como selfie, “são um sintoma da cultura,

pois, revela nossa relação com as imagens, o imaginário e, principalmente, com a nossa

construção identitária no espaço social, agora, mediado pelas tecnologias” (CAMARGO e

STEFANICZEN, 2016, p. 36). Entretanto, o autorretrato pode adquirir dimensões que

ultrapassam o registro contemplativo de si, assim como o mito de Narciso, “os autorretratos

possuem a presença do espelho, emblema do amor por si mesmo”, daí o risco da imagem de si

tornar-se uma forma de expressão que subjuga a imagem do outro, e mascara a própria imagem

em função de um personagem que se quer assumir (simulação), ou seja, a razão de si, como um

modelo do “Eu” perfeito, ideal, em detrimento do Outro que “me” inveja e que é imperfeito por

ser diferente de “Mim”, que “Sou” perfeito. Portanto, “há uma sutil diferença identitária no

antes e no depois do selfie. A cada autorretrato, um novo Eu que agrega mais sentidos ao Eu

anterior – que também era máscara” (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 54). Visto nesta

dimensão, a cultura do selfie também contribui para a produção de uma cultura exibicionista,

fútil e narcisista. Tal dimensão pode ser entendida na perspectiva de uma identidade mascarada,

performática e egocêntrica, em que,

A imagem ganha mais sentido, mais importância, uma alteridade bem maior

que o sujeito, [...] Assim, Narciso, ensimesmado, torna-se uma extensão da imagem e não o contrário. Devorado pela imagem, o sujeito torna-se uma parte

do autorretrato, como se o sujeito fosse a representação do selfie e não o

contrário (CAMARGO e STEFANICZEN, 2016, p. 54).

As potencialidades e o estímulo visual das culturas midiáticas em virtude de algumas

abusividades também estimulam o consumismo e aumentam as exclusões sociais, tendo em

vista as diferentes camadas econômicas da população. Segundo Santaella (2009), a mídia é

313

produtora de cultura, da mais nobre à mais popular, em outras palavras, na cultura, tudo pode

se tornar um fenômeno semiótico e, portanto, a cultura das mídias se configura enquanto um

objeto semiótico.

Portanto, as culturas infantis estão permeadas de artefatos midiáticos que remetem às

culturas adultas e as crianças procuram reproduzir em seus estilos e comportamentos a

tendência da moda, aquilo que está na mídia. Mas, qual a tendência atual da moda para as

crianças? Coleções de roupas e acessórios chama atenção, diariamente, em sites e redes sociais

de agências como fashionkids164, kardashiankids 165 que buscam orientar a moda direcionada à

infância, no entanto, as tendências que indicam assumem que a moda para crianças é vesti-las

como adultos. E há quem acredite.

Os sites dispõem de incontáveis imagens, pois, diariamente alimentam seus acervos.

Optei por selecionar imagens destes três endereços virtuais, dado o grande volume de acessos

e seguidores de suas páginas, além de considerar o caráter público de suas postagens. Vale

destacar que essas fotos foram produzidas com fins comerciais de publicidade e divulgação de

marcas e modelos do universo da moda. Desse modo, foi possível produzir uma narrativa em

sequência com 4 imagens que dialogam com o universo da moda infantil e caracterizam o que

é ser uma criança “fashion”.

A primeira fotografia selecionada mostra em high key uma criança de aproximadamente

1 ano, em pé, focaliza ao centro da imagem. A criança, ainda bebê, usa um vestido quadriculado

em preto e branco, com uma elegante e intrigante capa preta aveludada por cima do vestido,

lembrando um casaco de inverno. Veste uma calça de couro e sapatos pretos. Usa também uma

espécie de gorro branco com detalhe em preto. Exibe um enorme sorriso que em low key é o

único elemento que indica a essência infantil, sua alegria acima de quaisquer circunstâncias.

Nada mais compõe o cenário, a não ser um amplo assoalho de madeira que dá um equilíbrio à

imagem ao misturar o luxo ao rústico. A roupa que a criança usa parece ser bastante

desconfortável, devido ao peso e volume do casaco, o que pode impedir movimentos

164 QRcode 71: Fashionkids.

165 QRcode 72: Facebook.com/kardashiankids.

314

característicos desta fase. Isso indica que, a moda é mais importante do que o conforto da

criança. Até as escolhas dos tons, em sua maioria preto, parece “pesar” na cena.

A segunda fotografia dispõe em high key de uma cena em que uma criança de

aproximadamente 4 anos, caminha e toma água em um copo cor-de-rosa com tampa azul. Ela

veste um camisão quadriculado em degradês de preto e branco. Usa um coque no cabelo, meia

e tênis. A cena foi realizada em um espaço ao ar livre e a criança está posicionada de costas

para o fotógrafo. Em low key, a cena pretende demonstrar uma forma de vida saudável, baseada

em ideias de corpo e beleza. A criança que caminha sozinha remete à concepção de

independência, como se ela realmente fosse dona de seus próprios caminhos, a liberdade da

cena mostra uma pessoa livre, porém adultizada.

A terceira fotografia em high key apresenta uma menina, provavelmente, da mesma

idade. Ela usa penteado semelhante e veste blusa preta com detalhes em dourado, calça listrada

em preto e branco, e sandália cinza. Além disso, usa um blazer branco para compor o look

fashion. Em low key, a cena tenta transmitir um modelo de mulher que trabalha e ao mesmo

tempo consegue ser sexy. Os óculos de sol, estilo Ray-ban, que usa é bem maior que seu rosto

e ressalta ainda mais a intenção de adultizar a criança tornando-a sensual.

A quarta fotografia, seguindo a mesma tendência, revela uma menina de 5 anos de idade,

aproximadamente. Ela usa blusa branca, calça com estampa étnica preta e branca, e uma jaqueta

preta com detalhes dourados. Para completar o figurino, ela veste sapatos cor-de-rosa e óculos

de grau com armação preta e seus cabelos estão amarrados como um penteado “rabo de cavalo”.

Em low Key, esta criança é a que menos apresenta elementos que remetem a roupas sexys ou

executivas, apesar de também usar um look black.

A quinta imagem é uma composição de duas fotografias onde mãe e filha aparecem com

roupas e acessórios semelhantes, trata-se de uma releitura do ditado popular “tal pai, tal filho”,

agora entendido como “tal, mãe, tão filha”. Em high key elas usam vestidos com estampas de

oncinha, diferenciando-se em alguns detalhes como: o modelo do bordado que detalha o decote

das roupas, o modelo dos óculos de sol e os modelos de calçados que estão usando. As duas

têm o mesmo tipo e corte de cabelo - liso castanho-claro e reto, de cumprimento um pouco

abaixo dos ombros. Na primeira foto, a criança dá um pulo e a mãe sorri ao observar a cena. Na

segunda foto, a pequena faz uma pose na diagonal e coloca os óculos na cabeça, olha fixamente

para o fotógrafo que está registrando a cena. A mãe de forma semelhante a imagem anterior,

olha para a filha e sorri. Em low key, as cenas magicizizam a relação entre mãe e filha, porém,

é preciso questionar até que ponto essa tendência em reproduzir o modelo materno pode

influenciar nas condutas da criança a ponto de ressignificar sua infância com padrões e

315

comportamentos de adulto.

No entanto, com base em minhas reminiscências (de mãe), cabe fazer uma ressalva. Ao

olhar, especificamente, para estas cenas, em que a mãe se veste igual a filha e a filha se veste

igual a mãe, me vem a memória a cumplicidade que existe entre mãe e filha, o desejo de ser

igual pode ser visto como admiração, homenagem e amor que existe nessa relação, e o fato de

usarem roupas semelhantes, pode também, não significar um processo de adultização, mas sim,

de uma experiência emocional de aproximação e troca de carinho, uma outra forma de se

produzir cultura.

Dessa forma, o problema da adultização não está na projeção, mas na introjeção de

valores e comportamentos como que induzem o amadurecimento precoce, o despertar da

sexualidade, o consumo exacerbado, as posturas discriminatórias e excludentes, a

supervalorização do “Eu” em detrimento do Outro, entre outras condutas incoerentes com as

condições físicas, psíquicas, emocionais, cognitivas e afetivas das crianças. Tendo em vista que,

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a

observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de

significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos

outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados

em seu conjunto, eles constituem nossas "culturas". Contribuem para

assegurar que toda ação social é "cultural", que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de

significação (HALL, 1997, p. 16).

Recentemente, uma matéria sobre moda publicada pela Revista Caras on-line, reuniu

imagens de crianças de várias partes do mundo, sob a intenção de mostrar as “60 crianças fofas

mais estilosas do mundo” 166. As roupas e acessórios para criança chama atenção pelo fato de

demonstrar uma ideia adultizada de infância, o que pode ser verificado no que o site chama de

tendência atual da moda, corroborando com o famoso site fashionkids. Trata-se, portanto, de

uma reprodução em potencial das culturas adultas na imagem de criança contemporânea

(CABRAL e DIAS, 2017). Mas, o que de fato revelam essas imagens? Que tipo de concepção

166 No contexto do site, o termo “estilosa” significa estar vestido de acordo com as principais tendências da

moda fashionkids. QRcode 73: Matéria Revista Caras.

316

de criança e infância essa matéria quis passar através do que denominam de “fashionkids”?

Dentre as imagens dispostas selecionei 4 fotografias para desvelar a tendência da moda adulta

magicizada nas fotografias de crianças. Vale ressaltar que são fotografias produzidas por

profissionais da moda, portanto, as intenções são estéticas e artísticas.

Para a seleção das imagens optei pelas imagens de crianças que mais se aproximavam

da concepção de adultos em miniatura, no entanto, cerca de 70% das fotografias exibiam

imagens de crianças vestidas com roupas de adulto, do tipo black com cores pouco variadas,

penteados diferenciados e faixas no cabelo, casacos estilosos, roupas sofisticadas, lenços,

cachecóis e jeans casuais, blazers, algumas inclusive fazem referências à bandas de Rock e

portando óculos de sol. As posições em que as crianças são fotografadas exibem posturas com

mãos nos bolsos, segurando acessórios como bolsas e mochilas. Em low key, esses elementos

compõe a ideia de “mini-adultos”, perde-se o colorido, a doçura e a brincadeira para dar lugar

ao monocromático, à ousadia e à seriedade postural. As crianças modelam, fazem gestos e

reproduzem cenas do cotidiano (CABRAL; DIAS, 2017, p. 285).

Em high key a primeira imagem mostra um menino branco de aproximadamente 6 anos.

Ele usa uma calça vermelha com a barra dobrada para cima, sapato marrom social-casual, uma

camisa azulada de botão semi-ensacada, um paletó azul marinho, com um pequeno lenço no

bolço. Em low key, ele se modela seu corpo para a fotografia, pousa com as mãos no bolso e

faz uma leve inclinação com o corpo para o lado esquerdo. Tem cabelos claros repicados e usa

óculos escuro tipo Ray-ban, seu rosto é sério e ao mesmo tempo misterioso. Olha diretamente

para o fotógrafo e aguarda o click.

A segunda imagem em high key mostra um menino negro, aparentemente com 3 anos,

vestido com uma calça comprida azul marinho, camisa de gola alta e gravata borboleta. Para

completar, usa paletó e gorro com a mesma estampa, listras finas em azul e branco. Usa sapato

social-casual em tons de azul claro e escuro. E com sua mão direita, segura um chaveiro e com

a esquerda, pega na ponta do paletó.

A terceira imagem apresenta uma menina negra de aproximadamente 5 anos, em high

key, ela veste uma calça comprida branca, blusa de manga comprida azul marinho de bolinhas

pequeninas brancas, como acessórios ela usa cinto preto, óculos de sol, relógio preto, pulseira

azul combinando com uma sandália azul claro com azul escuro, além de um elegante chapéu

branco com faixa azul escuro. Ela está de pé e faz uma pose casual, cruza as pernas, coloca a

mão esquerda no bolso e olha para o lado esquerdo. Em low key aparenta segurança,

desenvoltura e seriedade.

A quarta fotografia registra uma criança de aproximadamente 5 anos. Em high key ele

317

veste calça jeans azul marinho, bota marrom cano alto semiaberta, camisa azul claro, colete de

lã acinzentado com detalhado com seis botões, por cima uma elegante jaqueta marrom. A cena

é produzida em um ambiente urbano, pois ao fundo é possível visualizar uma parede de ferro

na cor vermelha com detalhes em vidro, e o chão lembra uma calçada. Usa óculo escuro do tipo

Ray-ban. Ele posa de frente para a lente do fotógrafo, com as mãos no bolço e olha para o lado

esquerdo. Em low key trata-se de uma imagem que busca exaltar a beleza e a elegância da

criança. Vestido com roupas de adulto, olhar sério e compenetrado, ele demostra segurança e

maturidade. A presença dos óculos escuros parece ser uma tendência nos estilos de moda

infantil, provavelmente, para indicar maturidade e elegância.

Estas quatro fotografias são exemplos de padrão de beleza ocidental, baseado em uma

realidade social burguesa que monopoliza a indústria da moda mundial. Sob o pretexto de

“estilo” esconde-se todo um processo de ideologia dominante que objetiva gerar consumidores

em potencial, não importando as consequências para a construção das culturas infantis, ou até

para o seu declínio. Crianças pequenas são induzidas a vestirem-se e comportarem-se como

adultos, interiorizando o desejo de parecer e ser como um adulto. Essas práticas sinalizam uma

“espécie de encantamento” do adulto pela infância como estratégia de marketing comercial para

se tornar uma fonte rentável de mercado (FELIPE e GUIZZO, 2003). A moda que tenta

adultizar a criança desconsiderando as particularidades das culturas infantis, se caracteriza

como estereótipos sociais de representação profundamente marcados por significados políticos

e ideológicos. De acordo com Pereira (2009):

Os estereótipos são representações bastante contraditórias, isto é, são

dinâmicos - enquanto produções ativas, intencionais e performáticas de significado – no entanto, o seu efeito de verdade é fixador, homogeneizante,

contínuo, repetitivo e estabilizador de identidades (PEREIRA, 2009, p. 213).

Ao induzir a criança a se vestir como adulto, todo um repertório de significados culturais

se constrói em função de uma antecipação de etapas, a criança passa a incorporar não só as

formas de se vestir, mas, também as particularidades de um comportamento mais sério e menos

lúdico. Os estereótipos produzidos pela indústria cultural da moda criam uma estrutura

normalizadora baseada em modelos da hegemonia social, ou seja, os estereótipos “constroem

jogos de verdade que anulam as percepções identitárias e, por conseguinte, as alteridades

plausíveis centradas nos modelos dominantes” (PEREIRA, 2009, p. 213). Em suas faces falta

algo, falta a alegria, a brincadeira, a diversão, a leveza, tudo em função de uma imagem que os

“ditos” da moda, e em larga medida, da sociedade, ainda insistem em considerar que o modelo

318

perfeito a ser atingido é o do adulto. Tal qual como afirmou Buckingham (2006, p. 18) em

relação à televisão, a indústria da moda, cria uma “'pseudo-sofisticação’, que leva os adultos a

tratarem as crianças como mais adultas do que realmente são”.

Mas, também é pertinente mostrar o contraponto desta história. Até aqui, o que foi dito

desvelou os negativos em evidência de uma infância que cresce numa sociedade estetizada que

vive e convive em meio aos intensos estereótipos sociais que estimulam o consumo, a

adultização e a erotização da criança através da imagem. No entanto, essa mesma infância, cada

vez mais tem buscado conquistar seu lugar como ator social, protagonista de sua história e

produtor de cultura, o que revela resistência e subversão frente às imposições midiáticas da

contemporaneidade.

As crianças do século XXI são espertas e extremamente inteligentes, querem escolher o

que vestir, o que comer, para onde ir, falam de si e por si, são ativas, questionadoras e criativas.

Portanto, a sociedade contemporânea também tem sido palco para o surgimento de uma nova

infância – a da criança protagonista, ou seja, a criança que sabe o que quer, que exerce sua

participação na sociedade e re/conhece seus direitos sociais.

4.3 A imagem da criança protagonista: novas identidades para criança sociológica na

contemporaneidade

Considerando que as culturas visuais contemporâneas não podem ser pensadas de forma

desvinculada da presença das tecnologias digitais, torna-se preponderante dar atenção

especifica às estatísticas relacionadas ao acesso e uso da Internet por crianças em seus

ambientes sociais, educacionais e familiares.

A nível mundial, a Europa foi um dos primeiros continentes a se preocupar com as

relações estabelecidas entre o público infanto-juvenil e as TIC, tendo em vista que o uso da

Internet tem se tornado comum para muitas crianças, inclusive, tornando-se uma prioridade

política a garantia de que a exclusão digital não agrave a exclusão social. Neste sentido, foi

criada uma instituição multinacional de investigação financiada pelo governo da União

Europeia denominada de rede EU Kids Online com o objetivo de melhorar o conhecimento das

crianças fornecendo bases de evidência rigorosa para maximizar oportunidades e minimizar o

risco de danos associados ao uso de Internet.

A rede EU Kids Online desenvolveu em 2010-2011 uma ampla pesquisa que envolveu

a participação de 25 países da Europa, abrangendo o quantitativo de 25.142 crianças

319

entrevistadas. Os resultados apontaram que 60% das crianças e adolescentes ficam online

diariamente, 87% usam Internet em suas residências, destes 49% em seus quartos e 33% em

aparelhos móveis ou dispositivos portáteis, o segundo ambiente mais citado foi o escolar com

63% (EU KIDS ONLINE, 2012)167. De acordo com dados da pesquisa as crianças portuguesas

são as líderes Europeias quanto ao nível de acesso à Internet através de computadores portáteis,

65% dos inquiridos têm os seus próprios computadores, 89% usam, principalmente, para

trabalhos escolares e 83% para jogos, seguido de 70%, 69% e 66% que usam para visualizar

vídeos, trocar mensagens instantâneas e correio eletrônico, respectivamente.

Seguindo modelo Europeu, foi criado no Brasil o Centro de Estudos sobre as

Tecnologias da Informação e da Comunicação – CETIC sob os auspícios da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO que coordena estudos e

pesquisas relacionadas à rede Eu Kids online. Uma das contribuições mais significativas da rede

CETIC foi a criação da primeira versão da pesquisa TIC Kids Online Brasil168 realizada em

2012, tendo os objetivos de medir o uso da Internet por crianças e adolescentes entre 9 a 17

anos e mapear possíveis riscos e oportunidades online (CGIbr, 2012). Desde então, a cada ano

uma nova versão. Sua quarta versão foi desenvolvida entre novembro de 2015 e junho de 2016

junto a 262 municípios brasileiros, com mais de 33.210 domicílios particulares permanentes de

amostra. É nesta versão que centralizarei as informações a seguir (CGIbr, 2015).

Os resultados da pesquisa TIC Kids Online Brasil revelam que cerca de oito em cada

dez crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos utilizaram a Internet, o que

corresponde a 23,4 milhões de usuários em todo o país (CGI.br, 2015). Destes, 63% têm idade

entre 9 e 10 anos, 73% entre crianças de 11 a 12 anos, 87% entre os adolescentes de 13 a 14

anos e 86% na faixa de 15 a 17 anos. Cerca de 84% acessavam a rede todos os dias ou quase

todos os dias, destes, 68% utilizaram a Internet mais de uma vez por dia.

Em se tratando das classes sociais dos jovens usuários, a pesquisa revela que 80% dos

que têm entre 9 a 17 anos pertencentes a classes AB acessavam a rede mais de uma vez por dia

167 QRcode 74: Site Oficial da pesquisa EUKidsOnline.

168 QRcode 75: Site Oficial do CETIC/Kids Online Brasil.

320

e 67% pertencem à classe C e 51% às classes DE, com isso, a TIC Kids Online Brasil ressalta

que ao longo de sua série histórica, as diferenças entre as classes no uso diário de Internet vêm

diminuindo (CGI.br, 2015, p. 161).

De acordo com os resultados obtidos, 80% crianças e adolescentes declararam usar a

Internet para trabalhos escolares, 79% para acessar as redes sociais e 63% para assistir vídeos.

A pesquisa também apontou que 79% das crianças e adolescentes acessa alguma rede social.

Tais indicadores chama a responsabilidade à escola que é um dos ambientes mais propícios

para a democratização do acesso às novas tecnologias, portanto, a escola torna-se o principal

elo entre os saberes formais e as vivências e transformações da sociedade contemporânea.

Este novo cenário tem promovido à infância não só o uso de informações e o consumo

de produtos oferecido pela rede, mas a possibilidade de produzir conteúdo, como no caso das

crianças blogueiras e dos youtubers mirins. Ser blogueiro é o termo utilizado para designar a

pessoa que publica em blog, uma espécie de diário virtual, onde se postam textos, imagens e

vídeos. Com o avanço das redes sociais, a criação e manutenção do blog perdeu espaço para

plataformas como Facebook e Instagram, e principalmente o YouTube, um programa de

compartilhamento de vídeos que se tornou o novo espaço virtual para os blogueiros, que podem

ser chamados também de vlogueiros (que postam vídeos) e/ou youtubers, que são as pessoas

que possuem canal no YouTube. O termo “blogueiro” ainda é utilizado nas redes sociais, mas

aos poucos tem sido substituído pelo termo “youtuber”.

Essa realidade atingiu diretamente as infâncias contemporâneas fazendo emergir novas

identidades sociais, uma delas denominada de youtuber mirin, um tipo de infância que acessa

e manipula facilmente os recursos tecnológicos, já nomeada como “nativos digitais”

(PRENSKY, 1999), “geração digital” e “geração-net” (TAPSCOTT, 1999); infância hiper-

realizada” (NARODOWSKI, 1999) ou “ciberinfância” (DORNELLES, 2005), todos se referem

às crianças que nasceram em meios a sociedade digital e aprenderam a acessar e manipula

facilmente os recursos tecnológicos (DORNELLES, 2005).

De acordo Lévy (1999) a sociedade contemporânea deve ser compreendida na

perspectiva de uma cibercultura, que ele define como um conjunto de técnicas materiais e

intelectuais, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem

juntamente com o crescimento do ciberespaço e esses fenômenos marcam a complexidade das

relações sociais e culturais da humanidade. Levy (1999) define o ciberespaço como uma

"geografia móvel de informação", um novo meio de comunicação que surge:

[...] da interligação mundial entre vários computadores, incluindo todas as

321

infra-estruturas materiais da comunicação digital, desde um simples

computador ou um cabo a outras estruturas mais complexas e que permite albergar todo o universo de informações e todos os utilizadores que navegam

na rede e todos os que contribuem para a construção de conhecimento

injectando informações nesse mesmo universo (LÉVY, 1999, p. 93).

As crianças têm se mostrado participantes ativas nas relações sociais e culturais na

sociedade contemporânea. Os processos de globalização e os avanços tecnológicos

intensificaram o crescimento e desenvolvimento econômico e cultural, repercutindo

diretamente, nas formas de vida e comunicação na sociedade contemporânea, sobretudo, em se

tratando da infância, que adquiriu direitos sociais e políticos que até bem pouco tempo atrás

lhes eram negados. No entanto, as culturas visuais manipuladas pela indústria cultural e mídias

publicitárias que visam o lucro acima da dignidade humana, permeiam o universo infantil e

nem sempre estão atentas à proteção, cuidado e dignidade da criança, requerendo da educação

o papel de mediar e tencionar estas questões junto à sociedade civil e científica como medida

de proteção à criança e compromisso social com a infância. Porquanto,

Se han expandido como nunca las posibilidades de que cualquier ciudadano

pueda hacer llegar su mensaje, personal o colectivo, al resto de la sociedad,

pero, paralelamente, el poder mediático ha alcanzado unos niveles de concentración y de acumulación a los que nunca antes se había llegado, como

afirma Jenkins. Además, el poder mediático se beneficia de la transparencia que caracteriza a los nuevos sistemas de representación, propiciando La

confusión entre la representación y la realidad. La competencia mediática ha

de hacer frente, pues, a esta complejidad, compaginando la potenciación de la cultura participativa con el desarrollo de la capacidad crítica (FERRÉS e

PISCITELLI, 2012, p. 77).

Importa, nesta perspectiva, tratar culturas visuais e culturas infantis como polos de

interlocução e complementaridade, que fazem parte do cotidiano da criança informando e

formando seus sentidos e significados acerca de si e de suas relações com o mundo. Conforme

assegurou Cunha (2012, p. 102-103):

As culturas infantis e juvenis das últimas duas décadas, produzem e são

produzidas, em muito, em meio a uma cultura imagética, que (re)cria significados, não só participando das construções identitárias e do sentido de

pertencimento, mas principalmente organizando e regulando um conjunto de práticas sociais, mutantes, evanescentes, porém produtoras de efeitos

concretos sobre nós.

A pesquisa realizada por Bragaglia e Ferreira (2016) intitulada “Os youtubers mirins e

a felicidade através do consumo” destaca três canais de meninas mais acessados no Brasil: o

322

canal “Fran Nina e Bel para Meninas” 169 com 5.322.406 inscritos e apresentado por Isabel (9

anos) e sua mãe, o de Juliana Baltar (8)170 com 5.305.571 inscritos e o de Julia Silva (10 anos)171

com 3.153.674 de inscritos 172. Segundo as normas de utilização, a idade mínima para ter um

perfil no Google é de 13 anos, porém, a maioria dos pais dos youtubers mirins controlam as

postagens e os acessos.

Segundo os autores, as meninas postam vídeos divertidos e criativos, porém, “[...]

associam felicidade às marcas promovidas, quando, por exemplo, ficam contentes ao ganharem

um novo brinquedo e ao se divertirem em lojas, shoppings, parques e outros locais em que

aparecem práticas de consumo” (BRAGAGLIA e FERREIRA, 2016, p. 63). O que corrobora

com a pesquisa de Correa (2015, p. 14) ao destacar que, dos 100 canais de maior audiência no

YouTube, 36 abordam conteúdo direcionado ou consumo por crianças de até 12 anos de idade.

Por outro lado, essas youtubers mirins demonstram desenvoltura diante das câmeras e

dada a espontaneidade em suas apresentações, aparentemente adquirem autonomia em relação

ao tema desenvolvidos nos vídeos, o que remete a uma participação ativa, crítica e criativa. A

capacidade de expressão é também uma das características marcantes dessas identidades

culturais, ou seja, a forma com que comunicam a informação é persuasiva e segura, sobretudo,

articulada e atraente. A diversão parece ser o foco principal dessa atração.

No entanto, conforme já visto anteriormente, estas novas identidades infantis também

assumem o conceito de “fashionistas” que significa estar de acordo com as tendências da moda,

mas, quem mais se beneficia deste suposto comportamento “estiloso” são as grandes marcas

que buscam a todo custo se manter no topo da economia, e para isso, nem sempre respeitam as

especificidades da infância173.

169 QRcode 76: Canal Fran Nina e Bel para Meninas.

170 QRcode 77: Canal Juliana Baltar.

171 QRcode 78: Canal Julia Silva.

172 Idade das crianças referente ao ano de realização da pesquisa de Bragaglia e Ferreira (2016). Quantidade de inscritos no canal referente ao mês de novembro de 2017. 173 Discutido no subcapítulo anterior (4.3).

323

Neste cenário, é preciso uma compreensão mais culturalmente “antenada” às demandas

e peculiaridades dessas infâncias tendo em vista que estas novas identidades culturais dão

suporte às construções interpretativas e subjetivas da criança. Em vista disso, tanto podem ser

responsáveis por proporcionar comportamentos adultizados e um consumismo que vai além do

uso necessário e consciente, como podem colaborar com a formação de posturas críticas e

reflexivas sobre concepções e ações humanas através de novas interações socioculturais.

Portanto, é necessário reconhecer a importância de analisar as crianças e suas culturas a

partir das suas próprias narrativas, vivências, sentidos e significados, pois, as visualidades

compõem a cultura e essa composição se dá de forma inteligível e interpretativa,

consequentemente, subjetiva.

324

5 NARRATIVA FOTOETNOGRÁFICA: DO HOMÚNCULO À CRIANÇA

SOCIAL

5.1 A criança na I/MA(r)GEM.

5.2 Pequenos Trabalhadores: infância e industrialização em Caxias do Sul - fim do Séc. XIX e início do Séc. XX (TISOTT, 2008).

5.3 Imagens de Crianças e Infâncias: a criança na iconografia brasileira dos séculos XIX e

XX”. (ABRAMOWICZ, et al. 2011).

325

5.4 Criança e Negra: o direito à afirmação da identidade negra na Educação Infantil. (SILVA, R., 2015).

5.5 A pesquisa de Vargas (2014) intitulada “Bebês em suas experiências primeiras:

perspectivas para uma Escola da Infância”

5.6 A moda infantil no século XX: representações imagéticas na revista do globo - 1929-1967. (KERN et al., 2010).

5.7 Crianças de Revistas - 1930/1950. (BRITES, 2000).

326

5.7 Dia das Crianças - Calçados Couro Fino (2015).

5.8 Mídia e Consumo de uma infância pós-moderna que vai à escola. (MOMO, 2007).

5.9 Bichinhos da Parmalat - Campanha “Mamíferos”. (1995).

5.10 Mc Melody (2014-2017).

327

2° Click

As imagens são como nós: às vezes nascem, pensam. Mas elas não morrem!

(ACHUTTI, 2011, p.76)

Do homúnculo à Criança Social:

Infâncias em peles magicizadas

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EPÍLOGO

“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”

E o “meu” espelho respondeu:

- Sim, minha rainha, as crianças são mais belas.

Belas em sua essência, belas na alma,

Puras como a névoa e serenas como o mar,

Se queres ser bela, sejas como uma criança,

que se encanta com a simplicidade da vida

e não se cansa de sonhar.

No ensaio 2, revivi diversas formas culturais do ser criança, mergulhei em suas

realidades, senti os sabores da infância e compreendi que, em cada situação, suas pluralidades

convergiram-se em particularidades que as caracterizavam como seres dotados de criatividades

e subversão. Desde as mais remotas às mais tenras imagens, foi possível perceber que as

crianças exerceram papéis sociais definidos pela cultura e pela sociedade de cada tempo

histórico, recebendo com isso, atribuições que, ora foram compatíveis com suas condições bio-

psíquicas-sociais, e ora, desconsideraram as limitações e especificidades de uma infância digna.

Contudo, constatei que as imagens são fenômenos que registram, dialogam e contribuem

para a construção das várias concepções de crianças e infâncias aqui revisitadas. Nas peles

foram magicizadas as formas de vida transformadas em memórias que tornaram possível o

reconhecimento de suas culturas e subjetividades, seja em momento de contravenção ou em

subordinação. As reminiscências traduzidas em narrativas fotoetnográficas comportaram

sentimentos e valores que deram suporte às concepções históricas e culturais acerca da ação

social da criança, do protagonismo e da alteridade da infância.

Nessas trajetórias, as crianças protagonizaram suas histórias e construíram suas culturas

nas relações que estabeleceram na sociedade, deixandomarcas e sendo marcadas pelos mundos

e modos de viver entre si e com os adultos. Todavia, nem sempre suas especificidades e

necessidades foram prioridades, mas isso não sucumbiu a beleza, a criatividade e a

potencialidade da alma infantil.

As passagens dos séculos provocaram o desaparecimento das fronteiras culturais entre

o mundo dos adultos e o mundo das crianças. A modernidade alimentada pelas transformações

352

tecnológicas, revolucionaram a cultura contemporânea e anunciaram a chegada de uma nova

geração, a ciberinfância, uma geração marcada pela autonomia e domínio dos artefatos

tecnológicos e seus segmentos digitais. Assim, as redes de relações sociais, passaram a produzir

cultura e conhecimento através de outras formas de comunicação na contemporaneidade.

Hoje, já não é possível controlar quem dita os padrões, a fama e o poder estão

visivelmente presentes e possíveis nas redes sociais e nos canais de entretenimento que

oferecem oportunidades para todos os públicos sem distinção de classe e/ou gênero. Essas

reconfigurações culturais e sociais vêm acarretando sérias armadilhas para a infância, pois têm

inspirado as crianças a seguirem comportamentos e tendências que abusam da dignidade

infantil, adultizam e algumas vezes, erotizam o corpo da criança, além disso, a ditadura da moda

tem atribuido valores ao consumo sem medida. Em outras palavras, a sociedade tecnológica em

nome da liberdade cultural, da moda e da fama tem sensualizado, erotizado e adultizado a

infância na contemporaneidade, o que reverbera na concepção do homúnculo em pleno século

XXI.

Por outro lado, também foi possível constatar, que mesmo em circunstâncias adversas,

as crianças exercem papéis sociais ativos produzindo suas culturas nos entre-lugares da infância

que, evidentemente, são construídos pela própria ação das crianças, inclusive em espaços

digitais, como por exemplo, alguns youtubers mirins, que abusam da criatividade, autonomia e

subversão. O que corrobora com Sarmento (2007, p. 29-33) ao afirmar que as produções

culturais das infâncias contemporâneas resultam de um juízo interpretativo das crianças a partir

da compreensão da infância como categoria geracional e da criança como ator social, apontando

assim, para a imagem da criança sociológica que se caracteriza pela ação e enfrentamento das

circunstâncias culturais e sociais das quais participa.

Das reflexões empreendidas até aqui, surge a defesa de uma nova imagem sociológica

contemporânea - a da criança protagonista. Uma criança que subverte os limites e imposições

das culturas midiáticas e de forma criativa reinventa modos de ser e de viver. Uma criança que

participa ativamente de sua cultura, que elabora de forma crítica seu pensamento e visão de

mundo. Tal perspectiva, parte do pressuposto de que,

Ao afirmar a condição da criança socialmente construída nas experiências e na relação com os outros, afirmamos o lugar protagonista que elas ocupam na

construção de conhecimento, nas ações e descobertas que partilham

coletivamente. As crianças atuam na configuração de diferentes sentidos. Os sentidos atribuídos ou construídos pelas crianças não se reduzem e nem se

confundem àqueles elaborados pelos adultos, as crianças têm autonomia

cultural em relação aos adultos. Uma autonomia cultural relativa, justamente

353

porque os sentidos que elaboram partem do sistema simbólico que é

compartilhado com os adultos (TROIS, 2012, p. 125).

A imagem sociológica da criança protagonista ratifica a concepção de criança elaborada

pelo Parecer 022/1998 que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil

(DCNEI) ao afirmar que as crianças são “[...] seres humanos portadores de todas as melhores

potencialidades da espécie”, dando continuidade ao argumento, destaca as seguintes

características:

*inteligentes, curiosas, animadas, brincalhonas em busca de relacionamentos gratificantes, pois descobertos entendimento, afeto, amor, brincadeira, bom

humor e segurança trazem bem-estar e felicidade;

*tagarelas, desvendando todos os sentidos e significados das múltiplas linguagens de comunicação, por onde a vida se explica;

*inquietas, pois tudo deve ser descoberto e compreendido, num mundo que é sempre novo a cada manhã;

*encantadas, fascinadas, solidárias e cooperativas desde que o contexto ao seu

redor, e principalmente, nós adultos/educadores, saibamos responder, provocar e apoiar o encantamento, a fascinação, que levam ao conhecimento,

à generosidade e à participação (BRASIL, 1998).

Para Kramer (1999) a infância é marcada pela capacidade da criança de criar, imaginar

e fantasiar a realidade, assim, a autora defende a ideia de “[...] crianças como cidadãs, pessoas

que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso

a ordem das coisas subvertendo essa ordem” (KRAMER, 1999p. 272).

Ante o exposto, para defesa da tese, foi necessário conhecer profundamente as rotinas

de uma criança protagonista, que se dispusesse a construir sua narrativa autobiográfica através

de fotografias, ou seja, uma narrativa fotoetnográfica autobiográfica. E este foi outro grande

desafio: encontrar essa criança.

E, dessa aventura empírica, emergiu o Ensaio 3.

354

ENSAIO 3

O PROTAGONISMO DA CRIANÇA NA ALTERIDADE DA INFÂNCIA:

da fotografia à voz

Uma ciência assim – na verdade, um campo

científico interdisciplinar: os estudos da

infância – não pode abdicar da “imaginação

metodológica” que faça da voz das crianças

não o outro da voz dos adultos (não já

silenciada, mas reduzida e filtrada pelo

processo analítico empregue), mas a

expressão de uma alteridade que se conjuga na

sua diferença face aos adultos. Uma ciência em

suma, que não ignora a sombra, nem a

procura reduzir, mas que nela permita

caminhar.

(SARMENTO, 2007, p. 45, grifo do autor)

355

PRÓLOGO

Sobre a princesa “blogueirinha” Maria Clara...

