ANÁLISE DOS FRAGMENTOS CERÂMICOS DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE CANAS, SÃO PAULO, BRASIL E TEORIA...

10
57 ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014 Análise dos fragmentos cerâmicos do sítio arqueológico de Canas, São Paulo, Brasil e teoria ator-rede: cultura e sociedade Simone Taguchi Borges Doutora na Universidade Federal do Espirito Santo. Rosinei Batista Ribeiro Doutor nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila. Adilson da Silva Mello Doutor na Universidade Federal de Itajubá. Bianca Siqueira Martins Domingos Mestrando na Universidade Federal de Itajubá. Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Faculdades Integradas Teresa D’Ávila. Natalha Gabrieli Moreira Carvalho Graduando em Design; Faculdades Integradas Teresa D’Ávila. Resumo O artigo teve como proposta analisar os fragmentos cerâmicos do sítio arqueológico Caninhas, Canas, São Paulo, que possuem diversas formas e acabamentos de superfície. O estudo foi realizado nas superfícies simples, corrugada, escovada e ungulada. O desenvolvimento deste trabalho iniciou-se com a coleta de dados envolvendo diversos profissionais, visando identificar as características e o meio social dos habitantes do local. Posteriormente, realizou-se o processo de inventário, caracterização microestrutural, detalhamento virtual dos utensílios em formato 3D e a educação patrimonial. No campo social, este estudo perpassa pelo viés da Teoria Ator-Rede (TAR), considerando a questão da simetria relacional dos arranjos sociais, em que materiais cerâmicos e vida cotidiana não podem ser separados como elementos distintos de uma construção social. Os resultados mostraram a importância na interação entre os profissionais de diversas áreas, fortalecendo a transdisciplinaridade entre design, engenharia e arqueologia. Palavras-Chave Cultura; Análise da superfície; design; seleção dos materiais; arqueologia. Abstract The article propose to analyze the ceramic fragments of the site archaeological site of Canas of São Paulo, that presents several forms and surface perfect. The study was accomplished in simple, corrugated, brushed and finger surface. The development of this work start with the of data involving several professionals, to identify the characteristics and social place of habitants of region. After that step, an inventory process, microestrutural characterization, virtual detainment of utensils using 3D format and patrimonial education was done. In the social area, this study moves through the Actor-Network Theory (ANT) bias, considering the issue of relational symmetry of social arrangements in which ceramic materials and everyday life cannot be separated as discrete elements of a social construction. The results showed the importance of the interaction among the professionals of differents areas that strengthening the transdisciplinary among design, engineering and archaeology. Keywords Surface of analysis; design; materials of selection; archaeology.

Transcript of ANÁLISE DOS FRAGMENTOS CERÂMICOS DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE CANAS, SÃO PAULO, BRASIL E TEORIA...

57

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

Análise dos fragmentos cerâmicos do sítio arqueológico de

Canas, São Paulo, Brasil e teoria ator-rede: cultura e sociedade

Simone Taguchi Borges

Doutora na Universidade Federal do Espirito Santo.

Rosinei Batista Ribeiro

Doutor nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila.

Adilson da Silva Mello

Doutor na Universidade Federal de Itajubá.

Bianca Siqueira Martins Domingos

Mestrando na Universidade Federal de Itajubá.

Luiz Fernando Vargas Malerba Fernandes

Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Faculdades Integradas Teresa D’Ávila.

Natalha Gabrieli Moreira Carvalho

Graduando em Design; Faculdades Integradas Teresa D’Ávila.

Resumo

O artigo teve como proposta analisar os fragmentos cerâmicos do sítio arqueológico Caninhas, Canas, São

Paulo, que possuem diversas formas e acabamentos de superfície. O estudo foi realizado nas superfícies

simples, corrugada, escovada e ungulada. O desenvolvimento deste trabalho iniciou-se com a coleta de dados

envolvendo diversos profissionais, visando identificar as características e o meio social dos habitantes do local.

Posteriormente, realizou-se o processo de inventário, caracterização microestrutural, detalhamento virtual dos

utensílios em formato 3D e a educação patrimonial. No campo social, este estudo perpassa pelo viés da Teoria

Ator-Rede (TAR), considerando a questão da simetria relacional dos arranjos sociais, em que materiais

cerâmicos e vida cotidiana não podem ser separados como elementos distintos de uma construção social. Os

resultados mostraram a importância na interação entre os profissionais de diversas áreas, fortalecendo a

transdisciplinaridade entre design, engenharia e arqueologia.

