A MUSA DIFUSA: VISÕES DA ORALIDADE NOS POEMAS HOMÉRICOS (2015)

252
A musa difusa: visões da oralidade nos poemas homéricos

Transcript of A MUSA DIFUSA: VISÕES DA ORALIDADE NOS POEMAS HOMÉRICOS (2015)

A musa difusa: visões da oralidade nos

poemas homéricos

As origens do pensamento ocidentalDireção

Gabriele Cornelli Conselho Editorial:

André Leonardo Chevitarese Delfim Leão

Fernando Santoro

A coleção Archai é espelho do trabalho do grupo Archai: as origens do pen-samento ocidental, agora promovido a Cátedra UNESCO Archai. Há mais de dez anos, desde 2001, o grupo Archai – desde 2011 Cátedra UNESCO Archai – promove investigações, organiza seminários e publicações (entre eles a revista Archai) com o intuito de estabelecer uma metodologia de tra-balho e de constituir um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento ocidental. A presente coleção – parte do selo editorial Annablume Clássica – quer contribuir para a divulgação no Brasil de produções editoriais que busquem compreender, a partir de uma perspectiva cultural mais ampla, nossas origens. Nesse sentido, visando uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia, e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, as obras que aqui são apresentadas procuram confrontar uma tradição excessiva-mente presentista de contar a história do processo de formação da cultura oci-dental. Notadamente daquela que pensa a filosofia como um saber “estanque”, independente das condições de possibilidade históricas que permitiram a aparição desse tipo de discurso. Enraizando o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, contrapondo-se às lições de uma historiografia filosófica racionalista que, ana-cronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha às múltiplas formas do logos antigo, a coleção Archai pretende contribuir para o lançamento de um olhar novo sobre os primórdios do pensamento ocidental, em busca de novos caminhos hermenêuticos de nossas identidades intelectuais, éticas, artísticas e culturais.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.

Coleção

A musa difusa: visões da oralidade nos

poemas homéricos

A n d r é M A l t A

A MUSA DIFUSA:VISÕES DA ORALIDADE NOS POEMAS HOMÉRICOS

annablume editora

Projeto, Produção e CapaColetivo Gráfico Annablume

Revisão científica?

Revisão técnica?

Editor executivoJosé Roberto Barreto Lins

A presente obra contou com o apoio da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental - Universidade de Brasilia

1ª edição: abril de 2015

© André Malta

annablume clássica

Conselho editorialGabriele Cornelli

Luiz Armando BagolinMário Henrique D´Agostino

Mônica Lucas

Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros05415-020 . São Paulo . SP . Brasil

Tel. e Fax. (011) 3539-0226 – Televendas 3539-0225www.annablume.com.br

SUMÁRIO

introdução 11

(a) a ‘‘questão homérica’’ 17

1. três precursores 212. villoison e o manuscrito de veneza 393. wolf e a evolução do texto 454. a dissecação dos analistas 715. a retomada da unidade e o impasse 976. a crítica oralista no século xx 123 notas 153

(b) a demonstração de parry 177

7. o epiteto tradicional 1818. a fórmula significativa 197 notas 223

posfácio: os clássicos pelas beiras 229

obras consultadas 245

Mais do que nunca, estou convencido da unidade e indivisibilidade do poema, e não vive mais aquele, nem

nascerá, que esteja em condição de julgá-lo. Eu, pelo menos, volto a encontrar-me a todo momento

num julgamento subjetivo. Assim aconteceu a outros antes de nós e acontecerá a outros depois de nós.

Goethe, falando sobre

a Ilíada em carta a Schiller de 16 de maio de 1798

(trad. Claudia Cavalcanti; W. Goethe & F. Schiller, Correspondência.

S. Paulo: Hedra, 2010, p. 201).

Esta publicação contou com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo 2014/00287-0

INTRODUÇÃO

O objetivo primeiro deste livro é apresentar didati-camente as discussões principais sobre a questão

da oralidade na épica grega, com foco em dois nomes fundamentais, o do alemão Friedrich August Wolf (1759-1824) e o do norte-americano Milman Parry (1902-1935). Na primeira parte, “A ‘Questão Homé-rica’”, a intenção é traçar um painel histórico de como Homero – sobretudo a partir do trabalho de Wolf, no final do século XVIII – deixou de ser visto como escri-tor para ser entendido como poeta de natureza diver-sa. A segunda parte, “A Demonstração de Parry”, tem por sua vez o propósito de descrever as descobertas de Parry no plano concreto do estilo homérico, nas primeiras décadas do século XX, e alguns de seus des-dobramentos para a atividade da interpretação.

A originalidade do trabalho talvez fique por con-ta da leitura mais extensamente informativa e crítica das obras escolhidas para análise, vistas aqui em suas

12

articulações internas e nas relações que estabelecem entre si. Apesar de não terem podido fazer parte deste estudo, não se devem perder de vista pelo menos duas consequências dessa ampla abordagem: vislumbrar a oralidade, para além do estilo, como algo inscrito dentro dos próprios poemas homéricos (nas represen-tações poéticas ou no peso dado ao poder verbal dos personagens-reis), e entender que o caráter repetitivo e padronizado da Ilíada e da Odisseia, com suas alusões, referências e mesmo silêncios, pode estar a serviço de complexas variações e elaborações semânticas.

Não é demais dizer que muitos elementos carac-terísticos do texto poético em geral e igualmente re-levantes na épica grega, como a sonoridade, a visua-lidade e o emprego de metáforas e símiles, não serão abordados aqui, o mesmo valendo para o uso da pa-rataxe e da digressão, recursos expressivos importan-tes. Outros aspectos também serão ignorados, entre os quais se encontram a mistura dialetal (própria do grego homérico), as convenções narrativas artificiais e os seus modos de apresentação. Portanto, este traba-lho é menos uma abordagem do estilo homérico em seus diversos âmbitos e mais uma apresentação dos problemas abraçados pelos especialistas desde o século XVIII, no sentido de fornecer ferramentas que sejam úteis à nossa leitura da Ilíada e da Odisseia.

Vale ressaltar que, apesar da discussão muitas ve-zes demorada, trata-se ainda assim de apresentar um panorama geral (um roteiro que seja útil para um lei-tor em língua portuguesa), sem qualquer pretensão de uma análise completa: o mesmo número de páginas

13

poderia ter sido escrito abordando-se apenas os no-mes deixados de fora, ou as inúmeras ramificações e intersecções de uma quantidade de trabalhos que é, verdadeiramente, assombrosa. Além do mais, o des-conhecimento da língua alemã por parte do autor fez com que obras de muitos estudiosos – principalmente do século XIX – fossem referidas apenas indiretamen-te. Sua consulta nas bibliotecas, de qualquer maneira, seria difícil, porque em geral são textos esquecidos dos “analistas”, pouco reeditados e quase nunca traduzidos para línguas como o inglês, o francês ou o italiano. Es-tou consciente dessa limitação, mas ela não me parece roubar a este livro seu valor, uma vez que o propósito aqui não é fazer a história da “análise homérica” (em relação à qual o domínio do alemão seria absoluta-mente indispensável), mas apenas apontar algumas contribuições representativas que se situam entre os pontos centrais – as obras de Wolf e Parry. Para os que se ocupam da literatura clássica, será fácil perce-ber como o que se vai apresentar aqui sobre Homero configura o caso primeiro – e principal – de uma abor-dagem sobre os problemas de autoria e composição de textos que afetou, em graus e modos variados, prati-camente todos os poetas e prosadores da antiguidade estudados desde então.

Duas advertências finais se fazem necessárias. A primeira diz respeito ao título dos trabalhos citados: sendo a grande maioria deles em língua estrangeira, sem versão para nosso idioma, por uma questão de clareza procurei traduzi-los para o português, forne-cendo sempre a informação básica sobre os nomes no

14

original. O outro aviso tem relação com as traduções em geral: como, adotando o mesmo procedimento, evitei citações em outras línguas, fiz eu próprio a ver-são de inúmeros trechos, do grego, do latim e das lín-guas modernas; portanto, em não havendo indicação contrária, a responsabilidade por elas é inteiramente minha.

Uma palavra sobre o posfácio, “Os clássicos pelas beiras”: à medida que eu investigava o debate filológico acerca de Homero nos últimos séculos – debate que, de certa maneira, trazia em seu bojo todas as linhas--mestras que caracterizam até hoje os Estudos Clássi-cos como área do saber –, ia se fortalecendo em mim a vontade, que já vinha de antes, de entender como nós, brasileiros e falantes do português sem tradição forte na área, poderíamos e deveríamos nos situar, crítica e criativamente, em relação a essa herança externa, rica e incontornável, mas marcada por limitações históricas. A inclusão desse quase-depoimento funciona, portan-to, como contraponto reflexivo ao que foi exposto ao longo do livro.

Quero expressar aqui meu agradecimento ao CNPq pela concessão da Bolsa de Produtividade em Pesquisa no triênio 2008-2011, que permitiu que me dedicasse à redação deste trabalho. Também é preciso agradecer a David Konstan, da Brown University, que me acolheu em Providence (EUA) no ano acadêmi-co de 2011-2012 e me franqueou acesso à Rockfeller Library, onde pude completar – nos intervalos de mi-nha pesquisa sobre a Odisseia – a coleta da bibliografia específica. Agradeço ainda a Vicente de Arruda Sam-

15

paio pela localização e tradução para o português dos poemas de Goethe sobre Wolf (citados em nota no capítulo 5) e pela revisão dos títulos em alemão pre-sentes ao longo do trabalho. Foi ele também que, em 2007, me trouxe da Alemanha uma cópia da tradução para o inglês do trabalho de Wolf – ponto de partida deste livro. Não posso deixar de registrar, por fim, os nomes daqueles que leram este trabalho e contribuí-ram com seus comentários: Adriane Duarte, Joaquim Brasil Fontes, Pedro Paulo Funari e, especialmente, Jaa Torrano.

(A) A “QUESTÃO HOMÉRICA”

Há muito já se deu a devida atenção ao fato de que o sentido primeiro da palavra grega “mito”

(mûthos) é o de “fala”, isto é, “ato de vocalização”, “emissão sonora verbal”. Esse sentido fica claro nas inú-meras vezes em que o termo aparece na poesia homérica, quase sempre em referência às também numerosas falas dos personagens, àquilo que chamamos hoje de “discurso direto”. No entanto, essa constatação permaneceu obscu-recida pelo fato de essas “falas”, em Homero, terem sido frequentemente encaradas tal qual encaramos as “falas” dos personagens em uma obra como a Eneida, a Divina Comédia, os Lusíadas ou mesmo um romance moderno: manifestações verbais diretas que permanecem “mudas”, porque tanto aquele que as cria quanto aquele que as recebe estão ligados pelos atos gêmeos da escrita e da lei-tura, nos quais cada voz particular faz-se ouvir apenas no pensamento.

18

Homero, efetivamente, desde sua redescoberta no Ocidente a partir do século XV (as primeiras edições são de 1488-9),1 foi em geral visto como um escritor como outros – pelo menos no modo de produção e recepção de sua obra: alguém que compusera solitariamente, com toda a sua força criativa, e segundo determinadas con-venções, poemas que eram lidos pelos que se interessa-vam por literatura, por suas qualidades literárias e pelo universo que descrevia. Nesse contexto, os “atos de fala” que, numericamente, ocupam mais da metade do total de seus versos, jamais podiam ser tomados – junto com as partes propriamente narrativas – como “vocalizações” de fato, como elementos que faziam parte de outra realidade poética, em que a escrita e a leitura não desempenha-vam papel importante (ou mesmo não desempenhavam, a princípio, papel algum) e a fruição do texto se dava exclusivamente no plano acústico. Isso implicava não só enxergar de um modo diferente o poeta Homero, mas também reavaliar toda a sua poesia – seu modo de com-posição e transmissão, sua inserção social, seu valor –, ou seja, implicava enxergar os poemas homéricos e seu autor a partir de uma perspectiva nova, que lhes concedia uma condição, um tempo, necessariamente diversos daqueles contemporâneos.

A história da reavaliação do mais importante poeta da antiguidade é uma história da percepção de sua orali-dade, uma história paulatina, descontínua, recheada de acertos e equívocos, que mobilizou inúmeros especialistas e se desenrolou à margem do grande público, trazendo resultados que transformaram nossa maneira de ler (sim, continuamos a ler) a Ilíada e a Odisseia. Ela é, sobretu-

19

do, fruto do olhar histórico, que se volta para trás e busca, em cada objeto, sua origem e seu desenvolvimento, porque tem consciência de que tudo se dá segundo um processo de transformação no tempo e no espaço. É, portanto, no século XVII e, com muita mais força, no século XVIII, que Homero passa a ser visto como um “estrangeiro”, isto é, como um poeta de outra época (diferente de Virgílio, Dante e Camões), com suas características próprias, que demandam uma visada crítica. E se é verdade que essa abordagem nova levou a uma postulação quase que ime-diata da origem oral da poesia homérica (ainda que vaga e imprecisamente), é preciso dizer, contudo, que mais im-portante do que do rótulo foi o debate sobre as implica-ções dessa oralidade, não só em relação à imagem que se tinha de Homero, mas também em relação ao modo de se abordar sua poesia e sua época.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que a discussão atingiu seu ponto de maturação apenas numa segunda etapa (na primeira metade do século XX), que abordare-mos em profundidade mais à frente. Agora, a intenção é apenas traçar as linhas principais desse movimento crítico moderno, vigoroso e apaixonante, sobre o nascimento e a formação das duas principais epopeias gregas, movimen-to que se instalou no século XVIII, adquiriu sua feição mais característica no século XIX e ficou conhecido como “Questão Homérica”.2

1.

TRÊS PRECURSORES

A obra fundamental para se compreender os princi-pais caminhos seguidos pelos estudos homéricos

nos últimos dois séculos foi escrita em latim, por um acadêmico de língua alemã, Friedrich August Wolf, e publicada em Halle quase no fim do século XVIII, em 1795. Seu título original, Prolegomena ad Homerum, não dá a exata medida do seu conteúdo, que ambicio-na ser bem mais do que simples prolegômenos (isto é, prefácio ou introdução) a Homero.

Para se entender o livro de Wolf, no entanto, se-ria preciso primeiro situá-lo dentro do contexto maior das discussões em que a poesia homérica estava en-volvida no século XVIII e apontar alguns dentre seus vários precursores. Ainda que o alemão não receba uma influência decisiva desses que vou mencionar aqui, suas obras revelam que a ideia vaga de um cantor iletrado que recitava seus poemas já estava difundida no ambiente culto. Três nomes são fundamentais: o

22

do francês François Hédelin, abade de Aubignac, que teve publicadas postumamente suas Conjecturas acadê-micas ou dissertação sobre a Ilíada (1715); o do italia-no Giambattista Vico, autor de Sobre a descoberta do vero Homero (1730); e o do inglês Robert Wood, com seu Ensaio sobre o gênio original de Homero (1769).3 A indicar o alcance da discussão, é interessante notar que os três livros foram escritos em línguas diferentes; dado mais relevante ainda é terem sido todos eles pos-tos em vernáculo, o que, por si só, marca uma dife-rença substancial em relação à abordagem científica do trabalho de Wolf, como veremos mais adiante.

Desse grupo de antecessores, o texto do abade de Aubignac é certamente o mais interessante, não só por conta de seu desenvolvimento mais aturado e por an-tecipar a visada analítica, mas também pelo fato de ter feito parte da rixa literária que tomou conta da França entre 1687 e 1716, batizada de “Querela dos Antigos e Modernos”. A redação do livro, aparentemente, foi concluída apenas em 1670, poucos anos antes de sua morte (em 1673 ou 1676), mas é na época em que vem a público, 45 anos depois de escrita, que Homero de fato se encontrava no centro do debate entre os que, de um lado, defendiam a superioridade literária dos modernos (agora não mais liderados por Charles Perrault, mas por Houdard de La Motte), e os que, no lado oposto do front, se aferravam à autoridade dos escritores antigos (capitaneados não mais por Boileau, mas por Anne Dacier). A efervescência é testemunha-da pela quantidade de publicações envolvendo a poe-sia homérica (e a Ilíada em especial) nesse período,

23

com ataques e contra-ataques, com “discursos”, “dis-sertações críticas”, “exames”, “apologias”, “defesas”, traduções, versões aperfeiçoadas (!), criações para o teatro etc.4 O abade – ele mesmo dramaturgo e tra-tadista, propositor da famosa regra das três unidades em sua obra A prática do teatro (de 1657) – era um dos partidários da visão moderna então prevalecente, e isso se evidencia no tratamento cartesiano dispensado a Homero, cuja obra não resistia ao teste de fogo das regras fundamentais da arte literária.

Seu argumento central era bastante simples, mas extremamente audacioso para a época (o que talvez explique o retardo na publicação, e essa ter acontecido de modo anônimo):5 a análise detalhada das incon-sistências – morais, estilísticas, narrativas etc. – en-contradas na Ilíada, somada a algumas informações históricas sobre a atividade rapsódica e a ausência de escrita, indicavam claramente para o abade que a obra não podia ser resultado do trabalho de um autor, mas sim fruto de uma compilação de cantos, e que Home-ro, portanto, nunca existiu. A heresia central consistia, naturalmente, em suprimir a existência do grande Ho-mero, em “matar” o homem que tinha produzido os grandes monumentos da nossa literatura ocidental.6

Ciente da dimensão da empreitada, o abade inicia sua obra pedindo permissão ao leitor para falar com “inteira liberdade” sobre Homero, para que assim se abandone a complacência em relação a esse “nome tão venerável, e que talvez não tenha sido outra coisa se-não um simples nome”, e sobressaia o uso da razão.7 Em seguida, na primeira parte do livro – mais cur-

24

ta, cujo título “Homero não existiu” trai o gosto pela polêmica e a vontade de chocar –, o francês passa a expor, apoiado em relatos tradicionais, os dados his-tóricos que corroborariam essa sua visão: 1. a ausência de informações concretas relativas à vida do poeta; 2. a designação dos cantos da Ilíada e da Odisseia pelo termo “rapsódias”, termo que originalmente indica “recolha de cantos costurados entre si”;8 e 3. os teste-munhos antigos, sobretudo o de Flávio Josefo (século I d.C.), que no seu Contra Ápion (1.2) afirma que os poemas homéricos foram transmitidos oralmente até sua compilação tardia por escrito, o que explicaria suas muitas inconsistências. A conjectura preliminar é de que a Ilíada representa a junção de 40 poemas diferen-tes (de mais ou menos 400 versos cada), surgidos de maneira independente (mas que jamais poderiam ter sido compostos por um homem só) e posteriormente reunidos pelas atividades do tirano ateniense Pisístrato e de seu filho Hiparco, “tendo chegado até nós nesse mesmo estado”.9

É para sustentar essa sua hipótese que o abade vai se voltar, na segunda parte (que corresponde ao grosso do livro), para a análise da própria Ilíada: submeti-da ao crivo cartesiano, ela se revelará uma narrativa repleta de problemas, todos eles a apontar cabalmen-te a impossibilidade de ser a construção acabada de um único autor. A começar pelo “desenho”, a lista de defeitos é evidente: o título não descreve convenien-temente a ação; não existe um eixo principal; não se narra o julgamento de Páris nem a tomada de Troia; a invocação é limitada; o fim não é adequado; há ex-

25

cesso de narrativas incidentais etc. etc. É conduzido pelas “regras da arte”, pela “razão natural”, pela “veros-similhança” – ou seja, por aquilo que o poeta deve em qualquer tempo fazer, segundo as suas concepções de construção poética – que o autor vai apontado as “ex-crescências” no que deveria ser um “corpo perfeito”.10 Para que se tenha ideia do enfoque, basta mencionar a crítica que dirige à longa conversa entre Diomedes e Glauco no Canto 6: para o abade, “um poeta sábio, que trabalhasse por seu próprio gênio na fabricação de uma grande obra, tomaria o cuidado de jamais fazer seus heróis contarem histórias quando estão com ar-mas nas mãos e prestes a arrancar vidas”.11 Na sequên-cia, a mesma censura, com base no que é plausível ou crível, vai se aplicar ao diálogo de Menelau com Eu-forbo, no Canto 17, e ao de Aquiles com Eneias, no Canto 20.

Mais adiante, ao falar das divindades no poema, o autor nega que tenham função instrutiva ou alegó-rica, e põe mais uma vez na conta da compilação a presença de “coisas tão irracionais, tão distantes da natureza”, coisas que “um poeta inteligente” jamais teria feito.12 O mesmo se aplica aos heróis: julgados “pelas regras do bom senso”, conclui-se que Aquiles e Agamênon brigam por “motivo vil” e que não há a “grande alma”;13 além do mais, a conduta “judiciosa” manda que se mantenha sempre o herói principal “à vista dos leitores”, “sobre o palco” – e manda ainda (vale acrescentar) que ele e os demais não sejam apre-sentados a toda hora em lágrimas, e sem serviçais para lhes preparar a refeição!14

26

Finalmente, no trecho que encerra o trabalho en-contramos a discussão específica sobre as “discordân-cias diversas”;15 ela é importante porque se apoia nas supostas contradições internas do poema – ainda sem muita precisão – para defender o caráter compósito da narrativa. Para o abade, mais uma vez, “um único autor, ainda que pouco hábil, não teria cometido tais contradições, que se podem chamar de erros de julga-mento; pois, tendo em vista a obra inteira, ele teria ob-servado a conveniência, sem destruir uma coisa com outra”.16 Entre as incongruências citam-se o modo como pinta certos personagens, como Páris (covarde no Canto 3 e valente no Canto 11) ou Aquiles (aman-te do butim no Canto 1 e indiferente aos presentes de Agamênon no Canto 19); a presença de repetições des-necessárias, como quando, no Canto 1, Aquiles repete para a mãe a narrativa do início do poema; a mistura do tom em geral elevado com o burlesco (presente no diálogo de Zeus com Hera no Canto 1); a recorrência dos epítetos, tão destacada “que se tornam insuportá-veis”, sendo muitos deles aplicados indiferentemente a vários heróis, com o agravante de que isso é feito “sem qualquer conveniência, sem energia, sem aumentar a força do sentido e a graça da expressão” – defeito que, segundo o abade, só veio a aparecer porque a reunião de dezenas de poemas independentes, baseados num “bem comum”, tornou o que era belo “vicioso”.

Por esse breve apanhando, é possível notar como a obra tocava, em fins do século XVII, naqueles pon-tos que seriam fundamentais para o desenvolvimento dos estudos homéricos: a importância de certas infor-

27

mações históricas sobre a oralidade e uma “recensão” antiga dos poemas; o emprego de um racionalismo extremo (e arbitrário) na leitura crítica; a tentativa de decomposição da Ilíada e da Odisseia com base nas suas supostas inconsistências; e, finalmente, a referên-cia às repetições e ao uso dos epítetos – elementos que vão reaparecer, sob a capa do cientificismo filológico, no século XIX, livres de certo amadorismo do abade,17 e permanecerão no centro do debate no século XX.

Deve-se destacar que, no que diz respeito à ques-tão da oralidade, o abade não é claro. Embora se apoie, como vimos, em Flávio Josefo (que postulava uma origem oral para a poesia homérica), e afirme que a Ilíada se formou a partir de cantos costurados entre si, seu texto dá a entender que não postula uma época de produção poética exclusivamente mnemônica, em que a escrita está ausente. Veja-se este trecho:

Uma vez que Homero não deixou absolu-tamente por escrito as obras que levam seu nome, deve-se concluir que ele jamais as compôs, e, se ele jamais as compôs, deve-se concluir que ele não existiu absolutamente. Pois como é possível que ele tenha compos-to essas poesias, sem jamais as ter posto por escrito, e se possa ter conhecimento delas, contendo mais de trinta mil versos? Seria preciso que tivessem sido repetidas durante toda a sua vida, e que as gentes não tivessem feito outra coisa senão escutá-lo para poder aprendê-las.18

28

A conclusão que se pode tirar desse raciocínio um pouco frouxo19 é que, se Homero tivesse existido, teria escrito seus poemas, sobretudo em se tratando de um conjunto de versos tão extensos, que não poderiam ser preservados exclusivamente pela memória.20 Duas as-sociações chamam a atenção aí: a entre criação poética (coerente) e escrita; e a entre extensão poética e escrita. Como, nas Conjecturas acadêmicas, parte-se da ideia dupla de que a Ilíada não tem unidade artística e é um conglomerado de pequenos cantos, fica sim indicada a oralidade da produção poética, mas ela não recebe uma atenção própria e não se separa do letramento – elemento que depois será fundamental. Já sobre a intervenção de Pisístrato (ou de seu filho Hiparco) na organização dos poemas, o abade não diz nada que já não tenha aparecido no texto de autores que vieram an-tes dele, e que se apoiaram nas mesmas fontes, embora o francês não especifique se ela implica uma redação.21

O que mais chama a atenção no livro, sem dúvida, é a proposição de que Homero não existiu. Por mais equivocado que tenha sido o caminho pelo qual che-gou a ela, o fato é que antecipa a ênfase que será poste-riormente dada à tradição em detrimento da figura do poeta-autor. Podemos medir o grau de perplexidade que essa ideia causava em sua época pela reação dos seus próprios camaradas “modernos”, que igualmente rejeitaram, junto com os adversários “antigos”, tama-nho absurdo, um verdadeiro paradoxo: uma obra que não tem autor e é fruto do acaso.22

O fato é que, em perspectiva mais ampla, nessas Conjecturas acadêmicas não percebemos ainda uma

29

visão propriamente histórica a respeito do poema; o enfoque é essencialmente retórico, feito sob o prisma das regras do bem escrever então vigentes na França do Dezessete – unidade, verossimilhança, bom gosto etc. –, à semelhança do que já preceituava Júlio Cé-sar Escalígero (1484-1555) em sua Poética (1561), ao louvar a arte de Virgílio em detrimento de Homero.23 Há certamente por trás do seu arrazoado uma ideia de progresso, segundo a qual os “modernos” eram capazes de produzir, a partir da imitação, e de uma perspectiva superior, obras mais acabadas que as antigas, cuja au-toridade não era total; mas essa é uma visão evolutiva estática, que não consegue sair da obra para o contex-to, e que aplica indiscriminadamente ao passado suas regras (que, paradoxalmente, de lá vieram).

Essa determinação histórica, atenta à marcha do homem, vai surgir com mais clareza no texto célebre de Vico, Sobre a descoberta do vero Homero, que cor-responde ao livro terceiro de sua Ciência Nova. Nele, a reflexão sobre Homero vem atrelada a dois elemen-tos principais: 1. a admissão de um estágio primitivo da humanidade no seu processo de desenvolvimento (favorecida pela comparação com os povos indígenas das Américas, há pouco descobertas); 2. a atribuição ao mito (que é o modo de pensar dessa época, essen-cialmente poético) de um sentido histórico e sócio--cultural, e não mais normativo e alegórico. Aplicadas a Homero, essas ideias resultam na visão de uma poe-sia representativa de uma Idade Heroica do homem, cujos costumes ela retrata em seu testemunho históri-co. As fábulas, segundo Vico, têm um sentido verda-

30

deiro e refletem as propriedades de um povo inteiro. São, portanto, os primeiros tempos da Grécia que a poesia homérica nos mostra, e não lições filosóficas escamoteadas.24

Mas a parte que mais interessa é a que vem a se-guir, e corresponde à segunda metade da obra (que, no total, não ultrapassa trinta páginas), quando Vico aduz as “provas filosóficas” e as “provas filológicas” relativas à descoberta do “verdadeiro” Homero. É nesse ponto que ganha destaque o papel atribuído à memória. Retomando o já citado passo de Flávio Josefo, sobre a ausência de escrita na época do poeta épico (e supondo que os poemas foram ordenados pe-los Pisistrátidas num período já letrado),25 o filósofo napolitano reflete sobre a necessidade de se recorrer, nessas circunstâncias, ao metro e ao ritmo para garan-tir a preservação das informações. Nesse contexto, os rapsodos desempenham papel fundamental: eles eram “homens do povo, que conservavam um a um, de me-mória, os livros dos Poemas homéricos. Porque Home-ro não deixou por escrito nenhum de seus poemas”.26 Entendendo também o termo “rapsodo” segundo sua difundida etimologia – como “o costurador de cantos” –, Vico imagina que, na Grécia Antiga, esses cantores eram figuras pobres e itinerantes; mais do que isso: que eram cegos, porque “é propriedade da natureza humana que os cegos tenham um desempenho mara-vilhoso no que diz respeito à memória”. Em apoio ao que diz, cita a presença de Demódoco na Odisseia e a possibilidade de o próprio nome “Homero” significar “cego”.27

31

Não é essa, no entanto, a formulação mais debati-da da obra. Vico guarda para o último capítulo, inti-tulado justamente “A descoberta do vero Homero”, a reflexão sobre o papel que se deve reservar ao Homero histórico. Cito a tradução de Sonia Lacerda:

Todas essas coisas agora nos compelem a afirmar que com Homero ocorreu justamen-te como com a guerra troiana, a qual, con-quanto tenha fornecido um afamado marco dos tempos à história, os críticos mais preca-vidos julgam que nunca se travou no mun-do. E certamente, como da guerra troiana, se de Homero não tivessem restado certos ves-tígios tão grandes quais são os seus poemas, diante de tantas dificuldades se diria que ele foi um poeta de ideia, e não um homem particular existente na natureza. Mas tais e tantas dificuldades, junto com os poemas que dele nos chegaram, parecem forçar-nos a afirmá-lo pela metade: que este Homero tenha sido uma ideia ou caráter heroico de homens gregos, enquanto narradores, em cantos, de sua história.28

Logo em seguida, veremos ainda a afirmação de que “esses povos gregos foram este Homero”, e que a representação tradicional de Homero não mais é do que a reunião, numa figura só, do que era característi-co dos rapsodos.29 Finalmente, ao tratar das diferenças entre a Ilíada e a Odisseia, Vico abandona a visão ex-

32

posta por Longino (século I d.C.) no capítulo 13 de seu tratado Do Sublime (de que a primeira correspon-deria à fase madura do poeta, e a segunda, ao tempo da velhice) para propor que cada epopeia testemunha um período e um local diferentes no desenvolvimento da Grécia Antiga. Com isso, tira-se de Homero uma existência real e atribui-se a ele um valor simbólico, num contexto de produção coletiva oral com forte sentido histórico.30

Notamos, portanto, que, trabalhando com as mesmas fontes históricas do abade, Vico propõe leitura bem diversa, não só valorizando (com forte idealização pré-romântica) o universo homérico, cuja espontaneidade poética é sinal de vitalidade e retra-to da infância humana, mas também dando efetivo relevo ao uso da memória e à produção oral. Se ele propõe, de outra maneira, também uma espécie de “morte” do grande Homero, que surge como ideia ou súmula de toda uma tradição primitiva (o verdadei-ro Homero é... o povo), fica claro que o faz não em decorrência de uma análise exclusivamente literária e anacrônica, mas sim em função de uma tentativa de posicionamento histórico-cultural – ou seja, o faz de um modo realmente inovador, que confere à epopeia grega estatuto diferenciado. Nesse contexto, a orali-dade é índice de um outro momento da marcha da humanidade, e por causa do enfoque filosófico do-minante ela surge em Vico de modo ainda idealizado e abstrato, sem uma compreensão de fato do que re-presenta, com suas especificidades, para a leitura da poesia homérica.

