A pintura olha para os lados

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JULIO DE MESQUITA FILHOINSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DOUTORADO EM ARTES Fernando Cidade Broggiato A pintura olha para os lados SÃO PAULO 2020

Transcript of A pintura olha para os lados

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JULIO DE MESQUITA FILHO”

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

DOUTORADO EM ARTES

Fernando Cidade Broggiato

A pintura olha para os lados

SÃO PAULO

2020

Fernando Cidade Broggiato

A pintura olha para os lados

Tese submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Artes da Universidade

Estadual Paulista, área de concentração em

Artes Visuais, na linha de pesquisa

Processos e Procedimentos Artísticos,

como requisito parcial para a obtenção do

título de Doutor em Artes, sob orientação do

Prof. Dr. José Paiani Spaniol.

SÃO PAULO

2020

Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp

B866p Broggiato, Fernando Cidade, 1972-

A pintura olha para os lados / Fernando Cidade Broggiato. -

São Paulo, 2020.

2016 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes

1. Pintura - Apreciação. 2. Pintura brasileira. 3. Pastel (Pintura). 4. Desenho - Estudo e ensino. I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título.

CDD 759

(Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666)

TERMO DE APROVAÇÃO

Fernando Cidade Broggiato

A pintura olha para os lados

______________________________________________

Prof. Dr. José Paiani Spaniol

________________________________________________

Profa. Dra. Ana Cândida Franceschini de Avelar Fernandes

________________________________________________

Prof. Dr. Marco Garaude Giannotti

________________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo

________________________________________________

Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento

Data da aprovação ______________________________

Para

Milena

Ana

minha mãe

e minha avó,

com quem um dia fui ao cinema

Agradeço a

Luciano Zanette

Monica Tinoco

Bruno Marcelino

Stefan Schmeling

Daniela Vicentini

Cleverson Oliveira

Gabriele Gomes

Jamila Maia

André Resende

Paulo D’Alessandro

Agnaldo Farias

José Spaniol

Sergio Romagnolo

José Leonardo do Nascimento

Fabiana Mie

Marco Silveira Mello

Izabel Pinheiro

Pollyana Quintella

Ana Avelar

Ewa Rams

Magdalena Ziolkowska

Resumo

A pintura, desde o início do século XX, se distancia da metáfora de uma janela,

através da qual se vislumbra o mundo, como se concebia desde a Renascença, e

passa a se apresentar como um objeto na parede, assemelhando-se, em alguns

aspectos, à escultura. A tese propõe uma reflexão sobre o que persiste de

metafórico no espaço da pintura, e em seus entrecruzamentos com a escultura,

desenho e instalação, levando em conta e apresentando a produção artística de

seu autor, de 2015 a 2020.

Palavras-chave: Pintura. Desenho. Arte brasileira. Pintura contemporânea. Pastel.

Abstract

Painting, since the begining of the twentieth century, has distanced itself from the

metaphor of a window through which one glimpses the world, as it was conceived

since the Renaissance, and now presents itself as an object on the wall, resembling

sculpture. The thesis proposes a reflection on what remains metaphorical in the

space of painting, and its intersections with sculpture, drawing and installation art,

taking into account and presenting the artistic production of its author, from 2015 to

2020.

Keywords: Painting. Drawing. Brazilian art. Contemporary painting. Pastel.

Sumário

Introdução 09

1. Espelho no espelho 13

2. O quadro olha para os lados 34

3. O pássaro azul ou A pintura fora do quadro 90

4. De pinturas de desenhos a desenhos de pinturas 139

Palavras finais 207

Referências 212

9

Introdução

Imagine: alguém aponta para um lugar na íris de um olho pintado à

maneira de Rembrandt e diz: “As paredes do meu quarto devem ser

pintadas nesta cor.”1

Anos atrás, fui ao cinema com minha avó, assistir a um filme iraniano. Nos

primeiros instantes, intrigada diante dos créditos em caracteres árabes, ela

observou que aquela escrita “era feita de riscos”.

Nossa escrita, portanto, seria feita de outra coisa? Uma vez que somos

capazes de ler, jamais poderemos ver de outra forma, e o nome escrito de um ator,

não importa que fonte tenha sido usada, nos remeterá à sua imagem, muito mais

que o desenho de sua grafia. Se não o conhecermos, ou mesmo o que estiver

escrito for incompreensível, imaginaremos imediatamente os fonemas da palavra

ou frase. Riscos, mesmo, só vemos em línguas estranhas.

Na fundação da pintura está a ilusão. A sua construção como arte está

vinculada à ideia de que olhamos manchas e cores e vemos outras coisas – ou

outras coisas mais. Para o pensador espanhol José Ortega y Gasset, num quadro

há as formas dos objetos representados e as formas às quais esses objetos são

submetidos pelo pintor, e nessa dicotomia estaria a “estrutura derradeira de um

quadro.”2 Mesmo quando, no século vinte, a pintura se mostra abstrata – e não

poderíamos mais ver nas formas do quadro uma variante daquilo que elas

representam –, as manchas e cores que vemos não são como o nome de um ator

escrito em árabe é para minha avó; lemos aquelas manchas e cores – elas não são

totalmente coincidentes com elas próprias. O quadrado negro de Malievitch não é a

mesma coisa que um retângulo de cartolina negro, esquecido em cima de um papel

branco, em nossa escrivaninha.3

1 WITTGENSTEIN, 2011, p. 45.

2 In: ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 80.

3 Referência à pintura mais conhecida do russo Kasimir Malievich (1879-1935), cuja primeira versão data de 1915.

10

A crueza, a literalidade, no entanto, estão muito presentes na arte, sobretudo

desde o fim do século dezenove, quando a pincelada impressionista nos mostra um

barco ou uma ponte, mas, ao mesmo tempo, sua franqueza e debilidade como

pincelada. Somos convidados a ver o lá e o cá simultaneamente, ou a irmos e

virmos o tempo todo: a luz das estrelas de Van Gogh é diáfana e ao mesmo tempo

pesada (e viscosa), e algo semelhante podemos dizer de elementos de um quadro

de Kiefer ou de uma escultura de Anish Kapoor.4 É fascinante uma obra provocar

um certo enlevo e, ainda assim, mostrar seu caráter vulgar, revelar que é feita da

mesma matéria que os outros objetos que nos circundam no dia a dia. Algumas

obras, aliás, parecem se localizar naquele ponto vertiginoso onde quase não se

tornam arte, onde por pouco não se mostram um punhado de riscos, como os

nomes dos atores e atrizes do filme iraniano, para minha avó. Mal lemos o nome,

mas os riscos se impõem defronte de nossos olhos.

Nunca um objeto de arte se pareceu tanto com um objeto comum quanto no

século vinte, principalmente quando as legendas, os catálogos e os aparelhos de ar

condicionado dos hipertrofiados museus não estavam tão presentes. Jamais a

pintura, a própria pintura – a talvez mais artesã entre as chamadas belas artes – se

pareceu tanto com qualquer outra coisa: ela virou quase um objeto na parede,

como a fotografia de Itabira.5

Quase – advérbio fundamental para a arte: uma pintura pode se parecer

muito com um adesivo grudado na parede, mas sua artisticidade a torna uma outra

coisa, a transporta (e nos transporta) para outro lugar. Ela pode até ser um adesivo

grudado na parede e, todavia, ela é quase isso. Uma vez que existe uma língua e

somos capazes de ler, uma letra ou uma palavra não pode mais ser um risco. Não

há caminho de volta: uma vez alfabetizados, não conseguimos frear a leitura. A

ignorância, em alguns casos, é delicada e frágil – uma fruta exótica, nos diz uma

personagem de Wilde. Uma vez que a tocamos, seu frescor acaba.6

4 Anselm Kiefer (1945- ) e Anish Kapoor (1954- ), alemão e britânico (de origem indiana), respectivamente.

5 Referência ao poema “Confidência do itabirano”, de Carlos Drummond de Andrade. Apesar do verso: “Itabira é apenas uma fotografia na parede”, sabemos que ela está longe de se restringir a isso – e a comprovação vem pelo verso final, em seguida: “Mas como dói!” (In: ANDRADE, 1989, p.46-47). 6 A frase está na peça The importance of being earnest (A importância de ser prudente, ou A importância de ser severo): “Ignorance is like a delicate exotic fruit; touch it and the bloom is gone.” (In: WILDE, 1995, p. 325)

11

A pintura, portanto, vai se tornando próxima do objeto. Cresce na sala, olha

para os lados: avança em nossa direção, para teto e para o piso, mas só pode fazer

isso porque está inscrita num outro registro: sua natureza não é a do carpete,

mesmo que seja feita de carpete. Será olhada por outros tipos de olhar (daqueles

que se destinam ao carpete), terá um julgamento de outra ordem. Tem foro

privilegiado.

Esta pesquisa se dará por meio de pinturas, desenhos e palavras, que

versam e refletem também sobre palavras, desenhos e pinturas. Meu desafio foi

fazer com que as coisas possam andar juntas, tentar não deixar o texto ganhar tons

diferentes quando trata de minha pintura e de quando se refere a um pensamento

sobre Arte ou sua História. A teoria não explica a arte, assim como a arte não ilustra

a teoria. As palavras não são de material cristalino e os objetos de arte não são de

todo opacos.

Apresento quatro capítulos. Passar de um para o outro não corresponde a

um afunilamento ou mergulho mais fundo nas questões apresentadas; os capítulos

são mais como caminhos paralelos, tangenciando problemas que enfrento em

minha produção como artista e, a meu ver, problemas da arte de nosso tempo – ou

mesmo de outros tempos. Eles se relacionam, como se verá, sem exatamente

continuarem um no outro.

O primeiro capítulo, “Espelho no espelho”, tem como fio condutor a ideia da

arte ser um espelho do mundo, mas lembrando que não vemos o mundo como ideal

e o espelho uma cópia: amamos o espelho seus desdobramentos, e é a partir dele

– do espelho, e não do que ele reflete – que desenvolvemos uma noção de

realidade. Dois contos brasileiros, um de Machado de Assis e outro de Guimarães

Rosa, ambos intitulados “O espelho” são o coração desse capítulo.

O segundo capítulo é voltado à minha produção de pinturas, onde a tinta,

frequentemente, extrapola os limites do suporte, enfatizando o caráter de objeto do

quadro. Não procura ser apenas um relatório de meus processos de trabalho: a

ideia é que o capítulo tenha um pouco da sujeira do ateliê, com digressões e ideias

que atravessam o processo criativo.

O terceiro capítulo também versa sobre pintura, mas sobre aquela que se

desenvolve em outros suportes: que alguns poderiam chamar de instalação, mas

que, no caso das obras apresentadas, mantém seu vínculo com a pintura e ao

quadro. São, como chamo, pinturas fora do quadro, e comento alguns de seus

12

precedentes históricos, em destaque Mondrian e Hélio Oiticica.

No quarto e último capítulo, trato de um aspecto recente em minha produção:

desenhos que representam pinturas. Ou seja, pinturas que aparecem, ou que

existem, apenas como parte de desenhos. São pinturas na forma de desenho, ou

são desenhos tendo pinturas como personagens?7

7 O artista russo El Lissizky (1890-1941), ao conceber salas de exposição em Dresden (Sala para arte construtiva, 1926) e em Hanover (Gabinete abstrato, 1927-28), afirma que o espaço expositivo deve ser como um palco, onde os quadros surgiriam como atores. (In: PERLOFF; REED, 2003, p. 77)

13

1. Espelho no espelho

1.1

Um gramado, um monte de feno ou uma blusa não têm uma cor. A cor não

pertence a um ou a outro, é antes uma condição momentânea, dada a uma

iluminação específica, a um ponto de vista particular: uma impressão. É assim que

a pintura impressionista nos ensinou a ver, embora a gente ainda fale que uma

blusa seja azul, que um gramado seja verde.

A pintura impressionista nos descreve a impossibilidade de se representar (e

de se ver) um objeto em si: mesmo se insistirmos em chamar uma blusa de azul,

por exemplo, entendemos que o azul talvez não esteja nela, mas no modo como a

vemos, na impressão que temos dela. Observada sob outra luz, ela poderia

assumir outra cor, e nenhuma delas seria a sua cor.

Se tudo o que vemos se trata de um fenômeno óptico, não há contornos, não

há linhas, e o torneado dos objetos, dependendo das circunstâncias, se mostrará,

também, incerto. A pintura impressionista também nos indica que a própria forma

pode se mostrar fugidia, vaporosa. Não se deixa de pintar a forma definitiva das

coisas por capricho; isso acontece porque passamos a duvidar se a forma definitiva

das coisas, de fato, existe.

Figura 1. Claude Monet, A ponte em Argenteuil, 1873. Óleo sobre tela, 60 x 80 cm. Musée d'Orsay, Paris.

14

Desde o final do século dezenove vai rareando a solidez dos objetos;

olhamos para o mundo e encontramos uma superfície rugosa. Essa, no entanto,

não é a matéria das coisas, mas a textura das tintas, da trama da tela, ou mesmo de

nossa retina.

Figura 2. Paul Cézanne, Casa e fazenda em Jas de Bouffan, 1885/87. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm. Národní Galerie, Praga.

1 Paul Cézanne (1839-1906), pintor francês.

2 Poderíamos dizer que os objetos representados por Cézanne – maçãs, jarros, monta-nhas – nos parecem sólidos devido à solidez do quadro. Este empresta àqueles sua soli-dez. “A lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo livre ou desencarna-do da luz e da cor (impressões) que está a Sensação”, escreve Deleuze (e é dele o uso do S maiúsculo), “mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maçã. A cor está no corpo, a sensação está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentando determinada sensação (...). DELEUZE, 2007, p. 42-43 3 NIETZSCHE, 1992, p. 83.

1.2

A pintura é sólida porque nosso olhar é sólido: Cézanne1 talvez nos aponte,

entre muitas coisas, que o esforço para se pintar, para se construir uma imagem

tem, nele mesmo, alguma substância; é, em si, uma coisa. A solidez de suas

pinturas não é a solidez das coisas representadas, mas do quadro.2 Desenha-se o

desenho, mais do que o objeto, mais do que o mundo. Mas não estaria no

desenhar, e não naquilo que é observado, o mundo? Não amaríamos o próprio

desejo, em vez do desejado?3

15

4 Pablo Picasso (1881-1973) e Henri Matisse (1869-1954), Este francês e aquele espanhol, são frequentemente tidos como os maiores pintores do modernismo europeu.

5 Podemos pensar no impressionismo como um interlúdio numa longa tradição de pinturas de história.

Figura 3. Pablo Picasso, Guernica, 1937. Óleo sobre tela, 349,3 x 776,6 cm. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madri.

1.3

Picasso, Matisse4, nos lembram que talvez a pintura, em sua história, pouco

tenha a ver com olhar algum objeto e o representar. Picasso está menos distante

da pintura neoclássica ou da decoração de um vaso grego antigo do que da pintura

impressionista.

Não se pinta (apenas) o esforço de se traduzir num quadro um objeto que se

vê (um violão, por exemplo). Não há problema em se pintar as coisas, afirmar que o

contorno deste vaso é assim, ou que esta blusa é azul, afinal o que pintamos nunca

são as coisas, mas a própria pintura, uma ficção.5 O fato de lobos não falarem não

torna impossível ou ilógica a história de Chapeuzinho Vermelho.

1.4

Há um olhar para um quadro que é anterior a um quadro, a este quadro

pintado. Na experiência de se ver um quadro, há inúmeros outros que o pintor e o

espectador trazem consigo. Quando Picasso, em 1937, exibe Guernica, não

representa exatamente um bombardeio de uma cidade, mas a tradição da pintura

de história, e nos pergunta se sua solenidade, sua representação grandiosa do

horror poderia ser possível em nosso tempo. Se seria possível verter um

acontecimento terrível, como tantos que vemos nos jornais ou nas ruas em uma

imagem mítica.

16

Figura 4. Pablo Picasso, Homem com chapéu de palha e casquinha de sorvete, 1938. Óleo sobre tela, 61 x 46 cm. Musée Picasso, Paris

6 SYLVESTER, 1998, p. 182.

7 Ibidem, p. 81.

8 Para o filósofo francês Jacques Rancière (1940- ), a dificuldade de se levar adiante a pintura de história, e seu caráter pouco convincente, no decorrer da modernidade, e a ascensão da pintura de gênero – quadros que representam cenas cotidianas, encabeçadas por personagens anônimas – se deve a uma mudança no modo como se vê a história, que deixa de ser “a coletânea dos exemplos” (RANCIÈRE, 2018, p. 59). O “fracasso do pintor de gênero para se elevar à pintura histórica é também o prenúncio do tempo em que a pintura de gênero, a representação da vida comum, será a manifestação exemplar da historicidade.” (Ibidem, p. 57)

Figura 5. Pablo Picasso, Gato caçando um passarinho, 1939. Óleo sobre tela, 81 x 100 cm. Musée Picasso Paris

No entanto, se nosso olhar se revelou baço, se a pintura como linguagem se

nos coloca entre nossos olhos e as coisas, onde está a relação entre o que vemos

numa tela e a realidade que vivemos? De um lado, temos a presença física do

quadro, sua realidade, suas cicatrizes de tinta, pinceladas, traços, pentimenti –

aquilo que o pintor Francis Bacon, referindo-se a Picasso, chama de “brutalidade do

fato”.6 Para Bacon, “quando se fala de violência em pintura, ela nada tem a ver com

a violência da guerra. Ela tem a ver é com a maneira como reproduzimos a

violência da própria realidade”.7 O artista britânico, aqui, não se refere à descrição

pictórica de um fato especialmente violento, mas a uma certa aspereza intrínseca à

própria vida. Por isso, temos, diante de Guernica, sem dúvida, uma visão atroz,

embora o horror, a presença crua da realidade esteja mais vívida na obra de

Picasso nos anos seguintes, em um homem tomando sorvete, em um gato

matando um passarinho.8

17

9 René Magritte (1898-1967), artista belga, ligado ao grupo surrealista. 10James Joyce (1882-1941), escritor irlandês. O personagem Stephen Dedalus, uma espécie de alter ego do autor, é protagonista do romance Retrato do artista quando jovem (1916) e coadjuvante no romance Ulisses (1922). JOYCE, Ulisses, 1992. p. 30 11 O pintor norte-americano Jasper Johns (1930- ), em 1953 descreveu a experiência de ver pessoalmente, pela primeira vez, uma obra de Picasso: “Eu não podia acreditar que era um Picasso, pensei que era a coisa mais feia que já tinha visto. Eu estava acostumado com a luz passando através de slides coloridos; eu não percebi que teria de rever minhas noções do que era pintura”. Minha tradução do inglês: “I could not believe it was a Picasso, I thought it was the ugliest thing I’d ever seen. I’d been used to the light coming through color slides; I didn’t realize I would have to revise my notions of what painting was.” (In: JOHNS, 1996, p.165) 12 Andy Warhol (1928-1987), artista norte-americano.

1.5

De outro lado, há o mito. Se numa pintura, nenhum objeto representado é

real, se o que se pinta são ideias, pode se pintar o que se quiser, do modo como se

quiser. O pintor será um criador de fábulas, e a realidade do quadro não será

levada em conta, ou até deverá ser minimizada. Um dos exemplos mais extremos

na primeira metade do século vinte talvez seja a pintura de Magritte,9 com seu alto

poder evocativo e sua pobreza pictórica. Uma reprodução fotográfica de um de

seus quadros pode ser tão boa ou até melhor quanto o original.

Talvez Picasso, ao pintar Guernica, tentasse conciliar as duas coisas, a

aspereza do mundo e o mito. Seria isso possível? Parece que nesse caso, o autor

pende para a segunda alternativa.

Se Stephen Dedalus, o artista de Joyce, vê a História como um pesadelo do

qual tenta acordar,10 Picasso constrói sua obra gozando sempre estar

semidesperto: entre a assombração da História (da arte) e a presença bruta, pura,

oposta a qualquer símbolo, do real. Novamente, a espessura do olhar, da tinta, das

coisas concretas que antecedem aquilo que olhamos se coloca à nossa frente. O

passado da arte, presente em Picasso, não se parece com as luzes coloridas dos

slides de Powerpoint das aulas de História da arte a que submetemos nossos

alunos.11

1.6

Warhol12 nos diz que a imagem acaba por se tornar, ela mesma, uma coisa,

com aquilo que elas, as coisas, têm de impenetrável. Ou que nossa vida concreta

18

se tornou tão rasa quanto uma imagem. Ou os dois. Seja como for, essa imagem/

coisa, num certo sentido, substitui ou supera o real. Se a jovem Norma Jeane

Mortenson pouco tem a ver com o mito Marilyn Monroe,13 isso não torna o mito

menos real, não lhe retira nada de sua força. Pelo contrário, percebemos que há

alguma coisa de irreal na própria moça, na triste Norma Jean, e é somente com sua

morte que o mito Marilyn, livre desse constrangimento, pode assumir uma

dimensão maior, acima da realidade palpável, próprio das divindades. O mito nos

parece mais sólido do que a vida.

Lembro de um amigo de adolescência que, quando víamos uma garota muito

bonita na rua, se referia a ela como uma “mulher de revistinha”. Nós, olhando as

meninas na rua, entendíamos imediatamente o que ele queria dizer: que ela era tão

atraente quanto as mulheres que víamos nuas nas páginas das revistas, que sua

beleza tinha algo de extraterreno, de superior ao mundo em que vivíamos; ela tinha

a aparência de fixidez, de certeza, ela tinha a autoridade daquilo que é impresso,

daquilo que não é deste mundo, daquilo que é linguagem. Ela se parecia com

aquilo que as pessoas deveriam ser (de acordo com as revistas ou a televisão),

mas jamais seriam, pelo simples fato de serem gente, como nós. Olhar para uma

mulher como aquela nos diminuía por nos fazer lembrar desse pecado original.

A primeira Marilyn pintada (serigrafada) por Warhol é uma cabeça pairando

num fundo pintado de ouro, feito uma figura bizantina. Como nas Virgens anteriores

ao Renascimento, não se parece (e é importante que não se pareça) com sua mãe,

nem com sua namorada, nem com a garota na esquina; ela pertence a outra

espécie, habita outro lugar. É uma santa, ou uma mulher de revistinha, tanto faz.14

Uma serigrafia de Warhol é sobre a pessoa Marilyn, tanto quanto uma

natureza-morta de Cézanne trata de maçãs. O artista aqui nos fala menos da

estrela de cinema do que de arte, do que de linguagem. Diante de uma imagem

diáfana ou irreal, vemos a matéria da arte, do dizer alguma coisa. Amamos, sim, o

desejo – e o desejado se desvaneceu, virou purpurina. Se há algo de trágico em

Warhol é a constatação de que a tragédia talvez não seja mais possível.

13 Marilyn Monroe (1926-1962), atriz estadunidense. Seu nome de batismo era Norma Jeane Mortenson. 14 Anthony Blunt cita uma carta de Rafael a Castiglione: “Para pintar uma beldade, preciso ver várias beldades, mas já que há uma escassez de mulheres belas, eu uso uma certa ideia que me vem à mente”. BLUNT, 2001, p 90.

19

Figura 6. Andy Warhol, Marilyn Monroe dourada, 1962. Tinta serigráfica sobre polímero sintético sobre tela, 211,4 x 144,7 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

1.7

Lembro de, com uns dez, doze anos, fazer um desenho olhando para minha

tia. Quando ela o viu, disse que o desenho poderia ter qualidades, mas que seu

rosto não era daquele jeito. Principalmente o nariz, que não parecia certo. Ela se

levantou, abriu algumas gavetas, e trouxe uma fotografia dela, mostrando para mim

como era seu nariz.

Consegui reparar menos na imagem do que no fato de ela buscar uma

fotografia para mostrar seu nariz, e não apontar, simplesmente, para o centro de

sua face. Ali talvez estivesse um acidente; a fotografia é que lhe dizia o que ela era.

1.8

O homem tem duas almas, “uma que olha de dentro para fora, outra que

olha de fora para dentro”. A segunda, exterior, pode ser um objeto, um outro

homem (ou muitos homens) ou “uma operação”. Como a primeira alma, ela

“transmite a vida”, e perdê-la significa perder a metade da existência ou, em certos

casos, a existência inteira. Quem afirma isso é o personagem João Jacobina, no

20

15 O conto tem o subtítulo Esboço de uma nova teoria da alma humana, e foi publicado pela primeira vez em 1882. In: ASSIS, 2007, p. 154-162.

conto O espelho, de Machado de Assis.15

Ele nos conta que, jovem pobre, fora aos vinte e cinco anos nomeado alferes

da guarda nacional, motivo de orgulho não só para sua família, mas para a vila

onde morava. Uma tia viúva o chama para passar um tempo com ela, em seu “sítio

escuso e solitário” – e pede para levar a farda. Adulado pela tia, que prefere chamá

-lo de alferes, e não mais de Joãozinho, tem seu quarto decorado por um grande

espelho, peça luxuosa, que destoa do resto da casa, “cuja mobília era modesta e

simples”.

Ao fim de três semanas, a tia é obrigada a ir embora, acudir a uma filha

doente. Jacobina permanece no sítio, com a companhia dos escravos. Embora eles

ainda o tratem com reverência, chamando-o de “nhô alferes”, deixam transparecer

alguma motivação suspeita.

Um dia, Jacobina desperta e percebe que o sítio está deserto: todos

aproveitaram a ausência da dona da casa para fugir. Sozinho, sem mesmo os

cachorros (levados pelos escravos), ouve, dias a fio, somente o pêndulo do velho

relógio da sala. Come mal, dorme mal e não ousa se olhar no espelho. Quando

arrisca, tomado de pavor, tem a impressão de encontrar do outro lado uma figura

“vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”.

O desespero de Jacobina cessa apenas quando lhe ocorre vestir a farda de

alferes. Então, vê-se refletido, “nenhuma linha de menos, nenhum contorno

diverso”, e assim, sempre observando a si próprio fardado, recupera-se. Durante

dias, veste a farda e mantém-se duas ou três horas diante do espelho, “lendo,

olhando, meditando”, e assim atravessa “mais seis dias de solidão, sem os sentir”.

1.9

O horror de Jacobina é a intuição de que, sem o mundo à sua volta, ele

desapareça, torne-se um espectro, nem mesmo passível de ter um reflexo. Apenas

no momento em que se lembra de sua farda é que consegue encontrar sua

substância. Sua espessura não está na profundidade de sua mente (se isso existe),

mas na superfície de sua farda, na superfície do espelho.

21

16 Podemos pensar também que a existência de Jacobina reside na superfície de sua farda, e não na profundidade daquilo que poderíamos chamar de seu interior (ou de sua primeira alma). Como, na pintura impressionista (e mesmo nas esculturas de Rodin, cujas superfícies revelam seu processo de elaboração e as marcas de mão do artista, ambos contemporâneos a Machado de Assis), a substância está na superfície das coisas – tanto das representadas quanto das obras em si. Essa superfície, a farda, também um invólucro, é exterior à superfície da pele: Jacobina precisa dela para existir, como a obra de Duchamp precisa de um museu em torno de si para assegurar sua existência como arte. Sobre a superfície das obras de Rodin, ver KRAUSS, 1998, p. 36. A comparação de sua escultura com a pintura impressionista é feita por alguns autores, como Giulio Carlo Argan, em ARGAN, 2010, p. 474. 17 O episódio é contado por Ernst Gombrich, em seu livro Arte e ilusão (GOMBRICH, 2002, p. 98).

É possível e confortável pensarmos no conto de Machado como um

exercício de ironia social. Jacobina, de origem pobre, supervaloriza seu sinal de

ascendência social, a condição de alferes, algo tão frágil e superficial que ele

precisa, para si mesmo, vestir sua farda. Também seria cômodo afirmar que o

gesto de minha tia, buscando uma fotografia de seu rosto e me mostrando como é

seu nariz só mostraria o quanto ela é desmiolada ou tola. Podemos, no entanto,

pensar no conto menos sobre um documento da sociedade escravagista brasileira

do mil e oitocentos e mais sobre nossa necessidade de consultar o smartphone.

Podemos considerar a vertigem de Jacobina como a vertigem da arte

moderna, do homem moderno, ou pós-moderno, ou contemporâneo (neste caso,

tanto faz), cuja liberdade ou autonomia coincide com sua possibilidade de não ter

lugar, de não existir. A farda de Jacobina, se quisermos, é o museu em torno do

urinol de Duchamp.16

1.10

Nos textos sobre arte moderna, é comum lermos sobre uma suposta

autonomia da linha e da cor. Cor seria puro estímulo visual, e não mais a coloração

de um rosto, de um pôr do sol ou de uma blusa; o mesmo poderíamos falar da

linha, apreciada por suas qualidades intrínsecas, por sua própria beleza, vigor ou

fluidez, e não mais por sua capacidade de delinear, por exemplo, um corpo nu. É

conhecida a anedota em que Matisse é interpelado, numa abertura de exposição,

sobre como uma mulher era representada num de seus quadros, e ele teria

respondido que aquilo não se tratava de uma mulher, mas de uma pintura.17

22

18 “Só os ‘idiotas da objetividade’, como dizia, genialmente, Nélson Rodrigues, imaginam que a literatura ‘reflita’ alguma realidade exterior a ela mesma”, escreve Paulo Leminski. “A arte do texto não é uma dependência do comércio de espelhos (…) A palavra é um gesto fundador. Não um reflexo.” (LEMINSKI, 1997, p. 74.) 19 WANKE, 1985, p. 44.

20 CAMPOS, 2004, p. 13.

Livres do fardo da representação, esses elementos poderiam atingir seu

esplendor, sem precisar prestar contas ao mundo externo. A pintura passaria a ser

apreciada por qualidades próprias de sua linguagem (pincelada, organização

espacial), e cada vez menos por sua relação com o que há fora dela, com o

mundo.18 Essa proclamada autonomia permitiria que a pintura ou a escultura se

tornassem livres em relação a tudo aquilo que não pertencesse aos seus

respectivos universos. Mas seria essa liberdade um ganho?

Quando brincávamos de pega-pega, aos oito, dez anos, permitíamos que

algumas crianças mais novas entrassem no jogo, contanto que na condição do que

chamávamos de café com leite: elas não podiam efetivamente pegar nem ser

pegas por nenhuma outra criança. Elas, aparentemente não compreendiam

totalmente as regras da brincadeira, mas eram incorporadas à sua dinâmica,

correndo para lá e para cá, rindo e se divertindo, como todos, mas sem ter um

papel decisivo. Embora muitas vezes aceitassem à contragosto a condição de café

com leite, estas eram as crianças mais livres, justamente porque, efetivamente, não

tinham protagonismo no jogo, corriam paralelamente a ele.

“O artista é sempre um conquistador de mundos. Mas não apresenta

ameaça a nenhum mundo, pois são mundos por ele inventados.”19 A frase de Eno

Teodoro Wanke é tão engraçada quanto melancólica: seria essa a conquista da

arte moderna, ser livre com o preço de se tornar inofensiva, decorativa – de ter se

tornado café com leite em relação ao mundo?

“escrever sobre escrever”, assim em minúsculas, afirma Haroldo de Campos,

“é o futuro do escrever”.20 Faríamos arte para falar da condição da arte? Quem

estuda arte estudaria, portanto, o discurso da arte sobre arte – como um espelho

diante de outro espelho? O futuro de que nos fala o poeta, seria uma utopia ou uma

condenação?