Palavras-Chave

Cultura; Análise da superfície; design; seleção dos materiais; arqueologia.

Abstract

The article propose to analyze the ceramic fragments of the site archaeological site of Canas of São Paulo, that

presents several forms and surface perfect. The study was accomplished in simple, corrugated, brushed and

finger surface. The development of this work start with the of data involving several professionals, to identify the

characteristics and social place of habitants of region. After that step, an inventory process, microestrutural

characterization, virtual detainment of utensils using 3D format and patrimonial education was done. In the

social area, this study moves through the Actor-Network Theory (ANT) bias, considering the issue of relational

symmetry of social arrangements in which ceramic materials and everyday life cannot be separated as discrete

elements of a social construction. The results showed the importance of the interaction among the professionals

of differents areas that strengthening the transdisciplinary among design, engineering and archaeology.

Keywords

Surface of analysis; design; materials of selection; archaeology.

58

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

Introdução

Historicamente, a cultura dos povos indígenas é conhecida principalmente pelos

relatos de cronistas da época do descobrimento, dos primeiros tempos da colonização do

Brasil e através de vestígios arqueológicos, expressando os valores coletivos desses primeiros

habitantes do território brasileiro. Tais manifestações foram reunidas sob o nome “Tradição

Tupiguarani” e é dividida em dois domínios, prototupi que consta do Sudeste ao Nordeste da

América do Sul, e o protoguarani, localizado ao sul de acordo com Prous (2005).

A descoberta do sítio arqueológico, denominado Sítio Arqueológico Caninhas, abre

um considerável leque de possibilidades no que diz respeito a estudos relacionados à História

e conseqüentemente à memória vinculada ao patrimônio da região, segundo Bornal (2005).

O Sítio Caninhas é composto por estruturas funerárias, estruturas de combustão e

diversos objetos de uso cotidiano de populações indígenas que habitaram o local, que, pelas

suas características, possivelmente trata-se de uma população Tupiguarani1. Entre as

curiosidades encontradas no Sítio Caninhas, estão as peças com formas diferenciadas e as

urnas funerárias que, ao invés de vestígios de sepultamento, continham peças cerâmicas.

Em um contexto macro, pesquisadores discutem sobre os fragmentos cerâmicos

Tupiguaranis do Vale do Taquari, Rio Grande do Sul/RS, em que os fragmentos cerâmicos

ungulados da coleção apresentam o modelo simétrico e assimétrico e os pedaços lisos têm

suas faces interna e externa bem alisada.

Quanto aos fragmentos pintados, notam-se algumas variações com a cor

branca, preta e vermelha. O tratamento pode aparecer em toda a peça,

mas normalmente ocorre na parte superior interna ou externa.

Geralmente, os desenhos geométricos são delineados com a cor preta

sobre fundos brancos ou vermelhos e são frequentes faixas vermelhas

circundando a peça. Descrevem ainda que a cerâmica pintada relaciona-

se aos grupos Tupiguarani, e esta teria uma presente função em rituais

(MACHADO, 2008, p.103-109).

O estudo desenvolvido teve como propósito analisar os fragmentos cerâmicos

provenientes do sítio arqueológico Caninhas, que apresentam diversas formas e acabamentos

de superfície, realizando assim o levantamento e a descrição dos mesmos.

A importância deste estudo concentra-se em torno de duas esferas, primeiramente no

que diz respeito à educação patrimonial com a divulgação de informações e preservação da

história e riqueza cultural da região do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, na segunda

esfera de estudo a interação entre os profissionais de diversas áreas, fortalecendo a

transdisciplinaridade entre design, engenharia e arqueologia.

Fundamentação teórica

Reagregando elementos humanos e não-humanos: sociedade.

1 Sob esta hipótese, serão realizados estudos antropológicos acerca da população em questão e o seu contexto

sociocultural, reforçando o caráter transdisciplinar da pesquisa.

59

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

As teorias culturais apresentadas no escopo do pensamento moderno, não comportam

um quadro analítico que considere, dentro dos contornos da construção do social, os actantes2

não-humanos como componentes da estrutura social.

