A temática da Morte no fenómeno da troca de olhares entre Portugueses e Nipónicos no século XVI

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A temática da Morte no fenómeno da troca de olhares entre Portugueses e Nipónicos no século XVI Trabalho prático redigido no âmbito do seminário de História da Ásia (Temas e Perspectivas) coordenado pela Professora Doutora Maria Leonor Garcia da Cruz Alexandra Carmo Nº 46130

Transcript of A temática da Morte no fenómeno da troca de olhares entre Portugueses e Nipónicos no século XVI

A temática da Morte no fenómeno da troca de olhares entre Portugueses e

Nipónicos no século XVI

Trabalho prático redigido no âmbito do seminário de História da Ásia (Temas e

Perspectivas) coordenado pela Professora Doutora Maria Leonor Garcia da Cruz

Alexandra Carmo

Nº 46130

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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Índice

Introdução ……………………………………………………………..………… pág. 2

Contextualização histórica ……………………………………………...……….. pág. 4

Abordagem à fonte escrita ………………………………………………………. pág. 7

A vivência da Morte na Europa Ocidental medieva-moderna………………..….. pág. 15

Como os portugueses encararam a forma de morrer no território nipónico …….. pag. 23

Conclusão ……………………………………………………………..………… pág. 26

Bibliografia ……………………………………………………………..……….. pág. 28

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Introdução

Desde sempre que temos olhado com relativa naturalidade (nem todas as pessoas

conseguem fazê-lo, é de notar) para o que é o fenómeno da Morte e dos funerais e

cemitérios deste lado do globo. Sabemos que desde a medievalidade se tem seguido um

modelo mais ou menos regular no que toca às práticas e sepulturas.

Porém, continua a permanecer em relativo desconhecimento no que consistem

estas práticas de ritualística e sepultamento dos defuntos do outro lado do planeta,

nomeadamente no arquipélago nipónico. Não é um fenómeno exclusivo à

contemporaneidade. Com efeito, os primeiros portugueses a chegar ao Japão e a relatar

por escrito as práticas deste povo, mostraram eles próprios muita surpresa quando se

depararam com uma cultura que parecia em tudo um oposto da sua.

Este trabalho tem como principal fonte de informação o artigo Shinto funerals in

the Edo Period da autoria de Elizabeth Kenney, pois abordarei especificamente aquilo

que se entendia como funeral xintoista (Xintoismo é a prática religiosa nativa do Japão),

que no século XVI é uma novidade, apesar de os seus defensores/criadores afirmarem a

sua remota antiguidade, devendo-se isto a factores políticos e uma certa oposição ao

monopólio budista da morte, que ainda hoje permanece, de facto.

Como reforço à análise do artigo de Kenney, e para complementar a visão da

Morte no mundo ocidental, recorri à obra de Philippe Ariés: Sobre a História da Morte

no Ocidente desde a Idade Média, que se revelou um valioso manacial de informações

muitíssimo interessantes para este campo de investigação.

Finalmente, para dar a conhecer o ponto de vista dos portugueses que em

primeira-mão vivenciaram para depois relatar as vivências do povo japonês, recorri aos

relatos de Jorge Álvares e Luís Fróis, que são dois célebres autores nesta área em

particular, pelo grande detalhe com que relatam para o público europeu o que são as

vivências e quotidianos destas pessoas à primeira vista tão estranhas e diferentes dos

portugueses, o que nunca invalidou, ainda assim a formação de uma amizade entre os

dois países que ainda nos dias de hoje permance, tendo-se assinalado o seu 470º

aniversário em 2013.

Tentarei ao longo dos capítulos interpretar a informação ao mesmo tempo que as

exponho, numa tentativa de estabelecer os choques e os pontos de união entre estas duas

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culturas que à primeira vista parecem opostas e, até quase incompatíveis nas suas

vivências, quando a realidade não podia ser mais contrária.

Este trabalho serviu também para aprofundar conhecimentos no que toca à

selecção de fontes a partir das fontes usadas, que estarão explicitadas no final, na secção

reservada à Bibliografia.

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Contextualização histórica

O perído de tempo entendido como o século XVI, para o território português

abrange, em suma, os reinados de D. João II (final), D. Manuel, D. João III e D.

Sebastião, seguidos pela dinastia Filipina, na sequência da crise dinástica causada pelo

desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir.

No início do século XVI, o domínio português no Norte de Africa tinha já sido

consolidado por acção de D. João II (MATTOSO; 1993; p. 105) e o constrolo das

subsequentes perturbações e revoltas serviam como forma de o rei português

demonstrar o seu domínio e poderio militar perante os Reis Católicos (MATTOSO;

1993; p.106). O rei rodeia-se de um exército tradicional, besteiros e guarda pessoal,

resultante da sua desconfiança bem como de conspirações contra a sua vida, o que

culminará na morte do Duque de Bragança às mãos do prórpio monarca (MATTOSO;

1993; p. 106).

Sucede-lhe D. Manuel, que se vê obrigado a fazer novos recrutamentos de

homens para o exército devido ao agravar do conflito pelas praças marroquinas,

nomeadamente a de Arzila, em 1508 (MATTOSO; 1993; p. 106). Também este rei

mantém uma guarda pessoal e as práticas tradicionais, no sentido de não as perturbar

com a formação de um exército moderno. Acrescenta apenas um corpo de homens

pagos pelo Reino ao serviço da Corte. O recrutamento estava reservado à realeza,

reflectindo a partilha do poder régio com os grandes senhores da Nobreza, apesar da

necessidade de se pôr em prática uma reforma face aos socorros ao Norte de África e

Algarve (MATTOSO; 1993; p. 107).

Já no reinado de D. João III era agora mais imperativo que nunca reformular o

exército para se voltar a consolidar o poderio português no Norte de África. São

reformadas as praças de Ceuta, Tânger e Mazagão e abandonam-se as de Safim,

Azamor, Arzila e Alcácer Seguer entre 1541 e 1549. Contribuiu também para este

fenómeno a pirataria, cuja acção terá obrigado à instalação de arqueiros nestas

fortificações restauradas (MATTOSO; 1993; p. 108). Corria o ano de 1549, D. João III

determina a obrigação de recrutar todos os homens entre os 20 e os 65 anos de idade,

mantendo os velhos princípios, como o do armamento (cada homem levava o que

possuísse) (MATTOSO; 1993; p. 108). Porém, persistiam os ataques piratas, o que

levam à extrema necessidade de estabelecer organizações militares locais nas praças

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marroquinas com artilheiros permanentes. Aliado a isto, realce-se o crescente poder

mouro, que leva em 1562 ao Cerco de Mazagão, que terá levado a um breve reforço do

exército apesar de, ainda assim, o monarca não abandonar os modelos tradicionais,

mantendo a estrutura típica dos besteiros e espingardeiros em conjunto (MATTOSO;

1993; p. 109).

A D. João III sucede D. Sebastião, que reforça ainda mais as leis de carácter

militar, obrigando os recrutas a possuir cavalos e armas, sendo que quanto mais ricos

mais recursos deveriam possuir. Acrescenta também a regra que os grandes senhores

deveriam armar os seus homens às suas próprias custas, tanto os que andassem a pé

como os a cavalo. Estes homens deveriam integrar permanentemente um corpo militar

no qual teriam posições fixas, em que cada unidade seria liderada por um capitão de

companhia, um alferes e um sargento. Este capitão-mor seria já a priori o alcaide-mor

de uma localidade, sendo de notar que caso estes não regressassem de combate, as

câmaras elegeriam um novo alcaide para o substituir, tomando também esse lugar no

corpo militar (MATTOSO; 1993; p. 109).