33

Se há algum avanço da perspectiva histórica no trabalho de Robert Wood, Ensaio sobre o gênio origi-nal de Homero e seus escritos, de 1769, ele consiste na apresentação de um olhar a princípio menos teórico e mais material, próprio de quem não era filósofo, mas político, com gosto pelas viagens; como diz John Myres, seu ensaio vinha levantar questão muito se-melhante à de Vico, mas “de um modo tipicamente inglês”.31 Está ali a mesma visão de um Homero his-toriador (que, segundo Wood, “pintava” a realidade à sua volta), que não aceitava mais a impostura da alegoria; que pertencia a uma época primitiva e rude, provavelmente anterior ao surgimento da escrita, e guiada única e exclusivamente pela memória. No entanto, ao contrário de Vico, o inglês se empenha numa exposição extensa que comprove a realidade da poesia homérica; não é por acaso que, como uma espécie de apêndice da obra, venha sua “Visão com-parativa entre o estado antigo e presente da Trôade”, com mapas e ilustrações, a coroar seu pendor para a topografia e pela análise in loco.

Como diz na advertência inicial ao leitor, ele se propõe a

ler a Ilíada e a Odisseia nas regiões em que Aquiles combateu, por onde Ulisses viajou, e nas quais Homero cantou. (...) Portanto, se se quer fazer justiça ao poeta, deve-se reali-zar, o mais possível, uma aproximação com o tempo e o local, com o “quando” e o “onde”, escreveu.32

34

Pode-se afirmar, em outras palavras, que sua meta consistia em manter um olho nos poemas (que deve-riam estar sempre à mão) e outro na paisagem, para que se confirmassem mutuamente.33 Os títulos dos capítulos do livro deixam claro o tipo de enfoque ado-tado: “A região de Homero”; “As viagens de Homero e sua navegação”; “Os ventos de Homero”; “A geo-grafia de Homero”; “Descrição de Faros e Alexandria” (para discutir a precisão de uma informação contida no Canto 4 da Odisseia); “A religião e a mitologia de Homero”; “Os costumes de Homero” (em que se vale da analogia com os povos mais “atrasados” do Oriente Próximo para atestar a verdade do que dizia Homero); “Homero enquanto historiador”; e “A cronologia de Homero”.

Sobre a existência do poeta, sua posição é bastante diferente da de Vico. Embora enfatize o papel da ora-lidade e do canto, Wood, ao contrário do florentino, acredita que Homero foi um poeta de carne e osso. Se para o filósofo descobrir o verdadeiro Homero sig-nificava torná-lo múltiplo e difuso, confundi-lo com a tribo dos rapsodos e, em última instância, com o próprio povo, para o inglês Homero era o “gênio” cuja sensibilidade – sem a mediação tirânica da norma – havia permitido um retrato tão contundente e preci-so de um período recuado da Grécia Antiga. Nesse contexto, a escrita, tomada como sinal de refinamen-to e avanço, é vista como algo inexistente. A questão propriamente dita (“Até que ponto o uso da escrita era conhecido por Homero?”) é colocada apenas na página 248 do livro, e vai ocupar o autor ao longo das

35

próximas 50, mas é importante que se diga que não está no centro das atenções, restringindo-se ao último capítulo, “A língua e a instrução de Homero”.

Wood aborda o tema com cautela, receando “o espanto do leitor com a insinuação de que Homero não sabia ler nem escrever”.34 Mas sua conclusão é de que a adoção de um registro gráfico da fala “é re-sultado de uma reflexão e de um pensamento muito profundos”,35 ainda ausentes na selvagem época ho-mérica. Para confirmar essa ausência, ele promove um vasto inventário de evidências (que talvez seja o que há de mais contundente e inovador no livro): o fato de não haver nenhuma menção nos poemas à escrita; o uso restrito, lento e complexo da anotação alfabé-tica em sua fase inicial; a escassez de materiais, que ficavam restritos à pedra e à madeira; o modo solene como Homero se dirige às Musas, filhas da Memória; a transmissão não escrita das leis nos primeiros tem-pos; o testemunho de Flávio Josefo; e, finalmente, a atribuição (principalmente a Pisístrato) de uma orde-nação da Ilíada e da Odisseia, tomada como sinal da introdução da escrita.36 Tudo isso faz Wood colocar o poder da memória em primeiro plano – no que diz respeito a Homero –, e a estipular o ano de 554 a C. como período mais provável para a disseminação do uso da escrita na Grécia Antiga.37

Em sua argumentação, Wood faz também um levantamento das mais variadas ciências em Homero (geografia, astronomia, medicina, pintura, anatomia, arquitetura, arte militar), para chegar à conclusão de que, na obra do poeta, elas ainda não surgem enquan-

36

to ciências de fato, o que está de pleno acordo com a simplicidade de sua época –anterior à fixação das artes e favorável à clareza, à originalidade e à verdade. O arrazoado – fica claro – serve para encaminhar a cons-tatação de que, em consonância com as outras artes, também a da escrita deveria ser inexistente – mas nesse ponto o inglês recua e afirma que ela, “embora conhe-cida na Grécia durante a época em que o poeta viveu, era muito pouco praticada”.38 Essa concessão decorre, certamente, daquele receio de chocar o público a que se endereçava a obra: Wood tinha clara consciência de que sua proposta “podia parecer ofensiva ao Poe-ta, uma vez que lhe roubava uma parte respeitável do caráter, há muito reconhecida, e contradizia a opinião preferida a respeito de sua instrução”; no entanto, ele conseguia ver “algumas vantagens decorrentes desse estado de iletramento que compensavam aquela per-da”:39 Homero era o poeta da natureza avesso às regras, e a imperfeição da arte, os modos rudes e a sociedade iletrada eram as condições que melhor se ajustavam ao seu caráter. Essa simplicidade se refletia, por fim, em seu estilo não escrito, em que não têm lugar períodos desenvolvidos e linguagem intricada, e “as repetições de passagens inteiras (pelo que Homero é censurado) eram não apenas mais naturais, mas também menos perceptíveis e, portanto, menos ofensivas”.40

Temos aí então as reflexões centrais de Wood: em-bora pertencente a uma época bárbara, anterior aos refinamentos da cultura, Homero para ele é exato, verdadeiro e original, e trabalhou (como o próprio Wood...) como um “viajante curioso e observador”,41

37

coletando e ordenando vasto material; além do mais, sua condição é a de um poeta oral, que, por não re-correr ainda à arte da escrita, só tem potencializadas suas qualidades. No trabalho do inglês, notamos efe-tivamente uma atenção especial dada à oralidade, mas a realidade é que o fato de trabalhar com essa ideia de um Homero genial leva-o a não dar peso maior à tradição (como o faz Vico),42 e acaba traindo um olhar letrado e anacrônico, apesar das afirmações em contrário.

No fim das contas, Wood parece trazer consigo o mesmo espanto que imagina em seu leitor perante a afirmação de que Homero não sabia ler nem escrever, e isso fica indicado por sua insistência no uso do nome “Homero” (evidente nos títulos dos capítulos), pelo destaque à sua grandeza como autor e pela referência frequente aos seus “escritos” e a sua atividade de “es-critor”. Essa contradição fica clara, por exemplo, no trecho citado acima, onde primeiro diz que “Homero cantou” para, logo na sequência, dizer que “Homero escreveu”. Trata-se, naturalmente, de um “ato falho” decorrente de uma visão costumeira, muito arraiga-da, justamente a que ele quer combater, e ela por si só seria insuficiente para sustentar esta crítica. O que parece sim indicar o acerto dessa percepção é a ideia central com que trabalha e vai disseminada pelo li-vro: de que deve haver uma cabeça diretora por trás dos poemas (um pouco à maneira do abade, mas em chave positiva, porque Wood, de modo fantasioso, va-loriza a simplicidade como obra do gênio rude).43 Por causa dessa ideia, sentimos que seu Homero, apesar

38

da descrição vívida dessa outra época selvagem, não pertence a ela e fica reduzido a uma figura pitoresca e superficial (como os orientais, especialmente os ára-bes, em cujos modos Wood se baseia para fazer suas analogias),44 cujo modo real de operar, como poeta, permanece obscuro.

De qualquer modo, dos três trabalhos vistos aqui, o de Wood foi o que teve maior repercussão:45 dele foi publicada, em 1773, uma tradução para o alemão, encomendada e prefaciada por Christian Gottlob Heyne (1729-1812), mestre em Göttingen de Wolf (que discute a obra do inglês em seu Prolegomena ad Homerum). Com seu ensaio, Wood ajudou a deflagrar as abordagens antropológica, sociológica e geográfica de Homero – além de anunciar a arqueológica –, que teriam larga voga no século XIX e fariam com que o poeta deixasse de vez de pertencer exclusivamente ao universo da poesia para surgir como testemunho privi-legiado de um outro tempo. Para que isso acontecesse por completo, contudo, era necessário ainda que se fizesse uma abordagem do texto da Ilíada e da Odisseia e se percebesse como sua própria constituição trazia problemas que ajudavam a esclarecer o debate sobre sua origem oral.

2

VILLOISON E O MANUSCRITO DE VENEZA

As primeiras edições impressas da Ilíada e da Odis-seia surgiram, respectivamente, em 1488 e 1489,

produzidas em Florença pelo grego Demetrius Chal-condyles. Depois delas, muitas outras foram publica-das nos séculos seguintes (como as de Aldo Manuzio, em 1504 e 1517), mas nenhuma teve a repercussão e o impacto daquela editada por um francês, Jean-Bap-tiste Gaspard de Villoison, em 1788.

Villoison tivera notícia, em 1779, da existência de um manuscrito precioso da Ilíada de Homero, perten-cente à Biblioteca Marciana (ou de São Marcos), em Veneza, e para lá se dirigiu, em 1781, para estudar o material. Tratava-se de um códice (manuscrito enca-dernado como livro) do século X d.C., de origem bi-zantina, doado em 1468 pelo cardeal Bessarion, junto com o restante de sua coleção, para a então República Veneziana. As 316 folhas de pergaminho continham, além do mais antigo texto completo da Ilíada, uma

40

enorme quantidade de comentários marginais – os chamados “escólios” –, que remontavam à atividade dos críticos alexandrinos, dos séculos III e II a.C. Não eram reflexões copiadas diretamente desses estudos originais (que se perderam), mas sim feitas por seus seguidores,46 reflexões nos quais se destacava a figura do maior editor de Homero em Alexandria, Aristar-co de Samotrácia. O francês percebeu na descoberta do manuscrito – que ficou conhecido como “Venetus A” – a possibilidade de estabelecer, com base em suas copiosas informações e na autoridade de Aristarco, aquele que seria o texto original de Homero. Isso era necessário porque os escólios apontavam para uma sé-rie de variantes no poema, que Villoison relacionava à oralidade tão discutida da poesia homérica. Diz ele na sua introdução ao livro:

Esses escólios, nunca antes publicados, lançam uma grande luz sobre a poesia de Homero, iluminam passagens obscuras, ex-plicam os ritos, os costumes, a mitologia e a geografia dos antigos, e examinam as vá-rias leituras de vários códices e edições, e as emendas dos críticos. Pois está claro que o texto homérico, que os rapsodos recitavam de memória e todos cantavam em voz alta, foi corrompido numa data bem remota, uma vez que os diferentes rapsodos de diferentes áreas da Grécia necessariamente suprimiam, adicionavam e alteravam muita coisa. [Flá-vio] Josefo assegura, logo no início do pri-

41

meiro livro do Contra Ápion, que Homero não deixou seus poemas por escrito.47

Essa percepção de um texto (e de uma língua tam-bém) em transformação ao longo do tempo se ajustava bem ao novo olhar histórico e evolutivo, e poderia ser determinante para o debate a respeito da historicidade de Homero e seus poemas. É curioso notar que, jun-to com a edição do Venetus A,48 Villoison faz vir um estudo antropológico sobre o iletramento de ilhéus do Egeu que tinha conhecido pessoalmente, o que nos mostra como a abordagem de Wood estava longe de ser algo isolado.49

No universo da língua alemã, a notícia da publi-cação do manuscrito vinha se juntar a um ambiente vigoroso. A crença em uma criação genial, isenta de mecanismos pré-definidos, era componente impor-tante do movimento denominado “Tempestade e Ímpeto” (da segunda metade do século XVIII), que prenunciava o espírito romântico e podia aproximar Homero de Shakespeare, modelos daquela liberdade criativa que se via no passado e se queria reproduzir, mutatis mutandis, no presente.50

Esse passado correspondia não só à grande fonte inspiradora do Ocidente – a Grécia –, mas também às origens de cada uma das nações, origens que come-çavam a ser cada vez mais valorizadas. Vale destacar a importância dada nesse período à suposta produção poética, de origem escocesa, do bardo Ossian, divul-gada na íntegra por James Macpherson em 1765 e logo traduzida do gaélico para o alemão.51 Símbolo da

42

oralidade e da simplicidade primitivas, ela teve grande influência sobre Johann Gottfried Herder, autor do clássico Ideias sobre a filosofia da história da humani-dade (Ideen zur Philosophie der Geschichte der Mens-chheit, 1784-1791), e é mencionada mais de uma vez por Goethe – sob a influência justamente de Herder – em seu Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774.52 Lembre-se ainda que, sob a ascendência do mesmo Herder e dentro do mesmo espírito, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publicariam, em 1812 e 1815, seus Contos maravilhosos infantis e domésticos, coletânea de histórias populares.53

A essas informações sumárias devem-se acrescen-tar ainda, para melhor contextualização, outras três: o trabalho em progresso de revisão da mitologia – nova-mente, da grega em geral e da de cada nação em par-ticular – e de suas interpretações, em que se destacava o já citado Heyne, editor de Homero e Virgílio;54 o tratamento histórico e antropológico que se dava ao texto bíblico desde o século XVII, e que culminou no trabalho modelar de Johann Gottlieb Eichhorn sobre o Antigo Testamento entre os anos de 1780-1783;55 e, finalmente, o surgimento de uma tradução de Home-ro para o alemão que, não por acaso, tentava mime-tizar o movimento do hexâmetro grego, a cargo de Johann Heinrich Voss (a Odisseia saiu em 1781, e a Ilíada, em 1793).

É nesse contexto que a publicação do Venetus A foi saudada no ambiente acadêmico de língua ale-mã, sendo resenhada em alguns periódicos. Friedrich Wolf (1759-1824), formado no método histórico da

43

Universidade de Göttingen (como Eichhorn e Voss) e professor da Universidade de Halle, deu a público, em 1791, sua apreciação da obra: nela, assinalava a importância da publicação, mas mitigava a importân-cia dada por Villoison ao trabalho de Aristarco. Os escólios não nos levariam ao texto original de Home-ro. Para Wolf, eles antes serviram como “pretexto para um longo ensaio no qual a história do texto homérico, as origens e o desenvolvimento do estudo especiali-zado no mundo antigo, e a história geral da cultura grega apareciam indissociavelmente ligados”, como diz Anthony Grafton.56 Em outras palavras, a aparição do manuscrito deu ensejo a uma obra que punha em prática o historicismo de um modo profundo e deta-lhado. Ironicamente, a edição de Homero de Wolf, baseada no Venetus A e publicada em quatro volumes entre 1804 e 1807, se tornaria a base de todas as edi-ções posteriores, formando uma espécie de “Vulgata” de Homero e dando a falsa impressão de que se chega-ra a um texto estável.57

3.

WOLF E A EVOLUÇÃO DO TEXTO

Os Prolegômenos a Homero de Wolf são uma obra duplamente incompleta. Segundo a própria in-

dicação do autor feita no Capítulo 7, ela deveria se dividir em duas partes: uma primeira dedicada à histó-ria do desenvolvimento e da recepção crítica do texto, das suas origens ao século XVIII, em seis fases; e uma segunda voltada para a apresentação dos princípios da crítica textual que pretendia pôr em prática em sua edição da Ilíada e da Odisseia. Mas o fato é que Wolf terminou o que seria o volume um dos Prolegomena (segundo anotação sua) na metade da terceira fase de sua história crítica, no século II a.C., sem nunca mais retomá-la; e, da segunda parte, ficamos apenas com dois capítulos, em estado rudimentar.58 A publicação quase dez anos depois de sua edição dos poemas, à qual a obra de 1795 serviria de introdução, não aju-dou a esclarecer sua metodologia no trato com o tex-to.59

46

Assim, podemos afirmar que seu livro se resume a uma investigação do estado das narrativas homéricas desde sua composição até o Período Helenístico, in-vestigação rica e complexa, ainda que incompleta. Seu vigor, como veremos, não reside exatamente nem na descoberta de novas informações nem na proposta de novas teorias, mas sim no modo como encara o texto como um organismo em constante mutação, e no re-levo que confere ao posicionamento crítico diante des-te fato. A cautela e a ponderação; o avanço metódico da argumentação, em diálogo com seus antecessores e contemporâneos; o raciocínio sinuoso em linguagem clara – todas essas qualidades serviram para conferir à obra de Wolf uma posição inaugural nos estudos filo-lógicos, mesmo não sendo inovador o seu conteúdo.60

Portanto, dessa perspectiva, não cabe (a meu ver) a discussão sobre a paternidade da “Questão Homé-rica” (levantada, em geral, por franceses e italianos):61 basta que se leia Wolf para se ter a exata noção da dis-tância que separa, em termos de discussão crítica espe-cializada e dinâmica histórica, seu livro dos de Wood, Vico ou do abade; ou que se veja o modo como foi capaz de fecundar as análises posteriores. Seu rigor fi-lológico casava-se, paradoxalmente, com uma abertu-ra de posicionamento, e a união desses dois elementos funcionou como verdadeiro estopim.62 Como afirma Frank Turner,

muito do conteúdo do ensaio não era es-pecialmente original. As próprias notas de rodapé de Wolf deixam isso claro. Ele não

47

explorou completamente nem respondeu a muitas das questões que tinha levantado. Mas, ao deixar sua contribuição de uma for-ma um pouco truncada, permitiu a outros que levassem adiante e redefinissem as ques-tões que primeiro levantara.63

A tese de Wolf pode ser resumida de modo simples, embora ele mesmo nunca faça tal apresentação sumária do que quer defender: os poemas homéricos surgiram como cantos menores, numa época em que não havia escrita e a possibilidade de se criar obras muito exten-sas (por volta de 950 a.C.), e foram assim transmitidos por rapsodos ao longo de 400 anos, durante os quais foram sofrendo expansões e alterações; no século VI, graças à atuação de Pisístrato, eles foram compilados e postos por escrito, ganhando assim unidade (espe-cialmente a Odisseia), ainda que tenham continuado a sofrer mudanças depois dessa data. Homero teria sido o compositor da maior parte dos cantos originais. O texto original, ou o texto de Homero, não pode ser recuperado, apesar das esperanças suscitadas pelo Venetus A. No entanto, com base nas novas informa-ções, pode-se começar a investigar a história da evolu-ção dos poemas, para, a partir disso, se formular um método de recensão que os torne menos corrompidos.

Essa tese não é exposta de modo simplório, nem apresentada logo de saída. Wolf começa o livro fa-lando sobre os deveres que se impõem ao editor na realização de uma “verdadeira recensão”, quando deve investigar escrupulosamente a “natureza das fontes”,

48

fazendo-se uma colação (cotejamento) dos manuscri-tos. No caso de Homero, continua ele, a “forma origi-nal” se perdeu, cabendo examinar então até que ponto as evidências à disposição poderiam permitir “polir essas relíquias eternas e únicas do gênio grego”. Essa recensão mais exata e precisa, a seu ver, não tinha sido ainda realizada, e só com ela o poeta poderia ser pu-blicado “numa forma perfeitamente pura e correta”.64 Villoison acabara de prestar “um magnífico serviço” com a publicação, pela primeira vez, do manuscrito de Veneza: seus escólios apresentavam um caráter de-sigual, mas ainda assim constituíam um avanço:

Qualquer um é capaz de ver que, uma vez aberto esse tesouro, ele trará, para a inter-pretação correta de Homero, tanto crítica quanto histórica, uma contribuição supe-rior àquela que se tem a respeito dos outros poetas sobre os quais os mesmo alexandrinos trabalharam.65

Para Wolf, tratava-se, portanto, como diz na se-quência, de “se obter um conhecimento mais profun-do sobre as origens a partir das quais se desenvolveram a emenda de manuscritos e a arte da crítica”. Tendo já publicado, uma década atrás, edições escolares da Teo-gonia, da Odisseia e da Ilíada (entre os anos de 1783 e 1785) – e antes uma edição do Banquete de Platão (em 1782) –, ele se via agora forçado, diante das no-vas descobertas, “a repetir boa parte da viagem que já fizera”, uma vez que nenhum escritor ou poeta antigo

49

“possibilita um trabalho crítico no nível em que o faz nosso amigo Homero”.66

Essas considerações preliminares, que fazem res-saltar o enfoque de crítica histórica do texto,67 encer-ram-se com a apresentação do seu plano de trabalho, no já citado Capítulo 7, quando divide sua abordagem em dois momentos: I. “história da crítica interna dos poemas”; e II. “princípios sobre os quais se baseia a emenda de Homero”. Como já se disse, essa segunda parte, que seria como que a cúpula no seu edifício de erudição, não foi redigida. Quanto à primeira, ela se subdivide em seis etapas, do seguinte modo:68

1. “das origens, isto é, da época da poesia refinada dos jônios (cerca de 950 a.C.) até Pisístrato, o tirano de Atenas, a quem os antigos atribuem o arranjo dos dois poemas que até hoje vigora” (capítulos 12-35);

2. “de Pisístrato a Zenódoto, que foi o primeiro dos gramáticos a abrir uma das mais famosas trilhas da crítica homérica” (capítulos 36-43);

3. “de Zenódoto a Ápion, que – de acordo com Sêneca – era celebrado em toda a Grécia por causa de sua arte de interpretar o poeta” (capí-tulos 44-51);

4. “de Ápion a Longino e seu aluno Porfírio, am-bos tendo contribuído em certos aspectos para o texto e a interpretação de Homero”;

5. “de Porfírio ao homem responsável pela pri-meira edição, Demetrius Chalcondyles de Ate-nas”; e

50

6. “estes três últimos séculos, durante os quais Homero têm ocupado de modos diversos a inteligência dos estudiosos e os ateliês dos im-pressores”.

Fica clara a enorme ambição do projeto, verda-deira tarefa hercúlea, que Wolf só poderia mesmo ter deixado pela metade, sem que chegasse a concluir a redação relativa à terceira etapa (“de Zenódoto a Ápion”).69 Fica evidente também que, até esse ponto, não se tocou num problema central, que confere ao trabalho de edição crítica de Homero uma particu-laridade ímpar, e impede a recuperação de sua forma original: seu caráter oral.

Wolf aborda a questão logo no começo da pri-meira parte (Capítulos 8 a 11), ao tratar de quatro exemplos de “versos interpolados” na Ilíada e da pos-sível “corrupção” dos poemas. Isso o leva à seguinte formulação, uma das mais famosas do livro, que vale citar na íntegra:

Mas e se a suspeita dos estudiosos for plau-sível: a de que esses poemas [os homéricos] e outros desse tempo não foram postos por escrito, mas compostos a princípio de me-mória pelos poetas e dados a público como cantos, com a recitação dos rapsodos – cuja arte peculiar consistia em aprendê-los – tor-nando-os então mais amplamente acessíveis? E se, por causa disso, muitas alterações fo-ram necessariamente realizadas, acidental ou

51

intencionalmente, antes que fossem fixados na forma escrita? E se, por essa razão, assim que começaram a ser postos por escrito, fo-ram apresentando muitas diferenças, e logo adquiriram outras em consequência das con-jecturas apressadas daqueles que competiam em esforços para poli-los e corrigi-los, segun-do as melhores leis da arte poética e segundo seus próprios usos? E se, finalmente, for pos-sível mostrar com argumentos e raciocínios plausíveis que a sequência inteira dos dois poemas, com sua continuidade, deve-se não tanto ao gênio daquele a quem normalmente é atribuída, e sim ao zelo de uma época mais refinada e aos esforços coletivos de muitos, e que portanto esses cantos a partir dos quais a Ilíada e a Odisseia foram formadas não têm todos eles um mesmo autor? Se for preciso, então, aceitar uma visão diferente da ordiná-ria a respeito disso tudo – o que significará devolver a esses poemas seu lustro original e genuína beleza?70

A maioria dessas questões serão atacadas pelo

estudioso ao abordar a primeira das suas seis etapas históricas (“das origens até Pisístrato”), com a qual se ocupará ao longo de 24 capítulos,71 o que corresponde praticamente a metade do livro. Em seu tratamento sobre as origens da escrita entre os gregos, o nome do inglês Robert Wood aparece logo de saída, como o de alguém que levantou a questão com uma “ousadia

52

brilhante” e ajudou a abrir caminho para que “dúvi-das fossem suscitadas sobre se Homero, o maior dos escritores, de fato empregou a arte da escrita”. Para Wolf, no entanto, Wood pecou pela “falta de sutileza” em seus argumentos históricos (“fracos e descabidos”), que por isso não se tornam convincentes. Era preciso “examinar a natureza dos monumentos antigos mais profundamente e julgar cada acontecimento segundo os costumes mentais e morais de cada época e lugar, seguindo-se a mais rigorosa lei da história”, para que dessa maneira se evitasse o método ainda vigente da-queles que “leem Homero e Calímaco e Virgílio e Nono e Milton com o mesmo espírito, e não se empe-nham em suas leituras em ponderar sobre o que cada época admite”.72

Na continuação, Wolf passa a investigar, com base em Heródoto, a possibilidade de a escrita ter surgido em tempo remoto, mas ainda assim aponta para a difi-culdade de sua ampla disseminação e pleno domínio; os suportes, até a introdução do papiro no século VI a.C., eram de difícil uso, acolhendo apenas inscrições públicas, e dificilmente haveria interesse em reduzir os poemas a “caracteres mudos”. Segundo o estudioso, foi apenas com a criação da prosa, “no período de Ta-les, Sólon, Pisístrato”, quando a linguagem se libertou do metro e do ritmo (auxílios da memória), que a téc-nica da escrita alfabética se desenvolveu.73

Voltando-se então para o interior da poesia ho-mérica, Wolf examina a famosa passagem do Canto 6 da Ilíada (v. 168-9) – em que supostamente have-ria menção ao envio de uma “carta” – e afirma que

53

nem Eustácio (século XII d.C.) nem nenhum outro comentador mais antigo via aí, ou em qualquer outro passo da Ilíada e da Odisseia, uma menção a um regis-tro escrito.74 Não encontramos, porém (continua ele), nenhum pronunciamento sobre se Homero, ao con-trário dos seus heróis, dominava essa arte. Para Wolf, a passagem fundamental para esclarecer o ponto é ainda a de Flávio Josefo (Contra Ápion, 1.2), também mencionada, como vimos, pelo abade, por Vico, por Wood e por Villoison. O filólogo alemão, no entanto, é o único que a cita na íntegra. Por causa de sua im-portância, apresento uma tradução para o português feita diretamente do grego:

(...) tardiamente e a custo [os helenos] co-nheceram a natureza da escrita (phúsin grammáton). Alguns, querendo que esse uso, da parte deles, seja antiquíssimo, dizem de modo reverente que o aprenderam com os fenícios e Cadmo. Mas não seria possível apresentar, daquele tempo, nenhum regis-tro escrito (anagraphén) preservado, seja nos templos, seja nos monumentos públicos. Porque mesmo sobre aqueles que, posterior-mente, marcharam por tantos anos contra Troia, há muita dificuldade e investigação sobre se usavam a escrita (grámmasin). E prevalece sim a verdade de que eles igno-ravam o presente uso das letras (tôn gram-máton). De modo geral, não se encontra o reconhecimento, entre os helenos, de uma

54

escrita (grámma) mais antiga que a poesia de Homero – e este também é, evidentemente, posterior aos eventos de Troia. Dizem que nem ele deixou por escrito (en grámmasin) sua poesia, mas que, sendo ela preservada de memória (diamnemoneuoménen), foi poste-riormente reunida (suntethênai) a partir de cantos, e que por isso ficaram nela muitas dissonâncias (diaphonías).75

Na visão de Wolf, “esse é o único testemunho claro, dotado de autoridade, sobre a questão”, e seu peso é ainda maior “porque foi escrito contra o mais preparado comentador homérico [Ápion], e nenhum defensor antigo, de opinião diferente ou contrária, so-breviveu”.76

Seu minucioso exame continua nos capítulos seguintes, nos quais afirma, entre outras coisas, que Homero não pode ser confundido com um Virgílio (que omite a escrita na sua Eneida apenas para imitar o modelo);77 que devemos deixar de lado estantes e bibliotecas para nos transportarmos para uma épo-ca em que a recitação era a regra, e aedos e rapsodos (seus sucessores) eram muito admirados, formando estes últimos uma classe especializada, não dedicada à épica exclusivamente;78 que as falhas de memória, junto com a vontade de embelezar, produziam as “dis-sonâncias” de que já falava Flávio Josefo; e que o pró-prio estilo homérico contribuía para o surgimento de modificações, uma vez que “as sentenças e as palavras estão interligadas com tamanha simplicidade de lin-

55

guagem e pensamento, e fluem em frases tão curtas, que se tornava extremamente fácil alterar, subtrair e adicionar, em qualquer ponto”.79

A conclusão a que Wolf chega, depois desse levan-tamento a respeito do papel da oralidade nas origens dos poemas homéricos, é que eles não poderiam ter a extensão que têm sem o auxílio da escrita. Esse passo é decisivo para sua argumentação, e ele mesmo tem plena consciência disso. Veja-se o que afirma, no Ca-pítulo 26:

Digamos de uma vez, com toda clareza, qual é o caso. Parece decorrer necessariamente do que foi dito anteriormente que obras tão ex-tensas, e elaboradas numa sequência assim sem quebras, não poderiam ter sido concebi-das mentalmente, nem trabalhadas por um poeta, sem um algum tipo de auxílio artifi-cial para a memória.80

Wolf fica assim com um paradoxo – Homero não conhecia a escrita e, no entanto, o fato de seus dois poemas serem extremamente longos torna improvável a ausência da escrita –, paradoxo que ele resolve ima-ginando (apoiado, aqui e adiante, em analogias com outras nações)81 que “os mais antigos poemas épicos eram bastante breves”, o que facilitava não só sua preservação, mas também sua divulgação e apresen-tação em festivais.82 Muitos episódios, por exemplo, da Odisseia, “parecem ter sido compostos por Homero e cantados por um longo período sempre da mesma

56

maneira – separadamente e sem se dar atenção à forma do todo”. Seria a escrita a responsável pela formação, posteriormente, do conjunto: “Mais tarde, numa épo-ca mais refinada e rica nas artes, notou-se, forçando-se esses episódios a formarem um único e grandioso cor-po contínuo, que através de algumas excisões, adições e modificações eles poderiam se tornar (como se tor-naram) um monumento novo, mais perfeito e esplên-dido”.83 Com isso, simplesmente Wolf propõe a dis-sociação entre Homero e seus épicos na forma atual.