23

1.11

Em 1962, como parte do livro Primeiras estórias, Guimarães Rosa publica

um conto intitulado O espelho.21 Nele, um narrador anônimo, que fala diretamente

ao leitor, conta sua curiosa experiência com esse objeto e seu poder de refletir.

Primeiro, ele nos fala de seu medo de espelhos, de como seus reflexos eram

vistos pelos primitivos como a alma. Lança-nos, portanto, uma ideia semelhante à

que encontramos no conto homônimo de Machado de Assis: olha-se no espelho e

se encontra a alma. No entanto, não há aqui a teoria de Jacobina sobre as duas

almas, a exterior e a interior. Todo o relato de Rosa é voltado a um mergulho para

dentro de si, à busca do “eu por detrás de mim”.

O protagonista faz uso de exercícios (cita a ioga e os exercícios espirituais

dos jesuítas) para, encarando-se no espelho, tentar não enxergar aquilo que de

animal teria em suas feições (no caso, seu “sósia inferior na escala” seria a onça), e

depois, igualmente abstrair o que haveria de semelhante aos seus antepassados.

Conseguindo não ver nem uma coisa nem outra em seu próprio rosto ele passa,

gradualmente, a não há mais encontrar reflexo no espelho. Chega a se perguntar

se não haveria nele “uma existência central, pessoal, autônoma”, se não seria ele

um “des-almado”.

Não é assim, entretanto, que o conto termina: o narrador, com o tempo,

recupera seu reflexo. Depois de ter sua imagem negada, num determinado

momento, em que ele amava e estava “aprendendo (...) a conformidade e a

alegria”, ele encontra novamente sua face no espelho. Trata-se, porém, de um

“ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo”. Era “não mais que:

rostinho de menino, de menos-que-menino, só”.

1.12

Excluímos nossa animalidade, excluímos nossa história, e ainda assim,

depois de cavar um bocado, encontramos alguma coisa lá no fundo, ainda que seja

“menos que um menino”. Há um certo otimismo, ou humanismo, em Guimarães

Rosa, impensável em Machado de Assis. Sua visão se parece com a de muitos

artistas das primeiras décadas do século vinte, crentes na possibilidade de se

21 In: ROSA, 1988, p. 65-72.

24

libertar da influência do passado (acordar, como deseja Stephen Dedalus) e deixar

emergir uma expressão primeva. Como Paul Klee, afirmando querer ser como “um

recém-nascido, sem saber nada, absolutamente nada sobre a Europa; ignorar

poetas e modas, ser quase primitivo.”22

Guimarães Rosa escreve seu conto no mesmo ano que Warhol cria sua

primeira Marilyn, dourada, bizantina. Este quadro, no entanto, é um espelho mais

próximo daquele concebido por Machado, vislumbrado por Jacobina: uma

superfície que reflete uma superfície. Neste mundo, não há lugar para a busca de

um eu íntimo, sob o risco de não se encontrar coisa alguma.

1.13

Há também o espelho da história de Branca de Neve23: ali, a rainha se olha,

não para enxergar a si própria mas as outras: como é a sua beleza perante o resto

das mulheres do mundo.24 Talvez só seja possível enxergar sua própria beleza —

ou feiúra — em um espelho como esse, que não exibe sua imagem, mas evoca a

de outras pessoas.

O que buscamos ao olhar no espelho pode não ser nosso interior, mas a

visão de nós como um outro, para nos vermos em meio aos outros – e daí a

importância da farda de alferes. Como na história de Jacobina, o espelho é um

instrumento de exterioridade. Ou, dito de outra forma: o escrutínio de si se dá

apenas em relação ao que lhe é externo. O espelho (ou a arte) nos devolve a

imagem embrulhada em linguagem, e é na superfície desse invólucro que a vida se

torna possível. Olha-se para uma revista, e não para as ruas, para ver como é uma

mulher, mostra-se a fotografia para indicar como é o nariz. Não se olha o intrínseco

(nem que seja mal emergindo), talvez porque ele não exista.

22 In: GOLDWATER; TREVES, 1972, p. 442. Tradução minha do inglês. 23In: GRIMM, 2012, p. 247-256.

24 “O espelho mágico parece falar com a voz da filha e não da mãe”, observa Bruno Bettelheim. Segundo ele, “A menina pequena acha a mãe a mulher mais linda do mundo, e é assim que o espelho fala inicialmente com a rainha. Mas como a menina mais velha considera-se muito mais bonita do que a mãe, isso é o que o espelho diz mais adiante” (BETTELHEIM, 1997, p.60-61).

25

25 Odisseu, em grego. 26 Ulisses está vinte anos ausente de sua casa: dez anos ele passa na Guerra de Troia, e mais outros dez, em meio aos diversos infortúnios narrados na Odisseia.

27 Alcino chega a afirmar que gostaria de ter um homem semelhante como genro. In: HOMERO, 2011, p. 234, versos 311-316.

28 Ibidem, p. 238, versos 74.

1.14

No canto VI da Odisseia, Ulisses,25 herói da Guerra de Troia, náufrago,

extenuado, tentando em vão há dez anos retornar para sua família,26 é encontrado

na praia por Nausíca, que o conduz a seu pai, Alcino, rei dos feácios.

O rei desconhece a identidade do estrangeiro e no entanto percebe sua

grandeza.27 Oferece-lhe abrigo e uma nau com remadores, para que possa

finalmente voltar a seu lar. No dia seguinte, antes da viagem, realiza-se um

banquete, com oferendas aos deuses e jogos. A Ulisses, em cuja honra se dá o

evento, é oferecido um trono para se sentar.

Depois de se satisfazerem da comida e bebida (haviam sido sacrificados

doze ovelhas, oito javalis e dois bois), todos param para ouvir Demódoco, o aedo

cego – como o próprio Homero –, cujo dom de deleitar os homens com seu “doce

canto” era notório.

A canção que se escuta, “cuja fama chegara já ao vasto céu”,28

curiosamente, tem como assunto um incidente da Guerra de Troia, protagonizado

pelo próprio Ulisses. Ainda anônimo, o herói se cobre com sua capa e chora

copiosamente, “escondendo o belo rosto”, pois “sentia vergonha dos feácios”.

Apenas Alcino, ouvindo-o suspirar, percebe o que acontece. O rei, então, decide

mudar o rumo do festim e convoca as pessoas a saírem para apreciar “o pugilato, a

luta, o salto e as corridas”.

Terminados os jogos, tem lugar a dança, e para acompanhá-la, entregam

novamente a lira para Demódoco. O rapsodo canta a história do amor adúltero de

Afrodite por Ares. Ulisses exalta o espetáculo dos bailarinos.

As festividades parecem estar chegando ao fim. Criadas preparam um banho

quente para Ulisses, que, além de receber presentes, é vestido com uma capa e

bela túnica. A atmosfera é de despedida, comida e bebida são novamente servidas.

Então Ulisses corta uma fatia de carne de javali e oferece a Demódoco – e lhe pede

que cante sobre o cavalo de Troia.

26

29 Ibidem, p. 254, versos 521-531.

30 Ibidem, p. 255, verso 537.

31 A rainha Areta, esposa de Alcino, havia lhe perguntado antes sobre sua identidade e Ulisses se esquivara (Ibidem, p. 232-234, versos 237-301).

O herói, como é de se imaginar, cai em prantos novamente:

(...) Ulisses derretia-se a chorar: das pálpebras as lágrimas

umedeciam-lhe o rosto. Tal como chora a mulher que se atira sobre

o marido que tombou à frente da cidade e do seu povo, no esforço

de afastar da cidadela e dos filhos o dia impiedoso, e ao vê-lo

morrer, arfante e com falta de ar, a ele se agarra, gritando em voz

alta, enquanto atrás dela os inimigos lhe batem com as lanças nas

costas e nos ombros pata a arrastar para o cativeiro, onde terá

trabalho e dores, e murchar-lhe-ão as faces com o pior dos

sofrimentos – assim Ulisses deixava cair dos olhos um choro

aflitivo.29

Novamente, apenas o rei se dá conta do que acontece e pede ao aedo que

pare de tanger sua lira, pois “nem a todos tem este canto o condão de agradar.”30 E

insiste para que aquele estrangeiro revele, enfim, sua identidade.31 Assim termina o

canto VIII.

O nono canto é narrado pelo herói, que então se apresenta como “Ulisses,

filho de Laertes, conhecido de todos os homens pelos meus dolos”. Ele conta aos

feácios (e a nós, leitores) sobre como cegou o ciclope Polifemo, filho de Posêidon,

encontrou o deus Éolo, viajou ao Hades, passou incólume pelas sereias, viu todos

seus soldados morrerem, tendo sido antes transformados em porcos pela feiticeira

Circe, enfrentando outras aventuras, encabeçadas por deuses e criaturas

fantásticas. A voz deixa de ser sua só no canto XIII, quando um narrador incorpóreo

irá tratar, efetivamente, de seu retorno a Ítaca.

1.15

Por que chora Ulisses? Sobretudo, por que insiste em ouvir poemas que o

celebram, se isso o comove a ponto de sentir vergonha? Em outras circunstâncias,

as lágrimas não correm fáceis pelo seu rosto: ele não chora em conflitos com

27

32 Epítetos usados pelo narrador para se referir a Ulisses, em diversos momentos da Odisseia. 33 Dom Casmurro (1899) e Fogo Pálido (1962), romances, respectivamente do brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) e do russo, naturalizado norte-americano, Vladimir Nabokov (1899-1977), e O Gabinete do Doutor Caligari (1920), filme de Robert Wiene (1873-1938), são narrativas marcadas pelo caráter suspeito de quem conta a história.

monstros, nem na presença de deuses, ou diante de sua mãe defunta, com quem

conversa no reino dos mortos, mas apenas nas duas vezes em que ouve canções

sobre si próprio. Por que, então, a comoção extrema naqueles dois momentos?

Podemos pensar que Ulisses até então se encontrava náufrago, não só

depois de deixar a ilha de Ogígia, onde era prisioneiro da ninfa Calipso, mas desde

o fim da Guerra de Troia, há quase uma década. Nesse processo, ele tem sua

identidade dissolvida. Talvez por isso se esquive em dizer seu nome a Nausíca, a

Alcino e a Areta (esposa deste): ele não se esqueceu de seu nome, de sua história,

mas dela está alheio – não se encontra desmemoriado, mas desprovido de

substância, e é apenas com a experiência de ouvir a si próprio como personagem,

na poesia/canção do aedo, que ele vê restaurada sua alma exterior, como Jacobina

diante do espelho. Apenas quando se vê de fora – se vê narrado (e se comove com

isso) – que Ulisses se torna dono de sua própria história. Naquele instante, Ulisses

deixa de ser apenas um sujeito que está ali, para se tornar significado, para se

tornar cultura. Nesse sentido, sua grandeza não é recobrada através da presença

dos deuses (como Atena), nem com o contato com o fausto do trono ou do

banquete, mas com o poder evocativo da arte da narração. Assim como Jacobina

só pode recuperar seu protagonismo ao se ver alferes, Ulisses só pode contar sua

história quando se vê “o sofredor e divino Ulisses”, “o homem de mil ardis”,

“semelhante aos deuses”,32 um herói do passado ou congelado no tempo,

pertencente a um tempo imemorial. Enxergado a si próprio como personagem

(como reflexo), Ulisses pode contar sua história.

1.16

Nós, leitores modernos (ou pós-modernos), formados por Dom Casmurro e

Fogo Pálido (passando pelo Gabinete do Doutor Caligari),33 somos tentados a

conjecturar que aquilo que ocorre entre os cantos XIX e XII pode surgir da

imaginação de Ulisses, talvez inspirado pela lira de Demódoco, pelo encantamento

28

da narração. Será ele, não por acaso conhecido como ardiloso – responsável por

uma das mais conhecidas (e bem-sucedidas) trapaças, o Cavalo de Troia –, um

narrador insuspeito? Seria boa parte da Odisseia, fruto da imaginação de Ulisses?

Para tentar responder, teríamos de ter uma noção melhor do que

perguntamos, do que chamamos de verdade, se acreditamos na substância de uma

realidade passível de ser reproduzida pelo espelho cristalino da narração. Se a

blusa é azul, se o azul pode ser um atributo da blusa ou se não é um fenômeno

fisiológico, pertencente ao mecanismo de nossos olhos.

No meio da história contada por Ulisses, Alcino afirma que não julga o

narrador mentiroso ou “tecelão de falsidades”34, porque conta sua história “com a

perícia de um aedo”. Sua verdade nada tem a ver com a correspondência dos fatos

narrados com o mundo que está lá fora. Sua história é verdadeira porque se parece

com arte, ou porque é arte. Ulisses sabe disso, pois há pouco se convencera de

que ele próprio era real porque cabia em uma canção.

Terá, então, a narrativa de Ulisses “autonomia”, como a cor ou a linha teriam

na pintura moderna?

1.17

Com a década de 1960, começou a ser mais frequente a ideia de que a tal

emancipação da arte em relação ao mundo seria alguma coisa negativa. Pinturas,

esculturas, poesias e mesmo romances acabariam falando apenas de si, dos

problemas de sua execução, dos limites de suas linguagens, e isso teria feito com

que a arte acontecesse em algum lugar paralelo ao mundo, uma roda girando sobre

si mesma, como a ventoinha de meu computador, a única peça que escuto

trabalhar, mas que ignora o teor do que escrevo. Essa arte, ou essa visão de arte,

passou a ser chamada, pejorativamente, de formalismo. E esse olhar crítico ao

modernismo denotaria o próprio ocaso do movimento moderno, ou o início do pós-

modernismo, ou contemporaneidade.

Como consequência, nos anos 1980 e 1990 ganham mais espaço artistas

cujos trabalhos fazem denúncias sociais e/ou estão vinculados a reinvindicações de

direitos de grupos, como negros, mulheres, homossexuais. Assim, supostamente, a

34 No canto XI (página 309, versos 362-369).

29

35 Slavoj Žižek (1949- ), filósofo e psicanalista esloveno. 36 KAHNWEILER, 1989, p. 36-37.

arte não estaria falando apenas de arte. Não falaria mais do Azul, mas de uma

blusa azul.

É quase como se os artistas tivessem dado ouvidos aos seus pais, tentando

os dissuadir da escolha da carreira: por que você não faz alguma coisa que preste?

1.18

“O que acontece quando um triângulo encontra um círculo?” – essa é a

premissa de uma piada, que começam a contar a Slavoj Žižek,35 na Universidade

da Califórnia, “uma das capitais do politicamente correto”. Anedotas como essa,

advertem, além de engraçadas, não seriam capazes de ferir, humilhar, nem “fariam

troça de ninguém”. O pensador esloveno sequer escuta o resto, afirma que não tem

interesse, pois a graça das piadas estaria “exatamente em magoar ou humilhar

alguém...”.

Daniel-Henry Kahnweiler (1884-1979), marchand e um dos primeiros

defensores da pintura cubista, conta que em 1904, vira dois cocheiros de fiacre

olhando pinturas de Monet, através da vitrine da galeria de Durant-Ruel, em Paris.

Furiosos, com os punhos cerrados, eles gritavam que era preciso “quebrar a vitrine

de uma loja que mostra sujeiras desse tipo”. “A pintura”, prossegue Kahnweiler,

“nos faz ver o mundo exterior. Ela cria o mundo dos homens e, quando esta criação

é nova, quando os signos inventados pelos pintores são novos, nasce este mal-

estar, este conflito”, do qual a agressividade dos cocheiros seria um sintoma. A

pintura atual (o marchand dá seu depoimento em 1961), “abstrata e tachista”, não

teria esse poder de escândalo, pois seria “puramente hedonista”. 36

A opinião de Kahnweiler sobre arte abstrata, a princípio, parece próxima do

julgamento de Žižek sobre as piadas da Universidade da Califórnia – é irônico que o

início da piada desprezada pelo filósofo pareça uma referência à pintura

suprematista. Žižek, entretanto, num segundo momento, duvida de sua opinião

imediata:

30

37 ŽIŽEK, 2015, p. 48.

38 Vilém Flusser (1920-1991) 39 “Há espelhos sem aço que permitem espiar inocentemente o mundo – eis uma das mais belas metáforas da consciência”, escreve Baudrillard. “Não existe tela sem aço, porque nada há para ver do outro lado da tela, nada para ver sem ser visto.” (In: BAUDRILLARD, 2000, p. 21.)

Entretanto, e se eu estivesse errado? E se eu tivesse perdido o

aspecto formal, que é o que torna uma piada engraçada, muito

mais do que o seu conteúdo, assim como ocorre com a

sexualidade, que não é uma questão de conteúdo direto, mas do

modo como esse conteúdo é formalmente tratado?

Se a arte, como afirma Kahnweiler, “cria o mundo dos homens”, porque ela

perderia seu caráter provocativo, ao se tornar abstrata? A descrição ou a referência

direta à realidade seria sua essência ou um de seus ingredientes? “A questão”,

pergunta Zizek, ainda refletindo sobre as piadas, “obviamente é esta: a forma

funciona sozinha ou ela precisa ‘de um pouco de realidade’ ou seja, de algum

conteúdo positivo contingente relacionado a temas ‘sujos’, como sexo e

violência?”37

Seria possível a arte falar apenas de arte? Faz sentido imaginar que a obra

de um pintor, boa e má, se trate apenas de manchas ou gotejamentos, ou áreas de

cor, e nada mais, não significando absolutamente coisa alguma? Na arte, falando

de si própria e de seus limites, não residiria, também, um discurso ou uma postura

sobre outra coisa? Ou, colocando de outra forma: uma obra de arte que discorre

sobre si própria (que gira sobre si própria, como a ventoinha) não traz em si uma

postura política (e uma postura radical), num mundo em que tudo – incluindo a

fruição de uma obra de arte – é, de antemão, rotulada e instrumentalizada?

1.19

O fascínio do homem contemporâneo pelos espelhos não reside mais em

sua face reflexiva, afirma o tcheco-brasileiro Vilém Flusser,38 mas no seu verso, na

superfície coberta pelo nitrato de prata. O interesse por espelhos invertidos seria

típico da atualidade. Sem o nitrato de prata, o espelho não seria espelho: seria

janela.39 Uma vez que se torna espelho, temos uma janela que não pode ser

31

40 Num texto chamado Do espelho, publicado originalmente no Jornal O Estado de S. Paulo, em 06/08/1966 e, mais tarde, reunido no livro Ficções filosóficas. (FLUSSER, 1998, p 67-71)

41 Talvez por isso que os espelhos convexos encantem artistas como Van Eyck, Holbein e Parmigianino. 42 Ibidem, p. 68. 43 Ibidem, p.69.

44 Ibidem, p.68.

fechada, e que não mostra, de certa forma, o que ela é, pois reflete.40

No passado, prossegue Flusser, os espelhos curvos foram paulatinamente

sendo abandonados em prol dos espelhos planos, porque estes não distorceriam o

espelhado e, portanto, seriam “fiéis, isto é, verdadeiros”. Isso para quem acredita

que há uma forma definitiva do espelhado – que uma blusa seja azul. Para

atestarmos que um espelho reflete mais fielmente o que está diante dele,

precisamos crer que há uma aparência definida, essencial, desse corpo, e que há

uma maneira clara e equivalente para que ele possa ser espelhado.41 O

compromisso “dos nossos antepassados em prol de espelhos planos e lisos”,

conclui Flusser, seria “consequência de preconceitos cartesianos”.42

Colocamo-nos defronte do espelho plano e não olhamos o espelho. Olhamos

o reflexo, jamais olhamos o refletir. “O espelho é um ser em oposição”, um “ser que

nega”, e por isso, reflete. Como nós, de alguma maneira:

O homem enquanto ser que reflete é um ser em oposição, em

posição negativa. É isto que o distingue de todos os demais seres

que nos cercam. É um ser que não permite que aquilo que sobre ele

incide (as coisas que nos cercam) passe por ele. Formula sentenças

que negam. Esta é a resposta que articula contra o mundo que o

cerca. E pode fazê-lo graças ao nada que o fundamenta. O homem

é um ser fundamentado pelo nada. O nada é o nitrato de prata que

faz do homem o que ele é: espelho.43

Se o nitrato de prata é o nada, “extremamente chato” que vejo ao virar o

espelho, por que me interesso por ele? “Porque”, segundo Flusser, “sei ser ele o

responsável pelas reflexões que se dão na outra face”.44 Olhar para o verso do

32

45 O Dicionário básico de filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes define tautologia como: “1. Proposição na qual o predicado simplesmente repete aquilo que está contido no sujeito: ‘todo solteiro é não-casado’. Nesse sentido, todo juízo analítico é tautológico. 2. Em lógica, função sentencial que é sempre verdadeira, independente dos valores que atribuímos às suas variáveis. Verdade lógica”. (IN: JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 263)

46 John Cage (1912-1992), compositor estadunidense afirmava ser o silêncio o elemento fundamental da composição musical. Publicou alguns livros com coletâneas de textos, sendo o mais conhecido, intitulado, Silêncio, publicado pela primeira vez em 1961. Neste livro é que se encontra sua “palestra sobre nada”, publicada originalmente em 1959, onde se lê a frase citada parcialmente acima, traduzida livremente por mim do inglês: “I have nothing to say/and I am saying it/and that is poetry/as I need it.” (IN: CAGE, 1973, p. 109)

47 FLUSSER, 1998, p. 70.

48 Ibidem, p.70. 49 Ibidem, p.71.

espelho é olhar não a reflexão (ou o pensamento), mas sua origem, a tautologia

que está na estrutura do pensamento.

O pensamento nasce de uma tautologia, uma frase que afirma a si própria,

“uma sentença que não diz nada.”45 “Não tenho nada a dizer e estou dizendo, e

isso é poesia”, escreveu o norte-americano John Cage.46 O pensamento viria do

nada, e sua origem estaria vinculada à poesia. A poesia seria o pensamento em

sua raiz, em sua materialidade, a consciência de seu nada fundante. A poesia,

enfim, “é o nitrato de prata do pensamento.”47 Os poetas concretos, segundo

Flusser, sabiam disso e aplicavam “metodicamente essa descoberta.”

Ao virar o espelho, viramos “o espelho que somos.”48 Para Flusser,

devemos procurar outros caminhos, além do pensamento cartesiano, e esse

caminho é o do espelho virado. Esses caminhos existem, afirma: “A nova arte o

prova.”49

1.20

Spiegel im spiegel, em português, Espelho no espelho, o título que escolhi

para este capítulo, é o nome de uma peça para piano e violino escrita em 1978,

pelo compositor estoniano Arvo Pärt. Seu título é compreensível quando ouvimos a

música, hipnótica, sem muita diferença entre início, meio e fim. Não descreve um

espelho diante de outro espelho, embora seu título possa se referir igualmente a

sensação vertiginosa de uma imagem refletida infinitas vezes quanto ao processo

33

50 Para Leopold Brauneiss, o título da peça musical também descreveria o modo como o autor estoniano compõe, em seu estilo chamado (pelo próprio Pärt) de tintinnabuli: “Spiegel im spiegel é um excelente exemplo de espelhamento na voz melódica. É também uma imagem da estética arquetípica do estilo tintinnabuli em geral: se alguém segura dois espelhos um contra o outro, os reflexos nos dois sentidos mostram uma imagem cujas representações se encadeiam infinitamente, como um cone óptico rumo ao infinito, constituído por um arranjo racional, técnico. Neste sentido, pode-se chamar o estilo tintinnabuli de um cone acústico na direção do infinito (...). Minha tradução do inglês, do texto Musical archetypes: the basic elements of the tintinnabuli style. IN: SHENTON, 2012, p. 62.

empregado pelo compositor ao criar a peça, a partir do espelhamento e repetição

de sequências musicais.50 Não descreve nada, como a maioria das músicas, aliás.

No entanto, não arriscamos dizer que ela não trata de coisa alguma, que seja sobre

nada.

34

2. O quadro olha para os lados

1 Jacques Derrida (1930-2004), no livro A verdade na pintura, dedica um ensaio ao parergon. Para os gregos (criadores do termo), parergon significava aquilo que seria acessório à obra em si (ergon). O filósofo argelino desenvolve um conceito particular, referindo-se ao parergon como aquilo que tangencia a obra (como a moldura, a assinatura, o título), mas não é exatamente externo à ela, afinal ajudaria a constituir seu próprio significado: (…) “nem obra (ergon), nem fora da obra (hors d’oeuvre), nem dentro nem fora, nem acima nem abaixo, [o parergon] desmonta qualquer oposição mas não permanece indeterminado e dá origem à obra. Não está mais apenas em torno da obra (...)”. Traduzido por mim do inglês: “neither work (ergon) nor outside the work (hors d’oeuvre), neither inside nor outside, neither above nor below, it disconcerts any opposition but does not remain indeterminate and it gives rise to the work. It is no longer merely around the work”. (In: DERRIDA, 1987, p. 9). Para mais detalhes sobre as mudanças de significado do termo parergon na história, ver o artigo What is a parergon?, de Paul Duro (DURO, 2019).

2.1

Nem sempre pintura foi a mesma coisa que quadro. Mas a ideia de quadro é

fundamental para o que consideramos pintura, ao menos nos últimos quinhentos

anos.

No século catorze, vemos desenvolver o quadro, um espaço circunscrito,

cercado, protegido pela moldura. Era preciso enfatizar que aquilo não se tratava de

um objeto, mas de uma abertura. De uma passagem. Olhamos para um quadro para

ver outra coisa, para ver o outro lado – como hoje fazemos com a televisão ou com

o telefone celular. Olhamos e, de repente, não estamos mais aqui. Esse espaço

mental se construiu aos poucos, de fora para dentro.

Bordas exigem especial cuidado: o que fazer se aparecerem as fibras da

madeira nas laterais, ou os pregos que seguram e mantém esticado o tecido onde

se pintou? Seria como se víssemos o fundo falso da cartola do mágico: um estrago

irreparável para o espetáculo, ainda que todos saibamos, sem ver, que existe um

fundo falso. A moldura dourada cumpre um de seus papéis em ocultar tudo isso,

como a gravata cobre os botões da camisa. Ela não apenas ornamenta os limites do

quadro, mas, naquele momento, contribui para o tornar possível.1

35

Durante muito tempo, pinturas pertenceram a lugares – salas, corredores,

igrejas – não costumavam ser transportadas ou mudar de endereço (janelas

portáteis demorarão para existir2). Cabe às molduras, nessa época, também fazer

com que quadros numa mesma sala criem vínculos uns com os outros e com o

ambiente, pois assemelham-se aos beirais de janelas e demais adereços.

De maneira paradoxal, a moldura serve para indicar (e convencionar) uma

distância: ela nos afirma que seu espaço não é o mesmo do que o da sala.3 Ela nos

lembra que o que está dentro tem natureza distinta do que está fora. O quadro é

um objeto que ocupa e, ao mesmo tempo, fura a sala. Para que isso seja possível,

precisa manter seu disfarce de pertencente a este mundo, como um agente

infiltrado.

2.2

Continuam as pinturas, hoje, a furar a sala? Ainda fazem uso de seu

disfarce? O quadro contemporâneo não parece ser mais, a princípio, algo que se vê

das molduras para dentro (hoje, aliás, raramente uma pintura se apresenta em

moldura). É mais como um objeto no espaço. Mas, antes de nos perguntarmos

sobre o objeto, talvez seja conveniente questionar o espaço. Que espaço é esse?

Nas fotografias da mostra Live in your head: when attitudes became form, de

19694, rodapés, tomadas, pisos de tacos e azulejos convivem com obras que

serpenteiam pelo chão das salas e sobem pelas paredes. Para o gosto atual, tudo

está muito próximo, e em alguns momentos a arquitetura fala mais alto que as

2 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil que, colocada na parede, cria nela a profundidade do espaço.” (O’DOHERTY, 2002, p. 08)

3 Lorenzo Mammì, em um ensaio intitulado “As bordas”, aponta que as molduras, assim como os pedestais das esculturas, a partir do Renascimento, vão progressivamente deixando de ser “apenas elementos decorativos ou desdobramentos arquitetônicos” para assumirem “uma função autônoma.” Molduras e pedestais “tornam-se dispositivos mais ou menos complexos, que administram e graduam a transição da obra ao ambiente e vice-versa.” In: MAMMÌ, 2012, p. 56-57. 4 A exposição, montada originalmente na Kunsthalle (um edifício construído em 1918), em Berna, tinha a curadoria de Harald Szeemann, e contava com trabalhos de mais de setenta artistas, entre eles Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph Beuys, Alighiero Boetti, Mel Bochner, Walter de Maria, Jan Dibbets, Eva Hesse, Yves Klein, Joseph Kosuth, Jannis Kounellis, Sol LeWitt, Richard Long, Robert Morris, Bruce Nauman, Claes Oldenburg, Dennis Oppenheim, Michelangelo Pistoletto, Robert Ryman, Richard Serra, Robert Smithson, Richard Tuttle, Lawrence Weiner e Gilberto Zorio.

36

obras de arte. Esculturas de Richard Serra são colocadas sobre um piso xadrez.

Uma obra de Alighiero Boetti5 e um aquecedor parecem brigar por território.

Às vésperas do século vinte, um debilitado Oscar Wilde, morando num

quarto de hotel em Paris, diz a uma amiga: “Meu papel de parede e eu travamos um

duelo fatal. Um ou outro tem de partir.”6 Nos anos 1960, quando acontece a

exposição When attitudes became form, é quando ultimatos como o de Wilde

começam a ser feitos entre os trabalhos de arte e seus ambientes. Nos cem anos

seguintes, os espaços expositivos vão se modificando, tornando-se cada vez mais

neutros, menos semelhantes a outros tipos de ambiente, para que ali, somente as

obras possam aparecer, soberanas.

Salas são construídas para a exibição de arte. Edifícios se erguem para

abrigar esculturas de Serra. Os trabalhos de arte, ao contrário de Wilde, vencem o

duelo com a sala, forçada a abandonar seus papéis de parede e outros ornamentos

e dar lugar a um interior anódino, que veio a ser apelidado de cubo branco.7

2.3

O quadro já estava, aparentemente, desde o fim do século dezenove,

perdendo suas características de janela. Existindo em ambientes feitos para a arte,

ele se vê cada vez menos obrigado a se parecer com arte: pode deixar de ser como

uma abertura na parede e se comportar como uma coisa. A sala, de certa forma, já

é o buraco na parede.8 Ele se permite até mostrar do que é feito: tinta, pincelada.

Afinal, será um objeto localizado em um lugar que traz a janela dentro de si, faz a

vez de moldura, enquadrando, acalantando, como que cobrindo os inoportunos

grampos, pregos, fibras de madeira, esses estraga-prazeres, ruídos do mundo. O

5 Richard Serra (1938- ) e Alighiero Boetti (1940-1994), norte-americano e italiano, respectivamente. 6 Oscar Wilde (1854-1900), autor inglês de origem irlandesa; sua amiga, aqui, é a também escritora Claire de Pratz (1866-1934). A intuição de Wilde estava, infelizmente, certa: ele morreu no mês seguinte à frase. O incidente é narrado por seu biógrafo, Richard Ellmann (ELLMANN, 1988, p.499). 7 O espaço de exposições todo pintado de branco, sem ornamentos ou o que possa interferir na apreensão das obras de arte, apelidado de cubo branco, surge na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, coincidindo com o expressionismo abstrato e com o minimalismo norte-americanos. Ver O’DOHERTY, 2002. 8 “Quando nos encontramos no recinto da galeria, será que, numa inversão peculiar, nós não acabamos dentro do quadro, olhando para um plano opaco exterior que nos protege de um vazio? (Ibidem, p. 37.)