No reino encantado da Luz

Clara como a luz do sol

Clareira luminosa nessa escuridão

Bela como a luz da lua

Estrela do oriente nesses mares do Sul

Clareira azul no céu

Na paisagem

Será magia, miragem, milagre

Será mistério

Prateando horizontes

Brilham rios, fontes

Numa cascata de luz

No espelho dessas águas

Vejo a face luminosa do amor

As ondas vão e vem

E vão e são como o tempo

Luz do divinal querer

Seria uma sereia

Ou seria só

Delírio tropical, fantasia

Ou será um sonho de criança

Sob o sol da manhã

(Música: Sereia. Lulu Santos e Nelson Motta)

Cantos, Contos e Encantos de Maria Clara...

Assim se sucederam nossos encontros. Cada momento, uma nova aventura e em cada

aventura um jeitinho único de “descomplicar” a vida. Clarinha - como a chamo, é assim, tal

qual seu nome: CLARA! Clara na voz, na simpatia, no olhar forte, nas palavras certas e

inusitadas. Clara na opinião, nas escolhas, nas formas de enfrentar o dia-a-dia. Clara, objetiva,

356

direta e muito, muito esperta! Vi muitos modos únicos, autênticos e intensos de Clara ser Clara

e clara. Assim, como na canção de Lulu Santos, que abre essa - que é sua – história, Clarinha é

luz e mistério, sempre pronta para surpreender, tem resposta para “tudo”, e se não tem, inventa!

Clara é magia que encanta a vida, a própria vida e de quem estiver perto dela. Clara é bela e vê

beleza em tudo. Clara faz tudo com intensidade, sente, sonha e realiza. Clara é brilho, é estrela

e nasceu para encantar. Clara é a face luminosa do amor, puro amor, amor pela vida, pela

natureza, pela família, pela escola, pelas amigas e até por mim, que acabei de chegar. Clara é

isso! Esse sonho de criança, que simplesmente é clara e tão Clara.

Quando a conheci, não imaginava que um dia ela seria a criança que eu buscava

encontrar para me ajudar a empreender esta tese. Tudo aconteceu como em um “conto de fadas”,

de forma surpreendente!

Certo dia, em novembro de 2016, estávamos, eu e meu esposo, observando nossa filha

(10 anos) patinar numa pista de gelo em um shopping novo da cidade. De repente, outra criança

chama a nossa atenção. Ela também estava patinando, mas, diferente das outras crianças, ela

dançava, fazia piruetas e performances como se estivesse em uma apresentação artística, para

ela, mais importante que patinar, era “fazer seu show”. E realmente foi um espetáculo de

desenvoltura! As músicas eletrônicas embalavam suas coreografias, seus braços se

movimentavam para o alto e para baixo, ela mexia os ombros e o quadril no ritmo das baladas,

girava nos patins e não se desequilibrava, aquele era seu mundo! Um mundo de gelo, assim

como a princesa Elsa em “Frozen” no “reino de Arendelle”.

Fotografamos e filmamos este momento e por acaso, a mãe dela nos pediu para enviar-

lhes as imagens pelo WhatsApp, pois, seu celular havia descarregado, daí as conversas

começaram a surgir. Durante um bom tempo ficamos lá, conversando sobre vários assuntos e

principalmente, sobre como as crianças estão ficando cada vez mais espertas e como se adaptam

fácil às linguagens tecnológicas da atualidade. Durante a conversa, conhecemos Maria Clara,

uma menina de 6 anos tão pequenina, que nem parecia ser aquela “gigante” que estava na pista

de gelo. Ela chegou ofegante, suada e com sede, quase não nos deu atenção. Fez um sorriso

rápido, nos deu um abraço e logo em seguida, foi fazer um lanche com seu pai, que também

estava presente. A mãe de Clara, muito simpática, nos contou que a filha era “blogueirinha” e

que postava vídeos sobre seu dia-dia e sobre moda nas redes sociais Facebook e Instagram sob

o instablog “@achadinhosdemariaclara”. Ficamos impressionados, mas, quando Maria Clara

voltou, continuou um pouco desatenta à nossa presença. Seu jeitinho meigo, que até me pareceu

um pouco tímido, contrariava de certa forma, as informações que a mãe dela havia nos dado

momentos antes, o que a fez até se justificar: “Ela não é assim não! É porque não conhece vocês

357

direito, mas, olhem o Instagram dela!”, talvez por isso, não tenha chamado minha atenção como

um possível sujeito de pesquisa para tese. Aliás, naquele dia nem me lembrei da tese.

Não mantivemos mais contato com a mãe de Clara, tampouco, com ela. Inclusive não

lembrávamos nem do seu instablog. Passado algum tempo, em uma das reuniões com minha

orientadora, ela sugeriu que eu pensasse em uma criança para iniciar a pesquisa empírica, no

entanto, tive muita dificuldade em decidir como, onde e quem seria “essa” criança. Em outra

ocasião, cogitei a possibilidade de não fazer pesquisa empírica, mas, de imediato, a orientadora,

sabiamente, questionou. E, mais uma vez, a indecisão. Saí ainda mais preocupada. Dirigindo

no caminho de casa e imaginando inúmeras “possíveis” crianças, de repente, uma imagem se

magiciza na memória, vem à lembrança Maria Clara, e imediatamente, tive a certeza de que

tinha de ser ela.

Peguei o telefone e fiz contato, haviam se passado quase dois meses, mas, a mãe de

Clara ainda se lembrava de mim. Encontramo-nos no shopping para que eu pudesse explicar a

pesquisa. Dessa vez fui sozinha, lá estavam Clara, seu irmão (9 anos) e sua mãe. Expliquei a

proposta de tese para sua mãe e ela, gentilmente, se prontificou a autorizar. Em seguida,

expliquei para Clara e ela também aceitou participar, ainda mais, ela queria começar naquele

mesmo instante, dada a sua ansiedade. A partir deste contato, nos encontramos todas as semanas

durante 5 divertidos e intensos meses.

Os primeiros olhares de Clarinha eram curiosos, questionadores e cativantes. Nela vi

materializarem-se outras crianças que já habitavam minhas reminiscências, vi a vontade de

viver intensamente cada minuto como se não houvesse amanhã. Tudo em Clara se manifestava

com muita emoção, o riso, o choro, os desejos, as birras (foram poucas), a insistência, as

expressões e linguagens, as performances corporais, o carinho, a saudade, o amor. Era muito

fácil conviver com Clara, sua alegria, sua luz e seu jeito único e criativo de ser, dava o tom de

leveza à pesquisa, muitas vezes ela própria apontava os caminhos com suas “teias

congeladas”174, deixando seu brilho por onde passava.

Para Clara, a vida é uma “magnífica aventura” aonde ela vai desenhando suas histórias

com muita autenticidade. Suas “pegadas na neve que cria” estão marcadas por subjetividades e

culturas que constrói nas relações de alteridade que estabelece cotidianamente, e assim, num

misto de magia entre realidade e fantasia, a “princesa Clara” vai demarcando seus espaços e

constituindo sua identidade como sujeito social, produtora de cultura, de culturas da infância.

Maria Clara vive uma infância permeada de artefatos culturais que magicizam suas

174 Menção ao filme de Frozen

358

experiências sociais, usa roupas da moda, frequenta espaços seletos a crianças que sonham com

a fama, o sucesso e o status que esse tipo de vida promove, inclusive, ela já desfruta de uma

carreira artística que aos poucos desponta nas redes sociais e em um programa de televisão

local. Mas, Maria Clara tem um diferencial, mesmo estando nesses espaços que muitas vezes

confundem o que é “ser criança”, ela consegue preservar a essência infantil que se caracteriza

pela ludicidade, criatividade, fantasia e sonhos. O cuidado e a vigilância da sua mãe tem sido

fundamental para a relação de Clara com as mídias, ela faz uma mediação constante e

importante para assegurar que sua filha vivencie de forma adequada todas as especificidades da

infância. Ou seja, Maria Clara vive uma infância que eu poderia situar como “saudável”, a partir

das premissas instituídas pela Convenção dos Direitos da Criança de 1989 e considerando os

pressupostos de bem-estar defendidos pela Sociologia da Infância (FERREIRA e SARMENTO,

2008, p.65).

Uma infância que conheci em meus dias de criança, àquela em que brincava de bonecas,

assistia o Sítio do Pica-pau Amarelo e sonhava em conhecer a Xuxa, infâncias que na atualidade

a mídia adultizada tenta sucumbir. Enfim, Maria Clara é uma criança que é criança, que faz

coisas de criança, que pensa como criança e não como um “pseudoadulto”. Maria Clara é um

exemplo de que, mesmo a criança sendo famosa, fashion, blogueira, ciber e modelo fotográfico,

ela não deixa de viver todas as brincadeiras, as interações e o faz-de-conta dessa fase tão criativa

que é a infância, além disso, esse exemplo indica que é possível manter assegurados os direitos

sociais e a dignidade da criança nesse universo midiático de flashes e glamour.

Desse modo, convido o leitor/espectador a mergulhar nesta aventura para conhecer o

“magnífico livro leitura-imagem” de Maria Clara, que apresenta sua autobiografia sob

perspectivas fotoetnográficas. Contudo, antes de ler a próxima página, peço licença para falar-

lhes diretamente ao coração, sei que esta não é uma posição benquista no pragmatismo da

ciência, mas, prefiro arriscar-me a perder a oportunidade de fazer essa ressalva, que considero

fundamental para qualquer tipo de aproximação e convívio com crianças. Assim, sugiro que

durante a leitura deste ensaio, o leitor/espectador reviva a criança que está dentro de sua alma,

sinta sua emoção, olhe com seus olhos, perceba suas vontades, inquietudes e limitações, se

desloque um pouco para seus próprios “lugares” de infância, para só então, compreender,

como eu compreendi, um pouco do que é ser criança e como suas culturas são produzidas nos

“entre-lugares” e “entre-culturas” da infância. Portanto, o memento torna-se imprescindível

para compreender e reflexionar as experiências de protagonismo e alteridade infantil a partir da

Fotoetnografia autobiográfica de Maria Clara. Assim como na célebre frase de Roger Bastide

que prefacia Florestan Fernandes (1979, p. 154):

359

[...] para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso

dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que

dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. E isso não é dado a toda gente.

Talvez, esta seja uma ideia utópica - tornar-se criança outra vez -, mas sua essência é

particularmente interessante. A ideia do memento ajuda a entender o que o autor quis dizer, ou

seja, ao reviver a criança que formos, sentimos suas emoções e singularidades e passamos a

compreender melhor o que as crianças com lidamos pensam, expressam e produzem, nessa

óptica, o “tornar-se criança” pode ser entendido como “lembrar-se criança”, pois, é fato que “na

investigação com crianças nunca nos tornaremos crianças, mantemo-nos sempre como um

«outro» bem definido e prontamente identificável” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 10).

Assim como nos ensaios anteriores, esta narrativa não se reserva a uma racionalização

da realidade sob normativas de padronização de escritas direcionada apenas à arguição de um

pequeno público seleto de pensadores (que têm toda legitimidade para isso), pelo contrário,

narro a vida para a vida, direciono minhas percepções a um saber democrático e de forma

sensível, procuro redigir um texto que também possa circular em outros espaços, aliás, em

qualquer espaço. Para tanto, este ensaio volta-se à escrita estética e criativa (não descartando o

rigor necessário que se espera de um trabalho de tese), porque (reforço) não vejo como tratar

de infância e com a criança sem que esses elementos estejam no centro da interlocução e da

produção de saber. Esse “saber” entendido em suas derivações originais em latim “sapio”,

“sapere” que “indicam ‘ter o sabor de’ ou ‘agradar ao paladar’ [...] isto é: o saber carrega um

sabor, fala aos sentidos, agrada ao corpo, integrando-se, feito um alimento, à nossa existência”

(DUARTE JR., 2000, p. 16, grifo do autor). Portanto, esta é uma narrativa que se fez e se

pretende ser “saborosa”, tanto para mim (como contadora), quanto para Clara (como autora),

quanto para o leitor (como espectador e crítico).

Enfim, nesta “aventura congelante” desvelo as concepções de criança e infância na

perspectiva da própria criança, destaco como ela se vê e se reconhece nas relações culturais e

sociais que estabelece com seus pares e com os adultos; ressalto sua relação com a Cultura

Visual e as implicações dessa relação para a construção de sua identidade. Sobretudo,

demonstro como a Fotoetnografia autobiográfica evidencia o protagonismo da criança e a

alteridade da infância ao promover a participação ativa da criança na construção de

conhecimento científico, dando respaldo à construção de uma nova imagem para a infância

sociológica na contemporaneidade - a imagem da criança protagonista.

360

Minha expectativa, é que essa leitura traga novas formas de entendimento e diálogo com

a criança sobre a infância, consolidando-se assim, num “esforço desconstrucionista de

constructos pré-fixados e de investigação empírica” que se estabelece a partir da participação

ativa da criança em assuntos relacionados a ela, participação esta que, “constitui o esforço

teórico principal da sociologia da infância” (SARMENTO, 2005, p. 372-373). Portanto, sob

estas intenções, apresento a síntese do desenvolvimento da pesquisa empírica cujo objetivo

maior foi produzir uma narrativa fotoetnográfica autobiográfica com a criança relacionando os

sentidos e significados que ela própria estabelece sobre sua infância através das imagens e

experiências cotidianas, ou seja, intencionei levar a criança a produzir uma narrativa imagética

de si considerando suas subjetividades e experiências pessoais, sociais e culturais. Para tanto,

remontei o movimento de interpretação memento de forma que Maria Clara pudesse reviver,

sentir e compreender sua própria história de vida através de suas próprias percepções e

narrativas. Com isso, pude reflexionar os conceitos de criança, infância e culturas infantis a

partir dos modos de ser e de viver dessa adorável criança.

Por hora, este prólogo é apenas uma pequena parte da história que estou prestes a contar,

mas, não por minhas palavras e olhares de adulta, mas, pelas próprias palavras e imagens de

Maria Clara, pois é ela, a autora, a narradora, a roteirista, a produtora, a editora e a atriz

principal. E eu? Eu sou quem observa, registra, fotografa e torna acessível seu texto à esta

pesquisa. Neste sentido, sou só a contadora de histórias..., e assumo todas as limitações

enquanto tal. Portanto, a história começa assim:

Era uma vez..., a princesa “blogueirinha” Maria Clara no reino encantado da Luz.

361

1 CANTOS, CONTOS E ENCANTOS DE MARIA CLARA: UMA

FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA

E a história continua...

Maria Clara vive os encantamentos de uma infância repleta de criatividades e

imaginações, ela é uma “blogueirinha” que sonha em ser artista de TV, apresentadora ou uma

“atriz contratada”, sonha também em ser modelo para “desfilar nas passarelas do mundo

inteiro”, mas não para por aí, quer também ser cantora ou dançarina, mas, se isso tudo não

acontecer ou quando isso tudo acabar, aí ela disse que vai ser veterinária para “cuidar dos

bichinhos que ficam dodói”, pois Clara ama os animais. Realmente, essa pequena tem muita

história para contar...

Durante nossos encontros, Maria Clara me contou tantas aventuras que não caberiam

nas limitadas páginas desta tese, por isso, algumas histórias estarão narradas nas próprias

imagens, outras nas entrelinhas deste ensaio, outras gravadas nas memórias do meu diário

fotoetnográfico, aguardando novas oportunidades para emergir. Assim, a grande maioria dessas

aventuras, desses momentos singelos e encantadores, estarão guardados para sempre nas

minhas próprias lembranças, são sorrisos, abraços, risadas, trocas de olhares e expressões

corporais impossíveis de descrever, porque só são possíveis de sentir.

Portanto, convido o leitor-espectador a se encantar, a reviver suas próprias

reminiscências de infância e sentir as emoções e singularidades do ser criança através das

aventuras da princesa “blogueirinha” Maria Clara no mundo encantado chamado Luz, narrado

e produzido pela protagonista desta história, e, por mim, transformado em narrativa

fotoetnográfica. Para só assim, se aproximar e compreender as particularidades e

complexidades das crianças e suas culturas infantis em constante devir, compreendendo que,

Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria infância cronológica [...]. Devir-criança é a infância como

intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do “seu” lugar

e situar-se em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados; é algo sem passado, presente ou futuro [...]. Um devir é algo “sempre

contemporâneo”, criação cosmológica: um mundo que explode e a explosão de mundo (KOHAN, 2010, p. 6, grifos do autor).

É dessa potência pueril que estou a falar, falo de Maria Clara.

362

1.1 Para início de conversa: os “magníficos” livros “leitura-imagem” de Maria Clara

Nem sempre a linguagem do adulto consegue ser inteligível ao entendimento infantil,

desse modo, para tornar a Fotoetnografia uma metodologia adequada ao trabalho com crianças

fiz algumas adaptações necessárias ao método, porém, mantive sua lógica e seus procedimentos

(ACHUTTI, 1997) criando estratégias que desenvolveram não só a técnica, mas, sobretudo, a

compreensão do processo de construção interpretativa do fenômeno através da imagem.

As estratégias de aproximação ao método foram desenvolvidas em dois momentos: no

primeiro, a proposta foi construir uma narrativa sobre algum personagem infantil utilizando

apenas imagens. Nesta etapa, a criança construiu a história de acordo com suas próprias

reminiscências sobre o personagem e escolheu as imagens para compor a narrativa. No segundo

momento, a ideia foi organizar a história de um personagem infantil a partir de suas imagens

dispostas aleatoriamente. Nesta etapa, a criança teve de organizar as cenas de forma cronológica

e de acordo com suas próprias reminiscências sobre a história do personagem.

Como se tratava de uma pesquisa com uma criança de 6 anos, expliquei o método

utilizando uma linguagem mais acessível com termos mais convencionais do universo infantil,

assim, no lugar do termo Fotoetnografia, preferi utilizar expressões como “- vamos ler as

imagens”, “- vamos montar um livro fotográfico?”, “- a gente vai contar uma historinha usando

apenas fotos”, “- sim, uma historinha sem texto e só com imagens”, entre outras expressões,

inclusive uma delas foi a própria Maria Clara quem me ensinou: “- isso é um livro leitura-

imagem tia! É um livro reformado, é uma leitura-imagem, onde a pessoa vê a imagem e a

história” 175, ou seja, com poucas palavras, ela resumiu o que eu ainda estava tendo dificuldades

para lhe explicar.

Assim, a Fotoetnografia foi ganhando novos termos que não a subtraía em nada, apenas

a tornava mais acessível ao entendimento da criança-sujeito e de acordo com o contexto de cada

situação vivida. Partindo dessas premissas, estabeleci uma interlocução entre imagens e

narrativas sobre contos infantis, onde a criança pôde rememorar fatos a partir do movimento

memento, isso a possibilitou se sensibilizar com a história, compreender os sentidos e

significados da imagem no contexto geral da narrativa e produzir uma sequência narrativa

cronológica das imagens conforme os acontecimentos do filme já rememorados pela criança.

175 Durante o processo de geração de dados, não especifiquei a diferença entre imagem e fotografia, deixei

que a própria criança se familiarizasse com os termos ao longo da pesquisa, ou seja, ora nos referíamos às imagens dos personagens como fotografias.

363

Com isso, através das imagens da personagem, a criança reconstruiu o conto infantil.

Desse modo, pedi a Maria Clara que me dissesse a personagem infantil que ela mais

gostava, perguntei se ela conhecia a história completa dessa personagem e se poderia me contar

essa história utilizando apenas imagens, prontamente, ela respondeu:

MC - Sim, eu consigo fazer, é só pegar as imagens e juntar tudo. P – Você

pode escolher qualquer personagem, a que você gostar mais! (mas, ela balançou a cabeça me falou: MC - Mas, eu tenho váaaarias prediletas... P -

Mas, tem de escolher uma só... (Ela pensou e respondeu) MC - éeeee... a que eu mais prefiro é a Branca de Neve e a Frozen (nesse momento, ela não parava

de pular, entusiasmada com suas escolhas). 176

Eu insisti para que ela escolhesse apenas uma, mas ela não aceitou, e disse que a Branca

de Neve era “primeira” que ela gostava porque era “parecida” com ela, pois tinha cabelos pretos

e gostava de animais, além disso, ela lembrou que tinha “sido” a Branca de Neve na festinha da

escola. E Elsa (nome da personagem no filme Frozen), era a personagem que ela mais “queria

ser”, pois tinha muitos poderes e era “muito linda”. Inclusive, disse que seu sonho era ter um

aniversário da Frozen. Diante deste impasse e dos argumentos de Clara, resolvi trabalhar com

as duas personagens, iniciando pela a Branca de Neve, pois o planejamento flexível da pesquisa

me permitiu isso. Impressionou-me sua maneira de insistir no que queria, achei muito válido

essa segurança, por isso, decidi rever o plano.

Sensível à decisão de Clara, organizei duas atividades pedagógicas para favorecer o

processo de construção da narrativa visual. A primeira com a história da Branca de Neve e a

segunda com a história de Frozen. Ambas pensadas como estratégias de familiarização ao

método fotoetnográfico de inspiração autobiográfica.

A primeira proposta foi a de produzir uma narrativa imagética sobre a Branca de Neve,

através de cenas referentes ao filme. Este encontro foi realizado em minha residência, pois seria

necessário o uso de impressora com jato colorido. Os procedimentos foram: reviver a história

da Branca de Neve; selecionar imagens referentes à história; e montar um pequeno livro apenas

com as ilustrações. Para tanto, a seleção das cenas foi feita junto ao Google Imagens, no qual

através de palavras relacionadas ao conto, a criança poderia ir encontrando imagens para

construir a história da personagem. Mais especificamente, digitávamos parte da cena e o site

nos fornecia inúmeras imagens, em seguida, Clara escolhia uma e com meu auxílio,

“colávamos”, em sequência, em um documento de texto no programa Microsoft Word 2010, de

176 Para identificação dos sujeitos junto às transcrições das falas, codifiquei da seguinte maneira: P-

Pesquisadora; MC – Maria Clara; M – mãe; Pp- Pai.

364

modo a facilitar a visualização total das imagens lado a lado, dando possibilidades de

reposicioná-las buscando a sequência cronológica da narrativa de acordo com a história

original. Todo esse processo foi desenvolvido sob o ponto de vista da própria criança e eu a

auxiliava apenas na parte técnica da montagem sequencial da narrativa, como por exemplo,

mudar uma foto de lugar, trocar uma foto por outra, ajudar a procurar outras cenas no Google

Imagens, entre outras.

Durante este processo, ela me pediu para escrever algumas palavras, pois, ainda estava

em fase de alfabetização e não dominava a leitura e a escrita de alguns termos. Dessa maneira,

através da conexão entre palavras e imagens, ela ia conseguindo encontrar o que precisava para

montar o que chamou de “livro leitura-imagem”. Maria Clara ficava atenta aos detalhes das

imagens, evitava cenas com pouco colorido e imagens que a assustavam, como as do caçador e

da bruxa má. Este procedimento teve a duração de quase 2 horas, entre conversas, brincadeiras

e produção do livro. Na sequência, apresento parte deste encontro para destacar a desenvoltura,

a criatividade e a autonomia da criança em organizar seu livro-imagem.

Fui pegar Maria Clara em casa. Quando ela entrou no carro, foi logo me

mostrando sua boneca vestida de Branca de Neve. MC – Olha tia, eu trouxe

minha boneca da Branca de Neve! Ela tem um vestido igual ao que eu usei na festa da escola. P – Que linda! Adorei. Depois quero ver sua foto vestida de

Branca de Neve. E continuamos um pequeno diálogo até chegar a minha casa.

Assim que entramos no espaço destinado à pesquisa, Maria Clara logo exclamou: MC - Ahhh! Mãe olha é igualzinho ao de painho não muda nada!

Nada entre nada! (aqui ela estava se referindo ao computador). Sua mãe sorriu e respondeu: M - É verdade! Fui apresentando cada item da sala, computador,

impressora, canetinha, papel, e disse que ela poderia usar o que quisesse.

Depois de algum tempo iniciei o processo de pesquisa, liguei o computador e deixei a página do Google Imagens disponível. Expliquei os procedimentos

para Clara e logo ela entendeu, então falei: P - Vamos lá! Branca... Ela

completou: MC - de neve! Coloca tia! (completou pulando). Digitei o nome Branca de Neve no Google Imagens. P: Branca de Neve. Hummm tá

aparecendo muita coisa viu! MC: É tá! Ixiii... P: Como é que começa a história dela? Você lembra? MC: Quando era pequena... aí tinha um pai só que ele foi

embora aí deixou uma empregada, a empregada era má! M: Não era

empregada não! (A mãe de Clara corrigiu) MC: Não era? M: Era madrasta... (Aí Clara lembrou de mais alguns detalhes) MC: Ah sim, uma madrasta que

tinha um gato. Aí ela ficou com a madrasta, o que tinha acontecido mesmo

mãe? Estou tentando me lembrar. (Dessa vez a mãe não complementou. Clara ficou com dificuldades demonstrando certo desconforto, talvez por medo de

errar novamente) Então eu interrompi: P: Mas, daqui a pouco a gente vai lembrar não se preocupe não! A gente pode até ver a história também, juntas

né? Então fiz a leitura da história de Branca de Neve e ela acompanhou

atentamente.

365

No início, Maria Clara estava preocupada em não se lembrar da história completa

e a presença de sua mãe também influenciou um pouco, pois, em algumas situações ela

corrigia a filha na intenção de ajudar, mas, a deixava um pouco nervosa. Tive de saber

regular a participação de sua mãe durante as conversas para que sua interferência não

comprometesse o resultado, ao mesmo tempo, procurei não ser invasiva dando mais tempo

de abertura para que a criança se sentisse à vontade para continuar seu processo de criação.

Aos poucos, a mãe percebeu sua influência e deixou que Clara elaborasse sua fala e suas

reflexões sozinha. Partimos para a seleção das imagens. Maria Clara começou pela cena

em que a bruxa má estava de frente para o espelho.

MC - ela é a madrasta má. Continuou a narrativa e exclamou: - Nossa, esse computador é gigante! (Falou quando viu a quantidade de imagens que a tela

poderia mostrar). MC - Ai que linda! (Referindo-se a imagem de Branca de

Neve com os animais). MC - Olha esse vídeo da história! (Maria Clara percebeu que uma das imagens se tratava de um vídeo e pediu para assistir).

P – Mas, será que esse é do início da história? MC – vamos ver! Taramram taramram... (assistimos ao vídeo, em seguida, reiniciamos a seleção das

imagens). MC - Olha essa daqui é viva olha, essa do final, é essa ficou legal

porque a cor botaram viva! Até então eu não havia lhe dito que iríamos fazer um livro, mas, ao perceber que estávamos juntando imagens referentes à

história, ela tentou descobrir minha intenção e orientou: MC – olha aquela que

ela foi chamar os animais... tu bota aí pra..., como se fosse um caderno de anotações só que dentro do computador pra botar as fotos, aí depois [...] bota

a ordem aqui. (Ela havia escolhido uma imagem que seria utilizada mais para frente da história e disse que depois a gente a colocava no lugar certo) E de

forma muito esperta, ressaltou a pergunta: - A gente vai fazer um livro é?

Continuei: P – vai! MC – Ah tá, por isso eu escolhi aquela, e se a gente achar uma capa, melhor né! (lembrou que todo livro tem capa e o seu não poderia

ser diferente!) Mas, ofereci duas opções: P – Ou a gente faz um livro ou a

gente faz um cartaz, você decide. MC – eu acho melhor um livro, porque cartaz, sabe ele é muito grande, é difícil de fazer [...].

Neste relato, Maria Clara demonstra sua inteligibilidade ao descobrir por si só, o que

estávamos fazendo. Propositadamente, não revelei que se tratava da produção de um livro, até

mesmo porque ainda não sabia se os procedimentos dariam certo. Mas, para minha surpresa,

ela imediatamente percebeu, demonstrando alto nível de sensibilidade e percepção. Esse trecho

também demonstrou sua capacidade em fazer conexões entre o passado e o presente, ao

organizar, cronologicamente, os fatos.

Continuamos com a busca e quando chegou à cena do caçador, Maria Clara disse: MC - Nãoooo, meu Deus do céu! Eu que num quero, tô me

assustando de medo! E continuou: [...] É o caçador, só que botaram a

cara dele feia, embuchada né [...] mas, na foto que a gente assiste ele

366

tava muito mais bonitinho né (e fez uma carinha engraçada). Então

procuramos outra imagem. MC: Coloca Branca de Neve fugindo do caçador, tia! Imediatamente, o fiz, e apareceram inúmeras imagens na

tela do computador, no entanto, não satisfeita com o que via, me pediu

para alterar a frase da busca. MC: Tia, muda a frase para: “o coração de Branca de neve com o caçador, porque não apareceu aquela imagem que

tem o coração na caixinha”. Então, fiz a “troca” e ela encontrou a

imagem que queria. Da mesma forma ocorreu com as cenas da madrasta má. Eu mostrava algumas imagens da bruxa com uma verruga no nariz

ou fazendo caretas, aí ela já tratava de ir logo cortando, antes mesmo que eu perguntasse se ela queria. P – Quer a bruxa? MC – não P – essa bruxa

bem aqui? MC – não! A bruxa ela tá feia, veia, verrugada, “fea”. Dando

continuidade, mostrei as imagens lado a lado e perguntei se estava faltando algo. Ela respondeu: MC – Humm, tá faltando algumas partes!

Aí voltamos ao Google Imagens e ela visualizou a foto do príncipe

beijando a Branca de Neve e começou a bater palmas e a “cantar”: MC – bóota, bóota, bóota!!! [...] ah ficou legal! Bóota, bóota! E ficou

repetindo - Beijinho na boca, beijinho na boca, beijinho na boca (e soltou vários beijinhos estalados no ar para que ficássemos rindo dela. Quanto

mais ríamos, mais ela fazia gracinhas). Seguimos com a história e ela foi

conferindo os lugares das imagens e as partes que faltavam.

Com base neste trecho, nota-se que Maria Clara sabia exatamente, organizar a ordem e

os sentidos da história da Branca de Neve, às vezes, percebia que algum fato havia ocorrido

antes do outro e prontamente, modificava a sequência de sua fotomontagem. Ela se surpreendeu

com suas escolhas e falou: MC – “Aêee a gente já botou um monte de foto, nossa mal a gente

começou esse trabalho e já tá com um monte de foto! Muitas!”.

Em alguns momentos Maria Clara manuseou sozinha o computador para fazer buscas,

isso facilitou o processo de seleção e montagem do “livro leitura-imagem”, aliás, em

determinados momentos, ela até dispensava a minha ajuda, “- deixa que eu faço, tia, eu já sei

como é”, então ela selecionava a imagem e ela mesmo colava no Word, só quando realmente

não conseguia fazer algo é que ela me solicitava.

Através do memento, Clara reviveu a história, aflorou sentimentos e nos ofereceu outras

formas narrativas para a vida de Branca de Neve. Sistematicamente, esse processo ocorre

quando “ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os

elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O olhar reconstitui a dimensão do

tempo. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos”

(FLUSSER, 1998, p. 28).

Como visto no trecho narrativo anterior, o vaguear do olhar de Clara fazia conexões

entre os elementos constitutivos da história dando sentido à sua narrativa. Sempre muito atenta

aos detalhes das imagens, escolhia as mais coloridas, “vivas” e “alegres”, como ela dizia. Com

desenvoltura, Maria Clara recontou imageticamente a história da Branca de Neve.

367

Veiga Simão, Frison e Abrahão (2012, p. 60) entendem este processo de construção

criativa da criança a partir do conceito de autorregulação da aprendizagem que parte do

pensamento freireano para explicar a capacidade crítica do indivíduo em tomar como objeto de

reflexão a sua própria curiosidade, justificando-se nas palavras de Freire (1997, p. 53):

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao

desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante

do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos,

acrescentando a ele algo que fizemos.

Após a seleção das cenas, imprimi as imagens selecionadas e a entreguei para que

montasse seu “livro leitura-imagem”, ela conferiu a ordem e eu grampeei as páginas para

confeccionar o livro. Em seguida, perguntei se estava faltando algo, ela disse logo: “- a capa, é

a capa! (pulando sem parar...) deixa eu escolher a imagem da capa! Tia”, e logo pediu para

pesquisar no google novamente. Mas, surpreendentemente, Maria Clara queria fazer uma capa

igual aos livros paradidáticos convencionais e foi me dizendo o que queria acrescentar,

inclusive sugerindo o seguinte título: “A história grandiosa da Branca de Neve contada por

Maria Clara”. Ao final, o livro leitura-imagem contou com 22 imagens e uma capa. Por sugestão

de sua mãe, Maria Clara fez um vídeo para postar em seu instablog

“@achadinhosdemariaclara”, acompanhado da seguinte narração:

MC - Boa noite genteee, aqui quem tá falando é a blogueirinha Maria Clara, dos achadinhos, e hoje eu fiz um livro da Branca de Neve gente, essa é a capa

e olha, todo livro aqui reformado, todas as páginas que ele tem aqui reformada

e essa é a parte do final, tem cada uma das páginas lindas gente. A gente criou a mando de uma tia e eu, eu criei, eu fui pegando as páginas e juntando, ai eu

copiei e... e... tarãaaamm, o livro, é só colar e vira um livro! Beijão gente! uuuunnnmaaaaaaahhh! (e solta um beijo para seu espectador).177 (extraído dos

@achadinhosdemariaclara).

Nesta postagem, Clara deixa transparecer a satisfação em ter sido a autora do livro, ela

ficou orgulhosa em ver seu produto final e não escondeu a alegria, após a gravação ela passava

e repassava as folhas contemplando sua criação.

As filmagens e postagens de Maria Clara são produzidas pela mãe, no entanto, a

criatividade do texto falado é da própria criança. Maria Clara elabora suas falas de maneira

177 Para tentar uma transcrição aproximada do som do beijo, utilizarei “uuuunnnmaaaaaaahhh!”.

368

espontânea, recebe poucas instruções da mãe e produz seus vídeos de acordo com suas

subjetividades e interpretações. De modo singular, ela vai dando sentido às suas experiências

através de pequenas narrativas videográficas. Geralmente, demonstra confiança em si e

dispensa a ajuda da mãe: “- Eu já sei, mãe, deixa, deixa!”, pois, prefere criar suas próprias falas

sem interferências.

São postagens bem curtas, mas muito expressivas, características próprias de vídeos

dessa natureza. Ela consegue controlar o tempo de gravação ao conteúdo de sua fala. Sempre

inicia com a expressão “gente” que representa os espectadores do vídeo, e ao final sempre solta

um “beijo” gesticulando com as mãos em sua boca, uma forma carismática de se sentir próxima

de quem a está vendo. Pessoalmente, Clara é muito carinhosa, respeita as convenções cordiais

(boa tarde, obrigada, com licença, por favor, etc...) e é muito comunicativa. Segundo relatos de

sua mãe, desde pequenina ela já demonstrava essa preocupação em ser agradável e gentil com

as pessoas: MC - “Maria Clara sempre foi assim, muito educada, atenciosa, carinhosa. Ela desde

novinha sempre gostou de agradar as pessoas, de dar beijo, abraço, assim, muito carinhosa

mesmo”. Ao final desse encontro, Maria Clara logo fez uma cobrança: MC “- E agora é a da

Frozen, tia?” Respondi: P “- por hoje é só a Branca de Neve. Você não está cansada?”, ela

respondeu MC “- Na, na-ni-na-não! Eu quero a da Frozen também tia! Vai, vai, vai, por favor!”.

Mas, já era quase 10 horas da noite, então expliquei que realmente só poderíamos fazer a

história de Frozen no próximo encontro. Ela entendeu e me deu um abraço. Fizemos um

pequeno lanche e as deixei em casa. Maria Clara ainda estava entusiasmada com sua produção

e não via a hora de ver o livro da Frozen, mas, eu sabia que se iniciássemos, ela iria ficar cansada

e não conseguiria terminar, então, para evitar quebras no processo de construção, preferi deixar

para o próximo encontro.

A organização do “livro leitura-imagem” da Branca de Neve evidenciou a condição

criativa do pensamento infantil, estimulou a produção de conhecimento através da interpretação

da imagem. Ao mesmo tempo em que Clara contemplava a beleza estampada nas cenas, ela ia

dando sentido à história. Objetivamente, controlava o que deveria ou não fazer parte de sua

criação, importante destacar que, não foi preciso muita explicação sobre o processo para que

ela entendesse a proposta. De maneira muito ativa, ela refletia sobre cada imagem e articulava

as cenas em seu pensamento para em seguida “encaixar” no “lugar certo”. Esta forma de

aprendizagem autorregulada revela a atuação autônoma de Clara, sua capacidade de realização,

organização e discernimento, características presentes no processo de narração autobiográfica,

tendo em vista que, “a autorregulação da aprendizagem é articulada e reforçada pelo

entrelaçamento de experiências narrativas com as estratégias de ensino” (FRISON e SIMÃO,

369

2011, p. 203).