Uma seção dedicada à análise da unidade dos poe-mas e às suas “ligações imperfeitas” (para Wolf, mais visíveis na Ilíada) vai ser o centro das atenções entre os Capítulos 27 a 31, quando o abade de Aubignac receberá rápida menção,84 e o filólogo alemão voltará a dizer, com clareza:

Não tenho medo de ser acusado de tal teme-ridade [de acreditar que as coisas nascem e se desenvolvem por acidente e acaso, e não por vontade de uma mente divina], uma vez que fui levado pelos vestígios de uma moldura artística, e por outras considerações demora-das, a pensar que Homero não foi o criador desses – por assim dizer – dois corpos, mas sim que essa estrutura artística foi introduzi-da por épocas posteriores.85

Que época seria essa em que os poemas ganharam

envergadura, graças ao auxílio da escrita? Mais uma vez, Wolf é peremptório:

57

Não há necessidade de se apoiar em con-jecturas. A História fala. Porque as vozes da antiguidade e (...) o consenso da tradição atestam que Pisístrato foi o primeiro a pôr os poemas de Homero por escrito e na ordem em que são lidos hoje.86

Nesse ponto, entre os Capítulos 32 e 34, Wolf cita, em nota e no corpo do texto, “essas vozes da anti-guidade” que reportariam uma intervenção tão decisi-va para a história dos poemas. Eram fontes já bastante conhecidas em sua época, mas abordadas nos Prolegô-menos de modo apressado. Veja-se o caso da utilização, nesse ponto, novamente do texto de Flávio Josefo, e mais precisamente do trecho em que diz que a poe-sia de Homero “foi posteriormente reunida a partir de cantos”; para o filólogo alemão, a reunião foi feita “evidentemente por Pisístrato”. Essa fonte – que ele, sem nenhum pudor, faz falar onde silencia – vem se juntar a outras, sem uma discussão ou contextualiza-ção mínima, o que contradiz o método histórico tão propalado pelo autor.

Podemos dizer que, de modo geral, esses tes-temunhos a princípio falam simplesmente de um movimento de organização ou ordenação da poesia homérica ocorrido na Atenas do século VI a.C. Tra-dicionalmente, eles são divididos em dois grupos: 1. aqueles que dão conta de uma suposta edição de Ho-mero a cargo do tirano Pisístrato, a hoje chamada “Recensão (ou Redação) de Pisístrato”; e 2. aquelas que falam de uma suposta ordem para a recitação em

58

sequência e por revezamento de Homero no festival das Panateneias, a hoje chamada “Regra Panatenai-ca”.

No primeiro grupo, temos os seguintes autores e trechos, que apresento a seguir em tradução para o português, em ordem cronológica:87

Cícero (I a.C.), Sobre o orador, 3.137: Quem a tradição conta ter sido naqueles tempos mais douto, ou com uma eloquência nas le-tras mais instruída, que Pisístrato, ele que é considerado o primeiro a ter disposto (pri-mus disposuisse) os livros de Homero – an-teriormente confusos (Homeri libros confusos antea) – assim como os temos agora?

Pausânias (II d.C.), Descrição da Hélade, 7.26.13: (...) e dizem que Pisístrato, no mo-mento em que coletava (éthroize) os versos (épe) de Homero – despedaçados (diespas-ména) e preservados, cada um num lugar, de memória (mnemoneuómena) –, que então o próprio Pisístrato ou um de seus companhei-ros alterou por desconhecimento o nome [da cidade de Donussa, que em (Il. 2, 573 apare-ce como Donoessa].

Eliano (III d.C.), Vária história, 13.14: (...) e bem depois Licurgo, o lacedemônio, foi o primeiro a trazer (prôtos ekómise) reunida (athróan), para a Hélade, a poesia (poíesin)

59

de Homero. Ele trouxe (égagen) da Jônia esse material transportável (tò agógimon), quando saiu de viagem. E posteriormente Pisístrato, unindo-as (sunagagón), deu a pú-blico (apéphene) a Ilíada e a Odisseia.

Essas fontes – mais de 500 anos posteriores aos eventos de que falam – são tomadas como fato por Wolf, ainda que nenhuma delas faça referência explí-cita ao uso da escrita: o destaque fica para a reunião do que estava disperso. É com base nelas que ele dá como certa a fixação por escrito dos poemas homéricos por Pisístrato,88 que – em sua visão – veio em segui-da a uma organização da recitação por Sólon. Nesse caso, três testemunhos são citados por Wolf, sem que contudo recebam a mesma importância do grupo an-terior. Na ordem temporal, são eles:89

Platão (IV a.C.), Hiparco, 228b: (...) e ele [=Hiparco] foi o primeiro a trazer (prôtos ekómisen) os versos (épe) de Homero para esta terra [=Atenas] e a obrigar os rapsodos a percorrê-los, nas Panateneias, por reveza-mento (ex hupolépseos) e em sequência (ephe-xês), conforme fazem ainda hoje.

Licurgo (o orador ateniense, IV a.C.), Con-tra Leócrates, 102: (....) os vossos antepassa-dos o acolheram como um poeta tão impor-tante, que estabeleceram uma lei segundo a qual, a cada quatro anos nas Panateneias,

60

dentre os poetas apenas os seus versos (épe) deveriam ser recitados (rhapsoideîsthai).

Diógenes Laércio (III d.C.), Vidas e doutri-nas dos filósofos ilustres, 1.57: Ele [=Sólon] redigiu uma lei segundo a qual os poemas de Homero (tà Homérou) deveriam ser reci-tados (rhapsoideîsthai) por revezamento (ex hupobolês): onde o primeiro parou, daí o se-guinte deveria começar.

Desse segundo grupo, ele descarta as informações do Hiparco, porque o objetivo do diálogo (apócrifo, em sua opinião) seria apenas o de louvar o filho de Pisístrato, e se fia na atribuição a Sólon, dando talvez a entender que os “antepassados” do Contra Leócrates seriam uma outra forma de se referir ao legislador ate-niense. 90

É importante deixar claro que, para Wolf, Pisís-trato simplesmente compilou os cantos (antes “con-fusos”, “despedaçados”) que hoje formam as duas grandes epopeias (que portanto não existiam como unidades), não tendo atuado como um editor de fato, ou seja, não tendo tido uma posição crítica em relação ao texto (como a que vieram a ter os gramáticos ale-xandrinos). Sua tarefa se resumiu a uma ordenação, sem intenção de eliminar inconsistência e lacunas, e os poemas continuaram em transformação, até a época dos Ptolomeus.91

É nesse ponto (em Pisístrato) que termina a pri-meira fase de sua história crítica do texto. Antes de

61

passar à etapa seguinte, porém, Wolf fala sobre as im-plicações de sua proposta radical, segundo qual a Ilía-da e a Odisseia, tais como as lemos hoje, não seriam mais obra de Homero, mas resultado sobretudo das intervenções posteriores – estas sim responsáveis pela “concepção artística da estrutura” dos poemas, “que não se pode negar”.92 Diz ele:

(...) eu ousei tirar de Homero parte do re-nome por aquela habilidade artística que o faz tão admirado por eles [seus estudiosos]. Não há dúvida de que apenas muito poucos ficarão convencidos, mesmo se pressionados pelo peso de todos os argumentos. Porque nesses assuntos é preciso ter certa sensibili-dade, a qual os argumentos por si não pro-porcionam. Mas, quanto a mim, considero impossível, ao contemplar o progresso dos próprios gregos ou de outras raças, aceitar aquela crença a que nos acostumamos: de que essas duas obras são de um único gênio e irromperam repentinamente da escuridão, em todo o seu brilho, tal como hoje se apre-sentam, já com o esplendor de suas partes e as inúmeras virtudes do conjunto bem co-nectado.93

Os dois períodos seguintes, de Pisístrato a Zenó-doto, e de Zenódoto a Ápion, são abordados de modo mais breve (mas não menos cerrado). O primeiro, para Wolf, corresponde às origens da interpretação

62

entre os antigos, em que se destacavam os sofistas com seus enfoques variados (Pródico, Protágoras, Hípias) e nomes como os de Antímaco de Cólofon, responsável por uma recensão de Homero na época de Sócrates, Aristóteles e Filetas de Cós. Por causa da conservação de memória dos cantos e dos vários deslizes na prepa-ração dos primeiros textos, os “monumentos homéri-cos (...) num certo sentido obrigaram a crítica filoló-gica a existir”94 já nos séculos V e IV a.C., produzindo as edições “do indivíduo” e “da cidade”, com base nas quais os alexandrinos fizeram seu trabalho. Zenódo-to de Éfeso, o primeiro deles, do início do século III a.C., ao trabalhar com mais manuscritos, introduziu um texto “mais consistente na forma”.95 Sua atividade é minuciosamente examinada no longo Capítulo 43, dos seus equívocos na supressão e suspeição de versos (“ele trata a Ilíada como se fosse sua própria compo-sição”) ao obstáculo representado pelos textos imper-feitos, com erros introduzidos pelos copistas; de qual-quer maneira, para Wolf ele é fundamental para que se possa imaginar “a forma comum mais antiga do texto homérico”, ainda que notemos “quão frágeis eram as origens da arte de corrigir os vestígios do passado e da arte gramatical em si”.96

O terceiro (e último) período abordado no livro inicia-se com a discussão sobre Aristófanes de Bizân-cio, sucessor de Zenódoto. Apesar de sua atuação não apenas mais erudita (com investigações gramaticais e a criação dos acentos e sinais de pontuação), mas tam-bém mais ampla (tendo se dedicado ainda a Hesíodo, Píndaro, Platão, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, o

63

comediógrafo), seu método no trato com Homero – diz Wolf – é tão obscuro quanto o de Zenódoto. Ao contrário deste, no entanto, escreveu comentários à edição dos poemas, e em suas lições “é fácil perceber maior conhecimento e moderação”.97 Uma mudança significativa só ocorreria com o trabalho de Aristarco de Samotrácia (pupilo de Aristófanes), cujo “nome se tornou de certo modo sinônimo da arte de explicar e corrigir textos”, tendo sido endeusado por seus segui-dores, “que declaravam preferir estar errados com ele a estarem certos com os demais”.98

Wolf nota que, embora seus comentários a Ho-mero, assim como os de Zenódoto, tenham se perdi-do, a publicação do Venetus A vinha alterar conside-ravelmente o nível de informação sobre o “príncipe dos críticos” – o que de todo modo não nos ajuda, em sua opinião, a determinar qual a novidade deci-siva que trouxe consigo. Para o filólogo, seu texto foi fundamental, e logo se transformou numa espécie de “vulgata”, que por sua vez recebeu novas alterações, até se produzir por volta dos séculos III e IV d.C. a vul-gata atual. Além da divisão em 24 cantos, a introdu-ção do travessão lateral (obelós) para indicar os versos suspeitos foi feita, aparentemente, por ele, mas não sabemos com que critérios e justificativas empregava o sinal. O travessão também era utilizado por ele jun-to com o asterisco, para indicar que se tratava de um verso impropriamente repetido. Wolf considera que uma das lições de Aristarco dessa natureza (os versos de Il. 1, 366ss., que repetem anteriores) é equivocada, “assim como muitas outras relacionadas a esse sinal”,

64

porque “a similaridade entre as passagens” podia dar azo a uma “repetição inepta” – tópico que ele promete discutir na (infelizmente, nunca publicada) segunda parte do livro, “na qual terei que defender minhas próprias omissões [de determinados versos]”.99 Final-mente, uma rápida pincelada sobre o trabalho de Cra-tes de Malo, contemporâneo e adversário de Aristarco, com sua leitura filosofante e alegorizante de Homero, encerra o livro.

De sua exposição desses dois períodos, ficam para o leitor o enfoque sempre cético e a desconfiança em relação à atividade desses primeiros críticos, tomados não como possíveis estabelecedores de uma versão ori-ginal ou mais próxima de Homero, mas antes como elos de outra natureza dentro da mesma cadeia histó-rica e do contínuo processo de transformação do tex-to. Para Wolf, o juízo dos alexandrinos era em grande medida “mais estético do que crítico”,100 embora pre-valeça opinião contrária, “um erro comum em que to-dos incorrem – o de pensar que os críticos antigos são semelhantes aos atuais”.101 Daí ele afirmar que, para um Aristarco, a tarefa de emendar o texto de Homero consistia em “levar em consideração não o que cantou, mas o que deveria ter cantado”.102

Esse ceticismo, que abre espaço para a avaliação evolutiva em detrimento da busca pelo texto primei-ro, é talvez o motor principal dos seus Prolegômenos; é ele que dá sustentação à abordagem de Homero em termos históricos, como fica evidente num das últimas páginas, quando diz, mais uma vez, que “a História fala”:

65

O Homero que temos nas mãos hoje não é o que floresceu nas bocas dos gregos de sua época, mas um Homero de várias maneiras alterado, interpolado, corrigido e emendado, desde os tempos de Sólon até os alexandri-nos. Homens inteligentes e instruídos há muito chegaram a essa conclusão servindo-se de pequenas e variadas evidências, espalha-das aqui e acolá. Mas agora as vozes de todas as épocas, juntas, dão seu testemunho, e a História fala.103

Esse olhar representa, no fim das contas, o que há de mais interessante no livro: com ele, Wolf busca, ao mesmo tempo, dar uma dimensão contextual aos poemas e vê-los em seu processo de desenvolvimento, fazendo-os sair de uma abordagem a-histórica, ou de uma historicidade estática.

Não se pode negar, porém, que há por trás de sua leitura um primitivismo latente, a idealização de uma fase rude da humanidade, espontânea e livre das regras da arte. David Monro, em sua crítica a Wolf, já assi-nalava o parentesco com a obra de Robert Wood,104 ainda que ocorra, de uma para a outra, a inversão em relação ao momento propício para a produção da grande obra. Se para Wood o gênio Homero produzira oral-mente, em sua totalidade, as duas grandes epopeias gregas, e alcançara tão grandioso resultado justamente porque trabalhara antes do estabelecimento de uma arte mais refinada (ainda que sua concepção no fun-do seja a de um escritor Homero projetado para os

66

tempos selvagens), para Wolf a Ilíada e a Odisseia são frutos dessa época letrada e mais refinada, uma deriva-ção dos cantos orais originais, o que implica reduzir a importância de Homero como grande autor105 e dar à escrita papel decisivo.

Como bem viu Monro, para Wolf, dentro desse enfoque primitivista, “a estrutura artística dos poemas homéricos é de fato a circunstância que depõe contra a antiguidade de sua forma presente”.106 Em outras palavras, tem-se a ideia pré-concebida de que o iletra-mento puro não possibilitaria, nos dizeres do próprio filólogo alemão, “o planejamento de uma história con-tínua, que seja longa e variada em seus episódios”.107 O Homero oral, de que há vários testemunhos, não se coaduna com a arte de suas epopeias, que é visível. Por isso Homero deve se tornar o criador de cantos menores, e a invenção do alfabeto, ser central no pro-cesso. Para Wolf não são empecilhos nem o fato de as “partes” (cantos) de Homero, tomadas de modo independente, revelarem ainda enorme qualidade e acabamento,108 nem o fato de uma fonte como a re-lativa à “Regra Panatenaica” sugerir – ao falar de uma apresentação “em sequência” – que, antes mesmo de Pisístrato, já havia uma ordem dos poemas.109

Sobre a atuação do tirano (que teria fixado por escrito os poemas), faltou, como já se disse, um olhar mais crítico em relação aos relatos, que são tardios e inconsistentes, e falam mais da própria época em que foram produzidos do que daquela a que se referem. Como diz Myres:

67

Wolf se apoiou nos tardios e lacunares depoi-mentos sobre a atividade de Pisístrato, que ele descreve, de forma bem imprecisa, como algo endossado unanimemente pela antigui-dade. O fato é que, mesmo que ela estivesse mais bem atestada, ainda assim pouco diria em relação ao estado anterior dos poemas.110

John Scott, quase 40 anos antes, sempre com seu tom desabrido, fora ainda mais contundente:

Não se pode encontrar em Heródoto, Pla-tão, Aristóteles, nem em qualquer escritor ateniense antigo, uma referência que conecte o tirano [Pisístrato] a Homero; e não há uma alusão sequer a isso em toda a enorme quan-tidade de informação atribuída aos estudio-sos de Alexandria. A afirmação de Wolf de que toda a antiguidade estava unida numa só voz ao conferir a Pisístrato, de modo consis-tente, a honra de coletar, arranjar e pôr por escrito a poesia de Homero parece perigosa-mente próxima de um engano intencional.111

No fim das contas, é uma visão “negativa” da ora-lidade que perpassa o texto de Wolf112 – de algo limita-do do ponto de vista da construção poética, e que pro-duz a corrupção de um texto. Como no caso de seus antecessores, salvo uma ou outra passagem, não há em seu livro a percepção de como essa oralidade poderia operar na criação dos versos. Se para Wolf a história

68

do texto de Homero responde por sua multiformida-de (para empregarmos um termo bem mais recente), essa multiformidade não tem origem no modo de ser da oralidade homérica, mas nas vicissitudes da trans-missão de poemas que, a princípio, eram formas fixas. A multiformidade, em outras palavras, é sinal de que houve uma deformação de um Homero primeiro, alvo de inúmeras interpolações, correções e subtrações, e hoje irrecuperável.

Por outro lado, deve-se louvar sua cautela em re-lação aos critérios supostamente “críticos” dos alexan-drinos, e sua evasividade em apresentar o que seriam esses cantos menores de que se originaram a Ilíada e a Odisseia, ou o modo como foram rejuntados. Como diz Adam Parry,

A percepção que Wolf tinha das limitações do seu próprio conhecimento e sua sensi-bilidade para com a poesia homérica, com-binadas com poderes superiores de lógica, atuaram junto no sentido de impedi-lo de cometer o erro de seus sucessores.113

Por aí vemos como a obra inspiradora da críti-ca analista foi, ao contrário desta, pouco propensa ao cientificismo subjetivo e dogmático do século XIX. Recorrendo à analogia feita por Schelling entre o trabalho de Wolf e a geologia,114 podemos dizer que a análise dos fragmentos e da composição do “solo” homérico Wolf deixou, inteligentemente, para os que vieram depois dele. É essa abordagem, como sabemos,

69

que vai dominar amplamente os estudos de Home-ro – primeiro no âmbito de língua alemã, e depois, a partir de meados do Dezenove, estendendo-se às lín-guas inglesa e francesa. Hegel podia se queixar, em sua Estética (386), de que não era possível negar a Homero seu “caráter de obra de arte”, mas a discussão, a partir de Wolf, ganhara um grau de especialização inédito, tornando o poeta alçada da nova ciência filológica, liberta agora da teologia.115 Como diz Frank Turner no tratamento dado à “Questão Homérica”, de uma forma grandiloquente, mas verdadeira:

(...) [Wolf ] demonstrou o tipo de trabalho e autoridade que poderiam nascer da nova cultura acadêmica alemã. Com efeito, os reformadores das universidades alemãs, trabalhando sob a orientação de Humbol-dt, utilizaram o livro de Wolf para mostrar a relevância e o poder da ciência filológica, ligando assim o tradicional estudo dos clás-sicos ao novo e poderoso método. Poetas contemporâneos podiam debater as visões de Wolf e chegar a diferentes opiniões em momentos diferentes, mas a opinião dos poetas e dos homens de letras não era mais decisiva. Raiara o dia do homerista profis-sional.116

Na mesma linha, vale citar as palavras de Howard Clarke, que resumem bem o peso da contribuição de Wolf:

70

Ao enfatizar a lógica e a consistência em lugar da moralidade e do significado, Wolf proporcionou aos leitores de Homero uma perspectiva dos poemas inteiramente nova, e fundamentalmente genética. Ao lembrá-los de que o que estavam lendo não era um es-crito atemporal, mas um texto precariamen-te reunido no tempo e transmitido através da história, um texto que requeria um trabalho constante de edição, ele profissionalizou o estudo da poesia homérica, tirando-a dos di-letantes e entregando-a aos acadêmicos (...). Ao tentar traçar o gradual desenvolvimen-to dos poemas tendo a história da Grécia como pano de fundo, ele identificou todos os problemas com que seus sucessores, ana-listas ou unitaristas, iriam se confrontar pe-los próximos 150 anos: o lugar de Homero nessa evolução; as diferenças de estilo, tom e conteúdo que indicavam a interferência de outras mãos; as “ligações” textuais que revelam adições e revisões; as contribuições contrastantes de poetas e rapsodos, revisores e editores; o intrigante papel desempenhado pela escrita no que era predominantemente uma arte oral; e a necessidade de recriar, em bases filológicas, o processo de criação, de-senvolvimento e transmissão dos poemas.117

4.

A DISSECAÇÃO DOS ANALISTAS

Os Capítulos 27 a 31 dos Prolegômenos a Homero de Wolf são o que há de mais próximo do que

poderíamos classificar de “análise embrionária” (“aná-lise” e “analista” devem ser sempre entendidos aqui no seu sentido primeiro, relativo à “separação de um todo em suas partes constitutivas”).118 Essa pequena seção do livro se abre com a afirmação do autor de que deixará para outros a tarefa de “examinar em detalhe” aquelas “dificuldades apresentadas pela maravilhosa beleza e forma escrita desses poemas épicos e também pela organização de suas partes”.119 Mais à frente, o filólogo falará do “número de junções obviamente mal feitas”, com as quais se deparava em suas leituras cons-tantes de Homero, e que não pertenciam ao “mesmo molde do trabalho original, mas foram acrescentadas a ele pelos esforços de um período posterior” – ainda que ele mesmo reconheça que “os mais eruditos lei-tores não sentiram, por muitos séculos, essas dificul-

72

dades”...120 Alguns versos do Canto 18 da Ilíada (v. 356-368) e outros do Canto 4 da Odisseia (v. 621-624), além de considerações sobre a dupla morte de um herói na planície de Troia, levam Wolf a afirmar que “ambos os poemas contêm não apenas pequenas partes (como mostrado anteriormente), mas seções inteiras que não são de Homero, isto é, do homem responsável pela porção maior e pela ordem dos cantos mais antigos”.121 Mas o trecho mais interessante apa-rece no final do Capítulo 31, quando discute, muito rapidamente, a autenticidade das partes finais da Ilía-da e da Odisseia, e propõe que se investigue, “com má-xima atenção”, que “excepcionalidade existe nas frases e palavras, e de que tipo ela é”; o que é “diferente e de uma cor discrepante no pensamento e na expressão”; e, finalmente, “que vestígios da imitação por um outro poeta se infiltram na produção vinda de Homero, mas de uma forma que ficam ausentes o nervo e o espírito homéricos”.122

Essa análise, como vimos, provavelmente jamais foi formulada em detalhes por Wolf, mesmo tendo vivido por mais quase 30 anos (tinha 36 quando saiu sua mais famosa obra). O segundo volume, que a daria à luz, nunca foi publicado.123 Pode-se argumentar que tal detalhamento não estaria de acordo com o movi-mento geral – de abertura – próprio do livro, ou que para Wolf interessava mais a abordagem histórica do que a argumentação interna, a partir do texto. Mas esta devia naturalmente se seguir ao trabalho feito, e temos pelos menos um testemunho de que ela era bas-tante aguardada; veja-se o que diz Johann Voss, cético

73

em relação à tese do colega, e à espera de uma com-provação categórica:

(...) não sou tão fanático em meu credo a ponto de fechar meus ouvidos para todos os argumentos, mas esses argumentos, deixe--me dizer francamente, você agora os deve a nós todos, argumentos tirados da estru-tura interna dos poemas homéricos. Você nos machucou, Sr. Wolf, em nossos afetos, você nos afrontou, Sr. Wolf, nas nossas mais delicadas sensibilidades. Mas ainda somos apenas homens, prontos a ouvir, querendo escutar e nos refrear. Enquanto isso, a situa-ção não pode permanecer assim. Você tem a obrigação, Sr. Wolf, em respeito a tão digno assunto, de não reter as provas que certa-mente possui – provas, preste atenção, pro-vas conclusivas.124

Ainda que não a tenha praticado de fato, é incon-testável que Wolf lançou em sua obra as sementes da corrente analítica, ao propor a abordagem de Homero como uma amarração de cantos transformados ao longo do tempo. Sendo assim, estava deflagrada a corrida em busca das marcas que atestassem essa evolução do tex-to, das suas origens ao estado atual: eram as “dissonân-cias” (diaphoníai) já apontadas, mas não explicadas, por Flávio Josefo. A Ilíada e a Odisseia já não eram mais as produções súbitas e inspiradas de um único homem, mas organismos vivos – ou, melhor dizendo,

74

corpos antes vivos que eram agora postos, como cadá-veres, sobre a mesa científica da dissecação para que, cortados com bisturi e vistos em lente de aumento, revelassem a história do seu desenvolvimento. Cada estudioso se sentia livre para, a partir de sua leitura muito particular dos poemas, neles encontrar, com base em suas inconsistências (linguísticas, temporais, narrativas, geográficas, morais etc.), o que era anterior e o que era posterior, o quer era autêntico e o que era acréscimo tardio – a famigerada “interpolação” –, o que era de Homero e o que era de um imitador. O vocabulário técnico, com as expressões que se con-sagrariam entre os homeristas profissionais, já estava todo em Wolf, e os que vieram depois dele sentiam o enorme estímulo que uma grande descoberta produz.