O jovem monarca aproveita esta estrutura já existente e confia às câmaras a

tarefa de enquadrar e se responsabilizar pela organização militar e do território. Cria-se,

desta forma, uma rede de influências que revestia de poder os capitães-mores, que

podiam agora levar os seus homens para o campo de batalha, bem como escolher quem

era apto e quem não o era para os seus corpos de exército. Este era um rei muito

vocacionado para as artes bélicas, integrando com muita frequência treinos e paradas

militares, bem como grandes festas e procissões. D. Sebastião recorria também às

Ordenanças para recrutar cada vez mais homens, necessários aos seus planos de guerra

em território marroquino, que culminariam no infame episódio da Batalha de Alcácer

Quibir, da qual muitíssimo poucos portugueses regressaram, não estando aqui incluido o

próprio rei. Assim, em 1580, era já evidente o grande enfraquecimento do reino de

Portugal, agravado, em simultâneo, por um novo surto de peste, que terá colaborado

para o dizimar ainda maior da população, bem como para o impedimento de muitos

lugares. (MATTOSO; 1993; p. 110).

As derrotas militares continuam, o que leva à crescente desmoralização e

desorganização das tropas lusitanas. Consequentemente, o território português, que

estava já a atravessar uma crise dinástica, é rapidamente conquistado pelo duque de

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Alba e torna-se parte do domínio castelhano, iniciando-se assim a Dinastia Filipina em

Portugal (MATTOSO; 1993; p. 111).

Estas linhas trataram-se apenas de uma pequena contextualização de foro militar

e organizacional. Simultaneamente, Portugal no século XVI atravesse a célebre fase dos

Descobrimentos, no qual se insere a parte da temática deste trabalho, que é o olhar, ou

melhor, a troca de olhares entre ocidentais e orientais, neste caso, entre portugueses e

japoneses, naquilo que foi um choque entre culturas, que nesta pequena disseretação se

restringirá à temática da morte.

Entretanto, em território nipónico neste mesmo período cronológico,

atravessava-se a fase da Unificação do território, marcada por inúmeras e sangrentas

batalhas, inserindo-se a chegada portuguesa ao Japão naquele que é conhecido como o

período Azuchi-Momoyama, já na recta final da unificação nipónica (HENSHALL;

2004; pp. 64).

Com efeito, a unificação japonesa deve-se a três homens, hoje considerados

heróis nacionais: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, todos

governadores de regiões que através de hábeis manobras políticas e forjar de alianças

conduzem o arquipélago japonês à união territorial que hoje conhecemos (HENSHALL;

2004; pp. 65). Ao mesmo tempo que tudo isto ocorre, a nível local, especialmente a

partir de Tanegashima e Nagasaki começa a intensificar-se o choque e o fascínio inter-

cultural entre portugueses e japoneses, que resultará em relatos muito diversos que

descrevem desde a fisionomia aos costumes e práticas de um lado e de outro, tendo tido

especial difusão na Europa os tratados e relatos de Luís Fróis, que serão adiante

brevemente explorados, e outros autores, que por acção dos jesuitas vêm os seus

trabalhos ser amplamente divulgados pelos países do continente Europeu.

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Abordagem à fonte escrita

A fonte escrita, que é o ponto de partida para esta dissertação consiste num

artigo que ilustra o fenómeno dos funerais xintoistas a partir de fontes primárias e

secundárias, na forma de exemplos práticos, e será neste capítulo abordada e

contextualizada.

A partir de meados/finais do período Edo começam a ser criadas novas “formas

antigas de Xintoismo” que abrangiam os rituais fúnebres, onde se destacava a

preocupação com o destino do corpo e a manutenção dos laços de união entre vivos e

mortos (KENNEY; 2000; p. 239). Ainda antes do período Edo, ou Tokugawa, em finais

do século XVI, os membros da família Yoshida, um clã com grande estatuto social e

religioso, tornam-se os primeiros praticantes destes funerais inovadores de “inspiração

tradicional” e redigem o primeiro código ritualístico, ou manual de funerais xintoistas.

Vivia-se então num contexto em que todos os japoneses deveriam pertencer a

um templo budista, até mesmo os sacerdotes xintoistas, pois eram estes templos que

executavam os rituais funerários e vigiavam a prática cristã trazida pelos portugueses,

neste contexto ilegal. Já em pleno perído Edo,a partir de 1758, o Estado permite que

sacerdotes xintoistas e seus descendentes do sexo masculino tenham funerais xintoistas,

isto se tiverem autorização prévia dos sacerdotes da família Yoshida, sendo que os

restantes membros da sociedade poderiam apenas ter funerais budistas (KENNEY, 2000,

p. 240).

Com efeito, só no período Meiji, toda a população é autorizada a ter funerais

xintoistas, que são, apesar de tudo, relativamente recentes, sendo que o mais antigo

manual a estes referente tem cerca de 400 anos, tendo estes funerais sido criados e

totalmente oficializados no período Edo por sacerdotes xintoistas que defendiam que

estes rituais pré-datavam a chegada do Busdismo ao território japonês, nos séculos

VII/VIII da nossa era (KENNEY; 2000; pp. 241-242).

O primeiro caso apresentado é o da morte e funeral de Yoshida Kanehiro no ano

de 1402 em que, de acordo com o relatado no diário de seu filho, Yoshida Kaneatsu,

terá deixad este mundo em paz e orando o nenbutsu, que é a prece budista, sendo que

uma semana antes da sua morte teria celebrado votos budistas e que o seu funeral terá

também sido desta natureza. O relato continua, afirmando que com a aproximação da

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morte de Kanehiro, todos os membros Yoshida que tivessem funções sacerdotais

xintoistas, tiveram que se afastar do local com o objectivo de não serem afectados pela

poluição da morte. É de notar que enquanto Kanehiro soltava os seus últimos suspiros

os seus únicos acompanhantes eram os monges budistas, que cuidaram depois do seu

corpo e o levaram para o templo para se celebrar o funeral. Kaneatsu revela nos escritos

sentimentos de frustração e tristeza, pois ele próprio, enquanto sacerdote xintoista, não

pôde permanecer ao lado de seu pai até ao fim nem banhar ou vestir o corpo. A sua

condição socio-religiosa proibía-o de tal coisa (KENNEY; 2000; pp. 242).

Kaneatsu não era o único a nutrir estes sentimentos, pois xintoistas no geral e,

em especial os sacerdotes, não apreciavam particularmente que a morte fosse

monopolizada pelos praticantes do budismo. Assim, os próprios sacerdotes xintoistas

começam a ocupar-se destas cerimónias, continuando a executar a ritualística budista e

a conviver com os monges, o que revela que a separação apenas foi parcial, no sentido

em que o Budismo estava apenas separado nas questões da ritualística funerária. Isto

terá sido de grande importância, como é evidente pelo caso da família Yoshida,

revestindo-se de grande importância espiritual e emocional, pois os sacerdotes deixam

de ser obrigados a afastar-se. Este primeiro caso é explicativo para o surgimento deste

fenómeno do período Edo, que é os funerais xintoistas. Trata-se, em suma, de um

confronto aos monges budistas e à sua exclusividade em relação ao morrer e às

cerimónias associadas (KENNEY; 2000; p. 243)

O relato seguinte diz também respeito ao clã Yoshida, desta feita, apresenta-nos

os pontos de vista de Yoshida Kanemi face à morte e funeral de seu pai, Yoshida

Kanemagi, em 1573. A cerimónia fúnebre começa ainda antes da morte propriamente

dita, ou seja, assume a forma de preces pelo moribundo e administração de medicações

altamente ritualizadas, combinando as duas facetas religiosas japonesas no aspecto em

que os rituais propriamente ditos são executados por mestres xintoistas e os materiais e

medicamento são trazidos pelos monges budistas (KENNEY; 2000; p. 243)