A desenvoltura de Maria Clara, me instigou a dificultar um pouco mais o processo, pois,

nesta primeira etapa ela quem decidia sobre as cenas e a quantidade de imagens que usaria,

além disso, fizemos uma leitura sobre a história da Branca de Neve e assistimos parte de um

vídeo. Já nesta segunda etapa, tentei perceber sua capacidade de articular as reminiscências do

filme com partes das cenas impressas em imagens para colorir, aumentei a quantidade de

imagens e as espalhei, aleatoriamente, sobre uma enorme mesa. Em seguida, pedi para Clara

ordenar as cenas e montar seu segundo “livro leitura-imagem”. Imaginei que ela iria querer uma

capa, e tive a iniciativa de escolher uma imagem e montar a capa com os mesmos dados do

livro anterior. Esse encontro foi feito na casa de Clara.

Assim que cheguei na casa de Clara, ela me recebeu com um enorme sorriso e um forte abraço. Para minha surpresa, ela estava vestida de

Elsa (personagem do filme Frozen) com um longo vestido azul cheio de brilho e uma coroa na cabeça. P – Nooosa, Clara! Você está linda!

MC – eu adoro essa roupa da Frozen, vai ser a roupa do meu aniversário. P – eu também trouxe uma surpresa para você! Olha! MC – a capa da

Frozen, que lindaaa, amei!

Interagi um pouco mais sobre o filme e iniciei a atividade pedagógica. Espalhei sobre

uma mesa 35 figuras do filme Frozen, eram desenhos para colorir. Para Sarmento (2007, p. 36)

“o desenho é especialmente apropriado para aceder as formas de expressão de crianças”, no

entanto, só farão sentido se estiverem contextualizados nas culturas infantis, pois, estruturam-

se a partir de quatro pilares: “a cultura lúdica, a fantasia do real, a interactividade e a reiteração”

(SARMENTO, 2007, p. 36). Ela ficou um pouco apreensiva quando viu a quantidade de

imagens, mas, aos poucos foi se familiarizando com as cenas.

P - Você tá vendo aí um monte de imagem né. Essas imagens são de

que? MC - Frozen. P- Você já assistiu? MC – Já, eu assisti umas 10 vezes alí (apontando para a televisão/DVD). Eu pedi para que ela desse

uma olhada geral nas imagens para ver se conseguia lembrar-se da história, mas ela já havia observado atentamente, enquanto eu ainda

estava espalhando as imagens na mesa. Então disse: MC - Já que não tem as primeiras, todas as imagens primeiras, eu sei que essa é uma das primeiras, que ela joga o gelo e acaba atingindo a irmã (e faz o gesto de

jogar gelo com a mão), aí depois a irmã pede para ela fazer o gelo de novo. P – Será que não tem outra antes? Vamos ver. (circulamos em

volta da mesa conferindo outras imagens) MC – Essa daqui é lá no final... essa aqui é no começo quando ela joga [...] faz uma barreira pra

370

ninguém passar e ela corre! [...] – Essa daqui não tem na história não, eu acho que inventaram essa imagem.

Através desse passeio visual, Maria Clara foi organizando mentalmente a posição das

imagens, inclusive, percebeu que duas das imagens não faziam parte do filme original. Em

seguida, pedi para ela separar as imagens em ordem para montar o “livro leitura-imagem”. Ela

rapidamente pegou as primeiras imagens e foi narrando as partes referentes à história. No

entanto, diante daquela quantidade de imagens, ela comentou com uma vozinha bem baixinha,

para não me magoar: MC – ai meu Deus do céu, vai dar muito trabalho! (E sorriu

discretamente). Mas, não desistiu. Ficava circulando entre as imagens, conferia o que já tinha

colocado em ordem, fazia conexões entre as imagens, sempre narrando cada parte da história.

Sempre que achava uma imagem, ela ia “encaixando” no “livro”, mantinha ou alterava a ordem

das imagens até encontrar o lugar certo de cada uma.

P – Nossa você tá conseguindo! Você é muito boa nisso viu! MC – Eu assisti o filme, várias, várias e várias vezes (girando o dedinho para o

alto). Nesse momento ela encontra uma imagem e tenta encaixar, mas fica pensativa e desiste, volta a circular pela mesa para encontrar outra

imagem, que provavelmente era a que estava pensando. MC – Tem algumas imagens que eu posso até ter pulado, por isso estou corrigindo

aqui. (estava conferindo a ordem das imagens). MC - essas aqui são do Olaf (personagem do boneco de neve), estão mais próximas e eu

esqueci de botar.

O cuidado com que ela desempenhava seu trabalho era surpreendente, ela prestava

atenção aos mínimos detalhes da imagem, entre uma volta e outra na mesa ela pulava,

cantarolava e fazia gestos com as mãos como se estivesse representando a Elsa, mesmo cansada,

encontrava ânimo para continuar, o que demonstrou ser uma criança determinada e persistente.

As imagens se ofereciam aos olhares e subjetividades de Clara à espera de serem revividas,

sentidas e compreendidas, e assim, ela experienciava o memento.

Ao fim da atividade, Maria Clara comemorou sua produção e foi correndo pegar o livro

da Branca de Neve, para que eu fizesse uma foto dela, ergueu os dois livros e disse: – agora

tenho dois livros feitos por mim, olha mãe, consegui! Veio em minha direção e disse: - Posso

pintar tia? Respondi: Claro! Você pode fazer o que quiser! São seus. Ela saiu em direção ao

quarto, pegou seu estojo de lápis de cor e começou a pintar. E conversamos mais um pouquinho:

371

P - E se você fosse uma princesa, que princesa seria? MC - Eu ia ser a Frozen

misturada com Branca de Neve e misturada também com a princesa dos animais e a princesa da natureza e a princesa da chuva, que as vezes quando

eu fico chorando eu acabo invocando a chuva. P - Quer dizer que você tem

poderes? MC - Uhum... P – deixa ver se eu entendi! Por exemplo, a Frozen é a sua princesa predileta, mas você é a princesa Clara que tem outros poderes,

que junta o poder de várias princesas, é isso? Eu entendi? MC - Uhum... P –

Me conte então sobre essas mágicas! MC - Uma mágica, que faço é assim, quando eu chego em algum lugar, de animal eles correm tudo pra mim, é que

eu tenho um jeito que eles não querem mais sair de perto de mim, uma vez um animal tava preso, aí eu colocava a mão e ele colocava a patinha. P - Eu vi que

você foi na Bica [um zoológico de João Pessoa], brincou com os animais, eu

vi você segurando uma cobra. MC - Sim, eu brinquei com a cobra. P - Você não tem medo não? MC - Não, a bichinha não pica não, só se enrolou em mim.

P - Então você tem um poder mesmo de conquistar os animais? MC - Eu não

sei muito, mas acho que tenho, pois consegui colocar uma cobra no braço e no pescoço sem ela picar, isso é muito difícil.

A hora estava avançada e não pude acompanha-la na pintura. Na despedida, mais uma

vez, ela me deu um abraço. E não perdeu tempo em perguntar: MC - A senhora volta quando?

Respondi: P - na próxima semana. Aí verei sua pintura. Agradeci, dei os parabéns pelos livros

e fui embora.

A estratégia do “livro leitura-imagem” de Frozen foi um pouco exigente, até cansativa,

reconheço que a quantidade de imagens dificultou a atividade. A criança mesmo cumprindo sua

“missão” ficou nitidamente cansada. Por outro lado, essa atividade desenvolveu o movimento

de interpretação memento, onde a criança teve a oportunidade de reviver a história, se

sensibilizar com as cenas e compreender o contexto geral da narrativa. Demonstrou também o

poder expressivo das imagens em comunicar algo, em carregar pensamentos, em desvelar

memórias (SAMAIN, 2012, p. 158).

As imagens falam por si, são registros narrativos de uma história, que neste caso, fazia

parte da cultura infantil de Maria Clara. Ela conhecia intimamente os personagens, as tramas e

os desfechos da história. Em algumas situações ela incorporava a Elsa e fazia os gestos da

personagem, revivendo as cenas. Observei que seu pensamento precedia sua linguagem, antes

de comentar a história ela refletia sobre os fatos, fazendo emergir suas reminiscências. Visto

pela Psicologia do Desenvolvimento, as imagens levaram a criança a adquirir funções

intelectuais, consequentemente, a formular o pensamento e produzir linguagem (VYGOTSKY,

1991, p. 44), passando do nível de desenvolvimento real para o nível de desenvolvimento

potencial, ou seja, as imagens tiveram função mediadora.

Minha preocupação foi proporcionar à criança algo que a atraísse, algo que a estimulasse

e a desafiasse. Gostaria que ela produzisse conhecimento através de sua sensibilidade, com

artefatos próprios da sua cultura, com isso, a necessidade dela própria escolher as personagens.

372

Durante as duas propostas a incentivei em cada descoberta, deixei que ela mergulhasse nas

histórias, vivenciasse as cenas e sentisse as emoções de cada personagem. Deixei sua

imaginação fluir, suas reminiscências emergirem e sua criatividade desabrochar, para que o

memento pudesse de fato, se materializar nesta experiência. Buscando assim, reflexionar estes

procedimentos na dimensão da Fotoetnografia autobiográfica, que seria o próximo passo da

pesquisa. Então, ao mesmo tempo em que Maria Clara vivenciava a experiência do memento,

eu também adentrava em minhas próprias percepções e reminiscências, dei tempo à minha

ansiedade em conhecer as “verdades” daquela realidade e mergulhei profundamente no

universo de Maria Clara em seu reino de Luz que, cada vez mais, me atraia. Segui os sábios

conselhos de Larrosa (2002, p. 24) e decidi “parar” para ver, sentir, contemplar e compreender

a “experiência”, pois,

[...] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto

de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais

devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir

mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a

atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).

Foi preciso parar para estar sensível às particularidades concretas que davam sentido à

ação da criança e me ajudariam a desvelar a realidade a partir de uma escuta sensível e apurada

junto à criança-sujeito. Após esse mergulho no universo luminoso de Clara, entendi que ela

tinha muito mais a me ensinar do que eu poderia imaginar aprender. Percebi que sua expectativa

era sempre uma mensagem de “seja bem-vinda”, mas, ao mesmo tempo soava como uma

cobrança aos meus ouvidos, a de que tudo deveria ser “divertido” para ela. Eu precisava fazer

daqueles momentos, uma brincadeira e não um trabalho!

Este era meu papel, minha responsabilidade enquanto mediadora, então, por vezes

refleti sobre como os procedimentos deveriam ser realizados, como eu poderia discernir as

aberturas e os enquadramentos necessários a cada situação específica. Principalmente, porque

eu sabia que essas estratégias não poderiam ser cansativas e demoradas, portanto, este “saber

jogar” e esse “saber olhar” eu tive de aperfeiçoar em campo, primeiro, através das negociações

que envolveram confiança, respeito mútuo e ética; segundo, reavaliando constantemente, a

sistemática do plano de ação, estando sensível aos desejos e limites da criança, suas percepções

e interpretações. Ou seja, toda essa sensibilidade deveria ser minha, já que a preocupação de

373

Clara em não me magoar era nítida, pois ela queria ser gentil, mesmo que essa gentileza lhe

custasse o tédio, o cansaço e a falta de vontade em continuar a atividade (como observado no

final da produção do livro leitura-imagem da Frozen).

Considerando as experiências anteriores, antes de iniciar a Fotoetnografia

autobiográfica, decidi conviver um pouco com Maria Clara, brincar com ela, conhecer seus

brinquedos, suas histórias, sua convivência com a família, entre outras situações. Desse modo,

durante três encontros consecutivos, dias 17, 21 e 24 de fevereiro de 2017, apenas brinquei,

observei e conheci seu grande “reino mágico”, dando continuidade assim, ao diário

fotoetnográfico.

1.2 Cantos... Um reino encantado chamado Luz

A pesquisa com criança nos desafia a “conhecer as crianças a partir delas mesma, ou

seja, no convida a efetuar um exercício de observação, percepção, penetração, participação e

interação com elas na configuração coletiva das condições de existência” (MARTINS FILHO

e DIAS PRADO, 2011, p. 9). Assim, busquei no “aqui e agora” da criança, reconhecer as

singularidades da infância em seus modos de ser e de agir; entender as produções culturais que

envolvem suas construções subjetivas; e sobretudo, suas formas de protagonismo e participação

no ambiente familiar, considerando que as crianças atuam como “Partícipes da história, em um

processo não somente reprodutivo, mas como sujeitos ativos em uma apreensão criativa”

(MARTINS FILHO e DIAS PRADO, 2011, p. 2-4). Nesse movimento de pesquisa, Maria Clara

foi a principal interlocutora, ela direcionava as nossas conversas, decidia o que faríamos e se

expressava da maneira que queria.

Suas decisões afetavam diretamente o desenvolvimento da pesquisa, me dando suporte

para decidir o melhor caminho para produção da sua fotoetnografia autobiográfica. Nesta

mesma perspectiva, para produção da narração fotoetnográfica também foi necessário

considerar minhas próprias percepções, traçando as molduras que enquadrariam as cenas que

seriam magicizadas em fotografias (AUMONT, 2016, p. 158), com o objetivo de contar a

história de Maria Clara.

Nestas linhas, então, procuro descrever em low key e contextualizar em High key as

composições narrativas produzidas durante a geração de dados através de registros – escritos e

visuais que funcionaram como um diário fotoetnográfico. Neles, fui enquadrando momentos e

experiências do campo de pesquisa. Na óptica da pesquisa fotoetnográfica, texto e imagem são

naturalmente diferentes, entretanto, “no limite do texto, a fotografia pode avançar ‘iluminando’

374

certas passagens e, no limite da fotografia, o texto cumpre um papel analítico insubstituível”

(ACHUTTI e HASSEN, 2004, p. 227, grifo dos autores).

Portanto, entre textos escritos e visuais, estive atenta às redes de significação da criança

para desvelar suas formas de ser, viver e conviver em seu contexto sociocultural familiar.

Inspirada no método etnográfico, a descrição densa foi constituída de forma heurística e

transdisciplinar, fazendo opções metodológicas mais adequadas à pesquisa fotoetnográfica.

Desde modo, no “estar lá” e “estar junto” evitei fazer anotações, tentei registrar em vídeo e

fotografia os momentos em que passamos juntas, para só depois - no “estar aqui”, poder refletir

as experiências, rever as cenas e dialogar com os fundamentos teóricos (GEERTZ, 1989, p. 58).

O contato direto com a realidade desta criança proporcionou conhecer as produções

culturais de um tipo de infância que vive em constante interação com outras culturas – adultas,

visuais, midiáticas, constatando assim, que a criança se encontra em um espaço cultural

intermediário, fronteiriço, que se constitui, initerruptamente, de forma contingencial e híbrida,

consequentemente, produzindo identidades plurais e descentralizadas (HALL, 2011, p. 34-46).

O “reino encantado” de Maria Clara se constitui nesse espaço híbrido entre-cultural,

cheio de artefatos, informações, visualidades, emoções, experiências e significações que

circulam nas zonas fronteiriças entre universos adultos e infantis. As várias identidades de Clara

revelam a potência infantil de ser criança e exercer sua participação na sociedade de forma ativa

e crítica.

A infância em que Clara habita pode ser entendida a partir das duas concepções de

infância colocada por Kohan (2009, p. 25) ora como uma etapa sequencial, histórica, marcada

pelo tempo de progressão e ora como experiência, como “[...] ruptura de la historia, como

revolución, como resistencia y como creación”, ou seja, como uma infância que

[...] atraviesa e interrumpe la historia, que se encuentra en devenires

minoritarios, en líneas de fuga, en detalles; infancia que resiste los movimentos concéntricos, arborizados, totalizadores, totalizantes y

totalitarios: infância que se torna posible sólo en los espacios en que no se

fija lo que alguien puede o debe ser, en que no se antecipa la experiencia del otro. Espacios propicios para esas infancias son aquellos en que no hay lugar

para los estigmas, los rótulos, los puntos fijos (KOHAN, 2009, p. 25).

Em outras palavras, trata-se de uma infância que não cabe em discursos pré-fixados,

dada sua singularidade, complexidade e subjetividade. Clara habita uma infância que é única,

mas, não está isolada, tampouco, fixada em modelos culturais, é uma infância que se adapta,

rapidamente, aos “entre-lugares” dos quais faz parte. A criança de Clara contribui ativamente

375

para a produção e mudança cultural (CORSARO, 2009, p. 31), ela participa, reflete e interpreta

a realidade de acordo com suas percepções e inteligibilidades, está sempre pronta para

surpreender e desconstruir nossas apreensões sobre ela. Clara quer escolher, opinar, criar,

decidir sobretudo, o que diz respeito a ela, e se isso não for possível, ela é capaz de transgredir

ou resistir ao que não lhe convém.

Clara exerce seu protagonismo nas relações de alteridade que estabelece na cultura de

pares, entre adultos e com as novas tecnologias midiáticas, é uma criança que representa a

imagem sociológica que estou a comprovar - a da criança protagonista, ou seja, uma criança

que protagoniza sua infância de forma criativa, participativa e empoderada (BUCKINGHAM,

2007; GUIMARÃES, 2016; HART, 1992; KOHAN, 2004; LANSDOWN, 2003; OLIVEIRA,

2007; ROCHA e PASSEGGI, 2012). Esta é, portanto, uma releitura crítica das imagens pré-

sociológicas de criança no quadro estrutural funcionalista (MARCHI, 2011, p, 392) que

considera a criança como ator social e a infância enquanto categoria social, resultados de um

processo de reflexividade moderna (SARMENTO, 2015, p. 35). Para desvelar esse

protagonismo de Maria Clara, contextualizarei um pouco sua história, a partir de relatos

elaborados junto à sua mãe, ao seu pai e à própria Clara, bem como, com base nas investigações

empíricas.

Maria Clara mora com o pai, a mãe e o irmão, estuda em uma escola privada e reside

em apartamento, localizado em um bairro nobre de João Pessoa. Sua família é de classe média,

sua mãe não trabalha, pois, recentemente, vendeu sua loja de roupas. Seu pai é empresário do

ramo de construção civil, mas, atualmente, tem enfrentado as repercussões econômicas da crise

política e financeira em que passa o Brasil. Entretanto, as reservas da família ainda permitem

manter um bom padrão de vida.

Maria Clara é cheia de rotinas, desde pequena sua mãe a estimulou a participar de

atividades escolares, culturais e sociais. Boa parte de sua trajetória de vida pode ser

acompanhada em redes sociais, onde diariamente, sua mãe posta fotografias e filmagens178.

No encontro do dia 17 de fevereiro de 2017 conheci o ambiente residencial de Clara, ela

me apresentou todos os espaços, desde a varanda do apartamento e a vista do bairro, até o

playground, a piscina e o salão de festas. Ela também me explicou como utilizava cada um

desses lugares. Depois retornamos ao apartamento e ela me mostrou seu quarto, suas bonecas

prediletas, seus jogos, suas pinturas, alguns livrinhos infantis, mostrou suas roupas, maquiagens

e seus acessórios como bolsas e presilhas de cabelo, conforme o pequeno trecho narrativo:

178 Detalharei a relação de Maria Clara com as redes sociais no próximo subcapítulo.

376

MC – Esse é o meu quarto, eu adoro meu quarto. P – Nooossa! Que quarto

lindo! Você é bem organizada. MC – Não sou não, eu bagunço tuuuudo! Deixo tudo fora do lugar! (risos) M – Ela tira tudo do lugar, deixa espalhado

na casa inteira (risos), mas quando eu digo pra arrumar, ela arruma. Mas, também fica querendo me enrolar e eu acabo fazendo pra ela. MC – é verdade

(ela ri e balança a cabeça em sinal positivo). P – Mas, Clarinha! Tem de ajudar

a arrumar, fica tão bonito arrumadinho, né? MC – mas, quando eu quero brincar, não dá pra ficar no lugar, eu misturo tudo! (ri e faz gesto com as mãos

para mostrar a bagunça). P – Sério! MC – seríssimo! (todos riram).

Maria Clara gosta de ser engraçada, faz trejeitos com a boca, com os lábios, com as

mãos, muda a voz, está sempre tentando nos fazer rir. Seu quarto é espaçoso, possui móveis na

cor branca, sua cama é bem alta, tem formato de castelo e para subir tem uma pequena escada,

sua cômoda é cheia de acessórios como cintos, tiaras, chapéus, laços, presilhas de cabelo,

óculos, bijuterias, maquiagens e no guarda-roupa, uma série de combinações entre roupas e

calçados. Ela gosta muito de vestidos e saias longas. Sempre combina cores, estilos e acessórios.

Gosta de escolher o que vai usar, pois é muito vaidosa e adora maquiagens, principalmente,

batons, de preferência, vermelhos. Segundo relatos da mãe, Clara é quem escolhe o que vai usar

e/ou comprar, quando for o caso, mesmo que a opinião de sua mãe seja diferente da dela.

Neste mesmo dia, Clara me mostrou alguns desenhos que havia pintado em outras

ocasiões, que estavam guardados como recordação, alguns da escola, outros que ela imprimia

da Internet no computador de seu pai e pintava em casa. Ela tinha figuras de personagens de

desenhos animados como: Pokémon, Monsters High, Kogu, Shopkins, e outros. Inclusive, ela

separou dois que eram do filme Frozen, especialmente, para me mostrar, pois se lembrou da

nossa atividade anterior e estava ansiosa para fazer uma sugestão: MC “- gente, eu acho que

isso aqui da Frozen poderia entrar, ó [...] no caderno da Frozen ó, [...] poderia entrar naquele

negócio da Frozen (se referindo ao livro leitura-imagem), que ela tá soltando gelo pra fazer o

Olaf, só que tá aqui GEO (escola onde estuda) né” (balançou a cabeça em sinal negativo).

Ela pensou em sugerir que eu acrescentasse no livro uma atividade que tinha feito na

escola da personagem Elsa com o boneco de neve Olaf, mas, logo que percebeu o slogan da

escola, recuou e fez um ar de dúvida, como se no livro dela não pudesse ter o nome da escola.

E destacou outro desenho “- Olha, esse daqui é o namorado da Frozen que é um dos guardiões

que também solta gelo, aí como ele faz gelo, foi escolhido o namorado da Frozen” (é muito

comum Clara chamar a princesa Elsa de Frozen).

Clara assistiu inúmeras vezes o filme “Frozen: uma aventura congelante”. Trata-se de

uma história entre duas irmãs muito unidas, que perderam seus pais e foram separadas devido

377

aos poderes “congelantes” de uma delas. Essa história comove as crianças, pois além do enredo,

apresenta muitos musicais emocionantes. A sinopse do filme no site oficial da Disney resume

a história da seguinte maneira:

A destemida e otimista Anna parte em uma épica jornada ao lado do radical

alpinista Kristoff e da sua leal rena Sven para encontrar sua irmã Elsa, cujos poderes gelados condenaram o reino de Arendelle a enfrentar um inverno sem

fim. Numa corrida contra o tempo para impedir o reino de ser destruído, Anna

e Kristoff encontrarão trolls místicos, um divertido boneco de neve chamado Olaf, baixíssimas temperaturas e muita magia em todos os lugares (DISNEY,

2017).

Frozen estreou em 2013, com repercussões mundiais, foi recorde em bilheterias, sendo

a 9ª maior bilheteria da história. Desde então, é aclamado pelas crianças, e seus personagens

principais, as irmãs Elsa e Anna, tornaram-se ícones para as meninas desta geração. Venceu

Oscar de melhor filme de animção e melhor canção original – “Let il Go”, além do Globo de

Ouro de melhor filme de animação, cinco Annie Awards e dois Grammy Awards de melhor

trilha sonora compilada para mídia visual e melhor canção. Em termos de valores, Frozen

arrecadou 400.768,009 dólares na América do Norte e aproximadamente, 873.481,000 em

outros países, arrecadando mundialmente em torno de 1.274.219,009 dólares. Atualmente,

ainda exerce forte influência nas culturas infantis, pois, desencadeou uma série de produtos e

artefatos culturais que carregam sua marca imprimindo seus personagens, como brinquedos,

roupas, calçados, bijuterias, acessórios, produtos escolares – agenda, cadernos, lápis, mochilas,

e muitos outros produtos comerciais.

São estes artefatos da indústria cultural que segundo Kelnner (2013, p. 121) têm

assumido um poder cultural enorme na sociedade contemporânea, “Eles são parte do aparato

cultural que tem produzido uma crescente privatização, comercialização e reificação de nossa

cultura” sendo necessário, portanto, que esta discussão adentre nos espaços educacionais para

que através de um alfabetismo crítico da cultura popular, a criança possa adquirir formas de

resistência às imposições culturais que visam unicamente, o estímulo ao consumo.

Não que eu seja contra a produção de artefatos direcionados à infância, eles são

necessários, mas, o que está em jogo é a exploração econômica absurda que está por trás dos

apelos midiáticos de grandes empresas, o que configura o capitalismo de consumo (KELNNER,

2013, p. 108) e dissemina uma visão de mundo baseada em valores e comportamentos

consumistas. Entretanto, concordo com Sarmento (2007, p. 26) que as culturas da infância estão

378

“para além dos processos de colonização cultural dos mundos de vida das crianças pela indústria

cultural da sociedade capitalista”, pois as culturas que se produzem no cotidiano social também

constituem as “ações dotadas de sentido, os processos de representação e os artefatos

produzidos pelas crianças”, ou seja, “este processo é criativo tanto quanto reprodutivo", dessa

forma,

O que aqui se visibiliza neste processo é que as crianças são competentes e

têm capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si

próprios, da natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidarem com tudo o que as rodeia

(SARMENTO, 2007, p. 26).

Mas, voltando ao diário fotoetnográfico, Clara continuou me mostrando os desenhos e

de repente, algo chamou minha atenção:

P – Ah! Esse desenho foi do Geo né? MC – éeee, quando eu era criança, ó. P – Quando eu era criança? MC – Hurrum! P – E você é o que agora? MC –

Agora sou, éeee... Não respondeu e continuou: MC - Quando eu era criança eu tinha pintado aquela mesma imagem que você, ó. P – Foi? MC – tá aqui a

imagem. P – quando tu era criança? MC – Hanrram! P – E você é o que agora?

Pensou e respondeu: MC – Eu eraaaa quase-bebê! P – Ahh, e você ainda é criança agora? MC - Hurrum! P – você acha que a pessoa deixa de ser criança

com que idade? Einh Clarinha? MC – 11 anos? P – é mesmo! Com 11 anos!

Quando Clara refere-se a si própria no passado como criança, conferindo-lhe o

significado de “quase-bebê”, ela reconhece que cresceu e demonstra que entende a passagem

do tempo em sua própria história de vida, com se “agora” ela fosse uma criança “grande”. Em

várias ocasiões essa diferenciação de como ela se via pequena e como ela se vê atualmente

grande, pôde ser percebida. Às vezes, ela até fazia críticas ao seu próprio comportamento como

“não sei porque eu fiz isso!”, “Meu Deus como eu tirei essa foto assim... que horror”. Visto

pela pesquisa biográfica, o ato de narrar as próprias histórias, está na “origem do conhecimento

de si” e essas narrações me ajudaram a compreender que ela, enquanto narradora de si, contribui

diretamente para o próprio processo de desvelamento de sua autobiografia (PASSEGGI,

NASCIMENTO e OLIVEIRA, 2016, p. 115), consequentemente, para a produção da

Fotoetnografia.

Se é verdade que o humano, desde tenra infância é um ser contador de

histórias, capaz de refletir sobre suas experiências, a investigação que faz uso das narrativas de si, como objeto de estudo e método de pesquisa tem um

379

duplo mérito: levar a criança a refletir sobre ela mesma na atividade de

biografização e o pesquisador a refletir sobre si mesmo ao escutar, ler, analisar, publicar as narrativas que lhe são contadas. De modo que a atividade

de biografar-se não traduz apenas o conhecimento que adquirimos sobre o

objeto de estudo, mas nos ajuda a reelaborar o conhecimento de nós mesmos enquanto pesquisadores e a rever nossas responsabilidades inter(intra)

geracionais (PASSEGGI, et al, 2014, p. 89).

Quando perguntei a Clara qual sua brincadeira preferida, ela, novamente, voltou a falar

de “bagunça”. Eu tentei explorar um pouco mais sobre seu conceito de “bagunça” e ela me

explicou:

P – Ô Clarinha [...] e quais são as suas brincadeiras prediletas? MC – aí

agora..., você me pegou... naaão sei! (parou e pensou, gesticulou com o dedo

indicador em seu rosto) P – não sabe? Como assim? Depois de um minuto respondeu... MC – fazer bagunça?! (muitas risadas) MC – uma das coisas que

eu mais gosto de fazer é fazer bagunça (mais risos) P – éeee? (risos) E como é a bagunça que você faz? MC – às vezes eu bagunço o quarto, às vezes eu

bagunço a sala, às vezes eu bagunço a casa inteira! P – afff! (risos) MC – Né,

mãe? (Pergunta a sua mãe que também está rindo da situação) P – Mas você ajuda a arrumar também a bagunça? MC – olhou para mim, olhou para mãe,

riu sem emitir som e balançou a cabeça em sinal negativo. P – Nãaaao? (risos)

MC – (balançou a cabeça) eu odeio arrumar o quarto (risos) P – Ei Clarinha, mas qual é a brincadeira? tu faz a bagunça com que brincadeira? Com que

brinquedo, sei lá... MC – ahh, na verdade, eu pego a boneca e quando fica chato, eu jogo a boneca em qualquer lugar, aí depois eu pego outra coisa pra

brincar e jogo em qualquer lugar, quando fica chato eu vou pegando as

coisas...

Falando em bagunça, o próximo excerto também demonstra a irreverência e criatividade

de Maria Clara em narrar de forma cômica o seu comportamento, que seria de desobediência à

mãe, com isso, ela consegue estabelecer o controle emocional da situação, fazendo com que o

engraçado, sobressaia à desobediência. São estratégias que ela apreende do universo adulto,

ressignifica ao seu próprio interesse para poder resolver seus problemas e satisfazer suas

vontades.

P – Clarinha! Tem mais algum brinquedo que você queira me mostrar? MC –

tem mais uns 1800... (falou bem rápido) P – o quê? MC – tem mil e oitoocentos brinquedos guardados no meu banheiro tudo bagunçado. [...] é assim..., se a

mamãe fala: “venha buscar esse brinquedo!” Eu abro a porta do banheiro e

jogo lá dentro, quero nem saber, fecho a porta e tchau! (fazendo os gestos comas mãos) Ou eu jogo na minha cama, ou eu jogo no chão, ou em qualquer

lugar que eu quero. Assim, pego um brinquedo abro aporta e jogo! M – aí é

éee? Por isso, é bom saber por isso que tá a maior bagunça! Tá tudo bagunçado! Eu arrumo tudo e ela vai lá e joga1 Essa Clarinha! (Clara começa

a rir e a cantar e dançar). MC – é! nem imagina o meu banheiro... A maior bagunça (me disse bem baixinho e eu comecei a rir!).

380

Clara sabe que o fato de fazer bagunça é transgredir padrões que se enquadram no “bom

comportamento”, mas, mesmo assim, assume-se diante da mãe como “bagunceira”. Esta atitude

intercepta uma subversão ao modo de produção simbólica de uma organização doméstica, mas,

ao mesmo tempo, revela a capacidade de autoconhecimento de Clara. Ao assumir tal

comportamento, ela também demonstra sua irreverência e sua forma de enfrentar a solidão de

não ter uma companhia para brincar, a bagunça que faz indica sua capacidade de criar novos

suportes para sua imaginação, para sua brincadeira. Na lógica adultocêntrica a bagunça é uma

prática de “desobediência”, uma forma de desorganizar o ambiente, já no contexto da cultura

infantil, a bagunça pode ser vista como uma forma de expressão da criança, na bagunça ela cria,

aprende, organiza modos próprios de compreensão da realidade, interage com o ambiente

criando condições de exercer sua participação, seu protagonismo.

Neste sentido, para entender o universo infantil, é preciso considerar suas produções

para além de uma visão adultocêntrica de realidade, é preciso entender a criança a partir dela

mesma, tendo em vista que “as crianças interpretam o mundo e simbolizam as suas vivências e

experiências de formas e linguagens diferenciadas dos adultos, caracterizando-se assim, pela

sua heterogeneidade e diversidade no tempo e no espaço” (TOMÁS, 2007, p. 104).

No dia 21 de fevereiro, quando chego na casa de Clara, me surpreendo com o que ela

tinha organizado para me receber. Pegou vários brinquedos, espalhou sobre a mesa, uma

coleção de figurinhas do Pokemón, algumas bonecas Barbie e Monster High e alguns desenhos

que ela havia colorido. Ela queria me apresentar todos os seus brinquedos prediletos. Então

fiquei por alí, conversando com ela e “brincando” com seus brinquedos. A mãe de Clara gostava

muito da nossa presença, sempre atenciosa em nos receber (eu e minha auxiliar)179, também

nos falava um pouco das rotinas dela e da família, eram momentos descontraídos e de muito

diálogo. Então, durante a brincadeira, Clara foi me contando mais um pouco sobre seu jeitinho

todo especial de ser Clara e tão clara!

MC - Essas são minhas bonecas ó. Essa daqui eu dei muito trabalho pra painho

comprar (Mostrou-me uma Barbie borboleta que quando abria seus braços as

asas apareceriam e quando apertava um botão ela girava e brilhava). P – Que linda! MC - Na verdade, não era pra ela tá assim (com as asas abertas) era

surpresa, ó... P – Ah... Entendi, então repete! Faz de conta que eu não vi nada! MC – (me repetiu) Faz de conta que... por favor né! Pera! Cadê não tá indo,

ah tá indo agora! (e arrumou a boneca. Continuou a apresentação) MC – Uma,

duas e meia e... vou apagar ela então... (apertou o botão e a boneca abriu as asas, depois me explicou como funcionava) MC - Na verdade eu levanto os

179 Maiores detalhes na página 435 deste ensaio.

381

braços dela então, olha se eu levantar mais os braços aí ó... já afrouxou (as

asas), [...] ó vou mostrar de novo, primeiro você tem de girar isso aqui. P – Há! não acredito não, é na cintura da boneca é? MC – é, eu não sabia! Antes

eu pegava e não abria (as asas) aí você aperta aqui ó... aí um, aí dois, aí três e

aí quatro! (mostrando como girar o botão). Tá vendo ó, de acordo com isso aqui. P – Nossaaa! Então o segredo é esse? (ela olha como se isso tivesse sido

uma revelação incrível) MC – É. P – então bora fazer uma foto bem linda com

sua boneca? MC – tá! (arrumou a boneca novamente e eu registrei a cena).

Clara percebeu que estava me ensinando e foi, detalhadamente, me explicando como

deveria fazer para que a sua boneca abrisse as asas. Eu, com muita atenção, tentei aprender com

ela, e nessa troca fomos estabelecendo as aberturas necessárias ao enquadramento da

fotoetnografia, pois, eu precisava conquistar sua confiança, e queria que ela se sentisse à

vontade em me contar seus segredos, queria que ela entendesse que eu não estava alí para fazer

julgamentos, críticas ou reclamações, eu estava alí para aprender a reviver, sentir e compreender

o que é ser criança, mesmo que para isso, eu tivesse que ficar horas reaprendendo a brincar de

boneca.

Através da brincadeira a criança mergulha na vida, criando um espaço que expressa, que atribui sentido e significado aos acontecimentos. Brincar

também é uma forma de buscar estabilidade emocional, pois certas

brincadeiras trazem os elementos necessários para lidar com os medos, a angustia, a surpresa, o abandono, o poder, que são emoções necessárias ao

convívio coletivo, ao convívio de pares. Brincar, como uma atividade compartilhada, permite ao ser humano conhecer e reinventar, “reproduzir e

interpretar”, gerando novas formas culturais entre as crianças (REDIN, 2009,

p. 123-124, grifo da autora).

Nesta óptica, de acordo com Kramer (2003, p. 105), Martins Filho (2015) ressalta que

“aprender com as crianças pode ajudar a compreender o valor da imaginação, da arte, da

dimensão lúdica, da poesia, de pensar adiante”. Visto pela Psicologia do Desenvolvimento, a

imaginação é uma atividade criadora que permite ao ser humano projetar o futuro, criando e

modificando o presente (VYGOTSKY, 1996, p. 7). Portanto, através da brincadeira, é possível

perceber como a criança vai estabelecendo sentidos à realidade a partir de processos cognitivos

que envolvem tanto as experiências anteriores quanto as experiências imaginativas, e nessa

conexão, a imaginação vai apoiando e ampliando as experiências infantis (VYGOTSKY, 1996).