No âmbito de língua alemã, três nomes – entre outros – foram importantes na primeira metade do século XIX: Gottfried Hermann, Karl Lachmann e Gregor Nitzsch. Hermann (1772-1848), que lançou as bases dos estudos métricos,125 foi um dos primei-ros a ser influenciados por Wolf a “tentar o jogo do desmembramento”.126 Em Orphica (1805), propunha uma história do hexâmetro,127 e em 1806, ao publicar sua edição dos Hinos Homéricos, mostrava interesse em aplicar a crítica textual exposta nos Prolegômenos aos dois grandes épicos gregos. Mas seus textos funda-mentais, que juntos não chegavam a mais de cinquen-ta páginas, só apareceriam muitos anos depois, ambos escritos em latim: “Dissertação sobre as interpolações de Homero” [De iterpolationibus Homeri dissertatio], de 1832, e “Sobre as repetições em Homero” [De

75

iteratis apud Homerum], de 1840.128 A tese de Her-mann consistia, basicamente, em propor a existência de “núcleos” originais a partir dos quais teriam se de-senvolvido a Ilíada e a Odisseia. Para ele, o primeiro poema nada mais era do que uma “Cólera de Aqui-les” desenvolvida, assim como o segundo tinha em sua origem uma narrativa da “Volta de Odisseu”. Esse desenvolvimento se deu, em ambos os casos, por meio de interpolações – acréscimos sucessivos às histórias primeiras –, e essas interpolações eram perceptíveis sobretudo por causa das repetições, formuladas com base num estoque tradicional em que os poetas iam beber. Ao contrário de Wolf, Hermann imaginava que Homero era o responsável por esse núcleo central (e não por cantos dispersos), e que o planejamento do conjunto das duas epopeias já estava embutido em sua criação, não tendo sido resultado de uma interferên-cia posterior. Com isso, ele confere maior capacidade de construção artística a esse poeta primitivo, embora não considere possível – mesmo com o exercício da decomposição – recuperar o poema em seu “cerne” inicial.129

Karl Lachmann (1793-1851) era 21 anos mais moço que Hermann; além de classicista era germanis-ta e se dedicara a estudar as vinte “baladas” que teriam entrado na constituição da Canção dos Nibelungos, poema sobre o qual se debruçou durante mais de duas décadas (com três publicações entre 1816 e 1836) e que supunha ter sido resultado de uma compilação no começo do século XIII. A analogia com Homero – co-nhecendo como conhecia a obra de Wolf – lhe parecia

76

pertinente. Seu livrinho Considerações sobre a Ilíada de Homero [Betrachtungen über Homers Ilias] foi publica-do em 1847, reunindo duas palestras proferidas em Berlim em 1837 e 1841; nele defendia a ideia de que o épico grego era formado por 18 canções, que sofreram adições e transformações (pela ação de outros canto-res e por causa do arranjo na época de Pisístrato) até adquirirem sua forma final.130 Um exemplo: os versos 1-347 do Canto 1 da Ilíada corresponderiam a um desses 18 cantos primitivos, com duas continuações posteriores: versos 348-429/493-622 (mal adaptados ao conjunto) e versos 430-492 (referentes à devolução de Criseida).131 Dava-se assim uma formulação mais precisa à teoria de Wolf. Em sua visão, no entanto, não havia lugar para o poeta Homero: não é um ho-mem específico que cria essas unidades primeiras (as baladas), “mas a lenda, operando inconscientemente, como na formação da língua”.132 Com Lachmann, a evidência externa é posta de lado e a atenção se con-centra toda nos problemas textuais.133 A busca pelos cantos originais se dá novamente com base nas incon-sistências e discrepâncias, que nos levam às formas primeiras – essas sim livres de contradição, porque pertencentes a uma época mais simples, em que não há corrupção.134 Por trás de sua proposta, é possível detectar, como apontou Martin Nilsson, “a ideia ro-mântica de uma poesia popular e coletiva, que não pode ser atribuída à interferência de um indivíduo em particular, mas que cresce inconscientemente como produto do espírito coletivo do povo”135 – o que faz lembrar a formulação de Vico, um século antes.

77

Por fim, Gregor Nitzsch (1790-1861) foi aque-le que, durante a mesma época, combateu com mais veemência os pressupostos de Wolf, opondo-se assim a Hermann e Lachmann. Em 1830, aos 40 anos de idade, começou a publicar em latim, por partes, seus “Meletemata” (“estudos”) sobre Homero, que conclui-ria em 1837. Em 1852 ainda publicaria o seu A poe-sia lendária dos gregos [Die Sagenpoesie der Griechen]. Três argumentos são fundamentais na sua visão: 1. as formas finais tanto da Ilíada quanto da Odisseia in-fluenciaram a composição dos poemas do chamado “Ciclo Épico”, e portanto aqueles dois não podem ser posteriores aos séculos VIII/VII a.C.; 2. o surgimen-to da escrita data provavelmente da época de Home-ro, e portanto esta não deve ser caracterizada como primitiva; e 3. Homero não é o autor de cantos me-nores orais, mas é quem se valeu desse material para construir suas grandes narrativas. Portanto, contra-riamente ao que postulava Wolf (e Lachmann), para Nitzsch a construção dos épicos em sua forma atual não é resultado da ação de Pisístrato em uma época mais refinada: essa possibilidade é antecipada em dois séculos, quando o próprio Homero já podia se valer da escrita para construir, com base em cantos meno-res, suas extensas epopeias.136 Com isso, Nitzsch é o primeiro a conceder categoricamente – dentro de um processo de formação – a Homero a responsabilidade por um trabalho poético de grande envergadura, numa proposição próxima daquela que seria defendida pela maioria dos unitaristas no fim do século XIX e início do XX.137

78

Na Inglaterra e na França, duas obras importantes mostravam a influência da visada analítica. O historia-dor inglês George Grote (1794-1871), nascido ainda no século XVIII, um ano antes da publicação dos Pro-legômenos de Wolf, publicou em 1846 os dois primei-ros volumes de sua Uma história da Grécia [A history of Greece], que concluiria dez anos depois, com 12 to-mos!138 O Capítulo 21 do Volume 2 é inteiramente dedicado, em suas mais de cem páginas, à investigação sobre Homero, e serve de conclusão à parte inicial da obra, que se debruça sobre a “Grécia lendária” (com uma extensa discussão dos mitos), antes de passar para a “Grécia histórica” (para o inglês, que seguia a visão mais comum de seu tempo, Homero não trazia in-formações históricas).139 Grote começa sua abordagem repartindo a épica grega em duas “classes”, a homéri-ca, narrativa e não didática, e a hesiódica, sapiencial e mais próxima no tempo dos “gregos históricos”. Para ele, a Ilíada e a Odisseia datam da segunda metade de século IX e primeira do século VIII a.C., e Home-ro, do qual nada se sabe, seria um “pai” inventado do gênero. Grote, assim como fizera Wood, acredita na criação oral dos poemas e na capacidade de memo-rização de uma cultura iletrada. Para ele, os poemas homéricos só começaram a ser postos por escrito por volta da metade do século VII, e Pisístrato não teve, no século posterior, nenhuma interferência decisiva na sua forma final.

Quanto à história de formação dos poemas, Gro-te mostra conhecimento dos estudos recentes em lín-gua alemã e propõe uma espécie de combinação do

79

que vimos acima: de Nitzsch ele recupera a intenção de recuar os poemas em sua forma final para séculos VIII/VII a.C., construídos já então a partir de outras canções tradicionais; de Lachmann, a dúvida sobre a existência de Homero (sem contudo apostar numa criação coletiva); e, finalmente, de Hermann, a su-posição de um núcleo original, com planejamento do todo, depois expandido. Como a unidade lhe parecia fato incontestável na Odisseia, mais estruturada e com poucas marcas de incoerência, é na Ilíada, “muito me-nos coerente e uniforme”, que ele vai se concentrar na parte final do capítulo, trabalhando com a ideia de uma “Aquileida” primitiva formada pelos Cantos 1, 8 e 11-22, posteriormente expandida com o acréscimo dos Cantos 2-7, 10 e 23-24 (para Grote, o Canto 9 é “inadequado”). Para sustentar essa hipótese, ele se vale de argumentos como o de que o Zeus do Canto 4 (adição ao cerne primitivo) não é condizente com aquele dos Cantos 1 e 8 (pertencentes à “Aquileida” original). Adam Parry resume assim as motivações do historiador para o desmembramento do poema:

Os Cantos 2 a 7 devem ser intrusivos porque neles Aquiles não aparece, e eles não estão conectados com a história de sua Cólera. O Canto 9 é inconsistente com as passagens dos Cantos 13 e 16, onde Aquiles parece não saber que uma compensação já lhe tinha sido oferecida. O Canto 10 tem um tom estra-nho, e está também desconectado da Cólera, o mesmo valendo para os Cantos 23 e 24.140

80

O caráter compósito da Ilíada, diante da estrutura compacta da Odisseia, leva Grote a concluir que esta deve ser obra de um só autor, e aquela, de muitos.141

Uma obra importante em língua francesa que mostra a influência analítica é a História da literatu-ra grega [Histoire de la littérature grecque], do prolífico Maurice Croiset (1846-1935), cujo primeiro volume saiu em 1887. Embora, como apontou John Myres, os franceses tivessem apresentado, no geral, uma ten-dência à visão unitarista,142 e ela de fato se verifique nos comentários à Ilíada e a Odisseia de Alexis Pierron (de 1869 e 1875), a obra de Croiset mostra a forte in-fluência alemã, com a qual ele dialoga constantemente (e também com Grote). Nesse volume inicial, dedica-do inteiramente à épica, o autor faz uma abordagem tripartida das duas narrativas homéricas, dedicando a cada uma um capítulo de “análise”, outro sobre sua “formação” e um último sobre o “gênio e arte” ne-las encontráveis. Sobre a Ilíada, Croiset afirma, com outro dogma, que “a crença dogmática e tradicional numa unidade primitiva é incompatível com o estudo atento e comparado das diversas partes do poema”.143 Para o francês, apenas um pequeno número de partes do poema são primitivas, aquele cantos “ligados pela ordem dos acontecimentos”, que ele reduz a Cantos 1 (“o mais antigo de todo o poema”), 11, 16 e 22. Em seguida, foram acrescentados os episódios que não são “nitidamente marcados pela necessidade mesma do desenvolvimento dramático”, os Cantos 5, 6, 9 e “talvez alguns outros trechos”. Os demais, diz Croiset, “são quase com certeza de poetas diversos”, “acrescen-

81

tados mais tarde”.144 A posição é mais moderada em relação à Odisseia, que para ele deve ser tratada sepa-radamente, não havendo “contradição em admitir que esta seja desde seu nascimento aquilo que aquela outra [a Ilíada] só veio a ser tardiamente”. Isso, não impede, no entanto, que Croiset, fale em “elemento primitivo” e “continuação”, e possa mesmo apontar, na abertura do poema, “muitos remanejamentos e adições”.145

O enfoque analista, no entanto, teve mesmo maior repercussão no ambiente de língua inglesa, como se pode notar na obra introdutória de Richard Jebb (Ho-mer: an introduction to the Iliad and the Odyssey, de 1887), ou nos comentários de David Monro e Wal-ter Leaf à Ilíada, saídos quase ao mesmo tempo, cada um deles em dois volumes, nos anos de 1884/1888 e 1886/1888.146 O de Leaf (1852-1927) – banquei-ro de profissão –, menos escolar e mais aprofundado, recebeu sucessivas reedições (modificando-se bastante na segunda, de 1900) e, ao contrário do de Monro, era o que mostrava maior entusiasmo com a hipótese analítica, discutida canto a canto.

Leaf, que foi muito influenciado pelo trabalho de Karl Ameis e Carl Hentze,147 expõe nos seus “prole-gômenos” do volume 1, sob o subtítulo “Análise da Ilíada”, o eixo de sua abordagem:

(...) a Ilíada não foi composta por um único poeta, mas corresponde ao desenvolvimento por um longo período, (...) [ o qual] se deu por acréscimos graduais, ou gradual cristali-zação, em torno de um núcleo central, que

82

por sua vez era desde o princípio algo fixo em meio a expansões posteriores de uma na-tureza ora mais ora menos flutuante – em-bora algumas delas com o tempo tenham ganhado uma solidez quase igual àquela do cerne original.148

Para Leaf, “as discrepâncias e contradições que parecem depor contra a unidade de autoria são aque-las que penetram fundo na estrutura do poema, e não erros fortuitos de detalhe a que todos os autores estão sujeitos”, e entre essas inconsistências a mais grave é a relativa ao Canto 9, que é “completamente ignorado nos Cantos 11 e 16”.149 Na sua “dissecação”, a Ilía-da primitiva corresponde, “sem dúvida”, à “Cólera de Aquiles”, apresentada nos Cantos 1, 11, 15, 16 e 20-22, “ou, melhor dizendo, em parte deles, por-que não há nem um que não tenha recebido extensas adições”.150 É interessante notar como, mais à fren-te, Leaf cede à impressão de unidade deixada pelo poema, e se manifesta quase como um “unitarista” o faria:

É na história da Cólera que se deve encon-trar a verdadeira unidade da Ilíada. Aí não podemos hesitar em ver o trabalho de um único poeta, talvez o maior em toda a his-tória mundial. Até que ponto ele empregou um material pré-existente em sua compo-sição, está além do nosso poder de análise dizer.151

83

Essa enorme atenção dada à Ilíada foi característi-ca do nascente homerismo especializado, que tinha di-ficuldade (como vimos em Grote, e já antes em Wolf ) de contestar a unidade da Odisseia, seja atribuindo-lhe um cerne primitivo, seja decompondo-a em pequenos cantos originais – apesar de alguns esforços de Her-mann nesse sentido na sua obra de 1832.

Esse último bastião veio a cair definitivamente, novamente em terras alemãs, com um discípulo de Lachmann, Adolf Kirchhoff (1826-1908), nome fun-damental para o desenvolvimento da linguística histó-rica do grego, e responsável por dois livros dedicados ao épico até então tido como menos problemático: A Odisseia homérica e sua origem [Die homerische Odyssee und ihre Entstehung], de 1859, e A composição da Odis-seia [Die Komposition der Odyssee], de 1869. Kirchho-ff propunha que a Odisseia tinha um cerne original, dedicado às “Viagens de Odisseu”, contendo partes dos Cantos 1 e 5, os Cantos 6-9 e partes dos Cantos 11 e 13. Numa segunda etapa foram adicionados o restante do Canto 13, o Canto 14 e os Cantos 16-23 (até o verso 296); nesse momento também as aven-turas de Odisseu entre os Cantos 9-12 ganharam sua feição atual. Finalmente, tempos depois, um “arranja-dor” ou “redator” inseriu a “Telemaqueia” e o Canto 15, concluiu o Canto 23 e rematou o poema com o Canto 24.152 J. Davison analisa deste modo o método adotado pelo alemão:

Os argumentos de Kirchhoff não são todos subjetivos (ele se vale da discrepância entre

84

os manuscritos e apela para diferenças lin-guísticas e de outra ordem entre as diversas partes do texto); mas seu princípio crítico fundamental consiste na equivalência entre “antigo” e “bom”, e muitos de seus argumen-tos dependem de sua crença de que há um declínio na qualidade poética desde o alto nível do poema original até a colcha de reta-lhos sem arte da revisão tardia.153

Bem mais moço que Kirchhoff, e com uma erudi-ção muito mais vasta, é Ulrich von Wilamowitz-Mol-lendorff (1848-1931), o nome mais influente de toda a filologia alemã, responsável, segundo um crítico de língua inglesa, por “transformar toda a disciplina [dos estudos clássicos] e trazê-la do século XIX para o XX”, ao derrubar “as barreiras entre os vários departamen-tos”.154 Seu primeiro trabalho importante sobre a épi-ca data de 1884, Investigações homéricas [Homerische Untersuchungen]. Nele, o estudioso procura primeiro detalhar a composição histórica da Odisseia, e depois falar sobre a transmissão da épica. Para ele, o poema é o resultado de uma junção de três cantos anterio-res, feita por um redator inepto por volta de 650 a.C. (portanto, não por Pisístrato, em cuja recensão não acredita). A decomposição se dá de modo sofisticado e detalhado, e quase no fim da vida foi revista e simpli-ficada por ele, em O retorno de Odisseu [Die Heimkehr des Odysseus], de 1927. Sobre o livro mais antigo, diz Davison em 1962:

85

Na primeira parte Wilamowitz distribuiu suas censuras ao Redactor (Bearbeiter) e às interpolações demonstrando uma confiança impressionante, tanto nas evidências linguís-ticas, históricas e textuais para a data de cer-tas passagens, quanto no acerto de seu pró-prio juízo a respeito do valor poético delas. Mas, na segunda parte, ele tratou dos pro-blemas relativos à evolução e transmissão dos épicos gregos em geral com uma erudição que faz de suas Investigações homéricas uma das obras até hoje indispensáveis em qual-quer biblioteca sobre Homero, e seu capítu-lo final, intitulado “Retrospecto e Prospecto” [Ruckblick und Ausblick], pode figurar como uma afirmação clássica do problema homéri-co tal como aparecia, em 1884, aos olhos do mais brilhante dentre os jovens estudiosos daquele tempo.155

Sobre a outra narrativa homérica, Wilamowitz ex-pôs a mesma visão central – a de que se tratava de uma “colcha de retalhos” – no trabalho A Ilíada e Homero [Die Ilias und Homer], de 1916, espécie de súmula da corrente analista e da visão positivista.156 O redator, agora, podia ser um Homero histórico, a quem se con-cedia maior habilidade. Martin Nilsson resume assim a visão central exposta pelo filólogo alemão nesse livro:

(...) já existia uma florescente poesia voltada para a produção de épicos que eram bastante

86

extensos, mas muito mais breves do que os poemas homéricos. A língua e a técnica da épica tinham atingido seu total desenvolvi-mento, e essa poesia encontrara sua morada na Jônia. Num certo momento um grande gênio poético apareceu, que pode com acer-to ser chamado de Homero (750 a.C.). Ele concebeu o plano de um épico abrangen-te. Em sua composição, tomou livremente emprestado de épicos mais antigos, mas se tratava de um grande poeta, original, cujo poder criativo encontrou sua expressão cor-respondente na criação artística, na imagina-ção poética e na caracterização psicológica. A Ilíada de Homero compreendia os Cantos 1-7 (até o v. 321) e 11-23, e mesmo nesses certas mudanças foram feitas posteriormen-te. A conclusão – a morte de Aquiles – se perdeu e foi substituída por partes dos Can-tos 23 e 24. Homero incorporou diversos épicos menores, às vezes reformatando-os e reelaborando-os, às vezes apenas adicionan-do passagens que conectassem as diferentes partes.157

*

O enfoque analista, embora combalido, não abandonou a cena no século XX, como vimos com Wilamowitz.158 Em língua inglesa, apareceram obras importantes e influentes, como O surgimento da épica

87

grega [The rise of the Greek epic], de Gilbert Murray (1907), que acreditava num processo de expurgação e reforma dos poemas, análogo ao dos livros do An-tigo Testamento;159 Evidência externa da interpolação em Homero [The external evidence for interpolation in Homer, 1925], de George Bolling, com a indicação canto a canto dos versos acrescentados indevidamente (Bolling depois tentou reconstruir a Ilíada ateniense da época de Pisístrato, em 1950); e, bem mais adian-te, já na segunda metade, dois livros de Denys Page, A Odisseia homérica [The Homeric Odyssey, 1955], em que expressava sua dívida para com Kirchhoff, e A história e a Ilíada homérica [History and the Homeric Iliad, 1959], que traz um apêndice intitulado – bem ao gosto desse tipo de crítica – “Múltipla autoria na Ilíada”.160 Em 1980, saía mais um livro sobre a pre-sença de acréscimos indevidos nos poemas, Evidência manuscrita da interpolação em Homer [The manuscript evidence for interpolation in Homer], de M. Apthorp, e ainda recentemente, em 2011, o trabalho de Mar-tin West, A criação da Ilíada: perquirição e comentá-rio analítico [The making of the Iliad: disquisition and analytical commentary], em que defende a retomada da visão oitocentista e a investigação das “desconti-nuidades”. West – que em 1998/2000 havia feito sua edição “Teubneriana” do poema, marcando os versos interpolados, e depois discutido a maioria deles em Estudos sobre o texto e a transmissão da Ilíada [Studies in the text and transmission of the Iliad, 2001] – não defende, como muitos dos analistas, a “múltipla au-toria”, preferindo acreditar em alterações produzidas

88

por um mesmo autor, que, no entanto, para ele não é o mesmo da Odisseia.

Na França, ainda que o já citado Maurice Croiset fizesse um balanço sóbrio sobre a crítica dos épicos gregos em seu artigo “A questão de Homero no come-ço do século XX”, de 1907,161 a visada analítica conti-nuava viva, como se pode ver nas prestigiadas edições dos poemas dentro da coleção “Les Belles Lettres”. O poema de Odisseu ficou a cargo de Victor Bérard, que, além dos três volumes com o texto grego e a tra-dução, publicou em outros três (entre 1924-1925) sua Introdução à Odisseia, onde abordava as “interpolações dos rapsodos”.162 Bem mais criterioso era o trabalho de Paul Mazon, que tocou nos problemas relativos ao outro épico na sua Introdução à Ilíada, publicada em 1942, alguns anos depois de saírem os quatro volumes com sua edição do poema. Mazon realiza uma análi-se detalhada, canto a canto, da narrativa, para depois chegar aos resultados sobre o que seria o “poema pri-mitivo” e o que seria sua “extensão”.163 Seu trabalho foi influência importante para Robert Aubreton, au-tor, entre nós, de uma Introdução a Homero, de 1953 (edição revista e aumentada em 1968), que adota mo-deradamente a “decomposição”, preferindo preservar a unidade diante da percepção de que “a filologia tem exagerado muito”.164

Mas foi certamente entre os autores de língua ale-mã que a “análise” teve vida longa, com nomes como Erich Bethe – que propunha uma Ilíada original com apenas 1.500 versos!165 – e seu Homero: poesia e lenda [Homer: Dichtung und Sage; três volumes entre 1914

89

e 1927]; Georg Finsler e os livros Homero [Homer, em dois volumes, 1913] e Poesia homérica [Die home-rische Dichtung, 1915]; Eduard Schwartz, autor de Sobre o nascimento da Ilíada [Zur Entstehung der Ilias, 1918] e A Odisseia [Die Odyssee, 1924];166 Peter von der Mühll, que publicou um verbete influente sobre a Odisseia na enciclopédia Pauly-Wissowa, em 1940, e depois sua edição “Teubneriana” do poema, em 1945, além do Comentário crítico à Ilíada [Kritisches Hypom-nema zur Ilias], de 1952; e Reinhold Merkelbach, alu-no de von der Mühll, que redigiu suas Investigações sobre a Odisseia [Untersuchungen zur Odyssee, 1951].167 Ainda recentemente alguns livros publicados teste-munhavam a força da tradição analítica alemã,168 que Bernard Fenik, em 1974, diante do desenvolvimento dos estudos homéricos, considerava – em suas formas mais simples e antiquadas – “ultrapassadas e ingênuas a ponto de mal merecerem nossa real atenção”.169

É difícil apresentar a diversidade de tantos enfo-ques, diante do vigor do debate especializado a que se chegara na virada do século XIX para o XX, movido basicamente – como já se disse de forma sarcástica – pela “convicção do mais recente analisador de que to-das as análises anteriores estavam erradas”.170 Nunca antes a poesia homérica tinha sido alvo de uma discus-são tão acalorada. A corrente analista, como que num passe de mágica, tinha transformado Homero num mero (com o perdão do trocadilho) elemento a mais no processo de formação da Ilíada e da Odisseia. Pre-dominavam duas abordagens, que adquiriam feições próprias segundo cada autor: a voltada para a pro-

90

posição de um núcleo original, menor em extensão, modificado por meio de interpolações (e nesse caso preserva-se certa unidade de concepção); e a voltada para a defesa de um amálgama de canções, misturadas com maior ou menor destreza (ficando aqui a coerên-cia e coesão mais comprometidas). A essas duas linhas centrais vem se juntar aquela que pende já para um novo unitarismo, porque reconhece ao mesmo tempo a existência de um processo de formação e a interfe-rência final de um grande poeta (não necessariamente o mesmo para a Ilíada e a Odisseia), que amarra com felicidade o material disperso que encontrara.

Qualquer que seja a análise, ela inevitavelmen-te se guia por três princípios: 1. uma vez que há um desenvolvimento no tempo, devemos ser capazes de separar o que é mais antigo do que é mais recente, tendo-se em mente que o movimento – com base na concepção de que primeiro há uma fase criativa, “aé-dica”, seguida de uma repetitiva, “rapsódica” – é de declínio (e, em havendo um “redator” final, em geral ele é inepto);171 2. o processo de constituição resulta em discrepâncias e inconsistências (no interior de cada poema, e na passagem de um para o outro) que podem ser de toda ordem, dependendo do estudioso: língua, metro, vocabulário, sequência narrativa, moralidade, modo como os deuses são retratados, uso dos símiles, descrição dos armamentos, geografia etc.; e 3. as repe-tições fornecem uma pista valiosa para se determinar o que é primitivo/original e o que é tardio/imitação. As repetições, em especial, representaram sempre uma ferramenta importante no trabalho de estratificação

91

da poesia homérica, como se pode perceber desde as primeiras investigações de Hermann. Devemos, aliás, à “fúria de decomposição” do século XIX a elaboração de materiais importantes no mapeamento até então inédito de Homero, entre os quais se destacam – além das inúmeras edições do texto grego e de seus escó-lios – as “concordâncias” (volumes que registram as diferentes ocorrências dentro de uma mesma obra ou autor) da Ilíada e da Odisseia, ambas em inglês, a pri-meira de 1875, a cargo de Guy Prendergast (A com-plete concordance to the Iliad of Homer), e a segunda, de 1880, levada a cabo por Henry Dunbar (A com-plete concordance to the Odyssey and Hymns). Na Ale-manha, um pouco depois, em 1885, saía o segundo e último tomo do Léxico homérico [Lexicon homericum, em latim], editado por Heinrich Ebeling, e no mes-mo ano o Paralelismo em Homero ou índice de todas as repetições homéricas [Parallel-Homer oder Index aller Homersichen Iterati], de Karl Schmidt, a que vieram fazer companhia, em 1891, o Índice homérico [Index homericus], de Augustus Gehring, e outro dicionário homérico (menos exaustivo, agora em alemão), de Georg Autenrieth.172

Tudo isso servia para dar maior respaldo ao propó-sito positivista da filologia, que se apoiava na autorida-de proveniente do conhecimento especializado, único detentor da aplicação do método histórico. Por isso o homerista norte-americano Thomas Seymour podia afirmar, em 1896, que “ninguém que tem direito a uma opinião sobre o assunto [a ‘Questão Homérica’] sustenta hoje a unidade dos poemas”.173 O resultado

92

era uma dessensibilização no trato com Homero, vis-to por partes e pela infalível lente de aumento, sem a devida apreensão do conjunto e do modo de fun-cionamento dessa poesia composta oralmente e espa-lhada no tempo, encarada em geral como produtora de sucessivos textos fixos: se a comparação com outras produções orais havia deixado para trás a suposição de Wolf de que o poema ágrafo não podia ser extenso (re-tomando a capacidade de memorização já destacada por Wood), ainda assim não se conseguia entender a mutação como algo inerente ao texto oral, mas apenas como degeneração. O risco evidente era a distorção, somada a uma arbitrariedade irrefreável, e a impressão final (mais forte com o passar do tempo) de que a pre-tensa inteligência científica do texto frequentemente revelava-se obtusa.

Mas a condenação total e irrestrita dos analistas seria igualmente um equívoco, porque eles foram responsáveis por levantar questões e problemas fun-damentais para a nossa compreensão da Ilíada e da Odisseia. Como já se disse, as perguntas eram perti-nentes, mas as repostas não acertavam o alvo. Numa obra como a de John Scott, A unidade de Homero [The unity of Homer, 1921], que mais parece um panfleto de ataque à corrente analista, pode-se perceber bem o erro de uma crítica apressada a esses predecessores do Dezenove. Em meio a afirmações violentas – como a de que “duas coisas são necessárias para tais inter-polações [sugeridas pelos analistas]: primeiro, bardos idiotas, e, depois, audiências idiotas”; ou de que “a alta crítica [a analista, voltada para as fontes] cometeu sui-

93

cídio quando se cansou de ser um culto e aspirou a se tornar uma ciência”174 –, em meio a essas afirmações de Scott, fica clara sua incompreensão da posição his-tórica desses estudiosos de Homero.

Bem mais sensata é a avaliação – já da perspectiva oralista – de Albert Lord, feita em 1960:

As muitas teorias de autoria múltipla dos poemas homéricos contribuíram mais para os estudos de Homero do que qualquer ou-tra visão. Não que elas estivessem certas. Mas levaram a caminhos produtivos. (...)O serviço prestado por esses estudiosos foi, essencialmente, o de apontar as peculiari-dades da língua e da estrutura dos poemas homéricos, peculiaridades que hoje perce-bemos que são próprias da poesia oral. As inconsistências, a mistura de dialetos, os arcaísmos, as repetições e os “estribilhos” épicos, e até mesmo o modo de composição por adição e expansão de temas, foram per-cebidos e catalogados por esses estudiosos. O questionamento sobre o uso da escrita os le-vou a empregar o termo “oral”, e a experiên-cia que tinham da épica folclórica parecia, além do mais, justificar o uso desse termo. Os elementos necessários para a cristalização das respostas às suas perguntas estavam lá. É um fenômeno curioso tanto da história inte-lectual quanto do estudo especializado que as grande mentes aí representadas, mentes

94

que podiam formular as mais engenhosas especulações, tenham falhado em perceber que deveria haver outro modo de compor um poema além daquele com que estavam familiarizados. Eles conheciam e citavam a épica e a balada folclórica, eles estavam cien-tes das variantes nesses gêneros, e no entanto só conseguiam ver duas maneiras pelas quais essas variantes poderiam surgir: por lapso de memória ou alteração intencional.175

Também ponderada é a abordagem de Fenik nos seus Estudos sobre a Odisseia [Studies in the Odyssey, 1974]. Aí os analistas de língua alemã são apresentados como interlocutores respeitáveis, ainda que raramente convincentes. Para o norte-americano, a “arrogância e excentricidade” dos partidários da dissecação fez com que houvesse um “desastroso desprezo, da parte de muitos, pela riqueza de observações importantes e questões pertinentes que seus trabalhos contêm”.176 No entanto, ao tratar, por exemplo, do problema que as repetições em geral representavam para a corrente, diz ele:

Assim como eles nunca apresentaram uma razão clara para suspeitarem da repetição em geral, também nunca propuseram uma jus-tificativa teórica para, por um lado, admiti-rem alguma repetição como sendo intrínseca ao estilo épico, mas, por outro, rejeitarem a possibilidade de que muitas outras repetições

95

pudessem representar um legítimo desenvol-vimento dessa mesma tendência estilística.177

A solução não viria ainda com a reação unitarista,

que, apesar de se colocar em posição antagônica, par-tia do mesmo “preconceito” letrado e era incapaz de perceber a especificidade do estilo homérico.