Desenvolvida em meados dos anos 80 por Bruno Latour, John Law, Michel Callon, entre

tantos outros, a TAR (Teoria Ator Rede) emerge da necessidade de uma nova teoria social

ajustada aos estudos no campo de Ciência e Tecnologia (Callon e Latour, 1981).

Por meio da Teoria Ator-Rede, entendemos que a sociedade e suas relações sociais são

permeadas por elementos heterogêneos conectados via mediações, sendo estas conduzidas

pelos atores3 humanos ou não-humanos inseridos nesta rede. Se antes os fatos eram reduzidos

somente ao social, agora os componentes mobilizados para tecê-lo são integrados à análise,

podendo a qualquer momento redefinir a sua construção identitária e suas relações, rompendo

com a hermética e compartimentada noção de modernidade (LATOUR, 1994).

Ao propor rastrear o não-humano e suas relações, Latour (1994) compreende que o

social está “povoado por objetos mobilizados para construí-lo”.

Como essas mediações modificam a realidade, surgem novas conexões que

reconstituem a tessitura das redes, seus posicionamentos e velhas coerções. Adotar a TAR

como preceito metodológico implica em um posicionamento “flexível” frente ao campo

estudado, em que as análises deem conta das constantes mudanças e movimento dos actantes.

Para John Law (1992, p. 2) a rede se assemelha à própria ciência, no instante em que esta

agrega “elementos do social, do técnico, do conceitual e do textual”, e “são acoplados e então

convertidos (ou “traduzidos”) em um conjunto de produtos científicos igualmente

heterogêneos”.

No campo dos estudos da TAR, podemos afirmar, a partir da ideia de simetria

relacional dos arranjos sociais, o processo de multiplicidade de configurações entre os

actantes que se tornam visíveis e podem ser estudadas, contadas e analisadas de um ponto de

vista que considera interações e cruzamentos. Materiais cerâmicos e vida cotidiana não podem

ser separados como elementos distintos de uma construção social. Toda ação é coletiva

(participação dos actantes na rede) e cada um desses elementos, a seu próprio modo, participa

na constituição e no curso da ação de um grupo, comunidade ou sociedade.

Civilizações se constituíram e se superaram mutuamente a partir dos agentes e

intenções criadas durante seu percurso histórico. Cada peça carrega em si elementos humanos

e cada humano tem, em si (“corpo” e “alma”), os objetos com os quais compõem e se

relaciona nas redes.

Estudos arqueológicos

De acordo com Prous (2005), no final do século 19, os amadores de antiguidades, que

eram brasileiros e eram os organizadores dos primeiros grandes museus, como Ladislau de

Souza Mello Netto (1828-1894), já tinham identificado como tupi os potes pintados

encontrados no litoral de Rio de Janeiro. Mas essas vasilhas estavam mal preservadas, e as

cerâmicas então recém-descobertas na ilha de Marajó, no Pará, que se supunham

influenciadas por imigrantes europeus supostamente chegados durante a Antiguidade,

atraíram toda a atenção dos pesquisadores.

2 Termo utilizado por Latour para dar significado ao que chama-se comumente de atores. 3 Para Latour, um ator ou actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência, isto é,

produza efeitos no mundo e sobre ele. Um ator se caracteriza pela heterogeneidade de sua composição; ele é,

antes, uma dupla articulação entre humanos, e não-humanos e sua construção se faz em rede. (MORAES et. al.,

2004, p. 323)

60

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

Até o final do segundo terço do século 20, apenas o historiador e folclorista Carlos Ott

publicou o desenho simplificado de algumas vasilhas encontradas na Bahia. No final dos anos

60, os pesquisadores do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), dirigido

pelos arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans (1920-1981),

encontraram numerosos sítios onde apareciam restos de cerâmica decorada, alguns com traços

vermelhos ou pretos. Tais manifestações foram reunidas sob o nome ‘Tradição Tupiguarani’

Tupiguarani em uma só palavra, indicando tratar-se de um conceito arqueológico que não

corresponde obrigatoriamente aos povos falantes das línguas tupi-guarani (com hífen),

embora se supusesse que os autores das peças fossem, ao menos em parte, ancestrais desses

povos, pintados sobre fundo branco.