Ora tudo parece ter começado no Inverno de 1572, em que Kanemigi, de 57 anos,

adoece gravemente, apesar de três meses antes estar de perfeita saúde, adoecendo no

final do 9º mês (frise-se que nesta altura no Japão era usado o calendário lunar, à

semelhança da China). Com o surgimento desta grave condição de Kanemigi, o seu

filho Kanemi recita fórmulas de purificação xintoista, repetidas 360 vezes na esperança

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de curar a maleita do seu pai. Porém, a meio do 10º mês o problema de saúde de

Kanemigi e no 11º dia desse mês Kanemi e um grupo de sacerdotes decoram o quarto

do moribundo com um dragão e os nomes de 64 kami (divindades xintoistas). De

seguida são feitos rituais budistas e são invocados os espíritos dos antepassados

Yoshida. O relato continua fazendo menção ao que se passou em alguns dias do mês: no

18º dia é pintado o retrato do moribundo (estes retratos pintados são normalmente

usados nos funerais); ao 22º dia Kanemigi é visitado por amigos e toma mais

medicamentos; no 23º dia um mestre xintoista executa 100 ritos purificantes. Com a

chegada do 11º mês, vêm mais amigos do moribundo para o visitar e pernoitam no

templo, onde bebem sake e dançam nessa noite. O estado de Kanemigi teria melhorado

ligeiramente e no 25º dia deste mês ele e o seu filho visitam um amigo e vão a um

templo xintoista onde tratam de questões religiosas (KENNEY; 2000; p. 244).

Já no 1º mês do ano de 1574, o estado de saúde de Kanemigi agrava-se e este vê-

se obrigado a tomar mais medicações (KENNEY; 2000; p. 244). No 8º dia é visitado

por monges budistas que rezam pela sua saúde e é também neste dia que o moribundo

redige o seu testamento, no qual afirma qual o tipo de funeral que pretende. Dá

instruções para que o seu corpo seja enterrado a Este de Kannon (divindade feminina

budista japonesa) e que por cima da sua sepultura seja construido um santuário xintoista.

Para além disto, pede também que seja construída uma casa mortuária para albergar a

sua urna antes do funeral. O seu estado é já irreversivel, e ele aparenta ter noção plena

disso. No dia seguinte, pede que os seus familiares se reúnam com ele e, enquanto a

família chora ele fala com o neto. Por fim, ao 10º dia do 1º mês do ano de 1574,

Kanemigi solta o seu último suspiro por volta das dez horas da manhã (KENNEY;

2000; p. 244).

Ao 14º dia, após a lavagem e colocação do corpo no caixão, o funeral tem início

às duas horas da manhã. O caixão, coberto com um pano, é colocado na casa mortuária

e é de frisar que nenhum monge budista esteve presente. Aparentemente, de acordo com

esta fonte, era este aspecto em específico que tornava um funeral especificamente

xintoista. No dia seguinte, Kanemi cessa as suas actividades enquanto sacerdote, pois

estava poluído pela morte do seu pai. Desta vez verifica-se a participação de monges

budistas, que executam rituais pela existência intermédia de Kanemigi, ou seja, o

período de tempo até ao seu renascimento. No 16º dia, Kanemi copia o sutra do Lótus,

uma acção meditativa e comulativa de bom karma e no dia seguinte executa rituais de

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oferendas aos espíritos famintos, para que não dificultem a existência intermédia do seu

pai. No 21º dia é feito mais um conjunto de rituais budistas e ao 25º dia o período de

existência intermédia (por norma de 10 dias) termina, pelo que os monges abandonam o

santuário. Dois dias depois Kanemi termina a sua cópia do sutra do Lótus e dedica-a à

memória do seu pai (KENNEY; 2000; p. 245).

É de enfatisar o facto de Kanemi não nos apresentar muitos detalhes sobre o

funeral propriamente dito nem o que o torna propriamente xintoista, além da exclusão

deliberada dos monges budistas. No manual funerário da sua autoria (ver Bibliografia),

Kanemi descreve um ritual em que se fazem oferendas de lanternas, flores, sake, comida,

água quente e arroz bem como a queima de incenso. Escreve também que o corpo é

enterrado levando consigo frases específicas, por exemplo: “A vida é o início da morte.

A morte é o fim da vida.” (KENNEY; 2000; p. 246).

Em relação à inumação propriamente dita, não era invulgar na população, porém,

nos estratos mais elevados, era uma especificidade da família Yoshida em oposição à

prática budista da cremação. Contudo, note-se que os primeiros membros da família

Yoshida não tinham sido enterrados, mas sim cremados, tendo os seus ossos sido

levados e depositados no monte Koya, em relação à crença xintoista que os espíritos dos

defuntos habitavam nas montanhas. Vê-se assim, nestes primeiros tempos, um certo

hibridismo de práticas, que tende a mutar-se com o passar do tempo (KENNEY; 2000; p.

246). Segundo o relato, os rituais budistas feitos antes e depois da cerimónia fúnebre em

nada parecem ter perturbado o que se tentou fazer de manter um carácter estritamente

xintoista (KENNEY; 2000; p. 247)

Após a construção do santuário xintoistas sobre a sepultura de Kanemigi,

Kanemi executava oferendas mensais no local, porém, por estar ainda poluído pela

mácula da morte, este era o único ritual que podia praticar, pois durante pelo menos,

seis meses, nem poderia sequer deslocar-se ao templo imperial (o Imperador é o sumo-

sacerdote xintoista) nem executar qualquer rito no santuário a que presidia, pois levava

consigo a morte e a sua poluição (KENNEY; 2000; p. 247).

Logo após o funeral, voltando um pouco atrás, têm início os ritos post-mortem e

no 10º dia (pois foi neste dia do mês que Kanemigi morreu) de cada mês Kanemi

deslocava-se ao santuário do seu pai para fazer oferendas xintoistas (por exemplo, sake)

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ou queimar incenso (de carácter budista). Segundo o seu relato, terá mantido esta rotina

pelo menos durante os 11 anos seguintes (KENNEY; 2000; p. 247).

Com o assinalar do 50º ano após a morte de Kanemigi, são feitos variados ritos e

no dia exacto da morte do antepassado, faz-se uma cerimónia no santuário a ele erigido,

estando o próprio enterrado por baixo do edifício, tendo, porém, uma sepultura

superficial onde estaria enterrado um objecto simbólico (KENNEY; 2000; p. 247).

O segundo caso que Elizabeth Kenney aborda, situando-se um pouco mais

tardiamente no tempo, é o da morte e funeral de Nemoto Tanemaro em 1764

(KENNEY; 2000; p. 248), que segundo os relatos apresentados pela autora terá falecido

aos 74 anos de idade e cujo funeral terá sido descrito pelo seu sobrinho, Fujiwara

Mikimaro e posteriormente, terá este relato sido rectificado pelo neto do defunto,

Nemoto Yoshitane. Á data da sua morte, Tanemaro seria sacerdote num santuário

xintoista naquela que é hoje a cidade de Chiba (KENNEY; 2000; p. 248).

Tanemaro terá eliminado do santuário tudo o que era até remotamente de

influência budista aquando da sua ascensão a sacerdote, o que se reflectiu até nas suas

exéquias, que alegadamente se terão inspirados nas crónicas históricas Kojiki e

Nihonshoki, seguindo os antigos modelos e aliando também aspectos daquilo que se

considera como religião popular (KENNEY; 2000; p. 249).