5.

A RETOMADA DA UNIDADE E O IMPASSE

A visão unitária de Homero era, até o século XVIII, um dado concreto da tradição e da própria trans-

missão dos poemas. Com a notável exceção do abade de Aubignac e sua repartição da Ilíada em cerca de 40 rapsódias, não havia a intenção explícita de se fracio-nar os poemas em cantos menores, ainda que desde a Poética de Escalígero (1561) já fossem notados “defei-tos” e “incoerências”.178 No entanto, com o advento da especialização, e com a corrente analista entrinchei-rando-se nas cátedras universitárias, o unitarismo pas-sou a ser visto como coisa ingênua, de quem não tinha um conhecimento aprofundado dos problemas homé-ricos. A perspectiva histórica obrigava o estudioso a in-vestigar como diferentes camadas foram se sobrepon-do no curso do tempo para dar origem às duas gran-des epopeias; segundo John Scott, os analistas dessa época estão de acordo quanto a “existirem, em ambos os poemas, certas inconsistências e contradições, e es-

98

tas serem de uma natureza tal que torna impossíveis a unidade de plano e a unidade de autoria”.179 A força dessa abordagem era tão grande que o próprio Scott se mostrava abismado com o fato de que, “diante da opi-nião unânime dos grandes poetas e escritores de todas as épocas [sobre a unidade], os argumentos desinte-gradores de Wolf e seus sucessores tivessem alcançado uma vitória tão completa e, no começo do século XX, estivessem em campo praticamente sozinhos”.180

Uma figura respeitável como Goethe, que fora um entusiasta de primeira hora de Wolf, a cujas aulas as-sistia escondido por detrás das cortinas e com quem manteve uma longa correspondência,181 podia procla-mar um tempo depois, ao rever sua posição, que Ho-mero era sim uma unidade, e o filólogo conterrâneo seu, um “predador”, sem que sua opinião interferisse no debate.182 O olhar comum se tornara pueril dian-te do penetrante olhar científico. Era preciso que os partidários da unidade se munissem de armas consis-tentes, e falassem também eles ex cathedra, para que fossem ouvidos e fizessem parte da discussão. Mais do que isso: era necessário que incorporassem à sua vi-são essa ideia incontestável do desenvolvimento dos poemas, e as relações entre oralidade, escrita e auto-ria, para que Homero deixasse de ser um poeta como Virgílio.

Três fatores podem ser apontados como decisivos para a retomada, em novos termos, da unidade de Ho-mero. O primeiro deles diz respeito à completa falta de consenso entre os analistas no final do século XIX, resultado do subjetivismo das propostas, tão variadas

99

quanto era o número de seus defensores. Como afirma Myres, era motivo de desconforto

a inabilidade de seus expoentes em chegar a uma análise consensual (...) A metodologia habitualmente empregada pelos críticos se-paratistas repousava de fato sobre distinções e estimativas altamente pessoais.183

Como se pôde perceber pela breve exposição fei-ta acima – na determinação, por exemplo, de quais seriam os cantos primitivos da Ilíada e da Odisseia –, a arbitrariedade grassava livremente entre os adeptos da análise, dando indícios de que o método não ti-nha precisão e de que a máxima alexandrina de que se deveria “esclarecer Homero a partir de Homero” (Hó-meron ex Homérou saphenízein) não era seguida, o que os aproximava – em termos de absoluta liberdade crí-tica – dos antigos alegoristas. Além disso, os próprios analistas não conseguiam dar uma resposta satisfatória ao fato de que as duas grande narrativas eram, desde a antiguidade, sentidas como coerentes e coesas, tendo já sido tomadas como exemplos de unidade na teori-zação da Poética de Aristóteles.

Junto com essa deficiência inerente ao método, que lhe tirava a força, havia também um progressivo declínio do historicismo, ou, melhor dizendo, uma progressiva desvinculação entre texto e contexto. A noção determinista de que havia uma relação direta entre a obra e o ambiente em que fora produzida (com a evolução tanto de uma quanto do outro) começava a

100

ser encarada com mais cautela, e passava-se a dar mais atenção ao funcionamento interno da criação, e a seus elementos propriamente literários. Esse movimento – que desembocaria na chamada Nova Crítica – teve, é verdade, poucos reflexos diretos nos estudos homéri-cos, mas servia já para relativizar o domínio historicis-ta e abrir espaço para outros enfoques.184

Na realidade, o terceiro e fundamental fator para a arrancada unitária veio, ironicamente, de uma percep-ção maior da realidade histórica dos elementos presen-tes em Homero, propiciada pela arqueologia. Embora se admitisse que sua poesia tivesse atravessado diferen-tes estágios, desde uma época mais primitiva (em ge-ral, idealizada) até uma outra mais refinada (em geral, com a presença da escrita), e com isso ela ganhasse uma dimensão histórica, voltada paras as condições do seu desenvolvimento, ainda assim não se acredi-tava que o mundo retratado nos poemas tivesse tido uma existência concreta; eles eram um reflexo das cir-cunstâncias em que surgiram, e não retrato da realida-de, passada ou contemporânea. Segundo Alan Wace, a atitude geral em relação às descrições, aos locais e aos acontecimentos homéricos fora desde muito a de que “eram sobretudo poéticos”.185 E foi justamente um unitarista ingênuo e crédulo que, na esteira de Ro-bert Wood, desenterrou um novo mundo para os lei-tores da épica grega: o comerciante alemão Heinrich Schliemann. Com suas escavações entre 1870 e 1890 (ano de sua morte) – especialmente em Hissarlik, sí-tio turco onde se edificaram sucessivas Troias, e em Micenas, no Peloponeso –, Schliemann possibilitou

101

que Homero fosse visto com novos olhos. Ainda que tenha se enganado – no afã da descoberta – quanto à correspondência temporal entre seus achados e os ele-mentos homéricos, o impacto não foi menor: a partir desse momento, não havia mais aquela separação feita por Grote (e por muitos de seu tempo) entre a Grécia lendária – a que pertenceria a Guerra de Troia – e a Grécia histórica.186

Ao final de algumas décadas, os trabalhos de seu discípulo Wilhelm Dorpfeld, seguidos depois pelos do inglês Arthur Evans, em Creta (entre 1900-1905), e do norte-americano Carl Blegen, novamente em Troia, na década de 30, trouxeram pelo menos dois elementos novos para a discussão de Homero: 1. sua poesia retratava a chamada “civilização micênica”, desaparecida depois de 1.200 a.C., e essa civilização caracterizava-se, entre outras coisas, pela opulência e vida palaciana; e 2. entre esses micênios já havia uma escrita, um silabário que ficou conhecido como “Li-near B”.

A associação da poesia homérica com o Período Micênico (entre os séculos XVI e XII a.C.) revelou-se uma verdadeira febre, e diversos autores se dedicaram a mostrar, de diversas maneiras, o substrato material daquilo que se retratava nos épicos – o que não sig-nificava propor, necessariamente, um poeta Homero micênico. Em 1907, Gilbert Murray podia afirmar que “uma moda se instalou de modo violento a favor da aceitação dos poemas como historicamente váli-dos”.187 Uma das obras alemãs mais importantes da segunda metade do século XIX foi o pioneiro A épica

102

homérica elucidada a partir dos monumentos [Das home-rische Epos aus den Denkmaelern erlaeutert, 1884], de Wolfgang Helbig, que “permaneceu por muito tempo como o melhor livro de referência geral daquilo que se pode com acerto chamar de arqueologia homérica”,188 embora Martin Nilsson aponte nele certo descuido na distinção entre as épocas.189 O próprio Nilsson, sue-co estudioso da mitologia e da religião gregas, foi um defensor destacado da ideia de que “as circunstâncias históricas compelem a que se busquem as origens dos épicos gregos na gloriosa Épica Micênica”, como diz no seu Homero e Micenas, de 1933.190

Como se sabe, com o passar dos anos essa visão foi sendo aos poucos modificada: Moses Finley propôs no seu famoso O Mundo de Odisseu [The world of Odys-seus, 1954] que Homero retratava não a civilização micênica, mas a “Idade das Trevas” (séculos XI a IX a.C.); mais tarde Anthony Snodgrass se perguntava, no artigo “Uma sociedade homérica histórica?” [“An historical Homeric society?”, 1974], se não estaría-mos diante de um amálgama histórico, sem que fosse possível atribuir aos poemas o reflexo de um tempo específico; e, finalmente, Ian Morris, no artigo “O uso e o abuso de Homero” [“The use and abuse of Homer”,1986], defendeu que as epopeias remetiam à época do próprio poeta, o século VIII.191

Quanto à descoberta da escrita, ela teve, inicial-mente, um significado mais simbólico e marginal, ajudando a reforçar o suposto refinamento da época. Não se sabia, a princípio, se o Linear B era de fato uma forma antiga de notação do grego, e as inscrições

103

alfabéticas não estavam bem datadas. Só a partir da década de 50, com a decifração do silabário e a fixação do século VIII como época provável para a introdu-ção do alfabeto (tomado aos fenícios),192 percebeu-se, em primeiro lugar, que o Linear B tinha uso limitado, burocrático (indicando, aliás, uma sociedade diferente da descrita por Homero), e não teria sido capaz de registrar os poemas homéricos; e, em segundo lugar, que a escrita teria entrado apenas numa fase final da produção dos poemas.

De qualquer maneira, num primeiro momento as descobertas arqueológicas apontavam para a existência de um ambiente aristocrático e requintado, distante do mundo rude e popular a que se atrelara Homero. Lá se iam, diz Frank Turner,

os antigos poetas populares que haviam composto as baladas de Lachmann e seus seguidores. Em seu lugar estavam bardos da corte, que recitavam seus cantos para a rea-leza num ambiente luxuoso. (...) Esse novo contexto para a origem dos poemas também os tornou produtos de uma época civilizada – e não mais primitiva –, uma época civiliza-da que tinha chegado ao fim com as invasões dóricas.193

Para os unitaristas, esse novo contexto abria espa-ço para que se explorasse novamente, e com roupa-gem mais elaborada, a figura do gênio romântico, tão importante, como vimos, para Robert Wood e para

104

nossa sensibilidade ainda hoje. Podia renascer agora o poeta individual e criativo, cuja originalidade deixa uma marca indelével na obra. Para empregar os dizeres de um crítico literário brasileiro de meados do século passado, o traço único “é a principal qualidade de um poeta”, porque

o que se exige dele antes de tudo é a indi-vidualidade irredutível, uma caracterização rigorosamente particular. Um poeta deve criar o seu próprio espaço, a sua maneira inconfundível, o que quer dizer: uma obra com tal fisionomia que não se possa trocar por qualquer outra.194

A mesma questão, vista sob outra ótica, foi formu-lada assim por um helenista italiano, ao abordar o que chamou de “tabu humanístico-romântico-idealista”:

Uma obra literária complexa e bem-estrutu-rada deve ter sido composta por um, e so-mente um, autor, que deve ser um autor de primeira ordem; a grande poesia não pode ser senão obra de um grande poeta; o subli-me é realizável apenas por um gênio criativo individual.195

É dentro dessa perspectiva que os novos proposi-tores da unidade defendem, basicamente, a existên-cia de uma longa tradição épica oral – impossível de ser ignorada, depois dos analistas – que sofre a pos-

105

terior interferência criativa do poeta Homero, capaz de conferir ao material pré-existente um acabamento e um salto de qualidade únicos. Era preciso enfatizar o “grande artista” com sua “arte refinadíssima”, como faz Giorgio Pasquali no extenso verbete “Homero” da Enciclopédia Italiana (1935), ainda que a defesa da unidade não impedisse, como acontecia com o próprio italiano e com outros, que se falasse em “dis-trações”, “contradições” e “interpolações”. Pasquali, por exemplo, considerava espúrios os episódios do “Catálogo das naus” e da “Doloneia”, e via uma clara “evolução moral” da Ilíada para a Odisseia, o que o levou a propor autorias diferentes para os dois poe-mas.196

Algumas formulações de John Scott no já citado A unidade de Homero resumem bem o espírito, como quando diz, ao tratar dos símiles, que a habilidade de-monstrada nas comparações é tal “que elas só podem ter se originado no cérebro cheio de recursos de um mesmo gênio criativo”, ou que esses dois épicos não são simplesmente “tradições repetitivas já conhecidas, mas também criações novas e originais”.197 Mas tal-vez nenhuma passagem do livro explicite tão bem seu ponto de vista quanto esta:

A tradição de fato criou, em certa medida, Odisseu, mas não o Odisseu de Homero. O Odisseu da tradição não vai além da perso-nificação da inteligência e da crueldade. Não há nada nesse Odisseu que faria seus com-panheiros felicitá-lo nos jogos e desejar que

106

ele vencesse. O Odisseu de Homero é sua própria criação.198

Anos depois, também nos EUA, Samuel Bassett poderia afirmar, na mesma linha:

Todos os grandes criadores da literatura se parecem neste ponto: pegam o velho e fa-zem com ele o novo, em ideias e linguagem, em incidentes, personagens e ações; e acres-centam e inventam a partir de sua própria imaginação. Devemos acreditar que Homero não era exceção.199

O pioneirismo aqui também se deve aos filólogos de língua alemã, entre os quais se destaca Carl Rothe, autor de três obras fundamentais: A importância das contradições para o discurso homérico [Die Bedeutung der Widerspruche fur die homerische Sprache, 1894], A Ilíada como poesia [Die Ilias als Dichtung, 1910] e A Odisseia como poesia [Die Odyssee als Dichtung, 1914]. Rothe, cujo trabalho teve grande influência sobre Scott, representa, na opinião de Bernard Fenik, “a mais valiosa, inteligente e completa refutação dos excessos analistas”, porque baseada “numa observação atenta do texto e na comparação das passagens relacio-nadas”.200 Além dele, outros nomes de peso são os de Engelbert Drerup, que escreveu O Canto 5 da Ilíada [Das fuenfte Buch der Ilias, 1913], O problema homéri-co no presente e Poética homérica [Das Homerproblem in der Gegenwart e Homerische Poetik, ambos de 1921],201

107

e dois alunos de Wilamowitz: Wolfgang Schadewaldt, com os livros Estudos da Ilíada [Iliasstudien, 1938] – que “deu ao unitarismo um novo nível de respeitabi-lidade entre os que escreviam na Alemanha”202 – e Do Mundo e da obra de Homero [Von Homers Welt und Werk, 1944], em que contestava a antiga análise em fa-vor da organicidade, ainda que com certas concessões separatistas em relação à Odisseia;203 e Karl Reinhardt, com sua obra póstuma A Ilíada e seu poeta [Die Ilias und ihr Dichter, 1961].204

Em língua inglesa, Andrew Lang foi um unitarista entusiasta de primeira hora da arqueologia homérica, com títulos importantes de divulgação, como Homero e a épica [Homer and the Epic, 1893], Homero e sua época [Homer and his age, 1906] e O mundo de Homero [The world of Homer, 1910], em que situava o poeta no fim do Período Micênico.205 Já Thomas Allen par-tiu para um estudo mais particularizado em O catálo-go homérico das naus [The Homeric catalogue of ships, 1921], que retomava, entre outros, o estudo em ale-mão de Benedikt Niese, O catálogo homérico das naus elucidado como fonte histórica [Der homerische Schiffska-talog als historische Quelle betrachtet, 1873]; Allen, que situava Homero por volta de 900 a.C., escreveu ainda o influente Homero: as origens e a transmissão [Homer: the origins and the transmission, 1924]. Na abordagem mais literária, além do já mencionado John Scott e seu A unidade de Homero (1921), destacaram-se Alexan-der Shewan, com A balada de Dólon [The lay of Dolon, 1911], uma negação contundente, apesar do título à Lachmann, da antiga suspeição sobre o Canto 10 da

108

Ilíada, e seu posterior Ensaios homéricos [Homeric es-says, 1935]; John Sheppard e A estruturação da Ilíada [The pattern of the Iliad, 1922], descrição detalhada do andamento da narrativa; Maurice Bowra, autor, entre outros, do livro Tradição e Planejamento na Ilía-da [Tradition and design in the Iliad, 1930]; e Cedric Whitman, talvez o mais arrojado leitor do grupo, com Homero e a tradição heroica [Homer and the heroic tra-dition, 1958], em que defende uma estruturação “geo-métrica” da Ilíada.

De todos, o trabalho de Bowra talvez revele de modo mais nítido como funcionava nas primeiras dé-cadas do século XX a filologia unitarista, que combi-nava, como seu título sintetiza bem, as ideias de for-mação e criação (não por caso retomadas, em termos semelhantes, pelo título de Whitman).206 A tese cen-tral do inglês, como diz logo no prefácio, é mostrar – com base em constante comparação com outras narra-tivas (inclusive a servo-croata, para a qual já chamava a atenção) – que a Ilíada retrata a passagem “do épico tradicional e primitivo para a condição de verdadeira arte”, e que é a essa conjuntura que se deve “seu caráter especial”.207 No primeiro capítulo, de onde tira o títu-lo do livro, Bowra propõe que se deve tentar

distinguir, na Ilíada, os elementos que per-tencem à tradicional arte épica daqueles que parecem indicar a mão de um poeta criativo. Uma tal investigação não assume que o poe-ma seja o trabalho de um homem só, sem qualquer outra contribuição, mas assume

109

sim que sua forma presente é produto de uma só mente, que transforma o material tradicional num todo artístico.208

Mais adiante, ele explicará que essa mente criativa não fica subjugada pela convenção; vem à tona o “poe-ta de gênio” de que falamos:

Todo poeta que faz jus a esse nome age de maneira nova em relação a ela [a tradição], mesmo que esteja preso às mais firmes regras e convenções. Não importa quão rígida seja a forma ou quão poderosa seja a regra: um poeta de gênio pode ainda assim impor sua personalidade e criar algo novo sem violar as leis herdadas da composição artística.209

Para Bowra, a Ilíada deve muito à tradição, “mas tem qualidades tais que tradição alguma pode pro-porcionar”, o que significa dizer, em outras palavras, que “só um grande poeta pode produzir um grande poema”, ao qual imprime “sua própria personalidade” e “propósito artístico”.210 A tradição pode fornecer re-gras e procedimentos, diz ele mais à frente, ao tratar da inovação de Homero no uso dos símiles, “mas não provê a inspiração”.

Como entender então a atuação desse gênio dian-te dos inúmeros problemas apontados pelos analis-tas – repetições, contradições, desníveis etc.? Antes de Bowra, John Scott já tinha enfrentado a questão. Tratando especificamente das inconsistências, Scott

110

defende que elas são menos recorrentes do que dão a entender os seus “caçadores”, e se explicam – as de fato existentes – seja pela vontade do poeta de se “concen-trar” em cada cena (como Carl Rothe já apontara),211 seja pela própria transmissão oral, que fracionava o poema em recitações de menor extensão.212 No final das contas, diz ele, elas são a prova de “gênio original”, porque são os imitadores que se esforçam para não dei-xar aparente nenhuma incoerência, algo a que o poeta criativo não dá muita atenção!213

Em relação a essa mesma dificuldade, Bowra não propõe algo muito diferente. Negando também o ex-cesso de contradições apresentado pela lógica analis-ta, ele aponta o fato geral de que “todos os autores se contradizem”, arrolando exemplos de Dante, Vir-gílio e Ariosto. Além desse fator, há que se considerar também que “a poesia recitada difere da lida porque requer uma atenção menos exata”.214 Finalmente, na conclusão da discussão, recheada de exemplos, reapa-rece a ideia de que “ao recitar sua história em seções, como fazia, Homero se concentrava na passagem que tinha diante de si e dava a ela sua total atenção”.215

Das repetições – “pedra fundamental da alta crí-tica” (a dedicada às fontes), nos seus dizeres –, Bowra fala que são marca de uma poesia mais antiga, que “permaneceu numa época em que a composição já era mais elaborada”. Originalmente, muitas delas tinham a função de proporcionar um descanso aos ouvintes, ainda que não se devesse descartar uma repetição com base na “perfeição da expressão”, que não admite va-riação. Mais uma vez, a suposta recitação por trechos

111

servia de argumento para se afirmar que os versos recorrentes tinham menos chance de ser notados.216 Deve-se destacar nesse ponto, no entanto, a aborda-gem pioneira feita por Bowra da repetição como re-curso deliberado, empregado com o objetivo de criar contrastes e paralelismos217 – algo que será a princípio ridicularizado pelos oralistas, para sofrer reabilitação posterior.

Ao contrário do livro de Scott, o de Bowra não se concentra apenas na defesa da unidade. Nele en-contramos também longos apanhados das origens da épica, da língua e do hexâmetro, do pano de fundo histórico e da época heroica, painéis em que ressal-tam, de um lado, a ideia de um processo de formação, e, de outro, a proposição do caráter real do que era narrado, com Homero – que situa no século IX a.C. (como Scott) –pertencendo a um ambiente de “cor-te”, em sintonia com o passado micênico, que recupe-ra e recria. Vale destacar ainda as páginas que dedica à questão da escrita, quando adota uma posição que se tornaria praticamente unânime entre os unitaristas (e, a bem dizer, já vinha dos analistas). Embora não afirme categoricamente que Homero tenha usado o registro alfabético, Bowra imagina que a “arquitetura e a forma”, a “organização e unidade” da Ilíada não seriam provavelmente as que vemos hoje se o poeta não soubesse escrever. Além do mais, diz ele (ante-cipando em vários anos Albert Lord), a comparação com a épica servo-croata mostra uma grande variação dentro da transmissão oral, o que não se percebe, em mesmo grau, na transmissão da Ilíada e da Odisseia,

112

favorecendo ainda mais a presença da escrita em sua composição. De todo modo, diz Bowra, Homero “es-creveu para seu próprio uso, e não para que seu poema fosse lido”, porque “toda a arte da Ilíada indica que foi feita para a recitação.”218

Diante dessa abordagem da Ilíada como mistura de elementos mais antigos com outros mais recentes e sofisticados, não causa espanto que o unitarista Bowra dedique um capítulo inteiro a “Alguns elementos pri-mitivos” do poema (para ele, notáveis nos catálogos e nos epítetos, entre outros), e admita a presença de “corrupções”, “interpolações” e “expansões”.219 Ele não estava sozinho entre os colegas: no prefácio à sua tradução (dentro da coleção Loeb) da Ilíada, de 1926, Augustus Murray, junto com duras críticas endereça-das aos analistas, admite de bom grado que no poema há “sem dúvida empréstimos, e aqui e acolá evidentes interpolações”.220

Feita essa rápida descrição, podemos perceber, em Tradição e planejamento na Ilíada, os traços fun-damentais do unitarismo então vigente (como vimos, já lançado, sem muita repercussão, por Nitzsch na pri-meira metade do século XIX): incorporação do olhar evolutivo, com a admissão de estratos, agora não mais discriminados; enorme peso dado ao autor, verdadei-ro gênio criativo, que aparece no final do processo e emprega a escrita; defesa rigorosa da unidade, que não obstante convive com possíveis interpolações ou cor-rupções; e respostas insuficientes aos problemas levan-tados pelos críticos do século passado. No final das contas, pode-se afirmar, diante dessas características,

113

que muitas vezes “a diferença entre wolfianos e uni-taristas é de gradação”, para retomar a formulação do analista Gilbert Murray, defensor fervoroso da Ilíada como um “livro tradicional”.221 De um lado, temos a corrente “avançada”, partidária da formação como dado decisivo (mas não descartando a interferência de um compilador ou redator), e de outro a corrente “conservadora”, para a qual o traço fundamental (ad-mitido o desenvolvimento prévio) é a originalidade.222 Daí o mesmo Murray afirmar em 1934, no prefácio à quarta edição de seu já citado livro O surgimento da épica grega, que era quase impossível encontrar um unitarista “puro”, porque não se podia pensar num Homero produzindo subitamente e espontaneamente suas duas grandes obras.223 Em certos casos poderia até haver dificuldade na classificação de um estudioso como o alemão Dietrich Mülder, autor de A Ilíada e suas fontes [Die Ilias und ihre Quellen, 1910], apre-sentado como analista por Scott e unitarista por Da-vison,224 ou W. Woodhouse e seu livro A composição da Odisseia de Homero [The composition of Homer’s Odyssey, 1930], chamado de “unitarista analítico” por Nilsson.225

Isso em parte se deve ao fato de que os unitaristas – dos quais Frederick Combellack podia dizer, em 1950, que haviam alcançado “um alto grau de respeitabilida-de”, conquistando a maioria no ambiente acadêmico – tinham acabado por incorporar, de certa forma, a análise em sua crítica.226 O mesmo Combellack apon-ta com acuidade como a busca de muitos unitaristas pelos elementos “originais” incorporados aos poemas

114

pelo “gênio” Homero nada mais era do que a repro-dução do jogo analista da discriminação das fontes: a identificação se tornava tanto mais falha quanto mais específica pretendia ser. Se para os dissecadores o que era mais antigo era melhor – sendo a incompetência a marca da adição posterior –, para muitos unitaristas o que era poeticamente bom se distinguia do ruim por ser inovação homérica:227 no final, os métodos, ambos voltados para a “caça às camadas”, se assemelhavam, com propostas altamente subjetivas e, não raro, dia-metralmente opostas.228 Como afirma Combellack,

A persistência com que esses unitaristas to-mam, uma atrás da outra, características refratárias [dos poemas] na busca por uma pedra de toque (...) com que possam distin-guir as invenções homéricas da herança tra-dicional, junto com a firme recusa por parte das provas em corroborar as cobranças que lhes são dirigidas, faz lembrar, como muitos outros aspectos do movimento unitarista, os procedimentos dos analistas do século XIX. Num movimento vazio sem fim, eles se apoiam num recurso atrás do outro com o intuito de conseguir separar os estratos “antigos” dos “novos” no interior da poesia homérica.229

Talvez o exemplo mais ilustrativo da aproxima-ção de enfoques é o tratamento dispensado ao Can-to 10 da Ilíada, a chamada “Doloneia”: sua vigoro-

115

sa rejeição, estabelecida quase sem contestação pelos analistas, foi encampada pelos unitaristas com argu-mentos... analistas: canto tardio, interpolado, espúrio. Ainda que Alexander Shewan mostrasse, em 1911, que os motivos para a condenação (linguísticos, nar-rativos, temáticos) não se sustentavam, e defendesse o gênio por trás da construção da Ilíada, a visão perdura, recalcitrante, num comentário de viés oralista como o de Bryan Hainsworth, saído em 1993.230 Caso passe-mos para um comentário contemporâneo da Odisseia, como o liderado por Alfred Heubeck na década de 80, veremos as mesmas contradições. Heubeck define-se como unitarista, mas acredita em discrepâncias tais entre a Ilíada e a Odisseia (de língua, estilo, compo-sição e estrutura) que o obrigam a postular autorias diferentes.231

*

Se, em função das descobertas arqueológicas, os analistas já começavam a representar, na década de 30, uma minoria, isso não significava o fim da corrente em sua forma autêntica, que, já se disse, permaneceu viva. John Scott podia sim afirmar que as escavações haviam “demolido completamente muitas das propa-ladas provas dos desintegradores”, encorajando a po-sição unitária,232 mas com essas palavras não atentava para aquilo que as novas provas podiam representar de estímulo, também, para os “caçadores de camadas”. Alan Wace, com mais distanciamento, podia reconhe-cer que o fôlego dado ao unitarismo não deixou de

116

animar, em medida bem menor, é verdade, a corrente antagônica:

De fato têm surgido alguns estudiosos em-penhados em empregar as evidências arqueo-lógicas em favor de uma crítica disruptiva de Homero, rejeitando algumas passagens como sendo arqueologicamente impossíveis, ou de datação recente, e portanto interpo-ladas.233

À primeira vista, temos a impressão de um iden-tidade natural entre as escavações do solo, que trazem à luz diferentes camadas históricas, e o propósito “se-paratista”, que buscava os sucessivos estratos tempo-rais no texto. A realidade, contudo, é que os analistas em geral mantiveram certa distância da arqueologia, porque, como foi dito antes, estavam mais preocu-pados em ver os poemas como produtos de certas si-tuações históricas e do folclore popular, e não como simples retratos de uma sequência de períodos. Entre as poucas exceções estava o alemão Karl Robert, au-tor da obra Estudos da Ilíada [Studien zur Ilias], de 1901. Robert analisou os vários tipos de armamentos usados pelos heróis e, com base no confronto com as evidências arqueológicas, propôs que os armamentos micênicos (como o escudo maior, que dispensava ou-tras proteções) pertenciam a uma fase anterior à dos armamentos jônicos (como o escudo menor, a cou-raça e as caneleiras). A partir daí, propôs uma “Ilíada original de cerca de três mil versos, em dialeto eólico,

117

com armamento micênico, que se expandira em três estágios principais”.234 Esse tipo de visão teve influên-cia sobre o já mencionado Walter Leaf, a princípio reticente, mas que depois a explorou na reedição de seus comentários à Ilíada (o volume dois revisto saiu em 1902), e também em dois livros posteriores, Troia: um estudo da geografia homérica [Troy: a study in Ho-meric geography, 1912] e Homero e a história [Homer and history, 1915]. Ainda em 1950, data da publica-ção do conhecido Homero e os monumentos [Homer and the monuments], de Hilda Lorimer, esse enfoque podia ser encontrado, resultando na defesa da “autoria múltipla”, como acontecerá também no já citado A história e a Ilíada homérica, de Denys Page, de 1959. De todo modo, firmava-se ainda assim a impressão de descompasso e declínio da crítica analista: o próprio Leaf confessava a essa altura certa simpatia “pela rea-ção unitarista” – embora discordando dela – “como protesto contra as extravagâncias de uma teorização descontrolada”.235