E a brincadeira continuou. Dessa vez, ela lembrou uma ocasião que conseguiu

convencer sua mãe a lhe dar uma boneca que queria muito. Era Clara quem direcionava a nossa

conversa, ela quem encaminhava os diálogos, eu atentamente, a observava e tentava ser o mais

participativa possível. No jogo de papéis, Clara não me via como uma pesquisadora, ela estava

382

interagindo comigo como se estivesse com alguém da sua idade, no entanto, em algumas

situações, ela até estranhava minha falta de “conhecimento”, ou seja, mesmo me considerando

sua amiga, ela tinha consciência de que eu era adulta, e não uma criança, como ela. Mas, isso

não impediu que criássemos laços de amizade e confiança. O que pôde ser confirmado no trecho

narrativo 7, quando ela me contou que procurava vídeos na Internet e eu dei a entender que não

sabia como isso poderia ser feito.

MC - Essa aqui é... [estava me mostrando uma boneca) - eu briguei tanto

porque meu irmão ia comprar pra um aniversário de uma menininha da sala

dele, aí eu briguei tanto, mãaaaeee eu querooooo essaaaa, mãeee não dá! Porque eu queria tanto essa boneca. [...] aí mamãe deu uma outra! E eu

consegui. Aí ela tem esse vestidinho, aqui, rasgado que nem os gatos, aí ela

tem essas manchinhas de gato, aqui, uma maquiagem bem bonita. Essa tiara bem linda! Na verdade, [...] ela tem um guarda-chuvinha de gato. Porque ela

faz parte da Monster High do circo. Porque eu já vi o vídeo. E eu já vi o vídeo dessa. Que ela se misturou com a Monster High que faz fogo e com a aquela

que é de água. P - E você viu o vídeo aonde? MC - É porque eu procuro na

Internet amiga. (Fez uma voz diferente, e uma carinha de deboche, como se estivesse me criticando pela obviedade da pergunta, como se estivesse

estranhando o fato de eu não saber disso. Suponho que ela tenha imaginado

alguma coisas desse tipo: “como é que ela não sabe de uma coisa dessa? Tão fácil de fazer, será que vou ter mesmo que explicar isso?!”) Mesmo assim,

insisti. P – Você procura sozinha? MC – Huhum! (Mais uma vez, me olhou com indiferença) P – Como é que você consegue? MC – Háaa! é só botar

Monster High e vai aparecendo um monte de vídeo. P – Aí você vai abrindo

os vídeos até chegar no vídeo que você quer? (Insisti, mas, ela ficou meio impaciente com essas perguntas e queria logo continuar falando das bonecas,

como se usar a Internet fosse uma coisa tão fácil que eu já deveria saber!) MC

– Huhum (depois continuou por 20 minutos falando das outras Monsters Highs).

As tecnologias ampliaram as possibilidades de aprendizagem e comunicação das

crianças, desta forma, pesquisas apontam que as crianças aprendem a utilizar recursos

midiáticos digitais e virtuais com mais familiaridades do que os próprios adultos, ou seja,

A desenvoltura com que a criança lida com as “eternamente novas” tecnologias audiovisuais não somente a coloca numa posição de independência diante do

adulto, como a transforma na tradutora, para o adulto, dos significados de uma criação que é sua (adulto), mas que a ele próprio ainda soa como estranha

(PEREIRA, 2002, p.86).

Outro aspecto importante deste trecho é o fato de Clara conseguir convencer sua mãe de

lhe dar boneca e comprar outro presente para a amiguinha de seu irmão, o que corrobora com

a visão de Martins Filho (2015, p. 40) de que as crianças se utilizam de argumentos explícitos

e implícitos para convencer os adultos a reverem suas posturas, e os adultos, muitas vezes,

383

acabam se “rendendo às transgressões, à subversão, ou aceitam as negociações propostas por

elas, preferindo não discuti-las”, neste sentido, para este autor, a transgressão e a subversão

sintetizam a possibilidade de mudança que as crianças provocam ao criticarem a ordem

instituída. Outro exemplo de familiarização da criança com as tecnologias pode ser visto no

seguinte excerto:

MC - Só pra falar um negócio! Tem um negócio bem engraçado que eu faço! João Pedro (irmão de Clara) distrai a mamãe conversando com ela, eu venho

assim... (faz o gesto de pegar o celular por trás da mãe) MC – aí... aí... tam!

tam! tam! e corro pra porta com celular e boto no YouTube cá lá lá láaa... “Maria Clara! Você pegou meu celular!” (imita a mãe falando) - Peguei mãe!

(risos) -“Me devolve!” (imita a mãe) - Porque eu descarrego o celular todinho assistindo! (risos) MC - Ó eu vou mostrar o que eu adoro assistir, tá no

YouTube, é um gordinho que gosta de dança! Ó ó óóó... ó ó... óóó... (canta e

dança).

Esta narrativa também desvela a capacidade criativa e subversiva de Clara. Ela conta

que usa o celular da mãe para ver vídeos no YouTube, só que para isso, ela precisa criar

estratégias para capturar o aparelho da mãe em algum momento de distração. Então, Maria

Clara planeja tudo e orienta o irmão a distrair sua mãe, enquanto ela de forma sutil, pega o

celular escondido. Esta é uma forma de Maria Clara transgredir a realidade. Ao elaborar

estratégias para driblar a mãe e atingir seu objetivo, ela demonstra “poder e controle” sobre

papéis sociais hierarquicamente superiores ao dela – o irmão e a mãe. Assim, ela vai

demarcando território e constituindo sua identidade de forma criativa, autônoma e política, no

sentido de participar ativamente da maioria das decisões que são tomadas em relação a ela.

Segundo Corsaro (2009, p. 36) “no jogo sociodramático as crianças desfrutam a assunção e a

expressão de poder. É divertido fazer isso”. É essa sensação de conquista, de poder e de

transgressão que torna a brincadeira atrativa.

Mas, voltando às brincadeiras, Maria Clara correu no seu quarto, pegou uma boneca que

ganhou no Natal do Papai Noel e me revelou outro segredo. Com este segredo, ela também

narrou outra situação em que conseguiu ser “mais esperta” que sua mãe:

MC – isso aqui ó, eu ganhei de Papai Noel junto com isso aqui ó (uma boneca

e um pony). Eu queria uma coisa que Papai Noel não tinha dinheiro para comprar, aí Papai Noel teve que me convencer com uma boneca e um Pony

(nesse momento sua mãe ri com a lembrança desse fato que nem ela lembrava mais) P – E o era que você queria no lugar da boneca e do Pony? MC – eu não

me lembro! P- Você só se lembra que ele não te deu foi? MC – Huhum! Minha

mãe escondeu essa boneca no armário, como eu sou tão espertinha, eu olho sempre quando ela vai fazer alguma coisa! Aí então eu achei as coisas que ela

384

esconde! Ela escondeu docinho de chocolate alí de coração que eu adorei (a

mãe começou a rir) aí ela foi deitar na rede eu fiz thi thi thi thi... (e começou a andar de ponta de pé encenando seu gesto de ir pegar o chocolate escondido

da mãe) Pow! Peguei o biscoito! (todos riram e ela continuou...) mesmo que

ela tenha escondido num lugar alto eu vou escalando! (a mãe continuou rindo).

Estes cenários evidenciam a capacidade de Clara em transgredir ordens instituídas,

subvertendo situações que não lhes eram bem quistas. Para tanto, usou de estratégias de

convencimento que envolveram não só questões objetivas, mas sobretudo, emocionais. Seu

jeitinho criativo e engraçado de argumentar, sempre consegue capturar a sensibilidade de seu

pai e de sua mãe, convencendo-os a fazer o que ela quer. Conforme ressalta Martins Filho

(2015, p. 39):

[...] de modo geral, não são as crianças que decidem em relação ao que pode

ser feito, mas há, por parte delas, resistência ao que não querem fazer e

persistência no que querem fazer. Tal comportamento contribui para tomarem posição, conectando as suas necessidades, seus referentes simbólicos e modos

de expressão aos processos de socialização no cotidiano (MARTINS FILHO, 2015, p. 39).

De acordo com Redin (2009, p. 124) na ação do brincar, a criança tem acesso aos

elementos do passado e faz projeções para o futuro, “revitalizando e inventando o mundo a que

almeja”, desse modo, o contexto social e cultural da infância não pode ser pensado fora da

dimensão lúdica. Para adentrar no universo infantil respeitando suas críticas e opiniões, torna-

se necessário compreender como as crianças constroem suas culturas e interpretam o mundo à

sua volta, e como ela interpreta sua própria ação, sua própria identidade. É preciso romper com

as concepções de crianças e infâncias redutoras e cristalizadas para podermos conhecer e

compreender verdadeiramente o que elas (crianças) têm a nos dizer.

Maria Clara me impressionou com sua capacidade de memorização. Em uma das

apresentações culturais na escola ela teve a oportunidade de participar de uma peça teatral em

homenagem ao dia das mães e durante a apresentação, ela encenava com sua mãe. Ela não tinha

fala, mas, fazia todos os gestos que eram narrados pelas outras crianças junto a sua mãe. Por

exemplo, quando era dito “E quando batia aquela vontade de comer?”, a mãe colocava a mão

na barriga para gesticular a fome, em seguida, Clara dava jujubas para sua mãe comer, assim

por diante. Mesmo sem ter a responsabilidade de decorar falas, surpreendentemente, ela

conseguiu memorizar as falas de todos os personagens da peça, inclusive do narrador. E ainda

lembra:

385

MC - Vamos dar corda no relógio e voltar lembranças do passado! E blá, blá,

blá, blá, blá... (ela lembrou de uma peça de teatro em homenagem ao dia das mães que tinha participado na escola) P - lembranças do passado? O que foi

que você lembrou? MC – é assim: dim... dom! dim... dom! dim... dom! tic-tac

tic-tac tic-tac! Trim... trim... trim! Vamos dar corda no relógio! Reviver lembranças tão bonitas do passado? (Começou a encenar) aí tinha o negócio

do dia das mães né, alisava a barriga, botava assim, fazia cafuné... - aí tinha

um negócio assim, bem engraçado: E aquela vontade de comer? Sempre tinha alguém para comprar os seus desejos né? Porque desejo de grávida é uma

ordem! Aí... [...] o que a mamãe mais adorava era jujubaaaa! Logo os sabores que ela mais gostava! (aí fez um gesto de comer) – Hummm e aquele soninho?

Dormia mais que gato no travesseiro! P – Isso tudo era você falando? MC –

não era três meninos, eu conheço um dos três meninos! P – E você decorou a parte de todos eles? MC – Huhum! Tic tac tic tac tic tac...

Pensando nessa potencialidade, é que sua mãe investe tanto na carreira artística da filha.

Maria Clara é uma criança que se familiariza muito rápido com as artes cênicas, sua mãe conta

que desde pequenina, ela se destaca em musicais, peças teatrais na escola, reuniões familiares,

até em shoppings quando têm eventos culturais ela sobe no palco, dança com os artistas, está o

tempo todo “chamando atenção”. Estas são algumas vivências que vão construindo os espaços

sociais em que Maria Clara vai protagonizando sua infância e constituindo seu universo

cultural.

No dia 24 de fevereiro de 2017, fui surpreendida com novas histórias, dessa vez um

pouco diferente das brincadeiras anteriores. Pois, Clara havia passado por algumas situações

inusitadas na escola e ainda estava um pouco agitada com o que havia acontecido. Tratava-se

de uma disputa em que dois “príncipes” tentavam conquistar o coração da “princesa” – o Elvis

e o Edu, disputando a Maria Clara. Ela me contou tudo em segredo. A situação era a seguinte:

Clara havia recebido um bilhete de Elvis, mas, ficou brincando com Edu, Elvis com ciúmes,

bateu no Edu. Aí surgiu outro amigo – o Kaic, que defendeu Edu e bateu em Elvis. Talvez, nas

palavras de Clara, isso fique mais claro...

P: Ah, como foi essa história do bilhete... MC: Sim, eu tinha escrito uma carta pro Edu que eu fiz de coração com “eu te amo, eu te amo, eu te amo” só que

eu nunca consegui, sempre me esquecia, no dia que eu lembrei fui entregar aí

o Elvis ficou com raiva, pois ele tinha me dado um bilhete pedindo pra namorar comigo. P: Entendi. Mas, é só brincadeira né? Me conta isso melhor...

[De repente Clara começa a cantar...] MC – Aaaa... amor i love you... amor i love youuuu (começou a cantar, viu o pai e parou) - ô pai sai daqui, sai, sai...

o pai, por favor, é um segredo que vou contar só de meninas! (pediu para o pai

sair e falou bem baixinho para mim) MC – Piorou o assunto! De Elvis com Edu. Elvis me pediu em casamento (a mãe começou a rir) em uma carta! P –

Ai meu Deus do céu! (não consegui evitar!) Piorou, piorou, piorou, piorou a situação entre Elvis e Edu, Elvis me pediu em casamento! M – Em casamento

não, em namoro! (risos) MC – Na-mo-ra-da! Sério, sério (risos). Correu e foi

386

pegar o bilhetinho. MC – lê! P – Como é? MC – Maria Clara, eu te amo, seja

minha na-mo-rada! Beijos Elvis (caiu no chão, como se estivesse desmaiando) P – E você respondeu o que? MC – é por isso que eu tava falando... é melhor

eu não mostrar isso a ela... (se referindo a mim) MC – Não aceito! (gritou) P

– você respondeu em bilhete? MC - Não a-ce-i-to! (Nesse momento ela viu o pai tentando ouvir seu segredo...) MC – eita! Ele escutou! Sai, sai, sai... P –

ele não escutou não... ele tava rindo da novela (o pai começou a rir) MC – Eu

botei não aceito, que eu não aceito! Meu amigo Kaic contou que Elvis já tinha dado uma aliança pra uma menina da manhã! P – Tu ‘ficou’ sabendo disso?

MC – é. Eu era do 1º ano e Elvis era do 1º ano da manhã, aí então eu tinha escrevido essa carta faz tempo, só que eu esqueci, aí hoje eu fui entregar essa

carta pro Edu. Aí, Elvis ficou com tanta raiva. E ele queria bater no Edu. O

Edu tava na quadra. P - Isso foi hoje? MC – Huhum... Aí eu avisei pra o Edu, aí todo mundo começou a ficar na porta da quadra defendendo o Edu. Aí, Kaic

veio logo por trás, Elvis tava caino. Aí Kaic veio com a maior velocidade e

deu um chute nas costas de Elvis, ele caiu e ficou na sala. Aí eu conversei com Edu, porque a tia mandou eu conversar com Edu, o Edu conversou com a tia

e o Edu conversou comigo blá, blá, blá... Aí a gente foi lá pra sala falar com Elvis porque ele não queria sair de jeito nenhum. Aí depois do recreio a gente

começou a ser amigo de volta. P – Elvis? MC – Huhum! [...] MC – Ele sempre

queria, na verdade, bater no Edu, desde o passeio do Sesc ele ia batendo no Edu, sorte que o Edu saiu bem na hora! (No passeio do Sesc, Clara sentou ao

lado de Edu e Elvis ficou com ciúmes).

Com esse relato, Clara já revela seus primeiros sentimentos de afeto por um garoto.

Elvis gosta de Clara e Clara gosta de Edu, e tudo indica que Edu também gosta de Clara.

Segundo Trevisan (2007, p. 48) o amor e as relações afetivas ainda é um assunto adulto pouco

explorado no contexto da infância, em sua pesquisa, buscou perceber até que ponto se poderia

falar de relações amorosas entre crianças de 6 a 10 anos de idade, e constatou que “as crianças

são capazes de absorver e transformar rituais adultos e papéis sociais, reapropriando-se deles,

trazendo-os para os seus mundos”. A fantasia de Elvis em pedir Clara em namoro tem

significações sociais para Clara, trata-se de um pedido diretamente relacionado ao sentimento

de amor, mas, ela sabe que esta é uma situação “impossível” para ele, por dois motivos:

primeiro, porque ela prefere o Edu. E segundo, porque ela sabe que criança não pode namorar

(por isso ela não aceitou o namoro). Essa história não parou por aí...

P – E o que você respondeu pra ele (Elvis) da cartinha? Você fez alguma

cartinha pra ele também? MC – Não, porque não deu tempo. Que, eu tinha “fazido” aí tava em aula. Aí então eu ia entregar logo a do Edu, pra fazer

depois a dele. P- entendi. Mas você aceitou o namoro? Ela, para, olha para

mim (como se estivesse pensado: “eu já lhe disse isso, lógico que não!”), pega um papel na bolsa e diz: MC – Quê? (silêncio) leia a resposta! (Falou com

uma voz indiferente e me entregou o papel) P – Não aceito! (eu li e fiz um ar

de espanto) você não aceitou Clara? MC – Eu falei de palavra pra ele. E ele queria me contar um segredo que falava: ah eu não vou contar, eu não vou

contar, eu não vou contaaar! (meio sem paciência, imitou o Elvis) E eu não sabia se ele ia contar ou não ia contar. E ele não contou. P – E agora Clarinha?

387

M – Aí ele botou isso aqui agora, mostra Clarinha (sua mãe deu o celular para

ela) MC – Aiiii, meu deus do Céu! Eu fiquei com raiva! P – Ele mandou pelo WhatsApp? E você fala com ele pelo WhatsApp! MC – é porque isso aqui é de

todo um grupo, aí ele pegou (grupo de pais dos colegas da escola de Clara).

Nesse momento, Clara colocou o áudio de Elvis para eu ouvir: “Maria Claraaa, tô cum soldade!” (uma vozinha bem infantilizada). MC – Não quero saber!

Não quero saber! (ficou andando para lá e para cá da sala balando a cabeça,

depois me mostrou a resposta dela) MC – Elviiis, amanhã a gente se vê na escola! tchau! (A mãe disse que foi ela quem insistiu para Clara responder,

mas disse para ela que não queria mais saber dessa história). P – Mas, afinal, quem é mais legal é o Elvis ou o Edu? MC – A minha mãe fala que é o Elvis

porque ele briga, briga, e me baba! E o Edu não me baba não. Mas, o Edu, ele

briga comigo e ainda volta átrás! Me chama de nóvo pra casa dele, me chama de nóvo pra casa dele! (fala acentuada nas sílabas em destaque).

De acordo com Trevisan (2007, p. 67, grifo da autora): “as meninas parecem ‘fantasiar’

mais que os meninos, que se apresentam mais práticos e objectivos na construção de uma

relação de namoro” e o que é mais curioso, “as crianças podem esconder os seus sentimentos

dos adultos, mas o grupo de pares detém conhecimento esmagador relativamente às vidas

amorosas das crianças”. Como foi o caso em questão. O gostar de Clara ainda era manifestado

como uma amizade mais próxima, no entanto do de Elvis já se manifestava como uma atitude

mais objetiva, como um pedido de namoro, isso para Clara soou como algo desconcertante, mas

que ao mesmo tempo as fez se sentir lisonjeada. Sua posição pelo Edu é algo que já vinha

incomodando o Elvis e nessa situação, em especial, como Elvis viu que tinha perdido a disputa,

preferiu agir com força corporal. Essas fantasias que embalam os romances fazem parte do

imaginário infantil, as crianças elaboram formas de enfrentamento, tomam decisões, mudam de

ideia e reagem de forma impetuosa porque esses comportamentos mexem com seus sentimentos

e emoções, desde a aceitação à rejeição. Como afirmara Geertz (2013, p. 59):

Não estamos preocupados em resolver problemas, mas em esclarecer

sentimentos [...]. Uma criança conta pelos dedos antes de contar “na sua cabeça’; ela sente o amor na sua pele antes de senti-lo ‘no seu coração’. Não

apenas as ideias, mas as próprias emoções são, no homem, artefatos culturais.

As culturas infantis estão permeadas de romances, desde os clássicos mais antigos como

Branca de Neve, A bela e a Fera, Rapunzel, Cinderela, até os mais contemporâneos como

Sherek (Princesa Fiona), Mulan, A Princesa e o sapo (Princesa Tiana) e o mais comentado por

Maria Clara, Frozen (Princesa Anna). Todos com histórias de príncipes e princesas, com

disputas, romances proibidos, aventuras, mistérios, situações tristes, mas, com finais felizes.

Toda a magia que envolve as histórias infantis são apreendidas, reelaboradas e adaptadas à

realidade das crianças, que por sua vez, absorvem as informações através da percepção dos

388

modelos simbólicos e, principalmente, da forma com que esses modelos penetram nas nossas

emoções, como apontou Geertz (2013, p. 59) “Para tomar nossas decisões, precisamos saber

como nos sentimos a respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas

precisamos de imagens públicas de sentimentos que apenas o ritual, o mito e a arte podem

fornecer”.

Nesta perspectiva, as relações que as crianças estabelecem com a cultura familiar, a

cultura entre pares e a cultura midiática dão contornos e sustentação às suas fantasias e

imaginações sobre os relacionamentos afetivos, e estes, se manifestam em qualquer tempo

situação e contexto. Para Geertz (2013, p. 61) isto significa que “o pensamento humano é,

basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais objetivos da cultura comum, e

só secundariamente um assunto privado”. Neste contexto, a percepção dá subsídios aos

sentimentos, consequentemente, estimulam a imaginação e a criatividade infantil na produção

de suas subjetividades e particularidades culturais. Como pode ser acompanhado no diálogo

seguinte:

P – Clarinha, lembrei de uma coisa! você tem algum amigo imaginário? (Clara

fica pensativa e responde) MC – Hummm, só um, mas eu nunca contei pra

ninguém! P – ahhh, nãooo... mas, você vai me contar né? (Ela pensou e respondeu) MC – Será que conto, será que não conto! Mãe eu conto? M – Sei

não você quem sabe! Conta! Eu nem sabia que você tinha! (respondeu à mãe)

MC – Você acha que eu minhas bonecas como? Com eu só ou com a minha amiga imaginária? M – ahh! era com a amiga imaginária? MC – éra! [...] P –

sim, conta do teu amigo imaginário. MC – Na verdade eu nem dei nome pra ele. Eu vou botar o nome dele de Sophi, em homenagem à cachorrinha do Edu.

É uma cachorrinha branca... Mais é fofa! Ela é difícil de pegar! (continuou

falando da cachorrinha, depois começou a falar dos passarinhos que tem na obra que o pai tá construindo) MC – [...] por enquanto eles estão tomando

conta do prédio. Só porque fizeram um ninho, aí começou... a festa das

rolinhaaaaaaas!!! (cantarolou) [...]. Parece que é engraçado, o tijolo faz o ninho, do ninho faz os ovos, dos ovos faz a mãe, dos ovinhos faz ainda o filho.

Neste excerto, Maria Clara chama atenção em três pontos: primeiro, o fato de ela ter um

amigo imaginário; segundo a sua capacidade de fazer conexões inteligíveis entre passado e

presente; e terceiro a sua criatividade em argumentação. Maria Clara tinha um amigo imaginário

– que no início era uma amiga, sem nome. Dá um nome para ele, mesmo ele sendo parte do seu

passado. Em seguida, faz referências a duas situações diferentes que tem o mesmo referente

principal – animais. Para Saccomani (2016, p. 69) o processo de imaginação permite ao

indivíduo representar o resultado final da atividade antes de executá-la, fundamenta-se nas

389

ideias de Rubinstein (1967, p. 361) que vinculam a imaginação ao ato de vincular a aptidão

humana de modificar o mundo, de transformar ativamente a realidade e de criar algo novo.

Em se tratando de criatividade, Saccomani (2016) fundamenta-se em Vygotsky (2009,

p. 42) ao assumir que “a criação é um processo de herança histórica em que cada forma que

sucede é determinada pelas anteriores”, ou seja, pensando na realidade do pensamento da

criança, a fantasia infantil é sempre um acúmulo de materiais extraídos das experiências

empíricas e inteligíveis que a criança desenvolve ao longo de suas vivências culturais e sociais,

desse modo, “O produto da imaginação é sempre arquitetado de materiais hauridos da realidade

[...]”, assim, a “criação apoia-se na memória” (SACCOMANI, 2016, p. 65).

Em síntese, a imaginação e a criatividade são fenômenos essenciais para a construção

do pensamento infantil e as culturas infantis devem ser pesadas a partir das experiências

empíricas e inteligíveis do mundo real da criança em diálogo com as relações de alteridade que

elas estabelecem entre pares, com os adultos e com os demais elementos culturais que se

conectam às suas realidades. Em outras palavras, as crianças produzem seus repertórios

imaginativos a partir das produções criativas extraídas nas entre-culturas da infância e

protagonizam de forma ativa suas histórias de vida nos entre-lugares dos quais participa.

Após conviver com Maria Clara, conhecer seus lugares suas rotinas, seus brinquedos e

um pouco de suas relações com a família, iniciei o processo de Fotoetnografia Autobiográfica,

onde procurei entender seus modos de ser e de viver através de suas próprias percepções de

criança, dando a ela voz e participação direta no processo de desvelamento de sua realidade.

1.3 Contos... Câmera, Flash e Clicks: diários de uma Fotoetnografia

A Fotoetnografia Autobiográfica como estratégia metodológica permite a construção de

narrativas imagéticas em que as crianças têm a oportunidade de desenvolverem seus potenciais

criativos, sensíveis e críticos acerca das suas próprias experiências de vida, seja no espaço

doméstico ou até escolar, atribuindo-lhes novos sentidos e significados, consequentemente,

levando-as ao reconhecimento de suas culturas e identidades. Neste cenário, a fotografia “ajuda

a tomar posse das coisas transitórias que têm direito a um lugar nos arquivos da memória”

(MARTINS FILHO e BARBOSA, 2010, p. 14), nessa perspectiva, as imagens serviram como

instrumentos de aproximação da realidade sócio-histórica e cultural do universo infantil, tendo

em vista que,

390

Há uma possibilidade de se olhar para a imagem congelada, retratada pela

foto, inúmeras vezes, um exercício pleno de ver e rever a cena, os personagens e o contexto. Tal possibilidade aguça a memória, a imaginação, a criação e a

reconstituição da própria história vivida, pelas imagens e nas imagens. A

fotografia mostra sempre o passado lido aos olhos do presente, embora já não seja o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada (MARTINS FILHO e

BARBOSA, 2010, p. 22).

Através das fotografias, a criança ressignifica a realidade vivida através da própria

lógica infantil (BARBOSA, 2009, p. 183). Como ressalta Trevisan (2007), a criança recebe,

transforma e recria aquilo que absorve, modifica e dá-lhe novos significados, desse modo, pode-

se afirmar que,

Nenhum presente é construído sem passado e nenhum futuro existe sem os

estes dois. O lugar que a criança ocupa hoje, na história, no cotidiano, não foi sempre o mesmo. Nem mesmo é igual para todas as crianças, em todos os

sítios, num mesmo tempo (TREVISAN, 2007, 2007, p. 41).

Partindo dessas concepções, a história de Maria Clara foi se constituindo através de

imagens, reminiscências, lembranças e conversas, no entanto, os cenários e as histórias foram

se intensificando, diversificando e se tornando cada vez mais expressivas, pois agora ela estava

narrando seu passado, seu presente e por vezes, seu futuro. Já não se tratava mais de histórias

de personagens Disney, mas, de sua própria história, a história de sua vida, sua autobiografia.

Assim, as imagens passaram a ser fotografias vivas, registros de sua realidade que foram

revividos, sentidos e compreendidos a partir de suas próprias percepções, conforme ressalta

Passeggi (2014, p. 89):

[...] pela reflexividade autobiográfica, a criança dota-se da possibilidade de se

desdobrar como espectador e como personagem do espetáculo narrado; como pensador e como objeto pensado; enfim, como objeto de reflexão e como ser

reflexivo. Essa relação dialógica entre o ser e a representação de si que se

realiza pela reflexividade autobiográfica confere à criança, ao jovem, ao adulto um modo próprio de existência, pela probabilidade de voltar-se sobre

si mesmo para explicitar o que sente, ou até mesmo perceber que fracassa nessa difícil tarefa de (re)elaborar a experiência vivida, com a ajuda da

linguagem em suas mais diversas formas.

Neste sentido, tal modalidade de pesquisa qualitativa estimulou “os processos reflexivos

e de ressignificação das experiências” (PASSEGGI, et al, 2016, p. 115) tanto do ponto de vista

de Clara, quanto das minhas próprias percepções enquanto pesquisadora. Portanto, entre

fotografias e mementos, Maria Clara foi dando os primeiros contornos à sua história:

391

P - Você sabe o que é que você vai fazer agora? MC – sim, sim, sim! P- A

história de Maria Clara contada por Maria Clara! MC – eu sei como é. P – é como você fez a de Branca de Neve e a de Frozen, você não contou as histórias

delas com imagens? MC – Haham. P – Agora você vai fazer a sua! [...] vamos juntar as fotografias para fazer o livro leitura-imagem de Maria Clara! (Ela

pula e fica batendo palmas) P - Vamos começar a escolher as fotos? MC -

Todas, todas, todas!!! P - Vamos organizar primeiro... MC – [...] essa aqui bota! eu estava vestida de Brasil! P – Sabe porque você estava vestida de

Brasil? MC - Por que era Copa do Mundo! P – Isso mesmo! Mas, vamos

escolher as primeiras fotos que é do nascimento! MC - Ah meu Deus! Vai ser difícil porque eu era muito pequena nesse tempo e não dá pra lembrar né! Tem

“coisa” que eu lembro e tem “coisa” que eu tô bem pequenininha, bebê, que eu não lembro! P - Você sabe a hora que você nasceu? (grita e pergunta ao

pai) MC - Pai eu nasci de manhã, de tarde ou de noite? Pp - Amanheceu o dia

nascendo! (Clarinha pega uma foto do relógio que marca a hora em que ela nasceu) MC – tem até uma foto da hora tia, deixa eu procurar aqui [...] olha

achei, qual é mesmo essa hora? P – Você nasceu de 15 para as 7 da manhã!

Bem cedinho! [...] P - Do seu nascimento qual você queria para colocar na fase do seu nascimento? P - Vamos olhar o álbum e você vai vendo se você

quer mais alguma! [...] MC - Meu primeiro banhinho... P - E é? MC – Bota essas duas! P - Quem foi que lhe deu o primeiro banho? MC - Meu Papá. [...]

MC - Vou escolher uma foto aqui com minha avó! [...] (risos). P - Vou querer

saber sobre a história das fotos que você escolheu! (tn/9, 29/03/17, cc). MC: Eu acho que não lembro muito, mas vou tentar. Quando eu nasci o meu irmão

tava doido pra me ver, ele tava assistindo desenho animado né, aí quando eu

cheguei em casa, ele me deu um abraço e ficou me segurando e não queria que ninguém tocasse em mim, ele gostava muito de me segurar no braço, até que

eu era um pouquinho pesadinha [...].

Maria Clara adora fotografia, e principalmente, ser fotografada. Ela contemplava cada

imagem, revivia as cenas, rememorava os fatos e se surpreendia com suas próprias histórias.

Eram momentos de profunda emoção, ela mergulhava em suas reminiscências e encontrava

nelas significados para as experiências sociais e culturais de sua infância. Ela demonstrava

muito apego às imagens, comentava cada detalhe, usava argumentos para tentar manter a foto

em seu livro, às vezes até se despedia carinhosamente, da foto: MC: “– ai meu Deus, xau fotinha

fofa, linda, não fique triste”.

Desse modo, embalada em suas memórias, ela apresentava muita dificuldade em

selecionar as fotografias. Por ela, as quase 3 mil imagens do acervo digital da família, seriam

todas selecionadas: MC – “Ah, tia! Por favor, só mais uma!”; “– essa sim, sim, sim, só mais

essa!”; “Nossaaaa tia! Eu não quero cortar essa! Diz que sim, vai, vai!”. Estas falas e muitas

outras expressões corporais me faziam deixá-la livre em suas escolhas, então, inicialmente, não

estipulei a quantidade que seria selecionada. Eu não podia e não queria interferir, apenas

estimulava o diálogo tentando fazê-la entender que não teríamos espaço para tantas fotografias

em seu “livro”.

392

Apesar desse apego, Clara também era muito firme em suas opiniões, algumas fotos ela

rapidamente, retirava do conjunto de imagens: MC: “– você fica, você sai, xauzinho!”

(conversando com a imagem), essa decisão dependia principalmente de como ela estava

retratada na imagem ou de quais lembranças a foto remetia, conforme visto no diálogo abaixo:

MC - Essa é com a tia [...], era legal, ela fazia as coisas comigo, e tia [...] ela

era muito legal! Mas essa aqui tá bem chata! É tia [...] não bota não! P – Tu não ‘quer’ não, botar no álbum? MC - Tá chaaaata! (fez uma gesticulação com

os braços em sinal de indiferença e continuou a falar). MC – Quando o tio botou a gente pra cá na sala dela, a única coisa que eu e Isabele fazia é fugir

da sala, que eu não aguentava ela. Só o jeito era fugir né! fugir da sala... Aí o

diretor falou: “vooolte Maria Clara e Isabele! Isabele voltou e eu não! XAU!! P – E você foi para onde? MC – Subi lá em cima do Géo... tô nem aí... vou me

escondendo dessa tia. Aí tia [...] foi atrás de mim, não sabia onde é que eu

tava, eu tava numa sala escura que todo mundo tem medo “é o lugaar no escuro à noite” (fez voz de assombro). P – E tu não tinha medo não? MC – tenho um

pouquinho porque tem câmeras. P – Então você preferia ficar lá no escuro do que voltar pra sala? (risos) MC – Preferíiia muito bem! Mas aí, eu tive que

voltar. Mas meu pai não ficou sabendo dessa fugitiva, senão ele iiia me dar

uma chineláaaada, né?! (aumentou a voz e olhou para o pai, chamando sua atenção, e todos riram) Pp – O que foi einh? (Perguntou o pai) MC – Nada

não. Nada! Só foi um bobo que eu estraguei... (risos). P – é um segredo! MC

– Aí ele não ficou sabendo! Xau!!! É é é... é é é... P – E tu fugiu quantas vezes ainda? MC – Mil! (risos) P – ‘tu fugiu’muitas vezes Clara? (fiz um ar de

espanto, ela riu e continuou) P – Meu plano e de Isabele era assim, pedia a tia pra ir beber água, ela deixava, a gente ia e fugíiiia, tham tham ram ram!

(começou a dançar) [...] a gente fugiaaaa, xauuu!!!

A irreverência de Clara chama atenção a cada narrativa, ela está sempre tentando ser

engraçada, gosta de demonstrar que é esperta e que sempre se dá bem. Clara possui um

repertório linguístico e uma capacidade imaginativa impressionante, que revela potencialmente

sua personalidade forte, decidida, objetiva. Ela sabe o que quer e quer participar de todas as

decisões da família. Essas características presentes na infância contemporânea demonstram que

apesar de cumprirem com o que lhes é imposto pelos adultos, as crianças conseguem estabelecer

suas próprias formas de atuação, são subversivas e não abrem mão de suas opiniões, o que

indica protagonismo e autonomia em suas experiências cotidianas, ou seja, as crianças,

Elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando

plenamente de uma cultura. Esses sentidos tem uma particularidade, e não se confundem nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as

crianças têm autonomia cultural frente ao adulto. Essa autonomia deve ser

reconhecida e também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema

simbólico compartilhado com os adultos (COHN, 2005, p. 35).

393

Maria Clara tem muita segurança em sua fala, lembra-se de detalhes que os próprios

pais esquecem. Como em uma situação em que ela disse que havia ganhado uma roupa e a sua

mãe disse que não. Muito insistente, ela contou os detalhes do episódio para mãe que,

finalmente, lembrou-se da ocasião e concordou com a filha.

MC – Coloca essa daqui de batom vermelho, eu adorava. Essa daqui da

abelhinha. Mãe, se lembra daquela roupa de abelhinha? Quantos anos eu tinha? M – Qual? MC – aquela roupinha de abelha que eu ganhei! M – ganhou

não, eu comprei! MC – ganhei sim mãe! M – nada disso! MC – ganhei sim! Se lembra do pai de (...)? Ele me deu. Que ele vendia roupa. Ainda me lembro!

M - é verdade, essa menina é fogo, nem eu lembrava disso!

Nota-se também que, apesar do seu comportamento subversivo, Maria Clara é muito

educada, obediente e atenciosa com a família, é muito apegada ao irmão, adora brincar com o

pai e com sua mãe, que é sua “amiga e companheira inseparável”. MC – “eu amo minha

famíliaaaa, é a melhor do mundo! Meu papi, minha mami, e esse aqui ó, que é o meu irmão

João Pedro que a gente brinca sem parar e apronta todas com a mamãe, pegando o celular dela”.