Fragmentos cerâmicos tupi-guarani

Segundo Prous (2005), as vasilhas Tupiguarani apresentam geralmente borda

reforçada típica e a não ser no caso de bacias pouco profundas tendo fundo redondo. Quando

pintadas, recebem decoração linear e pontilhada de cor escura (vermelha, marrom ou preta)

aplicada com ‘pincel’ (qualquer tipo de objeto com essa função) sobre fundo branco. Apesar

do parentesco formal entre todas as ocorrências Tupiguarani, podemos distinguir dois grandes

conjuntos geográficos, um que denominamos ‘proto-tupi’, que se estende do litoral norte de

São Paulo até o Ceará, e outro, ‘proto-guarani’, situado entre o sul do litoral de São Paulo e o

norte da Argentina. Esses grupos distinguem-se tanto por formas específicas dos artefatos de

cerâmica no artigo, Figura 2 (a) e (b) quanto pelo estilo e pelos motivos de decoração plástica

ou pintada. Em cada conjunto seria possível estabelecer subdivisões estilísticas que

acreditamos refletirem a extensão de ‘parcialidades’ de cunho político ou étnico (MORAES,

2007).

Material e métodos

Este trabalho foi executado pelas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila (FATEA) –

Rede Salesianas, por meio da cooperação e parceria técnica com a Escola de Engenharia de

Lorena (EEL/USP) e a Fundação Cultural de Jacarehy – Núcleo de Arqueologia.

O processo de inventário consistiu-se em quatro etapas, iniciando-se na limpeza dos

fragmentos, em que cada fragmento foi lavado em água, com auxílio de espátulas de madeira

e metal. Após lavado, o fragmento é repousado sobre papel absorvente para estar seco até a

próxima etapa, a numeração, que é feita com tinta nanquim sobre uma fina camada de esmalte

translúcido. A numeração indica o Sítio e sua localização e o número da peça (Exemplo: SP –

CA, 01 – 509). Numerados, os fragmentos foram separados por peças e estruturas e descritos

em fichas, de acordo com suas características, entre elas parte da peça, tipo de antiplástico,

queima, local em que foi retirado, grupo a que pertence e suas dimensões.

A caracterização da superfície das amostras foi realizada no DTM/FEG/UNESP,

utilizando o estereoscópio da marca Carl Zeiss com a magnificação de 20 vezes. As

micrografias mostram as morfologias e a qualidade da superfície de cada fragmento, obtendo

mais informações sobre o processo de produção das peças e sobre as características do meio

social de seus produtores.

Depois de realizados os trabalhos históricos e as análises das cerâmicas arqueológicas,

foram escolhidas duas peças do acervo para serem modeladas digitalmente, inicialmente por

meio de renderings manuais para observação das formas e cores e, posteriormente, renderings

digitais aplicando o Solid Works e o 3D Max Studio para finalização da imagem das peças.

61

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

O “Método de Educação Patrimonial” é um conjunto de estratégias utilizadas para

levar às comunidades os conhecimentos produzidos nas pesquisas arqueológicas e nos

trabalhos realizados nas demais áreas (Design, Engenharia de Materiais e Educação Artística).

Este método vem sendo implantado desde as primeiras etapas de trabalho, na realização de

atividades de campo, visitas monitoradas aos laboratórios de Arqueologia e Engenharia de

Materiais, aulas expositivas e palestras.

Resultados e discussão

O sítio arqueológico Caninhas, objeto de estudo desse trabalho, foi identificado no

município de Canas, próximo do centro administrativo do município, em perímetro urbano,

nas coordenadas 23k0495194 UTM 7490041. Canas, município do Estado de São Paulo está a

198km distante da Capital, às margens da Rodovia Presidente Dutra.

A categoria do sítio arqueológico de Canas é unicomponencial, de natureza pré-

colonial, cuja tribo possivelmente é Tupi-guarani, devido características dos utensílios como:

conformação das cerâmicas por acordelamento, e pinturas geométricas na cor vermelha,

branca e preta. Existiam quatro possíveis unidades habitacionais, com vestígios de material

predominantemente cerâmico e lentes de carvão, aparecendo até 400 mm de profundidade. As

estruturas de sepultamento situavam-se fora das ocupações habitacionais indicando padrões

culturais de uso do espaço e em diferentes áreas, sugerindo uma diferenciação e

hierarquização do espaço. A pintura presente nos fragmentos encontrados e tigelas

recuperadas se encontram em bom estado de conservação, o que indica que a provável

ocupação da aldeia tenha acontecido entre os séculos XIV e XVI, mas são necessários

maiores investigações para determinar essa gama de possibilidades (BORNAL, 2005).