37

9 Leon Battista Alberti (1404-1472), em seu tratado intitulado Da pintura (publicado pela primeira vez, em latim, em 1435): “Inicialmente, onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o que aí será pintado (...).” In: ALBERTI, 1992, p. 88-89. 10 Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), pintor holandês. 11 A frase de Duchamp é citada pelo crítico Leo Steinberg. In: STEINBERG, 2008, p. 118.

que está em volta contribui para determinar o que está dentro; muito do que faz o

quadro ser o que ele é não está no quadro.

Entretanto, mesmo que a pintura se pareça com um objeto qualquer e não

tenha, por exemplo, perspectiva, ilusões ópticas ou mesmo figuras, ainda olhamos

para ela e vemos um espaço projetado. Não um espaço que se estende como se a

superfície da tela fosse uma vidraça – o espaço renascentista, descrito por Alberti9

–, mas, ainda, um espaço virtual. Numa sala de exposições, prosseguimos olhando

para coisas e vendo além de coisas. Muitas obras de arte construídas a partir do

século vinte são feitas de materiais comuns ou mesmo insignificantes. Isso não

ocorre porque a arte se torna menos idealista, mas justamente o oposto: é possível

fazer arte de pó de borracha ou mesmo de fezes porque esses elementos,

organizados numa determinada circunstância, passam a ter um significado

específico e a ser olhados com uma atenção (e sentido) próprios. A proposição de

Marcel Duchamp, de usar uma pintura de Rembrandt10 como tábua de passar

roupas,11 por ser tão absurda ou risível, enfatiza o quanto, em nosso modo de ver,

uma pintura (uma grande pintura) sobre madeira se distancia de um simples painel

feito do mesmo material.

Hoje, esse espaço se estabeleceu e se introjetou no espectador. Os

interruptores de luz, rodapés, aquecedores, podem até tornar a frequentar salas de

exposição – como o fazem, em inúmeros museus e galerias cujas salas não são

cubos brancos, em mostras em galpões não adaptados, ateliês, edifícios ocupados,

por exemplo –, porque o espaço onde tudo é além daquilo que se vê, o cubo

branco, já vive na cabeça de seu espectador.

38

2.4

As laterais de um quadro não costumam ser olhadas. O espectador é

convidado a se esquecer delas. Raramente são consideradas parte da obra. Mas

quando tomamos pinturas como, antes de qualquer coisa, superfícies – e esta é

uma tendência durante todo o século vinte –, somos tentados a ver o quadro como

um todo, como um objeto, uma coisa afixada à parede: um caixote. E seus lados,

com grampos, pregos, e também suas sombras, tornam-se difíceis de se ignorar.

Figura 7. Sem título, 2009. Óleo e esmalte sintético sobre caixas de papelão, 33 x 14 x 11 cm cada.

Em 2009, mostrei na Galeria Virgílio, em São Paulo, três quadros feitos de

caixas de sapato (figura 7). As caixas haviam sido pintadas, duas de vermelho e a

outra, de vermelho e cinza – e afixadas na parede. O tom de vermelho era o

mesmo que as caixas tinham, originalmente; a tinta apenas velava as letras (antes

brancas), que ainda podiam ser vistas, conforme a luz e a posição do espectador.

De frente, tínhamos a superfície, como um quadro; se nos colocássemos de lado,

víamos a sobreposição da tampa sobre a caixa, e a origem do objeto se impunha.

Anos depois, esses trabalhos acabaram reverberando em quadros em óleo sobre

tela. Mas em telas especiais, com chassis de diferentes proporções.

39

Figura 8. Sem título, 2013/14. Óleo sobre tela, 34 x 25 cm.

Começo a pintar na horizontal, com as telas sobre uma mesa. À medida que

as camadas vão se sobrepondo, a tinta escorre pelas laterais (figura 8). É onde

ainda são visíveis as cores empregadas, incluindo as que foram cobertas por

outras. O lado do quadro pode ser visto como um relatório, uma espécie de registro

de procedimentos que quem olha a pintura apenas de frente nem sempre tem

acesso.

40

Figura 9. Sem título, 2014. Óleo sobre tela, 32 x 22 x 12 cm. Foto de Julia Janequine.

Imaginei que tornando as laterais do quadro maiores, não apenas seu

caráter de objeto seria enfatizado – sua sombra ficaria mais robusta –, quanto os

escorridos poderiam adquirir um papel mais importante. Experimentei pintar em

telas construídas com chassis exageradamente profundos e variados – medindo

cinco, sete, dez ou quinze centímetros, em quadros de apenas 30 de altura e 20 de

largura (figuras 9, 10 e 11). Posteriormente, executei pinturas maiores, com igual

chassi hipertrofiado (figuras 12, 13 e 14).

41

Figura 12. Vista da exposição Meu cuidado todo, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2019. Foto de Gabi Carrera.

Figura 10. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 30 x 20 x 15 cm.

Figura 11. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 30 x 20 x 20 cm.

42

Figura 13. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 60 x 40 x 15 cm. Foto de Gabi Carrera.

43

Figura 14. Sem título, 2017/19. Óleo sobre tela, 95 x 38 x 20 cm. Foto de Gabi Carrera.

44

12 Donald Judd (1928-1994), artista estadunidense. 13 Aluísio Carvão (1920-2001), artista brasileiro. 14 Willys de Castro (1926-1988), artista brasileiro. 15 Roberto Conduru descreve um objeto ativo de Willys de Castro (1926-1988) como “’caixa’ regular composta de seis faces: cinco à mostra e uma de contato com a superfície de apoio (CONDURU, 2005, p. 49).”

Figura 15. Aluísio Carvão, Cubocor, 1960. Óleo sobre cimento, 16,5 x 16,5 x 16,5 cm. Coleção Particular.

Se as pinturas/caixas de sapato remetiam, ao mesmo tempo, às esculturas

de parede de Donald Judd12 e, sobretudo, ao Cubocor, obra em cimento de Aluísio

Carvão13 (figura 15), as telas mais novas têm como precedentes – e inspirações –

os objetos ativos de Willys de Castro.14 Tratam-se de pinturas/objetos pintadas

também nas laterais, que instigam o espectador a um olhar oblíquo, convidando-o a

vê-la de ângulos diferentes, explorando as formas que se configuram, de acordo

com o seu ponto de vista, criando uma ilusão óptica15 (figura 16).

Figura 16. Willys de Castro, Objeto ativo, 1959. Óleo sobre madeira, 92 x 2,3 x 6,9 cm. Coleção Particular

45

2.5

Desde 2007, minhas pinturas crescem nas bordas. A tinta excede os limites

do plano pictórico, em forma de crostas ou franjas. Estas caem sobre o próprio

quadro ou pesam em seus limites inferiores, e são novamente cobertas de tinta.

Pinta-se a tela e pinta-se o corpo de tinta. Rebarbas de tinta pendem na parte

inferior e nas laterais do quadro, e projetam sombras irregulares, onduladas, na

parede (figuras 17 e 19).

Figura 17. Sem título, óleo sobre tela, 2013. 137 x 160 cm. Foto de Marcelo Almeida.

46

Sombras de contornos curvilíneos também são provocadas por molduras

entalhadas, próprias de uma arte anterior ao modernismo (figura 18). Mas molduras

servem, entre outras coisas, para puxar nosso olhar para o interior do quadro.

Figura 18. Vista da exposição Toulouse Lautrec em vermelho, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, (MASP), em 2017.

Figura 19. Vista da exposição Triangular: arte deste século - Aquisições recentes para o acervo da Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília, na Casa Niemeyer, Brasília, 2019.

47

As pinturas cubistas de Picasso e Braque costumam ser levadas em conta

como os primeiros quadros que deliberadamente negam a condição de janela. Não

por acaso, ficam pouco à vontade dentro de molduras. Nelas, contudo, há uma

concentração dos elementos principais no centro do espaço: à medida que se

aproxima dos limites, a pintura vai esmaecendo, como se perdendo foco, como as

fotografias do mesmo período (figura 20).16 Segundo Clement Greenberg,17 a razão

para Picasso e Braque não assinarem a maioria de suas pinturas desse momento

seria, justamente, para evitar suas margens, e assim “chamar menos atenção para

a sua planaridade literal.”18

16 Segundo Brian O’Doherty, o cubismo mantém “o status quo da pintura de cavalete”. As pinturas cubistas, nos termos do autor, “são centrípetas, acumulando-se em direção ao centro, esmaecendo-se em direção à borda.” Matisse, com seu uso da cor e sua noção de escala, ainda na opinião de O’Doherty, teria compreendido “melhor do que ninguém o dilema da superfície pictórica e sua tendência de estender-se para fora.” (O’DOHERTY, 2002, p. 15-16) 17 Clement Greenberg (1909-1994), crítico de arte estadunidense. 18 GREENBERG, 1996, p. 87.

As bordas de minhas pinturas sugerem o movimento oposto. O próprio fato

de a tinta escorrer para além do retângulo do quadro faz com que seu caráter de

superfície (literal) seja acentuado; todo o plano da tela, não apenas as sobras de

Figura 20. Pablo Picasso, Garota com bandolim, (Fanny Tellier), 1910. Óleo sobre tela, 100,3 x 73,6 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

48

tinta, mas a porção delimitada pelo chassi tende a se apresentar mais como uma

pele do que como um recuo. As pinturas se tornam, de alguma forma, esculturais.

As rebarbas de tinta são afirmações quase literais de que o quadro é algo que

acontece da tela para fora, e não para dentro. Uma casca, não uma vidraça.

As sobras de tinta, caindo pelos lados e por baixo da tela, como fraldas de

camisa, são equivalentes às laterais da tela: estão lá, embora tenhamos sidos

treinados para não as considerar parte do quadro. Algo semelhante aparece em

certas pinturas de Sigmar Polke,20 em que o tecido da tela sobra e pende, além do

suposto campo pictórico delimitado pelo retângulo do chassi (figura 21).

Figura 21. Sigmar Polke, Tendência mais quente da temporada, 2003. Tecidos diversos, 304 x 487 cm. Coleção particular.

20 Sigmar Polke (1941-2010), artista alemão.

2.6

Eu deveria ter em torno de seis anos. Meu pai teve a ideia de usar um velho

lampião como enfeite. O objeto, marrom, quase feito de ferrugem, encontrado entre

coisas antigas da família, na casa da recém-comprada chácara, seria coberto com

tinta brilhante e pendurado na parede. Eu, que nunca vira meu pai empunhar um

pincel ou expressar qualquer interesse pela decoração da casa, vi a anunciada

atividade com interesse e algum descrédito.

49

21 Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês. 22 Diferentemente de suas pinturas tardias, executadas nos Estados Unidos, com a ajuda de fita adesiva. 23 Paul Klee (1879-1940), pintor alemão, de origem suíça; Joaquín Torres-García (1874-1949), artista uruguaio.

24 O que não é raro. Marcel Duchamp, em uma conferência em 1957, afirma que o valor de uma obra de arte se localiza entre “o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente” In: BATTCOCK, 1986, p. 72.

O dia em que lampião mudaria de cor chegou, e fui chamado para

testemunhar. No chão, de pé, uma lata grande de tinta esmalte (azul, se lembro

certo), e nenhum pincel, rolo ou solvente. Meu pai amarrou a alça do lampião com

um arame fino e o suspendeu. Assisti àquele objeto aparentemente pesado,

corroído, feito um leproso dos filmes, mergulhar no azul absoluto do interior da lata

de tinta. Sua imediata emersão, revelava-o transfigurado: uma peça reluzente, leve,

tomada pela cor. Toda exterioridade.

2.7

Quando vemos de perto, muitas das pinturas abstratas de Mondrian21

padecem de problemas técnicos ou de conservação: a tinta apresenta rachaduras,

principalmente nas áreas brancas. As linhas retas, negras, tão características, por

terem sido feitas à mão livre,22 são ligeiramente trêmulas. Isso, de alguma maneira,

entra em contradição com os princípios do neoplasticismo, que lemos nos escritos

do artista e enxergamos nos próprios quadros.

Poderíamos apontar que artistas da geração de Mondrian, como Paul Klee e

Joaquín Torres-García,23 conciliam, em suas poéticas, geometria e afeto, onde se

percebe a presença da mão. Cabe, no entanto, apontar que a obra deles, com um

vínculo mais próximo com o cubismo de Braque, Picasso e Gris, trazem em si um

lirismo ao qual a pintura de Mondrian se opõe. A obra de Klee pode acolher

rachaduras na tinta ou um traço trêmulo sem conflito algum, enquanto na pintura do

criador do neoplasticismo isso não ocorre sem dor. Essa ambiguidade, a meu ver,

em vez de ser um problema, confere uma qualidade especial às suas pinturas,

mesmo que ocorram (e talvez por isso) à revelia do artista.24 A rachadura num

Mondrian é uma espécie de dissonância.

50

25 Uma experiência decisiva, para mim foi ter visto uma grande exposição de suas obras, intitulada: Mondrian: nature to abstraction, aberta na Tate Gallery entre 26 de julho e 30 de novembro de 1997. Características, como os craquelados e as linhas trêmulas me saltaram aos olhos, por não ser algo perceptível na maioria das reproduções em livros. 26 No livro Piet Mondrian: Structures in space, Susanne Deicher atribui as rachaduras ao fato de Mondrian usar petróleo como solvente (DEICHER, 2004, p. 64). 27 Alfredo Volpi (1896-1988) e Mira Schendel (1919-1988), artistas brasileiros. Ele, nascido na Itália e ela, na Suíça. 28 MARQUES, 2001, p. 21.

29 “A questão neoconcreta (…)”, nas palavras de Ronaldo Brito, “é impregnar vivencialmente as linguagens geométricas, repropô-las como manifestações expressivas, recoloca-las como objeto de envolvimento fenomenológico.” (BRITO, 1999, p. 76)

A primeira vez em que me confrontei com as trincas na pintura do artista

holandês foi em uma grande exposição dedicada a ele em 1997.25 No material

impresso da exposição, havia um comentário a respeito: elas seriam o resultado de

uma aplicação inapropriada da tinta a óleo, que havia sido aplicada de uma vez só,

e não em camadas.26

Porém, a ideia de um Mondrian pintado em demãos sucessivas de uma

mesma cor me pareceu tão ilógico ou mesmo absurdo quanto um Mondrian com

rachaduras.

2.8

Pintores posteriores, como os brasileiros Volpi e Mira Schendel27 levariam

adiante uma certa junção da geometria com uma presença franca da matéria, do

acidente e do improviso. Maria Eduarda Marques, em seu livro sobre Mira, fala em

um certo “desejo de preservar o aspecto sensorial da expressão artística,

estabelecendo uma relação dialética entre a rigidez da construção e o aspecto

corpóreo da matéria e do gesto.”28

O movimento neoconcreto brasileiro corresponde a um esforço em abraçar o

caráter construtivo moderno com a experiência sensorial.29 De alguma maneira,

juntar Mondrian e suas rachaduras – fazer com que um incorpore o outro, e não

explorar o choque existente entre os dois. Talvez onde isso esteja mais visível – e

mais pleno – seja nas esculturas de ferro de Amilcar de Castro, onde a oxidação é

acolhida e, em vez de contradizer, soa como bem-vinda à obra. Poderíamos ainda

citar a textura da madeira nas xilogravuras intituladas Tecelares, de Lygia Pape,

51

30 Amilcar de Castro (1920-2002), Lygia Pape (1927-2004), Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), artistas brasileiros, associados ao movimento neoconcreto, como Willys de Castro, Aluísio Carvão, Ferreira Gullar, entre outros. 31 Barnett Newman (1905-1970), Agnes Martin (1912-2004), Richard Diebenkorn (1922-1993), Brice Marden (1938- ) e Sean Scully (1945- ), pintores norte-americanos – sendo a segunda, de origem canadense e o ultimo, de origem irlandesa. Sergio Sister (1948- ), Geraldo Leão (1957- ) e Fabio Miguez (1962- ) são pintores brasileiros. 32 Eduardo Sued (1925- ), pintor brasileiro, nascido e atuante na cidade do Rio de Janeiro.

nas Obras moles e nos Trepantes de Lygia Clark, nos Bólides e nos Parangolés de

Hélio Oiticica.30 Mas aqui, convém observar, não estamos falando de pintura. Ou

estamos, mas através de trabalhos que se distanciam do que poderíamos chamar

de pintura.

Sob formas diversas, a relação entre geometria e expressividade – ou uma

abordagem mais voltada aos sentidos – é visível na obra de pintores bastante

diversos como Barnett Newman, Agnes Martin, Richard Diebenkorn, Brice Marden,

Sean Scully, Sergio Sister, Geraldo Leão e Fabio Miguez.31

2.9

No início dos anos 1980, o brasileiro Eduardo Sued32 produz pinturas de

caráter geométrico, com superfícies lisas, sem o menor sinal de pincel ou espátula.

Claramente é um herdeiro da tradição construtiva brasileira e portanto, do

neoplasticismo de Mondrian. No entanto, em muitas de suas obras dessa época,

Figura 22. Eduardo Sued, Sem título, 1982. Óleo sobre tela, 105 x 115 cm. Coleção particular.

52

33 CANONGIA, 2005, p.152. 34 Ibidem, p. 152.

35 A frase, como relatada aqui, teria sido dita para Ilia Gurliand, um aspirante a escritor. Traduzido por mim do inglês: “If in Act 1 you have a pistol hanging on the wall, then it must fire in the last act.” (RAYFIELD, 2013, p. 278)

podem-se perceber degradês pintados em mínimas áreas, sempre na porção

inferior dos quadros. A crítica Ligia Canongia se refere a esses elementos como

“rodapés”33 (figura 22). O pintor carioca propõe aqui, nos termos de Canongia, “um

desarranjo na lisura linear”34 do resto do quadro.

Esses rodapés de Sued estão mais próximos das rachaduras ou linhas

trêmulas de Mondrian, do que do aspecto sensorial em obras de artistas como Mira

Schendel ou Sean Scully. Há, naquelas telas de Sued, um choque, uma deliberada

incoerência que contraria a economia formal, tão cara às concepções utópicas

modernistas.

Anton Tchekhov (1860-1904), romancista e dramaturgo russo, teria afirmado

diversas vezes – pessoalmente e em cartas – que, se uma pistola aparece

pendurada na parede no primeiro ato de uma peça teatral, no último ato ela deverá

ser disparada.35 Essa imagem, própria do final do século dezenove, não se refere

apenas a uma concepção de dramaturgia, nem apenas de literatura, mas é a tônica

do pensamento modernista: nada deve sobrar, e nada deve aparecer por mágica: o

jogo da arte moderna é avesso a adereços, e se faz com as cartas na mesa.

As bordas de minhas pinturas, assimétricas, tortas, de certa forma se opõem

ao desenho do interior do quadro, pautado por linhas regulares, na maioria das

vezes, retas. Diferentemente de muitas pinturas abstratas com áreas de cor

delimitadas produzidas no século vinte, aquilo que sai do quadro (neste caso,

literalmente) não é sua vontade projetiva, organizadora – sua utopia –, mas sua

sujeira, seu dejeto. O quadro se expande como coisa, não como modelo de

ordenação do mundo. A tinta não se apresenta somente como aquilo que, de

maneira incorpórea, garante a cor ou o desenho: é, antes, matéria que erra e se

avoluma.

53

2.10

Outra recordação de infância: esta acontece um ou dois anos depois do

episódio da pintura do lampião. Perto do fim do ano, minha mãe comprara uma

espécie de porta-cartões de Natal, em forma de Papai Noel. A intenção era pintar e

o deixar num aparador, na entrada do apartamento.

Diferentemente de meu pai, minha mãe costumava mostrar gosto e

habilidade com trabalhos manuais. Forrou a mesa da cozinha com jornal, colocou

em seu centro a peça, pequenos vidros de uma tinta brilhante e de cheiro forte,

solvente, pincéis e trapos. Pintamos, juntos, as botas pretas e as roupas vermelhas.

Apesar de o objeto ser originalmente branco – afinal, era de gesso –, cobrimos de

branco o que deveria ser dessa cor, como a barba, os arremates da roupa. Num

único momento as cores se misturaram: foi quando minha mãe fez um rosado para

o rosto.

O gesso era bonito, com sua superfície fosca, recebendo as sombras. Agora

tínhamos outra espécie de beleza: tudo ficara lustroso, e cada parte, cada cor, se

via refletida em outra. Quando eu achava que o trabalho estava acabado, minha

mãe pega um pincel muito fino, molha na tinta branca e faz pequenos riscos nas

pontas das botas rotundas do Papai Noel. Aquilo me pareceu incompreensível.

“Reflexos”, ela diz.

Qual a diferença entre os reflexos que existiam (e continuaram existindo) na

superfície curvada pintada de preto, daqueles que minha mãe garatujou, como um

desenho de jogo-da-velha, de linhas brancas? Estes últimos, um pouco repulsivos,

narrativas de reflexo, me lembram que mesmo um objeto pintado pertence ao

âmbito da ficção, é uma história sendo contada, e deve ser tratado como tal. Para

isso, talvez seja necessário cortar as asinhas do mundo sensível, do fascínio com

as superfícies.

2.11

Um quadro nunca deixa totalmente de ser uma janela. Se deixar, pode ser

que não seja mais quadro, e então talvez não saibamos mais como olhar para ele.

Minhas obras podem, em alguns casos, se parecer com objetos, mas ainda são

pinturas. Não passaram para o outro lado, embora possam olhar naquela direção.

54

A convivência entre o que é coisa e o que é narrado é, para mim, a principal

matéria da pintura, e uma conquista do desenvolvimento de sua linguagem.

Apreciamos a tinta que se avoluma na testa de um personagem de Rembrandt,

porque também é pele, também é cabeça. Algo parecido pode ser dito das pregas

das roupas das meninas de Velázquez, ou dos respingos de tinta em uma tela de

Pollock, que se parecem tanto com o chão do ateliê ou com a lama sobre um toldo,

e ao mesmo tempo são pintura, essa coisa tão etérea.

Figura 23. Anselm Kiefer, Para Segantini: as mães perversas, 2011/12. Óleo, emulsão, acrílica, verniz, madeira, metal, chumbo e sedimento de eletrólise sobre tela, 280 x 300 x 54,9 cm. Coleção particular.

A materialidade da tinta, a presença física do suporte – do chassi, do tecido,

do papel, por exemplo –, são expressivas apenas porque se contrapõem à

concepção da pintura como espaço mental, um plano onde o olho se permite

afundar. Desde, pelo menos, o século dezessete, eventualmente a matéria se

coloca entre nosso olho e o espaço que se estende quadro adentro: um objeto

colado ou pendurado paralelamente à superfície, em uma pintura de Kiefer, por

exemplo, pode pertencer à imagem representada, mas, ao mesmo tempo, barra

nossos olhos para a virtualidade completa (figura 23). Nas pinturas carregadas de

pratos quebrados, de Julian Schnabel (figura 24), há figuras, mas os fragmentos,

por onde as pinceladas se acumulam, nos lembram que esse plano, por mais que

possa carregar em sua essência alguma virtualidade (e alguma ilusão) está aqui, e

não lá adiante. Algo semelhante, guardadas as distâncias, poderíamos falar sobre

55

36 Julian Schnabel (1951- ), pintor e cineasta norte-americano, El Greco, apelido de Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), pintor espanhol de origem grega. 37 Nos termos de Clement Greenberg, em seu seminal texto intitulado Pintura modernista, publicado originalmente em 1960. In: FERREIRA; COTRIM. 1997, p. 106.

2.12

Falou-se do lado de fora dos quadros, e não se referiu ao seu interior. Isso

não é dizer que não haja dentro.

Pinturas não são só coisas, elas trazem coisas pintadas. No caso de meus

trabalhos, divisões, faixas ou listras. Pintar é compartimentar o espaço, é cindir

uma superfície contínua, é vestir meias e com isso deixar a perna mais curta. A

primeira marca que se faz em uma tela muda sua natureza. Segundo Clement

Greenberg, esse gesto “destrói sua planaridade literal e absoluta”,37 e o objeto/tela,

transfigurado em quadro, tomado pelo pecado original da linguagem, nunca mais

Figura 24. Julian Schnabel, Pintura de rosas (perto do túmulo de Van Gogh) III, 2015. Óleo, pratos e Bondo sobre madeira, 182,9 x 152,4 x 20,3 cm. Coleção particular.

as pinceladas de Van Gogh, Cézanne ou mesmo, em certos casos, El Greco:36 a

matéria se interpõe entre espectador e tela, coisa que a televisão e a fotografia,

herdeiras do espaço renascentista, não fazem nem pretendem fazer.

56

pisa no paraíso dos objetos. Quando riscamos numa superfície, portanto, já

traçamos na virtualidade, pois a ilusão imediatamente se instaura.

Falar é tornar presente o que não está: na pintura, ao menos na tradição que

se desenrola com o surgimento do quadro, no ocidente, é fazer vazio o espaço. Daí

o papel de Giotto38 como figura inaugural, com seus afrescos cheios de ar,

intermediando suas personagens, povoando um ambiente desabitado (figura 25).

Se esculturas avançam no espaço da sala, pinturas escavam para dentro, em seus

próprios ventres.

Num caminho que se inicia com a Capela Arena39 e chega às colagens

cubistas, o ar vai progressivamente se tornando curto, o espaço se estreita e o

vazio parece não ter mais lugar: não se consegue enfiar a mão por detrás de um

violão, como antes se conseguia cercar com um pano a cintura de São Francisco.40

38 Giotto di Bondone (1267-1337), italiano, tido como uma das figuras inaugurais do conceito de pintura que se desenvolverá na Renascença. 39 Capela Arena, também conhecida como Capella degli Scrovegni, é uma igreja em Pádua, tida como um dos pontos mais altos da arte do século catorze, graças a seus afrescos executados entre 1303 e 1306 por Giotto. 40 A referência aqui é um afresco de Giotto na Basílica Superior de Assis, representando São Francisco, no momento em que renuncia aos bens terrenos: o santo se desfaz de suas vestes e um clérigo cobre sua nudez com uma parte de seu próprio manto.

Figura 25. Giotto di Bondone, Vista de uma capela, 1304/06 Afresco, 150 x 140 cm. Capela Scrovegni (Capela Arena), Pádua.

57

2.13

Se qualquer marca numa tela impinge uma ilusão de algum grau, como quer

Greenberg, e se no século vinte abundam artistas que se opõem ao faz-de-conta,

alguns procedimentos foram usados para se evitar que o espaço ilusionista se

estabeleça na pintura. Um dos mais efetivos (e, provavelmente, por isso, repetidos),

junto com o monocromo, é a pintura de listras.

Quando Frank Stella41 apresenta seus primeiros quadros de listras, no fim da

década de 1950, a pintura abstrata já tem por volta de cinquenta anos. O que mais

chama atenção nessas obras talvez seja a simetria. Sua estrutura consiste em uma

série de listras que acompanham os contornos da tela. Podemos duvidar mesmo se

a palavra composição é apropriada para se referir à organização espacial desses

quadros, pois pincelar corresponde ali simplesmente a seguir paralelamente às

bordas do suporte, e a largura da listra é determinada pela largura do pincel (figura

26). Ele pinta como anda um carrinho de autorama: não tem autonomia para fazer o

percurso que desejar – seu movimento é determinado pelo formato da pista.

41 Frank Stella (1936- ), artista norte-americano.

Figura 26. Frank Stella, O casamento entre a razão e a miséria II, 1959. Esmalte sintético sobre tela, 230,5 x 337,2 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

58

No decorrer dos anos 1960, as pinturas de Stella vão se tornando mais

complexas, ainda que o procedimento continue o mesmo: as pinceladas apenas

repetem a forma do quadro – mas estes deixam de ser retângulos regulares (figura

27). As pistas de autorama também se complicaram, sem que o papel do carrinho

fosse alterado.

Em artistas como Kenneth Noland, Bridget Riley, Daniel Buren, Blinky

Palermo42

– além do próprio Stella – listras surgem, de maneira análoga, como o

oposto da expressividade, do ilusionismo, do personalismo e da originalidade. Eles

pertencem à geração seguinte ao chamado expressionismo abstrato norte-

americano e à abstração informal europeia,43 e há uma tendência em negar certas

características associadas aos artistas mais velhos, como a figura do artista

moderno, voluntarioso, cujo paroxismo é o pintor de ação, que enfrenta a pintura

como quem entra numa arena.44

O pintor expressionista abstrato é um ser

torturado, e sua angústia vem da consciência de sua liberdade, como condição

primordial, como para o existencialismo sartriano.45

42 Kenneth Noland (1924-2010) é um artista norte-americano; Bridget Riley (1931- ), Daniel Buren (1938- ), e Blinky Palermo (1943-1977), são artistas europeus, sendo a primeira, britânica e os outros, respectivamente, francês e alemão. 43 Podemos ainda citar Ellsworth Kelly (1923-2015), ainda pertencente à geração dos expressionistas abstratos, mas, em alguns aspectos, alinhado com os artistas mais jovens. 44 O conceito de action painting e a metáfora do espaço do quadro mais como “uma arena, na qual se age – mais do que um espaço no qual se reproduz, se reinventa, se analisa ou se ‘expressa’ um objeto, real ou imaginado” é criação do crítico estadunidense Harold Rosenberg (1941- ), em seu texto The american action painters, publicado originalmente em 1952 na revista Art News. (in: ROSENBERG, 1974, p.12,13) 45 “(...) homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre (...) é responsável por tudo o que faz.” (In: SARTRE, 1987, p. 9). Livre, o homem não apenas é responsável por suas escolhas mas é consciente que, com seu arbítrio, “escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira.” A angústia, portanto, pertenceria à condição humana: (...) o homem é angústia” (Ibidem, p. 8).

Figura 27. Frank Stella, Imperatriz da Índia, 1965. Pó metálico em tinta de emulsão de polímero sobre tela, 195,6 x 548.6 cm.

59

O pintor de listras talvez veja a liberdade como uma ilusão. Ou simplesmente

não se angustia com ela. Adota previamente uma estrutura formal para sua obra,

que não reflete nem resulta de uma experiência interna. Listras não vêm de dentro;

são variantes da grade,46 estruturas ubíquas na arte moderna: substituem o espaço

perspectivo renascentista, que instaurava a ilusão. A grade atesta a autonomia da

arte, mapeia o espaço interior do quadro, é “antinatural, antimimética, antirreal”.47

Haveria, em pinturas como O casamento entre a razão e a miséria II uma

ironia em relação ao livre arbítrio? Estaria ela dizendo que seríamos livres apenas

como um carrinho de autorama – ou como o pincel de Stella?48

2.14

Se pinturas de listras constituíssem uma modalidade, desde a segunda

metade do século vinte até agora, Barnett Newman seria um dos fundadores.

O artista, contudo, não se sentiria confortável em ver sua obra classificada

dessa forma. Ele próprio relata, em uma entrevista a Emile de Antonio, ter feito em

1948, uma pintura que passou a considerar sua primeira – mesmo que ele já

pintasse há mais ou menos duas décadas – e essa obra, intitulada Onement I

(figura 28), que marcaria uma espécie de renascimento seu como artista, é uma

das primeiras onde seria vista uma faixa de cor vertical, mais tarde apelidada por

ele de zip.