Dada a dificuldade em selecionar as imagens, pedi para a mãe de Clara separar as

fotografias de Clara de acordo com a idade em que ela aparecia, buscando assim, otimizar o

tempo e facilitar a narração da criança. Dessa forma, ela separou as fotografias impressas e em

seguida me auxiliou com as fotografias digitais. Apenas após essa seleção, dei continuidade a

autobiografia junto à Clara.

Das fotografias de bebê, Maria Clara selecionou duas imagens. Em uma, ela está com

sua avó materna, a quem ela tem grande carinho. E na outra, ela aparece sozinha, deitada em

um almofadão, usando luvas, sapatinho de pano, calça rosa e uma roupinha (estilo maiô) branca

com detalhes em rosa e bordado com o nome “princess” e um vestido, um sapatinho do tipo

Cinderela e uma coroa, elementos que remetiam ao conceito de princesa em contos de fada.

Esta é uma imagem bastante significativa para ela, pois, até hoje ela guarda esta roupinha

original, conforme o excerto abaixo:

MC – Olha tia, essa aqui é com minha vozinha que eu amo. P – Ela é a mãe da sua mãe ou de seu pai? MC – A mãe da minha mãe. Ela me pegou bem

pequenininha, olha como eu era lindinha! P – Sim, você era um bebê lindo!

MC – Tem essa aqui tia olha! Essa eu tenho uma coisa pra falar! Espera só um segundinho! (Ela correu para seu quarto e depois de alguns minutos chamou

a mãe) MC – Mãaae! Me ajuda a achar aquele saco de roupinha de bebê, e

aquele que tá na minha bebezinha, que era meu quando eu era bebê! M – Tá logo aí, em cima do seu guarda-roupa! MC – achei tia, olha o que eu tenho

aqui! P – Não acredito! (Fiz cara de espanto) não acredito que essa é a mesma roupinha da fotografia! MC – É ela mesma! Essa é a roupinha que eu tô usando

394

quando eu era bebê, minha mãe guardou e me deu! E também tem um saco

cheeeeiiioooo de roupinhas minha, luvinhas, sapatinhos, roupinhas e tudo! P – Poxa muito legal isso! Vamos fotografar sua boneca!? MC – deixa que eu

tiro a foto tia! Eu sei fotografar! P – Tá certo pode usar meu celular! (Ela

colocou a boneca ao lado de sua fotografia e fez alguns registros utilizando meu celular).

Durante seu primeiro ano, a cada mês, Maria Clara foi fotografada profissionalmente.

Sua mãe queria registrar em estúdio as fases de crescimento da filha. Em meio às inúmeras

imagens, havia muitas fotografias engraçadas, dentre as quais, Clara selecionou três. Na

primeira, ela aparece dentro de um caldeirão, vestindo uma touca de cozinheira e segurando

uma colher de pau, ao redor do caldeirão, vários temperos, legumes e verduras. Ela olha

diretamente para a lente do fotógrafo e faz um pequeno gesto com a boca colocando a pontinha

da língua para fora. Na segunda fotografia, ela usa uma coroa de flores na cabeça, segura uma

fatia de pera e está sentada em uma bacia vazada de madeira cheia de frutas, fora da bacia

também há várias frutas ao redor da cena. Quando ela viu as imagens foi logo dizendo que ela

era a comida: MC – “Tia olha só isso! Como é que pode! Sabe quem é a comida?” (me olhou

sorrindo) P – “Quem?” MC – “Eu! Eles querem me comer!” (riu muito com isso).

P: Você estava dentro da panela? MC: É, aquelas fotos são muito antigas [...].

MC: É, assim, eu tava com a colher na mão e dentro da panela, eu tava tentando morder um laranja, mas era de plástico e eu queria comer. P: E qual

foi o motivo de te colocarem na panela? MC - “- Oooo mãeeee... vocês queriam que eu fosse a comida era? [risos]. Parece que esse povo quer que eu

seja a comida! P – Muito engraçado isso! MC: Era uma foto que minha mãe

queria. Tem até uma que você está sem roupa? MC: ah tem essa foto que eu tava dentro de um negócio transparente... Como é que uma pessoa tira foto de

uma criança desse jeito em mãe? Bota essa não tia! Essa de jeito nenhum! P –

ahh que pena, achei linda! MC – Tá bommm... então bota tá...

Na terceira fotografia, Maria Clara está deitada dentro de uma elegante vasilha de vidro

e ao redor da vasilha há grandes rosas na cor salmão. Ela está sem roupa, usa apenas uma

toquinha na cabeça e faz uma carinha bem séria no instante do click. Dessa vez, ela faz uma

pequena crítica: MC – “Mãe, precisava ser sem roupa, precisava!”. E continuou: MC – “Eu não

sei pra quê colocar uma criança numa vasilha dessa, ainda mais transparente e em roupa!”. Mas,

mesmo sem gostar da fotografia, ela decidiu selecioná-la: MC – “Mas, deixa vai... pode deixar

essa! Tá engraçada!”.

Quando completou 1 ano, Maria Clara já andava, adorava dançar e chamar atenção da

família. Uma de suas fotos prediletas é a que ela aparece com os cabelos “espetados” sentada

numa poltrona branca que até hoje está em sua casa. Neste mesmo momento ela selecionou

395

mais duas fotografias em que aparecia com o mesmo vestido vermelho com estampa floral. Em

uma imagem ela aparece sozinha dando um enorme sorriso e na outra, está nos braços do seu

pai e ao lado da sua avó paterna: MC – “Olha tia essa é minha outra avó, a mãe do meu pai. Eu

tô com a mesma roupa nas duas fotos, porque deve ter sido tirada no mesmo dia. Olha só esse

sorriso, ai meu Deus como eu era fofinha! Não tinha nenhum dente, era banguelinhaaaa!”.

Em um dos encontros, Maria Clara me surpreendeu com sua autonomia, era uma

fotografia em que ela tinha 3 anos. Em high key, ela usa um vestido de cetim na cor salmão e

também uma tiara de anteninhas com formato de coração, acompanhada de sua mãe, que está

com um elegante vestido azul turquesa e de seu irmão em traje de gala, usando paletó preto,

gravata vermelha e óculos amarelo. As crianças erguem plaquinhas decorativas que contém as

seguintes descrições: “Curtindo a festa!!” e “Preparaaa!!!”. Logo que viu a imagem, Clara

tentou ler a plaquinha e quando descobriu o que estava escrito, correu para a estante da sala,

ligou a TV, acessou a rede no YouTube e colocou o clipe da música “Prepara” da cantora Anitta,

em seguida, começou a performatizar. E ela dançou a música inteira, criando coreografias e

imitando alguns passos da cantora.

O seu aniversário de 4 anos foi comemorado na escola e nesta ocasião houve uma

situação que ela recorda até hoje. A mãe de Clara havia encomendado um bolo branco, para

que a própria Clara fizesse sua decoração com canetas especiais de tintas comestíveis. Porém,

quando o bolo chegou na escola, ele já estava todo desenhado e sobravam poucos espaços em

branco para ela desenhar. Clara até hoje lamenta esse fato. Na fotografia, é possível ver o bolo

e nele um desenho de sua família em um jardim. Clara está fantasiada de fadinha e faz poses

para o registro.

Clara adora se fantasiar e dançar, não perde uma festinha de carnaval, São João (festa

junina), apresentações na escola. Ela participa de tudo. O uso de fantasias de carnaval é bastante

significativo na vida de Clara, muitas fotos foram selecionadas por ela para compor sua

narrativa, assim, com a ajuda de Clara, distribuí em um mosaico uma série de momentos que

ela aparece vestida com fantasias de palhaço, fada, abelhinha, Minnie e das princesas Branca

de Neve e Bela.

MC – “Tia, coloca todas essas de fantasias de carnaval que é a minha festa predileta. Eu danço muito, adoro carnaval!”. [continuou fazendo a seleção das

imagens e passou a selecionar as fotos da festa de São João]. MC – Essas aqui

são do São João da escola, eu também gosto muito dessas. Eu subo no palco pra fazer a dança, depois que acaba tudo eu subo de novo e fico lá dançando

um tempão. Só tem uma coisa tia, toda vez que tem a dança é uma confusão com quem eu vou dançar, porque tem Elvis e Edu, lá o tempo todo me

aperreando”.

396

Na escola Clara é uma excelente educanda, gosta muito de estudar, por ser uma criança

extrovertida, chama atenção de todos, está sempre participando das atividades e procurando

ajudar os colegas, adora fazer amizades. Certa ocasião, a professora desenvolveu uma dinâmica

onde os amigos faziam cartinhas uns para os outros e colocavam em pequenas “caixinhas de

correio”. Clara percebeu que um coleguinha não tinha recebido carta nenhuma e resolveu fazer

uma surpresa para ele. Ficou até o fim da aula fazendo uma cartinha e colocou lá escondido.

Mas, ficou desapontada quando percebeu que o amiguinho não queria mais checar a “caixinha”

porque acreditava que não iria receber cartas. Ela, insistentemente, conversou com ele e o

convenceu a olhar, ele foi e viu que havia uma cartinha para ele. Ficaram muito felizes.

Em uma das visitas, Clara me fez uma surpresa. Ela havia recebido as provas que havia

feito e uma das questões chamou sua atenção. Clara fez uma conexão entre a pesquisa que

estávamos fazendo e a atividade escolar, em ambos os casos, o objetivo era contar a história da

vida de uma criança de acordo com a ordem dos acontecimentos em cada fase de crescimento,

a de Clara através de fotografias e a de “Davi” através dos desenhos.

MC – “Oi tia, olha só o que eu tenho para lhe mostrar, a prova da escola, olha isso! É o que a gente tá fazendo né tia? Eu lembrei na hora! P – Eita, deixa eu

ver! [eu li a questão] P – “Observe a linha do tempo de Davi, que nasceu em 2000, e ordene cronologicamente os acontecimentos de sua vida”, nossa! É

MESMO Clarinha, ele vai crescendo e fazendo várias coisas diferentes né?

Que bom que você lembrou de mim, e conseguiu fazer? MC – lógico né tia, fiz tudinho!

Continuei a conversa e perguntei o que ela queria ser quando crescer. Ela demorou para

responder, mas foi falando um monte de profissões. P - Eu queria ser de circo e bailarina, um

monte de coisa... Eu queria ser de circo, éeee ser apresentadora de TV, cuidar dos animais,

coisas assim...”. Falar do futuro ainda é algo muito fantasioso no entendimento infantil, então

comecei a perguntar sobre coisas mais de seu cotidiano.

P: O que você mais gosta de fazer? MC: Brincar com a boneca, as vezes meu

irmão brinca comigo, brincar com meu pai e eu também gosto de ficar correndo, fazendo alguns exercícios, comer. P: Comer é bom, o que você mais

gosta de comer? MC: Eu gosto de comer uva, maçã, mas eu não como muito

maçã, como mais uva, gosto de comer bolo de chocolate também. P: E o que você não gosta? MC: Sabe, eu não gosto de comer muito aqueles peixinhos

pequenos que os cheiros deles são fedorentos, eu não gosto, prefiro ovo. P: O que te deixa chateada? MC: Não gosto de ficar caindo muito, não gosto de ser

machucada, não gosto de fazer karatê porque as pessoas acham que a gente já

tá pronta pra ser batida e não é legal P: Entendi.

397

Em meio às fotografias, Clara foi revivendo cada momento de sua vida, dava muitas

risadas, ficava envergonhada, brincava com imagens, em cada olhar um universo de

sentimentos e percepções. Fui compreendendo junto com ela a importância dos registros, das

referências que cada imagem trazia. Reconheci com isso que a criança tem seu próprio mundo

e que é preciso compreendê-lo a partir dela mesmo, pois os sentidos e emoções revelam

significados que só a criança é capaz de desvelar. A simplicidade infantil está explícita na não-

censura de sua fala. A criança fala com o coração, com a alma, ela vê o belo onde poucos adultos

conseguem enxergar. Por isso, é preciso buscar em nosso íntimo a criança que um dia fomos,

para podermos entender o que pensam, sentem e compreendem as outras crianças com quem

lidamos.

Desse modo, Maria Clara mergulhou em suas lembranças e reminiscências, tentando me

contar suas aventuras de criança, porém, algumas dessas histórias tiveram de ser

fotoetnografadas apenas através de uma pequena representatividade de fotografias escolhidas

por ela, dada a limitação física dessas páginas. Mas, talvez esta tenha sido a melhor maneira de

narrar as histórias dessa princesa blogueirinha, pois suas fotografias testemunham, narram e

demonstram em low key e high key a intensidade visual e social com que ela constrói sua cultura.

São experiências fotoetnografadas de uma vida repleta de conhecimentos, aventuras e

diversões, e que, principalmente, foram capazes de desvelar quem é essa criança e como ela

viveu e vive sua infância.

1.4 Encantos... A princesa “blogueirinha” dos @achadinhosdemariaclara

Conta a mãe de Maria Clara que desde seus primeiros anos, ela sempre gostou de

“aparecer”, aparecer neste contexto significa “chamar atenção”, “ser o centro das atenções”, e

como é falado aqui no nordeste brasileiro, aparecer é “se amostrar”. Em festas, cantava,

dançava, sempre se destacava. No contexto familiar, tinha sempre uma história para contar. Na

escola, participava de todos os eventos, peças teatrais, danças e festas comemorativas. Em casa,

estava sempre fazendo traquinagem, tentando fazer “graça” e inventando mil formas de se

divertir. Sua mãe conta ainda, que Maria Clara adorava ser fotografada e filmada, fazia poses,

cantava e gravava vídeos.

A família de sua mãe morava no interior da Paraíba e quase não vinha para João Pessoa,

isso fez com que sua mãe pensasse em um jeito de compartilhar através da Internet os momentos

de Clara e seu irmão João Pedro. Então em 2013, ela criou um perfil no Facebook

398

“@neyangelafreitas” e um instablog “@achadinhosdemariaclara” no Instagram com a intenção

de divulgar apenas para a própria família, mas, manteve raras publicações no Instagram,

divulgando suas imagens mais no Facebook. Como o Instagram é direcionado, exclusivamente,

para Maria Clara, contextualizarei apenas esta rede social, mas, farei algumas menções ao

Facebook.

Só a partir de 2016, sua mãe passou a postar com certa frequência imagens e vídeos de

Maria Clara no Instagram. Seu primeiro vídeo datado em 20 de fevereiro de 2016 mostra Clara

com 5 anos apresentando uma roupa que foi customizada por ela com a ajuda de sua mãe, daí

em diante as postagens ficaram cada vez mais frequentes. A mãe de Clara fazia postagens de

festinhas escolares, cenas do dia-dia, aniversários, entre outras, com isso, o instablog foi

adquirindo uma identidade social, onde Maria Clara protagonizava as histórias que falavam de

moda, culinária, família, passeios, criatividades manuais, rotinas escolares, brincadeiras, datas

comemorativas. Apenas em outubro de 2016 ela começou a se identificar como “blogueirinha”

e passou a fazer vídeos sobre promoções e produtos comerciais de lojas, de pequenos e grandes

portes. As mesmas postagens do Instagram são repostadas no Facebook.

Para Clara, “blogueirinha” é uma pessoa que “- faz vídeos para Internet sobre moda,

sobre ser criança, sobre as coisas que a pessoa faz, e também, éeee... sobre coisas que a gente

pode fazer como dicas de pintura, lembrancinhas para o papai, muita coisa assim...”. Clara

nunca teve vínculo comercial com empresas, apenas faz postagens para promover seu próprio

“canal”.

Maria Clara tinha poucos seguidores e seus vídeos adquiriam em média 10

visualizações, quando questionei sua mãe sobre isso ela me disse que fazia as postagens e os

vídeos porque Clara gostava, não porque estava esperando ter muitas visualizações ou porque

queria que sua filha fosse famosa: M – “Clara adora fazer fotos e vídeos, a gente não se preocupa

com o que as pessoas vão achar, a gente faz para se divertir. Ela assiste os canais de criança no

YouTube aí fica aprendendo e quer fazer o dela, ela mesmo quem tem as ideias, ela fala por ela,

eu quase não digo nada”. Tive a oportunidade de presenciar durante as observações em

encontros externos, algumas gravações e realmente, Clara fala de acordo com o que vêm à

mente, sua mãe ajuda nos termos mais relativos à loja, ao evento e outras questões pontuais,

inclusive, Clara nem gosta de ouvir, e diz logo... MC – Tá bom, mãe! Eu já sei! Poucas vezes é

preciso repetir as gravações, geralmente, os vídeos ficam bons na primeira tentativa.

Um fato inusitado, que se tornou importante mais adiante, ocorreu em 6 de janeiro de

2017, Maria Clara encontrou a apresentadora de TV, Fernandinha Albuquerque do programa

Mulher Demais da TV Correio, uma emissora da Paraíba, que estava acompanhada do Chef de

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cozinha Adeilton, também colaborador do programa. Na ocasião o desafio era patinar no gelo

dançando. Maria Clara estava no ambiente dela, seu espaço predileto, a patinação no gelo. Com

muita desenvoltura, patinou, dançou e chamou atenção dos apresentadores. Este foi o pontapé

inicial para mais tarde, Clara iniciar um trabalho na TV. O vídeo referente a esta ocasião teve

40 visualizações, e após a pequena repercussão do vídeo, Clara continuou com outras postagens

comerciais atingindo 71 visualizações.

No dia 28 de janeiro de 2017, sua mãe a levou para uma gravação ao vivo da

apresentadora Fernandinha Albuquerque em um evento na praia, referente à abertura do verão.

Lá, Maria Clara, informalmente, participou das gravações, dançando e chamando a atenção do

público. A esta altura já havíamos iniciado nossos encontros. E Clara sempre muito

entusiasmada, me contava e mostrava os vídeos que tinha feito. Nesta ocasião, os contatos entre

a apresentadora e Clara foram se tornando mais próximos. E no dia 13 de fevereiro, Maria Clara

fez seu primeiro vídeo, especialmente, produzido para o Programa Mulher Demais, uma matéria

falando sobre moda e alimentos saudáveis. A equipe de produção foi até sua casa para gravar

as cenas, que foram ao ar no dia seguinte. Maria Clara adorou a experiência e comentou comigo:

MC – “Tia foi muito legal, foram duas filmagens, em uma eu mostrei umas roupas para o

carnaval, para usar no carnaval né, mostrei a maquiagem e, e depois na outra eu falei das

comidas saudáveis, eu disse que gostava de comer batata-doce, eu adoro batata doce, eu levo

até pro lanche da escola, nossa foi demais!”.

Estas situações levaram a mãe de Clara a pensar sobre uma futura carreira artística para

a filha, mas, ela ainda não sabia por onde começar. Então buscou informações com lojistas e

algumas pessoas que trabalhavam com eventos infantis de moda. E ficou sabendo que a empresa

Popótamus Club em parceria com a Revista Acrópolis sempre promovia eventos de moda

infantil, então começou a participar dos eventos sociais da Papótamus para estudar as

possibilidades. Participou de um baile de carnaval e mais uma vez “roubou a cena” como disse

sua mãe. Nesta ocasião, foi convidada a participar de um concurso de beleza, o Miss Beleza

Verão Paraíba 2017 no dia 19 de março, promovido pelo projeto Passarela, uma agência de

moda do estado de Recife. No entanto, para participar teve de arcar com algumas despesas

como taxa de inscrição, compra de roupas e acessórios, totalizando um investimento de R$

600,00. Mesmo sendo o seu primeiro desfile, ela conseguiu vencer o concurso, ganhando uma

premiação de R$ 1.000,00. Maria Clara ficou radiante, comemorou muito a vitória e sua mãe

ficou muito emocionada. Quando chegou em casa, ainda maquiada e com a coroa que havia

ganho, fez um vídeo e postou no Instagram, este vídeo obteve 89 visualizações, com a seguinte

narração:

400

Gente, boa noite, eu acabei de chegar do hotel e eu consegui ganhar o concurso Misse Paraíba Verão, e é de 2017, eu consegui essa faixa que veio junto com

a coroa. Gente é minha primeira vez, desfilando lá, né, no concurso. E eu

consegui! Nooossa gente, eu fiquei tão alegre, na hora! Eu consegui ficar em primeiro lugar, então agradeço a todos que torceram por mim e pela minha

família, beijão uuuunnnmaaaaaaahhh! (extraído dos @achadinhosdemariaclara).

Aos poucos Maria Clara foi entrando neste universo de glamour e fama, o qual já fazia

parte de seu imaginário de criança, quando incorporava as princesas e assistia suas

“blogueirinhas” preferidas no YouTube. Encantada com a capacidade da filha em se destacar

em tudo que participava, a mãe de Clara resolveu investir financeiramente em sua carreira,

agora já mais amadurecida e determinada. Conversou com o esposo, que, mesmo relutante,

participava de todas as ocasiões. O pai não acreditava muito na honestidade desses concursos,

não confiava muito neste ambiente de moda e beleza em que exploram financeiramente as

famílias em troca de algumas pequenas divulgações. Muito politizado, acha que essas empresas

se aproveitam da ingenuidade das pessoas para se capitalizarem cada vez mais, e que os

resultados dos concursos são sempre manipulados por quem oferecer maiores vantagens à

empresa que promove.

De acordo com a pesquisa “Escolas de Pequenas Misses: um estudo sobre os concursos

infantis de beleza” realizada por Knupp (2015, p. 112), o pai de Clara tem razão, pois “os

concursos infantis de beleza funcionam ora como ‘escolas’, ora como negócios lucrativos, ora

como formas (disfarçadas) de trabalho infantil”, para este autor, as “estratégias adotadas pela

organização na elaboração e execução da agenda desse tipo de evento são baseadas em regras

e normas visando angariar o máximo possível de retorno financeiro” (KNUPP, 2015, p. 91).

Mas, voltando à Clara, este concurso em particular, surpreendeu seu pai, por isso, de

certa forma, ele concordou com a esposa em continuar investindo na carreira artística da filha

que estava começando a despontar.

Depois do desfile, uma série de compromissos sociais foram surgindo, as mães das

misses se comunicavam através de um grupo no WhatsApp, onde combinavam pequenos

passeios, festinhas e participações em eventos e em outros concursos, o que desencadeou muitas

badalações, passeios, e mais fotografias e novos vídeos.

No dia 2 de abril, Maria Clara participou como convidada de um evento de moda,

desfilando como Miss Beleza Verão Paraíba 2017 e no dia 4 de abril fez uma participação em

401

uma propaganda publicitária de uma loja de brinquedos infantis, ambos promovidos pela

mesma agência do concurso de beleza.

No dia 30 de abril, Maria Clara participou de outro concurso de beleza, o Mini Miss

Paraíba 2017, mas não venceu. Eu acompanhei todo o processo. Ela fez um lindo desfile de

traje de banho e também brilhou em traje de gala. Mas, como o evento atrasou muito para

iniciar, causou atraso também para o encerramento. Já passava das 23 horas, e ela adormeceu

bem na hora do voto dos jurados, quase 1 hora da manhã, seu semblante não deixou disfarçar o

cansaço, prejudicando-a na reta final. Esse momento foi de profunda tristeza. Clara chorou

muito. Tentamos consolá-la, mas o cansaço e a decepção, a deixara inconsolável. No caminho

de casa, tentávamos explicar a ela que o importante não era vencer e sim participar, se divertir.

Mas, ela só fazia chorar, e chorava bem alto para não nos ouvir. MC – eu nunca mais quero

desfilar! Disse em lágrimas. Eu estava dirigindo, e não pude dar mais atenção, quando a deixei

em casa, disse: P – você estava linda! Era a mais linda! Tenho certeza que na próxima você

conseguirá vencer! Não chore, cadê o sorriso? Já sei! Vamos combinar de passear juntas

amanhã? Me dá um abraço! Ela sorriu e me abraçou. Sua mãe, também consolou Clara e achou

muito injusto o resultado. Foi uma noite estressante e cansativa para Clara.

No outro dia, Clara fez umas fotos com o vestido vermelho de princesa que usou no

desfile e já estava mais animada. Depois fez um vídeo divulgando a inauguração de uma loja

do shopping e postou no Instagram. Essa postagem obteve 91 visualizações. Os pais de Clara

costumam ir ao shopping, que fica perto de sua casa, para assistir umas apresentações musicais

que acontecem na praça de alimentação aos sábados. Nestas ocasiões, Clara dança bastante,

chama atenção do público e dos cantores que sempre a convidam para subir no palco, como no

dia das mães. A mãe de Clara filmou e postou o vídeo, que obteve 201 visualizações.

No dia 20 de maio, a mãe de Clara recebe uma proposta da Popótamus Club para Clara

participar de um desfile de moda. Mas, para participar ela deveria adquirir nas lojas

patrocinadoras, as roupas que a criança usaria no dia do desfile. Ela aceitou e comprou roupas

de dois patrocinadores, um de roupas sofisticadas e outro de pijamas. Um investimento de quase

R$ 800,00. A mesma loja de pijamas promoveu uma tarde de degustação de brigadeiros

saudáveis, convidando as crianças do desfile. Então, no dia 27 de maio, acompanhei Clara em

nesta “tarde de gostosuras”. Lá, Clara fez algumas fotos e gravou um vídeo para postar em seu

instablog.

No dia 28 de maio, peguei Clara e sua mãe e fomos passear no Mercado de Artesanato

402

Popular da Paraíba, lá fiz algumas fotos de Clara, ela amou posar como modelo fotográfico.

Sua mãe ficou encantada com as imagens e postou quase todas no Facebook e no Instagram.

Clara me contou que gostava muito da natureza, dos animais e das plantas. Me mostrou alguns

brinquedos de madeira e umas bonecas de pano. Foi uma tarde de muitas risadas.

No dia 30 de maio, fomos para o evento da Popótamus Club, havia mais de 60 crianças

participando. A revista Acrópolis fez toda a cobertura do desfile, divulgando, posteriormente,

fotos de Clara e das demais crianças no site e na revista. Durante o evento, Clara não tirava o

olho da passarela, dançava, sorria muito, comentava sobre as roupas, sobre as outras crianças,

estava maravilhada com o cenário. Este é um ambiente que a agrada consideravelmente.

Chagada a sua vez, ela desfilou com muita desenvoltura, usava um short preto, uma camisa

branca de mangas compridas, um casaco bem colorido e usava um penteado com um arranjo

colorido no cabelo. Ela soltou beijos para o público, fez poses para os fotógrafos e para mim,

parecia que a passarela era só dela. Foi bastante aplaudida. Depois, voltou a assistir ao desfile

das outras crianças. Em seguida, teve de trocar de roupa, pois iria desfilar dessa vez com o

pijama. Enquanto esperava sua vez, continuou assistindo atentamente, ao desfile. Assim que

chamaram as crianças que desfilariam de pijama, ela correu para aguardar a sua vez na fila. E

repetiu a mesma desenvoltura na passarela. Ao final do evento, o Dj colocou uma música e

todas as crianças dançaram na passarela. A festa continuou com uma boate para as crianças e

um pequeno lanche para o público em geral.

Clara se divertiu muito, dançou bastante e brincou nos brinquedos eletrônicos do salão

de festas. Interessante destacar uma situação em que Clara tenta obter vantagens no sorteio de

brindes. Durante a festa, uma equipe de recreação fazia sorteio de brindes, para isso, pedia às

crianças que sorteassem os números dos bilhetes, cada ingresso da festa tinha um número. Entre

um sorteio e outro, Clara ficava atenta aos nossos números. Quando já estavam nos últimos

brindes, a equipe jogou todos os bilhetes para o alto, sorteando um e espalhando no chão os

demais. Clara perguntou qual era o nosso número e começou a procurar pelo chão. Quando

achou guardou com ela e esperou que houvesse outro chamado. Assim, quando pediram às

crianças outro bilhete, Clara imediatamente, pegou o que ela já havia encontrado e fez de conta

que não sabia que era nosso, desse modo, conseguiu fazer com que o nosso número fosse

sorteado. Ela viu aquilo e começou a rir. Ficamos impressionados com sua atuação. O que seria

para nós um ato reprovável, para a criança tratou-se um ato de subversão e esperteza. Sua

ousadia demonstrou a capacidade de encenação, através da brincadeira ela criou sozinha,

estratégias para solucionar seu problema, com isso, ela transgrediu as regras, ressignificou sua

lógica e exerceu sua vontade de modo autêntico e criativo.

403

Após a ocasião do desfile, por iniciativa de uma das mães, foi criado o instablog

@minid.influencepb – MDIPB, um tipo de “club virtual” para crianças “influentes” em redes

sociais (meninos e meninas) como bloguers e youtubers mirins. E Maria Clara foi convidada

para fazer parte da equipe e para participar da festa de lançamento no dia 4 de junho, esta foi

uma iniciativa particular sem muitas repercussões midiáticas.

Em 8 de junho, Maria Clara participou do curso de modelo promovido pela agencia

Passarela, nesta ocasião houve uma seleção oficial de modelos infantis e ela foi aprovada em

duas etapas, restando apenas a terceira etapa que ocorrerá em 2018 na cidade de Curitiba, o

investimento para esta participação foi de R$ 3.000. As crianças que vencerem a terceira etapa

serão encaminhadas para a agência como modelos exclusivas, com possibilidades para atuação

em TV. Maria Clara ficou muito feliz, fez um vídeo e mostrou o certificado de aprovação. No

dia 14 de junho, Clara participou do desfile de encerramento do curso de modelo e foi muito

elogiada pelos organizadores.

O projeto Passarela tem descoberto muitos talentos infantis que hoje são atores em

canais abertos da televisão brasileira, no entanto, considerando o volume de crianças que

participam e são aprovadas, pode-se inferir que seu foco é angariar cada vez mais valores em

cima dos sonhos e das expectativas que geram nas crianças e em suas famílias, os valores de

inscrição e participação são absurdos. Mas, mesmo ciente desta manipulação capitalista, a mãe

de Clara resolveu investir. M – “Clara está vivendo seu momento, este é o momento dela! Eu

preciso investir agora”, ou seja, para ela, esta é uma grande oportunidade para Clara ser

descoberta por “olheiros” que sempre frequentam este tipo de evento. O pai de Clara, um pouco

mais desconfiado, prefere não criticar a atitude da esposa, e a acompanha sempre em suas

decisões, inclusive, está sempre presente durantes os eventos em que Clara participa.

No mês de junho Maria Clara participou de dois eventos juninos, um no Popótamus

Club e outro no Pula Pirula Festa e Eventos. Nestas ocasiões, desfilou vestida de matutinha e

fez muito sucesso com suas novas postagens. Com toda a repercussão, Maria Clara foi

convidada para apresentar três matérias no Programa Mulher Demais pela TV Correio, afiliada

da Rede Record na Paraíba, um sobre culinária em que ela fez uma canjiquinha, um sobre

roupas juninas em que ela mostrou como se vestir no São João e outro em que ela deu dicas de

maquiagem. Estas participações foram fundamentais para a entrada definitiva de Maria Clara

no programa da apresentadora Fernandinha Albuquerque que a convidou para continuar

fazendo reportagens durante todo o mês de férias.

P: E aquelas reportagens lá das férias? MC: Foi as férias da criançada, os pais

404

não sabem onde levar né? Então, aí eu mostrei vários cantos onde os pais

podem levar que são bons pras crianças. P: Ah, e quais foram esses cantos? Você lembra? MC: Foi na Bica, eu fui no parque, como é que é o nome? P:

Arruda Câmara? MC: Não, a Bica já foi, mas é um outro, sabe aquele grande?

P: Espaço Cultural. MC: Não, eu também fui no Espaço Cultural, eu acho, é, então, aquele lugar que tem um circo, eu fui também pra aquele lugar que tem

os peixinhos, e no final tem o circo. P: Ah que legal, muitos lugares, e tu

gostou de fazer essas reportagens? MC: Aham, o circo foi o meu preferido”.

Em 28 de junho, Clara fez uma reportagem no Espaço Cultural sobre atividades de circo

para crianças, no dia 6 de julho, ela foi para o Parque arruda Câmera, o zoológico da cidade e

apresentou os animais, segurou uma cobra e brincou com um gavião, não teve nenhum medo.

No dia 13 de julho foi para a Estação Ciências, divulgar uma colônia de férias. E no dia 19 de

julho a gravação foi feita num ateliê, onde Clara participou de uma oficina de arte. E para

encerrar a jornada de matérias, participou da gravação do programa no próprio estúdio junto a

apresentadora. A partir de então, Maria Clara ficará mandando seus vídeos para o programa

com dicas de moda, customização de roupas, confecção de pequenos artefatos artesanais, entre

outros, estes vídeos serão reproduzidos semanalmente, durante a programação. Em uma das

ocasiões em que Clara esteve na TV correio. Um fato inusitado para Clara foi saber que ela tem

um fã que trabalha nos bastidores do programa, assim que nos encontramos, ela tratou logo de

me contar:

MC – tia, sabia que eu tenho um fã na TV? P - você já tem fã? MC: Tenho! P:

Como é isso? MC: É assim, quando eu cheguei lá tava com problema pra mandar o vídeo do dia dos pais, que é aquele da lembrancinha, aí não tava

pegando, aí eu fui lá em cima [pedir ajuda para enviar o vídeo, quando chegou lá foi surpreendida pelo fã, que pediu para tirar uma foto com ela] MC - só

que ele queria tirar foto [...]. P: Aí ele tirou foto contigo? MC: Tirou, no celular

dele! P: Ele disse que era teu fã? MC: Aham, ele tem todos os meus vídeos no computador dele! P: Não acredito! Que legal.

Concomitante a estas gravações, o pais de Maria Clara assinaram um contrato com a

revista Acrópolis para fazer parte do projeto Garota Acrópolis Kids, que envolve a participação

em eventos promovidos pela revista e pelo Popótamus Club, dando direito a algumas mídias

impressas e digitais. O investimento foi de R$ 2.000. Já fazendo parte deste contrato, Maria

Clara participou de uma colônia de férias; de uma festa à fantasia, onde se vestiu de colombina;

de uma tarde de cinema e patinação no gelo; fez várias fotos para a revista, inclusive umas com

seu pai em homenagem ao dia dos pais.

Agora Maria Clara já tem 1.549 seguidores no Instagram e suas postagens já passam de

200 visualizações. Cada vez mais, ela deixa de brilhar apenas para a sua família, e como os

astros, com sua própria luz, ela começa a irradiar por todo lado. Ao final da narrativa visual,

405

acrescentei algumas imagens de Maria Clara postadas após a conclusão da pesquisa etnográfica,

para dar uma visão geral de como sua carreira como modelo despontou após todos esses

trabalhos na TV local. Atualmente, Maria Clara é convidada a participar de desfiles,

publicidades e eventos em toda grande João Pessoa, em sua grande maioria, ela paga pela sua

participação, através da aquisição de roupas para desfiles e/ou outros produtos das lojas que

anuncia.

Acompanhei, direta e indiretamente, todo esse processo, desde os primeiros desfiles até

suas inúmeras participações no programa de TV, vi e ouvi muitas de suas conquistas, sempre

atenta aos acontecimentos que permeavam o cotidiano de Clara, e confesso, em muitas

situações eu deixei de ser pesquisadora, para ser conselheira, torcedora, até mesmo

incentivadora, pois, acabei me deixando envolver com seu talento, sua luz e seu carisma.

Conversei com ela sobre sua participação em programas de TV, com muito entusiasmo ela me

contou algumas de suas aventuras.

P - Maria Clara, quer dizer que agora você é a criança mais famosa do Brasil? MC: Sou! (risos) P: Por que você é famosa? MC: É porque eu apareço na TV.

P: E o que você faz na televisão? MC: Eu faço vestido de boneca, eu faço coisas pra boneca e também falo de moda e eu fiz também uma lembrancinha

do dia dos pais pra quem quiser ver. MC – faço reportagens de moda também,

mostro os looks para crianças bem estilosa. P - E o que é ser estilosa? MC: É tipo assim, tá bonita, bem bonitinha! [...].

Toda essa trajetória de Maria Clara foi vivida de acordo com as limitações da família,

existe um alto investimento que é feito com muito sacrifício, mas, percebe-se que toda a família

se diverte também com isso. Os pais de Clara acompanham todos os eventos e participam

ativamente da vida da folha, sempre estão juntos festejando cada conquista, mas, sobretudo,

estão atentos aos perigos que esta carreira também esconde, por isso, priorizam trabalhos que

valorizam a infância.