A entrada definitiva, porém, dos unitaristas no de-bate não trouxe a tão esperada solução para a “Ques-tão Homérica”, porque, nos dizeres do mesmo Leaf, “o unitarismo não traz a unidade”... Eles davam, de fato, a ênfase necessária à coesão e coerência dos poe-mas de Homero, à sua inegável força enquanto con-junto acabado (minimizando as discrepâncias), mas trabalhavam com uma visão de autoria anacrônica, dependente do uso da escrita, por mais que falassem de poesia oral. Os analistas, por sua vez, haviam cha-mado a atenção para o caráter compósito dos épicos

118

(destacando – e exagerando – suas inconsistências e contradições), frutos de uma tradição em movimen-to – de um processo de fusão, acúmulo, expansão –, mas mantinham o propósito de determinar cientifi-camente cada camada no tempo, e a ideia fixa de que o texto sofre uma corrupção. As abordagens, como vimos, eram muitas vezes menos antagônicas do que pareciam, mas predominava um clima de rivalidade, bem descrito por Martin Nilsson no calor da hora:

As visões e os métodos diferem entre si de modo embaraçoso, de modo que o que é escrito por um grupo de estudiosos de Ho-mero parece quase não existir para outro, empenhado em interpretar as mesmas obras poéticas. Às vezes proclama-se a falência dos estudos homéricos, e o desacordo entre os resultados de diferentes estudiosos é tomado como prova de que a solução dos problemas está fora de alcance.236

A solução já havia sido indicada por Milman Parry cinco anos antes da publicação do livro de Nilsson, que cita uma única vez o trabalho do norte-america-no, sem ter total consciência de seus desdobramentos. Ela decorria de uma investigação detalhada do estilo da poesia homérica, estilo que ia ao encontro da ora-lidade homérica, tão comentada desde o século XVIII – e vigorosamente defendida por Wolf –, mas efetiva-mente pouco compreendida em seu modo de operar. O fato é que tanto analistas quanto unitaristas traíam,

119

em suas posições, um olhar da cultura letrada, segun-do a qual um texto é sempre fixo, e uma obra, original. Como diz Joachim Latacz,

Nenhuma das duas facções percebia a falha central da lógica que adotavam, isto é, que ao mesmo tempo que admitiam uma gênese oral dos épicos, em suas argumentações pres-supunham a forma de um texto moderno, junto com a abordagem moderna da produ-ção de um texto (...); eles portanto aplicavam (às vezes de uma maneira bastante subjetiva) a obras antigas caracterizadas pela oralidade padrões de lógica, estrutura, estética e origi-nalidade derivados da poesia escrita.237

Ambos os grupos operavam, no fundo – para reto-mar os termos de Albert Lord –, com “entidades rígi-das”, “monolitos”, sem se dar conta de que não havia hierarquia entre os textos, mas uma “substância pro-teica e maleável”.238 Os analistas viram com acuidade a presença de uma longa tradição e um repertório va-riado, mas não conseguiram se libertar da imobilidade da escrita e explicar adequadamente as inconsistências narrativas e linguísticas, para não falar das repetições; os unitaristas perceberam a importância da elaboração poética, mas não conseguiram concatená-la devida-mente ao papel da tradição por detrás do poeta: este era ainda o “criador”.239

*

120

Depois de Parry, muitos estudiosos continuaram a se definir como “unitaristas” e “analistas”, mas esses rótulos já não faziam mais sentido.240 Ainda assim, é preciso destacar neste panorama a presença da chama-da neoanálise, que representava uma tentativa de su-peração consciente da “falência da teoria separatista”, por um lado, e das “concepções ingênuas dos antigos unitaristas”, tentando extrair o melhor de cada um; era assim, ao menos, que se posicionava o pai dessa nova vertente e responsável por assim batizá-la – o grego Johannes Kakridis, autor do livro Pesquisas ho-méricas [Homeric researches], publicado em 1949, na Suécia, por intercessão do citado Martin Nilsson.241 A intenção principal era preservar o desenho artístico da Ilíada e da Odisseia – como queriam os partidários da unidade –, conjugando com isso a investigação da tradição épica que estava logo por detrás da criação homérica, num movimento tipicamente analista de busca pelas fontes. Daí a “nova análise”: o trabalho voltado para o “encaixe” de partes de origens diver-sas estava mantido, mas agora é a visão literária que preside ao tratamento dado às contradições, e não um olhar simplesmente “lógico”.242 Nos dizeres do próprio Kakridis, essa análise trabalhava agora com “a crença no gênio do poeta [Homero]”:

Assim, o propósito da neoanálise não é de-sintegrar a épica homérica em inúmeras pe-quenas partes e então se comprazer em ata-car “aquele que remenda”, o “incapaz que faz mal feito”, o “tolo compilador” e todos os

121

outros nomes que foram aplicados ao poeta da Ilíada e da Odisseia. O propósito maior da neoanálise é, mesmo quando busca dis-tinguir as fontes e modelos de Homero, en-tender melhor o próprio Homero, apreciar a arte e a técnica da nossa Ilíada e da nossa Odisseia tal como chegaram a nós. Dessa for-ma, a teoria reconcilia as duas partes confli-tantes, os separatistas e unitaristas.243

O método, no entanto, baseava-se na busca – ain-da arbitrária – de antigos “protótipos”, mal adaptados – sempre a dissonância... – aos novos contextos. Em seu livro, a investigação do mito de Meleagro repre-senta o verdadeiro “tour de force” da visada neoanalis-ta, que pode ser resumida assim:

Se numa pesquisa deste tipo percebe-se que um ou mais dos motivos de uma cena é injustificável e, além do mais, se entram em choque, em certa medida, com o plano poético da cena, então podemos suspeitar que por detrás da composição homérica se esconde uma criação mais antiga, um protó-tipo, cujos detalhes Homero não foi capaz de assimilar ao novo ambiente. (...) Se ele tem que remodelar uma composição mais antiga, tomada de outro épico, ele naturalmente vai tentar adaptar a cena a seu novo contexto e subordiná-la a seu propósito poético. Nessas circunstâncias, porém, será mais difícil para

122

ele ter êxito e então ficará sujeito a descui-dar, aqui e ali, de elementos de uma tradi-ção mais antiga que não podem se ajustar ao novo ambiente.244

Como o próprio Kakridis reconhece, no entan-to, o método só funciona onde “as marcas da remo-delagem não foram completamente obliteradas”: só por meio desses indícios podemos ser levados a ver a dependência de Homero em relação a seus predeces-sores. Mas a determinação dessas assimilações imper-feitas, logo se vê, é uma continuação do exercício de decomposição dos velhos analistas.

Em sua forma mais desenvolvida, a neoanálise passou a trabalhar com a relação entre a Ilíada e as epopeias perdidas do chamado “Ciclo Épico”, sem-pre na tentativa de determinar como cenas, motivos e temas originais foram reaproveitados, mais ou me-nos imperfeitamente, na poesia homérica. Não sur-preende que o enfoque tenha florescido em ambiente de língua alemã, primeiro com H. Pestalozzi e seu A Aquileida enquanto origem da Ilíada [Die Achilleis als Quelle der Ilias, 1945], depois com o já citado Schade-waldt e o artigo “Um olhar sobre a criação da Ilíada: Ilíada e Memnonida” [“Einblick in die Erfindung der Ilias: Ilias und Memnonis”], de 1951,245 e sobretudo com Wolfgang Kullmann e seu As origens da Ilíada [Die Quellen der Ilias, 1960] – e tampouco surpreen-de que só mais recentemente tenha se aproveitado das contribuições da crítica oralista, com nomes como o do próprio Kullman e Jonathan Burgess.246

6.

A CRÍTICA ORALISTA NO SÉCULO XX

O trabalho de Milman Parry, produzido entre 1925 e 1935, foi decisivo para definir os novos rumos

da “Questão Homérica”. Os detalhes de seu processo de descoberta vou deixar, porém, para a segunda par-te, quando pretendo descer aos problemas específicos do estilo formular e suas implicações para a interpreta-ção poética. Aqui, quero apenas esboçar como a crítica oralista se estabeleceu na segunda metade do século XX, com novas ideias sobre a oralidade em Homero e sua relação com a escrita.

Vimos que, até o século XVII, a poesia homérica era de modo geral vista como produto letrado, isto é, como obra engendrada pela mente criativa de um poe-ta segundo o modo escrito de composição. Homero, em outras palavras, apesar de ter vivido em uma época distante e – para a nova mentalidade – menos “evo-luída”, operava do mesmo modo que Virgílio, Dante, Milton ou Camões. As diferenças no seu estilo e no

124

caráter geral das suas narrativas se deviam não a um tipo de poesia diferente, mas sim a um poeta especial, marcado pela inventividade e maior liberdade em re-lação às regras do bem-escrever. Essa situação (tam-bém vimos) transformou-se a partir do século XVIII, quando foi ganhando força a visão de que Homero era na realidade um cantor dos seus poemas, e que essa atividade implicava uma composição oral, que ignora a escrita. Sua poesia associava-se agora a um primiti-vismo idealizador, que queria separá-la do letramen-to, para que assim surgisse mais autêntica e bela, ao mesmo tempo que postulava uma interferência tardia da escrita, a única capaz de lhe conferir uma extensão ampla e uma estrutura complexa. A oralidade, enfim, não podia ser pensada de forma autônoma: ela era a escrita sem seus “defeitos”, mas também sem suas “qualidades”.

Ainda, portanto, que a oralidade surgisse como novidade importante, permanecia um quadro confuso entre produção ágrafa e registro alfabético: se Homero era um poeta oral, mas hoje somos capazes de ler seus poemas graças a uma longa tradição de transmissão escrita, de que forma esses dois modos de composição interagiram para produzir a Ilíada e a Odisseia? Ana-listas e unitaristas tentaram responder de diferentes maneiras a essa questão, mas suas respostavam foram sempre limitadas pelo fato de que, na grande maioria dos casos, a oralidade era sempre uma abstração – ne-nhum dos críticos conseguia traçar um quadro nítido de como um cantor oral como Homero opera, quais as características e circunstâncias da sua apresentação,

125

que marcas isso deixa no texto, quais as consequências para nossa ideia de estabilidade de uma obra etc.

Foi o trabalho comparativo – presente, como vi-mos, pelo menos desde Lachmann, que ligara Homero à Canção dos Nibelungos – que possibilitou uma nova compreensão das relações entre o texto oral e o escrito na poesia homérica. Após a conclusão do seu douto-rado, O epíteto tradicional em Homero, em 1928, Mil-man Parry tomou consciência de que a distinção com que trabalhava entre estilo individual e estilo tradi-cional era na realidade uma distinção entre estilo oral e estilo escrito (note-se já a presença, nos títulos dos seus artigos fundamentais de 1930 e 1932, do termo “oral”), e de que a analogia com os cantos sul-eslavos – integrantes de uma tradição oral ainda viva na então Iugoslávia – podia ajudar a iluminar o modo de com-posição e transmissão da Ilíada e da Odisseia. Segundo o próprio Parry, a indicação veio do linguista francês Antoine Meillet, responsável por lhe apresentar na de-fesa da tese o esloveno Matija Murko (à época profes-sor da Universidade de Praga), que publicaria no ano seguinte a obra A poesia popular épica na Iugoslávia no começo do século XX [La poésie populaire épique en You-goslavie au début du XXme siècle]. Como reconheceu posteriormente o norte-americano, “foram os escritos do professor Murko, mais do que os de qualquer ou-tro, que nos anos seguintes me levaram ao estudo da poesia oral e aos poemas heroicos dos sul-eslavos”.247

Murko fazia parte de uma tradição já longa de re-colha e pesquisa dos cantos orais que eram entoados principalmente nas áreas da Bósnia-Herzegovina e de

126

Montenegro, na língua servo-croata. A produção épi-ca existia na região desde pelo menos o século XIII, e passou a ganhar maior destaque no final do século XVIII, com a valorização da poesia popular. Uma das canções heroicas chegou a ser traduzida por Goethe e publicada, em 1778, no As vozes dos povos em can-ções [Stimmen der Völker in Liedern], de Johann Her-der. Na esteira do entusiasmo romântico, o linguista Vuk Karadzic fez uma reunião em 1814 e 1815 das canções nacionais sérvias (as cristãs), fortalecendo a comparação da épica sul-eslava com Ossian e Home-ro. Portanto, quando Murko fez suas viagens a esses locais, em 1909, 1912 e 1913, com a intenção de es-tudar in loco essas produções, e depois publicou em alemão os relatos das suas experiências, estava longe de ser um pioneiro, e a analogia com a Ilíada e a Odisseia já estava proposta, tendo sido inclusive levantada pelo já citado homerista Engelbert Drerup.248

O trabalho de Murko, no entanto, padecia do mesmo problema de outros que buscavam registrar tradições poéticas vivas (tal como Karadzic antes de-les), para fins de comparação: o material tinha que ser anotado por escrito, sendo necessário, portanto, que as canções fossem ditadas de modo pausado, ou que o escriba fosse versado em estenografia e tomasse nota do canto (às vezes, sem o conhecimento do cantor). É verdade que Murko relata o emprego de um “aparto fonológico” em suas viagens, que lhe fora oferecido pela Academia Vienense, mas ele mesmo afirma logo a seguir que a máquina só tinha capacidade “para frag-mentos de menos de 30 versos”.249 Mesmo com essas

127

limitações, ele consegue fazer um trabalho de con-fronto entre diferentes versões de um mesmo canto e chegar a conclusões que antecipam as reflexões poste-riores – influenciando, como vimos, um autor como Maurice Bowra, em seu livro Tradição e planejamento na Ilíada.

O componente tecnológico foi, assim, fundamen-tal para diferenciar o trabalho de Parry dos demais. Parry conseguiu obter de uma empresa norte-ameri-cana um aparelho de gravação de voz que lhe permi-tia registrar longas apresentações, em seus ambientes originais e com todos os elementos envolvidos. Isso conferia ao seu empreendimento um caráter de do-cumentação inédito, e possibilitava a constituição de um acervo inestimável para os estudos literários. Com o gravador em mãos, ele se voltou para a coleta do material, realizada durante duas viagens à região: a pri-meira no verão de 1933, e a segunda, bem mais longa, de junho de 1934 a setembro de 1935, em que con-tou com dois assistentes: o jovem aluno Albert Lord, recém-formado em Harvard, e o cantor local Nikola Vujnovic, responsável por fazer a transcrição das gra-vações. A atenção deles voltou-se sobretudo para a tra-dição poética muçulmana, mais profissional e menos influenciada pela escrita que a cristã, além de mais capaz de produzir cantos longos (especialmente du-rante o festival do Ramadã).250 Com isso, garantiam-se condições mais favoráveis à comparação com a épica homérica. De fato, segundo as palavras do próprio Parry, a sensação, ao ouvir os sul-eslavos cantarem, era “de estar ouvindo, de certa maneira, Homero”,251 e os

128

poetas iletrados Cor Huso, cego e renomado, já morto àquela altura, e seu discípulo Avdo Mededovic, que Parry conheceu pessoalmente e era capaz de recitar épicos da extensão da Odisseia (O casamento de Smai-lagic Meho chegou a 12.311 versos), pareciam-lhe os mais acabados equivalentes do poeta grego.

A morte prematura de Parry, em dezembro de 1935, aos 33 anos, impediu que ele desse continui-dade ao trabalho comparativo, que ficou a cargo de Lord. Entretanto, podemos dizer que as linhas principais da sua pesquisa já apontavam para uma divisão rigorosa entre oralidade e escrita, que impli-cava não só uma diferença de estilo e de abordagem crítica, mas também cultural e mental. Isso é o que se percebe da leitura do único artigo que publicou, em vida, sobre a sua pesquisa na então Iugoslávia, “Versos inteiramente formulares em cantos heroicos gregos e sul-eslavos”, de 1933.252 Nesse texto, antes de fazer a abordagem técnica e detalhada das linhas estudadas (sua marca registrada), Parry redige uma pequena introdução em que propõe o rótulo “oral” como o mais adequado para classificar aquele tipo de poesia que era chamada de “popular”, “primiti-va”, “natural” ou “heroica”; além disso, ele expõe a ideia de que “o uso da escrita representa um grande acontecimento cultural”, citando a obra do francês Marcel Jousse, O estilo oral rítmico e mnemotécnico dos verbo-motores [Le Style oral rythmique et mnémo-technique chez les Verbo-moteurs, 1925], para quem a civilização letrada havia sido precedida por uma civilização oral.253

129

Com base nesse enfoque de viés antropológico, Parry defende que a oralidade implica um modo di-verso de composição e de recepção – mais do que isso, de que é possível fazer uma abordagem geral da poe-sia oral, em oposição àquela que é escrita. Veja-se este trecho, que integra o trabalho que estava em curso à época de sua morte:

O objetivo desta coleção de textos orais [sul--eslavos] foi estabelecido não com a ideia de contribuir com as já vastas coleções desse tipo de poesia, mas sim de obter provas com bases nas quais se poderia deduzir uma série de generalidades aplicáveis a todas as poesias orais; que permitiria, no caso da poesia em que não há provas suficientes – externas aos poemas – sobre a maneira segundo a qual fo-ram compostos, dizer se essa poesia é ou não oral, e como deve ser compreendida no caso de ser oral.254

Chamam a atenção, portanto, a proposição gene-ralizante, que opera com a dicotomia oral/escrito (e vem se juntar a uma divisão mais profunda, de or-dem mental e cultural), e a exigência de um padrão específico para a avaliação da criação ágrafa – dois eixos fundamentais no desenvolvimento dos estudos orais. Em relação a Homero, elas se desdobravam nas seguintes perguntas: sua poesia é de fato puramente oral? Quais são os indícios desse modo de composi-ção? Se há a interferência da escrita, como ela se deu,

130

e que transformações trouxe consigo? Como o crítico deve se equipar para abordar uma poesia não escrita? Parry não teve tempo para responder com calma a to-das essas perguntas e seus desdobramentos, mas fica claro que ele trabalhava com as seguintes hipóteses: a poesia homérica era sim oral, porque a técnica formu-lar por ele pesquisada “só poderia ser criada e utilizada por poetas orais”; sua poesia deve ter sido ditada, para assim ganhar a forma escrita; e era preciso trazer para a leitura dessa épica “a percepção do estilo que é pró-prio da canção oral”, sob pena de haver interpretações equivocadas.255

O trabalho de Albert Lord, ao contrário do de Parry, foi essencialmente de literatura comparada, cadeira que ocupou na Universidade de Harvard de 1950 a 1983, dedicando-se muito mais à poesia servo--croata do que à homérica.256 Lord retornou à região dos Bálcãs em 1937 e algumas outras vezes depois do fim da Segunda Guerra, estendendo a pesquisa à Al-bânia e à Bulgária, e podendo registrar muitos outros cantos – inclusive do celebrado Avdo Mededovic, que conseguiu ouvir novamente em 1951, dezesseis anos depois do primeiro encontro. Com a análise desse ma-terial defendeu seu doutorado em 1949, simultanea-mente à preparação do volume primeiro das Canções heroicas servo-croatas [Serbocroatian heroic songs], que saiu em 1954 – um pouco depois do já comparativo e importante Poesia Heroica [Heroic poetry] de Maurice Bowra, de 1952.

Mas foi apenas em 1960 que Lord publicou sua principal obra, O cantor de histórias [The singer of ta-

131

les], e em 1962, o capítulo “Homer and other epic poe-try”,257 que tiveram grande influência sobre os estudos sobre a oralidade (não apenas sul-eslava e homérica), selando a abertura de “um campo comparativo de vas-tas proporções”.258 Apesar das afirmações feitas em sua abertura – “Esse é um livro sobre Homero. Ele é nosso Cantor de Histórias” –, deve-se dizer que não se trata propriamente de um estudo sobre a poesia homéri-ca. Das duas partes em que se divide, “A teoria” e “A aplicação”, Homero figura de fato na segunda apenas, ocupando cerca de 60 num total de 300 páginas. É a teorização, baseada no que viu na poesia servo-croata, que corresponde à substância do livro. É aí que encon-tramos as reflexões sobre treinamento e apresentação do cantor, a análise do estilo marcado por fórmulas que se repetem, o problema da existência de variantes e a abordagem da relação entre escrita e tradição oral.

O capítulo sobre a performance foi o responsável por estabelecer a ideia de que o cantor não era um mero reprodutor de composições, mas um criador que compunha no momento em que fazia sua apresenta-ção, apoiando-se para tanto numa técnica especial, a da dicção formular criada pela tradição, segundo a qual não havia nem um modelo fixo de texto, a ser rigorosamente respeitado, nem a possibilidade de uma “improvisação” pura e simples. A esse ponto funda-mental da obra – que determina a existência do que Lord chama de “multiformidade”259 – vieram se juntar outros dois, também pouco desenvolvidos por Parry: a presença de “temas” como recurso importante dessa criação em ato e o emprego do ditado.

132

Sobre os temas, Parry já havia sugerido, num ar-tigo de 1932, que “na prática o poeta oral não se li-mita de modo algum a tomar emprestado apenas a fórmula; ele antes emprega também passagens inteiras já ouvidas antes”.260 A questão volta a aparecer na sua resenha ao livro de Walter Arend, de 1933, Cenas tí-picas em Homero [Die typischen Scenen bei Homer],261 e posteriormente em suas anotações de viagem, quando já trabalha com a palavra “tema” para se referir aos blocos de versos padronizados para descrever cenas recorrentes das narrativas épicas.262 É seguindo seu antigo mestre, como reconhece,263 que Lord mantém a nomenclatura, propensa a criar confusão, já que “tema” em literatura designa o assunto de uma obra, e não estruturas repetidas. Como quer que seja, Lord faz uma análise detalhada, com fartos exemplos e quadros comparativos, do uso dos temas e suas variantes na poesia servo-croata, ampliando o estudo de Parry so-bre a fraseologia repetitiva e tradicional da poesia oral.

Foi a chamada “teoria do texto oral ditado”, no entanto, já apresentada num artigo de 1953,264 que teve repercussão maior, porque retomava a sempre problemática questão da passagem da oralidade para o registro escrito. Para Lord, segundo o que viu na Iugoslávia, não era possível que o cantor proficiente na sua arte dominasse também a escrita, porque os hábi-tos mentais desta impunham o respeito a uma forma estável e representavam o fim da criação na perfor-mance; a esse respeito, vejam-se estas duas passagens:

133

Quando a escrita foi introduzida, os cantores épicos, mesmo os mais brilhantes deles, não perceberam suas “possibilidades” e não cor-reram para se beneficiar dela. Talvez fossem mais sábios do que nós, porque não se pode escrever uma canção. Não se pode escravizar Proteu; prendê-lo é o mesmo que destruí-lo.

Os cantores que aceitam a ideia de um tex-to fixo se desviam dos processos da tradição oral. Isso significa a morte da tradição oral e o surgimento de uma geração de “cantores” que são mais reprodutores do que re-criado-res.265

Lord não aceita que Homero tenha sido um poeta “de transição”, ao mesmo tempo oral e letrado, como alguns estudiosos sugeriam. Sobre essa possibilidade de ser um cantor que escreveu seus poemas, combi-nando as duas técnicas, ele diz:

Acredito que a resposta [a essa questão] deve ser negativa, porque as duas técnicas são, segundo proponho, contraditórias e mutua-mente excludentes. Uma vez perdida a técni-ca oral, ela nunca mais é recuperada. A téc-nica da escrita, por sua vez, não é compatível com a oral, e as duas não podem se combinar para formar uma terceira técnica, “de tran-sição”. (...) Não é possível que uma pessoa seja ao mesmo tempo um poeta oral e letrado,

134

em qualquer momento de sua carreira. Es-sas duas coisas, por sua própria natureza, são mutuamente excludentes.266

Mais adiante, Lord vai afirmar, mais uma vez, que o texto homérico não representa esse estágio de transição: seu compositor era um poeta oral – e não uma “personalidade cindida, com metade de seu en-tendimento e de sua técnica presa à tradição, e a outra metade presa a um Parnaso de métodos literários” –, e as provas disso podiam ser encontradas nos próprios poemas.267

Diante disso, e uma vez tendo visto que era pos-sível tomar nota do canto enquanto o poeta recitava, Lord retoma aquilo que já havia proposto no artigo de 1953 (reafirmado o que Parry já sugerira antes dele): as duas epopeias gregas seriam textos orais di-tados, frutos da atividade conjunta de um escriba e um cantor iletrado na segunda metade do século VIII a.C. Para retomar sua bela metáfora, temos então um “Proteu fotografado”, porque se registrava assim uma performance que, como qualquer performance, jamais poderia ser repetida:

Dessa maneira se faz um texto a partir das palavras de uma canção. Era o registro de uma performance especial – uma perfor-mance solicitada sob circunstâncias inco-muns. Tal tem sido a experiência de muitos cantores em muitas terras, desde o primeiro texto registrado, creio eu, até a época pre-

135

sente. E o que foi dito a respeito de outras performances pode ser dito dessa também; porque, embora posta por escrito, ela era oral. O cantor que a ditou era seu “autor” e ela refletia um momento singular na tradi-ção. Ela era única.268

Lord reconhece que essa circunstância incomum afeta a apresentação, por causa do ritmo pausado e da ausência de acompanhamento instrumental. Porém, conforme pôde constatar com Avdo Mededovic, o mecanismo do ditado, se por um lado não trazia van-tagens para o cantor na criação de cada verso, por ou-tro representava grande estímulo para a produção de canções mais longas e elaboradas, em razão da ausên-cia de pressões externas, como são as reações da plateia e a limitação do tempo de recitação.269

A conclusão é que essa “fotografia” não é o retrato de uma performance de fato, algo possível só recente-mente, com o surgimento das máquinas fonográficas, e que o texto ditado representa portanto uma apre-sentação de “segundo grau”, com resultados variados:

Nas mãos de um bom cantor e de um es-criba competente, esse método produz um texto mais longo e melhor do que aquele da performance de fato (...). Parece-me que é aí que devemos situar mais logicamente os poemas homéricos. Eles são textos orais dita-dos. No interior desse tipo de texto podemos diferenciar aqueles feitos com habilidade dos

136

feitos de modo inepto. Os primeiros terão versos regulares e completude narrativa. Os segundos terão muitas irregularidades nos versos e a estrutura geral será apocopada.270

Nesse ponto, Lord retoma a discussão sobre a exis-tência de um poeta oral letrado. Ainda que admita que textos orais sejam assim produzidos – isto é, pela pena do próprio cantor – e dê a eles o nome de “textos orais autógrafos” (correspondendo a um terceiro grau), o estudioso norte-americano afirma que, pela sua expe-riência, tais poemas são inferiores aos ditados, o que impede uma analogia com os grandes épicos homéri-cos:

Ao se colocar uma caneta nas mãos de Ho-mero, corre-se o risco de fazer dele um mau poeta. O cantor não apenas tem um méto-do de composição perfeitamente satisfatório com a já bastante desenvolvida técnica oral, como é efetivamente atrapalhado e restrin-gido pela escrita. (...) Não posso aceitar Ho-mero como alguém semiletrado, o que quer que isso signifique. Sua habilidade requer que seja ou o melhor dos poetas orais ou o melhor dos poetas literários, não um híbri-do indefinível. Qualquer um que esteja de fato familiarizado com textos “semiletrados” resistiria fortemente, acredito eu, a toda e qualquer pressão no sentido de situar Ho-mero nessa categoria.271

137

Finalmente, Lord tenta fornecer um motivo para que os poemas homéricos fossem postos por escrito. Segundo sua visão, a iniciativa não poderia partir de Homero nem de seus ouvintes: para eles, não havia o risco de esse material se perder, nem a necessidade de um auxílio mnemônico, menos ainda a visão de que determinada versão representava a forma acabada de uma narrativa. A sugestão é de que o registro da épica veio em decorrência da observação ou da notícia dessa prática no Oriente.272

O tópico da relação entre oralidade e escrita nos mostra, em especial, como Lord (mesmo reconhe-cendo logo de saída a grande diferença qualitativa entre Homero e os servo-croatas: “entre os cantores dos tempos modernos não há nenhum igual a Home-ro”)273 – como Lord aplicou com grande liberdade a comparação com a poesia sul-eslava, reforçando pela generalização aquele “fosso” entre oralidade – com sua marcas textuais específicas – e escrita, além da exi-gência de um modo diverso de abordagem da criação iletrada. Daí afirmações como a de que “a técnica for-mular nas poesias grega e sul-eslava são de modo geral idênticas e operam com os mesmos princípios” e de que “essa é, segundo se sabe agora, a prova mais certa da composição oral”, o que implica “deixar de aplicar a ela os clichês de uma outra crítica”.274 A formularida-de estudada por Parry era índice garantido da oralida-de, e se contrapunha ao que era quase que uma forma de pensamento diferente: a escrita. O texto ditado in-troduzia esta salvaguardando aquela. O resultado foi a formação de uma espécie de “credo oralista”, que o

138

estilo simples, claro e nada acadêmico de Lord ajudou (à sua revelia) a propagar. É bom lembrar que a tese de Parry fora escrita em francês, e as outras publicações em sua língua haviam saído apenas em periódicos es-pecializados. Até a edição em livro, em inglês, de toda a sua produção, em 1971, foi a obra de Lord que se impôs como principal referência, com suas teses prin-cipais só sendo revistas e modificadas em dois livros da década de 90, um deles póstumo.275

Paralelamente ao trabalho de Lord, o helenista James Notopoulos desenvolvia, na Inglaterra, estu-dos em que não só estendia a comparação à moderna poesia heroica de Creta e demonstrava o caráter oral dos “Hinos homéricos” (com taxas de formularidade de 80% a 90%, mesmo nível de Homero e Hesío-do),276 mas em que, sobretudo, buscava determinar a especificidade da literatura oral, comportando-se, assim como Lord, com “uma lealdade quase fanática ao mestre [Parry]”.277 Merecem destaque dois artigos publicados num curto espaço de tempo, em que bus-cava estabelecer os princípios de uma crítica oralista: “Parataxe em Homero: uma nova abordagem da críti-ca literária em Homero” [“Parataxis in Homer: a new approach to Homeric literary criticism”], de 1949, e “Continuidade e interconexão na composição oral ho-mérica” [“Continuity and interconnexion in Homeric oral composition”], de 1951. O modo como abre o primeiro artigo resume a visão defendida:

Este artigo coloca a seguinte questão: os mes-mos princípios da crítica literária se aplicam

139

tanto à literatura escrita quanto à oral? A res-posta é “não”. Platão e Aristóteles são os pais do conceito de unidade orgânica (...). Mas em vista da natureza oral da poesia homérica esse critério é válido? Uma investigação da li-teratura até a metade do século V a.C. revela vários graus de unidade envolvidos, e indica que o tipo predominante é o de uma unida-de flexível, paratática e inorgânica, tal como se observa nos poemas homéricos. (...) Este artigo serve de prolegômeno à formulação dessa poética não aristotélica, por meio de uma tentativa de se compreender as bases da parataxe na literatura oral, cuja incompreen-são levou no passado a uma crítica procustia-na de Homero.278

Notopoulos, apoiando-se em estudos anterio-res (principalmente no de B. van Groningen sobre a composição paratática na literatura grega, de 1937), defende que a ausência de articulação cerrada caracte-riza não apenas o estilo e a sintaxe da poesia homérica, mas também o pensamento, apresentando-se princi-palmente como um “estado da mente”, podendo ser percebida também na cerâmica e na arquitetura grega. Na literatura, o resultado disso é que o poeta – con-centrando-se no momento – está sempre mais preocu-pado com as partes do que com o todo, mais com os elementos particulares do que com a integridade do conjunto. A “frouxidão” oral justificava muitas das in-consistências homéricas (como já notara Lord). Diz ele:

140

O domínio imperioso da premência do ver-so e do episódio formata em larga medida o estilo paratático bem como o conteúdo da épica oral. A preparação do poeta vai das fórmulas nome-epíteto a esquemas inteiros. Essa técnica resulta inevitavelmente numa léxis eiroméne, num estilo costurado e aditi-vo, e no emprego paratático desse material. (...) O poeta, por causa dessa técnica verbal, tende a se tornar episódico em seu modo de pensar.279

No artigo de dois anos depois, Notopoulos faz uma abordagem voltada para a apresentação do poe-ma oral, e a “mentalidade paratática” entre como um dos elementos de destaque nesse contexto da impro-visação. A preocupação agora, no entanto, é com os “mecanismos unificadores”, que amarram as diver-sas partes do canto e são característicos da parataxe. Três são discutidos – a antecipação, a retrospecção e a composição anelar –, todos eles apoiados na estraté-gia básica da repetição. Notopoulos claramente deixa de lado aqui a proposição mais generalizante em favor de uma análise do texto e suas formas de articulação, ainda que a exigência de uma crítica própria não seja abandonada.