Na mesma entrevista, que data de 1970, referindo-se ao zip em Onement I,

Newman afirma: “De fato, não é uma listra. Agora, a coisa que eu gostaria de dizer

sobre isso é que eu não decidi (...) ‘vou pintar listras’. Eu não tomei uma decisão

arbitrária, abstrata.”49 Mais adiante, na mesma entrevista, o artista afirma: “Eu sinto

46 O xadrez, “para a sensibilidade medieval”, escreve Michel Pastoureau, “é uma forma superlativa do listrado.” Ele se refere aqui, não à arte, mas à padronagem em tecidos e roupas, num livro chamado “O pano do diabo: uma história das listras e dos tecidos listrados” (PASTOUREAU, 1993, p. 34). 47 KRAUSS, 1986, p. 8. 48 Ou, como no aforismo de Millôr: “Livre como um táxi”? (FERNANDES, 2000, p. 280) 49 Minha tradução livre do inglês: “Actually it’s not a stripe. Now, the thing that I would like to say about that is that is that I did not decide, either in ’48 or ’47 or ’46 or whatever it was, ‘I’m going to paint stripes’. I did not make an arbitrary, abstract decision.” In: NEWMAN, 1992, p. 305-6.

60

que meu zip não divide minhas pinturas. Sinto que ele faz o exato oposto.”50 E

conclui: “Ele cria uma totalidade, e nesse sentido eu me sinto muito, muito distante,

vamos dizer assim, de outras concepções, das chamadas listras.”51

Figura 28. Barnett Newman, Onement, 1965. Óleo e fita adesiva sobre tela, 69,2 x 41,2 cm The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

50 O zip, além de aludir à postura ereta do espectador, seria, segundo Newman, mais responsável por dar unidade ao espaço do quadro do que à sua ruptura – o termo zip viria de zíper, que fecharia, amarraria a composição (BOIS, 2009, p. 232). 51 Minha tradução livre do inglês. Aqui transcrevo todo o parágrafo: “I feel that my zip does not divide my paintings. I feel it does the exact opposite: it unites the thing. It creates a totality, and in this regard I feel very, very separate, let’s say, from other mental views, the so called stripes.” (Ibidem, p. 306)

Figura 29. Olga Rozanova, Listra verde, 1917/18. Óleo sobre tela, 71,5 x 49 cm Rostov-Yaroslavl Museum of Art

Figura 30. Philip Taaffe, Rainha da noite 1985. Técnica mista sobre tela, 274 x 122 cm.

2.15

No caso de minhas pinturas, as listras não reiteram o formato do suporte,

pois ele acaba adquirindo contornos irregulares, pelo próprio corpo de tinta que se

acumula às bordas. Pintar listras, em meu caso, em meu tempo, não é uma

61

52 Olga Rozanova (1886-1918), artista russa.

53 Ian Davenport (1953- ), britânico, Daniel Feingold (1954- ), brasileiro, e Mark Grotjahn (1968- ), norte-americano. 54 Philip Taaffe (1955- ), pintor norte-americano. 55 Minha tradução livre do inglês: “To take the Newman zip and handle it almost physically, yet illusionistically too, was something I needed to see at that time.” (TAAFFE, 1996)

ousadia em si, não significa negar coisa alguma: é mais como se alinhar a uma

genealogia de pintores de faixas, que vem dos artistas já citados, tendo uma prévia

com uma tela de 1917 de Olga Rozanova,52 (figura 29) e prosseguiria

indefinidamente, em artistas mais recentes, como Ian Davenport, Daniel Feingold,

Mark Grotjahn.53 Minhas listras nascem já se sabendo pertencentes à uma tradição.

De alguma forma, elas já são sobre alguma coisa. Quase tão concretas quanto

vasos ou árvores, não constituem uma oposição ao ilusionismo.

2.16

Na década de 1980, o norte-americano Philip Taaffe54 cria pinturas abstratas

compostas de elementos figurativos – ou mesmo releituras de pinturas abstratas

mais antigas – de Barnett Newman, de Bridget Riley – com elementos de figuração:

(figura 30) faixas de cor verticais, referências diretas aos zips de Newman, são

reproduzidas como se fossem sólidas, e há uma linha espiralada, como uma

serpentina, passando em torno delas. Com isso, aquele espaço não é mais pós-

cubista, como o dos quadros de Newman ou Stella, ele tem alguma ilusão de

tridimensionalidade, ainda que de forma irônica.

Em uma entrevista de 1996, Taaffe afirma que as faixas verticais em suas

pinturas são impressões de uma matriz em linóleo. “Pegar o zip de Newman e usá-

lo quase fisicamente e, no entanto, de maneira ilusionista também, era algo que eu

precisava ver naquele momento.”55 Taaffe também poderia afirmar, como Newman,

que não está tomando uma decisão arbitrária e abstrata – mas num sentido

bastante diverso. É como se aquelas pinturas, aquele universo da arte abstrata, já

fossem coisas, e pudessem se apresentar quase como figuras, mais do que como

ideias. Como se o zip pudesse ser ilustrado.

62

Figura 31. Sigmar Polke, Arte moderna, 1968. Acrílica e laca sobre tela, 150 x 125 cm. Museum Ludwig, Colônia

56 Em seu texto Pintura modernista, Greenberg afirma considerar Kant, que “usou a lógica para estabelecer os limites da lógica”, “o primeiro verdadeiro modernista.” In: FERREIRA; COTRIM. 1997, p. 101.

2.17

Muitos anos antes de Taaffe, em 1968, o alemão Sigmar Polke apresentava

um quadro chamado Arte moderna (figura 31). Nele, há paródias de diversos

elementos encontrados em pinturas abstratas – embora dificilmente na mesma

obra: campos de cor chapados, uma certa geometria, uma pincelada em espiral,

fazendo-se de expressiva, e um respingo de tinta. O quadro é cercado por uma

área branca, como se a pintura toda fosse uma reprodução de uma obra. Abaixo de

tudo, há uma legenda: Moderne kunst – Arte moderna.

É como se a arte desse um passo para trás e olhasse a própria nuca.

Tentasse olhar para si, mas o resultado não é exatamente como Greenberg dizia

ser a arte moderna, uma arte cada vez mais restrita aos seus meios, com o intuito

de criticar seus próprios limites.56 No movimento de Polke, em seu passo atrás, a

pintura para ver a si própria precisa se fazer de outra coisa, precisa imitar uma

outra voz: de ilustração. O quadro se torna uma espécie de encenação: uma peça

de teatro dentro de uma outra peça.

63

2.18

Imaginar Mondrian pintando em muitas camadas, acrescentando demãos e

demãos do mesmo vermelho, uma sobre a outra, seria inimaginável: uma

contradição, ou uma afronta à ideia de um pintor neoplástico.

A ideia de juntar em uma pintura procedimentos aparentemente inconciliáveis

é uma constante em meu trabalho. Diria que talvez seja uma espécie de fio

condutor de uma obra à outra. Em uma estrutura supostamente econômica, sobras

de tinta. Em uma pintura de áreas de cor lisas, meios-tons construídos por

veladuras sucessivas e transparentes. Em uma concepção do quadro como

superfície, seja o plano ideal modernista, greenberguiano, seja a superfície de uma

casca, de uma pele, começam a aparecer sugestões de ilusão de

tridimensionalidade.

Degradês – ou gradientes de cor –, são usados, historicamente, para dar

tridimensionalidade às formas na pintura. Talvez sejam o modo mais simples de se

sugerir que o espaço planar é profundo, ou ao menos tem algum relevo. O

desenvolvimento da tinta a óleo e seu sucesso no século quinze na Europa permite

passagens suaves de cor, muito mais do que seria possível em têmpera ou afresco.

Isso contribui, junto com a perspectiva linear, para que os objetos da pintura do

Renascimento ganhem volume. Também devemos aos gradientes de cor57 um

maior naturalismo das carnações humanas.

Abolidos na pintura impressionista – ou desde Manet – degradês podem

parecer contrários à ideia de uma pintura moderna planar, com cores intensas. Eles,

porém, são resgatados no primeiro momento do cubismo. Sugerir, através de

passagens suaves de cor ou de tonalidades, que faixas sejam lidas como cilindros é

um recurso frequente em pinturas de Fernand Léger, de Tarsila do Amaral58 (figuras

32 e 33) e em certos quadros de Marcel Duchamp, como A noiva, de 1912 (figura

34). Efeitos parecidos, mas num contexto mais descritivo e decorativo, próprio do

movimento Art Déco, pode ser visto em pinturas da polonesa Tamara de Lempicka

e do brasileiro Vicente do Rego Monteiro59 (figuras 35 e 36). Em obras de juventude

57 A representação da carne humana seria o motivo para a tinta a óleo ter sido inventada, segundo o pintor Willem de Kooning (In: LAKE, 2010, p. 70). 58 O francês Fernand Léger (1881-1955), exerce forte influência sobre a obra da brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973), para quem chega a lecionar, na década de 1920, em Paris.

59 Tamara de Lempicka (1898-1980), pintora polonesa; Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), pintor e poeta brasileiro.

64

Figura 32. Fernand Léger, Hélices, 1918. Óleo sobre tela, 80,9 x 65,4 cm The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

Figura 34. Marcel Duchamp, Noiva, 1912. Óleo sobre tela, 89,5 x 55,6 cm. Philadelphia Museum of Art.

Figura 35. Tamara de Lempicka,

Autorretrato (Tamara no Bugatti

verde), 1925. Óleo sobre madeira,

35 x 26 cm. Coleção particular.

Figura 33. Tarsila do Amaral, Floresta, 1929. Óleo sobre tela, 63,9 x 76,2 cm Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP).

65

Figura 38. Kazimir Malievich, Moças no campo, 1928/29. Óleo sobre tela, 106 x 125 cm. Museu Estatal Russo, São Petersburgo.

de Malievich encontramos procedimentos semelhantes aos de Léger (figura 37). Na

maturidade, o artista russo torna a usar gradientes, com um sentido ligeiramente

diferente, explorando mais a força cromática que o efeito ilusionístico (figura 38).

Atualmente, tendemos a ver os degradês como kitsch: usados em exaustão pelo

design gráfico, associamos seu uso ao desnecessário, ao excessivamente

decorado, ao artificial (figura 39).

Figura 37. Kazimir Malievich, Colhendo centeio, 1912. Óleo sobre tela, 72 x 74,5 cm. Stedelijk Musem, Amsterdã.

Figura 39. Hans Donner, Cenário de Jornal Nacional, do canal Globo de televisão, 1989.

Figura 36. Vicente do Rego Monteiro, Menino nu e tartaruga, 1923. Óleo sobre tela, 92 x 72 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis

66

Figura 40. Sem título, 2009. Óleo sobre MDF, 26 x 34 cm. Foto de Stefan Schmeling.

2.19

Desde 2007, em minhas pinturas, áreas uniformemente cobertas de cor (na

maioria das vezes, faixas verticais) convivem, lado a lado, com degradês. Eles

surgiram como um modo de problematizar a superfície, a princípio apenas como

variações de claro/escuro (figura 40), mas posteriormente se mostraram também

eficazes como passagem de uma cor a outra (figuras 41 e 42), em contraposição à

mudança abrupta das linhas retas ou onduladas.

Variações dos degradês aparecem também na forma da sequência de

retângulos ou de faixas, como caneluras, com pequenas variações de valor e/ou de

cor, criando uma sugestão de que a faixa não seria planar, mas cilíndrica, ou

semicilíndrica (figuras 43, 44, 45 e 46).

67

Figura 42. Sem título, 2015. Óleo sobre tela, 230 x 330 cm. Foto de Stefan Schmeling.

Figura 41. Sem título, 2011. Óleo sobre tela, 113 x 112 cm. Foto de Gabi Carrera.

68

Figura 44. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 84 x 74 cm. Foto de Gabi Carrera.

Figura 43. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 160 x 155 cm. Foto de Stefan Schmeling.

69

Figura 45. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 197 x 205 cm. Foto de Stefan Schmeling.

70

Figura 46. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 174 x 180 cm. Foto de Gabi Carrera.

2.20

Minhas pinturas se baseiam em estruturas simples e repetidas: premissas a

partir de onde a pintura vai acontecer. Com o tempo, as próprias estruturas vão

sofrendo alterações. Como os quadros de listras verticais, que com o tempo

passam a ter as faixas não mais em cores puras, mas com gradientes de cor, ou

que deixam de ser retas, mas sinuosas (figuras 45 e 46).

Outra estrutura que se repete em meus quadros é uma série de faixas

inclinadas e curvas, no sentido descendente, da esquerda para a direita (figuras 47-

51). A princípio, eram variações em torno de ideias para quadros cilíndricos ou

semicilíndricos. Mas logo vi que as formas, no plano de uma tela, trabalhadas de

maneira pictórica, poderiam ter uma ambiguidade entre ilusão e plano, que poderia

ser explorada. Terminei por fazer apenas duas pinturas cujas formas são

literalmente semicilíndricas (figuras 52 e 56), enquanto quadros em tela com essa

matriz são produzidas de 2013 até agora.

Esses trabalhos tiveram outras duas referências. A primeira foi a forma dos

cilindros que vemos nas portas de barbearia (figura 53). Como a partir daquele

elemento tão prosaico – e, contudo, no qual eu já identificava características

comuns à minha pintura – criar uma pintura eloquente?

71

Figura 47. Sem título, 2014. Óleo sobre tela, 34 x 22 cm.

Figura 49. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 80 x 60 x 20 cm. Foto de Gabi Carrera.

Figura 50. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 80 x 60 x 10 cm. Foto de Gabi Carrera.

Figura 48. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 38 x 30 cm. Foto de Gabi Carrera.

72

Figura 52. Sem título, 2012. Óleo sobre chapa galvanizada, 100 x 66 x 34 cm. Foto de Marcelo Almeida.

Figura 53. Sinal usado em porta de

barbearia.

Figura 51. Sem título, 2015. Óleo sobre tela, 36 x 25 cm.

73

60 Convém observar que as faixas tanto nos sinais de barbearia quanto nos mastros de Volpi costumam ter um sentido oposto ao que se vê em minhas pinturas. Se Volpi chegou a fazer quadros com as faixas dos mastros em outro sentido, desconheço.

Figura 54. Alfredo Volpi, Mastros e bandeirinhas de fundo azul, década de 1960. Têmpera sobre tela, 48 x 70 cm. Coleção particular.

Figura 55. Alfredo Volpi, Mastros (Composição cinética), década de 1970. Têmpera sobre tela, 72 x 139,60 cm. Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

Outra referência é a pintura de Volpi. Nas obras do pintor do Cambuci, não

há interesse na representação naturalista de mastros com fitas enroladas. Eles

aparecem elementos que cortam o quadro verticalmente, algumas vezes dando

ancoragem à composição, fazendo contraponto às bandeirinhas, dispostas de

maneira mais dispersa. Em outras situações, quando as bandeirinhas definem um

plano ritmado (uma grade), os mastros provocam uma ruptura, sugerindo uma

quebra no plano (figura 54). Parecem ao mesmo tempo algo à frente (um poste

diante de uma parede de bandeirinhas), e um plano lateral, como se o plano da tela

se dobrasse, feito um biombo (figura 55).60

74

61 Paulo Pasta (1959 - ), pintor brasileiro.

Figura 56. Sem título, 2011. Óleo sobre chapa galvanizada, 80 x 49 x 27 cm.

Figura 57. Sem título, 2011. Óleo sobre papelão e parafuso, 67 x 47 x 10 cm

2.21

Levando em conta o caráter escultural de muitos de meus quadros,

experimentei pintar em superfícies não retangulares. Produzi poucos objetos, com

anos de intervalo entre um e outro desde 2010.

Em minha dissertação de mestrado há referência a duas dessas obras: uma

pintura semicilíndrica (figura 56) e outra, que consiste em um plano dobrado em

três partes (figura 57). Na ocasião da defesa, em 2011, Paulo Pasta,61 integrante da

banca, observara que não via tais trabalhos como pinturas, uma vez que não eram

planos regulares, como quadros. Talvez o que as torne relevos pintados ou

esculturas – e não pinturas –, esteja no fato de que o mais determinante de suas

formas – o desenho de seus suportes – seja dado de antemão, e não construído

pelo ato de pintar. A forma do semicilindro ou do objeto dividido em três planos se

impõe, é mais forte do que a cor, o volume da tinta, a textura ou a forma do que se

pinta sobre ele.

75

Figura 58. Sem título, 2017. Óleo sobre chapa galvanizada, 60 x 40 x 9 cm cada peça.

62 A exposição individual, chamada apenas Fernando Burjato, esteve aberta na Galeria Virgílio entre 15 de março e 09 de abril de 2011. 63 A Mostra de Artes Visuais fazia parte da Jornada de Pesquisa em Arte PPG IA/UNESP 2017 – 2° edição internacional. Ocorreu entre 03 e 06 de outubro de 2017, ocupando a Galeria Alcindo Moreira Filho, no Instituto de Artes da UNESP, em São Paulo.

O primeiro trabalho feito de um plano que se dobra em três foi exposto em

2011, na Galeria Virgílio, em São Paulo. Tem como ponto de partida os pôsteres de

mulheres nuas que costumavam vir encartados em revistas masculinas, dobrados

em três partes. Nesta primeira versão, havia um parafuso coberto de tinta, fazendo

as vezes de um prego, que sustentaria o pôster. Variantes, sem o parafuso ou

prego, foram realizadas em 2017 e expostas nesse mesmo ano na Mostra de Artes

Visuais, na Galeria do Instituto de Artes da UNESP (figura 58).63

76

Outra pintura/objeto, esta com um flerte mais sutil ao campo da escultura,

data de 2010. É um quadro composto por cinco listras de mesma dimensão. A

lateral direita do quadro é ligeiramente curvada (figura 59) e quebra a simetria da

composição.

Outras obras minhas em superfícies não planares têm características

diversas, que talvez em certos aspectos as façam mais escultóricas. Em uma, um

objeto alongado é coberto por inúmeras demãos de tinta que se sobrepõem,

deixando aparecer apenas uma pequena faixa da camada anterior. O volume de

tinta faz com que o objeto cresça e adquira uma nova forma. O ato de pintar, aqui,

equivale ao de esculpir. Essa peça forma um par com outra, construída por um

procedimento semelhante, mas em uma superfície plana, em forma de disco,

constituindo uma única obra (figura 60).

Um processo análogo é o da construção da obra intitulada Duas bolas:

dezenas de camadas sucessivas de tinta acrílica e esmalte são depositadas sobre

a superfície de duas bolas de pingue-pongue; depois, elas são cortadas ao meio,

revelando seu interior e o corpo denso da tinta, com suas incontáveis coberturas de

cor se amontoando umas sobre as outras (figuras 61 e 62).

Se, por um lado, aqui estamos mais francamente na seara da escultura – e

as sobreposições de tinta imitam o processo de moldagem –, nessas duas obras –

a peça masculina de Casal e Duas bolas –, é o corpo da tinta que determina a

forma definitiva, o contorno mesmo dos objetos. Novamente, cobre-se de tinta e,

com isso, se esculpe.

Figura 59. Sem título, 2010. Óleo sobre chapa galvanizada, 100 x 128 cm. Foto de Stefan Schmeling.

77

Figura 60. Casal, 2011/18. Acrílica sobre madeira. Duas peças, uma medindo 16 cm de diâmetro, por 2,5 cm de profundidade, e a outra, 3 x 3 x 8,5 cm.

78

Figura 62. Duas bolas, 2015/20. Acrílica e esmalte, bolas de pingue-pongue, pregos, madeira, compensado e MDF, 26 x 22 x 16 cm.

Figura 61. Duas bolas, trabalho em progresso: a peça sendo cortada ao meio, por uma serra de fita (janeiro de 2020).

79

2.22

A ideia de belo, hoje, segundo o alemão de origem coreana Byung-Chul Han,

está associada ao liso. A superfície incorrupta das peças de design, encabeçadas

pelos smartphones e pelas esculturas de Jeff Koons64 trariam uma beleza sem

interioridade, sem temporalidade, um mundo “da pura positividade, no qual não há

dor, ferimento nem culpa”.65 O “objeto liso”, afirma o autor, “extingue seus

contrários. Toda negatividade é posta de lado.”66

Roland Barthes, em suas Mitologias, escrevendo sobre o novo Citroën,

afirmara que “a lisura é sempre um atributo da perfeição”, e relaciona as aeronaves

dos filmes de ficção científica, feitas de metal sem emendas, com o manto de

Cristo, desprovido de costuras.67

Figura 63. Foto de Marcelo Almeida de detalhe de pintura de 2012.

64 Jeff Koons (1955- ), artista norte-americano.

65 HAN, 2019, P. 14. 66 Ibidem, p. 7. 67 BARTHES, 2013, p. 152.

80

Os cenários e logotipos de Hans Donner,68 difundidos pela rede Globo de

televisão, pertencem à “estética do liso”: seus degradês podem ser vistos como

representações da luz incidindo sobre superfícies lisas, ou vistas de um céu isento

de nuvens.

As superfícies de minhas pinturas, de cores uniformes ou com gradientes de

cor fazem alusão a esse universo, mas não o habitam. Ou, ao menos, não em

tempo integral. Suas superfícies trazem experiências, acidentes, fazer e cobrir o

que é feito. Procuram chamar o espectador para perto.

Figura 64. Sem título, 2017. Óleo e acrílica sobre tela, 150 x 150 cm. Foto de Marcelo Almeida.

68 Hans Donner (1948- ), designer alemão, de cidadania austríaca e brasileira. Seu trabalho está associado, desde meados da década de 1970, à rede Globo de televisão – a começar pela própria marca da emissora.

81

Figura 65. Detalhe da obra reproduzida na Figura 64. Foto de Marcelo Almeida.

2.23

Para fazer o papel de Coringa, na série de televisão Batman, o ator Cesar

Romero se recusou a tirar seu bigode, que acabou coberto pela maquiagem.69

É provável que milhares de crianças, como eu, assistiram às aventuras do

homem-morcego sem nunca ter se dado conta disso. Hoje, entretanto, em qualquer

fotografia — e qualquer reprise — que mostre o vilão, o bigode por trás da

maquiagem nos salta aos olhos.

Existe um desenho, uma espécie de rosto ou máscara do Coringa, que se

sobrepõe à face do ator. Ora é um que vem à tona, obscurecendo o outro, ora é o

contrário. De alguma forma, como em muitas obras de Warhol, onde há uma base

com cores e pinceladas e, por cima, uma imagem serigrafada. O que é pintado e

que é impresso normalmente tem sentido e natureza diversos, e muitas vezes

antagônicos. Talvez daí o incômodo nas rachaduras em quadros de Mondrian.

69 EGAN, 2016, p. 40.

82

2.24

Pinturas reproduzidas em livros ou na tela do computador ou telefone celular

não têm distância. Não há olhar próximo ou distante. O espectador, que não é só

olhos, mas todo o resto, foi excluído. Ver uma pintura, especialmente se for grande,

requer alguma caminhada. O pintor cria uma coreografia para seu público executar.

Há coisas que só se nota de perto. Outras, solicitam uma vista mais distante.

Certos quadros são difíceis de se apreender na totalidade, porque nossos olhos

estancam em um detalhe, e depois saltam e se fixam em outro, como se fôssemos

aqueles amantes que enxergam um pé, um seio, e não conseguem ver a mulher

inteira. Algumas pinturas fazem o oposto: só se mostram como inteireza e recusam-

se a se fazer em partes. Isso a imagem reproduzida não mostra. Essa experiência

não se reproduz.

Pintar é ter consciência dessa cena, desse bailado. Pinturas são objetos, são

janelas. E proposições de experiências. É um palco, mas também o que vem

depois: subir no palco e ver como o cenário de perto se transforma em outra coisa.

Não quero que minha pintura seja a mesma em qualquer distância: penso na barba

despontando em meio a maquiagem do palhaço (ou o bigode de Cesar Romero),

ou da travesti, ou o batom de uma mulher idosa, que de longe define a boca e de

perto se dispersam em trincas.

2.25

O esforço do pintor moderno, muitas vezes, está em negar a profundidade

da tela. Ora, se o espaço profundo, ilusionista, é algo a ser negado é porque ele

estava ali, ao menos implícito. Ele é o ponto de partida, e não o plano ou a

literalidade. O espaço da tela modernista, portanto, é primeiro profundo e, em

segundo momento, plano, porque o artista o achatou, aplicando letras, respingando

tinta ou cobrindo-o com uma cor uniforme. Isso apareceria de forma quase

ilustrativa em obras contemporâneas, como Agrupamento de árvores, de Gerhard

Richter ou Os mestres cantores, de Anselm Kiefer (figuras 66 e 67), ambas pinturas

da década de 1980.

A pintura não tem início com o mundo dos objetos, mas com a ficção, a

linguagem, a ilusão. A planaridade, a literalidade, cara para os modernos – ou ao

menos para muitos modernos (os descritos e/ou influenciados por Greenberg, ao

83

Figura 66. Gerhard Richter. Agrupamento de

árvores, 1987. Óleo sobre tela, 72 cm x 102 cm.

70 Referência a uma obra do brasileiro Waltercio,Caldas (1946- ), apresentada como uma fotografia em seu Manual da ciência popular. Aqui, o artista apresenta imagens de algumas de suas esculturas e objetos, junto com outras obras – como este círculo de copos –, que são apresentadas apenas na publicação, e jamais foram expostas. O livro foi lançado originalmente em 1982, e ganhou uma segunda edição, com acréscimos, em 2008 (CALDAS, 1982, p. 32-33).

Figura 67. Anselm Kiefer, Os mestres cantores,

menos) –, era algo a ser conquistado. No entanto, essa literalidade nunca chega,

como o inconsciente jamais é perscrutado: quando algo vem à tona, é porque não

pertence mais ao inconsciente.

De maneira semelhante, quando um material, ou a superfície do quadro,

parece literal – quando achamos que, por exemplo, aquilo é só um pedaço de

madeira, ou um círculo de copos d’água,70 e nada mais –, logo descobrimos que

estamos enxergando outra coisa, outro mundo. Quando acreditamos que estamos

só olhando para coisas, vemos que estamos também falando com alguém.

Não a literalidade, nem a ilusão, mas alguma coisa entre elas, talvez seja o

espaço da arte, ou ao menos, da pintura. A pintura, a meu ver, tem um vínculo

fundamental com a ilusão – ou ao menos com a ideia de ilusão. Isso me parece

menos presente na escultura. Esculpir, em última instância, desde sempre foi criar

objetos, enquanto na pintura (mesmo na pintura moderna), os materiais parecem

ter sido, de alguma forma (e em algum grau), sublimados. Trombamos com

esculturas, enquanto ainda pensamos em entrar em quadros, ainda que para um

passeio numa superfície.

84

Em minhas obras mais recentes a ilusão é um recurso, tanto quanto um

assunto (figuras 68-78). Há mais lugar para a ilusão da dobra do que para a dobra;

mais lugar para a referência ao cilindro do que para o cilindro de verdade. Há

também, como se verá nos capítulos adiante, ilusão de duas dimensões onde há

três. E mesmo a ilusão de uma pintura, que nem sequer foi feita.

Figura 68. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 32 x 24 cm.

85

Figura 69. Sem título, 2017. Óleo sobre MDF, 30 x 27 cm. Foto de Marcelo Almeida.

Figura 70. Sem título, 2019. Óleo sobre MDF, 33 x 29 cm.

86

Figura 71. Sem título, 2019. Óleo sobre MDF, 31 x 31 cm.

Figura 72. Sem título, 2019. Óleo sobre MDF, 31 x 29 cm.

87

Figura 73. Sem título, 2018. Óleo sobre MDF, 30 x 31 cm.

Figura 74. Sem título, 2019. Óleo sobre MDF, 30 x 31 cm.

88

Figura 75. Sem título, 2018. Óleo sobre MDF, 30 x 30 cm.

Figura 76. Sem título, 2019. Óleo sobre MDF, 33 x 32 cm.

89

Figura 77. Sem título, 2017. Óleo sobre tela, 140 x 150 cm. Foto de Marcelo Almeida.

Figura 78. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 160 x 165 cm. Foto de Gabi Carrera.

90

3.1

Brigado com o pai, um vendedor de tecidos da Normandia, Garcín vive com

poucos recursos em Paris, onde os amigos o encontram, “quase sempre triste”, nos

bares.

O jovem, “bom bebedor de absinto, sonhador que nunca fica bêbado”,1

entusiasma quem o conhece com seus versos. Há, diz, “sorrindo com certa

amargura”, uma razão para ser poeta: seu cérebro é habitado por um pássaro azul.

Certo dia, depois da morte de sua vizinha (de olhos, aliás, muito azuis), uma

moça pela qual vivia apaixonado, Garcín comete suicídio. Seus colegas de boemia,

aterrados, o veem em seu quarto modestíssimo, em meio aos lençóis tingidos de

sangue, com o crânio perfurado por uma bala. Encontram também o poema que ele

estava escrevendo, com suas últimas palavras: “Hoje, em plena primavera, deixo

aberta a porta da gaiola ao pobre pássaro azul”.2

3.2

A história do malfadado Garcín é uma criação do escritor nicaraguense

Rubén Darío (1867-1916) e foi publicada pela primeira vez em 1888.3 Tanto o modo

como é narrada, quanto o seu assunto (um jovem artista, o cenário da vida boêmia,

o amor não correspondido, o desenlace infeliz) são próprios do fim do século

dezenove, lembrando diretamente Baudelaire e Edgar Poe, passando por Verlaine,

Rimbaud, o Balzac de A obra-prima desconhecida e nosso Álvares de Azevedo.

A ideia da inspiração, ou da própria poesia, como algo etéreo, que pode

aportar no poeta como um espírito em um médium é antiga e nos remete aos

1 DARÍO, 2005, p. 5.

2 IBIDEM, p. 13.

3 Trata-se do conto O pássaro azul, publicado originalmente no Chile, num livro intitulado Azul.

3. O Pássaro azul

ou A pintura fora do quadro

91

4 Num pequeno texto chamado O tu na literatura, Paulo Leminski (1944-1989) se refere a essa ideia: “O emissor como mediador: quem fala é a Musa, o nome tutelar, Apolo. O poeta-pitonisa, médium, ‘cavalo’“. (In: LEMINSKI, 1997, p. 70.)

5 PLATÃO, 2011, p. 41 6 “Em minha experiência, uma pintura não é feita, de modo algum, com cores e tinta (...) A pintura não está numa superfície, mas num plano que é imaginado. Ele se move na mente. Não está lá fisicamente de maneira nenhuma. É uma ilusão, um número de mágica (...)”. Palavras do pintor norte americano Philip Guston (1913-1980), em minha tradução do inglês: “In my experience a painting is not made with colours and paint at all. (…) The painting is not on a surface, but on a plane which is imagined. It moves in a mind. It is not there physically at all. It is an illusion, a piece of magic, (...)” (In: STILES; SELZ, 1996, p. 249). 7 Clement Greenberg, em um texto intitulado “abstrato, figurativo e assim por diante”, faz a distinção entre o espaço do quadro pré-modernista, semelhante ao de um palco italiano, e o modernista, planar, raso, como se do palco o pintor só pudesse agir na superfície de sua cortina fechada. In: GREENBERG, 1996, p. 147. 8 Ponto e linha sobre plano: contribuição à análise dos elementos da pintura é um livro escrito pelo artista russo Wassily Kandinsky (1866-1944), um dos inventores da pintura abstrata. Foi publicado originalmente em 1926 na Alemanha.

gregos antigos.4 “Os poetas”, afirma Platão (na boca de Sócrates), “não são nada

além de intérpretes dos deuses, possuídos por aquele que possui cada um.”5

Há no conto de Darío, entretanto, um outro aspecto: o artista, ou seu

cérebro, não só não é a origem da poesia, como representa sua prisão. Não é que

a poesia apenas não venha da cabeça; seria preciso arrebentá-la, para que a arte

pudesse aflorar em liberdade.