Não se sabe com precisão, mas o mais provável é que a cerimónia fúnebre tenha

sido feita de acordo com os pedidos do moribundo, apesar de não se fazerem aqui

quaisquer referências ao dito (KENNEY; 2000; p. 249), logo, não se sabe se terá

redigido testamento ou se terá feito actos semelhantes aos do moribundo já apresentado.

Sabe-se, sim, é que este foi um funeral muitíssimo mais elaborado do que o de

Yoshida, em que foi necessária a participação de amigos e familiares em funções

diversas. Porém, comece-se pelo princípio. Antes do funeral foi necessário preparar a

casa do defunto, bem como, fazer roupas e chapéus específicos para cada função,

juntamente com toda a parafernália de objectos associada e também distribuir todas as

tarefas. Na fachada da casa pendurou-se um pano branco em sinal do luto da família. No

exterior constrói-se uma cainha mortuária para a cerimónia fúnebre juntamente com um

portão temporário, para fazer com que a mácula da morte siga um percurso diferente

daquele seguido pelos vivos, que se devem manter puros. Em relação às diferentes

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funções, familiares e amigos desempenham papéis diversos enquadrados nas crónicas

tradicionais e na religião popular, por exemplo: Nakime (carpideiras e lamentadores),

Monomasa (é como um actor que desempenha o papel do defunto entre os vivos),

Yocho (os que seguram e carregam o caixão) e Kutsu-mochi (seguradores dos sapatos,

que simbolizam o caminho do defunto para o Além; pensa-se que esta função teria um

papel xamanístico), entre outras tarefas, inúmeras neste caso em particular (KENNEY;

2000; p. 249-251).

Os membros na função de Fazedores de Algodão (Watatsukuri), além de serem

responsáveis pelo algodão colocado no caixão para impedir que o corpo se desloque

demasiado, estão também encarregues da lavagem do corpo do defunto. Como já se

disse, colocam algodão no fundo do caixão e depositam depois o corpo, virado para

cima e ostentando um talismã. De seguida, o Monomasa purifica o caixão e fecha-o,

sendo levado para a casa mortuária onde permanecerá durante três dias (KENNEY;

2000; p. 252-253).

Passados estes três dias, a família e os amigos do defunto reúnem-se com os

oficiantes e músicos, dentro ou perto da casa mortuária. A cerimónia começa com o

monomasa a colocar-se de frente para a urna, perante a qual se curva e bate palmas, um

acto de cariz xintoista, pois é desta forma que se ora num santuário consagrado a kami.

Após esta pequena chamada de atenção ao espírito do defunto, o mikebito faz oferendas

de comida em frente ao caixão, sendo que antes ou após esta oferenda, os restantes

participantes terão comido ou irão comer, porém não é especificado exactamente que

comida ingerem. Depois de terminarem a refeição, os enlutados batem com os

pauzinhos que usaram para comer, como se fosse um aplauso, que neste caso simboliza

o choro causado pelo desgosto da perda. Enquanto isto acontece, o monomasa lê uma

oração ao espírito do defunto (KENNEY; 2000; p. 253).

Posto isto, começa a procissão fúnebre e aqui o relato fala de 66 intervenientes a

quem foi atribuida uma das funções já mencionadas, admitindo-se até, que ao todo,

tivessem estado neste funeral mais de 100 pessoas (KENNEY; 2000; p. 254).

Destinadas aos homens estavam as tarefas de carregar o caixão, sendo que para este

efeito foram destacados quatro indivíduos, enquanto outros carregavam objectos

específicos: tochas, bandeiras, vassouras, lanternas, sacos, uma espada e um bastão. Não

está especificada qual a função exacta de cada um destes símbolos, mas penso que será

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admissível considerar que o seu uso se tenha inspirado nas crónicas tradicionais e em

aspectos ancestrais da religião popular. Pouco usual neste tipo de cerimónia xintoista é

o uso de músicos, porém a música está bem presente em episódios célebres relatados

nas crónicas. É também mencionado que dois homens levavam um cavalo, que o autor

do relato considera pertencer a Nemoto ou então simbolizar um cavalo que pertencesse

a um kami. Outros indivíduos, cuja função era a de Fukuro-o, ou seja, carregadores de

sacas, transportavam dentro destas as roupas do defunto. Cada uma das sacas levava um

ho e um hakama (partes integrantes do vestuário tradicional masculino japonês) que

teriam sido propriedade de Nemoto durante a sua vida (KENNEY; 2000; p. 255)

O cortejo fúnebre chega ao fim com a chegada ao local onde está escavada a

vala que será a última morada de Nemoto. O local da vala e a abertura da mesma dizem

respeito a uma outra das funções atribuidas aos participantes: a de yama-tsukuri, ou seja,

fazedores de sepulturas. Após a colocação da urna em frente à vala, alguns participantes

sentam-se, enquanto outros preparam uma mesa alta à frente do caixão. Nesta mesa o

mikebito coloca sake e fruta acompanhados de uma prece para que o espírito aceite estes

alimentos. O monomasa dirige-se então ao caixão, faz uma vénia e bate palmas

novamente, pega em dois pauzinhos e espeta-os na vertical numa taça de arroz (um acto

ainda nos dias de hoje praticado, que noutras circunstâncias para além dos funerais, é

considerado altamente rude). Espalha sal, para purificar, oferece água e oito tipos

diferentes de cereais (revela o carácter agrícola do xintoismo). Os homens encarregues

do transporte das sacas são chamados por um assistente, que tira as roupas de dentro das

ditas e passa-as ao monomasa que as segura, eleva e as usa como adereço para uma

dança (possível reminiscência das danças kagura, de carácter xamânico). Após este rito,

desconhece-se o destino dado às peças de vestuário do defunto (KENNEY; 2000; p.

255).

Depois de terminar a dança o monomasa lê um sumário da vida do defunto, que

termina com uma referência e um lamento à efemeridade da vida humana e a tristeza da

perda de um ente querido (KENNEY; 2000; p. 256)

Com o findar destas cerimónias, os familiares e amigos do defunto regressam a

casa e só depois disto é que tem lugar a inumação da urna. De acordo com o relato da

época, na vala colocou-se carvão e cinzas juntamente com o caixão, sendo depois

coberta com terra que é empilhada em forma de ovo. Precisamente nesse local foi

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plantada uma árvore e nos seus ramos foi pendurado um espelho e tiras de cânhamo,

que assinalam a sacralidade de carácter xintoista desse sítio. Em redor da sepultura e da

árvore foi construida uma pequena cerca. Desta forma teve fim a cerimónia fúnebre de

Nemoto Tanemaro. Nesse mesmo dia, na casa da família é montado o altar em honra do

espírito do defunto e é lá colocada a tabuleta memorial. É neste altar que se fazem as

oferendas de comida e preces ao defunto (KENNEY; 2000; p. 256).

Exactamente 30 dias depois do funeral, o mikebito, Yoshida Sakyo, terá

purificado a casa da família, de forma a livrar o espaço da poluição da morte, sendo que

para este efeito, muda também o fogo da lareira da casa. A partir daqui, os membros da

família que não exerciam funções religiosas poderiam voltar às suas actividades

mundanas. Quanto ao filho do defunto, deve passar 50 dias em luto confinado a uma

cabana. Após esse período poderia retomar as suas actividades se estas não fossem de

carácter religioso, sendo que nesse caso teria de deixar passar mais algum tempo, de

forma a livrar-se da impureza da morte (KENNEY; 2000; p. 256).