Outra obra do período que revela forte influên-cia de Parry e Lord – explorando a suposta diferença mental entre uma cultura oral e outra letrada – é Pre-fácio a Platão [Preface to Plato], de Eric Havelock, de 1963. Segundo a tese central aí defendida, o projeto

141

platônico consistia em suplantar, por meio de uma mentalidade racional e letrada, a sedutora “imitação” (a mímesis teatral) da poesia homérica, verdadeira “en-ciclopédia tribal” que se mantinha através da memória e do ritmo. O livro, bem escrito e de leitura agradável, é repleto de passagens peremptórias, como esta:

(...) assim como a poesia, enquanto reinou suprema, constituía o principal obstáculo à concretização da prosa efetiva, havia igual-mente uma disposição mental a que, por comodidade, rotularemos de disposição mental “poética”, ou “homérica”, ou “oral”, que constituía o principal obstáculo ao ra-cionalismo científico, ao uso da análise, à classificação da experiência, ao seu rearranjo na sequência de causa e efeito. Aí está por que a disposição mental poética constitui para Platão o arqui-inimigo e é fácil perce-ber por que ele considerava seu inimigo tão poderoso. Ele está entrando na arena contra séculos de exercitação da experiência rítmica memorizada.

A natureza dicotômica e estanque dessa tese agô-nica (verso x prosa, oral x escrito, concreto x racional, Homero x Platão) não impediu que tivesse boa acolhi-da, e capítulos como “A disposição mental homérica” e “A psicologia da declamação poética” ainda são lidos de forma proveitosa, numa obra que, a despeito do título, serve de introdução mais a Homero do que a

142

Platão. Havelock abordou por outro ângulo a mesma questão em 1982, defendendo explicitamente o que já estava embutido no livro anterior: a ideia de que a in-trodução da escrita representou uma “revolução” cul-tural na Grécia. Ele não estava só: Marshall McLuhan, teórico canadense da comunicação, fizera em 1962, com seu A galáxia de Gutenberg, uma abordagem am-pla – com enorme repercussão – sobre os efeitos da escrita e da tipografia sobre o pensamento humano.

Os trabalhos de Notopoulos e Havelock repre-sentavam apenas algumas das maneiras pelas quais os estudos da oralidade iam sendo alargados e expandi-dos. Ficava evidente a vontade, por parte de muitos, de comprovar as possibilidades da comparação como método produtivo, além da insistência numa cisão en-tre oral e escrito e na investigação da marcas textuais que atestassem uma oralidade inequívoca, a pedir uma crítica também específica. As críticas não demoraram a vir.

O helenista inglês Geoffrey Kirk escreveu, em 1962, uma obra que lidava em profundidade não ape-nas com os problemas tradicionais da crítica homéri-ca, mas também com a teoria Parry-Lord: As canções de Homero [The songs of Homer].280 A parte que mais nos interessa aqui é a primeira, “A épica oral”. Nela Kirk defende que há quatro estágios no ciclo de vida de uma tradição oral: o originário, com cantos mais simples (muito anterior a Homero); o criativo, com poemas mais refinados (a essa época pertenceriam a Ilíada e a Odisseia); o reprodutivo (voltado mais à memorização do que a novas criações); e, finalmen-

143

te, o degenerativo, marcado pela figura do recitador profissional. Com base nessa periodização, Kirk afir-ma que a analogia com a poesia servo-croata não é totalmente válida, porque ela pertenceria – tal qual foi documentada por Parry e Lord – ao estágio reprodu-tivo, “com pouca ou nenhuma composição de canções virtualmente novas”.281 O inglês não deixa de reconhe-cer as “inquestionáveis” semelhanças, como o caráter oral e heroico dos cantos, a presença dos epítetos e a repetição de versos e temas, além da possibilidade de se vislumbrar como opera o cantor oral ao construir suas canções. No entanto, ele aponta para “o efeito de monotonia e falta de imaginação” da poesia sul-eslava, muito mais limitada do que a homérica, resultado provável do fato de que estaríamos diante de técnicas diferenciadas. Segundo Kirk, em Homero a estrutu-ra rítmica e formular mais complexa seria responsável pela maior extensão e menor fluidez dos épicos (algo já sugerido por Parry),282 em comparação com os can-tos servo-croatas.283 Em relação ao “texto oral ditado” proposto por Lord, Kirk também prega cautela no uso da analogia:

(...) não há nenhuma prova concreta de que o ditado foi empregado pelos poetas homéri-cos; é improvável que a escrita e a técnica de confecção de livros pudessem conviver com algo dessa escala nesse período; e, segundo penso, não há prova ou implicação de que um ditado fosse necessário para a composi-ção dos poemas monumentais.284

144

O tópico do texto ditado voltou a ser abordado, nessa mesma década, por Adam Parry, filho de Mil-man, no artigo “Temos a Ilíada de Homero?” [“Have we Homer’s Iliad?”], de 1966, no qual reage tanto à visão de Lord (de um cantor necessariamente iletrado) quanto à “oralidade pura” de Kirk. Para Parry, a analo-gia moderna não pode nos dizer nada sobre o impacto causado pela introdução da escrita na Grécia, porque as condições daquela época não encontram uma per-feita correspondência no mundo moderno.285 Diante da ausência de uma comparação válida, ele propõe que “a Ilíada tenha sido escrita na época de sua composi-ção”. Segundo Parry,

Lord insistiu no ditado como única forma de isso ter acontecido por causa de sua noção equivocada (segundo penso) da impossibili-dade de um bardo que soubesse escrever. (...) [Mas] Parece difícil não ver no uso da escrita o meio e a ocasião para a composição, no es-tilo da improvisação, de poemas que devem ter transcendido sua própria tradição em profundidade e extensão, exatamente como a tradição mesma superou todas as subse-quentes tradições de canto heroico.286

Como se vê, as críticas à corrente oral voltavam às antigas concepções, do grande gênio que reinventa a tradição recorrendo ao alfabeto. O recuo também se deu na discussão sobre o estabelecimento de critérios específicos na abordagem da épica grega, como se vê

145

num artigo importante de 1970, de Bryan Hainswor-th, “A crítica de um Homero oral” [“The criticism of an oral Homer”]. Hainsworth ataca o estabelecimento de uma “lei oral” que “elimina alternativas” e impe-de a presença da “palavra apropriada, da alusão irô-nica, da ênfase significativa”. Na sua visão, Homero apresenta de fato um caráter fortemente episódico, de concentração nas partes, que requer um tratamento especial por parte do intérprete, mas junto com isso se percebe a “arquitetura maior” dos poemas, qualidade compatível com “os cânones da crítica ortodoxa” e que o coloca numa situação especial.287 A posição seria rea-firmada muitos anos depois por Richard Janko, para quem “o método tradicional e o método oralista de ler Homero são plenamente compatíveis e, na realidade, indispensáveis”.288

Trabalhos desenvolvidos fora da área dos estudos clássicos – mas sob o impulso da teoria Parry-Lord – também ajudaram nesse movimento de revisionismo, como é o caso de Poesia oral [Oral poetry], da antropó-loga Ruth Finnegan, de 1977, e A letra e a voz [La let-tre et le voix], do medievalista Paul Zumthor, de 1987. Finnegan está basicamente interessada em combater a generalização, estabelecida a partir dos estudos na antiga Iugoslávia, entre composição oral e composi-ção escrita. A partir de um material vasto, que abran-ge várias tradições poéticas, ela defende que há graus diferentes de letramento e formas variadas de combi-nação entre oral e escrito, que formam um amplo es-pectro e impedem que se pense no cantor oral apenas como um homem iletrado que cria seu canto durante

146

a performance, como queria Lord; em muitos casos, a composição pode ser previamente preparada e total-mente memorizada – além de prescindir das “marcas” supostamente indefectíveis da oralidade. Ainda que distorça e apresente de modo superficial o trabalho de Parry,289 Finnegan traz uma relativização saudável para a discussão.290 O mesmo se pode dizer da obra de Zu-mthor, francês especializado em literatura medieval. Seu objetivo consiste em ir além do texto no estudo da “vocalidade” (termo que prefere a “oralidade”), “fun-ção da voz” que vai muito além dos sinais que deixa por escrito.291 Não é que deixe de investigar esses si-nais: os capítulos sobre o “formulismo”, a “movência”, a sintaxe, estão lá, mas Zumthor está mais preocupado em explorar em detalhes a situação de performance, o papel dos intérpretes, a relação da fala com a escrita, o que – enfim – a atuação oral representa enquanto experiência sensorial, e esse enfoque produz passagens interessantíssimas para o estudioso de Homero.

Foi, no entanto, a partir da década de 80 que se estabeleceram os dois nomes com maior influência nos recentes estudos homéricos, Gregory Nagy e John Foley, ambos discípulos de Albert Lord. Nagy é um helenista prolífico, com inúmeros livros publicados sobre a poe-sia homérica (entre outros temas). Nesse âmbito, suas maiores contribuições podem ser divididas em duas frentes principais, ligadas entre si: uma voltada para a relação entre oralidade e escrita na transmissão e fixação do texto (que supera a teoria do texto oral ditado); e a outra centrada num modo de editar os poemas que leve em conta seu caráter oral. No primeiro caso, ele

147

estabeleceu a hipótese – inverificável, mas bastante ra-zoável – de que a Ilíada e a Odisseia teriam passado por cinco diferentes períodos, que vão apresentando cada vez menos fluidez textual. Segundo a exposição que faz em Poesia como performance: Homero e além [Poetry as performance: Homer and beyond], de 1996, teríamos:292

1. do segundo milênio a.C. à metade do século VIII a.C.: um período mais fluido, sem texto escrito;

2. da metade do século VIII a.C à metade do sé-culo VI a.C.: um período mais formativo ou “pan-helênico”, ainda sem texto escrito;

3. da metade do século VI a.C. ao século IV a.C.: um período de definição, centralizado em Ate-nas, com possíveis “transcritos”;

4. do século IV a.C. à metade do século II a.C.: um período de padronização, com “transcri-tos” ou mesmo “escritos”; e

5. do século II a.C. em diante: um período relati-vamente mais rígido, com “escrituras”.293

Por essa terminologia, o “transcrito” é apenas uma anotação auxiliar ou um registro da performance, que não a substitui; o “escrito”, um pré-requisito para a performance; e a “escritura”, o texto escrito que já existe sem a necessidade da performance.294 Nas pala-vras do próprio Nagy,

(...) esse esquema de cinco períodos na transmissão homérica coloca em jogo, pre-

148

cipuamente, a dimensão da performance, em particular as tradições dos rapsodos, e secundariamente a dimensão do texto en-quanto um derivado da performance, com cada período, um após o outro, refletindo um conceito progressivamente mais estreito de textualidade, do “transcrito” para o “escri-to” e depois a “escritura”.295

Em sua teoria, Nagy destaca o que chama de “im-

pacto ateniense” no terceiro período, que correspon-deria precisamente a uma reforma na performance – apresentada pela tradição como tendo sido levada a cabo por Sólon, Pisístrato ou seu filho Hiparco (con-forme visto no capítulo sobre Wolf ), e determinante para uma maior cristalização dos textos.

Esse quadro teórico está, por sua vez, diretamente associado à segunda frente de seus estudos, que con-siste em pensar uma edição eletrônica de Homero em que todas as variantes, dentro de um mesmo período e de período para período, estejam atestadas, porque – sendo reflexos de performances – apresentam-se como igualmente legítimas:

(...) o objetivo final de propor esse esquema [dos cinco períodos] é estabelecer as bases para uma eventual edição multitexto de Ho-mero, em relação à qual se deve esperar não só que registre variantes, mas também que as relacione, onde possível, a diferentes pe-ríodos na história da transmissão textual.296

149

Vê-se, na obra de Nagy, além da base linguística e do gosto pela sistematização teórica, a influência mui-ta clara de Lord na vontade de privilegiar o tópico da multiformidade produzida pela performance (em de-trimento da busca do autor Homero), características que o fazem deixar de lado uma investigação direta do texto homérico: não há mais a necessidade de uma reconstrução histórica.297 A proposta de uma “edição multitexto” das epopeias, em que as variantes apare-çam em pé de igualdade, talvez seja algo impossível de se apresentar, mesmo eletronicamente, e pode ser uma excessiva abstração da própria performance, que, naturalmente, se resolvia sempre por um único texto. De todo modo, a ideia dialoga com os princípios da “Questão Homérica”, quando Wolf, diante das varia-ções manuscritas, tentava buscar (conforme vimos) um Homero menos “corrompido”, e sintetiza os avan-ços trazidos pela crítica oral no século XX.

Se sobre Nagy a influência de Lord se dá mais em termos da teorização geral, em Foley a ascendência se percebe pela ênfase dada ao trabalho comparativo e antropológico. Não por acaso, foi ele o responsável por levar adiante as pesquisas sobre a poesia servo--croata.298 Foley defende basicamente um revisionismo da teoria Parry-Lord, não só afastando-se da “Grande Divisão” Oral x Escrito (em favor de um “espectro de formas” ou “paleta variada”) e privilegiando o “idio-ma” tradicional expressivo (em detrimento de marcas textuais pré-definidas),299 mas, sobretudo, destacando a importância da recepção e do que chamou de “re-ferencialidade tradicional”. Sobre a recepção, diz ele:

150

Como então devemos ler por detrás dos sig-nos tradicionais de Homero? Uma resposta efetiva a esse formidável desafio depende de reconhecermos que composição e recepção são duas faces da mesma moeda, e que isso por sua vez leva necessariamente ao enfoque da dinâmica especial da linguagem ou modo de falar de Homero (e de sua tradição). Ao perseguir essa meta não devemos ter a ilusão de que podemos assumir o papel da audiên-cia original para a leitura desses e de outros poemas, e na realidade tal meta talvez nem seja desejável, uma vez que buscamos ler a poesia homérica em e para nossa época, bem como nos seus termos próprios.300

No entanto, Foley não descarta a necessidade de adotarmos minimamente a perspectiva de quem esta-va imerso na tradição, para assim podermos recuperar as “ressonâncias” de uma arte que produz um cruza-mento constante de referências:

O cerne da nossa investigação depende as-sim da natureza da referencialidade nas obras orais e tradicionais como um todo, e nos textos homéricos em particular. (...) a arte da poesia tradicional é uma arte imanente, um processo de composição e recepção no qual uma parte simples e concreta representa uma realidade complexa e intangível. Pars pro toto, a parte representando o todo (...)301

151

*

Nos últimos 50 anos, talvez a mais consisten-te aplicação da crítica oralista à leitura aprofundada e abrangente de Homero tenha sido aquela feita por Bernard Fenik, que soube mostrar com sensibilidade como o sistema formular tradicional estava a serviço, na Ilíada e na Odisseia, de uma criação artística.302 Fe-nik já publicara, em 1968, o livro Cenas típicas de ba-talha na Ilíada [Typical battle scenes in the Iliad], mas é na introdução à segunda parte do seu Estudos sobre a Odisseia [Studies in the Odyssey], de 1974, que apare-cem suas mais importantes reflexões. Aí ele reconhe-ce que os oralistas “nos ensinaram a ler Homero com novos olhos”, explicando e chamando a atenção para várias características suas, compartilhadas por outras poesias heroicas e mal-compreendidas pelo nosso en-foque letrado. No entanto, diz ele, essas descobertas foram de modo geral utilizadas “de maneira negativa”, e “limites severos foram estabelecidos para as reações subjetivas do leitor”.303 Para Fenik, era preciso que as novas descobertas propiciassem uma leitura da poesia homérica centrada não apenas nos mecanismos estri-tos do estilo oral, mas também no uso que se faz deles para a construção de seus inúmeros episódios, com seus significados específicos.304 Em outras palavras, tratava-se de abandonar o simples estudo da dicção e o enfoque comparativo, com seus resultados abstratos e dogmáticos, e ir para o texto e suas articulações se-mânticas produtivas:

152

A poesia oral desde há muito diz: “Esta pas-sagem não pode ser interpretada dessa e dessa maneira, porque os resultados de nossas des-cobertas tornam uma tal interpretação bas-tante improvável”. É quase como começar a dizer: “Esta passagem deve ser interpretada da seguinte maneira, ela quer dizer o seguin-te, porque as descobertas e os resultados dos estudos da poesia oral sugerem fortemente que o poeta estava compondo e pensando segundo tais e tais princípios”. [Mas] A nova escola não deve apenas fornecer diretrizes ge-rais e estabelecer limites negativos; ela deve, se é realmente frutuosa como parece, ser capaz também de fornecer as bases de uma interpretação positiva de determinadas pas-sagens.305

Fenik acreditava que os paralelos com outras poe-sias orais, embora tivessem seu valor, não serviam de critério firme para a avaliação de Homero, porque a qualidade e a sofisticação de sua poesia eram um caso único. Isso o levou a se apoiar, num livro posterior, na ideia então corrente de que Homero era um poeta per-tencente a um período de transição da oralidade para a escrita, alguém que transcendia a tradição anterior. É interessante notar que esse livro, Homero e a Can-ção dos Nibelungos [Homer and the Nibelungenlied], de 1986, consiste num trabalho comparativo que, de cer-to modo, retoma a aproximação feita por Lachmann na primeira metade do século XIX. A diferença radical

153

entre as duas abordagens, no entanto, fica evidente: se o alemão buscava decompor a Ilíada em suas dezoito canções primitivas, sem se dar conta do funcionamen-to do modo de composição oral, o norte-americano, por sua vez, pode agora se concentrar nas técnicas nar-rativas, sem se preocupar com o problema da gênese. A assunção de uma origem oral é a mesma, mas as implicações disso para a abordagem são diametral-mente opostas: Lachmann quer saber da formação do poema, do seu caráter popular e coletivo; Fenik, dos efeitos poéticos produzidos pela estruturação repetiti-va, conduzida conscientemente pelas mãos do poeta.

NOTAS

1 Ainda assim, Homero recebeu pouca atenção até final do século XVI, por causa do pouco conhecimento do grego antigo e a au-sência de traduções para as línguas vernáculas. Ver John Myres, Homer and his critics. London: Routledge & Kegan Paul, 1958, p. 37-39, e Howard Clarke, Homer’s readers: a historical introduc-tion to the Iliad and the Odyssey. Newark: University of Delaware Press, 1981, p. 56-57.

2 Sigo aqui Joachim Latacz, que considera a “Questão Homérica” um problema do especialista moderno que se reparte nas seguin-tes questões principais: sobre a gênese; sobre a(s) autoria(s); e sobre o(s) modo(s) de composição da Ilíada e da Odisseia. Ver seu verbete “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia of the ancient world – Classical Tradition. 5 vols. Leiden: Brill, 2006, vol. 2, p. 968.

3 Adam Parry menciona também esses três nomes, mas os discute de maneira mais breve. Ver sua introdução em A. Parry (ed.), The making of Homeric verse: the collected papers of Milman Parry. Oxford: Oxford University Press, 1971, p. xii e seguintes.

4 Ver a edição crítica de Victor Magnien, de 1925 (Paris: Librairie Hachette), e sua introdução, especialmente p. xviii e seguintes.

154

Sobre o abade, ver também H. Clarke, Homer’s readers: a histori-cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 150-155. Sobre Dacier e La Motte, ver Noémi Hepp, Homère en France au XVII-me siècle. Paris: Librairie C. Klincksieck, 1968, p. 629-688, e H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 122-125.

5 É J. Davison que atribui a demora na publicação a um possível choque com o teor da obra. Ver seu “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer. London: Macmillan, p. 243. Mesmo sem a indicação, a autoria nunca foi posta em dúvida. Ver V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjec-tures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. xii e seguintes. Ver ainda Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero. Roma: Carocci Edi-tore, 2006, p. 13-14.

6 É interessante notar que o ano de 1715 marca também o início da publicação da tradução da Ilíada por Alexander Pope, na qual o poeta inglês ataca a visão francesa “moderna”, de exaltação da arte virgiliana, em favor da força criadora – e por isso às vezes imperfeita – de Homero.

7 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade p. 1-4. Não é porque Aristóteles elogia o poeta em sua Poética que devemos segui-lo (diz o abade): suas verdades não são infalíveis (ver p. 10-12).

8 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 33.

9 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 45-46; ver também p. 61.

10 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 67.

11 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 72.

12 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 89.

13 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 93-94.

14 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 97 e p. 103-4.

15 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 123-144.

155

16 P. 124.17 O abade parecia não conhecer bem o grego, e se confunde em de-

terminados momentos. Ver V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. xl, xli e 128-129.

18 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. 40-1.

19 Segundo U. Wilamowitz, em seu julgamento sumário da obra do abade, trata-se de “escritos extremamente confusos, que não tiveram impacto algum sobre as opiniões de seu tempo”. Ver seu History of classical scholarship. Translated by Alan Harry, with introduction and notes by Hugh Lloyd-Jones. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1982 (edição original: Geschichte der Philologie, 1921, reeditada em 1998), p. 64.

20 Ver o que diz Luigi Ferreri em seu La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2007, p. 152-3.

21 Para um detalhamento dos nomes, ver o citado livro de Luigi Ferreri, que toma a Questão Homérica como sendo, basicamen-te, o “problema da redação de Pisístrato” (p. 1), e a investiga desde o século XVI até o XVIII, de modo exaustivo, incluindo autores em geral ignorados. Ver também Rudolf Pfeiffer, History of classical scholarship from 1300 to 1850. Oxford: The Claren-don Press, 1976, especialmente parte I, II e III. Contemporâneo do abade, o inglês Richard Bentley (1662-1742), por exemplo, dizia que “esses cantos soltos [a Ilíada e a Odisseia] não foram recolhidos na forma de poemas épicos até a época de Pisístrato, mais de 500 anos depois” (citado no livro de Pfeiffer, p. 158).

22 L. Ferreri, La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecento, p. 145 e seguintes.

23 Ver H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 117-118.

24 Sobre a importância de Vico, diz Wilamowitz: “na medida em que o movimento Romântico provocou uma mudança de ênfase – do indivíduo para o povo, da criação consciente para a marcha impessoal da evolução, das mais altas realizações da cultura para seus humildes primórdios –, foi Vico seu precursor, e graças a ele religião e mito vêm a ser entendidos adequadamente pela primei-ra vez”; ver seu History of classical scholarship, p. 100. Ver ainda

156

Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 15-16.

25 Flávio Josefo é mencionado nas p. 71 e 85, e os Pisitrátidas, na p. 87. Utilizo a edição de Paolo Cristofolini, Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, seguita dal Giudizio sopra Dante. Pisa: Edizioni ETS, 2006.

26 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, p. 71-79 e 85-7.

27 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, p. 95.

28 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, p. 97, e Sonia Lacerda, Metamorfoses de Homero: história e antropologia na crítica setecentista da épica. Brasília: Editora da UNB, 2003, p. 283.

29 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, p. 99.

30 Ver discussão de Sonia Lacerda em Metamorfoses de Homero, p. 290-294.

31 Ver J. Myres, Homer and his critics, p. 59. Em seu livro encon-tramos uma discussão aprofundada sobre Wood (p. 59-66). Para uma ótima abordagem de uma obra importante, que prenuncia em certa medida a de Wood – An enquiry into the life and wri-tings of Homer (1763), de Thomas Blackwell –, ver a Parte II, “Homero, personagem histórico” do livro de Sonia Lacerda, As metamorfoses de Homero, p. 157-231.

32 Cito a partir da edição de 1775: Ver Robert Wood, An essay on the original genius and writings of Homer. London: H. Hughs, 1775, p. v e ix.

33 Ver o que diz em seu livro na p. xiv.34 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.

248.35 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.

249.36 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.

278-279.37 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.

258.38 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.

276.

157

39 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p. 279.

40 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p. 281.

41 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p. 34.

42 Embora faça referência à “tradição oral”, na p. 259.43 Wood faz menção à Querela (sem citar a obra do abade, que pro-

vavelmente desconhecia) quando trata dos costumes de Homero: “Os nossos polidos vizinhos franceses parecem ficar muito ofen-didos com certos retratos da simplicidade primitiva, tão distante dos modos refinados da sociedade moderna, nos quais estão à frente; e a isso podemos parcialmente atribuir o tratamento duro que nosso Poeta recebeu da parte deles em fins do século passado e início deste. Embora eu deva observar que, se nessa época en-controu inimigos injustos e nada generosos, encontrou também alguns amigos calorosos e respeitáveis”. Ver R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p. 144 e nota “e”.

44 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p. 143-180.

45 Sobre sua importância, ver U. Wilamowitz, History of classical scholarship, p. 82.

46 São eles Aristonico (I a.C.), Didimo (I a.C.), Nicanor (I d.C.) e Herodiano (II d.C.). No códice, ao final da maioria dos cantos, informa-se que o comentário marginal deriva das obras desses quatro (daí a alcunha “Comentário dos Quatro Homens”).

47 Citado por Anthony Grafton na sua introdução à edição norte--americana do livro de Wolf. Ver Anthony Grafton, Glenn Most & James Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer. Prince-ton: Princeton University Press, 1985, p. 7-8. O texto original é em latim. Como no caso de Wolf, faço aqui a tradução a partir da versão para o inglês a cargo dos três editores.

48 Villoison publicou não só o texto da Ilíada do Venetus A, com seus escólios, mas também os escólios – considerados menos im-portantes – de outro manuscrito da biblioteca de Veneza (cha-mado “Venetus B”), que também trazia o poema na íntegra. Para mais detalhes sobre o Venetus A e sua história, ver Casey Dué (ed.), Recapturing an Homeric legacy: images and insights from the Venetus A manuscript of the Iliad. Washington: Center for Hel-lenic Studies, 2009.

158

49 Ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 12.

50 Ver em português os livros de Pedro Süssekind, Shakespeare: o gê-nio original (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008), e de Már-cio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998).

51 Ver L. Ferreri, La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecen-to, p. 208-10.

52 Ver J. Myres, Homer and his critics, p. 78-83.53 Veja-se a mais recente edição brasileira, com tradução de Christi-

ne Röhrig e apresentação de Marcus Mazzari (2 vols. São Paulo: CosacNaify, 2011).