3.3

Mais do que se falar da morte da pintura, no século vinte se anuncia a morte

do quadro.

Primeiro se atesta o fim do quadro como uma janela. Aquele pequeno palco

italiano escavado na parede, aquele número de mágica, pedaço de ilusão6 (num

mundo talvez avesso a elas) ou exibição burguesa de virtuosismo técnico – o que

quer que fosse, não parecia ter muito lugar na modernidade.

Num segundo momento, mesmo o quadro modernista, como superfície

plana, restrito àquilo que é próprio de sua natureza,7 ponto e linha sobre plano,8 ou

mesmo em sua forma extrema, o monocromo, parecia estar, automaticamente,

com os dias contados.9 Se Ulisses, de James Joyce, era o romance escrito para

92

9 “Através de seu historicismo (sua concepção linear da história) e de seu essencialismo (sua ideia de que existia algo como a essência da pintura, de certo modo encoberta e esperando para ser revelada)”, segundo Yve-Alain Bois, “o projeto da pintura abstrata só podia entender seu nascimento como um chamado para o seu fim”. In: BOIS, 2009, p. 277. 10 A afirmação sobre o livro de Joyce, muito mais conhecida do que o ensaio (intitulado James Joyce) do qual ela faz parte, é de Harry Levin e data de 1941. Segundo Haroldo de Campos, alguma coisa parecida (embora “menos extrema”) aconteceria aqui, com Guimarães Rosa. In: CAMPOS; CAMPOS, PIGNATARI, 2006 p. 193. 11 OITICICA, 1986, página 42.

acabar com todos os romances,10 muitos quadros no século XX parecem (ou se

pretendem) executados para acabar com todos os quadros.

Elementos constitutivos da pintura, como a cor ou mesmo a composição

continuariam a existir, ou seriam toleráveis, contanto que fora do objeto quadro.

Hélio Oiticica chega a se referir a um trabalho que viria a se chamar A pintura

depois do quadro.11

“A meu ver”, escreve, num outro momento, o artista carioca, “a quebra do

retângulo do quadro ou de qualquer forma regular (triângulo, círculo, etc.) é a

vontade de dar uma dimensão ilimitada à obra, dimensão infinita.”12

É como se a pintura se livrasse do quadro e assim, curiosamente,

continuasse existindo, incorpórea, de forma até mais intensa. E o quadro, em vez

de tornar a pintura possível (instaurando o espaço ficcional da pintura), ao contrário,

a contivesse – e suas bordas, sua forma retangular, a tolheriam, a impediriam de

tomar o mundo, de ganhar sua “dimensão infinita”.

Era o quadro que não deixava voar o pássaro azul?

3.4

Em fevereiro de 1961, Oiticica anuncia que a “era do fim do quadro” já

estava “definitivamente inaugurada”:

Para mim a dialética que envolve o problema da pintura avançou,

juntamente com as experiências (as obras), no sentido da

transformada pintura-quadro em outra coisa (...), que já não é mais

possível aceitar o desenvolvimento “dentro do quadro”, o quadro já

se saturou. Longe de ser a “morte da pintura”, é a sua salvação,

pois a morte mesmo seria a continuação do quadro como tal, e

93

como “suporte” da “pintura”. Como está tudo tão claro agora: que a

pintura teria de sair para o espaço, ser completa, não em superfície,

em aparência, mas na sua integridade profunda. Creio que só

partindo desses elementos novos poder-se-á levar adiante o que

começaram os grandes construtores do começo do século

(Kandinsky, Malevitch, Tatlin, Mondrian etc.), construtores do fim da

figura e do quadro, e do começo de algo novo, não por serem

“geométricos” mas porque atingem com maior objetividade o

problema da não-objetividade. (...) Na verdade a desintegração do

quadro ainda é a continuação da desintegração da figura, à procura

de uma arte não-naturalista, não-objetiva. Há um ano e dois meses,

praticamente, achei palavras de Mondrian que profetizavam a

missão do artista não-objetivo. Dizia ele que o artista não-objetivo,

que quisesse uma arte verdadeiramente não-naturalista, deveria

levar seu intento até as últimas consequências; dizia também que a

solução não seria o mural nem a arte aplicada, mas algo

expressivo, que seria como “a beleza da vida”, algo que não podia

definir, pois ainda não existia (...).13

Não se trata de um artista abandonando a prática da pintura, como Marcel

Duchamp14 o fizera anos antes, seguido ou acompanhado por muitos. Oiticica, a

princípio um pintor – como Lygia Clark, Donald Judd, Kurt Schwitters, Rodchenko15

e uma legião de artistas do século vinte – não diz adeus ao seu ofício, mas ao

quadro, de modo geral. De maneira semelhante ao que acontece com os artistas

citados acima, não é apenas uma decisão pessoal – ele abandonando os pincéis

para atuar em outras linguagens –, mas um diagnóstico: ele não faz mais quadros

porque “o quadro acabou”, isto é, em sua concepção linear da história, quadros não

13 Ibidem, p. 26-27. 14 Marcel Duchamp (1887-1968), artista francês, cuja carreira se desenvolveu entre seu país de origem e os Estados Unidos. Um dos mais influentes artistas da segunda metade do século 20. Pintor por formação, Duchamp abandona o ofício deliberadamente em 1912. O crítico belga Thierry de Duve dedica um livro inteiro, intitulado Pictorial nominalism, ao abandono da pintura por Duchamp e o consequente surgimento do readymade. Ver DUVE, 1991. 15 Tanto a brasileira Lygia Clark, amiga próxima de Hélio Oiticica, quanto os demais citados, o estadunidense Donald Judd (1928-1994), o alemão Kurt Schwitters (1887-1948) e o russo Alexandr Rodchenko (1891-1956), iniciaram suas respectivas carreiras como pintores para depois enveredarem para outras linguagens artísticas.

94

16 Menos de uma década antes, em 1952, em São Paulo, os artistas do Grupo Ruptura afirmavam, em seu manifesto, que “o naturalismo científico da renascença – o método para representar o mundo exterior (três dimensões) sobre um plano (duas dimensões) esgotou sua tarefa histórica.” Eles não falam aqui do fim do quadro, mas do fim da pintura figurativa ou, ao menos, ilusionista. Mas o mais importante dessa frase, a meu ver, está na afirmação de que esse tipo de arte teria “esgotado sua tarefa histórica”, revelando uma crença em uma história (da arte) linear que, neste caso, caminharia na direção do fim do ilusionismo (In: AMARAL, 1998, p. 266). Desse ponto, é lógico antever que o próximo degrau será a dissolução do próprio quadro. Os integrantes do Grupo Ruptura são os artistas Lothar Charoux (1912-1987), Waldemar Cordeiro (1925-1973), Geraldo de Barros (1923-1998), Kazmer Féjer (1923-1989), Leopoldo Haar (1910-1954), Luiz Sacilotto (1924-2003), e Anatol Wladyslaw (1913-2004). 17 Ibidem, p. 50. 18 Entrevista de 15 de outubro de 1979. In: PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p. 142.

Figura 79. Hélio Oiticica, Grande Núcleo, 1960/66. Coleção César e Claudio Oiticica, Rio de Janeiro.

seriam mais possíveis.16 O desenvolvimento do trabalho de Oiticica, segundo ele

próprio seria, desde 1959, a “transição do quadro para o espaço”.17

Vinte anos mais tarde (e apenas seis meses antes de sua morte), em 1979,

descrevendo seus trabalhos da década de 1960, Oiticica afirma querer fazer “um

novo tipo de coisa que não tenha nada que ver com os modelos, do que se chamou

e se conheceu como arte”. E conclui: “pintura e escultura para mim, são duas

coisas que acabaram mesmo, não é nem dizer que eu parei de pintar... não foi isso,

eu acabei com a pintura, é totalmente diferente...”18

95

19 O italiano Franco Berardi, referindo-se ao movimento dadá: “Irônica banalização do gesto artístico. Irônica auralização do objeto de uso cotidiano.” (BERARDI, 2019, p. 75) 20 Ibidem, p. 21. 21 Refiro-me às obras dos artistas Joseph Beuys (1921-1986), Richard Serra (1938 - ) e Giovanni Anselmo (1934 - ) – alemão, estadunidense e italiano, respectivamente.

3.5

De diversas maneiras, a arte do século vinte é a arte do trânsito entre o

espaço da arte, o espaço absoluto (abstrato), e o mundo. Uma das características

mais marcantes da modernidade é a crença que o pássaro azul de Darío possa de

fato habitar o céu de nossa cidade.

Frequentemente os modernos foram chamados de blasfemos ou

iconoclastas. Podemos, entretanto, pensar no sentido inverso: no gesto de trazer a

arte para o cotidiano (ou o cotidiano para a arte, o que é a mesma coisa), há um

esforço de “sacralizar” o mundo exterior, transformá-lo, ele todo, num quadro.19 “A

obra”, escreve Oiticica, “não quer ligar o homem ao cotidiano que ele repugnou,

conciliar o temporal com o eterno, e sim transformar esse cotidiano em eterno,

achando a eternidade na temporalidade.”20

Obras modernistas, contemporâneas ou pós-modernas (neste caso, não

importa), feitas com materiais ordinários, não raramente perecíveis ou mesmo

abjetos, não representariam necessariamente a banalização ou a vulgarização do

repertório “sagrado” da arte – o museu, o quadro, com seu espaço virtual

circunscrito por sua moldura, a escultura com seu pedestal –, mas, talvez, o

caminho inverso: o encantamento do mundo dos objetos crus, das garrafas, dos

pigmentos, dos materiais industriais ou orgânicos: a elevação do corriqueiro ao

extraordinário. No século vinte faz-se (ou pretende-se fazer) metafísica com feltro e

gordura, sublime com metal enferrujado. Serve-se de alface e pedra para chegar à

condição humana.21

3.6

Colocar-se diante de um quadro que representa alguma coisa – uma árvore,

que seja –, é olhar o circunstancial, o momentâneo. É olhar uma parte – pois se

vemos um galho, trata-se de um pedaço da árvore; se vemos a árvore inteira, trata-

se de um trecho do jardim, e assim por diante –, e também é olhar um objeto, essa

coisa chamada quadro. Para quem acredita que se pode experimentar o todo, o

96

22 “Para criar unidade”, escreveu Mondrian em 1941, “arte deve seguir não o aspecto da realidade mas o que a natureza realmente é”. Traduzido por mim do inglês: “To create Unity, art has to follow not nature’s aspect but what nature really is.” Do texto Toward the true vision of Reality (Na direção de uma visão verdadeira da realidade). In: MONDRIAN AND HIS STUDIOS: COLOUR IN SPACE, 2014, p. 12.) 23 MONDRIAN, 2008, p. 171. 24 Do texto A realização do Neoplasticismo no futuro distante e na arquitetura de hoje (arquitetura entendida como todo o nosso ambiente [não-natural]). Ibidem, p. 135.

absoluto, concentrar-se no particular – na parte, e não no todo – é de uma

insignificância imperdoável. Mondrian,22 um dos principais inspiradores de Oiticica,

é um pintor de quadros, mas que prenuncia, sobretudo em seus escritos, sua

obsolescência – ou sua dissolução –, num mundo futuro construído pelo homem.

Repito: a casa não deve ser mais fechada e separada em sua

expressão plástica. A rua menos ainda. Embora tenham funções

diferentes, elas devem formar uma unidade. Para se chegar a isso,

não devemos mais considerar a residência como uma “caixa”. A

ideia de “lar” (home, sweet home) deve ser abandonada. Assim

como a ideia convencional de “rua”: devemos considerar a casa e a

rua como a cidade, que é uma unidade, formada por planos que

estão compostos em uma oposição neutralizante, pela qual toda

segregação e exclusão são eliminadas. O mesmo princípio deve

reinar no interior da casa. Esta não deve mais ser um acúmulo de

cômodos, formado por quatro paredes com nada além de buracos

para portas e janelas, mas uma construção de planos em cor e não-

cor, em harmonia com os móveis e utensílios – que não necessitam

ser nada além de elementos componentes de um todo. E o

homem? Este não deve ser nada em-si-próprio e ser, igualmente,

apenas uma parte do todo. Assim, quando ele não sentir mais sua

individualidade, será feliz no paraíso terrestre que ele próprio

criou.23

Esse “paraíso terrestre” viria, no futuro, provavelmente de maneira paulatina,

pois o homem, no momento que vivia Mondrian, talvez ainda não estivesse pronto

para ele. “Na época atual”, escreve o artista em 1922, “o que foi conquistado pela

arte ainda deve limitar-se a ela. A exterioridade à nossa volta ainda não pode se

realizar como pura expressão plástica da harmonia.”24 O interior de uma casa não

97

seria construído por uma pessoa e depois decorado com objetos que haviam sido

concebidos, cada um, isoladamente. O “mobiliário” (e as aspas são de Mondrian),

“está relacionado com a articulação espacial da sala, pois ambos são criados

simultaneamente.” (o grifo também é dele). “A posição de um armário”, prossegue,

“é tão importante quanto sua forma e cor, e estas são tão importantes quanto o

desenho do espaço. Arquiteto, escultor e pintor encontram sua identidade essencial

na colaboração, ou estão unidos numa só pessoa.”25

Não faz muito sentido pensar em uma sala, neste universo concebido por

Mondrian, com quadros na parede – pois o próprio interior seria construído como

uma obra de arte. Em 1919-20, em um texto em forma de diálogo (ou triálogo,

como ele chama, pois a conversa se dá entre três personagens), Mondrian escreve:

(...) existe uma solução ainda melhor: parar de fazer pinturas

separadas! Se todos que concordarem darem forma às suas salas

em linhas neoplásticas, nós poderemos gradualmente dispensar até

mesmo pinturas neoplásticas. Construída “à nossa volta”, a nova

forma é ainda mais verdadeiramente viva. Realizar uma pintura ou

uma sala: ambos são igualmente difíceis.26

Mondrian chega a conceber algumas pinturas fora do quadro. Em 1925, Ida

Bienert, uma colecionadora de Dresden, junto com seu filho Friedrich, adquiriu

algumas de suas pinturas e lhe propôs, por intermédio da historiadora de arte

Sophie Küppers, que o artista concebesse uma sala para ela.27 O criador do

neoplasticismo pintou três guaches para o projeto, conhecido como O salão de

Madame B, mas nunca o chegou a ver concretizado.28

25 Ibidem, p. 143. 26 Tradução minha do inglês: “(...) there is a yet better solution: to cease making separate paintings! If all who agree shaped their rooms along Neo-Plastic lines, we could gradually dispense even with Neo-Plastic painting. Realized “around us”, the New Plastic is even more truly alive. To execute a painting or a room: both are equally difficult.” MONDRIAN, 1995, p. 88. 27 BLOTKAMP, 2001, p. 154-155. 28 Posteriormente, ainda na década de 1920, o artista foi responsável por outras experiências no espaço tridimensional: dois cenários para espetáculos, ambos com texto de Michel Seuphor (Ibidem, p. 137).

98

29 O’DOHERTY, 2002, p. 95. Sobre a construção da versão em fórmica do Salão de madame B em 1970, ver MELLOW, 1970, p. 109.

Figura 80. Piet Mondrian, Estudo de cor para o Salão de Ida Bienert (Axonometria II), 1926. Guache sobre papel, 37,3 x 56 cm. Kupferstich-Kabinett, Dresden.

Figura 81. Piet Mondrian, Salão de Madame B, 1926. Executado em 1970. Chapas de plástico laminado sobre madeira. Pace Gallery, Nova York.

Em 1970, vinte e seis anos depois da morte de Mondrian, para uma

exposição na Pace Gallery, em Nova York, foi realizada uma versão do Salão. Em

vez de pintura, as áreas de cor foram constituídas por chapas de plástico laminado

(figuras 80 e 81).29

99

Figura 82. El Lissitzky, Prounen Raum, Grande Exposição de Arte Berlim, 1923.

Figura 83. El Lissitzky, Gabinete abstrato, 1927. Reconstrução de 1982. Sprengel Museum, Hannover.

3.7

O artista russo El Lissitzky, que viria a se casar com Sophie Küppers, teria se

mostrado desapontado com o projeto de Mondrian, provavelmente visto através de

fotografias mostradas por ela.30 Lissitzky, em 1923, havia exibido em Berlim o

Prounen Raum (figura 82), uma obra de arte onde o espaço onde os objetos são

dispostos – e como eles são dispostos – é tão ou mais importante que os objetos

em si. Nos anos seguintes, o artista desenvolveria dois projetos de salas de

exposição, Sala para arte construtiva (Exposição Internacional de Dresden, 1926) e

Gabinete abstrato (Museu Provincial de Hannover, 1927-28 — figura 83):

ambientes onde obras de outros artistas seriam exibidas, mas que, em si, trazem

algo da concepção neoplástica do “ambiente criado pelo homem”, que Mondrian

preconizava em seus textos.

30 BLOTKAMP, 2001, p.155.

100

31 O nome do grupo, fundado em 1929, que seria abreviatura, ao mesmo tempo de Artistas revolucionários e Real avant-garde (verdadeira vanguarda), se escrevia dessa maneira, em minúsculas. (MUZEUM SZTUKI, [2014?], p. 8) 32 A coleção ainda consta com obras de Theo Van Doesburg (1883-1931), Georges Vantongerloo (1886-1965), Sophie Tauber-Arp (1889-1943), Enrico Prampolini (1894-1956), Vilmos Huszár (1884-1960), entre outros.

3.8

O Muzeum Sztuki, em Łódź (figura 84), na Polônia, um dos primeiros do

mundo dedicados exclusivamente à arte moderna, havia mudado de sede após a

Segunda Guerra Mundial, e suas salas decoradas à maneira art nouveau não

pareciam apropriadas para mostrar a coleção de obras abstratas, de caráter

construtivo, doada pelo grupo polonês de vanguarda conhecido como a.r.31 O

diretor da instituição, Marian Minich, então convidou Władysław Strzemiński (1893-

1952) para construir um espaço com esse propósito.

Figura 84. Detalhe de uma antessala do Muzeum Stuki, em Łódź, que mantém sua decoração original. Nas salas seguintes, espaços dedicados à exposições de arte, foram adaptadas, mais recentemente, como cubos brancos.

Em 13 de junho de 1948, inaugurava-se a Sala Neoplástica, com obras da

Coleção Internacional de Arte Moderna, doada pelo a.r., que incluía o próprio

Strzemiński e sua esposa, Katarzina Kobro (1898-1951),32 membros-chave do

grupo.

101

Figura 85. Władysław Strzemiński, Sala Neoplástica, desenhada em 1947 e executada no ano seguinte. Reconstrução de 1960. Foto de 2010. Muzeum Sztuki, Łódź.

Figura 86. Władysław Strzemiński, Sala Neoplástica. Vista recente da sala, abrigando, à esquerda, uma obra da artista norte-americana Susan Hiller (1940-2019). Foto de setembro de 2019. Muzeum Sztuki, Łódź.

102

Apesar do nome e de suas cores – as três primárias, além de branco e preto

– remeterem a Mondrian e a Theo Van Doesburg (com quem Strzemiński se

correspondia desde 1928), Sala Neoplástica não se apresenta como um trabalho

de arte fechado em si, mas um espaço para abrigar outras obras, o que remete ao

Gabinete abstrato, de El Lissitzky33 e nos lembra, de certa forma, aos ateliês de

Mondrian, dos quais, provavelmente, Strzemiński não tinha conhecimento.34

3.9

Os ateliês que Mondrian ocupou, pelo menos em seus últimos vinte e dois

anos de vida, divididos entre Paris, Londres e Nova York35 talvez estejam mais

próximos daquilo que ele descreve ou sonha em seus textos do que o Salão de

Madame B.

Os estúdios, além de locais de trabalho, eram expressões artísticas em si, ou

“uma demonstração de suas ideias artísticas e filosóficas.”36 Esses interiores, tanto

em Paris, Londres ou Nova York, eram povoados não apenas por pinturas prontas

e em andamento, mas por retângulos de cor pintados em papelão e distribuídos por

todo o espaço e peças de mobiliário também criadas pelo artista. Estar lá dentro foi

descrito tanto como entrar no Paraíso,37 quanto como caminhar no interior de uma

pintura de Mondrian38 – o que, no final, seria a mesma coisa.

33 Em 1950, tida como incompatível com o realismo socialista, estilo oficial do Estado Polonês, a Sala Neoplástica foi repintada, e as obras que eram expostas ali foram retiradas. Em 1960, a sala foi reconstruída por um ex-aluno de Strzemiński, Bolesław Utkin, e permanece como o ponto central do Museu de Arte de Łódź (MUZEUM SZTUKI, [2014?]). As obras da Coleção Internacional de Arte Moderna, no entanto, desde 2008 costumam ser expostas na outra sede do museu, chamada de MS2.

34 “É quase implausível que Strzemiński tenha visto fotografias do último ateliê de Mondrian (...)”, escreve Anna Saciuk-Gązowska na apresentação do catálogo Organizers of Life: De Stijl, the Polish Avant-Garde and Design, 2017. 35 Mondrian, nascido na cidade holandesa de Amersfoort, morou em Amsterdã, onde estudou na Rijksakademie voor Beeldende Kunsten. Viveu em Paris entre 1912 e 1914, e depois entre 1919 e 1938. Os anos da Primeira Guerra ele passou em Laren, cidade holandesa próxima a Amsterdã. Entre 1938 e 1940 ele viveu em Londres e, de 1941 até sua morte, em 1944, em Nova York. 36 As palavras são de Ingelies Vermeulen, em seu texto “As you stepped inside, ou were in Paradise” – The Paris studio. In: JONG, 2015, p. 111. 37 É como Maud van Loon, amiga de Mondrian, descreve o ateliê de Paris (Ibidem, p. 96). 38 A comparação é do pintor Willem de Kooning (1904-1997), depois de uma visita ao ateliê de Nova York, citado no texto de Ingelies Vermeulen, intitulado, justamente, Like walking around in one of Mondrian’s Paintings – Mondrian’s last studios in New York (Ibidem, p. 179).

103

Figura 87. Vista do ateliê de Mondrian na Rue du Départ, em Paris. Abril de 1926.

Figura 88. Vista do ateliê de Mondrian na Rua 59, em Nova York. 1938.

Figura 89. Mondrian e Harry Holtzman no ateliê da Rua 59, em Nova York. 1941.

104

39 Lygia, em 1959, cinco anos antes da carta citada a Oiticica, escreve em seu diário uma Carta a Mondrian, uma espécie de confidência em forma de conversa ao criador do neoplasticismo (que havia morrido mais de uma década antes), onde se lê “(...) Você hoje está mais vivo para mim que todas as pessoas que me compreendem, até um certo ponto.” In: FERREIRA; COTRIM, 2006, p. 48. 40 CLARK; OITICICA, 1998, p.17-18. 41 Ibidem, p. 17. 42 Ibidem, p. 19. 43 No quarto capítulo de minha dissertação de mestrado, analiso, com maior vagar, o texto de Fried. No sexto capítulo, trato da Teoria do não-objeto, escrito de Ferreira Gullar que tem sua gênese em obras de Lygia Clark. (BROGGIATO, 2011)

3.10

Em uma carta datada de 19 de janeiro de 1964, Lygia Clark escreve de Paris

a Hélio Oiticica. De maneira semelhante a seu amigo, ela vê como um fato a

derrocada do quadro e igualmente atribui a Mondrian, “o maior de todos”,39 seu

“esgotamento”. A crise desencadeada pela obra do pintor holandês, em sua

opinião, é “mil vezes mais séria e maior” do que a provocada por Picasso. Seria

uma “crise de estrutura” – não de “estrutura formal”, explica, “como sempre houve”.

O problema, agora, seria de “estrutura total”. É “o retângulo”, diz Lygia, “que já não

satisfaz como meio de expressão.”40 Se antes a crise envolvia o que estava dentro

dos limites da moldura, agora era o próprio quadro que se descobria em cheque.

Lygia demonstra, contudo, insatisfação com o que vê na produção de muitos

artistas recentes, trabalhando além do retângulo: “Vi uma galeria toda de arte nessa

base. Penduricalhos por toda parte – me lembrou muito arte popular ou bibelôs de

parede (...) Vi verdadeiros ‘broches’ pendurados pelos muros. Broches de Loja

Americana.”41

Aparentemente, romper a forma do quadro, extravasar seus limites não

bastava para impregnar o mundo de arte. “Falta por aí, se vê”, ela escreve na

mesma carta, “a transposição que vai além do objeto. É a falta completa de

metafísica.”42

3.11

Algo semelhante à queixa de Lygia Clark sobre a “falta de metafísica” nas

obras de arte recentes aparece, três anos mais tarde, num texto de um crítico norte

-americano, Michael Fried, intitulado Art and objecthood. 43

105

44 Do texto Art and objecthood, de Michael Fried (1939 - ), publicado originalmente na revista estadunidense Artforum, na edição de junho de 167. In: BATTCOCK, 1995, p. 147. A coincidência desta carta de Lygia Clark com o texto de Fried também aparece num ponto em que Lygia, se referindo com descontentamento com obras de artistas jovens que vê na França, escreve: “Daí nasce a meu ver o ato somente imediato – todos te dão a possibilidade de atuar na obra, mas o seu gesto é completamente destituído de expressividade. É o brinquedo.” (CLARK; OITICICA, 1998, p. 19). Fried, no final de seu texto, opõe uma certa ênfase no tempo ou, “mais precisamente, com a duração da experiência” (o grifo é dele) dos trabalhos literalistas, com a sensação de instantaneidade e de constante presença que emanaria da pintura modernista. (In: BATTCOCK, 1995, p. 145-146) 45 CLARK; OITICICA, 1998, p. 19.

Fried vê com maus olhos a grande aproximação que vê surgir, na década de

1960, entre obras de arte e objetos comuns, não-artísticos. Nunca, até então, obras

de arte e objetos quaisquer, ordinários, tinham sido tão semelhantes. Se não

encontrássemos uns em museus e galerias, mas em outro espaço, confundiríamos

com os outros. Essas obras, tão próximas aos objetos não-artísticos, que Fried

chama de literalistas (e que boa parte delas hoje chamamos de minimalistas),

padeceriam da falta de um estado de atemporalidade, de “presença contínua”, que

o crítico identifica na pintura modernista. Seu texto termina afirmando que “somos

todos literalistas na maior parte ou em todas as nossas vidas”, enquanto “o estado

de presença é graça.” As obras minimalistas, portanto, por serem demasiado

“literais”, não proporcionariam ao espectador uma experiência muito diferente

daquelas que ele tem no resto de seus dias, enquanto outras obras, como nas

pinturas modernas, produziriam uma espécie de epifania.44

Tanto na carta (muito breve) da artista brasileira quanto no texto de Fried,

fala-se sobre necessidade de distinção entre o objeto, como qualquer um que

vemos no dia a dia, e a arte, que o transcenderia – entre o puramente físico, nas

palavras de Lygia, e o metafísico. O céu onde voa (ou pode voar) o pássaro azul

não é totalmente deste mundo; para que a realidade concreta possa ser arte, ela

não poderia ser apenas física. Isso, porém, não quer dizer que a artista brasileira e

o crítico norte-americano estejam advogando em prol de uma arte religiosa. Ao

menos não num sentido estrito.

Na mesma carta endereçada a Oiticica, Lygia, depois de se referir às obras

carentes de metafísica, prossegue: “Não é como nós pretendemos: revelar o avenir

no próprio momento-ato”.45 Cabe ao artista, portanto, fazer com que o presente (o

momento-ato) seja prenhe de futuro (avenir, em francês), de utopia, daquele

106

paraíso terrestre, de que nos fala Mondrian. Pois o porvir, ao menos para os

artistas de vanguarda e seus herdeiros (assim como nas utopias políticas), é

sinônimo de esperança. “O futuro”, escreveu Oscar Wilde, abrindo a modernidade,

em 1891, “é o que os artistas são.”46

3.12

No dia 07 de abril de 1970, o alemão Blinky Palermo47 inaugurou uma obra

chamada Escadaria,48 na galeria Konrad Fischer, em Düsseldorf. Tratava-se de

uma pintura executada diretamente na parede, concebida como uma obra efêmera

– ela estaria ali apenas até o dia 02 de maio do mesmo ano, e no dia seguinte seria

recoberta de tinta branca.

Era comum na Alemanha paredes de espaços públicos como corredores,

escadas e banheiros, serem pintadas com duas cores. Também no Brasil, até hoje,

em escolas públicas, por exemplo, usa-se tinta látex ou acrílica em um tom claro

(branco ou creme) na porção mais alta (onde a maioria das pessoas não alcança) e

na maior parte da parede, do chão até um pouco menos de dois metros, uma cor

acinzentada (para, supostamente, a sujeira aparecer menos), aplicada em um outro

tipo de tinta (óleo, normalmente), mais resistente a sucessivas limpezas.

A obra de Palermo consistia na reprodução da pintura da parede lateral à

escadaria de seu prédio na parede da galeria. O que se via, então, era uma grande

área verde-oliva, numa forma ziguezagueante em uma extensão de 4 metros de

altura por 10,8 metros de largura, do canto inferior esquerdo ao superior direito. O

título da obra dispensava maiores explicações.49

46 WILDE, 2003, p. 72. 47 O artista, nascido em 1943 com o nome Peter Schwarze, ao ser adotado ainda bebê, teve seu sobrenome mudado para Heisterkamp. Seu pseudônimo, Blinky Palermo, surge pela semelhança física que teria com um conhecido empresário de Boxe e mafioso norte-americano. Morreu em 1977. 48 Do texto About space and time: Blinky Palermo’s wall drawings and paintings, de Susanne Küper (In: BLINKY PALERMO: RETROSPECTIVE 1964-1977, 2010, p. 60-79). 49 Escadaria (Treppenhaus) não a única obra de Palermo envolvendo escadas. Em agosto/setembro de 1970, como parte de uma exposição coletiva intitulada Strategy: get arts, Palermo apresentou uma pintura de parede que era visível de uma escadaria. Entre maio e junho do ano seguinte, exibiu uma pintura de parede chamada Escadaria II, em Frankfurt, como parte da Experimenta 4. De junho a outubro de 1972, ele participou da Documenta 5, em Kassel, com uma pintura de parede em uma das escadarias do Museum Fridericianum. Ibidem, p. 77-78.

107

Este não foi o primeiro nem o último trabalho desta natureza do artista

alemão, que entre 1968 e 1973 realizou diversas pinturas e desenhos de parede,

todas obras concebidas como temporárias, das quais temos apenas registros

fotográficos (não raramente, de má qualidade).