Passado um ano após a morte, são feitas mais oferendas ao espírito de Nemoto e

familiares e amigos reúnem-se uma vez mais e partilham uma refeição simples,

novamente não especificada. A casa e o fogo da lareira são novamente purificados e o

filho de Nemoto podia a partir deste momento deixar de usar as vestes de luto e voltar a

exercer actividades religiosas. Também nesta data é a colocação de uma lápide na

sepultura. Directamente à frente desta lápide é colocado um portão torii (ao passar-se

um portão deste género, está-se a entrar num local sagrado e purificado em termos

xintoistas), rodeado por uma cerca de pedra (KENNEY; 2000; p. 257).

Em jeito de conclusão, é clara a permanência e continuidade de laços entre vivos

e mortos, como ficou bem patente pelo caso da família Yoshida, cuja prática xintoista

específica afasta a tradicional aversão à morte e ao cadáver, ao acolher os defuntos nos

terrenos dos santuários. Em ambos os exemplos, no momento da inumação constata-se

que os familiares evitam o cadáver, abraçando em vez disso a ligação ao espírito do

antepassado, que é visto como uma força instável que deve ser controlada por via de

oferendas que o apaziguam (KENNEY; 2000; p. 268).

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15

A vivência da Morte na Europa Ocidental medieva-moderna

Neste capítulo será abordada a temática de como era vista a Morte per se e o

Morrer no horizonte europeu medieval-moderno, que é quem como quem diz, neste

caso, dos séculos XII/XIII até aos séculos XV/XVI e ocasionalmente XVII. Servirá este

capítulo para confrontar, de certa forma, o que foi abordado quando se apresentou o

principal escrito aqui em estudo. Os tópicos aqui apresentados e de certa forma

interpretados provém de duas obras de Philip Arriés (ARRIÉS; 1977; 1989).

No caso dos cavaleiros dos romances medievais, a morte não surge sem aviso

prévio e apenas o moribundo tem conhecimentos do templo que ainda lhe resta

(ARRIÉS; 1977; p. 14). Por exemplo: o Grande Sacristão de São Paulo de Narbona ao

pressentir a sua própria morte fez o seu testamento com os monges, confessou-se,

recebeu o corpus domini na igreja e aí soltou o seu último suspiro. Estes

pressentimentos poderiam ter um carácter maravilhoso, na forma de aparição de

espectros e visões de defuntos e indivíduos desaparecidos (ARRIÉS; 1977; p. 15).

Tambem Isolda, no célebre romance Tristão e Isolda, ao deparar-se com o corpo

sem vida de Tristão, deita-se junto dele virada para Oriente e aí perece também, após ter

pressentido que tal aconteceria (ARRIÉS; 1989; p. 22)

Os mortos são omnipresentes entre os vivos, mas só os moribundos que em

breve a eles se juntarão os conseguem ver, sendo que entre os séculos XVIII-XX estes

pressentimentos são desvalorizados e relegados para o campo da superstição. No século

XVIII o autor Gilbert Grimmaud não nega a possibilidade de existência destas aparições

mas defende que o que as torna tão assustadoras seja o carácter supersticioso do qual se

revestem (ARRIÉS; 1977; p. 16).

Com o Romantismo, encara-se com naturalidade o facto de a morte se fazer

anunciar, porém, isto não impede a revolta de algumas pessoas a quem a morte é

anunciada, como a jovem italiana que ao saber da proximidade da sua própria morte,

devido a uma doença que a assolava, teria vestido as suas melhores peças e se tenha

entregue a Satanás em sinal de revolta e desafio a Deus (ARRIÉS; 1977; p 17).

Por vezes era também revelado ao moribundo como iria ser cada um dos seus

últimos dias, como foi o caso da Madame de Rhert que manda preparar as suas próprias

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16

exéquias, prepara tudo o que é necessário e por fim, morre no dia e hora que havia

previsto (ARRIÉS; 1977; p. 17).

De facto, é visto como ridícula a tentativa de se ignorar o aviso prévio de que se

vai morrer em breve (ARRIÉS; 1977; p. 18).

Um outro exemplo de clarividência está patente nos casos dos membros da

família Pouget que ao sentirem que os seus fins se aproximam, agem de forma prática e

logo tratam de chamar um padre para administrar a extrema-unção (ARRIÉS; 1977; p.

19).

Contudo, há a notar o carácter assustador do fenómeno da Mors Repentina, uma

morte não dava tempo para a aceitação, que vinha sem aviso e era por vezes

considerada o produto da cólera de Deus e que, por isso era vista como infame e

vergonhosa. Exemplo disto é a morte de Gaheris, no Romance da Távola Redonda,

morte essa por envenenamento através de um fruto oferecido por Gueniévre. Artur

refere-se a esta forma de morrer como vil e feia (ARRIÉS; 1977; p. 19).

A morte repentina era vista como vil, assustadora, estranha e monstruosa e dela

ninguém falava. Era uma morte feia. Nesta categoria inseriam-se também as mortes

clandestinas, sem testemunhas nem rituais, como as mortes de viajantes, afogamentos e

mortes sem razão aparente. Estas mortes súbitas eram sinais de uma maldição, que no

ver medieval poderia apenas provir da ira de Deus. (ARRIÉS; 1977; p. 20).

Quem morre devido a uma maldição fica poluído, ou manchado, pela morte que

teve, sendo uma maldição de morte motivada por causas como o adultério, o roubo e o

jogo. Frise-se ainda que as vítimas de assassinato ficavam sujeitas a uma penalização

monetária, segundo Thomassin (THOMASSIN; 1970) (ARRIÉS; 1977; p. 21).

Porém, em 1279 num concílio em Buda, define-se que esta penalização não se

podia impôr, e que a quem tivesse uma morte acidental seria dada uma sepultura cristã,

desde que antes da sua morte o indivíduo tivesse mostrado penitência.

Considerada como morte vergonhosa era a dos condenados, a quem até ao

século XIV era recusada reconciliação religiosa, o que os tornava malditos tanto entre

vivos como mortos.

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17

Quanto aos Nobres, letalmente feridos em combate, a sua agonia dava tempo

suficiente para a realização de cerimónias, mesmo que tivessem que ser abreviadas, pois

tratava-se de uma Morte de Santo (ARRIÉS; 1977; p. 21)

No século XIII surge um novo ideal, em que a morte do cavaleiro só seria boa

mediante certas condições, existindo repugnância pela morte violenta. O sangue adquire

um carácter de sujidade e impureza, bem como os restantes fluidos humanos. Esse

sangue não deveria sujar o Templo de Deus, e nestes casos as missas fúnebres eram

celebradas sem os corpos presentes (ARRIÉS; 1977; p. 22).

Vistas como excepcionais eram as mortes dos santos, pois desde o triunfo de

Cristo sobre a Morte, os cristãos passaram a encará-la com alegria, como um novo

nascimento, em que os corpos dos santos não sofreriam a corrupção causada pela

decomposição (ARRIÉS; 1977; p. 22).

Por outro lado, no mundo da Távola Redonda, a morte é algo simples, como é

patente pelo caso de Lancelote, que ao se aperceber da proximidade da sua própria

morte, estando numa floresta, tira as suas armas, deita-se no chão virado para Oriente,

com os braços em cruz e começa a rezar a Deus (ARRIÉS; 1977; p. 23).

Segundo Durard, o moribundo deve deitar-se de costas e olhar para o Céu,

orientado para Jerusalém e nesta postura pode realizar os seus últimos actos numa

recordação triste e melancólica das coisas e seres que amou, resumindo a sua vida ao

essencial (ARRIÉS; 1977; p. 24). A aceitação da morte que está próxima ocorre pelo

pesar da própria vida, pois o sofrimento e a morte surgem de mãos dadas (ARRIÉS;

1977; p. 25)

Nos momentos finais do moribundo, os seus filhos estão reunidos em seu redor

para dele receberem os conselhos finais e o último adeus. Depois de reflectir sobre a sua

vida, o moribundo pede perdão aos seus companheiros, despede-se deles e recomenda-

os a Deus. (ARRIÉS; 1977; p. 26).

