Abbey, Shakespeare and Co.

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Shakespeare, Abbey e cia. Quando aterrissei na terra de Rabelais, estava ansioso para descobrir as paisagens, os cafés e as livrarias que tanto inspiraram os poetas e prosadores que guiaram, de maneira direta ou indireta, o meu percurso literário e portanto a minha vida e carreira. Pressionado por amigos, fui quase obrigado a ir até a livraria – ouso dizer – a mais famosa do mundo, amada por tantos e que gera euforia nos corações apaixonados dos leitores de todo o planeta. A livraria em questão é a Shakespeare and Company. Sim, aquela que aparece em “Antes do pôr-do-sol”, “Meia-Noite em Paris” e “Julie & Julia”. Foi tudo isso que ouvi dos meus amigos, como que ressaltando referências e importâncias, para que eu pudesse largar as minhas malas em casa e sem mais demora batesse na porta daquele simpático prédio, antigo mosteiro do século XVI, situado no número 37 da Rue de la Bûcherie no 5ème arrondissement. Mas nada disso era necessário, pois o meu próprio coração pulsava por essa nova descoberta. E fí-lo porque quí-lo. Foi logo na primeira visita que eu me apaixonei pela livraria. O caos e a desorganização não assustam, antes dão gosto de ver, pois não importa para onde você olhe, haverá sempre pilhas e mais pilhas de livros. Edições lindas, raras, retrôs, novas, usadas. Uma biblioteca no piso superior, um piano que pede por favor para ser tocado. Camas e cadeiras para a leitura no oásis do leitor. Máquinas de escrever que convidam escritores a registrarem suas presenças espalhadas partout. Paredes cobertas de recados, poemas, trechos, fotos. Turistas eufóricos querendo tudo conhecer, tocar e registrar. Livreiros gatos e felizes. O ponto anglófono que te faz esquecer que está na França, mas que ao mesmo tempo é o lugar mais parisiense de toda a capital.

Transcript of Abbey, Shakespeare and Co.

Shakespeare, Abbey e cia.

Quando aterrissei na terra de Rabelais, estava ansioso para descobrir as paisagens, os cafés e as livrarias que tanto inspiraram os poetas e prosadores que guiaram, de maneira direta ou indireta, o meu percurso literário e portanto a minha vida e carreira. Pressionado por amigos, fui quase obrigado a ir até a livraria – ouso dizer – a mais famosa do mundo, amada por tantos eque gera euforia nos corações apaixonados dos leitores de todo o planeta. A livraria em questão é a Shakespeare and Company. Sim, aquela que aparece em “Antes do pôr-do-sol”, “Meia-Noite em Paris”e “Julie & Julia”. Foi tudo isso que ouvi dos meus amigos, como que ressaltando referências e importâncias, para que eu pudesse largar as minhas malas em casa e sem mais demora batesse na porta daquele simpático prédio, antigo mosteiro do século XVI, situado no número 37 da Rue de la Bûcherie no 5ème arrondissement. Mas nada disso era necessário, pois o meu próprio coração pulsava por essa nova descoberta. E fí-lo porque quí-lo. Foi logo na primeira visita que eu me apaixonei pela livraria. O caos e a desorganização não assustam, antes dão gosto de ver, pois não importa para onde você olhe, haverá sempre pilhas e mais pilhas de livros. Edições lindas, raras, retrôs, novas, usadas. Uma biblioteca no piso superior, um piano que pede por favor para ser tocado. Camas e cadeiras para a leitura no oásis do leitor. Máquinas de escrever que convidam escritores a registrarem suas presenças espalhadas partout. Paredes cobertas de recados, poemas, trechos, fotos. Turistas eufóricos querendo tudo conhecer, tocar e registrar. Livreiros gatos e felizes. O ponto anglófono que te faz esquecer que está na França, mas que ao mesmo tempo é o lugar mais parisiense de toda a capital.

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Pilhas e pilhas e um andar mais lindo que o outro

“Por favor, toque-me para que eu não desafine”, diz o piano

A história da livraria por si só demonstra a paixão compartilhada por amantes de literatura. A Shakespeare and Company que todos conhecemos – DENÚNCIA! – não é a livraria original. A livraria querecebeu esse nome pertencia à Sylvia Beach, situada no 8, Rue Dupuytren de 1919-1921 e então no 12, Rue de L'Odéon de 1921-1941,ano da ocupação alemã em Paris e data em que a livraria foi fechada sem que nunca tornasse a abrir. Foi neste antigo endereço que a livraria recebeu nomes importantes como Ernest Hemingway, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e James Joyce, queteve Ulisses publicado por Sylvia em 1922.