A Escadaria de Palermo nada tem do “paraíso terrestre” preconizado por

Mondrian. Também não representa “a salvação da pintura”, para atingir sua

completude, aludida por Oiticica. Sua beleza, se existe, está, sim, mais próxima da

obra do autor dos Bólides que do pintor holandês, mas não parece pertencer à

mesma linhagem utópica. Há ali uma postura duchampiana, é quase uma pintura

readymade, se não fosse isso uma contradição em termos. Escadaria, assim como

suas outras pinturas de parede, eventualmente com um colorido mais exuberante,

não representa um passo adiante em relação à prática da pintura. Não é a pintura

além do quadro, até porque Palermo naquele momento continuava produzindo

quadros.

Figura 90. Blinky Palermo, Escadaria, 1970. Galerie Konrad Fischer, Düsseldorf.

108

Figura 94. Blinky Palermo, Azul/verde, 1968. Tecido de algodão. 200 x 70 cm. Coleção particular.

Figura 91. Blinky Palermo, Escadaria, 1970. Serigrafia sobre papelão. 60 x 100 cm Tate, Londres.

Figuras 92 e 93. Blinky Palermo, Pintura de parede em paredes frente a frente, 1971. Galerie Heiner Friedrich, Munique.

109

50 Os quadros de tecido (stoffbilder), realizados a partir de 1966, constituem a maior série de obras feita por Palermo. Em sua carreira, de apenas quinze anos de duração (o artista morreu prematuramente aos 34 anos), Palermo deixou em torno de setenta quadros de tecido. In: Color Chart: Reinventing Color, 1950 to Today, 2008, p. 96.

Figura 95. Blinky Palermo, Coney Island II, 1975 Acrílica sobre alumínio. 26,7 x 21 cm (cada painel). Colelção Ströher, Darmstadt.

Seus quadros eram feitos com tinta acrílica sobre alumínio ou sobre tela. Às

vezes, nem precisavam ser pintados: seus quadros de tecido eram compostos por

panos industriais de diferentes cores, comprados em lojas de departamentos em

Düsseldorf,50 costurados a máquina e esticados em chassis de pintura. Apresentam

ironia e uma certa distância do sonho de integração de Mondrian, encampado por

Oiticica. Não são exatamente pinturas de cavalete, levando em conta o modo como

são executados (do ponto de vista técnico, sequer são pinturas), embora tratem-se,

sem dúvida, de superfícies coloridas, muito semelhantes a quadros. Se há algum

rompimento ali, não é o do retângulo. Não são menos ousados do que suas

pinturas de parede, todavia seguem paralelos a elas, com análogo caráter

inquietante.

Talvez, para um alemão nascido nos anos 1940, a felicidade do homem no

paraíso terrestre criado por ele não fosse algo passível de se visualizar.

110

51 Embora o futuro já fosse celebrado desde as últimas décadas do século anterior, marcado pela revolução industrial e pelo desenvolvimento das metrópoles. 52 Em Fundação e Manifesto do futurismo, escrito por Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) em 1908, e publicado originalmente em francês, no jornal Le Figaro, em 20 de fevereiro de do ano seguinte. In: CHIPP, 1999, p. 291. 53 A frase é de Millôr Fernandes (FERNANDES, 2000, p. 484). 54 ROSSI, 2013, p. 44. 55 WANKE, 1986, p. 17.

3.13

O século vinte é, em boa parte, o século do futuro. Um futuro que se sonhava

redentor do presente, anunciado com alarde pelo primeiro dos movimentos

organizados de vanguarda, o futurismo.51 Marinetti, poeta e cabeça dos jovens

artistas italianos, propõe a destruição dos museus e uma relação de antagonismo

com o passado. Afirma desejar a libertação da Itália, seu país, “de sua fétida

gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.”52 Para se inventar

o futurista, é preciso criar o passadista: “não há vanguarda sem retaguarda.”53

Não são apenas os adeptos de Marinetti que veem o futuro como uma

superação natural dos problemas atuais (e os artistas como emissários do tempo

vindouro). As utopias políticas, como as artísticas, anunciam seus messias com

outro nome. O século vinte, embora laico por excelência, traz, contudo, suas

divindades e seus paraísos ocultos. “Se não se acredita num Paraíso como lugar de

eternas beatitudes, reservado por Deus às almas dos justos como prêmio pelo

comportamento das mesmas na terra, é possível imaginar algo mais?”, pergunta o

pensador italiano Paolo Rossi. Segundo ele, no marxismo, a esperança “num futuro

de irmandade”, num mundo “liberto da pobreza, das guerras, da violência, e

exploração e prepotência”, atinge seu auge. “Aqui a esperança corre o risco de se

parecer demais com o tipo de esperança que caracteriza as religiões (...) Superando

dimensões aceitáveis, a esperança se transforma, mais ou menos lentamente, em

certeza.”54

À medida que os anos avançam, depois de duas guerras mundiais, duas

bombas nucleares e a guerra fria, a relação com o tempo que virá vai se

transformando. “E este futuro que não chega nunca?”, pergunta, em um de seus

aforismos, Eno Teodoro Wanke,55 em 1986. “Nós, os tardomodernos,” escreve

Franco Berardi em 2009, “não acreditamos no futuro da mesma maneira que os

modernos.” No momento atual, prossegue, “não colocamos em dúvida a existência

111

Figura 97. Hélio Oiticica, B11 Bólide caixa 09, 1964. Madeira, vidro e pigmento. 49,8 x 50 x 34 cm. Tate, Londres.

Figura 96. Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958. Guache sobre cartão, 55 x 63,9 cm. Tate, Londres.

física do futuro, mas questionamos algo que era óbvio nos séculos XIX e XX, ou

seja, que futuro e progresso são equivalentes.”56

Lygia Clark e Hélio Oiticica ainda creem em uma arte que esteja vinculada à

revelação do avenir, o futuro. E é interessante que se escolha a palavra em

francês, pois futuro e França estão no coração da modernidade. E o futuro,

anunciado por uma certa arte moderna, aponta para direções claras: o fim da

figuração e, num segundo momento, do quadro.57

As obras de Lygia e Oiticica, de alguma forma, ainda apontariam para um

porvir utópico, para uma espécie de desenvolvimento da arte e do homem. Olham

para longe – e, para isso, é necessário crer que existe longe. Embora na Europa

não se pudesse falar mais em vanguarda, o Brasil ainda se autoproclamava o país

do futuro.

56 BERARDI, 2019, p. 21. 57 “o futuro dos modernos tem duas características tranquilizadoras: em primeiro lugar, é conhecível, porque as tendências escritas na história se desenvolvem conforme linhas de crescimento lineares e porque a ciência pode formular as leis de desenvolvimento da história humana, assim como pode compreender as leis do movimento dos planetas.” (Ibidem, p. 94.)

112

Figura 98. Hélio Oiticica, Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe, 1977.

3.14

Já foi dito que inúmeros artistas, antes e depois de Oiticica, abandonariam a

pintura para mantê-la viva. Há um pensamento pictórico, sem dúvida, nos Bólides,

nos Relevos espaciais e nos Penetráveis, mas não podemos mais chamá-los de

pinturas: eles já são outra coisa, o pássaro azul voa e o corpo de Garcín é uma

casca entre os lençóis. Para outros criadores, no entanto, o vínculo da obra – em

que material for, em que técnica for – com o quadro, ainda que como uma ideia

distante, é algo que precisa ser preservado. Esse vínculo dará um significado, não

necessariamente como algo simbólico ou “conceitual”, mas irá propor um modo de

olhar.58

Escadaria, assim como as outras pinturas de parede de Palermo, ganham

força se pensadas como pinturas, lado a lado com seus quadros. As pinturas de

Lygia Clark (ou de Oiticica), nelas mesmas, abrem caminho para os trabalhos

posteriores. São seus antepassados, não seus pares,59 como os quadros de

Palermo em relação às suas pinturas de parede. O caminho de um é da pintura

para o mundo, enquanto outro vê o mundo com os olhos carregados de pintura.

58 Em 1952, em Woodstock, no Estado de Nova York, foi apresentada pela primeira vez a composição musical que viria a ser conhecida como a mais radical de autoria do norte-americano John Cage. O público assistiu ao pianista David Tudor (1926-1996) se aproximar de seu instrumento e permanecer sentado, por quatro minutos e trinta e três segundos, “silenciosamente esticando seus braços três vezes de maneira a sugerir que o trabalho deveria ter três movimentos distintos.” (Traduzido do inglês por mim. In: KOSTELANETZ, 1991, p. 107) Intitulada 4’33’, a composição de Cage nos convida ao escutar os ruídos de uma sala de concertos como uma peça musical. O caráter singular dessa experiência não está nos sons em si, nem mesmo em nossa predisposição a escutá-los, mas a penarmos neles – e os ouvirmos – como uma composição musical. Daí o caráter fundamental de a experiência se realizar numa sala de concertos, com a presença do instrumento (o piano), que não emitirá uma nota sequer, e do músico (Tudor), um conhecido pianista. 59 Não ignoro aqui que não seja raro o bisavô ser mais brilhante que seus descendentes.

113

60 Robert Rauschenberg (1925-2008) e Jasper Johns (1930- ) são artistas estadunidenses. Nuno Ramos (1960- ) e Leda Catunda (1961- ) são brasileiros. 61 Pontaletes são obras de Sergio Sister, constituídas por hastes de alumínio, madeira e tela pintada colada sobre madeira, organizadas na horizontal e na vertical, encostadas à parede.

Figura 99. Nuno Ramos, Sem título, 1994-2006. Técnica mista sobre madeira. 321 x 663 x 235 cm. Inhotim, Brumadinho, MG.

3.15

Muito da pintura que se produziu nas últimas cinco ou seis décadas se

desenvolveu, de uma maneira ou outra, para fora do retângulo, embora não com o

pensamento de superar o quadro. Artistas tão diversos quanto Robert

Rauschenberg, Jasper Johns, Joaquim Torres-Garcia, Willys de Castro, Mira

Schendel, Frank Stella, Eduardo Sued, Nuno Ramos, Sérgio Sister, Leda Catunda60

desenvolvem trabalhos que extrapolam os limites laterais ou frontais do objeto

quadro, sem que coloquemos em dúvida se o que encontramos são, de fato

pinturas. É fundamental, aliás, que um quadro de Nuno Ramos (figura 99), um

pontalete61 de Sergio Sister (figura 100) ou um objeto ativo de Willys de Castro

(figura 101) sejam vistos dentro do âmbito da pintura, e não como esculturas ou

objetos. No território da pintura essas obras têm sua fundação; olham para o seu

entorno, e ali encontram seu repertório e adquirem significado. O retângulo nesses

casos não parece ser algo a ser negado ou superado, mas uma construção

histórica, um modo de olhar construído com o tempo, com o qual se conversa,

dentro do qual se pode estabelecer um discurso.

114

Figura 101. Willys de Castro, Objeto ativo, 1961. Óleo sobre tela sobre madeira, 2,2 x 22,9 x 6,7 cm. Coleção particular.

Figura 100. Sergio Sister, Pontalete #7B, 2007/2014. Óleo sobre tela colada em alumínio, 260 x 250 x 15 cm. Coleção particular.

Figura 102. Leda Catunda, Duas árvores, 2009. Acrílica sobre tecido, veludo e plástico. 274 x 458 cm. Coleção particular.

115

62 Paulo Roberto Leal (1946-1991), mais conhecido por seus trabalhos com rolos de papel, que cria a partir dos anos 1970, também é autor de quadros feitos com tecidos industriais, de maneira semelhante aos de Palermo. 63 O francês Georges Braque (1882-1963) e o espanhol Pablo Picasso (1881-1973) inauguram uma tradição moderna da colagem, em 1911/12. O alemão Kurt Schwitters desenvolve sua obra essencialmente na linguagem da colagem, que ele chama de Merz, palavra de sua invenção. 64 Yves Klein (1928-1962), francês; Yannis Kounellis (1936-2017), Pero Manzoni (1933-1963) italiano de origem grega; Donald Judd (1928-1994), norte-americano; Arman (Armand Pierre Fernandez, 1928-2005), francês. 65 Artista brasileiros, Dudi Maia Rosa (1946- ), Carlos Fajardo (1941- ) e Luiz Henrique Schwanke (1951-1992)

Figura 103. Yves Klein, Pintura de fogo sem título, 1961. Papel parcialmente queimado montado em madeira, 63 x 52 cm. Museum Moderner Kunst (mumok), Viena.

3.16

Se há a pintura fora do quadro, no mundo, há objetos apresentados como

quadros, ou quadro não-pintados. Podemos enumerar, na segunda metade do

século vinte, casos de artistas que constroem quadros, sem que se rompa com o

retângulo, e cuja linguagem é essencialmente pictórica, e no entanto são

construídos sem tinta – ou mesmo sem tela, como nos quadros de tecido, de

Palermo ou do brasileiro Paulo Roberto Leal.62

Seus precedentes certamente são as colagens cubistas de Braque e

Picasso (cujo léxico é, sem dúvida, o da pintura) e se prolonga pelas construções

Merz de Kurt Schwitters.63 A linhagem se desenrola nas obras do jovem

Rauschenberg, nas pinturas com fogo de Yves Klein (figura 23), no papagaio vivo

de Kounellis (figura 24), nos acromos de Piero Manzoni (figura 25), nas obras de

parede de Donald Judd, em vitrines de Arman,64 em quadros de fibra de vidro de

Dudi Maia Rosa, em obras constituídas por objetos alinhados ou sobrepostos de

Fajardo (figura 26) e de Luiz Henrique Schwanke65 (figura 27).

116

Figura 104. Jannis Kounellis, sem título (papagaio), 1967. Papagaio, poleiro, aço, água, grãos, 139,7 x 109,2 cm.

Figura 105. Piero Manzoni, Achrome, 1962. Fibra de vidro sobre madeira coberta de veludo, 81,3 x 64,8 x 26,4 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

Figura 107. Luiz Henrique Schwanke, Sem título, 1989. Pregadores de roupas de plástico e madeira, 70 x 100 cm. Família Schwanke.

Figura 106. Carlos Fajardo, Sem título, 2017. Feltro e vidro laminado, 230 x 200 x 20 cm. Coleção particular

117

Figura 108. Origens. Caixas de papelão pintadas com tinta látex.

3.17

Em abril de 2017, criei um ambiente para um evento promovido pela

Biblioteca do Instituto Goethe/SP, realizado no Parque da Água Branca, na capital

paulista, em que palavras eram lidas apenas quando vistas num ponto de vista

específico (as figuras 108 e 109 mostram o trabalho, composto por caixas de

papelão pintadas, ainda em meu ateliê). Tratava-se de um trabalho comissionado,

para um fim específico – crianças seriam convidadas a pintar livremente as caixas,

espalhadas ao acaso. Ao fim do dia, as caixas seriam colocadas numa determinada

posição, e o texto se faria legível, não mais num fundo branco, mas multicor. Não

se tratava de um evento de arte (era a celebração do dia internacional do livro, e o

tema do evento era a importância dos imigrantes em nossa cultura – daí a escolha

da palavra Origens), tampouco meu trabalho era – ou pretendia ser – arte. Fazia,

ainda assim, uso de um recurso muito caro às artes, sobretudo no século XVI, a

anamorfose.

Aqui, entretanto, a perspectiva renascentista é empregada às avessas: usa-

se a geometria não para dar a ilusão de que encontramos um espaço

tridimensional, quando na verdade estamos diante de um painel de madeira ou uma

extensão de parede, mas para enxergar uma superfície plana, onde há alguma

coisa escrita (a palavra Origens, no caso), ao nos posicionarmos diante de volumes

(aqui, caixas de papelão).

118

Figura 109. Origens. Caixas de papelão pintadas com tinta látex.

3.18

A perspectiva, de um modo geral, e seu emprego para criar visões

anamórficas são raras na arte moderna. Uma das características que definem a

modernidade, aliás, é o abandono da perspectiva e dos aparatos que os mestres

do passado usavam para engendrar ilusões, em nome de um espaço planar e da

atmosfera de simultaneidade. Uma exceção, na primeira metade do século vinte,

curiosamente, está em algumas obras de Marcel Duchamp, como A noiva é

desnudada por seus celibatários, mesmo, (1915-23) mais conhecida como O

grande Vidro.66

Na segunda metade do século, contudo, alguns artistas constroem suas

obras usando perspectiva (como Anselm Kiefer, desde a década de 1970) e em

alguns casos, usa-se a perspectiva para se criar anamorfoses. Os chamados

66 Duchamp, falando dessa obra: “(...) O vidro, sendo transparente, podia dar o máximo de eficácia à rigidez da perspectiva (...)”. (CABANNE, 1997, p. 69-72)

119

Figura 111. Anselm Kiefer, A terra dos dois rios, 1995. Emulsão, acrílica, chumbo, sal (produzido por eletrólise usando um condensador de placa de zinco). 416 x 710

objetos ativos, do brasileiro Willys de Castro,67 quadros/objetos pintados não

apenas em suas frentes, mas também nas laterais, instigam o espectador a andar

em seu entorno, e assim onde há apenas pintura às vezes dá a ilusão de diferentes

planos.

67 O primeiro Objeto ativo data de 1959.

Figura 110. Marcel Duchamp, A noiva desnudada por seus celibatários, mesmo (O Grande Vidro), 1915-23. Óleo, verniz, folhas e fios de chumbo e poeira entre duas chapas de vidro, 277,5 x 177,8 x 8,6 cm. Philadelphia Museum of Art.

120

Figura 112. Regina Silveira, In absentia M.D., 1983. Tinta látex sobre piso de cimento e painéis de madeira. 1000 x 2000 cm.

Figura 113. Jan Dibbets, Correção de perspectiva, 1968. Fotografia em preto e branco, sobre quatro telas. 110,3 x 110,1 x 2,5 cm (cada) Tate, Londres

A obra da brasileira Regina Silveira (1939- ) se dá, essencialmente, com o

uso da anamorfose, embora de maneira totalmente diversa dos objetos ativos. Em

suas instalações, objetos conhecidos, como utensílios de cozinha, armas ou

mesmo obras de arte parecem produzir sombras extremamente alongadas,

resultando em exuberantes desenhos que se estendem pelo espaço expositivo,

tomando conta das paredes, do chão ou do teto. Novamente, o posicionamento do

espectador na sala irá determinar a instauração de uma ilusão.

O holandês Jan Dibbets (1941- ) desenvolve, entre 1967 e 1969, uma série

de fotografias chamada Correções de perspectiva, onde um desenho é realizado

em ambientes e depois fotografado de um ângulo específico, que dá ao observador

a visão de uma forma geométrica simples e planar, que nega a sensação de

121

68 KASTNER; WALLIS, 2005, p.181

profundidade da fotografia. O resultado é sutil e ao mesmo tempo desconcertante.

“O princípio desses trabalhos”, escrevem Brian Wallis e Jeffrey Kastner, é “invalidar

a ilusão de perspectiva criada pela construção fotográfica, através da criação de

uma outra ilusão”, sugerindo que a forma que enxergamos em suas imagens “não

está na fotografia, mas sobreposta a ela.”68

Da mesma geração que Dibbets, o francês George Rousse (1947- ),

desenvolve um trabalho semelhante, onde o que se tem é a ilusão de formas

bidimensionais num mundo tridimensional. Diferentemente do artista holandês, de

alguma maneira mais próximo à arte conceitual e ao seu caráter austero,

representado pela fotografia em preto e branco, Rousse, embora se apresente

como, essencialmente um fotógrafo, expõe também suas instalações, com cores

exuberantes.

Figura 114. George Rousse, Las Vegas, 2016. Fotografia digital, impressão em tinta pigmentada. 129,5 x 109,2 cm. Coleção particular.

122

Figura 115. Vista da Praça Virgílio, antes da pintura. Junho de 2016

3.19

Em 2017 tive a oportunidade de desenvolver um outro projeto de pintura no

espaço, realizado em São Paulo, numa praça localizada na rua Virgílio de Carvalho

Pinto, ao lado da Galeria Virgílio. O projeto, aceito pela associação de comerciantes

da região, era de uma espécie de degradê das muretas do jardim, sendo a primeira

(do ponto de vista de quem sobe as escadas) amarela, e a última alaranjada. As

demais muretas são pintadas pelas cores intermediárias.

123

Figura 116. Projeto para pintura da Praça Virgílio. Primeiro semestre de 2017. Guache e caneta esferográfica sobre imagem fotográfica (impressão de jato de tinta). 20 x 30 cm.

Figura 117. Praça Virgílio. Novembro de 2017.

124

Figura 118. Praça Virgílio. Novembro de 2017.

Figura 119. Praça Virgílio. Novembro de 2017.

125

Figura 120. Projeto para pintura anamórfica na Praça Virgílio, 2017. Guache e caneta esferográfica sobre imagem fotográfica (impressão de jato de tinta). 20 x 30 cm.

Pouco antes de executar esse projeto, pensei em algumas outras

possibilidades para a praça. Minha intenção, depois da experiência com o trabalho

realizado para a biblioteca do Instituto Goethe, era construir um trabalho usando

perspectiva anamórfica, mas de caráter pictórico, diferentemente do aspecto

essencialmente gráfico da artista brasileira e do pendor conceitual e do uso da

fotografia do holandês (na ocasião, eu não conhecia a obra de George Rousse).

O projeto do degradê entre o amarelo e o alaranjado, entretanto, já havia

sido aprovado por aqueles que bancariam a obra, e achei melhor que a ideia de

uma pintura anamórfica amadurecesse e mais tarde fosse incorporada a outro

projeto.

126

69 Fundada em 1967, a Escola de Artes Cesar Antonio Salvi, embora chamada de escola, é um equipamento da Secretaria da Cultura do Município na região de São Paulo. Oferece gratuitamente cursos e oficinas nas áreas de artes visuais, teatro, dança e música.

Figura 121. Projeto para pintura anamórfica na Praça Virgílio, 2017. Guache e caneta esferográfica sobre imagem fotográfica (impressão de jato de tinta). 20 x 30 cm.

Desenvolvi, então, algumas ideias para pinturas que seriam executadas no

ano seguinte, em janeiro de 2018, na Escola de Artes Cesar Antonio Salvi, onde

leciono desde 2004.69 O plano era realizar diversas pinturas, distribuídas por todo o

espaço da escola, ocupando paredes e piso. Assim que o espectador andasse,

formas geométricas e palavras escritas ora se tornariam legíveis, ora viriam a se

decompor. Infelizmente, de maneira repentina o secretário da cultura e sua equipe

(que já havia aprovado a ideia da pintura) foram substituídos e o projeto teve de ser

abortado. Eu já havia desenvolvido esboços para apenas uma das pinturas, além

de duas maquetes.

127

Figura 122. Vista do mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi, em Osasco, SP.

A maioria das salas de aula da Escola de Artes (e quase todas dedicadas

às artes visuais) localiza-se no primeiro pavimento, atravessado por dois

corredores. A imagem da figura 122 corresponde ao olhar de quem terminou de

subir as escadas. Minha intenção era que existissem duas pinturas anamórficas,

uma em cada corredor. Uma, do ponto de vista de quem sai das escadas (e entra,

por assim dizer, no espaço das salas de aula), e outra, vista da outra extremidade

do corredor. Pretendia também acrescentar indicações nas entradas dos banheiros

(homem/mulher), ocupando piso e parede (nas figuras 128 e 129, imagens de um

modelo para o banheiro masculino), e no piso térreo, pelo menos uma grande

pintura anamórfica seria vista, através dos vidros, por quem estivesse do lado de

fora do edifício.

128

Figura 123. Estudo para pintura anamórfica no mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi. Carvão e pastel sobre papel.

Figura 124. Construção da primeira maquete da pintura anamórfica. A imagem plana é desenhada num acetato e colocada a uma determinada do lugar onde a pintura será feita.

129

Figura 125. Primeira maquete de pintura anamórfica no mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi.

Figura 126. Primeira maquete de pintura anamórfica no mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi.

130

Figura 127. Segunda maquete de pintura anamórfica no mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi.

Figuras 128 e 129. Estudos para indicações de banheiro masculino no mezanino da Escola de Artes Cesar Antonio Salvi.

131

70 A pintura foi inaugurada no dia 11 de setembro de 2018, junto com as exposições Pedestre, de Thiago Bortolozzo (no andar superior) e Bennu, de Felipe Góes (no térreo). A pintura foi mantida até o final de outubro de 2019. A Galeria Virgílio se localiza na Rua Dr Virgílio de Carvalho Pinto, 426, em São Paulo, SP.

Figura 131. Estudo para Projeto Escada. Caneta hidrográfica e papel adesivo sobre papel, 14,8 x 21 cm.

Figura 130. Estudo para Projeto Escada. Lápis de cor sobre papel, 14,8 x 21 cm.

3.20

No segundo semestre de 2018, inaugurando o Projeto Escada, que

convidará um artista a executar uma interferência de qualquer espécie na escadaria

da Galeria Virgílio, desenvolvi mais um plano para uma pintura fora do quadro.70

Desde os primeiros esboços, tinha clareza de que não seria uma quebra ou

rompimento com o retângulo, como propunham Lygia Clark e Hélio Oiticica em suas

cartas e demais textos: o ponto de partida seria, justamente, o retângulo – regular e

com seus contornos definidos como não costuma acontecer em meus quadros –,

configurado num espaço dos mais improváveis: os degraus e as paredes laterais de

uma escadaria, passando pelo corrimão e três portas. A forma do retângulo é, de

alguma maneira, voluntariosa, externa à forma da escadaria: não ocupa toda a área

das paredes nem se estende por todos os degraus. O retângulo horizontal não se

coloca de forma natural na escadaria (vertical) – ele é imposto a ela através da

pintura.

132

Figura 132. Estudo para Projeto Escada. Giz a base d’água sobre fotografia (jato de tinta), 29,7 x 21 cm.

Figura 133. Estudo para Projeto Escada. Giz a base d’água sobre fotografia (jato de tinta), 29,7 x 21 cm.

Figura 134. Estudo para Projeto Escada. Lápis de cor sobre papel, 14,8 x 21 cm.

Figura 135. Convite para inauguração do Projeto Escada, a partir de desenho em caneta hidrográfica e papel reticulado.

Não se trata de um quadro, mas não é um atestado de seu fim ou de sua

impossibilidade; é antes uma homenagem ao quadro (ou ao retângulo) e à sua

permanência.

133

Figura 136. Projeto Escada, Setembro de 2018. Tinta acrílica e spray. Galeria Virgílio, São Paullo, SP.

134

Figura 137. Projeto Escada. Setembro de 2018. Galeria Virgílio, São Paulo, SP.

Figura 138. Projeto Escada — vista do piso superior. Setembro de 2018. Galeria Virgílio, São Paulo, SP.

A interferência ocupa 12 dos 21 degraus da escadaria, e deles foram

pintados, nesse primeiro momento, somente os espelhos, e não os pisos, de

maneira que o espectador, ao se aproximar da escada, vê o que, de uma

determinada posição se assemelhava a um quadro com cinco faixas, se fragmentar,

entre as áreas horizontais escuras, dos pisos dos degraus. Do alto da escada, é

possível enxergar as áreas de cor das paredes e do corrimão, mas nada se vê da

pintura dos degraus (figura 138).

135

71 A pintura foi reinaugurada no dia 1o de outubro de 2018, junto com as exposições GAME OVER ou A extinção do Brazil, de Daniel Caballero (no andar inferior) e Antes do pó, de Adriana Affortunati Martins (no andar de cima). 72 Há duas listras alaranjadas e duas azuis.

Figura 139. Estudo para segunda fase do Projeto Escada — pintura do piso da escada. Caneta marcador permanente sobre fotografia (impressão jato de tinta), 21 x 29,7 cm.

3.21

Menos de um mês depois da inauguração, concebi um desdobramento do

Projeto Escada.71 Se antes, a pintura era vista apenas por quem estivesse no andar

térreo da Galeria Virgílio, agora seria construída uma outra imagem, legível para

espectadores do andar de cima.

A nova pintura, realizada apenas no piso da escada, não altera a visão de

quem se posiciona no andar de baixo (que enxerga somente os espelhos da

escadaria). As cores usadas são as mesmas: vermelho, laranja, amarelo, azul e

verde, e se apresentam, também em faixas, mas agora sete, e sinuosas.72

Novamente, trata-se de uma anamorfose: para que o espectador, do andar

superior, veja as faixas com a mesma largura, elas foram pintadas com uma espécie

de perspectiva invertida: à medida em que as faixas se prolongam na direção do

andar térreo (e, portanto, se distanciam do observador), ficam mais largas, enquanto

nas suas extremidades mais próximas do observador, ficam mais estreitas.

136

Figura 140. Durante a execução da segunda fase do Projeto Escada. Foto de Paulo D’Alessandro.

Figura 141. Projeto Escada — segunda fase concluída, com o piso da escada pintado. Outubro de 2018.

137

Figura 143. Projeto Escada — segunda fase. Vista do andar superior. Outubro de 2018.

Figura 142. Projeto Escada — segunda fase. Vista do andar superior. Outubro de 2018.

138

Figura 144. Projeto Escada. A pintura do piso da escada proporciona uma imagem anamórfica para o espectador situado no andar de cima, mas em nada altera a visão para aquele que se colocar no andar inferior. Outubro de 2018.

139

1 Segundo Aracy Amaral, ali está “também implícito certo narcisismo, um ‘se querer bem’ que (...) é característico de Tarsila”. In: AMARAL, 2003, p. 259. 2 Telas inacabadas do pintor francês Jacques-Louis David (1748-1825). 3 Lucian Freud (1922-2011) e Francis Bacon (1909-1992), pintores britânicos. 4 O texto, intitulado Isto não é um cachimbo, foi publicado pela primeira vez (numa versão anterior) em 1968 no periódico Les Cahiers du Chemin, e lançado em forma de livro em 1973, pela editora Fata Morgana (FOUCAULT, 1983, p.3).

4. De pinturas de desenho

a desenhos de pinturas

4.1

É de 1924 um conhecido autorretrato de Tarsila do Amaral, com seu cabelo

preso formando um agudo bico-de-viúva e grandes brincos pingentes (figura 145).

Está presente a conhecida elegância da artista, seu artifício ao se arrumar,1 e

chama nossa atenção a maquiagem, um desenhar sobre si, fazendo seu rosto

branco se tornar quase uma personagem de kabuki.

Seu pescoço, seu colo e seus ombros não estão ocultos sob as vestes nem

detrás de alguma coisa no primeiro plano, tampouco foram cortados pelos limites

do quadro: eles não foram pintados, não existem. O rosto da artista flutua e, com

seu volume raso, lembra uma máscara, dessas de cartolina, que se prendem na

face com um elástico.

Também não se trata de uma tela inacabada, como o General Bonaparte

(figura 146), o Juramento do Jeu de Paume, de David,2 ou o retrato de Francis

Bacon, de 1956/7, de Lucian Freud (figura 147).3 O espaço circundante do suporte,

um cartão, foi cuidadosamente pintado de cinza claro, quase branco – pintado de

vazio.

4.2

Poucos anos separam o autorretrato de Tarsila do famoso cachimbo, de

Magritte (figura 148), concebido entre 1928 e 1929. Michel Foucault (1926-1984),

em 1968, escreve um ensaio sobre o quadro e também sobre um desenho

semelhante, uma de suas muitas variações.4 O filósofo discorre sobre o jogo entre

140

Figura 145. Tarsila do Amaral, Autorretrato I, 1924. Óleo sobre cartão sobre aglomerado, 38 x 32,5 cm. Palácio da Boa Vista, Campos do Jordão, SP.