Quanto ao testamento, feito pelo moribundo (escrito ou ditado), tem como uma

das principais razões de ser, a escolha da sepultura (ARRIÉS; 1977; p. 27).

Sucintamente, o testamento medieval dividia-se em: profissão de fé, confissão dos

pecados, perdão dos sobreviventes, disposições piedosas, encomendação da alma e

escolha da sepultura (ARRIÉS; 1977; p. 28).

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18

Depois de se despedir do mundo, o moribundo encomenda a sua alma a Deus na

forma de uma oração final de duas partes: culpa e commendacio animae

(encomendação) (ARRIÉS; 1977; p. 27). Relembre-se, em jeito de parênteses, que no

período cronológico do Romance da Távola Redonda, a extrema-unção estava reservada

aos clérigos e era dada nas igrejas. Posto isto, restava apenas esperar a chegada da morte,

que mesmo sendo lenta, o moribundo aguardará silenciosamente, deixando de

comunicar com o mundo. (ARRIÉS; 1977; p. 28)

O medo de morrer do moribundo só desaparece com o aviso da morte iminente

que conduz à aceitação da mesma. A morte era uma fenómeno público e, com efeito, até

ao século XIX qualquer pessoa poderia entrar no quarto do moribundo, mesmo que se

tratassem de desconhecidos. A morte era um fenómeno publicitado (ARRIÉS; 1977; p.

29)

Consequência da morte, a vida no Além não era considerada como uma mera

continuação da vida mundana e com a chegada da morte, não se sentiria qualquer

ruptura ou vertigem. (ARRIÉS; 1977; p. 33) De facto, cria-se que os mortos dormiam

em silêncio, podendo, no entanto, errar entre os vivos cuja morte estava próxima

(ARRIÉS; 1977; p. 34). Por esta razão, ao orar-se à alma de alguém estava-se a

conceder repouso à dita, que dormiria no jardim florido que é o Paraíso. Quanto ao

Inferno, no velho cânone romano é aqui que as almas esperam por Cristo, é um local de

encontro e não de sofrimento, como depois se vem a tornar (ARRIÉS; 1977; p. 36).

Com a ascensão da ideia de Juízo Final, o Inferno torna-se o reino de Satanás e a

morada permanente dos condenados. Assim ao se sair do mundo dos vivos haveriam

dois destinos possíveis: o "obscuro vale" (Inferno) ou o Paraíso, o "belo Verão"

(ARRIÉS; 1977; p. 37).

Em relação à iconografia, representa-se trono, ou o seio de Abraão, que de certa

forma remete para o feudalismo, e vê-se também no passeio de Rolando que os mortos

se encontram sentados. Esta imagem do seio de Abraão adorna as passagens dos

cemitérios, pois neste entender, os mortos seriam um dia cuidados como crianças nos

joelhos de Abraão (ARRIÉS; 1977; p. 38). A partir do século XII entram em voga as

estátuas jacentes com as mãos cruzadas sobre o peito, em contraste ao Cristianismo

antigo, em que os braços do defunto eram estendidos, reflectindo a nova postura

adoptada pelos moribundos (ARRIÉS; 1989; p. 22).

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19

A partir do século XIII, a familieridade típica do homem medieval com a morte

vai alterar-se subtilmente. O Homem era muito socializado desde criança, sendo que

isto não o separava das leis naturais, que só poderiam ser manipuladas através do acto

milagroso. A inserção plena nas leis da natureza traduzia-se na aceitação incondicional

da Morte. Com o século XIII surgem novas formas de perceber a Morte - o Juízo Final

passa a ser encarado como um fenómeno que surge na hora da morte de cada individuo,

começa a surgir o gosto pelos temas do macabro e da corrupção física (ars moriendi), e

é recuperada a epigrafia funerária, o que leva a uma maior personalização das sepulturas

(ARRIÉS; 1989; p. 31). Abordando a temática do Juízo Final, cuja iconografia

tradicional representando a ressurreição em que os justos estão separados dos maus e as

almas são pesadas por S. Miguel dá lugar à imagem de um tribunal presidido por Jesus e

os apóstolos que o rodeiam. Mantém-se a pesagem da alma mas, desta feita, a Virgem e

S. João intercedem pelas almas, um de cada lado de Cristo. Julga-se o balanço da vida

de cada defunto, em suma, as suas boas e más acções estão separadas nos dois pratos da

balança (ARRIÉS; 1989; p. 32).

A interpretação do Juízo Final muda também no sentido em que isto passa de um

fenómeno que marca o final dos tempos a uma ocorrência na câmara do moribundo,

onde este jaz no seu leito - iconografia destas cenas é típica dos séculos XV e XVI - é a

Ars Moriendi (ARRIÉS; 1989; p. 33). O modelo tradicional dos amigos e parentes que

se reúnem em torno do moribundo mantém-se, porém, paralelamente passa-se algo que

apenas o moribundo consegue ver: seres sobrenaturais surgem à sua cabeceira - de um

lado a Virgem, a Trindade e a corte celeste, do outro o Diabo e sua corte demoníaca,

que é também uma representação típica a partir do século XV (ARRIÉS; 1989; p. 34).

Trata-se de uma luta cósmica, uma disputa das duas forças primordias pelo

moribundo, por um lado. Por outro, a corte celeste está também a analisar o

comportamento do moribundo nestes últimos momentos e que vai determinar o seu

destino eterno, na forma de uma última tentação, pois o moribundo verá de relance tudo

o que fez na sua vida. A atitude que tomar neste momento determinará o destino da sua

alma, podendo os seus pecados ser totalmente anulados se ele não sucumbir a esta

tentação. Esta prova é o Juízo Final (ARRIÉS; 1989; p. 34).

Trata-se de uma contraposição do modelo tradicional da morte - colectivo - a

este novo Juízo Final que apenas o moribundo consegue ver - particular a cada

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20

indivíduo. É um misto do ritual público de morrer com os receios pessoais de cada um

(ARRIÉS; 1989; p. 34).

Isto traduz também o estretitar da relação entre a morte e a biografia de cada

pessoa, uma influência, provavelmente das ordens mendicantes a partir do século XV

(ARRIÉS; 1989; p. 34).

A conclusão dessa biografia será ditada pela acção que o moribundo tomar ao

ver de relance toda a sua vida antes de soltar o último suspiro. Reforça-se desta maneira

o papel do moribundo na cerimónia da morte, pois agora só dele mesmo depende o

desfecho (ARRIÉS; 1989; p. 34).

Com o fenómeno da Contra Reforma, passa a defender-se que mais importante

que uma boa conduta em vida, é aquilo que o indivíduo fizer no último momento, pois a

boa morte absolvia-o de todos os pecados, porém, as circunstâncias da morte

continuavam a ter um papel importante (ARRIÉS; 1989; p. 34).

Tudo isto já aqui aqui abordado aponta para uma resignação ao inevitável,

naquilo que é um misto de insendibilidade, resignação, familieridade e publicidade

(ARRIÉS; 1977; p. 38).

Pode falar-se em coexistência entre vivos e mortos, que se torna um aspecto

estranho desde finais do século XVIII. Neste período medievo-moderno, apesar de a

morte ser algo familiar, os individuos mantinham os mortos afastados e temiam a sua

proximidade. Honravam as sepulturas, sim, mas com o intuito de manter os espíritos

dos defuntos satisfeitos, para que estes não voltassem como espectros e assombrações.