Clara adora esse universo glamoroso e cheio de diversão, um reflexo das infâncias

contemporâneas, da ciberinfância de crianças blogueiras, fashionistas e dos novos

comunicadores sociais -os youtubers mirins. Esse tipo de infância está aí, a infância da criança

que tem sua própria opinião, que quer estar em constante evidência e tem um grande potencial

de comunicação e expressão. É preciso conhece-la melhor.

Neste diapasão, as discussões sobre as concepções de criança e infância também

envolvem as percepções das próprias crianças, suas falas e expressões dão suporte ao que

apenas conhecemos teoricamente, é preciso se aproximar, mergulhar no universo infantil,

brincar junto, criar junto, conversar e entender o que elas têm a nos dizer e até mesmo a ensinar.

406

Após narrar as histórias de Maria Clara, darei sequência ao ensaio explanando a

trajetória metodológica da pesquisa fotoetnográfica autobiográfica, para tanto, descrevo as

implicações do memento no processo de descrição em high key e low key dos contextos de

pesquisa, os elementos presentes durante a produção da narrativa e alguns diálogos que se

fizeram necessários à compreensão do todo narrativo.

2 A FOTOETNOGRAFIA AUTOBIOGRÁFICA NA PESQUISA COM CRIANÇA

Este ensaio propôs um profícuo diálogo entre epistemologias e metodologias que

caminharam em busca do desvelamento da realidade da infância a partir da óptica da própria

criança, marcando assim, posição na defesa de sua participação na pesquisa, consequentemente,

rompendo com sua in/visibilidade científica. O percurso se delineou em metodologias não

convencionais que potencializam as relações entre pesquisador e sujeito-infantil, reconhecendo

a complexidade das infâncias a partir das singularidades dos modos de ser da criança,

aproximando-se dessa maneira, das culturas que se produzem não só através de processos

reprodutivos, mas sim, processos que são construídos de modo recursivo na reprodução social

(GIDDENS, 1984, p. XXV), processos estes, que fundamentaram a teoria da reprodução

interpretativa de Corsaro (1993, p. 114), também entendida no contexto das pesquisas em

Sociologia da Infância como uma forma de “apreensão criativa” da criança (MÜLLER e

CARVALHO, 2009, p. 23; MARTINS FILHO e PRADO, 2011, p. 3).

Como já ressaltado, a participação da criança têm sido uma das mais importantes defesas

da Sociologia da Infância, enseja uma mudança paradigmática que se nutre de uma abordagem

multidisciplinar construída em torno de um objeto científico próprio: a infância como categoria

social e as crianças como atores sociais. Com isso, assumindo para si, a importância da

participação da criança em assuntos relacionados a ela e afastando-se de uma visão

adultocêntrica da infância, o que constituem os esforços teóricos principais da Sociologia da

Infância (SARMENTO, 2009, p.7). Nesta dimensão, esse campo do saber caracteriza-se

atualmente, como um programa epistemológico científico em plena fase de institucionalização

que se consolida na “produção de teorias, quadros conceptuais e frames interpretativos

próprios”, em diálogo com outros campos, como a Antropologia, a Sociologia, as Ciências da

Comunicação, as Ciências da Educação, entre outros (SARMENTO, 2015, p. 33-34).

Os procedimentos analíticos e as metodologias investigativas nos estudos da criança

407

vêm caminhando na direção de estratégias que privilegiam a escuta da criança, como a

etnografia, a pesquisa participativa e os métodos visuais (imagens), consequentemente, a nova

epistemologia da infância abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil na

promoção de metodologias que promovem espaços de interlocução entre crianças e adultos e

entre crianças e crianças, dando a elas a oportunidade de se expressarem criticamente

(SARMENTO, 2015, p. 34).

Pensando nisso, este ensaio trouxe uma proposta de investigação que priorizou,

consubstancialmente, as subjetividades e interpretações da criança acerca de si e das relações

que estabelece com o outro e com as culturas da qual participa, nessa intenção, durante a

pesquisa empírica direcionei o olhar para o desvelamento das culturas da infância procurando

identificar evidências de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia

autobiográfica, ou seja, considerei, prioritariamente, as percepções ontológicas e interpretativas

da própria criança acerca de sua história de vida, buscando perceber como as culturas infantis

se aproximam, são aproximadas e se distanciam das imagens im/dis/postas nas culturas visuais

contemporâneas.

Neste sentido, o método fotoetnográfico empreendido na tese adquiriu outras dimensões

na pesquisa empírica, tendo em vista que, agora, seu objeto passou a ser narrado e interpretado

pelo próprio sujeito de sua narrativa – a criança. Portanto, foi necessário fazer algumas

implementações ao método, porém, não desconsiderando suas premissas epistemológicas e

metodológicas. Desse modo, para o desenvolvimento da pesquisa empírica, o movimento de

interpretação memento - reviver, sentir e compreender - foi fundamental para promover a

participação da criança, dada suas dimensões ontológicas, subjetivas e heurísticas para a

interpretação da imagem, e neste caso, de sua autoimagem.

A participação efetiva da criança-sujeito nas escolhas e narrativas sobre as suas próprias

imagens foi fundamental para compreender como se estabelecem as relações entre identidade,

subjetividade, cultura e alteridade no contexto da infância contemporânea. Nesta perspectiva,

foi preciso considerar o próprio contexto da criança como campo legítimo para conhecer suas

culturas e visões de mundo, considerando essencialmente, a criança como detentora de saberes

e capaz de expressar-se criticamente (DELGADO e MULLER, 2005; SARMENTO, 2005).

Produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil, desde a

seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e significados relativos à sua história

de vida, não foi uma tarefa fácil. Rocha e Passeggi (2012, p. 115) ao tratar da narrativa

autobiográfica ressaltam que essa modalidade parte de princípios epistemológicos que

proporcionam a apropriação de histórias e memórias, constituindo-se uma forma de

408

empoderamento180. As autoras também destacam que a escuta sensível do Outro, parte do

reconhecimento de sua história de seu pertencimento social, desse modo, na pesquisa

autobiográfica, “os processos reflexivos e de ressignificação das experiências são importantes,

tanto para a pessoa que narra, quanto para quem às escuta, incluindo o pesquisador, que se

forma com a pesquisa e com quem dela participa (ROCHA e PASSEGGI, 2012, p. 115).

A Fotoetnografia, neste contexto, possibilitou a construção de uma narrativa

autobiográfica, tendo em vista que “as fotografias são recortes arbitrários, traduções da

realidade” (ACHUTTI, 2004, p. 111) que possuem em si a capacidade de estabelecer sentidos

e significados históricos e ontológicos da vida humana, uma pesquisa que se pretende

fotoetnográfica deve estabelecer relações intersubjetivas entre pesquisador e sujeito, por isso,

o caráter heurístico do método, o qual favorece deslocamentos rizomáticos e criativos em

função de uma narrativa que realce as particularidades e interpretações críticas da criança.

De acordo com Holanda (2006, p. 368), o caráter heurístico abrange processos

autobiográficos, autocriativos e de autodescobertas que dão significados àquilo que o

pesquisador pretende compreender, nessa perspectiva, a “grande contribuição do modelo

heurístico está na intrínseca participação do sujeito e do pesquisador no próprio ato da pesquisa,

isto é, na efetiva colocação da subjetividade do pesquisador no ato de pesquisar.”.

Principalmente, em se tratando de pesquisas com crianças, onde essas relações se acentuam

ainda mais. Daí a necessidade de um permanente movimento de retorno, partilha e reflexão

sobre a análise do material coletado, a partir de olhares e escutas que provoquem os sentidos

interpretativos da criança.

Em função disto, outro aspecto tornou-se fundamental para o desenvolvimento da

pesquisa fotoetnográfica autobiográfica, refiro-me à apropriação e o entendimento

epistemológico e ontológico da imagem técnica fotográfica como uma expressão da realidade

e um abrigo para as reminiscências da alma, ou seja, a ideia de que uma fotografia vai muito

além de um instantâneo imagético planificado, a fotografia na pesquisa fotoetnográfica

comporta sentidos, pensamentos, memórias, histórias magicizadas em peles. Conforme

prenunciado por Koury (1998, p. 72-73), a fotografia é como um simulacro do Outro, pois,

“Imortalizado, o instantâneo fotográfico vira eterna presença”.

Portanto, as fotografias enquanto memórias e reminiscências funcionaram como telas

que transmitiam o que o cérebro comportava em operações sensoriais, cognitivas e afetivas

180 O empoderamento para Rocha e Passeggi (2012, p. 115) é entendido na perspectiva de que as narrativas

autobiográficas se originam a partir do conhecimento de si, ou seja, da apropriação do sujeito em relação

à sua própria história e pertencimento social.

409

(DELEUZE, 2003, p. 264; SAMAIN, 2012, p. 158), dessa forma, a fotografia tornou-se um

“elemento detonador de outras memórias” (CARVALHO, 2011, p. 118), assim como nas

palavras de Koury (1998, p. 74) “a fotografia evoca e revela o real, são critérios de verdade”,

nesse sentido, diante dela, a criança-sujeito reviveu seu passado-presente, contemplou o belo e

compreendeu a plenitude da sua própria infância.

Se na vida a fotografia conquistou o status de realidade, na cultura ela ganhou força,

expressão, simulação, na arte, criação e na ciência ela adquiriu novos contornos que anunciaram

um tempo pós-histórico, em que o "pensamento-em-superfície" (imagem) vem absorvendo o

“pensamento-em-linha" (escritura), ou seja, um tempo em que as imagens técnicas passam a

pensar conceitos, a estruturar o pensamento humano, passou-se, portanto, a pensar por imagens,

a conceituar imageticamente, consequentemente, “a ciência não será mais meramente

discursiva e conceptual, mas recorrerá a modelos imagéticos. A arte não trabalhará mais com

coisas materiais ("oeuvres")181, ela proporá modelos” (FLUSSER, 2007, p. 125, grifos do

autor).

Segundo Flusser (2007, p. 110-111) trata-se de uma “mudança radical no ambiente, nos

padrões de comportamento e em toda a estrutura de nossa civilização”, isso significa que os

caminhos que a fotografia toma na pesquisa científica assumem um patamar de importância

antes nunca visto. A infância na sociedade da 2ª modernidade mergulhou no universo

fotográfico de maneira irredutível, registram-se cenas em imagens técnicas a fim de magicizar

a vida, garantir sua memória, significar a existência, eternizar a realidade. Nesta dimensão, a

fotografia enquanto fenômeno social virou objeto legítimo para a ciência, que também passará

a pensar imageticamente, como outrora asseverou Flusser (1985, p. 12):

Tudo, atualmente, tende para as imagens técnicas, são elas a memória eterna

de todo empenho. Todo ato científico, artístico e político visa eternizar-se em

imagem técnica, visa ser fotografado, filmado, videoteipado. Como a imagem técnica é a meta de todo ato, este deixa de ser histórico, passando a ser um

ritual de magia. Gesto eternamente reconstituível segundo o programa. Com

efeito, o universo das imagens técnicas vai se estabelecendo como plenitude dos tempos. E, apenas se considerada sob tal ângulo apocalíptico, é que a

fotografia adquire seus devidos contornos.

Esta síntese argumentativa dá sustentação a este terceiro ensaio que projetou seus

resultados nos seguintes argumentos: i. a fotografia é um permanente devir-imagem que no

contexto da Fotoetnografia autobiográfica se torna um “entre-lugar” do passado-presente, da

181 Termo em francês que designa “trabalho”.

410

ausência-presença, do reviver-sentir-compreender; ii. a fotografia é um permanente devir-

humano retroalimentado pela cultura visual que magiciza a vida em imagens técnicas; iii. no

contexto da infância, a fotografia se torna uma “entre-cultura” que se manifesta em

microestruturas e/ou macroestruturas sociais e são produzidas pela/sobre a ação das crianças

em meio às relações de alteridade que estabelecem junto às culturas infantis, adultas e visuais.

Com vistas a tais argumentos, a narrativa fotoetnográfica autobiográfica abrangeu,

basicamente, duas dimensões, ambas implicadas no movimento cíclico de interpretação

memento. A primeira referiu-se à percepção do sujeito investigado (criança-sujeito) - à

medida que a criança produzia a narrativa visual autobiográfica e elaborava sua compreensão

num processo de reflexão interpretativa dos fatos (CORSARO, 1997) dando sentidos e

significados às suas experiências visuais e sensitivas; A segunda referiu-se à percepção da

pesquisadora - durante o processo de geração de dados junto à criança-sujeito, através do diário

fotoetnográfico e durante o processo de análise interpretativa (GRAUE e WALSH, 2003, p. 33-

39) das narrativas fotoetnográficas produzidas pela criança-sujeito à luz das concepções

teóricas que pautaram as investigações. Deste modo, as Fotoetnografias tomaram formas

distintas, porém, complementares. Requereram para si, efeitos de veracidade e de subjetividade

construídos de formas híbridas e transversais, sobretudo, reais e éticas.

Porém, além destas dimensões, vale ressaltar que o movimento de interpretação

memento desenvolvido, especificamente, para este estudo, também intencionou possibilitar de

forma indireta, uma terceira dimensão – a percepção do leitor/espectador, ou seja, àquela que

potencializa uma viagem no tempo, na história, nas memórias e reminiscências da própria

infância do sujeito que contempla e reflexiona as imagens. Constituindo-se assim, num

movimento vivo e contínuo que se retroalimenta de novos olhares e com eles, novas percepções,

novas reminiscências, tendo em vista que, a fotografia,

[...] caracteriza-se como lembrança, provoca no olhar que vê uma síntese da

memória pessoal. Significa gestos, atos e sentimentos. Constrói redes de significados precisos, que singularizam a rememoração pelo ato emocionado

que provoca no observador. Pela cumplicidade que estabelece ou busca estabelecer entre aquele que observa e aquele que a foto representa,

referenciado e fixo na ausência presente de um tempo e de um espaço que não

mais existem, embora continuem a existir na realidade da foto (KOURY, 1998, p. 77).

Dito isto, o processo de geração de dados intercalou diferentes procedimentos. Em se

tratando da primeira dimensão, os dados foram gerados através do discurso infantil

autobiográfico durante a produção de sua narrativa visual, tendo como corpus as fotografias

411

dispostas fisicamente em álbuns de família e disponíveis digitalmente em pen-drives e redes

sociais como Facebook, YouTube e Instagram, nas quais a criança mantém interação constante,

com a mediação de sua mãe, agregadas ao próprio discurso infantil. Na segunda dimensão, a

Fotoetnografia foi realizada a partir da pesquisa com criança intercalando técnicas de inspiração

etnográfica como diário de campo, que particularmente, chamei de diário fotoetnográfico,

observação participante, conversas informais e produção de narrativa visual.

O termo “geração de dados” foi sugerido por Graue e Walsh (2003, p.115) para substituir

o tradicional termo “recolha de dados”, pois, segundo os autores, é mais adequado ao fato de

que “os dados não estão por aí, à nossa espera [...]”, sendo necessário, a sua produção antes

mesmo da recolha, e isto, segundo os autores, exige competência e rigor em três estratégias

básicas que envolvem entrevista, observação e, aí sim, recolha dos dados. Neste contexto, o

planejamento prévio tornou-se fundamental. O planejamento envolveu a definição de

informações gerais como: as intenções do plano, os instrumentos de pesquisa, o material a ser

utilizado, as perguntas a serem feitas, os dias da visita, os horários e duração dessas visitas,

entre outros. Daí que “a aquisição de dados é um processo muito activo, criativo e de

improvisação” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 119), neste sentido, foi preciso atentar aos

detalhes e às oportunidades que emergiam da própria iniciativa infantil.

Outra importante premissa foi o comportamento ético e o respeito às inteligibilidades e

especificidades culturais e sociais da criança-sujeito. Ou seja, o fato de estar investigando o

modo de ser e de viver das pessoas, não dá o direito de fazer julgamentos ou axaltações sobre

sua vida e suas rotinas, isso pode comprometer todo o processo de geração de dados, e

evidentemente, impedir a continuidade da pesquisa. De acordo com Graue e Walsh (2003, p.

76): “Entrar na vida das outras pessoas é ser-se um intruso. É necessário obter permissão,

permissão essa que vai além da que é dada sob formas de consentimento. É a permissão que

permeia qualquer relação de respeito entre as pessoas”. Nesta direção, Graue e Walsh (2003, p.

124-131) elaboraram alguns apontamentos necessários à pesquisa de campo, os quais foram

seguidos durante a geração de dados:

i) Estabelecer empatia com os sujeitos;

ii) Partir para o trabalho de campo como aprendiz, tendo em vista três pressupostos: todas as crianças são espertas, todas fazem sentido e todas querem uma vida confortável;

iii) Decidir a identidade de pesquisador, ou seja, quem serei no campo para ter a certeza de

que essa personagem está acessível à criança e aos adultos com quem irei trabalhar; iv) A geração de dados requer improvisação, mas a improvisação requer um plano, ele deve

ser fundamentado e flexível; v) Fazer uso de fontes de dados e métodos diversos é vital para a recolha de dados;

412

vi) Registrar as particularidades concretas que dão sentido às ações diárias das crianças no

contexto investigado.

Estes procedimentos devem permearam a ideia principal do trabalho com a criança que

consistiu em assumir o protagonismo infantil tanto do ponto de vista “operatório-metodológico”

quanto ético, neste prisma, a “anuência pela voz da criança indicia a sua participação livre e

espontânea no escopo da pesquisa, mantendo o pesquisador longe de qualquer resquício de

extorsão quanto à finalidade em questão” (CARVALHO e MÜLLER, 2009, p. 68). Os autores

também destacam que essa postura, requer uma combinação de métodos que possam

“multiplicar a presença ativa da criança no corpus de toda a pesquisa”, portanto, o “exercício

da escuta” solicita uma ação ética em que se acolha “a singularidade e a diferença da criança

como sujeito protagonista de suas ações” (CARVALHO e MÜLLER, 2009, p. 75).

A partir do conceito de reprodução interpretativa, a criança-sujeito ao se apropriar de

informações do mundo adulto, cria suas próprias culturas de modo singular atendendo aos seus

interesses próprios enquanto criança protagonista que participa ativamente das decisões a seu

respeito, em diálogo com a família e com seus pares, por conseguinte, ela não apenas internaliza

os aspectos da cultura, mas contribui ativamente para a produção e mudança cultural

(CORSARO, 2009, p. 31). Nesta mesma óptica, Kosminsky (2010, p. 128) ressalta que o ponto

de vista da criança consegue examinar, analisar e explicar os mundos que conhecem porque

vivem dentro dele, cabe ao pesquisador, “ligar as vidas das crianças à organização cotidiana

habitual das relações sociais”.

Segundo Cohn (2013, p. 241) no campo amplo da antropologia, para que a atuação

efetiva do pesquisador seja coerente com o ponto de vista da criança, é preciso levar em conta

que, por um lado “a concepção de infância informa (sempre) as ações voltadas às crianças – e,

de outro, que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupá-lo, seja para expandi-lo, ou

negá-lo”, desse modo,

[...] a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das

pesquisas em antropologia que fala de e com crianças – aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos, das políticas públicas a elas voltadas,

de ações educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vista das

crianças. Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo, ou todos os lados destas realidades multifacetadas, ao menos devemos ter isso em

mente: que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como

as crianças atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir (mesmo

que contra) desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem (COHN, 2013, p. 241, grifo meu).

413

Portanto, a investigação interpretativa priorizou o convívio direto com a criança,

mantendo uma sociabilidade pautada na confiança, na liberdade de expressão e até nas trocas

afetivas que, inevitavelmente, ocorriam entre uma conversa e outra. Afinal, como afirmou

Graue e Walsh (2003, p. 115) “o investigador não é uma mosca pousada na parede [...] Está lá.

Não pode ser de outra maneira. Faz parte da equação”, ou seja, na pesquisa com criança, não

há como manter uma postura distante, não participativa, mesmo que se tente o distanciamento,

a própria criança o subverte elaborando formas variadas de interlocução e envolvimento entre

ela e quem à pesquisa. Conforme observou Kramer (1999, p. 272) as crianças que produzem

cultura e são nela produzidas, “possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das

coisas subvertendo essa ordem”.

Além desse cuidado junto à criança, também procurei administrar essa sociabilidade

junto à família da criança-sujeito, pois, como se tratava de uma pesquisa que exigia um contato

extremamente próximo, a família precisava se sentir segura para poder abrir sua intimidade à

investigação, este foi um processo paulatino de conquista.

Partindo desses princípios, este ensaio promoveu novos procedimentos à abordagem

fotoetnográfica buscando desvelar as culturas da infância na contemporaneidade a partir de

percepções ontológicas e interpretativas da própria criança, ou seja, considerando o próprio

ponto de vista infantil, desde a seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e

significados relativos à sua história de vida, sua autobiografia.

Dessa forma, as análises assumiram caráter contingencial e volitivo, pautado em

abordagens heurísticas e transdisciplinares em que a principal matriz de inteligibilidade foi a

reflexividade interpretativa da própria criança, por conseguinte, o olhar interpretativo crítico do

pesquisador. Entretanto, diferente dos outros ensaios, resolvi não empreender o rigor da

descrição da fotografia em high key, tendo em vista a quantidade de imagens necessárias a uma

narrativa autobiográfica, mas, mantive seu caráter de desvelamento das partes claras –

superexpostas, dessa vez, na narrativa visual como um todo, produzida pela criança em seu

processo de memento. Além disso, em low key o desvelamento partiu do diálogo entre as

percepções do sujeito e do pesquisador, buscando nesse diálogo a contextualização das áreas

escuras – subexpostas na referida narrativa visual em interlocução com a perspectiva da

pesquisa interpretativa, transdisciplinar e crítico-cultural.

Neste sentido, cada imagem narrada direcionou a interlocução do campo analítico,

conforme surgiam elementos que remetiam ao protagonismo da criança manifestado nas cenas

magicizadas nas imagens técnicas referentes à sua infância, seu cotidiano e seu imaginário.

Consequentemente, foi possível desvelar as percepções da criança-sujeito sobre o que é ser

414

criança, como ela vive sua infância e como exerce seu protagonismo nas relações de alteridade

que estabelece entre pares e com os adultos com os quais conviveu e convive.

Além disso, durante a pesquisa fotoetnográfica pude reconhecer como as culturas

visuais se manifestavam no cotidiano da criança, como a criança se relacionava com essas

visualidades e quais as implicações dessas vivências na construção de suas subjetividades e

identidade cultural, o que corroborou com a nova imagem da criança sociológica – a criança

protagonista, fundamentada na ideia de empoderamento e participação da criança no exercício

da cidadania (BUCKINGHAM, 2007; GUIMARÃES, 2016; HART, 1992; KOHAN, 2004;

LANSDOWN, 2003; OLIVEIRA, 2007), na consciência crítica infantil (FREIRE, 2003, p.

196), nas noções de que todas as crianças são espertas, dão sentido ao mundo e querem se sentir

confortáveis (GRAUE e WALSH, 2003, p. 124-131), e, principalmente, nas premissas

epistemológicas da Sociologia da Infância em relação à criança como ator social, protagonista

de sua história e produtora de cultura (CORSARO, 1997; DEMARTINI, 2005; DORNELLES,

2007; FERNANDES, 2009; JAMES, JENKS & PROUT, 2004; KRAMER, 2002; MARTINS

FILHO e DIAS PRADO, 2011; MONTANDON, 2001; MÜLLER, 2010; PROUT, 2005;

QUINTEIRO, 2005; QVORTRUP, 1995, 2010, 2015; SARMENTO, 2002, 2007; SIROTA,

2001; TREVISAN, 2007, 2015), de uma cultura da visibilidade, do consumo e do “ser famosa”.

Assim, a imagem da criança protagonista resultou da reinterpretação das imagens da

criança pré-sociológica (SARMENTO, 2007, p.30-33), construída num frame interpretativo

que pensou a infância, enquanto categoria social, consequência de um processo de reflexividade

moderna no âmbito das produções contemporâneas da atual ordem científica no campo das

Ciências Humanas e Sociais. Fundamentou-se nas noções de criança como ator social que cria,

reproduz e interpreta o mundo de acordo com suas inteligibilidades, representações e

expressões subjetivas, produzindo evidentemente, suas próprias culturas nas relações de

alteridade que estabelece nos “entre-lugares” que atua e nas “entre-culturas” das quais participa,

sobretudo, exercendo sua cidadania de forma reflexiva e interpretativa.

Por conseguinte, o estudo também demonstrou que a Fotoetnografia autobiográfica se

constituiu uma importante abordagem metodológica de pesquisa para o campo dos estudos da

infância, pois, evidenciou o protagonismo da criança e a alteridade da infância ao promover sua

participação na construção de conhecimento científico, constituindo-se um método eficiente

para pesquisas com crianças.

Após situar as bases epistemológicas e metodológicas da pesquisa fotoetnográfica

autobiográfica, recorro à linguagem metafórica para explicar os procedimentos da pesquisa

empírica fotoetnográfica junto à criança-sujeito, para tanto, apresento três metáforas

415

fundamentais que garantiram a harmonia do método: a abertura do diafragma – representada

pela entrada e permanência no campo de pesquisa (profundidade do campo); a velocidade do

obturador – que significa a flexibilidade e as negociações (tempo de abertura); a sensibilidade

do sensor – representada pelas percepções e interpretações realizadas em diálogos low key e

high key (incidência de luz) 182, “tudo isso em razão de uma profundidade de campo

determinada pelo enquadramento almejado” (ACHUTTI, 2004, p. 97).

2.1 Abertura, Velocidade e Sensibilidade: a ação do pesquisador em foco

Ele deve saber jogar com o foco seletivo, a

velocidade de obturação, as objetivas, definir a abertura desejável, tudo isso em razão de uma

profundidade de campo determinada pelo enquadramento almejado.

(ACHUTTI, 2004, p. 97, grifos meus).

Insisto nesta fala de Achutti (2004, p. 97)183 porque ela explicita, significativamente, a

intenção metodológica de um estudo fotoetnográfico e dialoga, perfeitamente, com as

especificidades de uma pesquisa com criança. Apesar de ser uma curta citação, sua

complexidade vai muito além do que nela se lê, seria como se eu estivesse agora desvelando

em low key sua essência e amplitude para a compreensão da realidade na qual a Fotoetnografia

do tipo autobiográfica pretende mergulhar.

O “Ele” a que o autor se refere pode representar tanto o fotógrafo que etnografa, o

etnógrafo que fotografa, ou até o pesquisador que etnografa fotografando. E o “saber jogar”

significa além de dominar a técnica, ter um olhar apurado, preciso, treinado e, sobretudo,

sensível; um olhar que necessita ser aprendido mesmo antes de “estar lá” (GEERTZ, 1989, p.

58). Em outras palavras, o fotógrafo deve munir-se de conhecimento etnográfico e

antropológico da comunidade em questão e os etnólogos e pesquisadores devem buscar

conhecimento técnico e sensível sobre fotografia antes de irem a campo, como foi o meu caso,

não sou fotógrafa, nem etnógrafa, sou apenas uma pesquisadora em educação que se

experimenta nos horizontes da Antropologia Visual, na filosofia da fotografia e na metodologia

182 As informações mais técnicas em relação ao funcionamento da câmera fotográfica foram retiradas do site

www.tecmundo.com.br. QRcode 80: Fotografia: diafragma e obturador, os olhos da câmera. Por Ana

Nemes (2011).

183 Mencionado na página 132.

416

fotoetnográfica.

Desse modo, ciente de minhas limitações, busquei melhorar o desempenho da técnica e

o aperfeiçoamento do olhar, participando de dois cursos de formação em fotografia: o Curso

Básico de Fotografia da empresa Rizemberg Studio Fotográfico, ministrado por Rizemberg

Farias fotógrafo e jornalista, e o Curso de Fotografia e Percepção do Olhar, promovido pela

Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba – Seção João Pessoa (ADUFPB-

JP) ministrado pelo fotógrafo e pesquisador Ricardo Peixoto (UFPB).

No primeiro curso, conheci as linguagens, as técnicas, os equipamentos, os tipos de

fotografia, os modos de enquadrar, produzir, editar e ler uma fotografia. Desde os pormenores,

como manusear uma câmera profissional, usar flashes, trocar de objetivas, combinar

velocidade, abertura e ISO para produzir a fotografia no modo manual, até, a produção de

fotografias artísticas com efeitos do tipo bokeh, longa exposição, panning, macrofotografia,

microfotografia e as técnicas de exposição de luz em high key e low key, que adaptei à análise

da imagem184.

Já no segundo curso, o objetivo foi “saber olhar”, visando aperfeiçoar o foco seletivo (o

olhar sensível) no ato de fotografar a realidade e a capacidade de leitura de fotografias

documentais. Participei de uma vivência intensiva sobre as percepções do olhar através dos

sentidos (tato, paladar, olfato, audição e visão); os modos de ver, sentir e entender a linguagem

imagética e desvelar seus segredos. Neste curso, aperfeiçoar o foco seletivo representava não

só saber controlar os elementos de composição da fotografia, alterando o contraste e a nitidez

para desfocar ou focar os objetos da cena, mas, perceber na realidade o que está subexposto,

àquilo que o primeiro olhar não capta, e só a sensibilidade, a emoção, a imaginação e a intuição

são capazes de revelar. Portanto, de modo complementar, esses dois cursos me proporcionaram

maior segurança e desenvoltura com a câmera fotográfica e suas possibilidades em campo.

A fotografia na pesquisa científica adquire peso de realidade, implica dizer que o

enquadramento da cena depende das escolhas do olhar do fotógrafo, assim como na referida

epígrafe, é preciso “saber jogar com o foco seletivo”, ou seja, o pesquisador além de dominar

a técnica e saber olhar, ele deve ter claro seu foco, seu objetivo para saber controlar o tempo e

a intensidade da abertura necessária ao desenvolvimento da investigação.

Tal qual a tarefa do fotógrafo em definir a velocidade de obturação - uma espécie de

cortina que tem a função de controlar a quantidade correta de entrada da luz até o sensor digital

184 QRcode 81: 8 Técnicas fotográficas para criar fotos profissionais. Por Ana Nemes. (2012).

417

da câmera fotográfica, eu tive de saber dosar as ações direcionadas à pesquisa fotoetnográfica

autobiográfica, tive de definir aberturas conforme a situação do ambiente e as oscilações de

humor da criança-sujeito, que ora algumas vezes indicava certa indisposição em narrar ou

selecionar suas imagens, quando a ação se tornava cansativa, monótona ou muito extensa. Essa

dimensão de saber dosar o esforço da criança ao tempo de produção foi sendo adquirida pela

minha própria sensibilidade de pesquisadora-educadora, o que reforça a necessidade de uma

rigorosa base teórica para me fazer rememorar as especificidades e necessidades da criança,

respeitando assim, seus limites e vontades.

Ainda em relação à velocidade do jogo de aberturas, cabe ressaltar que os resultados são

inversamente proporcionais, pois o diafragma controla a intensidade de luz que entra pelo

obturador e chega ao sensor, dessa forma, quanto maior for a abertura, mais intensa é a luz,

consequentemente, o tempo de exposição é reduzido, assim, maior abertura, menor a velocidade

(tempo de exposição). De modo contrário, quanto menor for a abertura, menos intensa é a luz,

e consequentemente, aumenta-se o tempo de exposição com uma velocidade mais alta. Afinal,

como isso ocorreu no campo de pesquisa?

Primeiramente, defini minha identidade em campo (GRAUE e WALSH, 2003, p. 126),

neste sentido, como investigadora, fui cúmplice de Maria Clara em suas manhas, artimanhas e

confidências, fui receptiva às suas falas e emoções, deixei que ela direcionasse a maior parte

do tempo em que estávamos juntas. Em seguida, tentei me aproximar do seu universo brincante,

respeitando suas subjetividades e inteligibilidades, em nada opinei, apenas ouvi, mantive uma

escuta atenta, ética e sensível. Brincamos, passeamos, lanchamos, convivemos em inúmeras

situações, e em cada uma delas, procurei não demonstrar que eu a estava observando, num papel

de pesquisadora e “intrusa”, até tentei incorporar uma criança em corpo de adulto, mas, Maria

Clara era muito esperta para saber reconhecer claramente meu papel, confesso que me sentia

até mais confortável em saber que ela me conhecia tão bem e mesmo assim, minha presença

não a deixava desconfortável.

Assim, em algumas ocasiões tentei estar bem próxima promovendo maiores aberturas e

pouca velocidade, para “observar com inteireza o desenrolar da cena” e “não perder seus

momentos mais importantes” (ACHUTTI, 2004, p. 96-97), e em outras tive de diminuir a

abertura e aumentar a velocidade direcionando a ação para o que eu precisava descobrir naquele

determinado momento, assim, procurei “manter um mínimo de distância para não interferir no

curso dos acontecimentos” (ACHUTTI, 2004, p. 97) e acompanhar de perto os detalhes mais

importantes e até, os menos visíveis, provocando desse modo, seu desvelamento. Entretanto,

procurei não cansá-la com muitas perguntas, direcionamentos à pesquisa e cobranças como

418

atenção, concentração, entre outras. Por isso, em alguns encontros preferi não trabalhar com

sua Fotoetnografia autobiográfica, apenas a observava, me fazia presente e compartilhava dos

seus desejos e imaginações, fui adquirindo aos poucos esta sensibilidade, pois, entendi que

minhas expectativas eram diferentes das dela - eu queria construir sua história de vida através

de fotografias, e ela só queria brincar comigo. Portanto, minha ação na produção da

Fotoetnografia tinha de ser divertida, prazerosa e principalmente, criativa.

No entanto, o fato de Maria Clara só querer brincar não significava a desqualificação do

objeto do meu olhar, pelo contrário, o tornava ainda mais complexo, tendo em vista que para

desvelar as concepções de criança, infância e culturas infantis através de sua Fotoetnografia

autobiográfica, era preciso, prioritariamente, reconhecer suas especificidades e particularidades

de criança, e a brincadeira é uma linguagem própria das culturas da infância, desse modo,

constata-se a importância do memento, ao trazer à tona reminiscências de infâncias vividas,

sentidas e compreendidas ao longo de minhas experiências pessoais e profissionais.

Em outras palavras, para entender o que é ser criança, me coloquei como criança nas

memórias de e sobre infância, só assim, pude perceber que brincar para a criança é exercer sua

participação na sociedade; é expressar sua inteligibilidade; é ser criativa, independente,

autêntica; é produzir culturas nas relações de alteridade; é negociar, articular e resolver

problemas; é subverter padrões de comportamento; é transgredir regras desde que seja para

satisfazer suas vontades, desse modo, o brincar é a força maior da criança, está em sua essência,

assim como a imaginação. Portanto, brincar para criança é coisa séria, ou seja,

[...] as crianças brincam, contínua e devotadamente e, ao contrário dos adultos,

entre brincar e fazer coisas sérias (entre o ócio e o negócio ou entre o lazer e o trabalho) não fazem distinção, sendo o brincar muito do que as crianças

fazem de mais sério (SARMENTO, 2003, p. 12, grifo do autor).

Desse modo, “saber jogar com o foco seletivo” também é perceber na ação do brincar

as percepções da criança em relação às coisas da vida, é dar a ela o direito de opinar e decidir

reflexivamente sobre as ações que se propõem em campo. Nesse sentido, os encontros com

Maria Clara deixavam-na livre para se expressar, seja através da brincadeira e da sua

criatividade, ou através de seus relatos orais. Inclusive, ela própria tomava decisões sobre o que

deveríamos fazer em alguns encontros, demonstrando sua capacidade de decisão e participação.

E quando eu precisava direcionar o foco da ação, o fazia sem cobranças e com muita

tranquilidade e sutileza tentava negociar algumas situações.

Aos poucos ia aprendendo a controlar minha ansiedade em dar continuidade à seleção e

419

narração da criança junto às suas fotografias, e a vontade da criança em brincar comigo, o

desafio era sempre equilibrar as duas intencionalidades. Esse é um jogo que as palavras não

conseguem descrever, pois é algo sensitivo, próprio do “estar lá”, do “estar junto”,

sensibilidades que fui adquirindo ao longo de muitas leituras e vivências transcorridas em

momentos de pesquisa e de prática docente.

Retornando à epígrafe, “tudo isso em razão de uma profundidade de campo”

(ACHUTTI, 2004, p. 97). Segundo Achutti (2004, p. 97) como profundidade de campo entende-

se a nitidez da imagem distribuída em planos da fotografia, ou seja, a fotografia é dividida em

planos e os planos são determinados pelo enquadramento, dividindo-se em primeiro plano,

segundo plano, plano geral, entre outros, assim, “Quanto maior ela for – ou seja, quanto mais

fechado estiver o diafragma – maior o número de planos e elementos nítidos”. Portanto, a

profundidade de campo depende da combinação de três fatores que irão determinar se a

fotografia é de grande ou de baixa profundidade de campo: o foco (intenção do fotógrafo), a

abertura do diafragma, a proximidade do objeto a ser fotografado.