Figura 146. Jacques-Louis David, Retrato do General Bonaparte, 1797. Óleo sobre tela, 81 x 65 cm. Musée du Louvre, Paris.

Figura 147. Lucien Freud, Francis Bacon, 1956/57. Óleo e carvão sobre tela, 35,5 x 35,5 cm. Coleção particular.

Figura 148. René Magritte, A traição das imagens, 1928/29. Óleo sobre tela, 62,2 x 81 cm. Los Angeles County Museum of Art (LACMA).

141

5 FOUCAULT, 1989, p. 11. 6 O espanhol Salvador Dalí (1904-1989), o francês Yves Tanguy (1900-1955) e o belga Paul Delvaux (1897-1994) são artistas pertencentes ao grupo surrealista, criado em 1924 pelo poeta francês André Breton (1896-1966).

Figura 150. Pablo Picasso, Garrafa de Vieux Marc, copo, violão e jornal, 1913. Papéis impressos e nanquim sobre papel, 46,7 x 62,5 cm. Tate, Londres.

Figura 149. Georges Braque, Homenagem a J.S. Bach, 1911/12. Óleo sobre tela, 54 x 73 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

coisa pintada e frase escrita, entre a imagem que se vê e a imagem que se forma

na mente, mas em momento algum fala de um dos elementos mais singulares no

quadro: o vazio que permeia o cachimbo e a frase.

O cachimbo, pintado daquela forma, talvez ficasse mais à vontade num

espaço que se fingisse tridimensional, enquanto o hábitat de uma frase, naquela

letra cursiva de professor (“caligrafia regular, caprichada, artificial, caligrafia de

convento”5), é a superfície de uma folha de papel ou de uma lousa: o mundo plano.

Mas o entorno do cachimbo de Magritte nem é vazio exatamente, afinal não se trata

do branco de uma tela, pois ela fora pintada de uma cor neutra, construindo um

espaço indeterminado, escapando da ambiguidade que encontramos nas colagens

de Braque e Picasso (figuras 149 e 150), onde objetos como violões e garrafas (e

até cachimbos) – habitantes do mundo tridimensional – e letras (elementos planos

por natureza) travam uma relação conflituosa.

O espaço dos quadros de Magritte não costuma ser desse jeito, o ar

normalmente parece passar por entre os objetos que ele pinta. Há, em sua obra,

ilusão espacial e o espaço perspectivo renascentista, como na de outros

surrealistas, como Dalí, Tanguy e seu conterrâneo Delvaux.6 Eles restituem uma

142

7 Encontramos um espaço semelhante em poucas obras de Magritte bem posteriores, como, por exemplo, As férias de Hegel, de 1958, e Isto não é uma maçã, de 1964. 8 Édouard Manet (1832-1883), pintor francês, Diego Rodriguez de Silva y Velázquez (1599-1660), pintor espanhol. José Ortega Y Gasset descreve o fundo do retrato que Velázquez faz de Pablo de Valladolid, por volta de 1635: “(...) trata-se de uma série de pigmentos que não pretende representar objeto algum, nem real nem imaginário, nem preciso nem vago. O que nos apresentam não é coisa nenhuma, nem mesmo um elemento. Não é terra, não é água, não é ar.” (In: ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 63.) 9 Ortega Y Gasset, em outro texto sobre Velázquez, aponta que todos os quadros do pintor espanhol teriam um certo “ar em volta” (as aspas são dele), “mesmo quando não têm, espaço em torno da figura e mesmo quando nem sequer têm fundo, como em Pablo de Valladolid” (Ibidem, p. 185). 10 O historiador de arte austríaco Ernst Gombrich (1909-2001) atribui esse modo de se ver o fundo como próprio das representações onde há letras e imagens: “o mero símbolo ressalta como uma figura contra um fundo neutro; mas esse mesmo fundo recua e assume extensão potencial logo que se torna parte da representação. É um efeito que se observa em qualquer pintura ou cartão em que haja letras de forma incorporadas” (GOMBRICH, 2002, p. 193).

espacialidade que havia sido deixada de lado por quase toda a pintura moderna.

Apenas onde antigamente havia um santo agonizando, aqui temos uma girafa ou

um trombone em chamas. A sensação, todavia, é que poderíamos entrar e ensaiar

alguns passos naqueles ambientes, enquanto numa colagem cubista ou numa

pintura de Mondrian daríamos com a cara na porta.

O espaço de A traição das imagens (o título que Magritte dá ao seu quadro

do cachimbo) não é cubista nem perspectivo, e essa é uma das razões para a

pintura destoar de quase toda obra do pintor belga.7 O espaço aqui é mais próximo

do que encontramos em certas pinturas de Manet (que, por sua vez, deriva de

Velázquez8) e do fundo infinito dos fotógrafos. Ainda assim, na tela do cachimbo

não encontramos exatamente o cenário do Tocador de pífaro ou do Cantor

espanhol (figuras 152 e 153), pois nesses quadros, por mais irreais que sejam, por

mais que antecipem à tela verde dos efeitos de chroma key, ainda há sombra –

alguém poderia se imaginar dando uma volta em torno daquelas figuras.9 O

cachimbo de Magritte é planar e volumétrico ao mesmo tempo. Ou melhor, seria

volumétrico se não estivesse num cenário planar. O espaço que ocupa é um

arremedo do espaço de diagrama de livro, do espaço do desenho – este sim, um

lugar onde o figurar e o escrever se colocam lado a lado.10

143

Figura 151. Diego Velázquez, Pablo de Valladolid, c. 1635. Óleo sobre tela, 214 x 125 cm. Museo del Prado, Madri.

Figura 152. Édouard Manet, O cantor espanhol (ou O violonista),1860. Óleo sobre tela, 147,3 x 114,3 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.

Figura 153. Édouard Manet, O tocador de pífaro, 1866. Óleo sobre tela, 160 x 97 cm. Musée d'Orsay, Paris.

144

Figura 154. Ideias para pinturas —página de caderno, 23/03/2018. Caneta esferográfica sobre papel. 20 x 12,5 cm.

4.3

Minhas pinturas não nascem de projetos, mas de uma ideia, que somente às

vezes ponho no papel, uma estrutura simples em lápis de grafite (figura 154). Antes

de começar a pintar, normalmente não tenho, nem pretendo ter, uma imagem de

como o quadro será. A composição – linhas, retângulos, limites ondulados ou

curvilíneos – se repete de uma obra para outra, e mesmo isso costuma sofrer

mudanças no meio do processo. As cores são construídas por sobreposições, que

muitas vezes resultam de alterações constantes do que havia sido planejado.

Somente depois de cobrir de verde, vejo que ele deveria ser mais amarelado, aí

percebo que a cor ao lado precisa ser outra, e assim por diante. Meu processo de

trabalho, portanto, é mais composto de tentativas – de testes – do que de

afirmações. Assim, camadas de tinta vão se acrescentando, e a superfície do

quadro vai se tornando acidentada.

145

Figura 155. Sem título, 2016. Pastel seco e carvão sobre papel. 35 x 45 cm.

Em 2016, entretanto, enfrentando algumas dificuldades em terminar uma

pintura, recorri ao desenho colorido para visualizar como poderia ser seu aspecto

final, se executada de um e de outro jeito. Com carvão e pastel, dei corpo a três

alternativas, numa única folha de papel, de como imaginava que poderia ser aquele

quadro depois de pronto. Como a obra estava em adiantado processo, já

apresentava grossas crostas e rebarbas de tinta pendentes, e achei que qualquer

tentativa de tornar visível como ela ficaria quando terminada teria de levar em conta

as sombras que esses excessos de matéria projetavam – na parede e na própria

tela (figura 155).

146

11 A exposição, ocorrida entre 13 de setembro e 08 de outubro de 2016, era composta também por obras de Cleverson Oliveira e Gabriele Gomes.

Figura 156. Sem título, 2016. Óleo sobre tela. 160 x 155 cm.

A pintura foi concluída e logo, junto com outras, integrou uma exposição na

Galeria Virgílio, em São Paulo, intitulada O mundo físico11 (figuras 156 e 157).

O desenho, por sua vez, ficou no ateliê quase vazio e ali teve início sua vida

independente. Identifiquei qualidades nele que não estavam no quadro a óleo a que

correspondia. O espaço em branco, entremeando uma e outra representação de

pintura, marcado pela sujeira, própria do pastel seco e da displicência com que o

material havia sido manipulado, talvez fosse um de seus principais elementos, e o

que mais o distinguia da pintura.

Pensei em outros desenhos de pinturas. De pinturas que não

necessariamente existiriam ou nem viessem a existir. Imaginei que quanto mais

distantes esses desenhos estivessem de um esboço ou um estudo – da ideia de um

estudo –, maior seria sua força.

147

Figura 157. Vista da exposição O mundo físico, na Galeria Virgílio, São Paulo, de 13 de setembro a

08 de outubro de 2016. A primeira obra à esquerda é de Cleverson Oliveira. Foto de Stefan

Schmeling.

12 BENJAMIN, 2011. 13 Ibidem, p. 85.

4.4

Em um texto de 1917,12 chamado Sobre a pintura ou Signo e mancha, Walter

Benjamin (1892-1940) discorre sobre a diferença entre pintura e desenho. A

distinção fundamental, segundo o pensador alemão, estaria em seus respectivos

espaços; mais precisamente, na relação entre figura e fundo.

“A imagem pintada”, escreve, “não possui fundo. E uma cor nunca está sobre

a outra, mas aparece no máximo no meio da mesma”.13 Numa pintura, mesmo que

ela descreva um objeto defronte de um espaço vazio – um interior de uma sala, por

exemplo –, nosso olhar percorre todo o retângulo (ou qualquer outra forma que o

quadro tenha) e o apreende como a forma última do quadro. O que quer que esteja

lá se coloca no meio do quadro.

148

14 Ibidem, p. 82. 15 “A identidade que tem o fundo de um desenho”, afirma o autor, “é completamente diferente daquela da superfície branca de papel sobre a qual o desenho se encontra (...).” Ibidem, p. 82. 16 Ibidem, p. 82. 17 Refiro-me a um texto de Mário de Andrade (1893-1945) intitulado Do desenho. Trata-se de um artigo de jornal, cuja data e veículo de publicação são desconhecidos, Foi publicado em livro pela primeira vez postumamente em 1965, no volume Aspectos das artes plásticas no Brasil (ANDRADE, 1984). Não sabemos, portanto, se o texto de Mário é anterior ou posterior ao de Benjamin, mas podemos afirmar que este não leu aquele e, muito provavelmente, a recíproca seja verdadeira. 18 Ibidem, 68-69.

No desenho, entretanto, o fundo, o vazio, se faz presente – e aí estaria sua

própria essência. Quando se desenha algo – ao se definir uma figura ou uma linha,

simplesmente, estamos de imediato configurando um fundo. É, com efeito, incerto

dizer que desenhamos alguma coisa: junto com a coisa, desenhamos seu espaço.

“A linha gráfica”, escreve Benjamin, “confere identidade ao seu fundo”.14 Não se

desenha, por exemplo, um cachorro e seu entorno: desenha-se o cachorro e, por

isso, o espaço, o ar em volta dele. A linha, ao ser traçada no papel, transforma a

superfície em outra coisa, no espaço indeterminado (no sentido em que não é a

descrição de um lugar – a rua ou a sala onde o cachorro se encontra, por exemplo

– e por outro lado, não é mais o branco sólido da folha virgem de papel) do

desenho.15

Se o suporte for totalmente preenchido, afirma Benjamin, ele deixa de ser um

desenho.16 Imaginamos que mesmo se for preenchido de maneira semelhante aos

quadros Pablo de Valladolid, de Velázquez, ou Tocador de pífaro, de Manet (figuras

151 e 153).

4.5

Mário de Andrade concordaria com o jovem Benjamin. O autor de

Macunaíma, em um texto sem data,17 afirma que se o artista ocupa totalmente a

extensão do papel, alcançando suas bordas, talvez seu trabalho não possa ser

chamado de desenho. Ou, ao menos, irá se situar no limite entre as linguagens. Os

“desenhos completos”, como ele chama, aqueles que “implicam definidamente a

moldura quadrangular ou circular”, invadem “terreno alheio”, que seria pertencente

à pintura, “terreno exclusivamente plástico que exige composição.”18

149

19 Ibidem, p. 69. 20 Este outro texto, chamado, também, Do desenho, trata de aspectos gerais da arte do desenho mas se volta, num dado momento, especificamente ao desenho de Lasar Segall (1891-1957). Um texto, certamente, serviu de base para o outro, pois têm muitos pontos comuns. Foi publicado originalmente como parte do álbum Mangue, de Segall, em 1943. (In: MUSEU LASAR SEGALL, 1991) 21 ANDRADE, 1984, p.68. 22 In: MUSEU LASAR SEGALL, 1991, p. 150.

A própria ideia de composição, portanto, para Mário, não poderia ser

aplicada à arte do desenho. Talvez porque, em sua opinião, o desenho seria mais

semelhante à escrita, e teria um caráter mais virtual que a pintura. Desenhamos por

várias razões, e uma delas seria para explicar alguma coisa. O desenho seria “uma

espécie de definição, da mesma forma que a palavra ‘monte’ substitui a coisa

‘monte’ para a nossa compreensão intelectual.”19 Em outro texto, Mário afirma ser o

desenho “mais literário do que plástico.”20

Desenhos, na visão de Mário, se estiverem na posse de quem os ama,

deveriam ser mantidos em pastas, folheados, “lidos que nem poesias”, enquanto

pinturas remeteriam sempre à sua condição de “fenômeno material”. Elas são

infalivelmente colocadas à parede, no espaço circunscrito de seus suportes: “Um

quadro sem moldura, pede moldura; está sempre de alguma forma emoldurado

pelos seus próprios e fatais limites de composição fechada.”21 A pintura estaria

relacionada ao corpo e o desenho, ao espírito.22

O autorretrato de Tarsila e o cachimbo de Magritte são, sem dúvida, pinturas,

porém aludem ao desenho – fazem referência ao desenho, representam seu

espaço, aquilo que Mário de Andrade chama de “ausência de composição”, sem,

na realidade, o habitarem, e aí talvez resida o que há de intrigante dessas obras. O

que seria natural em um desenho – o branco do papel –, nessas obras de Magritte

e de Tarsila é encenado. Se o desenho define – ainda que transitoriamente –, aqui

o que vemos é uma teatralização, algo farsesca, do ato de definir.

150

Figura 158. Sem título, 02-02-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 35 x 45 cm.

4.6

Até o final de julho de 2017, eu já havia produzido em torno de uma dezena

de desenhos de pinturas (figuras 158-166) e, no mês seguinte, realizei mais dez.

Em setembro do mesmo ano, pude mostrar um conjunto deles na Galeria Casa da

Imagem, em Curitiba, junto de três pinturas a óleo (figuras 167 e 168).23

As pinturas apresentavam características semelhantes àquelas que o público

via nos desenhos, como rebarbas de tinta, áreas lisas de cor. Nenhum desenho,

contudo, representava diretamente um dos quadros em exposição.

23 A exposição se chamou Pinturas sem limites, e também apresentava obras do artista Bruno Marcelino. Ficou aberta entre 23 de setembro e 23 de outubro de 2017.

151

Figura 159. Sem título, 04-04-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 35 x 45 cm.

Figura 160. Sem título, 09-06-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 42 x 59,4 cm.

152

Figura 161. Sem título, 13-06-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 162. Sem título, 16-06-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 35 x 45 cm.

153

Figura 163. Sem título, 21-06-2017. Pastel seco e carvão sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 164. Sem título, 23-06-2017. Pastel e carvão sobre papel. 42 x 59,4 cm.

154

Figura 165. Sem título, 29-06-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 166. Sem título, 21-07-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

155

Figura 167. Vista da exposição Pinturas sem limites, na Galeria Casa da Imagem, em Curitiba, entre

23 de setembro e 23 de outubro de 2017. Foto de Marcelo Almeida.

Figura 168. Vista da exposição Pinturas sem limites, na Galeria Casa da Imagem, em Curitiba,

entre 23 de setembro e 23 de outubro de 2017. Foto de Marcelo Almeida.

156

Figura 169. Sem título, 02-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 170. Sem título, 2017. Óleo sobre tela. 95 x 38 x 20 cm.

Eu havia, entretanto, desenhado obras que, de fato, existiam, como as

reproduzidas nas figuras 169-177, mas optei, naquele momento, por não aproximar,

na mesma exposição, pintura e desenho semelhante.24

24 A pintura reproduzida na figura 170 tem uma particularidade: eu a havia concebido como a vemos nesta imagem e no desenho correspondente, reproduzido na figura 169. No entanto, quando expus este quadro, em 2019, no Paço Imperial, resolvi mudar sua orientação, como se vê na figura 14.

157

Figura 171. Sem título, 09-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 173. Sem título, 2010. Óleo sobre

MDF. 29 x 28 cm. Figura 172. Sem título, 2013.

Óleo sobre tela, 30 x 20 cm.

158

Figura 174. Sem título, 18-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 175. Sem título, 2017. Óleo sobre tela, 26 x 28 cm.

Em dois casos (figura 174 e 176), desenhos mostram imagens de um

trabalho meu e outro, de minha filha, então com seis anos de idade. Uma única vez

o desenho se antecipou à pintura: um pastel onde se vê uma pintura com uma

estrela negra inspirou a tela semelhante (figuras 178 e 179). Na grande maioria dos

desenhos são figuradas pinturas que não existem nem pretendem existir.

159

Figura 176. Sem título, 31-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 177. Sem título, 2014. Óleo sobre tela, 30 x 20 cm.

160

Figura 178. Sem título, 17-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 179. Sem título, 2017. Óleo sobre tela. 150 x 150 cm.

161

4.7

Um aspecto importante desses desenhos é a presença da ilusão, coisa que

não fazia parte, há muito, de meu trabalho. Essas obras não são exatamente

abstratas, mas representações de pinturas abstratas, com suas respectivas

sombras projetadas na parede. Não há, todavia, a imitação de um espaço que se

expande: a imagem sempre é de um quadro (ou mais de um) pendurado em uma

parede, num plano paralelo à folha de papel: temos ilusão de relevo, mas não de

profundidade.

Essa ilusão de um espaço raso remete menos à grande pintura

renascentista (que tem a perspectiva como principal ferramenta de ilusão espacial),

do que a um repertório ornamental, encontrado em afrescos romanos antigos, ou à

natureza-morta trompe l’oeil, que alcança alto grau de sofisticação nos Países

Baixos no século dezessete, com pintores como Cornelius Norbertus Gijsbrechts

(c. 1610- depois de 1675) e Edward Collier (ativo entre 1662-708) (figuras 180 e

181).

No século seguinte, vale destacar duas experiências do suíço Jean-Etienne

Liotard (1702-1789). Embora sua obra esteja associada ao uso do pastel, as duas

obras seguintes são em óleo: uma pintura de pintura e outra pintura de relevos e

desenhos: obras pequenas em tamanho e, ao que parece, em repercussão.

Figura 180. Cornelius Norbertus Gijsbrechts, O verso de uma tela emoldurada, 1670. Óleo sobre tela, 66,4 x 87 cm. Statens Museum for Kunst, Copenhague.

Figura 181. Edward Collier, Um trompe l’oeil de jornais, cartas e instrumentos de escrita em uma prancha de madeira, c. 1699. Óleo sobre tela, 58,8 x 46,2 cm. Tate, Londres.

162

Uma delas, é um retrato de Maria Teresa da Áustria, imperatriz do Sacro

Império Romano-Germânico, mãe de Maria Antonieta (figura 182). É, entretanto,

um retrato parcial: há um pedaço de madeira se sobrepondo à pintura (onde há um

relevo em gesso, suspenso por um prego), como se o retrato estivesse sido

executado no fundo de um estojo, agora ligeiramente tampado. Mas toda a pintura

é um objeto só, o rosto da chefe da Casa dos Habsburgos, a tampa e o pequeno

medalhão foram representados na mesma prancha de madeira. A inspiração aqui,

provavelmente, é a história dos pintores gregos Zêuxis e Parrásio, contada por

Plínio, o Velho,25 em sua História Natural: Parrásio pintara uma cortina com tal

realismo que Zêuxis, ele próprio um extraordinário artista, achando que ela cobria

uma pintura, tentara afastá-la com as mãos.26

Figura 182. Jean-Etienne Liotard, Trompe l’oeil com retrato parcial de Maria Teresa da Áustria, 1762/63. Óleo sobre madeira, 36,2 x 43,4 cm. Coleção particular.

25 Caio Plínio Segundo (23-79), conhecido como Plínio, o Velho, naturalista e pensador romano, morto pela erupção do Vesúvio, próximo a Pompeia. Sua História Natural é composta de 37 volumes escritos em latim. 26 In: LICHTENSTEIN, 2004, p.75.

Outra obra de Liotard (figura 183) representa um pedaço de madeira, mas é

pintada sobre tecido – como a pintura de Collier, reproduzida na figura 181.

Também aqui, objetos estão afixados nesse plano, que é e ao mesmo tempo não é

o plano no quadro. O que há de singular aqui é que os objetos são obras de arte:

163

Figura 183. Jean-Etienne Liotard, Trompe l’oeil com dois baixos-relevos e dois desenhos, 1771. Óleo sobre seda montado em tela, 23,8 x 32,4 cm. The Frick Collection, Nova York.

dois relevos e dois desenhos. Mais do que as simulações de sombra ou relevo, é

notável o esforço (e o êxito) de Liotard em usar tinta para provocar a sensação de

traços de giz: um método de ilusionismo é empregado para simular outro.

4.8

Uma tradição de natureza-morta trompe l’oeil se desenvolve no século

dezenove, nos Estados Unidos, com artistas como Charles Willson Peale (1741-

1827), William Michael Harnett (1848-1892) e John Frederick Peto (1854-1907)

(figuras 184 e 185).

As obras de Harnett ou de Peto, assim como a minuciosa representação de

uma tela de costas executada alguns séculos anteriormente por Gijsbrechts e a

pintura de Liotard comentada há pouco, costumam representar um plano: a tela

imita um pedaço de madeira, com inscrições, ranhuras e, à sua frente, outras

superfícies, como notas de dinheiro ou cartas de baralho. Olhamos as pinturas

surpresos por aquele pedaço de papel não estar literalmente colado ou afixado por

um percevejo à pintura, mas fazer parte dela, ser feito da mesma tinta. Nosso

assombro está em encontrarmos uma ficção tão convincente que nos perguntamos,

por um instante, se seria, de fato, ficção.

164

Figura 185. John Frederick Peto, Tom’s river, 1905. Óleo sobre tela, 68 x 58,3 cm. Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madri.

Figura 184. William Michael Harnett, O prendedor de cartas do artista, 1879. Óleo sobre tela, 76,2 x 63,5 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.

Figura 186. Georges Braque, Violino e paleta, 1909. Óleo sobre tela, 91,7 x 42,8 cm. Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York.

Figura 187. Jasper Johns, No estúdio, 1982. Encáustica e serigrafia sobre tela com objetos, 182,9 x 121,9 x 12,7 cm. Coleção do artista.

165

27 Gerry Souter especula que Braque e Picasso podem ter visto pinturas de Harnett na Europa. (In: SOUTERS, 2009, p. 65)

28 GREENBERG, 1996, p. 86.

Na modernidade, há uma certa recuperação do trompe l’oeil, ainda que com

um sentido um tanto diferente. Em pinturas cubistas de Picasso, Braque e Juan Gris

(figura 186), elementos da pintura trompe l’oeil27 aparecem juntamente a outras

formas de representação, resultando numa imagem ruidosa, que versa mais sobre

linguagem e suas diferentes naturezas – e, portanto, sua opacidade – do que sobre

os objetos representados.

Pinturas de Picasso datadas entre 1912 e 1916 nos desafiam, mostrando

que o que parece colado (um pedaço de papel de parede, uma folha de madeira) às

vezes é minuciosamente pintado e vice-versa. Segundo Clement Greenberg, esse

uso do trompe l’oeil em Braque “sugere a ilusão sem torná-la presente”:

Desde o início de 1911, Braque já estava olhando em volta em

busca de formas de reforçar, ou então suplementar, essa sugestão,

mas ainda sem introduzir nada que se tornasse mais do que uma

formalidade. Foi nessa época, aparentemente, que ele descobriu

que o trompe l’oeil podia ser usado tanto para revelar como para

sonegar a verdade ao olho. Ou seja, ele poderia ser usado tanto

para declarar como para negar a superfície real. Se a realidade da

superfície – sua planaridade física, verdadeira – pudesse ser

indicada de forma suficientemente explícita em alguns lugares, ela

seria diferenciada e separada de tudo mais que a superfície

continha. Uma vez que a natureza literal do suporte era anunciada,

tudo sobre ele que não fosse literalmente pretendido seria realçado

e magnificado em sua não-literalidade. Ou, para dizê-lo ainda de

outra forma: a planaridade pintada ocuparia pelo menos a

semelhança de uma semelhança de espaço tridimensional,

enquanto a planaridade bruta, não-pintada da superfície literal era

salientada com algo ainda mais plano.28

166

4.9

A obra do norte-americano Jasper Johns (1930 - ) se nutre diretamente

tanto das obras de seus conterrâneos Peto e Harnett, quanto da pintura e colagem

cubista. É construída pela incorporação, nos termos de Roberta Bernstein, de

“vários e contraditórios modos de representação.”29 Em algumas de suas pinturas,

podem-se ver imagens de pregos, como se afixados à superfície do quadro, com

suas respectivas sombras projetadas lado a lado de objetos reais, como vassouras,

pratos, pedaços de madeira ou partes do corpo em cera ou gesso, pendurados ou

colados à tela, produzindo suas sombras reais (figura 187).

A representação trompe l’oeil de um prego (e suas sombras) aparece em

alguns de meus desenhos, ao lado da imagem de uma pintura, como se um

segundo quadro tivesse sido retirado da parede, ou estivesse para ser pendurado

(figuras 188, 190, 191 e 192). Em um único caso, um desenho não mostra

nenhuma pintura, mas dois pregos, com suas sombras – e uma mancha branca,

irregular, de tinta acrílica coberta de pastel, que produz pequenas (e reais)

sombras. O prego, de desenho em desenho, surge quase como um personagem

que atravessa algumas histórias diferentes: de Liotard a Johns, passando pelo

cubismo.

4.10

Meu modo de pensar o espaço do quadro está mais próximo do cubismo e

da pintura de Johns do que do jogo proposto por Peto e Harnett, centrado no

virtuosismo tão extremo a ponto de enganar os sentidos do espectador.

Uma das coisas que me interessam está no fato de, ao nos colocarmos

diante de um desenho, vermos, como assunto, uma pintura. É criado um espaço

ficcional para povoá-lo com uma pintura, isto é, uma outra ficção. Como se eu

pintasse em terceira pessoa. Ou como quando, dentro de um romance narrado em

terceira pessoa, uma personagem conta uma história em primeira pessoa: temos

duas vozes, uma de fora e outra de dentro.

29 In: JASPER JOHNS: A RETROSPECTIVE, 1996, p. 55.

167

Figura 188. Sem título, 09-09-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 189. Sem título, 14-09-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

168

Figura 190. Sem título, 16-11-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 191. Sem título, 06-04-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

169

Figura 192. Sem título. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

4.11

Qualquer coisa pode ser representada em uma pintura ou em um desenho, e

podemos dizer que pinturas e desenhos, sobretudo no século vinte, se tornam não

apenas meios, mas assuntos da arte. Faz-se arte falando de arte: boa parte da

pintura do século vinte é (também) sobre pintura, se isso não for verdade também

para a arte de todo o passado.

O ateliê ou o ato de pintar não são assuntos raros na pintura: o artista pode

estar em ação, como Velázquez ou o jovem Rembrandt (figura 193) – mas nesses

casos não vemos o quadro que executam.30 Artemísia Gentileschi (1593-1653)

representa a si própria como uma encarnação da pintura (figura 194): mas o que

tem à sua frente é um quadro em branco. Vermeer, em sua alegoria da pintura, nos

mostra apenas uma nesga do pouco que foi pintado, enquanto Almeida Júnior nos

30 Essa, aliás, é uma questão bastante discutida: o que Velázquez estaria pintando, no célebre quadro conhecido como As meninas.

170

deixa fantasiar, pelo que está esboçado na tela de seu pintor, que a moça, vestida

em primeiro plano, há pouco estava nua (figuras 195 e 196). Poderíamos ir longe

nessa relação, mas convém apontar que em todos esses casos, o que se

representa é uma cena, ou até uma pequena história, onde a pintura tem parte.

Figura 193. Rembrandt Harmenszoon van Rijn, O artista em seu estúdio, c. 1626. Óleo sobre tela, 25 x 32 cm. Museum of Fine Arts, Boston. Figura 194. Artemisia Gentileschi,

Autorretrato como a alegoria da pintura, década de 1630. Óleo sobre tela, 96,5 x 73,7 cm Royal Collection, Windsor.

Figura 195. José Ferraz de Almeida Júnior, O importuno, 1898. Óleo sobre tela, 145 x 97 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figura 196. Johannes Vermeer, A arte da pintura, 1665/67. Óleo sobre tela, 120 x 100 cm Kunsthistorisches Museum, Viena.

171

Ter o quadro representado como um objeto, como numa natureza-morta,

usar a pintura ou o desenho para construir a imagem de um desenho ou pintura,

não é algo comum. Encontramos algo assim nas pinturas representando coleções

ou espaços dedicados ao comércio de obras de arte (figura 197). O sentido, porém,

é outro: procura-se representar mais a coleção (ou o ambiente do colecionador, ou

comerciante de arte), do que as obras em si.

Figura 197. Giuseppe Bernardino Bison, O gabinete de um colecionador, sem data. Óleo sobre tela, 55 x 66 cm. Coleção particular.

No entanto, merece ser citado com destaque, além das pinturas de Liotard já

comentadas, um autorretrato de 1604 do bolonhês Annibale Carracci. No ambiente

penumbroso do ateliê, vemos um cavalete, debaixo do qual nos encaram um

cachorro e um gato. Logo acima da cabeça do felino jaz pendurada uma paleta. Ao

fundo, próximo à janela, há uma figura, provavelmente feminina. No centro do

quadro, o assunto principal: uma tela onde se vê representado o busto de Carracci.

O quadro, portanto, é uma representação de uma outra pintura, esta um

autorretrato. Há duas versões dessa tela, uma no Hermitage, em São Petersburgo

e outra na Galleria degli Uffizi, em Florença. Há também um desenho preliminar,

onde o cão, em vez de olhar para o espectador, parece saudar o retrato no

cavalete, enquanto ao fundo, em vez de uma silhueta na janela, vê-se o que parece

um espelho onde se reflete a imagem do artista (figuras 198 e 199).

172

Figura 198. Annibale Carracci, Autorretrato, c. 1604. Óleo sobre madeira, 42 x 30 cm. Hermitage, São Petersburgo.

Figura 199. Annibale Carracci, Autorretrato em um cavalete, c. 1603/5. Pena e tinta sobre papel, 24,5 x 18 cm. Royal Collection, Londres.