O mundo dos vivos estava seprado do mundo dos mortos e estes não deviam ser

sepultados intra-muralhas, para manter a santidade e pureza das habitações dos vivos

(ARRIÉS; 1989; p. 25). Porém, com o culto dos mártires, sepultados nas necrópoles

extra-urbanas, os mortos entram eventualmente nas cidades, crendo-se que estes

mártires protegeriam os vivos de cair no pecado e no inferno que isso asseguraria.

Assim, os espaços interditos acabam por desaparecer (ARRIÉS; 1989; p. 26).

No entender deste período, o termo "igreja" não designava só o edifício em si,

mas todo o espaço em seu redor, cemitério incluido. Estes espaços eram também usados

para pregações, sacramentos e procissões e no interior da igreja começam também a

sepultar-se defuntos, perto das paredes e sob as goteiras. Assim, “cemitério” designava

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21

o exterior da igreja, que era também o adro ou atrium (ARRIÉS; 1989; p. 27). Constata-

se aqui mais importância para o espaço que cerca a sepultura, de carácter abençoado, do

que a lápide em si. Sinónimo de atrio era chernier, que nos finais da Idade Média passa

a designar os corredores ao longo do pátio da igreja, encimados de ossários. São pátios

rectangulares, em que uma das paredes pertence à igreja, enquanto edifício, sendo que

as outras três paredes se compõem por ossários, onde crânios e ossos longos são

dispostos artisticamente. Estes ossos em exposição provinham das valas comuns dos

mais pobres, onde se empilhavam os cadáveres o mais simplesmente possível sem

mortalha nem caixão. Quando uma vala comum ficava lotada, era fechada e abria-se

outra mais antiga, da qual se tiravam as ossadas já secas que eram tranportadas para os

ossários. Os mortos pertencentes às classes mais altas eram enterrados dentro das igrejas

debaixo das lajes do chão, como ainda nos dias de hoje é perceptível em muitas igrejas

deste período (ARRIÉS; 1989; p. 28).

Contudo, também estes ossos dos mais ricos, iriam eventualmente parar aos

ossários, pois não estava ainda a voga a ideia que se tem hoje da última morada. Com

efeito, nesta época, o destino dado aos ossos era pouco relevante, desde que ficassem

em proximidade de santos ou junto ao altar da Virgem ou do Santíssimo Sacramento,

pois o corpo sem vida era confiado à igreja, que o deveria manter em solo sagrado

(ARRIÉS; 1989; p. 29).

Estes sítios tornam-se públicos também e não é invulgar que aqui se

construissem casas de habitação, que pela sua localização, gozavam de privilégios

fiscais. Eventualmente, estes locais aquirem também o carácter de locais de encontro e

reunião (ARRIÉS; 1989; p. 29).

No século XVII começa a notar-se um certo desconforto perante esta

convivência com os mortos, que se começava a ver como escandalosa, após tantos

séculos de próxima “interacção” entre os vivos e aqueles que tinham cessado de o ser

(ARRIÉS; 1989; p. 29).

Já no século XVI, constata-se uma menor sensibilidade, grande resignação e

resistência que já não mostram apego à vida nem repugnância por morrer (ARRIÉS;

1977; p. 38).

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22

Em relação aos criminosos condenados, é de frisar que estes temem mais o Além

do que confiam nos vivos, sem dúvida pelos actos que praticaram em vida, temem a

condenação eterna.Os monges mendicantes assumem o papel de confessores dos

condenados no século XVI (ARRIÉS; 1977; p. 39).

Em suma, a Morte é próxima, familiar, diminuida, insensibilizada – no fundo,

era como um anmal domesticado. A partir do século XIII, depois de um período de

morte anónima que pauta o início da Idade Média, constata-se o aparecimento, ou

melhor, o reapatrecimento das inscrições funerárias, vulgo epígrafes. Acompanhando a

epígrafe está a efígie, não necessariamente um retrato, sendo que só a partir do século

XIV entram em voga as máscaras de morte feitas a partir dos rostos dos defuntos

(ARRIÉS; 1989; p. 39). Assim, do total anonimato, passa-se à total individualização,

crescente até ao século XVII. Multiplicam-se nas paredes das igrejas, a partir do século

XIII, pequenas epígrafes que tencionam individualizar as sepulturas e perpetuar a

memória dos defuntos, que para além destas placas, previam nos seus testamentos que

os seus parentes e amigos realizassem serviços religiosos pela salvação das suas almas

(ARRIÉS; 1989; p. 40). Aquilo que importava maioritariamente era que se registasse a

identidade do defunto, em detrimento do local exacto onde estava sepultado o seu corpo

(ARRIÉS; 1989; p. 41).

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Como os portugueses encararam a forma de morrer no território nipónico

O primeiro contacto entre Portugueses e Japoneses dá-se no contexto dos

Descobrimentos portugueses, na década de 40 do século XVI, com a chegada de uma

embarcação lusa a Tanega-shima.

Ambos os lados eram movidos pela curiosidade um pelo outro e é neste

momento crucial de contacto que ocorre o tão célebre episódio do tiro da espingarda

portuguesa, arma de fogo essa até aí desconhecida do povo nipónico, que a partir desse

dia gerou tamanha fascinação.

Como seria de esperar a fascinação mútua não se cingiu só a esse aspecto. Com

efeito, são escritas inúmeras crónicas e descrições de costumes por viajantes e oficiais

portugueses que são enviados para a Europa. No campo específico da assistência à

doença e morte, existem também relatos e descrições, é claro, sendo que para este

trabalho considerei relevante o relato de Jorge Álvares (1547) e Luís Fróis (segundo o

seu Tratado publicado em 1585).

Jorge Álvares foi um capitão português que terá supostamente estado em

território nipónico em 1547 na companhia de Fernão Mendes Pinto. No regresso a

Portugal, ao parar em Malaca terá encontrado o Padre Francisco Xavier, que lhe terá

requisitado que escrevesse os seus pontos de vista sobre o Japão. As referências que

serão usadas neste capítulo, quando assim indicadas, pertencem à Informação das

cousas do Japão da autoria deste capitão, que em 1548 terão começado a circular pela

Europa por influência jesuíta, sendo ainda a primeira descrição vivencial em primeira

pessoa do Japão (LOUREIRO; ÁLVARES; 1996; p. 15).

De Álvares não chegou informação muito detalhada relativa à morte e

cerimónias fúnebres propriamente ditas, porém, também relevante para esta dissertação

é a questão da doença e na sua Informação, o capitão português dá a entender que a

assistência a defuntos e doentes é dada pelos mestres xintoistas, que por eles rezam e

fazem rituais. Relata que um grupo de quatro ou cinco sacerdotes e uma sacerdotisa

(possivelmente uma miko) juntamente com as pessoas que pediram o ritual se reunem

no santuário e fazem oferendas de arroz, aveia, sake e caixas e que todos comem desta

aveia e bebem do sake. Os sacerdotes envergam então instrumentos musicais e

parafernália religiosa como guizos e ceptros, tocando os instrumentos e tangendo guizos

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24

e ceptros ao som dos quais a sacerdotisa dança e canta (este ritual é conhecido por dança

Kagura). Depois da dança, come-se mais aveia e bebe-se mais sake (LOUREIRO;

ÁLVARES; 1996; p. 23). Esta trata-se da narração de um ritual de purificação, em que a

miko, com a dança entrari num estado alterado de consciência e desta forma expulsaria

todos os maus espíritos que estivessem a causar a doença ou apaziguaria o espírito do

defunto que estivesse a causar infortúnios à família.