No entanto, Aumont (2016, p. 233) alerta que “a profundidade de campo não é a

profundidade do campo”, ou seja, o fato do fotógrafo definir o foco, regular a abertura e a

distância focal, e conseguir fazer uma boa foto, não significa que ele tenha conseguido atingir

a totalidade do realismo, pois, o que ele registra é um olhar sobre esta realidade, um olhar

limitado, arbitrário e subjetivo, desse modo, a fotografia expõe parte da realidade magicizada

em planos, a outra parte fica oculta à espera de seu desvelamento. Daí a necessidade de utilizar

as duas formas de expressão da linguagem – a escrita e a visual, para definir a profundidade do

campo, pois, esta não depende apenas do fotógrafo, neste caso, da pesquisadora, e sim, de todo

um contexto dialógico entre imagens, pesquisador e sujeitos. Como aponta Aumont (2016, p.

260, grifo do autor) “não há imagem ‘pura’, puramente icônica, já que para ser plenamente

compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal”.

Neste sentido, ao me aproximar da realidade de Maria Clara, eu tinha o foco definido,

mas, a abertura do diafragma dependia de sua participação na cena, à medida que se

aproximava, permitia maiores possibilidades de diálogo e com isso, possibilitava maior

profundidade do campo, e quando se distanciava, era o meu olhar quem definia os motivos a

serem registrados, apenas em profundidade de campo, com maiores ou menores aberturas.

Aprendi, com isso, que o foco seletivo é aquele que combina a sensibilidade do pesquisador, a

abertura do sujeito e a profundidade do campo oferecida pelo próprio sujeito ou captada pela

sensibilidade do olhar do fotógrafo em suas dimensões epistemológicas e metodológicas.

420

E todo esse movimento foi pré-determinado pelo “enquadramento almejado”, ou seja,

pelo objetivo específico deste terceiro campo analítico que consistiu em: conhecer as culturas

da infância a partir de percepções ontológicas e interpretativas da própria criança, ou seja, da

necessidade de produzir uma Fotoetnografia narrada e organizada sob o ponto de vista infantil,

desde a seleção de imagens até a descrição narrativa dos signos e significados relativos à sua

própria história de vida. Desse modo, as composições fotográficas produzidas durante a geração

de dados funcionaram como um diário fotoetnográfico, enquadrando momentos e experiências

no campo de pesquisa através da minha própria percepção de investigadora, nas palavras de

Aumont (2016, p. 158):

O enquadramento é, pois a atividade da moldura, sua mobilidade potencial, o deslize interminável da janela à qual a moldura equivale em todos os modos

da imagem representativa baseados numa referência, primeira ou última, a um

olho genérico, a um olhar, ainda que perfeitamente anônimo e desencarnado, cuja imagem é o traço.

Com vistas em tal objetivo, retomei a dinâmica de exposição da imagem185 para elaborar

três processos fundamentais que garantiram a harmonia metodológica: a abertura do

diafragma – entrada e permanência no campo (profundidade do campo); a velocidade do

obturador – flexibilidades e negociações (tempo de abertura); a sensibilidade do sensor –

percepções e interpretações (incidência de luz).

O primeiro processo refere-se à abertura do diafragma, processo que controla a

entrada de luz, permitindo maiores e menores entradas de luz no obturador que refletirá no

sensor a imagem a ser produzida, esse controle determina o enquadramento da imagem e com

isso, interfere na profundidade de campo. No contexto da pesquisa com criança, a abertura

representou a entrada no campo, o estabelecimento de empatia com os sujeitos, a definição da

identidade de pesquisador em campo, a conquista da confiança e o respeito mútuo entre os

envolvidos diretos e indiretos na pesquisa, principalmente, da própria criança e de seus pais.

Portanto, a abertura variava conforme as negociações em campo e de acordo com os

interesses da própria criança, desse modo, busquei dar total liberdade em seus argumentos e

expressões. A intenção deste processo foi transformar a profundidade de campo em

profundidade do campo, ou seja, a partir das negociações, permissões e intimidades em campo,

a realidade era desmistificada e desvelada em narrativas orais, escritas e visuais,

complementando-se e dialogando-se entre si através de um constante processo mágico de

185 Ver esquema 6, ensaio 1, subcapítulo 1.3.

421

relações reversíveis (FLUSSER, 2002, p. 8) em busca de informações que me ajudassem a

compreender a autobiografia da criança-sujeito, para só então, entender quem era ela, como ela

vivia sua infância e como se reconhece nela (infância).

Outro fator que decorreu da profundidade do campo foi o acesso a determinados espaços

e contextos que precisariam ser selecionados ou magicizados em peles (fotografados) para

compor a narrativa fotoetnográfica autobiográfica da criança, como no caso, o acesso ao acervo

de fotografias do álbum de família e o registro do cotidiano infantil. Assim, quanto mais eu

investia em confiança, respeito e ética junto aos sujeitos, mais abertura adquiria em relação às

particularidades da realidade investigada, consequentemente, alcançando maiores

profundidades do campo.

Na mesma sintonia, o segundo processo corresponde à velocidade do obturador,

componente que determina o tempo de abertura do diafragma. No contexto da pesquisa de

campo, para obter uma boa fotografia foi preciso controlar o tempo de exposição à luz, e esse

controle dependia do foco seletivo e de um olhar sensível. Em outras palavras, no jogo de

aberturas entre pesquisador e criança-sujeito, a velocidade do obturador representou o tempo

de negociações e seu caráter flexível e volátil na geração de dados, pois, a velocidade estava

diretamente relacionada à disponibilidade da criança, da sua atração pela ação, evidentemente,

da possibilidade lúdica que determinada situação pudesse lhe oferecer. Foi preciso controlar o

tempo de exposição à luz, pois, era necessário discernir quando se estava sendo invasiva demais

ou quando se podia dar mais tempo de abertura para que a criança pudesse se expressar com

mais liberdade e criação. Cada situação em campo foi única, desde o momento em que

direcionei a criança a produzir sua autobiografia até o momento em que apenas observei seus

modos de ser e interagir com/no ambiente.

Durante a experiência fotoetnográfica autobiográfica, as diferentes perspectivas

metodológicas ajudaram a tornar a pesquisa mais atrativa e menos densa para a participação da

criança, o que exigiu um intenso esforço criativo, flexível e de improvisação nas estratégias de

geração de dados, além de muita sensibilidade para entender as linguagens corporais da criança,

inclusive em se tratando de fadiga ou falta de vontade em continuar, pois, dificilmente ela

expressava tais desconfortos de forma oral, era perceptível sua preocupação em não me magoar,

mas, seu corpo me dava pistas quando era hora de parar e só “brincar”. Portanto, o tempo de

abertura era totalmente variável e interdependente dos fatores que compunham o contexto

temporal e espacial do campo. Relembrando que, no jogo de aberturas os resultados são

inversamente proporcionais, ou seja, pequenas aberturas, maior o contexto da cena, grandes

aberturas, mais definido é o assunto ou o motivo da cena, então, durante as pequenas aberturas

422

foi possível perceber os sentidos da criança e os significados culturais que ela elaborava frente

aos objetos e o ambiente, e de maneira contrária, durante as grandes aberturas só era possível

dimensionar parte da realidade com poucas interlocuções com o contexto geral da pesquisa. O

que significa afirmar que, a quantidade de tempo de abertura junto à criança não determinava o

resultado desejado, esse processo era gradual, extremamente flexível e variava de acordo com

cada situação em particular.

O terceiro processo comporta o ISO, o componente da câmera fotográfica que controla

a sensibilidade do sensor, funciona como um regulador de luz ambiente, tanto pode dar

qualidade à fotografia quanto pode comprometer seu resultado, pois o ISO varia de acordo com

o que se quer captar de cada cena. Por exemplo, uma fotografia realizada em ambiente claro,

exige um ISO baixo, e em um ambiente escuro, usa-se um ISO alto. O ISO fornece níveis de

iluminação ao ambiente e sua regulação depende, particularmente, de cada câmera fotográfica

e do ambiente a ser fotografado, podendo variar entre uma escala mais comum de 100 a 3.200

e em câmeras mais potentes até 102.400. Entretanto, cada vez que o ISO é aumentado,

compromete a qualidade da foto, causando o chamado “efeito granulado” ou ruído, deixando a

foto menos nítida. Nesta perspectiva, para usar o ISO é preciso dominar todas as outras regras

de iluminação, pois se ele for alterado, todos os demais também precisarão ser novamente

regulados. Portanto, tudo isso dependerá da percepção do fotógrafo em relação à interpretação

do ambiente.

No âmbito da Fotoetnografia com criança, o ISO pode ser entendido a partir de três

perspectivas: i. como a sensibilidade do pesquisador em registrar as particularidades concretas

que dão sentido à ação da criança durante a pesquisa e no contexto observado; ii. como a

sensibilidade do pesquisador em desvelar a realidade a partir da escuta sensível e apurada das

narrativas subjetivas e interpretativas da criança-sujeito; iii. como a sensibilidade em

dimensionar o aprofundamento interpretativo do pesquisador e da criança-sujeito a partir do

movimento memento e em diálogo com pressupostos epistemológicos que pautaram a

investigação. Nesse movimento,

A perspectiva do investigador configura o trabalho em moldes bastante

particulares. Trata-se mais de algo pessoal do que de organização teórica ou tradições disciplinares – algo que inclui experiência pessoal, memória,

identidade e as nossas esperanças tácitas sobre as crianças e o seu lugar na

sociedade (GRAUE e WALSH, 2003, p. 95).

No contexto da pesquisa autobiográfica, considerando que o controle da exposição da

imagem envolve a quantidade de luz - entendida aqui como conhecimento, combinado à

423

velocidade do diafragma – que seria o olhar sensível do pesquisador e do sujeito, e ao tempo

de abertura – que se refere à profundidade do campo, a sensibilidade do ISO pode ser entendida

como a interpretação ontológica e subjetiva da criança em relação a sua própria história de vida,

ou seja, através das percepções da criança estimuladas pelo movimento de interpretação

memento. Em suma, o ISO é o controle de sensibilidade do movimento de percepção,

interpretação e análise dos dados, o que torna possível desvelar a realidade a partir do próprio

ponto de vista infantil.

Resumidamente, a pesquisa empírica se deu a partir de três processos: primeiro, através

da abertura do diafragma – entrada em campo e negociações que envolveram confiança,

respeito mútuo e ética junto aos sujeitos, reverberando assim, em maior profundidade do

campo; segundo - a velocidade do obturador - abertura entre pesquisador e sujeitos, e a

organização sistemática do plano de ação e seu caráter flexível, considerando as especificidades

da criança, seus desejos e limites; e terceiro - a sensibilidade do sensor - processos de

interpretação e análise dos dados a partir das percepções e interpretações epistemológicas do

pesquisador ou ontológicas e subjetivas da criança-sujeito. Cabe ressaltar que, esses três

processos ocorreram de maneira interdependente e complementar, variando conforme o tempo

e o espaço em que se dava a pesquisa empírica. Em síntese,

Para administrar todas essas decisões e proceder a essa série de manipulações elementares, e isso tanto mais quando se quer fotografar a vida em movimento,

é preciso não apenas ter habilidade, mas também saber manter o espírito livre

para poder se dedicar a todas as outras tarefas necessárias e, principalmente, a mais difícil e a mais importante de todas: saber olhar (ACHUTTI, 2004, p.

97, grifo meu).

Optei por iniciar e concluir este subcapítulo com dois dos preceitos achuttianos

indispensáveis a quaisquer circunstâncias de pesquisa fotoetnográfica, o “saber jogar” e o

“saber olhar”, neles me apoiei para tentar ao menos, uma aproximação do que é fazer

Fotoetnografia.

2.2 Seleção e aproximação entre pesquisador e criança-sujeito

Como já relatado no prólogo deste ensaio, meu primeiro contato com Maria Clara foi

inusitado e surpreendente. Não houve uma procura, e sim um encontro. Num shopping, numa

noite de novembro de 2016 e na informalidade de duas famílias que passeiam em busca de

diversão para as crianças. Maria Clara ao patinar, chamou nossa atenção pela forma com que

424

se comportava na de gelo. Diferente de todas as outras crianças, ela criava uma forma própria

de diversão e com muita desenvoltura, fazia performances corporais no ritmo dançante das

músicas eletrônicas que embalavam sua criatividade, e mesmo diante de olhares curiosos, como

o nosso, ela continuava a dar seu show. Após a magicização de sua performance em vídeo e

fotografia, nos conhecemos, mas, esse primeiro contato não teve nenhuma relação com a

presente pesquisa, só aproximadamente, 2 meses depois, esse encontro tornou-se fundamental.

Os detalhes da história já foram contados, então, para não ser repetitiva, seguirei com o segundo

momento, também no shopping, e desta vez, já diretamente, relacionado à tese.

Como não havíamos estabelecido nenhum tipo de aproximação, tive de marcar o

segundo encontro também no shopping, pois, esta seria uma conversa importante e ao mesmo

tempo difícil, dada a necessidade de a pesquisa ser desenvolvida na residência do próprio sujeito

e a necessidade de deslocamento para minha casa (do qual eu seria a responsável). Nestas

circunstâncias, escolhi para este encontro um ambiente agradável, principalmente, para Clara,

um lugar em que ela se sentisse confortável. Esse encontro ocorreu no final do mês de janeiro,

dia 23. Na ocasião, estavam presentes, a mãe – Neyângela (40), o irmão – João Pedro (9 anos)

e Maria Clara (6 anos), ela com seu tênis de rodinha (lembrando um patins), já vinha fazendo

malabarismos entre as mesas do shopping, sempre sorridente, com um batom vermelho nos

lábios, uma tiara no cabelo, e muitos acessórios para compor seu look fashion. Sentamos na

praça de alimentação e antes de me identificar, formalmente, percebi que ela estava ansiosa

para saber o que eu tinha para lhe dizer, então, fui logo fazendo uma pequena brincadeira para

abrir o diálogo:

P – Oi Maria Clara, tudo bom? Sabe quem encontrei no caminho vindo para cá? MC - Quem? (risos) P - Um coelhinho. E sabe o que ele me pediu? MC -

O que? (risos) P - Pediu para lhe entregar esse presentinho! (um coelhinho e

alguns ovinhos de chocolate, comprado momentos antes. Ela abriu um sorrisão e foi logo tratando de falar). MC - como você encontrou um

coelhinho? Como ele era? [...] - Adoro esse chocolate! Olha mãe que delícia! [...] - Já pode comer tia? P – Claro que pode!

Neste momento, continuei com o diálogo sobre o coelhinho, enquanto ela ia comendo

os chocolates. Logo em seguida, a conversa com a mãe foi fluindo e Clara sempre atenta a tudo

que a gente dizia. Identifiquei-me como professora da UFPB e pesquisadora do NUPEC, senti

que minha identidade profissional transmitiu segurança à mãe da criança. Em seguida, expus a

pesquisa para a mãe, apresentei o pré-projeto e as sequências iniciais de visita. Em seguida, fiz

outra apresentação para Maria Clara, tentando argumentar de uma forma mais simples o quanto

425

seria divertido construir sua própria história através de fotografias que ela mesma escolheria.

Prontamente, as duas aceitaram participar.

A informalidade do encontro no shopping favoreceu nossa aproximação, conversamos

sobre vários assuntos, lanchamos e passeamos um pouco pelos corredores. Foi um momento

importante de conquista para adquirir a confiabilidade necessária para o empreendimento, nada

convencional, da pesquisa. Após essa conversa, voltamos a nos encontrar nos dias 26 de janeiro

para outro passeio, dessa vez em um shopping de menor porte.

2.3 Sistematização dos encontros domiciliares e externos

Neste segundo momento, combinamos sobre o desenvolvimento das etapas de geração

de dados, quando, onde e como seriam os encontros e o que faríamos em cada situação.

Ressaltei que o planejamento era flexível, e que, a cada encontro reavaliaríamos o andamento

das ações, inclusive, respeitando os limites e as necessidades da própria criança. Nesta ocasião,

expliquei o quanto seria importante mantermos uma relação harmoniosa, prazerosa e respeitosa.

Também alertei que a qualquer momento, caso preferissem, elas teriam total liberdade para

cessar nossos encontros sem nenhum contratempo, para tanto, informei que todo material

produzido seria de minha responsabilidade, mas, sua utilização e divulgação seriam diretamente

vinculadas ao consentimento da criança e de seu responsável – no caso, a própria mãe.

Consequentemente, combinamos que ao final de todo o processo, ela teria acesso ao material

produzido para, novamente, validar seu consentimento.

Desse dia em diante, nos encontrávamos semanalmente e também, mantivemos uma

comunicação constante através do WhatsApp. A geração de dados ocorreu entre os meses de

janeiro a julho de 2017, intercalando visitas domiciliares e saídas externas em espaços públicos

como shoppings e eventos sociais que faziam parte das rotinas da criança. Até o terceiro mês –

a primeira fase da pesquisa, as visitas eram semanais, uma ou duas vezes, ora na minha

residência, ora na residência da criança e depois passou a ser ocasionalmente, dependendo das

rotinas e compromissos sociais da criança – a segunda fase da pesquisa.

A opção por desenvolver parte da pesquisa com a criança na minha própria residência

decorreu de três fatores: primeiro, considerando que eu era, de certa maneira, desconhecida pela

família, isso poderia causar estranhamento e desfavorecer o acesso direto à sua residência.

Segundo, porque atualmente, os registros pessoais passaram a ser produzidos em imagens

virtuais, ou seja, os álbuns de família passaram a ser organizados também, em mídias digitais

como computadores, pen drives, HDs externos, redes sociais, entre outros, consequentemente,

426

tornando indispensável o uso do computador para o acesso e seleção do corpus fotográfico, e

mesmo tendo acesso à residência da criança, não seria adequado utilizar os equipamentos

tecnológicos da família. Terceiro, para otimizar a narrativa visual, preparei um pequeno espaço

adequado à seleção, organização e montagem dos mosaicos fotoetnográficos, assim, dispus de

uma sala com uma mesa, um bom computador, um monitor de 42”, um scanner, uma

impressora, câmera de vídeo e câmera fotográfica, bem como, acesso rápido e ilimitado à

Internet para acessar sites de busca, editores de imagens, visualização de imagens lado a lado,

manipulação cronológica, entre outros recursos que se fizeram necessários no dia-dia da

pesquisa, como acesso à redes sociais, editores de texto, montagens de mosaicos, etc.

Importante ressaltar que a própria criança também manipulava o computador selecionando suas

próprias imagens e dando sentido cronológico e temático às narrativas. Durante a pesquisa, fui

responsável por todos os deslocamentos, em carro particular, inclusive em saídas externas como

shoppings e eventos sociais que faziam parte da rotina social da criança.

Nesta primeira fase, as visitas tinham o objetivo de identificar nos modos de ser e de

viver da criança, evidências de protagonismo e alteridade infantil a partir da Fotoetnografia

autobiográfica. Desse modo, entre janeiro e abril, ao longo de 18 visitas, intercalas em 2 vezes

no shopping, 5 vezes na minha casa e 11 vezes na casa da criança, ocorrendo geralmente, duas

vezes por semana e com duração de aproximadamente, 2 a 3 horas por encontro, a criança foi

tecendo suas narrativas a partir de vivências e imagens do acevo particular da família disposto

em álbuns impressos e mídias digitais como celular, pen drive, Internet (redes sociais). Esta

duração não representa necessariamente, o tempo de produção da criança, abrange também as

conversas informais, as brincadeiras livres, os lanches, as rotinas do lar e as situações que a

própria criança criava, como dançar, cozinhar, mostrar suas bonecas, suas roupas, acessórios,

seus livrinhos de colorir, enfim, o tempo era o que menos importava, pois quando estava em

campo, mergulhava no universo criativo de Maria Clara, me deixava levar pelas minhas

próprias reminiscências de infância e assim, era embalada pelos cantos e encantos desta

“princesa”. Como afirmam Graue e Walsh (2003, p. 157): “Gerar dados é um desafio, mas o

trabalho de campo, “estar lá”, depressa se torna agradável, emocionante e, até viciante. Lá é

muito mais hospitaleiro”.

Entretanto, em nenhum momento essas condições foram impostas como pré-requisitos

à participação da criança na pesquisa, caso não tivessem sido acatadas, evidentemente, as

estratégias teriam de ser repensadas. Mas, com base nesta experiência de pesquisa e com estes

sujeitos em particular, esses deslocamentos procedimentais não foram empecilho para o

desenvolvimento da geração de dados. Pelo contrário, tornou ainda maior a abertura entre

427

pesquisado e sujeitos envolvidos. Inclusive, foi a própria mãe quem tomou a iniciativa de me

convidar para sua residência para facilitar o acesso às fotografias impressas nos álbuns de

família.

A partir do quarto mês, as visitas tiveram outro foco, o objetivo passou a ser conhecer

os modos de ser e de viver da criança procurando perceber como ela constituía sua infância e

de que forma as culturas visuais permeavam seu universo de sentidos e significados culturais,

por conseguinte, as visitas passaram a ocorrer uma vez por semana, sendo realizada na

residência da criança, na minha casa e sempre que ela tinha algum compromisso social ou

quando combinávamos algum passeio fotográfico. Nesta segunda fase, prestei atenção às

“particularidades concretas” da vida da criança, considerei seus “contextos específicos, com

experiências específicas e em situações de vida real” (GRAUE e WALSH, 2003, p. 21-22).

Então, acompanhei Maria Clara em alguns eventos sociais a convite da sua mãe como:

desfiles de moda, concursos de beleza, curso de culinária para crianças, mais passeios ao

shopping, musicais, compras, baladinhas, filmagens para programas de TV, entre outras.

Inclusive tive a oportunidade de participar de seu aniversário, presenteando-a com um bolinho

da Frozen, já que sua mãe havia dito que não iria fazer esse ano porque havia feito um

investimento de mais de 3 mil reais em sua carreira de modelo fotográfica junto à empresa do

grupo Passarela. Essa fase durou 3 meses (entre maio e julho), totalizando 22 encontros, sendo

15 encontros externos, 4 encontros na casa da criança e 3 encontros na minha casa.

Portanto, o processo de geração de dados foi desenvolvido em 40 encontros, entre visitas

domiciliares na casa da criança, em minha casa e em encontros externos em locais públicos,

conforme esboçado no quadro 3:

Quadro 3 – Cronograma de encontros executados – Janeiro a Julho de 2017.

ENCONTROS 26 de janeiro a

30 de abril

1ª fase

01 de maio a

31 de julho

2ª fase

Total

Casa da Criança 11 4 15

Casa da

Pesquisadora

5 3 8

Externos 2 15 17

Geral 18 22 40

Fonte: Elaboração própria (2017).

428

Durante as primeiras visitas, buscando dar maiores abertura à interação entre

pesquisador e sujeito, me aproximei da criança em suas rotinas, assim, acompanhei Maria Clara

em dois passeios, um no dia 26 de janeiro para o Shopping Manaíra (de grande porte) e outro

no dia 31 de janeiro para o Mag Shopping (de pequeno porte), ambos situados próximos a sua

casa. Durante esses encontros, apenas observei Maria Clara brincando com os games e

passeando nos corredores das lojas, percebi que ela já conhecia os ambientes, sabia em que

direção estavam suas lojas prediletas, àquelas em que ela mais encontrava “produtos legais em

promoção” para postar nos @achadinhosdemariaclara. Apesar de Clara fazer a divulgação dos

produtos, ela pouco os adquiria, sua intenção era apenas divulgar, em nenhum momento ela

insistiu para a sua mãe comprar algo, não sei por imposição ou porque ela sabia exatamente

qual era a função de seu “blog” que era apenas divulgar186.

O Shopping Center tem sido um dos principais ambientes da infância na

contemporaneidade, conforme ressaltou Coutinho (2009, p. 79) são “lugares de criança”

preparados especialmente para abrigá-las, consequentemente, constituindo-se, como o próprio

“templo do consumo” no mundo contemporâneo (MOMO, 2007, p. 207). Nas palavras de

Coutinho (2012, p. 104-105), entende-se o shopping center como:

Uma instância cultural na medida em que é um espaço de produção social que, por meio de diversos mecanismos de sua organização e de seu funcionamento,

expressa determinados valores, regras, normas e códigos pelos quais seus

frequentadores interiorizam certos modos de agir. E as crianças, por serem frequentadoras cada vez mais assíduas [...] acabam inseridas num complexo

espaço (acentuadamente regulado pela lógica do mercado) que, de certa

forma, está também ensinando-as, desde pequenas, a corresponderem a certos códigos contemporâneos.

Portanto, o shopping é um ambiente bastante presente na vida de Clara. Segundo relatos

da sua mãe, isso se deu pela facilidade do acesso e pela comodidade em encontrar tudo que

precisava por lá, desde diversão às necessidades cotidianas. Inclusive, este foi um dos objetivos

do instablog de Maria Clara, ou seja, divulgar ofertas e promoções comerciais, daí o nome:

“@achadinhosdemariaclara”187. No entanto, preocupada com as consequências desse estímulo

na vida de Clara, sua mãe deu outro direcionamento às postagens, mostrando também cenas do

cotidiano familiar, cultural, social e educacional da criança, variando entre fotografias e

filmagens do seu dia-dia. A mesma postagem que é publicada no Instagram também é repostada

186 Apesar de Maria Clara se autodenominar “blogueirinha”, ela não possui um blog, sua mãe criou uma

conta no YouTube, mas teve dificuldades em mantê-la, assim, suas postagens são feitas no Instagram e

na conta de sua mãe no Facebook. 187 Será melhor apresentado na sequência deste ensaio.

429

no Facebook, no usuário de sua mãe.

Maria Clara vive as consequências de uma cultura-mundo hipercapitalista e

hipermoderna (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 32) que testemunha o nascer de uma

infância que desafia os discursos homogeneizadores, que participa ativamente da cultura e

exerce influência política e social nas decisões que dizem respeito aos seus modos de vida. Essa

infância, vista por Dornelles (2012, p. 95) é produzida por crianças que não pedem licença para

saber ou pensar, elas agem, pensam e sabem sem a permissão dos adultos, são crianças que

desenvolvem sua autonomia através de uma participação ativa no processo de interpretação da

realidade.

Os debates sobre autonomia e competência (JAMES, JENKS e PROUT, 1998) tem

reverberado em todas as instâncias da infância na atualidade, decorrência das mudanças

paradigmáticas do mundo contemporâneo que se edifica sob uma crescente valorização da

autonomia individual (COUTINHO, 2008, p. 122). Para Dias (1999, p. 12) a autonomia infantil

“é um processo inerente ao desenvolvimento e se dá de forma gradual e progressiva. Portanto,

depende do tipo de relações sociais que as crianças experienciam”, nesta mesma perspectiva,

Medeiros (2015, p. 70) afirma que a partir das interações com o mundo as crianças estruturarem

as bases para desenvolver sua autonomia, participando ativamente do meio social, refletindo,

questionando e avaliando suas ações e as possíveis consequências que estas lhes trazem.

Portanto, buscando conhecer ainda mais essa infância, procurei desenvolver as demais

etapas da pesquisa, garantindo a autonomia da criança, estando atenta às suas iniciativas e

inteligibilidades.

2.4 Produção da Fotoetnografia Autobiográfica: mementos em devir

A Fotoetnografia como uma estratégia narrativa autobiográfica para pesquisa com

criança, prioriza o ponto de vista infantil garantindo sua efetiva participação em todos os

procedimentos, ou seja, a criança tem a oportunidade de construir sua história de vida a partir

de fotografias selecionadas e desveladas sob suas próprias percepções e reflexões. Nesta

perspectiva, o memento, como um movimento de interpretação heurístico, ontológico e,

particularmente, subjetivo, deu à investigação o suporte necessário à produção da autobiografia

da criança sob o enfoque fotoetnográfico.

Neste sentido, assim como na pedagogia socrática que propõe uma dinâmica do

conhecimento baseada no processo dialético entre mestre-discípulo, a metodologia empregada

no memento ocorreu de forma dialógica, problematizadora e crítica. O que também me remeteu

430

aos pressupostos da pedagogia freireana ao tentar estimular Maria Clara a fazer uma leitura

crítica de si (FREIRE, 2003, p. 196), através de um “que-fazer pedagógico-político” implicado

num “que-fazer político-pedagógico” (FREIRE, 2000, p. 21) em que a reflexividade

interpretativa autobiográfica pudesse desvelar em seus modos de ser e de viver, sua identidade

social e cultural.

Portanto, partindo do pressuposto de que as fotografias são lembranças vivas do passado

(SAMAIN, 2012, p. 158) que ajudam a compreender o presente, o memento se estabeleceu

nesta fase da pesquisa a partir de três processos: o reviver – como reminiscências e memórias

que emergem das experiências magicizadas em peles fotográficas; o sentir – como as emoções

e subjetividades estimuladas durante o desvelamento da cena; e o compreender – como a

análise interpretativa e reflexiva de si a partir do que se desvela.

A construção narrativa se deu a partir de conversas, brincadeiras, perguntas, enfim, de

diálogos que surgiam no momento da contemplação das fotografias. Neste contexto, a

percepção da criança-sujeito materializava-se através de uma reprodução interpretativa dos

fatos (CORSARO, 1997) dando novos sentidos e significados às narrativas visuais. Desse

modo, para “reviver” as cenas, a criança fazia leituras da imagem que descreviam em high key

os elementos que chamavam a sua atenção, concomitantemente, ela fazia conexões de sentido

e emoções que a “atraíam” ou não a selecionar determinadas fotografias. E por fim, frente às

fotografias selecionadas, ela organizava as posições das imagens contextualizando-as em low

key, ou seja, dando significados sociais e culturais para a narrativa visual num processo de

reprodução interpretativa holística e reflexiva.

Desde a escolha das fotografias, a contextualização social e cultural das cenas, até a

composição da narrativa fotoetnográfica, foi dada à criança a oportunidade de produzir, narrar

e interpretar sua própria história, garantindo assim, sua participação ativa no processo,

corroborando assim, com as propostas metodológicas empreendidas em pesquisas com crianças

no campo da Sociologia da Infância.

As narrativas escritas da Fotoetnografia autobiográfica foram produzidas a partir do

discurso de Maria Clara agregado às fotografias correspondentes, compondo vários mosaicos

que desvelaram sua história magicizada em peles fotográficas, constituídas nos “entre-lugares”

que viveu e vive, e pelas “entre-culturas” das quais participa. Destarte, as fotografias em seus

devires, ofereceu à criança a possibilidade de compreender sua história a partir do

autoconhecimento (FREIRE, 2002, p. 34), bem como, refletir sobre suas relações de alteridade

e se emocionar com cada momento revivido, consequentemente, o memento tornou-se

fundamental para compreender e reflexionar as experiências de protagonismo e alteridade

431

infantil a partir da Fotoetnografia autobiográfica de Maria Clara.

E como diria Freire (1997, p. 53), ao reconstruir sua história, Maria Clara de maneira

criativa, curiosa e indagadora, acrescentou no mundo que não fez, algo que ela fez - seu mundo,

ou seja, ela ressignificou sua vida e nos contou sua própria versão da história.

Com a ajuda de sua mãe, Maria Clara separou as fotografias impressas dispostas nos

álbuns de família e em seguida, escolheu algumas imagens para compor sua autobiografia. Com

relação às fotografias digitais, o volume de imagens e a forma de disposição aleatória exigiram

uma organização prévia. Esta percepção, só foi possível diante da primeira vez em que tivemos

de selecionar imagens digitais, em que Maria Clara ficou um pouco agitada e demonstrou certo

desconforto diante de tantas imagens “desorganizadas”. MC – “Ixiii tia, tá muito difícil, não dá

pra ver assim, tá tudo misturado”. Ela não se concentrava, ficava inquieta, porque vez ou outra,

as idades em que ela aparecia, era diferente da que estávamos buscando. Por exemplo, em uma

mesma pasta digital da família haviam fotografias de Maria Clara com 2 anos e com 5 anos.

Consequentemente, foi preciso organizar, previamente, as imagens em pastas de acordo com

minha própria percepção sobre a idade aproximada da criança na imagem e em seguida, validar

com sua mãe essa organização, evitando assim, o desgaste emocional e físico da criança diante

dessa dificuldade. Este procedimento foi fundamental para o desenvolvimento das demais

etapas.

Nesta perspectiva, inicialmente, não foi colocado limite para quantidade de fotografias

que Maria Clara poderia selecionar, ou seja, ela fazia uma seleção geral baseada em seus

próprios critérios de escolha, que em sua maioria, girava em torno de sua autoimagem, ou seja,

se ela estivesse “fofa”, “lindinha”, “engraçada”, com alguém que gosta; fazendo coisas que

gosta; ou até mesmo, aparecendo de um jeito estranho ou constrangedor, em que ela selecionava

a fotografia para fazer a crítica.

As imagens selecionadas foram catalogadas em pastas digitais de acordo com a idade

da criança, inclusive as imagens impressas foram digitalizadas e distribuídas também, nestas

pastas. As pastas foram organizadas a partir das seguintes divisões: 0 a 1 ano; 2 a 3 anos; 4 a 5

anos e 5 a 6 anos, assim, em cada encontro, uma determinada fase era trabalhada. Portanto,

nesta fase da pesquisa, 256 imagens foram selecionadas por Maria Clara.

Do universo de 256 fotografias, pedi que Clara selecionasse apenas 15 de cada pasta

para compor seu “livro leitura-imagem”. Esta foi uma etapa mais exigente, Maria Clara teve de

tomar decisões importantes, pois o fato de selecionar “uma” fotografia implicava na eliminação

de “outra”, ou seja, o objetivo era reduzir o número de imagens para 60.

Após a seleção das imagens, partimos para a composição dos mosaicos. Os mosaicos

432

são pequenos agrupamentos de fotografias que contam em si e entre si uma história. Desse

modo, Maria Clara, com meu auxílio, separou as fotografias de acordo com a idade que tinha e

com os temas como família, aniversário, escola, diversão, carreira artística, entre outros,

buscando dar uma sequência cronológica e temática à narração visual. As fotos selecionadas

eram “coladas” em sequência em um documento do Word, algumas com figuras e formatos

escolhidos por Maria Clara, outros, sem maiores designs. A sequência das imagens na narrativa

imagética, não necessariamente ocorre na mesma sequência da narrativa escrita, tendo em vista

que foram realizadas em momentos distintos. Não insisti em dar a mesma sequência para não

cansar a criança, desestimulando-a para os próximos encontros. Portanto, as transcrições e

discursões escritas e imagéticas possuem cada uma sua própria construção, na disposição escrita

intervi de certa maneira na ordenação das transcrições, procurando dar sentido ao texto. Na

disposição imagética, a autonomia foi de Clara.

Após esta seleção, tratei da apresentação estética da narrativa visual, inspirada nos

trabalhos de Achutti (2011), Trois (2012), Villas Boas (2016) e Bruno (2009), senti a

necessidade de editar algumas imagens em relação a cores e enquadramentos, para isso, utilizei

o programa Adobe Photoshop Lightroom, dando especial atenção à ação da criança no contexto

da cena. Para a edição dos mosaicos, utilizei o PowerPoint, o Word e alguns programas

gratuitos de fotomontagens on-line como fotojet.com; pixiz.com e fotor.com. Esta construção

priorizou o diálogo entre as narrativas escritas e visuais produzidas a partir da autobiografia de

Maria Clara, do meu olhar de pesquisadora e dos pressupostos que embasam a Sociologia da

infância, o qual direcionou todo o processo de fotomontagem dos mosaicos. Em relação à

identificação dos mosaicos, optei por não legendar e enumerar as fotografias, seguindo as

orientações de Achutti (2004, p. 109) ao destacar que: “Uma narrativa fotoetnográfica deve se

apresentar na forma de uma série de fotos que estejam relacionadas entre si e que componha

uma sequência de informações visuais. Série de fotos que deve se oferecer ao olhar, sem

nenhum texto intercalado.”.

Conforme visto em Villas Boas (2016, p. 21), os mosaicos são “camadas de encontros,

reflexões e sentimentos” e cada fotomontagem anuncia uma história, um conjunto de

informações acerca de quem é Maria Clara, como ela protagoniza sua vida em sociedade e que

produções culturas se manifestam em seu dia-dia. Por conseguinte, promover no

leitor/espectador novas leituras, reflexões e até reminiscências sobre as múltiplas referências

culturais da infância contemporânea, vivida e produzida através do protagonismo da criança e

sua participação ativa e criativa na sociedade.