4.12

“Se o orador ficou chato demais, há um recurso”, nos aconselha Eno

Teodoro Wanke: “Repare: entre uma palavra e outra há sempre um instante de

silêncio. O jeito é procurar ouvir só esses silêncios.”31

Poderíamos dizer que os silêncios entre as frases as abrigam e, de alguma

forma, dão sentido a elas. Como aquilo que tangencia a obra de arte o faz.32 Se o

espaço em branco em torno de um quadro constitui uma parte dele, há uma

tentativa, de algum modo irônica, em meus desenhos, de colocar isso dentro da

obra de maneira mais literal. A data, inscrita em preto, funciona no lugar de um

título, nome do artista ou legenda.

E, claro, ainda assim, podemos olhar no vazio em torno do quadro: de qual

quadro for. Para constatarmos que ele também fará parte da obra.

31 WANKE, 1985, p. 52. 32 Como o parergon, na definição que lhe atribui Derrida. DERRIDA, 1987, p. 9.

173

Figura 200. Sem título, 1993. Acrílica e carvão sobre papel. 70 x 100 cm.

4.13

Meus primeiros pastéis representam pinturas deslocadas para o lado

esquerdo do campo visual, deixando virgem – ou quase – boa parte do espaço à

direita e abaixo. É a organização de nossa escrita e, provavelmente por sua

influência, o modo como nosso olhar se orienta: vemos um quadro da esquerda

para a direita, de cima para baixo. Entre 1994 e 1997, eu produzia desenhos onde o

arranjo espacial era semelhante. Aquilo que era desenhado ou pintado – uma

cabeça, ou um pequeno texto – era localizado no canto superior esquerdo,

enquanto o papel, na sua totalidade, era trabalhado para que enrugasse e

produzisse pequenas sombras que, de alguma maneira, unificavam o espaço

(figura 200).

Nas obras recentes, como a representação das pinturas têm um caráter

ilusionista, podemos pensar no espaço deixado em branco como a representação

da parede onde é pendurado o quadro e onde deita sua sombra. O branco, ali, é

uma e duas coisas: o papel intocado e/ou a sugestão de uma parede, com marcas

de dedo e poeira ou tinta, como as paredes do ateliê.

174

33 IN: DERDYK, 2007, p.31.

Figura 133. Sem título, 27-02-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

O branco do papel, circundante à imagem colorida, que é, em dúvida, o

clímax do trabalho, não é, entretanto, arbitrário (como não o é o branco dos olhos);

não corresponde a um espaço totalmente virtual, porém não se exibe em sua pura

materialidade, como algo carente de metáfora. Um desenho, afinal, também é o seu

papel. Ou, nas palavras do artista brasileiro Waltercio Caldas, “(...) o lado visível de

um desenho é o papel, superfície profunda que parece estar ausente e presente ao

mesmo tempo.”33

O corpo do papel está mais presente em alguns de meus desenhos de 2019,

em tamanho menor, executados em papel japonês, onde há textura. O pó do

pastel, aliás, em alguns momentos, solta e arrepia, a fibra do papel (figuras 201–

206).

175

Figura 203. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

Figura 201. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

Figura 206. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

Figura 204. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

Figura 202. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

Figura 205. Sem título, 22-11-2019. Pastel seco sobre papel japonês. 30 x 30 cm.

176

4.14

Quando faço esses desenhos de pintura, estou pintando? São desenhos que

se referem à pintura ou são, eles próprios, pinturas?

A ideia de se usar uma linguagem (o desenho) para falar de outra (a pintura)

contradiz um certo entendimento da arte moderna, associada a Clement

Greenberg.

Para Greenberg, a característica mais marcante da modernidade estaria no

fato de cada linguagem artística se voltar para aquilo que lhe seria intrínseco: a

escultura, por exemplo, falaria cada vez mais daquilo que apenas ela pode

proporcionar, como o volume, e abriria mão da cor, por exemplo, que seria algo

próprio da pintura. Assim, no decorrer do século vinte, cada arte se desenvolveria

separadamente – ou em paralelo, cada uma em sua trincheira, cada vez mais

dentro do seu respectivo limite. “A essência do modernismo”, escreve Greenberg,

estaria no “uso de métodos característicos de uma disciplina para criticar essa

mesma disciplina”: a pintura trataria dos limites da pintura, como o filósofo Kant

havia usado a lógica “para estabelecer os limites da lógica.”34

Essa leitura da modernidade não se inicia com Greenberg35 – Yve-Alain Bois

atribui a Baudelaire a primeira proposição da história “como uma cadeia ao longo

da qual cada arte individual se aproximava gradualmente de sua essência.”36 –,

entretanto certamente encontra nele sua formulação mais sucinta e, por isso

mesmo, exerce grande influência não só na crítica de arte mas na própria produção

artística da segunda metade do século vinte. Para muitos artistas ativos nesse

período, pintar era explorar o que a linguagem da pintura poderia ser.

Seja como for, aqui, o desenho é usado para falar de pintura – se não para

fazer pintura. Afinal, para que essas obras possam se originar do intercâmbio entre

as artes, é preciso que diferenças entre as artes existam; que se possa afirmar que

34 A citação é do texto chamado Pintura modernista, datado de 1960, publicado originalmente como um panfleto, pela editora Voice of America (In: FERREIRA; COTRIM, 1997, p. 101). 35 O espanhol Ortega Y Gasset, num texto de 1954 sobre Velázquez atesta que o pintor, ao renunciar ao caráter tátil daquilo que representa, faz com que os objetos de seus quadros se transformem em “meras entidades visuais”, e assim “a pintura em Velázquez se recolhe em si mesma e se faz exclusivamente pintura”. Esse procedimento, prossegue o autor, seria levado ao extremo pela pintura impressionista, tida, de maneira consensual, como a entrada do modernismo. (In: ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 153-54) 36 BOIS, 2009, p. 281.

177

estes são desenhos e aquelas são pinturas. Uma das características mais

importantes desses desenhos, a meu ver, está no fato de não serem apenas

desenhos, mas desenhos de pinturas37 e talvez, num certo aspecto, pinturas, eles

mesmos.38

Em nome dessa ambivalência optei por participar com um desses desenhos,

em vez de uma pintura a óleo, no 1o Festival de Pintura, realizado na Galeria do

Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

(UNESP), entre os dias 12 e 22 de março de 2018 (figura 205). Minha motivação

estava nas perguntas: o que significa um festival de pintura – uma ocasião para se

exibir pinturas? O festival da pintura é sobre pintura? A minha obra caberia no

festival por ter a pintura como tema, ou seria, ela, uma pintura?

37 Meus pastéis, segundo o crítico polonês Bogusłav Deptuła, “(...) fingem ser outras obras de arte que não os que eles são”. (traduzido do inglês: “The Works of Ciprian Bielaniec and Fernando Burjato (Brazil) pretend to be other works of art than they really are.” In: 7. Międzynarodowe Biennale Pasteli – Nowy Sącz 2018/7th International Biennial Pastel Exhibition – Nowy Sącz 2018, 2019, p. 43. 38 Marco Silveira Mello, no texto de apresentação da exposição na Galeria Casa da Imagem, em Curitiba, aponta a inadequação da concepção greenberguiana de modernidade para a análise desses desenhos: “Esses desenhos são pinturas e são, sobretudo, desenhos. É preciso que eles se façam ver assim. Na época atual, a pintura não pode se mostrar imediatamente como pintura, sem que se diga que o fato que se apresenta é uma pintura. E, para assim se expor é preciso que as assertivas que recomendam essa condição estejam apoiadas em uma ordem de razões que extrapolem a presença do fenômeno imediato. Definições circulares – isso é uma pintura porque é um pintado – são fracas. Por outro lado, para que o desenho possa desenvolver tal afirmativa ele deve dispor das qualidades que a pintura detém. Do contrário está impedido de realizar a ação. Se o vocabulário do desenho não abranger a cor, ele não pode discorrer a propósito do colorismo. Esses trabalhos dispõem um paradoxo: fazem crer que o conceito de desenhar se desponta dessemelhante da noção de pintar e, ainda assim, que o desenho detém os mesmos atributos da pintura. Engana-se quem vê esses desenhos somente como desenhos. O desenho ocorre para pronunciar o outro que ele não é. Comparece para falar dos atributos da pintura. Apresenta-se para dizer o que é uma pintura de Fernando Burjato e como ela é. Ilude-se que vê nesses desenhos apenas pinturas. A referência à pintura busca contar do exercício do desenhar: naturezas tidas como próprias ao desenho, no caso o sombreamento, são convocadas para dizer dos atributos “escultóricos” das pinturas do Burjato; o sombreamento “distancia” o pintado da superfície do papel e “causa” a presença da tridimensionalidade que vigora nas obras. Nesse movimento, o desenho não só se mostra como desenho, como igualmente fornece provas da sua capacidade: figura a si próprio figurando um diferente. Faz ver esse um e aquele outro. Aquele outro através desse um. E esse um por meio daquele outro.” (MELLO, 2017)

178

Figura 205. Sem título, 18-09-2017 (desenho que fez parte do 1o Festival de Pintura). Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Se pensarmos sob o prisma de Greenberg, meus desenhos de pintura atuam

numa jurisdição que não é a sua, ao transitarem do desenho à pintura.39 No que se

refere ao uso do espaço e a relação com a virtualidade e ao mesmo tempo

presença do papel, estão muito bem inscritos na definição de desenho que Mário

de Andrade sugere. Convém lembrar que a leitura que Greenberg faz do

modernismo, no entanto, por mais arguta que seja, não dá conta da complexidade

da arte do século vinte; a arte modernista, enfim, não é apenas o que Greenberg

afirma que ela é. Boa parte da produção dos artistas ligados ao movimento Dadá e

ao surrealismo, incluindo Marcel Duchamp, não se enquadra de maneira alguma

num cânone greenberguiano.

Jaques Rancière (1940- ), em uma entrevista de 2015, afirma ser a ideia de

modernidade “extremamente ambígua”. Existiriam, segundo o filósofo argelino,

duas concepções totalmente contraditórias de modernidade, desenvolvendo-se

quase paralelamente: de um lado, há uma arte voltada para seus próprios limites,

39 Greenberg também afirma, no texto “Pintura modernista”: “A sensibilidade exacerbada do plano da pintura pode não mais permitir a ilusão escultural, ou o trompe l’oeil, mas permite e deve permitir a ilusão óptica” (In: FERREIRA; COTRIM, 1997, p. 106).

179

40 JACQUES RANCIÈRE, 2015. 41 François Boucher (1703-1770) e Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), pintores franceses.

Figura 206. Jean-Honoré Fragonard, Jovem brincando com cachorro, 1765-72. Óleo sobre tela, 70 x 87 cm.

entrincheirada neles, como observada por Greenberg, onde que cada arte se

autonomiza e se pensa a partir de suas próprias possibilidades, sistemas e meios

próprios; por outro lado, há a modernidade das vanguardas do século vinte, que

resulta em uma produção heterogênea, multidisciplinar, que se apropria não

apenas de outras linguagens artísticas, mas também da cultura popular, da

indústria cultural, das artes decorativas e das descobertas científicas – uma ideia

de modernidade para a qual, “a arte deveria, no fundo, negar a si mesma, para se

tornar uma forma de vida.”40

4.15

Antes mesmo de minhas experiências com pastel, eu pesquisava a pintura

do século dezoito francês. A pintura conhecida como rococó, hedonista, à sua

maneira, marcada pelo caráter decorativo, apresenta uma paleta rebaixada, porém

rica, derivada da pintura veneziana do século dezesseis, com cores frequentemente

construídas a partir da sobreposição de camadas transparentes. Há ali um elogio

ao artifício, ao prazer sutil, e a pincelada aparente, idiossincrática, surge, na obra

de artistas como Fragonard e Boucher41 (figura 206), como um elemento

constitutivo da pintura, uma espécie de caligrafia. É natural que essa arte,

180

Figura 207. Jacques-Louis David, O juramento dos Horácios, 1784. Óleo sobre tela, 330 x 425 cm. Musée du Louvre, Paris.

Figura 208. Barnett Newman, Vir Heroicus Sublimis, 1950/51. Óleo sobre tela. 242,2 x 541,7 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

associada ao antigo regime, tenha caído em desgraça com a Revolução Francesa,

junto com as perucas brancas, o rapé, o espartilho e a maquiagem masculina. O

discurso, no mundo republicano, deve ser direto, as imagens, cristalinas, e um

homem deve se apresentar com as cores de sua face, com seus próprios cabelos.

Enquanto acreditamos que seja possível uma fala ou um estilo ser transparente, e

que a face de um homem tenha uma só cor, é algo passível de ser defendido.

A arte moderna, ao menos em uma leitura greenberguiana, parece apostar

num certo ideal iluminista da pintura posterior à Revolução Francesa, onde o

excesso é visto como algo afrontoso. Há, no Juramento dos Horácios, de David

(figura 207), com seu espaço esquemático, restrito ao primeiro plano e à divisão em

três partes simétricas, um precedente da clareza e organização de um Mondrian ou

mesmo de um Barnett Newman (figura 208).

181

Figura 209. Jean-Étienne Liotard, A moça do chocolate, 1744/45. Pastel sobre pergaminho, 82,5 x 52,5 cm. Gemäldegalerie, Dresden.

Figura 210. Edgar Degas, Mulher enxugando o braço esquerdo (após o banho), 1884. Pastel sobre papel, 57,6 x 63,7 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

Procuro a junção de duas tradições aparentemente inconciliáveis: a pintura

moderna, com suas estruturas à mostra, e a arte preciosista dos venezianos e dos

rococós franceses: uma pintura de campos de cor construída com veladuras e com

excessos, como franjas de tinta em suas bordas. Não que isso tenha influenciado

minha escolha pela técnica do pastel seco – mas convém lembrar que este

material, se foi inventado no século dezesseis ou dezessete,42 atinge seu apogeu

no século seguinte, com artistas como a italiana Rosalba Carriera (1675-1757), o

francês Maurice Quentin de La Tour (1704-1788) e o suíço Jean-Étienne Liotard

(figura 209). Embora tenha sido usado, nos séculos que seguem, com resultados

extraordinários, por artistas mais diversos como os franceses Édouard Manet,

Edgar Degas (1834-1917) (figura 210) e Odilon Redon (1840-1916) e a

estadunidense Joan Mitchell (1925-1992) (figura 211), o pastel, ocupando um

espaço intermediário entre o desenho e a pintura, parece não encontrar seu lugar

mais confortável na modernidade.

42 Há quem atribua, como Janusz Janowski (In: 7. Międzynarodowe Biennale Pasteli – Nowy Sącz 2018, 2019, p. 25), a invenção do pastel a Leonardo da Vinci, em seu Retrato de Isabella d’Este, embora no website do Museu do Louvre se afirme que na obra, em estado de conservação muito delicado, não haveria vestígio de pastel. (in: https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/portrait-isabella-d-este)

182

Figura 211. Odilon Redon, Mulher com flores silvestres, 1895/98. Carvão e pastel sobre papel, 52 x 37,5 cm. Hermitage, São Petersburgo

Figura 212. Joan Mitchell, Sem título, 1983. Pastel sobre papel, 57,8 x 39,4 cm. Joan Mitchell Foundation, Nova York.

4.16

A representação das irregularidades da tinta, assim como suas rebarbas,

ora rígidas, ora flexíveis, na linguagem do pastel, faz lembrar uma tradição tão

antiga quanto à própria pintura (e igualmente parte da história da escultura e do

desenho) e deixada de lado por quase toda a modernidade, que é a representação

de tecidos curvos, dobrados e drapeados.

A princípio, com o intuito de dar naturalidade e expressividade aos

personagens vestidos, a representação dos panos, na obra de certos artistas se

torna um assunto em si, seja pela ostentação de técnica em representar texturas

diversas (e pelo prazer do espectador em senti-las com os olhos, como nas

pinturas de Holbein e Ingres43

– figuras 213 e 214) ou como uma espécie de

abstração, dentro de uma composição figurativa, como nos traços ziguezagueantes

de Tintoretto44 ou nas pinceladas à valentona que constituem as vestimentas das

Meninas de Velázquez45 (figuras 215 e 216).

43 Hans Holbein (1497-1543), dito o Jovem, alemão, cuja carreira se desenvolve sobretudo na Inglaterra; Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), francês. 44 Jacopo Robusti (c.1518-1594), pintor veneziano conhecido como Tintoretto. 45 Segundo Ortega Y Gasset, era a expressão que Pacheco, mestre e sogro de Velázquez usava para se referir ao modo como o genro pintava (ORTEGA Y GASSET, 2016, p.98).

183

Figura 214. Hans Holbein, o Jovem, Sir Thomas More (detalhe).1527. Têmpera sobre madeira, 74 x 59 cm. Frick Collection, Nova York.

Figura 213. Jean-Auguste-Dominique Ingres, Princesa de Broglie (detalhe).1851/53. Óleo sobre tela. 121 x 91 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova York

Figura 215. Tintoretto, Ecce Homo ou Pilatos apresenta Cristo à multidão (detalhe), 1546/47. Óleo sobre tela. 109 x 136 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

Figura 216. Diego Velázquez, Las meninas ou A família de Filipe IV (detalhe), 1656. Óleo sobre tela. 318 x 276 cm. Museo del Prado, Madri.

184

46 Neste evento, fui premiado com a Medalha da Associação dos Pastelistas Poloneses. http://www.biennalepasteli.pl/

Figura 217. Sem título. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

4.17

Com o passar dos anos, meus desenhos em pastel aumentaram de

tamanho. As pinturas representadas buscam uma escala mais próxima dos quadros

de verdade, aos quais os desenhos remetem, direta ou indiretamente. E assim

também me permito desenvolver com mais precisão as curvas e dobras de suas

bordas.

As primeiras obras em dimensões maiores (figuras 192, 217 e 218) foram

exibidas na cidade de Nowy Sącz, no sul da Polônia, na sétima edição da Bienal

Internacional do Pastel (7. Międzynarodowego Biennale Pasteli), entre 6 de

setembro e 2 de novembro de 201946 na Galeria BWA SOKÓŁ (figura 219). Três

outros pastéis, em tamanhos maiores, foram exibidos no Paço Imperial, Rio de

Janeiro, entre 11 de abril a 07 de julho de 2019, na exposição Meu cuidado todo,

junto com três outros desenhos anteriores (figura 220).

185

Figura 218. Sem título. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 219. 7a Bienal Internacional do Pastel. Galeria BWA SOKÓŁ, Nowy Sącz, Polônia.

186

Figura 220. Meu cuidado todo. Paço Imperial, Rio de Janeiro. Foto de Gabi Carrera.

Os primeiros desenhos expostos, na Galeria Casa da Imagem, na mostra

Pinturas sem limites, se apresentaram em molduras de acrílico, criadas por Marco

Silveira Mello, galerista e autor do texto de apresentação. Os papéis eram fixados

em placas de foamboard, de grande espessura, mas de sua mesma largura e

altura. As placas eram colocadas nas molduras, de laterais e fundo transparentes

(figuras 220-23). O que o espectador vê é uma caixa translúcida com um objeto

dentro, que dá a sensação de solidez, embora a um olhar minimamente atento se

revele uma folha de papel. A ênfase cai na materialidade do papel, no desenho

enquanto objeto, enquanto o desenho, em si, propõe uma ilusão. Para a mostra no

Paço Imperial, procurei mostra-los em molduras idênticas.

187

Figura 222. Sem título, 03-10-2017. Pastel seco sobre papel (em moldura de acrílico), 42 x 59,4 cm. Foto de Marcelo Almeida.

Figura 221. Sem título, 09-11-2017. Pastel seco sobre papel (em moldura de acrílico), 42 x 59,4 cm. Foto de Marcelo Almeida.

188

Figura 223. Sem título, 09-11-2017. Pastel seco sobre papel (em moldura de acrílico), 42 x 59,4 cm. Foto de Marcelo Almeida.

4.18

A maioria das obras de arte que formam nosso repertório visual não foram

vistas por nós. Não vimos todas as pinturas de nossas vidas – não de perto, não

frente a frente. Crescemos olhando reproduções, cada vez melhores, de obras de

arte que um dia sonhamos ver, e talvez nelas descobrir outras coisas, novos

aspectos, que reafirmem, contradigam ou se sobreponham àqueles que achávamos

que conhecíamos. A escala costuma surpreender. A cor, também. A materialidade –

ou não – da tinta é sempre uma descoberta. Há, ainda assim, em nós (ao menos

em artistas nascidos nos últimos sessenta ou setenta anos – ou mais) uma certa

naturalidade em pensar que o livro é um lugar onde a pintura encontra seu lugar –

ou um lugar quase natural. Embora (quase) sempre inferiores, as pinturas

encontram alguma dignidade nos catálogos de exposição, onde amiúde ostentam

um aspecto mais sério do que têm de verdade.

Magritte provavelmente pensou em uma folha de livro, em uma espécie de

catálogo perverso, o lugar habitado por palavras, imagens e vazios, quando

concebeu sua pintura do cachimbo. Tarsila, se não fez sua primeira versão do

autorretrato pensando nisso, executou uma segunda, quase idêntica, em 1926,

quem sabe tendo em vista sua reprodução na capa do catálogo de sua mostra

individual na Galerie Percier, em Paris. O espaço vazio onde flutua seu rosto,

189

Figura 224. Sem título, 29-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

estranho a uma pintura, se naturaliza nas páginas ou capa de uma publicação, e

talvez a ela se refira. Há, afirma Rancière,47 um vínculo (muito frequentemente

subestimado) entre a tão exaltada planaridade da pintura modernista e a página do

livro ou do cartaz.

Uma de minhas referências, ao situar pinturas, muitas vezes imaginárias,

em folhas horizontais de papel, é a página de livro ou catálogo. Ou melhor, o

espaço da página de livro ou catálogo. A proximidade com a ilustração – o caráter

ilustrativo do desenho, um pecado mortal em uma ideia greenberguiana de arte

moderna, aqui, não é algo a ser evitado.

Uma ideia, que ainda mantenho e penso em levar adiante é produzir um

pequeno livro ou brochura, onde os pastéis seriam reproduzidos sem nenhum

espaço em branco ao redor – pois esse espaço já estaria incluído nos desenhos.

Essas páginas, previamente sujas de impressões digitais, manuseadas, brancas e

preenchidas de antemão, seriam reproduções e reproduções de reproduções,

imagens de desenhos e desenhos de pinturas.

47 RANCIÈRE, 2009, p. 20-22.

190

Figura 225. Sem título, 10-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 226. Sem título, 22-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

191

Figura 227. Sem título, 29-08-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 228. Sem título, 07-09-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

192

Figura 229. Sem título, 29-09-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 230. Sem título, 10-11-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

193

Figura 231. Sem título, 30-11-2017. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 232. Sem título, 09-01-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

194

Figura 233. Sem título, 23-02-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 234. Sem título, 20-03-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

195

Figura 135. Sem título, 27-03-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 235. Sem título, 04-05-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

196

Figura 238. Sem título, 24-04-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 239. Sem título, 08-05-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

197

Figura 241. Sem título, 13-05-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 240. Sem título, 15-05-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

198

Figura 242. Sem título, 28-05-2018. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 243. Sem título, 15-06-2018. Pastel seco sobre papel. 51 x 65,5 cm.

199

Figura 245. Sem título, 13-07-2018. Pastel seco sobre papel. 51 x 65,5 cm .

Figura 244. Sem título, 2707-2018. Pastel seco sobre papel. 51 x 65,5 cm.

200

Figura 246. Sem título, 28-07-2018. Pastel seco sobre papel. 51 x 65,5 cm.

Figura 247. Sem título, 22-11-2018. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

201

Figura 248. Sem título, 14-12-2018. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 249. Sem título, 15-12-2018. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

202

Figura 250. Sem título, 06-05-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 251. Sem título, 28-05-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

203

Figura 252. Sem título, 17-06-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 253. Sem título, 13-08-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

204

Figura 254. Sem título, 27-08-2019. Pastel seco sobre papel. 42 x 59,4 cm.

Figura 255. Sem título, 02-10-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

205

Figura 256. Sem título, 09-10-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 257. Sem título, 17-10-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

206

Figura 258. Sem título, 23-10-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

Figura 259. Sem título, 06-12-2019. Pastel seco sobre papel. 56 x 76 cm.

207

Figura 260. Duas bolas, 2015/20. Tinta acrílica e esmalte sintético, bolas de pingue-pongue, pregos, madeira, compensado e MDF, 26 x 22 x 16 cm.

208

1 WANKE, 1984, p. 46.

2 Idem, 1985b, p. 44.

3 BATAILLE, 2003, p. 69. Este romance erótico de Georges Bataille (1897-1962), publicado originalmente em 1928 sob pseudônimo, é um relato de imagens. Se a narrativa é, muitas vezes incongruente ou frouxa, suas metáforas visuais, potentes, são recorrentes do começo ao fim: o olho é comparado ao ovo, ao testículo, ao ânus e ao sol. Num determinado ponto, o narrador, junto com Simone, o principal objeto de seu desejo – e um terceiro personagem, também amante de Simone –, estão assistindo a uma tourada, em Madri. Os testículos do touro recém morto são trazidos crus, num prato, e oferecidos à jovem. O protagonista vê, “sobre um prato, dois colhões nus; aquelas glândulas, do tamanho e forma de um ovo, eram de uma brancura carminada, salpicada de sangue, análoga à do globo ocular.” (BATAILLE, 3003, p. 67) A metáfora se reassume logo em seguida, quando, na próxima tourada, o animal termina por vencer o matador. A multidão assiste, com horror e fascínio, homens trazendo o cadáver do toureiro – com o olho direito dependurado (Ibidem, 68).

Palavras finais

O trabalho intitulado Duas bolas (figuras 61, 62 e 260), de alguma forma,

sintetiza a premissa desta pesquisa. É uma pintura reduzida aquilo que lhe é mais

elementar: tinta, superfície, e o gesto de se cobrir, de se preencher.

Deixamos de lado composição, luz, tonalidades, virtualidade; esquecemos

os tipos de pincel, ignoramos a mão dura ou elegante do artista: pintar é cobrir de

tinta. E nisso, nessa insistência em ser o que ela é, que ela se torna outra coisa:

vira objeto, e o pincelar se nos parece curiosamente próximo do trabalho de

moldagem do escultor. O objeto final lembra um modelo anatômico (pois também

somos camadas), e o título, desnecessário dizer, reforça essa comparação, assim

como remete ao quadro Pintura com duas bolas, de Jasper Johns (figura 262), e

ao paralelo entre olhos e testículos, “dois globos de igual tamanho e

consistência”, em A história do olho, de Bataille.3

Duas bolas é pintura, pois só ganha corpo pelo ato de se acumular

camadas de tinta, aplicadas com pincel, e se apresenta afixado à parede (mesmo

que um pouco distante, como visto na figura 263); entretanto, é uma escultura, um

Os pintores têm olhos perigosos. Desnudam os retratos que estão pintando.1

Em nosso cérebro os pensamentos conversam entre si enquanto não os estamos utilizando.2

209

Figura 262. Jasper Johns, Pintura com duas bolas, 1960. Encáustica e colagem sobre tela com objetos (três painéis), 165,1 x 137,2 cm. Coleção do artista.

Figura 261. Modelo de nariz e seio nasal. Modelo anatômico, disponível à venda no website http://erler-zimmer.com.br/modelos-anatomicos/modelo-de-nariz-e-seio-nasal-c80/?pdf=1313.

Figura 263. Duas bolas (estudo), 2015. Acrílica e esmalte sintético, bola de pingue-pongue. Duas peças de aproximadamente 7 x 9 x 11 cm cada.

210

objeto tridimensional (de maneira mais evidente que um quadro), e embora

predomine uma vista frontal da peça, reforçada pelo modo de sua apresentação,

ela pode ser vista de outros ângulos, faz a gente se colocar na posição de vê-la ao

menos de lado. Trata-se, poderíamos dizer, da pintura que olha para os lados, do

título.

Também é o trabalho que levou todo o período de meu doutorado para ser

feito. Um esboço dele foi apresentado em meu projeto de pesquisa (figura 264), em

setembro de 2015, e concluído – isto é, as duas bolas, afixadas em uma placa de

MDF e que passaram os anos recebendo camadas de cor, muitas delas sobras de

outras pinturas foram cortadas ao meio –, neste janeiro de 2020.

Contudo, esta é uma obra atípica, se não única, em minha produção, e isso

tornaria, a princípio, discutível, considerá-la como uma síntese desses anos de

pesquisa. Pois não há, nestas mais de duzentas páginas, tantas obras (ou mesmo

processos e procedimentos) semelhantes a Duas bolas. E não há, nem poderia

haver, uma síntese de quatro anos no ateliê. Ao menos não no modo como

trabalho. Duas bolas aponta um caminho, entre outros que trilho ao mesmo tempo.

Já havia sido avisado na introdução que a digressão não seria malvista. Mais

do que isso, ela foi acolhida como uma espécie de método, algo mais comum na

criação de obras de arte do que de trabalhos acadêmicos. Procurei encontrar uma

construção nas palavras que fosse análoga ao pensamento do ateliê, onde o tempo

de se esperar secar uma camada de tinta é o momento para se desenvolver um

desenho — ou recobrir bolas de pingue-pongue —, onde o pensamento não segue

em linha reta, mas em vias paralelas e, frequentemente, descontínuas.

211

Figura 264. Duas bolas, 2015/20. Tinta acrílica e esmalte sintético, bolas de pingue-pongue, pregos, madeira, compensado e MDF, 26 x 22 x 16 cm.

212

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Catálogos de exposição

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Blinky Palermo: Retrospective 1964-1977. Editado por Lynne Cooke, Karen Kelly e Barbara Schröder. Textos de Benjamin H. D. Buchloch, Lynne Cooke, Suzanne Hudson, Susanne Küper e James Lawrence. Nova York: Dia Art Foundation, 2010.

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Color Chart: Reinventing Color, 1950 to today. Editado por Ann Temkin. Textos de Ann Temkin, Melissa Ho e Nora Lawrence. Nova York:The Museum of Modern Art, 2008.

Jasper Johns: a retrospective. Editado por Kirk Varnedoe. Textos de Kirk Varnedoe e Roberta Bernstein. Nova York: The Museum of Modern Art, 1996.

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Organizers of Life: De Stijl, The Polish Avant-Garde and Design. Editado por Paulina Kurc-Maj e Anna Saciuk-Gąsowska. Textos de Theo van Doesburg, Marek Wieczorek, Michał Wenderski, Andrzej Pronaszko, Szymon Piotr Kubiak e Szymon Syrkus. Łódź: Muzeum Sztuki w Łodzi, 2017.

Vídeo

JACQUES RANCIÈRE. Entrevista, série Incertezas Críticas. Direção de Daniel Augusto. Produção de Kênya Zanatta. São Paulo: Grifa Filmes, produção original para o canal Curta!, 2015. 27 minutos.

Artigo de jornal

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Artigo científico

DURO, Paul. What is a parergon? The Journal of Aesthethics and art criticismo, 2019. Disponível em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/jaac.12619 . Acesso em 13 de novembro de 2019.

Dissertação

BROGGIATO, F.C. Pintura e objeto. 2011. 150f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, SP.

Textos disponíveis na internet

MELLO, Marco Silveira. Pinturas sem limites. Disponível em http://www.casadaimagem.com.br/textopinturaslimites.html . Acesso em 16 de janeiro de 2019.

TAAFFE, Philip. Interview, April, 29, 1996. Disponível em https://www.philiptaaffe.info/Interviews_Statements/newInterview.php . Acesso em 21 de dezembro de 2019.