Quanto a Luís Fróis, este foi um missionário português que terá chegado ao

Japão na década de 60 do século XVI. Conviveu proximamente com diversas figuras

célebres da história japonesa, incluindo Oda Nobunaga, em cuja residência terá habitado

durante alguns anos, durante os quais se terá dedicado à escrita, criando as suas obras

mais célebres: Historia de Japam (redigida em finais do século XVI), o seu Tratado das

Contradições e Diferenças de costumes entre a Europa e o Japão (também de finais do

século XVI) bem como inúmeras Cartas descritivas da sua vivência em terras do sol

nascente. Para esta dissertação serão abordados alguns tópicos patentes no Tradado

numa relação de comparação entre Portugal e Japão, acerca de sepulturas, defuntos e a

morte como produto da Justiça, sendo este último apenas uma curiosidade que

considerei de certa forma relevante.

Fróis relata aos seus leitores inúmeros aspectos do quotidiano japonês,

contrapondo-o ao português e em relação aos mortos japoneses, ele tem a dizer que

tanto homens como mulheres são sepultados de cabeça rapada, contrariamente ao caso

português (e europeu no geral) em que os defuntos são sepultados com os cabelos tal

como os tinham no momento da morte (LOUREIRO; FRÓIS; 2001; p. 93).

Curiosamente, o artigo que serve de fonte a esta dissertação não apresenta este aspecto

em nenhum dos seus exemplos práticos, porém é de notar que os ditos exemplos são

provenientes de altos estratos sociais, o que poderá levar a considerar se a prática de

sepultar os mortos será apenas uma questão religiosa ou social ou até mesmo regional.

Quanto às sepulturas, Fróis contrapõem as compridas sepulturas europeias às

japonesas, que diz serem redondas na forma de “meia-pipa”, nas quais os defuntos são

depostos nas respectivas valas depostos em posição fetal amarrados com o rosto entre os

joelhos, contrariamente aos europeus que são sepultados deitados com o rosto virado

para cima (LOUREIRO; FRÓIS; 2001; p. 93). Porém, também os defuntos dos casos

expostos por Kenney são sepultados neste estilo europeu. Contudo, Fróis dá a entender

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25

que os enterramentos propriamente ditos não são muito frequentes, ao contrário do caso

português. Afirma que a cremação é o método mais usual e identifica esta prática como

realizada e ritualizada pelos bonzos budistas (LOUREIRO; FRÓIS; 2001; p. 93).

Informa também os leitores que os retratos dos defuntos japoneses são pregados nas

portas das casas, virados para o exterior e que os parentes dos defuntos oferecem uma

refeição aos participantes nas cerimónias fúnebres, icluindo os bonzos, contrastando

com a situação portuguesa, em que os retratos dos defuntos estão colocados no interior

das casas e os parentes regressam às suas habitações depois de verem enterrar o seu ente

querido (LOUREIRO; FRÓIS; 2001; p. 93). Aqui entra também contraste com os

exemplos apresentados por Kenney, em que os parentes dos defuntos, após a procissão

fúnebre, evitavam o contacto com os corpos e voltavam para casa, deixando o

enterramento dos caixões a cargo dos coveiros.

Passando agora para a questão da administração da pena de morte,

essencialmente, a ideia que Fróis nos transmite é que no Japão de finais do século XVI,

todos podem matar outros indivíduos nas suas casas, sendo considerado estranho matar

animais domésticos. Continuando, Fróis relata também que se é condenado à morte em

território japonês por qualquer tipo de roubo e homicídio, sendo que neste último caso,

quem estiver no local, mesmo que não seja o culpado, provavelmente é também

executado, sendo muito vulgar a morte por crucificação e decapitação como uma forma

de punição para os servos que atraiçoem os seus senhores, não se praticando o

açoitamento ou a mutilação não fatal nem o enforcamento. A decapitação é aplicada

maioritariamente como pena capital. O caso português mostra um grande contraste face

a este agora apresentado, pois em terras luistanas só pode matar outras pessoas quem a

isso está autorizado e não deixa de ser um espanto ver-se morrer outra pessoa. Em

relação à pena de morte por roubos, esta só se aplica se o bem roubado for de muito

precioso valor. Em relação ao homicídio, em Portugal este admite-se em situações de

Justiça e em auto-defesa e, quanto aos servos que merecem ser castigados, não são

decapitados, mas sim açoitados (LOUREIRO; FRÓIS; 2001; p. 137).

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26

Conclusão

Como ficou bem patente ao longo deste trabalho, as diferenças entre culturas

eram bem evidentes, porém, é possível reter alguns aspectos de relativa semelhança.

Nomeadamente, o aspecto do testamento, tão popular na medievalidade ocidental, mas

também no artigo relativo aos funerais xintoistas. Em ambos os casos, serviam para

instruir os parentes naquelas que eram as últimas vontades dos moribundos, incluindo a

escolha da sepultura e, no caso japonês, do tipo de funeral. Tanto num cenário como

noutro não vemos a obrigação de conter as emoções ou a tristeza como se vê, por

exemplo, no caso islâmico, apesar de isto ser apenas um exemplo que aqui não é

relevante.

Em relação às disparidades, considerei como mais evidente a do carácter público

da morte na Europa, em que o moribundo era rodeado no seu leito de morte por pessoas

inúmeras, desconhecidos entre amigos e familiares e padre. No caso japonês, o

moribundo seria acompanhado nos seus últimos momentos pelos bonzos budistas. É

justamente neste contexto que no século XVI surge a ideia do funeral xintoista, pois era

justamente a exclusão de intervenientes budistas e o enterramento do corpo (versus

cremação de cariz budista) que tornavam esta prática xintoista, para além do assinalar

do sítio da sepultura com um santuário ou rocha adornada de cordas abençoadas.

Quanto aos tipos de morte, no caso japonês a autora não especificou no cenário

xintoista o que seria uma boa ou má morte, contudo, através da leitura de obras mais

generalistas acerca desta temática, averiguamos o grande tabu e sentido de profunda

poluição que o sangue, doença e a própria morte representam para a pureza xintoista,

que aliás se trata de conhecimento geral. Em relação à morte, a autora refere, sim, a

proibição do filho de um dos defuntos que, sendo mestre no templo, fica durante certo

tempo proibido de exercer as suas actividades devido à mácula da morte do seu pai.

No caso europeu, não é tanto a transmissão da mácula da morte do parente o

“factor de perigo”, chamemos-lhe assim. O problema reside essencialmente no tipo de

morte que se considera maldita, como seja a morte pela peste e pela condenação por

algum crime cometido. Favorável a ser considerado um morto maldito estavam aqueles

que fossem assassinados e/ou por alguma razão não tivessem tido direito a uma

sepultura em terrerno abençoado, que é como quem diz, no adro da igreja.

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Quanto à morte como pena a aplicar, vê-se no caso japonês uma maior

leviandade, ou melhor dizendo, naturalidade, na sua aplicação, em contraste ao

praticado na cultura portuguesa, tal como Luís Fróis relata na sua obra de Tratado. Um

bom exemplo disto é o de no Japão do século XVI, e mesmo de outros períodos

cronológicos, a dono da casa poder matar impunemente quem invada a sua propriedade.

De facto, Fróis constata com surpresa que no território nipónico era caso de maior

incredulidade o abate de um animal ao invés da morte de outro ser humano, o que para

um observador ocidental teria sido também algo de surpreendente e até talvez, chocante.

Em suma, espero neste trabalho ter conseguido estabelecer pontos de contraste,

inegáveis, é claro, mas também de semelhança, pois a Morte é um fenómeno universal e

apesar de cada civilização a vivenciar à sua maneira, é impossível não encontrar pontos

comuns, nem que sejam os considerados mais básicos, pois o culto ou preservação da

memória dos defuntos é algo tão antigo quanto a própria Humanidade.

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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