Em 1951, outra livraria anglófona é inaugurada pelo americano George Whitman, situada no já conhecido endereço da Rue de Bûcherie, nomeada “Le Mistral”. Nos anos 50, enquanto pulsava a Beat Generation, a livraria tornou-se ponto de encontro e também hospedagem de escritores como Allen Ginsberg, petrificado com os ares parisienses tão diferentes da américa que ele conhecia, William Burroughs que pesquisa nos dicionários médicos ali

disponíveis os detalhes para enriquecer seu Almoço Nú e Gregory Corso que roubou livros até o ponto de ter a sua entrada proibida na livraria. É em 1962, após a morte de Sylvia Beach, que a livraria recebe o nome de Shakespeare and Company perpetuando os esforços de Sylvia. Para que a história não se perdesse, a filha de George e gatíssima nas horas vagas, Sylvia Whitman, foi nomeadaresponsável e proprietária da livraria antes da morte de seu pai em 14 de Dezembro de 2011 aos 98 anos. Com a dura missão de carregar nos ombros toda uma história e primor, Sylvia inovou ao trazer à livraria uma gama de eventos, atrativos e até mesmo a criação de um prêmio literário chamado Paris Literary Prize, além de manter o abrigo de escritores e viajantes sob as regras de seu pai: o hóspede deve ler um livro por dia, trabalhar por pelo menos2 horas na livraria, fazer a sua cama pela manhã e ao sair escrever uma biografia de uma página sobre as experiências. Sobre esse tipo de experiência, vale a pena ler o livro do ex-jornalistae atual escritor Jeremy Mercer, Um Livro por dia – Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company (Casa da Palavra, 2007) em que é narrado os nove meses de estadia em companhia de George Whitman, operíodo de pobreza e felicidade que me lembra um bilhete que encontrei na Shakespeare and Company que dizia “23.05.2014 – When we were very poor and very happy. R+J”. Hoje, o local é visitado por aproximadamente mil pessoas por dia, abriga em suas salas espremidas mais de 80 mil títulos.Para saber mais sobre a história da livraria, há um documentário – que eu só achei em 5 partes no youtube – chamado “A Portrait of a bookstore s an old man beginning” dirigido por Benjamin Sutherl e Gonzague Pichelin.

George e Sylvia Whitman divando since ever

Sylvia Whitman, mais do que um rostinho bonito

Hospede-se no paraíso dos livreiros

Mas como a vida não é feita só de holofotes, aproveito para discorrer um pouco sobre uma livraria pouco conhecida, quase esquecida numa viela pouco movimentada do Quartier Latin, mas que igualmente ganhou meu coração. Trata-se da livraria canadense The Abbey Bookshop, que além da sua bandeira içada, café com xarope canadense e biscoitos, oferece o atendimento carinhoso do proprietário charmoso e quase solitário. A proposta da livraria, igualmente a proposta da Shakespeare, é de trazer um catálogo sobretudo anglófono para o público parisiense, mas também conta com edições francesas. Ela é igualmente pequena e possui a mesma atmosfera de caos harmonioso. Há até mesmo uma cave, uma espécie decaverna mesmo, com livros amontoados e dominando todo o local. As

edições ali vendidas são igualmente lindas, mas tive a impressão de que as edições mais robustas e impactantes estavam ali em maiornúmero do que na livraria de Sylvia Whitman.

The Abbey Bookshop, além dos holofotes

A história da livraria é também permeada de tradição: situada no 9, Rue de la Parcheminerie, a livraria foi inaugurada em 1989 por Brian Spence no que outrora se chamava Rue des écrivains no Hôtel Dubuisson, prédio que data de 1730 e é hoje tombado como patrimônio histórico. A rua era assim chamada pois no século XII era ali que habitavam os escritores e fabricantes de livros responsáveis pelas demandas dos materiais dos primeiros alunos e professores da Université de Paris que oferecia os cursos de filosofia, teologia e literatura. No século XIV, quando houve uma dispersão dos escritores pela região chamada Quartier Latin, a ruaabrigou fabricantes, vendedores e mercadores de pergaminho, razão pela qual a rua foi rebatizada. Ao instaurar a livraria nesta pequena rua, pequena viela Quartier Latin adentro, a livraria retoma a sua participação na história do conhecimento da humanidade.

Uma das tantas estantes

Queria apenas uma das tantas edições de luxo do Sherlock Holmes

O charmoso proprietário terminando o inventário

A famosa “Cave”

A entrada da Abbey

A metalinguagem indicando poesia