A Figura 1(a) mostra um fragmento ungulado após a higienização, na qual possibilita

melhor compreensão da textura e forma. Após a caracterização, duas peças foram montadas:

A primeira trata-se de uma tigela cerimonial de porte pequeno, Figura 1(b) e uma tigela de

grande porte, Figura 1(c), ambas com pintura comum à tradição Tupiguarani – Fundo branco,

com faixas vermelhas e grafismos em linhas pretas. Os demais fragmentos foram guardados.

(a) (b) (c)

Figura 1: (a) Fragmento ungulado; (b) Tigela indígena cerimonial pintada; (c) Tigela indígena pintada.

Na Figura 2(a) percebe-se a pintura de um fragmento de peça cerimonial, que segundo

Prous (2005), os grafismos feitos por linhas finas sobre fundo branco lembram as formas de

um intestino, ou cérebro e não são apenas decoração, mas parecem expressar valores e hábitos

62

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

coletivos, crenças, mitologia e mesmo rituais presentes na cultura Tupiguarani. Foram

inventariadas treze peças cerimoniais no Sítio Caninhas, sendo possível observar a decoração

pintada que permite identificar cores e formas, representadas na Figura 2(b).

(a)

(b)

Figura 2: (a) Fragmentos com decoração pintada; (b) Rendering de tigela cerimonial pintada.

As Figuras 3 (a), (b), (c) e (d) mostram as micrografias obtidas via Microscopia óptica

dos fragmentos simples, corrugado, escovado e ungulado, respectivamente. A superfície

simples apresenta poros distribuídos em toda área, de maneira uniforme. No fragmento

corrugado apresenta-se material orgânico e cor escura (queima), na superfície escovada

observa-se vales, sulcos e relevos, resultado do entalhe feito na peça. No fragmento ungulado

percebe-se marcas da decoração, efetuada pela pressão das unhas contra a mistura.

O processo de inventário leva-nos a descobrir fatos sobre a produção das peças e,

conseqüentemente, sobre o meio social dos produtores. Os grãos de quartzo proporcionam

reflexos brilhantes na peça quando exposta à luz. Outro fato observado foi a presença de

pontos mais escuros na superfície fraturada dos fragmentos, que é uma característica da

produção de peças Tupiguaranis, que costumavam utilizar na matéria-prima restos moídos de

outras peças, o denominado “caco moído” (LA SALVIA, 1989).

As peças, em sua maioria, apresentam ondulações na parte interior, sinais que indicam

a utilização do método de “Acordelamento”4, processo mais empregado na tradição

Tupiguarani.

(a) (b)

4 Essa técnica consiste na sobreposição de roletes de argila.

63

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

(c) (d)

Figura 3 (a), (b), (c) e (d): Microscopia Óptica dos fragmentos cerâmicos – Magnitude de 20X.

Previamente foi realizado renderings manuais, que partiram da escolha de duas peças:

A urna funerária, Figura 4(a) e uma tigela maior, Figura 4(b), supostamente utilizada no

preparo de alimentos.

Os renderings da tigela maior partiram de um fragmento de grande porte presente no

acervo, com decoração ungulada. A decoração ungulada é comum à tradição Tupiguarani. A

forma desta peça não é comum na tradição Tupiguarani, sugerindo a hipótese de convivência

entre os Tupiguarani e diferentes tribos na região.

(a) (b)

Figura 4: (a) Rendering de urna funerária; (b) Rendering de tigela indígena.

A Figura 5(a) revela a reconstituição virtual (3D) feita por meio do programa Solid

Works, em que se pode observar a espessura da parede da peça. As Figuras 5(b) e 5(c)

revelam a reconstituição virtual feita no programa 3D Max.

Na Figura 5(b) pode-se observar uma textura originária de processo de construção que

se enquadra como corrugada. Os relevos e os vales são oriundos da pressão exercida pelas

unhas sobre a mistura e são paralelos ao eixo do diâmetro da peça.

Na Figura 5(c) visualiza-se a presença da decoração simples na parte inferior, e

ungulada na parte superior da peça. O nível de cor na cerâmica varia conforme os

componentes das argilas, os processos e a temperatura de tratamento térmico (KINDLEIN,

2006).