Portanto, nesta etapa, foi necessário intervir, diretamente, na composição visual da

433

Fotoetnografia, mas, procurei priorizar a narrativa oral de Clara em cada fotomontagem. Para

isso, mais uma vez, fiz algumas adaptações à forma visual da narração fotoetnográfica,

acrescentando parte da narrativa oral de Clara às fotografias, para poder melhor situar o

leitor/espectador sobre suas percepções e expressões.188

2.5 Produção do diário fotoetnográfico

O diferencial da etnografia no contexto da pesquisa fotoetnográfica consiste no fato de

que o principal recurso utilizado nas observações e descrições da realidade é o registro

fotográfico. Portanto, as fotografias dos álbuns de família e as fotografias produzidas durante a

pesquisa com a criança, constituem o principal veículo de informação e narração do fenômeno

investigado. Neste sentido, o diário fotoetnográfico corresponde ao diário de campo em uma

pesquisa qualitativa, nele se projetam os fatos observados e produzidos durante a geração de

dados. Todavia, Achutti (2004, p. 113) alerta para o fato de que o fotoetnógrafo não deve apenas

fazer uma simples transcrição visual dos dados em campo, ele precisa elaborar “uma narração

visual eficaz” que contenha “informações interpretativas de uma determinada realidade”. Para

isso, deve-se ter em mente a intencionalidade da observação, ou seja, “é ao longo do trabalho

em campo que os enquadramentos são claramente decididos e realizados”.

Visando à qualidade dos registros, durante a pesquisa de campo estive munida de duas

câmeras fotográficas, uma semiprofissional Sony NEX-F3 com lente de 18-55 mm e superzoom

óptico, que além de facilitar a gravação de vídeos de até 29 minutos em Full HD com som

estéreo e utilização de zoom, tinha a vantagem de produzir imagens na função HDR que

mesclava diferentes exposições da luz para revelar melhor os detalhes claros e escuros da cena,

em outras palavras, essa função dava maior qualidade e nitidez à fotografia. E uma câmera

profissional Nikon D5100, com lente AF-S 18-55 mm VR, luz assistente de foco, Sensor CMOS

de 16.2 MP que produz fotos de até 28 x 42 com qualidade profissional de impressão, função

D-Lighting que intensifica os detalhes nas áreas de brilho e de sombra ao fotografar, e apesar

de ser uma câmera de entrada, dentre as DSLRs (Digital single-lens reflex) é a que melhor reúne

preço e qualidade nesta categoria. Além das câmeras fotográficas também utilizei um aparelho

celular da marca Asus ZanFone Selfie que possui uma câmera de 13 megapixels que permite

uma resolução de até 4128x3096 pixels na fotografia, além disso, possibilita a gravação de

188 Optei por dispor a fotoetnografia autobiográfica no início do ensaio para dar continuidade ao diálogo já

iniciado no prólogo.

434

vídeos em Full HD, com uma resolução de 1920x1080 pixels. Vale ressaltar que o celular

também foi utilizado como gravador de voz.

Desse modo, as observações foram pontuadas e registradas através do diálogo entre as

notas de campo e os registros visuais produzidos durante os procedimentos de observação

participante, conversas informais, durante o memento junto às fotografias de família e durante

as saídas externas, assim, entre linguagens escritas e visuais, diferentes informações eram

produzidas. Entretanto, Achutti (2004, p. 115) recorre à Guran (2000, p. 13) ao afirmar que

“uma única pessoa dificilmente poderá fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, por conseguinte,

ressalta que o fotoetnógrafo poderá dispor de colaboradores em campo, no entanto, estes devem

estar familiarizados com o processo de pesquisa a ser empreendido, mas alerta que o olhar

dificilmente será transferido, daí a importância de se definir, exatamente, os papéis em campo.

Logo nos primeiros encontros, senti a necessidade de ter um auxiliar de pesquisa, pois

muitas vezes, a responsabilidade em registrar notas e produzir imagens me impedia de manter

um diálogo sequencial com a criança, eu tinha de me dividir entre conversar com ela e fazer o

registro dessa conversa, ou conversar com ela e preparar um equipamento ou outro para usar,

enfim, convidei uma sobrinha, estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia (UFPB) para

me apoiar com os equipamentos, ela ficou como corresponsável pelos registros videográficos

das situações específicas da pesquisa. Este apoio foi fundamental para que eu pudesse me

movimentar de maneira mais livre junto à criança, sem grandes preocupações com o registro, e

evidentemente, para que a própria criança se sentisse menos observada, pois as imagens eram

feitas com distanciamentos adequados, por vezes, até imperceptíveis. A presença deste apoio

se tornou parte das rotinas de geração de dados e isso não causou estranheza, pois Maria Clara

envolvia a todas com suas interações, ela se sentia muito à vontade com os aparelhos e com a

nossa presença.

Portanto, a conexão entre fotografia, filmagem, áudio e escrita direcionaram a

construção do diário fotoetnográfico, permitindo assim, rever, reavaliar e redimensionar as

interpretações da criança a partir de seu próprio ponto de vista. Conforme aponta Sarmento

(2008, p. 84):

O trabalho hermenêutico de interpretação da voz das crianças encontra com a investigação etnográfica e participativa, uma possibilidade metodológica

fundamental, a qual permite ultrapassar velhas assumpções sobre a

“irracionalidade da infância”, da representação da infância como categoria geracional, caracterizada por um estatuto pré-social, uma forma de

pensamento “moldável” e uma presumida heteronomia, inibidora do exercício

de direitos participativos próprios.

435

Nesta perspectiva, apesar de ter sido uma construção minha, o diário fotoetnográfico

priorizou os elementos que fizeram parte da narrativa autobiográfica da criança-sujeito,

respeitando assim, suas subjetividades e interpretações.

Para sistematização escrita do diário fotoetnográfico, articulei os elementos produzidos

em campo à reflexão epistemológica das perspectivas teóricas empreendidas durante a

produção da tese. Assim, apresento as narrativas escritas em pequenos relatos que refletem o

cotidiano da pesquisa e dão apoio à produção da narrativa visual, compondo assim, a

Fotoetnografia pretendida neste ensaio – uma Fotoetnografia autobiográfica infantil.

Para Ceglowski (2003, p. 264) as histórias “comunicam um entendimento holístico e

naturalista de um projecto de investigação” e agrupadas com outros tipos de escrita iluminam

o trabalho de pesquisa. Desse modo, a opção por apresentar a trajetória dos dados em pequenas

histórias vem da preocupação em manter uma sintonia entre narrativas visuais e escritas,

buscando oferecer ao leitor/espectador uma visão integral do processo de investigação

empírica, sem cansá-lo com longos trechos narrativos.

Os pequenos relatos foram construídos de acordo com cada situação empírica,

mesclando falas, notas de campo, situações e percepções acerca do fenômeno observado, sendo

apresentadas, no contexto deste ensaio, sob trechos narrativos. Portanto, o diário

fotoetnográfico reescreve os acontecimentos e diálogos produzidos em campo e durante as

incursões analíticas.

Assim, a pesquisa fotoetnográfica autobiográfica emergiu do entrelaçamento entre

minha sensibilidade de pesquisadora - profundidade do campo; da sensibilidade de Maria Clara

– tempo de abertura; e da profundidade do conhecimento em suas dimensões epistemológicas,

subjetivas, ontológicas e metodológicas produzidas, oferecidas e captadas durante a pesquisa

empírica - incidência de luz. Importante destacar que, durante todo o processo, priorizei a

confiança, o respeito e a ética junto aos familiares e, principalmente, junto a Clara, que com

muito respeito, dei toda liberdade de criação, participação e interpretação189.

189 Cabe ressaltar que a narrativa fotoetnográfica que compõe o Click 3 foi construída a partir de imagens

selecionadas por Maria Clara, de seus álbuns pessoais e de imagens produzidas e/ou selecionadas por

mim, durante o processo etnográfico de pesquisa de campo. Deste modo, para uma melhor compreensão,

foi inscrita uma pequena observação indicando de onde partiu a seleção e sequência de imagens. No entanto, para estudos posteriores, sugiro a possibilidade de subdividir a narrativa fotoetnográfica em dois

clicks – um elaborado pela criança (autobiográfico) e outro elaborado pelo pesquisador/a (etnográfico).

436

3° Click

Debruçado sobre a fotografia, o observador se

encanta. Através dela, rememora. Por ela, o presente

é corporificado como elos fixos de uma presença

vivida. O passado torna-se uma rede de elementos

fixos, presentes e ao alcance das mãos, que

comprova o vivido e a vida do sujeito que as vê e as

possui.

(KOURY, 1998, p. 73).

“– Oi pessoal! Eu sou a blogueirinha Maria Clara!”

“- Oi Pessoaaal! Eu sou a blogueirinha Maria Clara!”

Manhas e artimanhas de uma princese “blogueirinha”

437

“Eu nasci nessa hora olha! esse relógio tava lá na sala do hospital...”

“Esse foi meu primeiro banho, meu papi que deu! (...) ele me virou pra lá e pra cá!

Depois a gente foi pra rede, olha essa carinha que liiinda!”

Por Maria Clara...

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Nossos olhares...

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Por Maria Clara...

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Nossos olhares...

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Meu olhar...

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Por Maria Clara...

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Meu olhar...

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Nossos olhares...

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EPÍLOGO

Era uma vez

Um lugarzinho no meio do nada

Com sabor de chocolate

E cheiro de terra molhada

Era uma vez

A riqueza contra a simplicidade

Uma mostrando pra outra

Quem dava mais felicidade

Pra gente ser feliz

Tem que cultivar as nossas amizades

Os amigos de verdade

Pra gente ser feliz

Tem que mergulhar na própria fantasia

Na nossa liberdade

Uma história de amor

De aventura e de magia

Só tem a ver

Quem já foi criança um dia

Uma história de amor

De aventura e de magia

Só tem a ver

Quem já foi criança um dia

(Composição: Álvaro Socci/ Cláudio Matta)

Cantos, Contos e Encantos embalaram este ensaio. A princesa “blogueirinha” Maria

Clara deixou registrada sua história - “Uma História de amor, de aventura e de magia”.

Seu reino encantado é muito agitado, mas essa também é uma de suas principais características,

ela não para! Está sempre aprontando todas e não para de falar! Por isso, não foi necessário

muito esforço para realização desta pesquisa, justamente, pelo seu jeitinho alegre e expressivo

de se relacionar e se expressar.

O processo de pesquisa em campo proporcionou muita intimidade, envolvimento e

subjetividade. Especialmente, com Maria Clara, pois seria impossível manter-se distante.

465

Entretanto, o fato de estar bem próxima, não significou estar desprovida de críticas, reflexões e

interpretações. Tentei o equilíbrio entre epistemologias e subjetividades, porém, decisivamente,

rejeitei o distanciamento. Por isso, optei pelo caráter heurístico e ontológico da pesquisa

autobiográfica, tendo em vista que permite ao pesquisador participar, intrinsecamente e

subjetivamente, no ato de pesquisa (HOLANDA, 2006, p. 368).

No entanto, como se tratava de uma autobiografia, a descrição priorizou as percepções

e falas da própria criança, e como pesquisadora, fui sua ouvinte e espectadora. E assim, fui

aprendendo no dia-dia da pesquisa a desenvolver procedimentos e formas de descrição,

apresentação e análise da narração fotoetnográfica. Neste aprendizado, Maria Clara foi minha

principal referência. Com ela aprendi muito mais do que li nos livros, do que vi em imagens e

escrevi nestas linhas. É dela, o mérito destas minhas aprendizagens.

Clarinha é uma criança sapeca, cheia de aventuras para contar. Sua simplicidade está

nas suas pequenas ações do dia-dia, na escola com os amigos e, principalmente, com a família.

O universo da fama para ela é mais uma diversão do que uma forma de conquista financeira,

certa vez, conversamos sobre isso e sua resposta me surpreendeu: “P – Clarinha, a pessoa fica

famosa para ficar rica é? MC: É, pra fica rica, só com as propagandas ganham muito dinheiro,

ganha mais do que ser uma babá!”. Ela não tem dimensão ainda das relações econômicas que

estão atreladas a esse mundo de glamour e moda, para ela é diversão, aventura e magia.

Maria Clara é uma criança que constrói sua história de forma participativa e ativa. É

uma criança que sabe questionar, criticar, refletir e ter suas próprias opiniões. Essa autonomia,

desvela uma criança protagonista que quer participar de todas as decisões relacionadas a ela.

As falas de Clara demonstram empoderamento do que é ser criança e de saber o que é viver

com dignidade a sua infância. Essa visão é defendida pela Sociologia da Infância por acreditar

na autonomia da criança em relação aos seus modos de ser e de viver em sociedade.

Nesta perspectiva, é possível afirmar que crianças como Clara, refletem a imagem da

criança sociológica, o que corresponde a uma nova concepção de infância na

contemporaneidade, a criança protagonista de sua história, a criança como ator social e político,

rompendo com as visões de negação e (in)visibilidade que durante séculos silenciaram as

crianças. Portanto, na óptica da Sociologia da Infância, reconheço em Clara e outras tantas

Claras, a imagem da criança sociológica (SARMENTO, 2007, p. 29-33), que constrói suas

culturas e estabelece sentidos e significados nas relações entre pares e com os adultos de

maneira proativa e criativa que se reconhece como criança e conquista seus direitos de infância.

Para encerrar este ensaio, trago agora as palavras de Clara que, junto às minhas próprias

reminiscências de infância, me ajudaram a compreender um pouco mais sobre as concepções

466

de criança e infância:

P - Na sua opinião o que é ser criança? MC: Criança... é... [ficou pensativa]. MC - alguns pais querem que as crianças sejam sérias, bem chique sabe? mas

criança é brincar, se divertir, as crianças são do jeito que elas são, mas os pais

querem fazer uma orientação que querem que a criança fique grande, alguns, e não querem que elas sejam uma criança, porque é uma criança séria que fica.

P: Entendi, e na sua opinião ser criança é ser...? [insisti]. MC: Criança, é brincar, se divertir, eu sei que é meio doido a gente fazer algumas coisas

erradas, mas a gente gosta, faz parte do nosso dia-dia. P: Entendi, e o que é

coisa errada assim? MC: Eu gosto de ficar pegando algumas coisas da minha mãe enganando ela, e quando minha mãe vai me dar um abraço eu tento pegar

o celular dela e aí eu corro e coloco o celular na minha frente, só que aí ela

pega no flagra e eu também gosto de trocar coisas. Uma vez eu falei assim, quando eu era bem pequenininha, mãe vem limpar minha bunda, eu tô no

banheiro de cá, só que eu tava ali, aí eu enganava ela toda hora. (muitas risadas).

P: Você falou o que é ser criança, mas você sabe o que é a infância? MC:

Infância é quando a gente era pequeno, sabe? Ser bebê, ser criança, aí a gente vai crescendo até virar um adulto, o adulto aí sim pode ser sério, mas eu ainda

gosto de me divertir mesmo sendo adulta, não tem problema. P: Aí no caso,

você é uma pessoa bem alegre. MC: Sou. P: Você é feliz? MC: Sou.

P: E qual a melhor parte de ser criança? MC: A melhor parte é que a gente tem

que aproveitar as nossas brincadeiras, nossas aventuras, nossas amizades, o tempo livre da gente, pois quando a gente for adulto vai ter que ficar ocupado

e eu não gosto muito, por isso tenho que aproveitar por enquanto que sou

criança. P: E o que você diria pra um adulto? Pra ele entender o que é ser criança? MC: Eu diria que ser criança é ter liberdade de brincar, mesmo a

criança fazendo alguma coisa, ter quebrado alguma coisa ou se machucado,

faz parte do nosso dia-dia. A gente pode se machucar? Pode, mas a gente não se cansa de brincar, a gente quer conseguir as coisas, principalmente, um

menino que sonhava fazer skate, mas ele não tinha as pernas, mas aí ele fez todos quererem, mesmo ele não tendo pernas, porém ele conseguiu, ele só usa

as mãos. P: É só acreditar né? MC: Uhum, pra seu sonho se realizar.

Portanto, a história se encerra assim:

“Era uma vez... [...]

Uma história de amor

De aventura e de magia

Só tem a ver

Quem já foi criança um dia.”

467

POR UMA IN/CONCLUSÃO

Afinal, o que desvelam as Fotoetnografias?

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentando,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A princesa que dormia.

(PESSOA, F., 1960, p.181)

468

Com a incumbência maior de promover interlocuções epistemológicas e empíricas sobre

as concepções de crianças, infâncias e culturas infantis através de narrativas fotoetnográficas,

esta tese esteve atrelada a três campos analíticos diferentes, porém, complementares: a imagem;

a fotografia e a Fotoetnografia; a História, a Sociologia da Infância e a Cultura Visual; a

Fotoetnografia numa perspectiva autobiográfica e o protagonismo infantil. A escolha da divisão

da pesquisa em três ensaios se deu pela própria complexidade do tema, sendo a escrita ensaísta

a que mais se aproximou das minhas intencionalidades como autora. Assim como Rodríguez

(2012, 16) escreveu em seu post-it “a leitura dos livros para citação não pode significar a perda

do meu estilo”, eu também estava preocupada em não reproduzir grandes ideias apenas

parafraseando “microestruturas frasais, a pretexto do método”. Eu pretendia uma identidade

criativa para minha escrita, que falasse por si e que dialogasse com o seu leitor, respeitando as

especificidades da ciência, mas não sendo subjugada apenas ela.

Neste sentido, os três ensaios nasceram de diferentes percursos, volições, inquietudes e

algumas incertezas, porém, refletiram àquilo que mais acredito enquanto educadora e

pesquisadora da infância, refletem a importância do diálogo e do respeito à criança, suas

realidades e fantasias.

A produção de narrativas fotoetnográficas em cada campo de análise permitiu o

conhecimento, aprofundamento e desvelamento interpretativo da realidade da infância refletida

nas imagens de crianças expressadas na Cultura Visual e discutidas pela História Social da

criança e pela Sociologia da Infância. Legitimando-se, assim, como uma nova estratégia de

aproximação, reflexão e análise teórica e empírica para o desenvolvimento de pesquisas

direcionadas às temáticas crianças, infâncias e culturas infantis nas Ciências Humanas e Sociais,

tendo em vista sua potencialidade metodológica para estimular a interpretação e compreensão

das identidades, subjetividades e alteridades da criança produzidas nos entre-lugares e entre-

culturas da infância.

Nesta perspectiva, a Fotoetnografia foi utilizada como uma metáfora no trabalho de

campo, organizadas como narrativas visuais da realidade investigada, tomando para si, efeitos

de veracidade e de subjetividade, consequentemente, neste processo, elementos como tempo,

lugar e alteridades intercruzaram-se e dialogaram-se de forma híbrida e transversal, dando

sentido à dinâmica de análise. O movimento de interpretação memento, pautado em princípios

interpretativos, ontológicos e éticos, foi fundamental para reflexão e análise das narrativas

imagéticas à luz das abordagens teóricas investigadas, o que possibilitou a compreensão

política, conceptual e cultural das peculiaridades das infâncias ali refletidas, principalmente, em

se tratando de imagens da infância contemporânea que se propagam no seio de uma sociedade

469

midiática que precisa ser estudada e tensionada de forma crítica.

Reconheço que a imagem visual não é estável, mas muda sua relação com a realidade

externa em determinados momentos da história e da cultura, mais precisamente, a imagem

torna-se um lugar onde se pode criar e discutir os significados, nesta perspectiva, a cultura

visual não depende da imagem em si, mas da tendência de interpretações que ela permite

capturar ou exibir desta realidade (MIRZOEFF, 2003), neste sentido, a cultura visual aponta

signos e significados que contribuem para a mediação entre o processo de produção de

conhecimento e formação da consciência cultural de pertencimento histórico da criança.

Neste contexto, a fotografia, enquanto imagem técnica, torna-se elemento central para

discutir a subjetividade do sujeito. Em outras palavras, a fotografia apresenta-se como um

permanente devir-humano, constantemente, retroalimentado pela cultura visual que magiciza a

vida através das imagens técnicas, implicando assim, no contexto da infância que por sua vez,

passa a se constituir nas “entre-culturas” que se manifestam em microestruturas e/ou

macroestruturas sociais produzidas pela/sobre/na ação das crianças em meio às relações de

alteridade que estabelecem junto às culturas infantis, adultas e visuais. Ou seja, a fotografia

constitui e é constituída num permanente processo de devir-imagem, que no contexto da

Fotoetnografia se torna um “entre-lugar” do passado-presente, da ausência-presença, do

reviver-sentir-compreender.

A relevância da imagem presente na pintura realista subsidia informações teóricas para

pesquisas contemporâneas, nesse sentido, a influência da cultura europeia nos primeiros

registros iconográficos que expressam significados acerca de como viviam e eram

representadas as crianças pela sociedade medieval, citadas tanto nos escritos de Ariès (1981)

quanto nos registros da Sociologia da Infância, permitem esboçar nuances das culturas infantis

em diferentes épocas, isso reafirma que as culturas adultas exerciam e até hoje, exercem

significativa influência nas formas de viver e ser criança na atualidade, o que torna necessário

promover debates e políticas públicas que garantam a efetiva proteção aos direito da criança e

o compromisso social com a dignidade da infância em sua integralidade. Em outras palavras,

as narrativas fotoetnográficas desvelaram que as crianças exercem papéis sociais de acordo com

as concepções de infância estabelecidas em cada cultura e contexto específico,

consequentemente, as culturas infantis delineiam-se nas singularidades e subjetividades das

crianças, sendo produzidas em suas relações de alteridade entre pares, com os adultos e com as

produções culturais que fazem parte do cotidiano infantil.

Por conseguinte, tais concepções reforçam a ideia de que as crianças exercem papéis

sociais de acordo com as concepções de infância intensificadas pelas culturas visuais, pelos

470

discursos sociais e padrões culturais que tentam subsumir a criança a uma condição reducionista

de direitos e participação. Entretanto, desde a posição de marginalidade e invisibilidade social,

científica e política durante as idades Média e Moderna até a condição de sujeito social na Idade

Contemporânea, é possível perceber que as crianças têm demonstrado em suas culturas extratos

de subversão e resistência a concepções adultizadas de infância impostas pela história, pela

sociedade e pela cultura, fazendo emergir assim, suas subjetividades e identidades culturais

através do protagonismo infantil, agora ainda mais reforçado por iniciativas sociais, políticas e

educativas.

Os resultados também apontam que as concepções de crianças magicizadas em imagens

não se baseiam em idade biológica e em papéis sociais, e sim, na aparência de vestes que

indicam a condição social dos indivíduos e a falta de tratamentos diferenciados entre adultos e

crianças. No entanto, é preciso reconhecer os limites desta análise, quando pensamos nas

pluralidades da infância, nas infâncias pobres, nas crianças trabalhadoras, nas relações sociais

estabelecidas entre elas e com os adultos, nas multiplicidades dos contextos familiares e

educacionais e, sobretudo, quando reconhecemos que mesmo vivendo influências das culturas

adultas, as crianças elaboram suas visões de mundo como atores sociais (SIROTA, 2001;

SARMENTO, 2002) e nas alteridades da infância subvertem e resistem aos padrões e práticas

que tentam condicionar o comportamento infantil.

Em síntese, os conceitos e concepções sobre crianças, infâncias e culturas infantis se

constituem a partir de uma dupla hermenêutica: ora instituída pelas diversas Ciências Humanas

e Sociais, a priori, numa tentativa de homogeneização conceptual, desde a concepção do

“homúnculo” até a criança frágil, incapaz, inocente e totalmente dependente, a posterior i,

pautadas no novo paradigma social da infância cuja essência situa-se na singularidade infantil,

na sua participação política e social e na concepção de criança como produtora de cultura,

conhecimentos e subjetividades; bem como, ora sedimentadas na consciência reflexiva dos

próprios sujeitos sociais infantis na construção de suas práticas recursivas, dispondo em seus

modos de ser e viver novas reconfigurações conceptuais, simbólicas e/ou ontológicas em que a

realidade se contrapõe reflexivamente às imposições das culturas adultas em suas várias

manifestações.

Sob a ótica da Sociologia da Infância reitero que as infâncias interpretam seus mundos

e modos de viver a vida nas múltiplas interações simbólicas estabelecidas entre si e com os

adultos, num exercício contínuo de alteridade. À medida que a criança internaliza e interpreta

os processos sociais que vivencia, ela nos interpela com suas re/formulações e nos desafia a

entender o universo infantil a partir de seu próprio olhar e não do modo de como a vemos e/ou

471

pensamos (CORSARO, 1997; SARMENTO, 2002; MÜLLER e CARVALHO, 2009).

Portanto, a composição das análises empreendidas nesta pesquisa foi organizada na

defesa de que as fotoetnografias de crianças e suas infâncias em cada tempo histórico e contexto

cultural desvelam e legitimam modos de vida plurais, porém, singulares em suas essências;

multiculturais, mas, com papéis sociais e políticos bem definidos; dependentes, mas

especialmente, criativos e reflexivos; e por fim, multifacetados, sobretudo, subjetivos e

autênticos. Desse modo, independentemente das circunstâncias e contextos, as crianças

exercem seu protagonismo nas relações de alteridade constituídas durante a infância e

constroem, criativamente, formas próprias de subversão e enfrentamento das circunstâncias

culturais e sociais das quais participa, o que consiste numa nova imagem sociológica na

contemporaneidade - a da criança protagonista.

Ante esta defesa, a emergência do protagonismo infantil é percebida não só nos espaços

que lhes são garantidos como sujeitos de direito e em iniciativas que objetivam minimizar os

problemas e contradições sociais nos quais as infâncias se constituíram e se constituem na

atualmente, mas, sobretudo, na condição da criança como sujeito social, histórico, político e

cultural. Nesta perspectiva, as culturas infantis são delineadas nas singularidades e

subjetividades das crianças, sendo produzidas nas suas relações de alteridade entre pares, com

os adultos e com as produções culturais que permeiam as culturas infantis em cada tempo e

espaços específicos. Consequentemente, a concepção da imagem da criança protagonista

desvelada a partir das culturas, subjetividades e singularidades infantis investigadas, reconhece

o direito das crianças de serem autoras de sua própria história, protagonistas em suas relações

de alteridade.

Nesse exercício contínuo de protagonismo e participação, as culturas infantis afetam e

são afetadas pela pluralidade das culturas - da globalização, da indústria cultural, das

tecnologias, das culturas visuais, da cultura escolar e das culturas de pares, gerada na interação

das crianças com outras crianças, entre outras formas singulares de cultura (SARMENTO,

2007), mas, criam suas próprias formas de perceber o mundo a partir das re/significações e

re/produções que se desvelam nas interlocuções entre linguagens e expressões da cultura e da

alteridade infantil.

Portanto, esta tese alicerçou-se na necessidade da desestabilização dos conceitos e

concepções homogeneizadoras decorrentes das imagens da criança historicamente construída a

partir um estatuto social ideológico, normativo e referencial que relegou seu lugar na sociedade.

Conforme asseverou Sarmento (2005, p. 365) “esse processo, para além de tenso e internamente

contraditório, não se esgotou” e, consequentemente, a geração infância ainda encontra-se “num

472

processo contínuo de mudança, não apenas pela entrada e saída dos seus actores concretos, mas

por efeito conjugado das acções internas e externas dos factores que a constroem e das

dimensões de que se compõe” (p.366).

Dado o exposto, postula-se o caráter contributivo da Fotoetnografia como proposta

metodológica que favorece processos investigativos e empíricos com criança e sobre infância,

além disso, como caminho e possibilidades de análise fotoetnográfica, considerando as

dimensões estéticas e sensitivas do memento, as dimensões descritivas da imagem em high key

e low key, e as dimensões interpretativas e reflexivas promovidas pelo diálogo epistemológico

e subjetivo. Através dessas conexões, proporcionei não uma disputa entre as duas formas de

escritura: texto e imagens, mas sim, uma interlocução que facilitasse a compreensão dos

fenômenos a partir de abordagens heurísticas e transdiciplinares. Desse modo, suas produções

ocorreram de forma interdependentes, porém, complementares.

Além disso, a Fotoetnografia mostrou-se um campo fecundo para o desenvolvimento

de pesquisas no campo da Sociologia da Infância e da Cultura Visual, sobretudo, no que diz

respeito à participação da criança e o desvelar das culturas infantis. Como processo

investigativo, trata-se de uma “outra” possibilidade de reflexionar os conceitos de criança e

infância reconhecendo a importância das imagens como narrativas integrais fundamentais para

a compreensão dos fenômenos sociais e culturais presentes nas culturas infantis. Como processo

empírico à medida que contribuiu para o despertar do olhar criativo, construtivo e interpretativo

de si, per si (identidade) e do outro (alteridade), abrindo caminhos para novas leituras de mundo

que estimulem o re/conhecimento dos sentidos e significados que estabelecemos com o meio,

mais especificamente, com as visualidades que compõem a segunda modernidade.

Neste prisma, a narrativa Fotoetnográfica Autobiográfica materializa o discurso de

Clara através de seu próprio olhar (ACHUTTI, 2004, p. 111). Seu modo de ser e de viver

abrange aspectos inovadores e criativos da participação infantil na sociedade, Clara produz e

reproduz as culturas midiáticas ressignificando-as e dando a elas suas próprias e autênticas

formas de interpretação, o que corrobora com a perspectiva da reprodução interpretativa

(CORSARO, 2007). No contexto das relações de alteridade que estabelece entre pares, entre

demais culturas e na relação com os adultos, ela vai construindo seu repertório de significados

através da identificação, apropriação criativa e reprodução das informações do mundo adulto.

O termo reprodução inclui, neste sentido, a ideia de que a criança não se limita apenas a

internalizar a sociedade e a cultura, mas contribui ativamente para a produção e mudança

cultural (SARMENTO, 2011, p. 31). Isto significa reafirmar que as crianças e suas infâncias

afetam e são afetadas pelas sociedades e culturas que integram e essas sociedades e culturas

473

foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas e sociais que

repercutiram diretamente, nas formas de comunicação e socialização humana.

Nesta pesquisa foi possível reviver, sentir e compreender como viveram e vivem muitas

infâncias, cada época e contexto revelam cenários multiculturais e particularmente, marcados

pela ação da criança, mesmo em situações de marginalidade social. São infâncias marcadas por

histórias, memórias e intensas diferenças culturais, crianças que tiveram suas vozes ceifadas e

que viveram às margens da sociedade; crianças que mesmo em condições adversas,

conseguiram transgredir regras e subverter situações; crianças que aos poucos foram

conquistando o direito de ter uma infância; mas também, crianças que protagonizaram suas

histórias de forma criativa e divertida.

Vimos crianças que imaginaram, criaram e desenvolveram diferentes maneiras de

brincar e se expressar; crianças que se adaptaram facilmente às transformações tecnológicas e

culturais de cada contexto social; crianças que reproduziram, produziram e interpretaram as

multiplicidades culturais de uma sociedade “hiper” – hipermoderna, hiperglobalizada,

hiperconectada, hipercapitalista e hiperconsumista, das quais participa, enfim, são essas

crianças que fazem da infância um fenômeno impossível de ser apreendido em sua totalidade,

dada a diversidade, singularidade e complexidade desta geração.

Nesta perspectiva, as novas gerações no contexto da 2ª modernidade (LASH, 1997;

SARMENTO, 2004) desenvolvem-se em espaços com diferenças relevantes em relação às

gerações anteriores, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico em tempos de globalização

(SANTOS, 2001, p. 71) e cibercultura (LEVY, 1999, p. 111), onde as imagens passaram a

ocupar lugares significativos na vida social e cultural dos indivíduos, repercutindo diretamente

no contexto educacional da infância, uma vez que a escola não existe como instituição

independente, mas, inserida nesse tecido social contemporâneo.

Neste sentido, as crianças têm se projetado na alteridade da infância e na subversão das

imposições imagéticas da Cultura Visual e das culturas adultas num processo de reprodução

interpretativa (CORSARO, 1997) em que transgridem padrões e assumem papéis sociais ao

criarem suas próprias culturas, por um lado na reprodução dos modelos imagéticos que

estimulam a adultização infantil, o consumismo, o exibicionismo e a erotização precoce,

situações essas, que desconsideram as políticas de proteção e cuidado à infância, e por outro

lado, na re/criação de seus próprios modelos, considerando as subjetividades e especificidades

da potência pueril que faz da infância um permanente devir.

Portanto, as culturas visuais estão presentes no cotidiano infantil e dão suporte às

construções interpretativas e subjetivas da criança, consequentemente, demandam à escola a

474

necessidade de repensar as múltiplas realidades culturais da infância contemporânea. Em vista

disso, o complexo, variado e conflituoso cenário cultural em que estamos imersos se reflete nos

espaços da escola e afeta sensivelmente o trabalho pedagógico. Com o olhar inclinado ao objeto

de pesquisa, ressalto não só a ampliação da discussão sobre as relações entre as culturas visuais

e culturas infantis, como também sinalizo para a importância de se pensar sobre as implicações

e contribuições da fotoetnografia para o trabalho docente na perspectiva de uma educação

estética, considerando sua capacidade de estimular a criatividade, o conhecimento de si, a

compreensão do universo cultural em suas multiplicidades e expressões visuais e

principalmente, a sua potência intersubjetiva e ontológica em fazer emergir reminiscências,

memórias e sensibilidades do sujeito que investiga, que é investigado e que contempla a

investigação.

Como proposições futuras, a Fotoetnografia enquanto perspectiva teórico-

metodológica, revelou-se um campo fecundo para o re/conhecimento das crianças, seus lugares,

seus modos de vida, suas subjetividades e culturas. Abre caminhos para a imagem, enquanto

corpo que narra memórias, histórias e reminiscências, bem como, possibilita a interpretação da

realidade a partir do movimento memento – reviver, sentir e compreender, em suas dimensões

históricas, culturais, ontológicas e sociais, consequentemente, indica sua potencialidade para o

campo educacional numa perspectiva de educação estética que visa promover o conhecimento

através das visualidades em diálogo com uma pedagogia crítica e emancipatória pautada no

amor, no diálogo, no encantamento, na beleza e na criatividade humana. Abordagens que

aprofundarei em uma outra oportunidade, daí o carácter de uma produção inacabada, que ainda

tem muito a maturar, mas por hora, deixo aqui apenas como provocações.

Por fim, retorno ao início deste trabalho para escrever minhas últimas considerações.

Logo nas primeiras laudas convidei o leitor/espectador a se encantar, a ouvir a criança que

temos dentro da alma, a se embalar com suas reminiscências de infância e a vaguear com um

olhar sensível e atento sobre as superfícies mágicas da Fotoetnografia, toda essa orientação foi

pensada justamente para oferecer uma leitura viva e realista, pois de nada adiantaria se essas

linhas não fossem lidas com emoção e sensibilidade. A intensão foi reforçar que, para se

entender o universo infantil, é preciso aproximar-se da criança, compreendê-la em sua essência,

pensar seus pensamentos, brincar suas brincadeiras, chorar seus choros, sonhar seus sonhos e

sobretudo, se encantar com a beleza e o simples da vida.

Nesta direção, o poema de Fernando Pessoa (1960, p.181) que escolhi para estas

reflexões finais, traduz esse caminho introspectivo e ontológico do qual parti, pois ressalta que

o ponto de partida e de chegada para o entendimento humano é a nossa própria intuição, nossa

475

própria percepção de mundo, àquilo que trazemos nas reminiscências de nossa existência. Daí

a necessidade de revisitar também minha autobiografia, pois, nessas reminiscências pude

aprofundar este método de pesquisa – a fotoenografia autobiográfica. No entanto, ficarei

devendo minhas fotografias ao leitor/espectador.

Desse modo, o memento – reviver, sentir e compreender, me deu suporte para traçar

todas as etapas desse movimento de pesquisa, e espero também que tenha contribuído para o

processo de leitura da mesma. Agora deixo uma resposta ao poeta e falo de mim:

Sou ora princesa, ora infante...

Ora adormecida, outrora andante.

Sonho dormindo, desperto sonhando,

Vivo à espera, corro incessante.

Desisto às vezes, insisto outras,

Muitas e muitas outras...

Por inocência, por virtude ou teimosia,

Tento voar, mas quero sempre voltar.

Quando tenho medo, me excede a coragem,

Do silêncio, faço traquinagem.

Da tristeza, faço melodia,

Na dor (aí não me meto), terreno movediço,

Prefiro a “alegria” (mas, que alegria?)

Olho para estrada, traço o caminho,

No sonho procuro, na alma encontro.

Sigo imaginando, prefiro ousar,

Se falta a esperança, o belo me encanta,

Volto a sonhar.

Se é lenda? - É certo que não! (Certeza que não).

Minha alma quem diria...

Porque a princesa e o infante,

Toda hora e todo instante...

Em mim faz moradia.

476

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