(a) (b) (c)

Figura 5 (a), (b) e (c) - Renderings digitais da urna funerária e (c) tigela indígena Tupiguarani.

64

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

Conclusões

O estudo dos fragmentos cerâmicos permitiu identificar a categoria do sítio

arqueológico de Canas como unicomponencial, de natureza pré-colonial, cuja tribo

possivelmente é Tupi-guarani, devido características dos utensílios como: conformação das

cerâmicas por acordelamento, e pinturas geométricas na cor vermelha, branca e preta.

Existiam quatro possíveis unidades habitacionais, com vestígios de material

predominantemente cerâmico e lentes de carvão, aparecendo até 40 cm de profundidade. As

estruturas de sepultamento situavam-se fora das ocupações habitacionais indicando padrões

culturais de uso do espaço e, em diferentes áreas, sugerindo uma diferenciação e

hierarquização do espaço. A pintura presente nos fragmentos encontrados e tigelas

recuperadas se encontram em bom estado de conservação, o que indica que a provável

ocupação da aldeia tenha acontecido entre os séculos XIV e XVI, mas são necessários

maiores investigações para determinar essa gama de possibilidades (BORNAL, 2005).

O desenvolvimento e o resultado deste artigo tornam-se um fator importante por meio

do envolvimento de pessoas de diversas áreas. Nota-se, assim, à conclusão que, a partir do

desenvolvimento deste projeto multidisciplinar, os alunos do ensino médio e graduação

aumentaram suas visões, integrados num processo importante que fortalecerá a difusão e a

socialização dos conhecimentos entre o Design, Engenharia e Arqueologia. Neste sentido, o

uso de ferramentas e aplicativos de Design como a modelagem virtual e o estudo das texturas

dos utensílios contribuíram para a visualização da geometria, das dimensões e do design

propriamente dito dos produtos indígenas.

Referências

BORNAL, W. G., QUEIROZ, C. M. Relatório das escavações do sítio Caninhas, Fundação

Cultural de Jacarehy – Museu Arqueológico do Vale do Paraíba, p. 36, 2005.

CALLON, M.; LATOUR, B. Unscrewing the big leviathans: how do actors macrostructure

reality” In: KNORR, K e CICOUREL, A. Advances in Social Theory and Methodology:

Toward an Integration of Micro and Macro Sociologies. London, Routledge, 1981, p. 277-

303.

LAW, J. Notes on the Theory of the Actor Network: Ordering, Strategy and

Heterogeneity. Centre for Science Studies, Lancaster University, Lancaster LA1 4YN. 1992.

KINDLEIN Jr., W. ODERICH, A.L., PUREZA, J.C.C., TIBURI, F., FOGAZZI, W.

Experiência Interdisciplinar de pós-graduação (Design x Engenharia): Estudo de caso

do Design de utensílios domésticos a partir de estudos de cerâmica Guarani. Revista

Design em Foco, Vol. III [1] jan./jun. 2006, p. 51-62.

LA SALVIA, F., BROCHADO, J. P. Cerâmica Guarani, Posenato Arte e Cultura, Porto

Alegre, RS (1989).

LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro,

1994.

MACHADO, N.T.G., SCHNEIDER P., SCHNEIDER F. Análise parcial sobre a cerâmica

arqueológica do Vale do Taquari, Rio Grande do Sul. Revista Cerâmica 54, 2008, p. 103 –

109.

MORAES, C. A. Arqueologia Tupi no Nordeste de São Paulo: um estudo de

variabilidade artefatual. Dissertação de mestrado obtida no programa de pós-graduação em

65

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014

arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, 2007, p. 1

– 288.

PROUS. A. Arqueologia. Revista Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 36, n. 213, p. 22-28, 2005.

Disponível em:

<http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/resource/download/41398>. Acesso em:

30 ago. 2009.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq pela concessão das bolsas de pesquisa (PIBIC) para os alunos

da FATEA - Salesianas e EEL-USP. Este projeto contou com o Auxílio à Pesquisa do CNPq

– Projeto Universal – 2008 - Processo 481703/2008-0.

Ao Prof. Valdir Brandão, aluno Rafael Nunes e Sr. Ocílio Ferraz pelo apoio na realização

deste trabalho.

66

ECCOM, v. 5, n. 9, jan./jun. 2014