54 Ver o que diz U. Wilamowitz, History of classical scholarship, p. 102. Heyne foi muito influenciado por Johann Winckelmann, autor de uma História da arte antiga (Geschichte der Kunst des Alterthums, 1764) e, segundo Pefeiffer, o “iniciador do neo-he-lenismo” (ver History of classical scholarship from 1300 to 1850, p. 167-172). Sobre Winckelmann, ver os ensaios de Márcio Se-ligmann-Silva, “‘Como um raio fixo’. Goethe e Winckelmann: o Classicismo e suas aporias” e “A formação da Alemanha a partir da Grécia: Winckelmann e F. Schlegel”, ambos em O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (São Paulo: Editora 34, 2005).

55 Sobre a influência decisiva sobre Wolf, ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 18-26.

56 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 17.

57 Ver Casey Dué (ed.), Recapturing an Homeric legacy: images and insights from the Venetus A manuscript of the Iliad, p. 28.

58 O título original do projeto era Homeri opera omnia ex recensione F.A. Wolfii, com o subtítulo Prolegomena ad Homerum siue de operum Homericorum prisca et genuina forma variisque mutationi-bus et propabili ratione emendandi. Ver o que diz Hermann Funke no verbete “F. A. Wolf” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1990, p. 523-528. O livro de Wolf teve uma segunda edição em 1876, a cargo de I. Bekker, e uma terceira em 1884, por R. Peppmüller (reimpressa em 1963). Além da tradu-ção para o inglês que utilizo aqui, há uma versão de H. Muchau para o alemão, de 1908.

159

59 Ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegome-na to Homer, p. 57-58, com as notas dos editores, e p. 219. Ver também J. Myres, Homer and his critics, p. 75.

60 Como diz J. Latacz, “(...) embora os componentes individuais fossem bem conhecidos, seu sistema era inteiramente novo, não apenas no conteúdo, mas também na metodologia”; ver seu “Ho-meric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 972.

61 Luigi Ferreri insiste nesse tópico da paternidade; ver La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecento, p. 287-290. Dentro do espírito polêmico e nacionalista, ver também Victor Bérard, Un mensonge de la science allemande. Paris: Librairie Hachette, 1917.

62 Notado por Milman Parry; ver A. Parry (ed.), The making of Ho-meric verse, p. xvi, n. 2.

63 Ver Frank Turner, com o capítulo “The Homeric Question” em Ian Morris & Barry Powell, A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1999, p. 125.

64 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 43-49.

65 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 51.

66 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 53. Ver também o que diz John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day. Cambridge: Cambridge University Press, 1915, p. 306-307, que chama atenção para o fato de que aquelas edições de Homero haviam por essa época se esgotado.

67 Segundo R. Pfeiffer, “nenhuma palavra é mais enfatizada nos Prolegomena do que a frequentemente repetida ‘historia’ [em la-tim]” e “o permanente valor de seu trabalho residia no espírito crítico e na investigação histórica, com a conexão essencial entre ambos”; ver seu History of classical scholarship from 1300 to 1850, p. 174 e 175.

68 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 57-58. A indicação da correspondência entre as etapas e os capítulos dos livros é de minha autoria.

69 A redação é interrompida logo após falar brevemente sobre a ati-vidade de Crates de Malo, contemporâneo de Aristarco (início do século II a.C).

160

70 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 69-70.

71 Do Capítulo 12 ao 35.72 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to

Homer, p. 71-74.73 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to

Homer, p. 75-91.74 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena

to Homer, p. 92-93. Os versos dizem o seguinte, na tradução de Frederico Lourenço (repare-se na tradução tendenciosa do verbo grápho, que pode ter aí apenas o sentido de “registrar”, e não o de “escrever”): “Mandou-o para a Lícia; e deu-lhe para levar sinais ominosos,/ escrevendo muitos e mortíferos numa tabuinha de aba dupla”. Wolf volta à carga nas p. 95-100, discutindo também Il. 7, 175-176, onde se lê (também na tradução de Frederico Lourenço): “Assim falou; e cada um marcou a sua sorte e deita-ram-nas/ para dentro do elmo do Atrida Agamênon”.

75 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 94, nota 38. No trecho imediatamente anterior, Flávio Josefo fala da tradição preservada por escrito entre egípcios, cal-deus e fenícios, contrapondo-os aos gregos, que eram vítimas de “dez mil” destruições, perdendo a memória das ações passadas e começando sempre de novo. O trecho alude claramente à conhe-cida passagem do início do Timeu de Platão, em que se narra o diálogo entre Sólon e um egípcio (20e-26e).

76 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 94-95.

77 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 103.

78 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 104-110.

79 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 111.

80 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 114.

81 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. p. 145 e nota “a”.

82 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 115.

161

83 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 122.

84 Ver notas à página 117 e 124. Sobre se Wolf de fato teve acesso a essa obra, ver discussão de V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade.

85 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 131.

86 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 137 (grifo original).

87 Apresentados por Wolf nas p. 137-8, nota 5, onde cita ainda outras fontes, como Libânio, o Suda, Eustácio e as “vidas” de Homero, todas elas derivadas dessa mesma tradição de atribuição a Pisístrato.

88 Wolf cita ainda um extenso escólio à obra de Dionísio Trácio (II d.C.), Gramáticos gregos (3.29.17-30.17), segundo o qual aci-dentes naturais destruíram e desmembraram os poemas, e que Pisístrato se propôs a dar recompensas para os que lhe trouxes-sem versos de Homero. Reunidos os versos, o tirano montou uma comissão de 72 gramáticos para ordenar os poemas, tendo se destacado na tarefa Aristarco e Zenódoto! A citação é só por “diversão”, diz Wolf, por causa dos dados fantasiosos e anacrô-nicos. No entanto, em sua visão, quem sabe “a diferença entre fábula e história” reconhece “a história por detrás da fábula”. Ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 140-141.

89 Apresentados por Wolf, respectivamente, nas p. 143, nota 15; p. 144, nota 16; e p. 135, nota 4.

90 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. p. 144.

91 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 142.

92 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 127.

93 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 148. Henry Browne chama atenção para o fato de que o próprio Wolf lidava mal com esse “rebaixamento” de Homero: “Ele [Wolf ] ficou tão conhecido como o destruidor da antiga crença em Homero que é difícil perceber como evitou causar estragos a esse venerável nome. Na realidade, toda a sua mente

162

se revoltou contra as conclusões que os fatos, tais quais se apre-sentavam, o obrigavam a aceitar”; ver H. Browne, Handbook of Homeric study. London: Longmans, Green & Co, 1905, p. 145. Browne chega a citar (na p. 146) um trecho do prefácio de Wolf a sua edição da Ilíada, onde este diz que, diante do “colorido uno” dos poemas, “dificilmente alguém poderia sentir mais ódio e indignação contra mim do que eu mesmo sinto”.

94 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 155.

95 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 167.

96 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 173-181.

97 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 182-186.

98 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to, p. 188.

99 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 216.

100 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 158.

101 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 190.

102 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 204.

103 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 209.

104 D. Monro (ed.), Homer: Iliad. 2 vols. Oxford: The Clarendon Press, 1884/1888, vol. 1, p. xxiv e xxv.

105 Ver F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Pow-ell (ed.), A new companion to Homer, p. 128-131.

106 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxiii.107 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to

Homer, p. 123.108 Problemas apontados por D. Monro, Homer: Iliad, p. xxv.109 Como viu J. Myres, Homer and his critics, p. 87-8, e também

John Scott, The unity of Homer. New York: Biblo & Tannen, 1921, p. 65.

110 J. Myres, Homer and his critics, p. 87.111 J. Scott, The unity of Homer, p. 57.

163

112 A expressão é de Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 18.

113 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xviii.114 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to

Homer, p. 27.115 J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopae-

dia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 977.116 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell

(ed.), A new companion to Homer, p. 131.117 H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad

and the Odyssey, p. 161. 118 Alguns autores usam para os analistas também o termo “sepa-

ratistas” ou “separatistas modernos” (por exemplo, M. Nilsson e J. Scott). É bom esclarecer que os “separatistas” (khorízontes) antigos não faziam a “análise” das epopeias, mas simplesmen-te propunham autores diferentes para a Ilíada e a Odisseia, que eram assim “separadas” uma da outra.

119 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 117.

120 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 127.

121 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 128-9 e 132.

122 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 134.

123 A carreira de Wolf em Halle foi interrompida, em outubro de 1806, com a invasão francesa à cidade e o fechamento da uni-versidade. Ele permaneceu os dezessete anos seguinte em Berlim, sem produzir muito; ver John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 309-310.

124 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 75.125 Ver E. Schmidt, “Gottfried Hermann” em Ward Briggs & Wil-

liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-pedia, p. 160-175.

126 A expressão é de Wilamowitz (History of classical scholarship, p. 110).

127 Ver R. Pfeiffer, History of classical scholarship from 1300 to 1850, p. 179. Hermann notou, por exemplo, que o hexâmetro homéri-

164

co evita que uma palavra termine no “quarto troqueu”, para que assim não se gere uma possível pausa, que abalaria o andamento rítmico do verso. Essa “regra” ficou conhecida como “ponte de Hermann”.

128 Os textos menores de Hermann saíram reunidos recentemente em Godofredi Hermanni opuscula. 8 vols. Cambridge: Cambrid-ge University Press, 2010. O sobre as interpolações em Homero encontra-se no vol. 5, e o sobre as repetições, no vol. 8. A seu respeito, ver ainda John Sandys, A short history of classical scholar-ship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 321-323.

129 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxviii e xxix, J. Myres, Homer and his critics, p. 89-90, e F. Turner, “The Homeric Ques-tion” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 134.

130 Ver o que fala dele Wolfhart Unte no verbete “Karl Lachamnn” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 248-259.

131 Citado pelo também analista W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad. 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, vol. 1, p. 1-2, com as justificativas basicamente se referindo a inconsistên-cias na sequência narrativa.

132 Citado por Monro, p. xxx. Ver também J. Myres, Homer and his critics, p. 91.

133 O empenho que Lachmann demonstrou em relação à crítica tex-tual, com o cotejamento de manuscritos e a remoção de supostos erros e interpolações (ele ainda publicou uma edição do Novo Testamento, em grego e latim, e se dedicou largamente aos autores latinos, com destaque para Lucrécio), fez surgir a expressão “o método Lachmann”; ver a esse respeito Sebastiano Timpanaro, The Genesis of Lachmann’s method. Translated by Glenn Most. Chicago: The University of Chicago Press, 2005 (edição original italiana: 1963). Wilamowitz (History of classical scholarship, p. 132) fala do efeito “paralisante” de sua personalidade. Sobre ele, ver também John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 335-336.

134 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxx-xxxii, J. Myres, Homer and his critics, p. 90-1, M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 12, e F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 131-3.

165

135 M. Nilsson, Homer and Mycenae. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1933, p. 12.

136 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxxiii-xxxiv, e F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 133-4.

137 Sobre Nitzsch, ver ainda H. Browne, Handbook of Homeric study, p. 148-151.

138 A obra monumental seria traduzida na íntegra, não muito tempo depois, para o francês e o alemão. Os 12 volumes foram recen-temente reeditados (G. Grote, A history of Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 2009-2010). O volume 2 saiu em 2010. Para um ferfil de Grote, ver John Vaio, “George Grote” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 119-126.

139 G. Grote, A history of Greece, vol. 2, p. 159-277. 140 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xvii.141 Sobre Grote, ver ainda H. Browne, Handbook of Homeric study,

p. 150-152.142 J. Myres, Homer and his critics, p. 199.143 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque. Paris: Librairie Tho-

rin & Fils, 1896, p. 165144 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque, p. 103 e 163-163.145 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque, p. 260-1.146 Monro cita George Grote em D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol.

1, p. 328 e 339.147 O comentário Ameis-Hentze da Ilíada (Homers Ilias) saiu entre

1868 e 1886; o da Odisseia (Homers Odyssee) saiu antes, entre 1856 e 1868. Ambos os comentários receberem, depois, a contri-buição de Paul Cauer, sendo reeditados entre 1905-1922 (Ilíada) e 1908-1920 (Odisseia).

148 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi.149 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi.150 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi e xxii.151 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxii e xxiii.152 Ver M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 13; J. Davison, “The

Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A com-panion to Homer, p. 250 (de onde retirei a explicação detalhada); J. Myres, Homer and his critics, p. 93; e F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to

166

Homer, p. 137. Ver também Alfred Heubeck em A. Heubeck et alii, A commentary on Homer’s Odyssey. 3 vols. Oxford: The Clarendon Press (1988-1993), vol. 1, p. 4-5. Para uma tabela com a hipótese de Kirchhoff sobre as diferentes redações, ver H. Browne, Handbook of Homeric study, p. 163.

153 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 250.

154 Robert Fowler, “Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 489-522 (citação: p. 489). Fowler o chama de “maior helenista dos tempos modernos” e no verbete adota um tom predominantemente apologético. Sobre Wilamo-witz, ver também a introdução de Hugh Lloyd-Jones para a tra-dução de History of classical scholarship, p. v-xxxii, especialmente p. xiv-xvii, e H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 164-165.

155 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 252.

156 Note-se como, quando redige sua história da filologia, em 1921 (portanto, já no final de sua carreira), Wilamowitz a abre assim: “(...) a tarefa da filologia é trazer esse mundo morto [a civilização greco-romana] de volta à vida através do poder da ciência”; ver seu History of classical scholarship, p. 1. Ver o que diz R. Fowler, “Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf” em Ward Briggs & Wil-liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-pedia, p. 505.

157 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 17. Ver também M. Bowra, Tradition and design in the Iliad. Oxford: The Clarendon Press, 1930, p. 104-5.

158 Para um excelente apanhado dos problemas levantados pelos analistas, canto a canto, ver H. Clarke, Homer’s readers: a histori-cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 166-182 (Ilíada) e 183-203 (Odisseia).

159 Ver G. Murray, The rise of the Greek epic. New York: Oxford Uni-versity Press, 1907, p. 144. O germe dessa visão já estava no seu A history of Ancient Greek literature, de 1897; ver Robert Fowler, “Gilbert Murray” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 321-334, e também Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 24-25.

167

160 Ver o que diz Roger Dawe, “D.L.Page” em Ward Briggs & Wil-liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-pedia, p. 353-360.

161 “(...) não se pode dizer que chegamos enfim a uma solução con-sensual, ou que estamos perto de chegar”; M. Croiset, “La ques-tion homérique au début du XXme siècle” em Revue des deux mondes 41 (1907): 600-625, p. 601.

162 V. Bérard, Introduction a l’ Odyssée. 3 vols. Paris: Les Belles Lettres, 1924-1925, vol. 1, p. 343-380. Antes, em 1903, Bérard já publicara uma investigação em dois volumes sobre as origens da Odisseia (obra comentada, aliás, por Croiset no artigo citado na nota acima): Les phéniciens et l’Odyssée. Paris: Librairie Ar-mand Colin, 1902/1903.

163 P. Mazon, Introduction a l’ Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1942, p. 137-257.

164 R. Aubreton, Introdução a Homero. São Paulo: Difusão Europeia do Livro/Editora da Universidade de São Paulo, 1968, p. 61. Em relação à “Questão Homérica”, ver especialmente p. 29-64 e 331-349.

165 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 16, e Scott, The unity of Homer, p.80.

166 Sobre Bethe e Schwartz, ver H. Clarke, Homer’s readers: a histori-cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 163-164.

167 Sobre os trabalhos de Merkelbach e von der Mühll, ver F. Com-bellack, “Contemporary Homeric scholarship – I”, The classi-cal weekly 49/2 (1955): 17-26, p. 21-24, onde faz também uma apreciação da contribuição de Mazon.

168 É o caso das obras de Herbert Bannert e Peter Roth, publicadas, respectivamente, em 1988 e 1989, ambas voltadas para um enfo-que datado das repetições homéricas. Ver a resenha de Malcolm Willcock em The classical review 40/2 (1990): 207-210.

169 B. Fenik, Studies in the Odyssey. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1974, p. 134, nota 5. Ver também p. 141. Segundo F. Combella-ck, à medida que ia se enfraquecendo, a teoria analítica adotava um tom “defensivo e quase apologético”; ver seu “Contempora-ry Homeric scholarship – I”, p. 27.

170 F. Combellack, “Contemporary Homeric scholarship – I”, p. 24.171 Ver o que diz a respeito dessa premissa analítica C. Pavese, “The

rhapsodic epic poems as oral and independent poems”, Harvard studies in classical philology 98 (1998): 63-90, p. 65.

168

172 A força dessa tradição alemã daria origem, no século XX, ao mo-numental léxico iniciado por Bruno Snell, Lexikon des fruehgrie-chischen Epos, cujo primeiro tomo saiu em 1955, e o vigésimo quinto – e último –, em 2010.

173 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 78-79.174 J. Scott, The unity of Homer, p. 67 e 102.175 A. Lord, The singer of tales. Cambridge (Mass.): Harvard Univer-

sity Press, 1960, p. 10-1.176 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 142.177 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 134.178 Ver o que diz A. Grafton em R. Lamberton (ed.), Homer’s ancient

readers: the hermeneutics of Greek epic’s earliest exegetes. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 161-162.

179 J. Scott, The unity of Homer, p. 137.180 J. Scott, The unity of Homer, p. 78.181 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to

Homer, p. 3. Ver também John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 307.

182 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 73-4. Ver ainda John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 311-313, J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 979-982, e H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 158-159. Para se ter uma ideia da mudança de posição de Goe-the, ver W. Goethe & F. Schiller, Correspondência. Tradução de Claudia Cavalcanti; São Paulo: Hedra, 2010, especialmente as cartas de 19 e 28 de abril de 1797, e 12 e 16 de maio de 1798 (mais críticas), época em que planejava redigir uma “Aquileida” e já havia publicado o épico em 12 cantos Hermann e Doroteia. Em 1797, Goethe e Schiller compuseram a “xênia”, ou dístico epigramático, “O Homero wolfiano”, com a seguinte apreciação: “Com impiedosa crítica tiraste a vida do poeta,/ mas imortal, graças a ti, vive o rejuvenescido poema.” Já de 1821 é o poema “Homero novamente Homero”: “Através de vossa sutil ciência/ nos livrastes de qualquer reverência/ e admitimos com toda co-ragem:/ a Ilíada não passa de colagem. // Mas nossa recusa a ninguém difama,/ pois é a juventude que nos inflama:/ pensar que ele é um todo preferimos,/ como um todo alegremente o

169

sentimos.” (As traduções do alemão são de Vicente de Arruda Sampaio.)

183 J. Myres, Homer and his critics, p. 216-7.184 Ver o que diz Cedric Whitman, Homer and the heroic tradition.

New York: W.W. Norton&Company, 1958, p. viii.185 A. Wace, “The history of Homeric archeology” em Alan Wace &

Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 325.186 Ver a seu respeito o verbete redigido por David Traill em Ward

Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a bio-graphical encyclopedia, p. 424-446.

187 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. 195.188 J. Myres, Homer and his critics, p. 150.189 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 19-20.190 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 206. Essa mesma visão pre-

domina no A companion to Homer editado por A. Wace e F. Stub-bings em 1962.

191 A. Snodgrass, “An historical Homeric society?”, Journal of Hel-lenic studies 94 (1974): 114-125; I. Morris, “The use and abuse of Homer”, Classical antiquity 5 (1986): 81-138.

192 A decifração foi feita por J. Chadwick e M. Ventris e publicada em 1954. As duas inscrições mais antigas em escrita alfabética, datadas do século VIII a.C., são as do vaso de Dípilon, desco-berto em Atenas em 1871, e a da chamada Taça de Nestor, com inscrição em hexâmetros, encontrada na ilha italiana de Ísquia, em 1954.

193 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 139.

194 Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p. 58.

195 G. Cerri, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto ome-rico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, Quaderni Urbinati de cultura classica 70/1 (2002): 7-34, p. 19.

196 Para uma obra unitarista de um discípulo de Pasquali, ver o li-vro em que Benedetto Marzullo discute as questões relativas a Homero a partir do Canto 6 da Odisseia: Il problema omerico. Milano: Riccardo Ricciardi Editore, 1952 (2ª. ed.: 1970).

197 J. Scott, The unity of Homer, p. 127 e 133.198 J. Scott, The unity of Homer, p. 197.199 S. Bassett, The poetry of Homer. Lanham: Lexington Books,

1938 (2a. ed.: 2003), p. 18-19.

170

200 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 133, nota 1.201 Drerup é o propositor da divisão da recitação em partes, 18 para

a Ilíada e 15 para a Odisseia; ver A. Ercolani, Omero, p. 153.202 F. Combellack, “Contemporary Homeric scholarship – II”, The

classical weekly 49/3 (1955): 29-44, p. 29.203 Ver H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the

Iliad and the Odyssey, p. 182-186 e 282.204 Schadewaldt também traduziu para o alemão a Odisseia (1958)

e a Ilíada (1975). Sobre ele, ver H. Flashar, “Wolfgang Schade-waldt” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 419-423. Para uma apresentação do trabalho de Reinhardt, ver o capítulo “Karl Re-inhardt” em Hugh Lloyd-Jones, Blood for the ghosts: classical infl-luences in the nineteenth and twentieth centuries. London: Duck-worth, 1982, p. 238-250.

205 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 140.

206 Lloyd-Jones fala do “frescor e vivacidade” do livro, que o tornam leitura agradável ainda hoje; ver “Maurice Bowra” em H. Lloyd--Jones, Blood for the ghosts: classical inflluences in the nineteenth and twentieth centuries, p. 271-286 (citação: p. 276).

207 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. vii e viii. Ver tam-bém reafirmação dessa ideia à p. 67.

208 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 1.209 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 9.210 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 43, 46 e 48.211 J. Scott, The unity of Homer, p. 153-4.212 J. Scott, The unity of Homer, p. 155-6.213 J. Scott, The unity of Homer, p. 140.214 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 98-9.215 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 113.216 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 87, 88, 90 e 95.

J. Scott já havia dedicado um artigo, de 1911 (“Repeated ver-ses in Homer”, The American journal of philology 32/3 (1911): 313-321), a mostrar que as repetições – não dentro de cada po-ema, mas entre eles – se devem não a uma questão de imitação (da Ilíada pela Odisseia), mas ao uso de uma tradição poética comum.

217 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 92-3 e 96.

171

218 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 50-2. O uso do verbo “escrever” (write) tendo Homero como sujeito é frequente na obra.

219 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 51 e 251.220 A. Murray, Homer: The Iliad. 2 vols. Cambridge (Mass.): Har-

vard University Press, vol. 1, p. xii.221 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. xiii.222 A classificação é de G. Murray, The rise of the Greek epic, p. vii,

xvii e xxi.223 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. vii.224 J. Scott, The unity of Homer, p. 76-81, e J. Davison, “The Ho-

meric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A compan-ion to Homer, p. 254. J. Myres, em Homer and his critics, p. 210-4, explica que Mülder, discípulo de Kirchhoff e Wilamowitz, buscou “fazer o método analítico voltar-se contra si mesmo”, embora nunca o tenha abandonado totalmente.

225 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 14.226 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-

nality”, American journal of philology 71/4 (1950): 337-364, p. 337-338.

227 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-nality”, p. 341 e 353-354.

228 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-nality”, p. 355-356.

229 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-nality”, p. 359.

230 Ver Casey Dué & Mary Abbott, Iliad 10 and the poetics of am-bush. Washington: Center for Hellenic Studies, 2010, p. 8-9 e 23, que desfazem, com seus comentários esclarecedores, esse lon-go equívoco.

231 A. Heubeck et alii, A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 7.232 J. Scott, The unity of Homer, p. 135.233 A. Wace, “The history of Homeric archeology” em Alan Wace &

Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 329.234 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank

Stubbings, A companion to Homer, p. 253; J. Myres, Homer and his critics, p. 200-1; e M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 20.

235 W. Leaf, Homer and history. London: Macmillan, 1915, p. 3.

172

236 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 1-2. Para um resumo das posições, ver também p. 7-8.

237 J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopae-dia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 973.

238 A. Lord, The singer of tales, p. 151.239 Para uma comparação sucinta, ver F. Combellack, “Contempo-

rary Homeric scholarship – I”, p. 20.240 Segundo Adam Parry, a “controvérsia unitarista-analista” se tor-

nou “obsoleta”; ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. li. Veja-se também o que diz o próprio Milman Parry sobre a limitação das correntes (The making of Homeric verse, p. 268).

241 J. Kakridis, Homeric researches. Lund: C.W.K. Gleerup, 1949. Para o uso da nova designação, “neoanálise”, “neoanalista” e “novo tipo de análise”, ver “Introdução”, p. 2, 7, 8 e 9. A obra original, em grego moderno, era de 1944, mas os textos já vinha sendo trabalhados desde a década de 30.

242 J. Kakridis, Homeric researches, p. 2-7.243 J. Kakridis, Homeric researches, p. 8 (grifo original).244 J. Kakridis, Homeric researches, p. 8-9 (grifo original).245 Depois incorporado ao já citado livro Von Homers Welt und Werk.246 W. Kullmann, “Oral poetry theory and neoanalyses in Homeric

research”, Greek, Roman & Byzantine studies 25 (1984): 307-323; J. Burgess, The tradition of the Trojan War in Homer and the Epic Cycle (2001) e The death and afterlife of Achilles (2009). Para um apanhado da neoanálise até a década de 90, ver M. Willcock, “Neoanalysis” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion to Homer, p. 174-189.

247 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 339.248 Ver informações na abertura do artigo de 1928 Murko, “The

singers and their epic songs”, publicado em Oral tradition 5/1 (1990): 107-130.

249 M.Murko, “The singers and their epic songs”, p. 118.250 Para as diferenças entre a tradição cristã e a muçulmana, ver John

Foley, “Traditional history in Southslavic oral epic” em David Konstan & Kurt Raaflaub (ed.), Epic and history. West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, p. 347-361.

251 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 378.252 “Whole formulaic verses in Greek and Southslavic heroic song”

em A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 376-390.

173

253 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 377-8. O livro de Jousse é citado também na p. 270 como “valiosa tentativa de estabelecer as bases psicológicas do estilo poético oral”. Sobre Jousse, ver o artigo de Edgard Sienaert, “Marcel Jousse: the oral style and the anthropology of gesture”, Oral tradition 5/1 (1990): 91-106, especialmente p. 93. O antropólogo Lucien Lévy-Bruhl, com seus estudos sobre a “mentalidade primitiva”, foi influên-cia importante sobre Jousse; ver Thérèse de Vet, “Parry in Paris: strcuturalism, historical linguistics, and oral theory”, Classical antiquity 24/1 (2005): 257-284, p. 272.

254 M. Parry, “Cor Huso: a study of Southslavic song – extracts” em A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 440 (grifo origi-nal).

255 Ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, respectivamente p. 322, 450-1 e 418.

256 Parece-me equivocado afirmar que o trabalho de Parry também era de natureza comparativa, como diz G. Nagy no prefácio da segunda edição, de 2000, p. xvii. Talvez ele pudesse se encami-nhar nessa direção, mas o fato é que a parte mais importante de sua obra é voltada para a análise estilística de Homero, e não para a atividade da comparação.

257 The singer of tales. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1960; “Homer and other epic poetry” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 179-214.

258 John Foley, Homer’s traditional art. University Park: Pennsylvania State University Press, 1999, p. 37.

259 Ver por exemplo A. Lord, The singer of tales, p. 133.260 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 334.261 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 404-7.262 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 446.263 A. Lord, The singer of tales, p. 68.264 A. Lord, “Homer’s Originality: Oral Dictated Texts,” Transac-

tions of the American philological association 94 (1953): 124-134.265 A. Lord, The singer of tales, p. 124 e 137.266 A. Lord, The singer of tales, p. 129.267 A. Lord, The singer of tales, p. p. 134, 141 e 147.268 A. Lord, The singer of tales, p. 124.269 A. Lord, The singer of tales, p. 128.270 A. Lord, The singer of tales, p. 149.

174

271 A. Lord, The singer of tales, p. 149.272 A. Lord, The singer of tales, p. 152-7.273 A. Lord, The singer of tales, p. v.274 A. Lord, The singer of tales, p. 144 e 65.275 Ver artigo de R. Janko, “The Homeric poems as oral dictated

texts”, The classical quarterly 48/1 (1998): 1-13, p. 2-3. Num deles, The singer resumes the tales, de 1995, Lord admite uma fase “transicional” na passagem da cultura ágrafa para a letrada, mas, como indica Giovanni Cerri, trata-se mais “de tentativa de ‘salvar’ a velha teoria do que um reformulação substancial”; ver seu “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto omerico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, p. 20, nota 22.

276 Ver, respectivamente, os artigos “Homer and heroic Cretan po-etry”, Transactions of the American Philological Association 73/3 (1952): 225-250, e “The Homeric Hymns as oral poetry”, Amer-ican journal of philology 83/4 (1962): 337-368.

277 É o que diz James Holoka em “Homer, oral poetry, and com-parative literature: major trends and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung. Stuttgart: B. G. Teubner, 1991, p. 466.

278 J. Notopoulos, “Parataxis in Homer: a new approach to Homeric literary criticism” em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-ments. 4 vols. New York: Routledge, 1999, vol. 4, p. 94. Ver o que diz dele E.J. Bakker, “Introduction: Homer and oral poetry research”, em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assessments, vol. 1, p. 170.

279 J. Notopoulos, “Parataxis in Homer: a new approach to Homeric literary criticism” em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-ments, vol. 4, p. 104.

280 Cito-a a partir de sua versão reduzida, G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of Homer. Cambridge: Cam-bridge University Press, 1965.

281 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of Homer, p. 27-9.

282 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 445.283 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of

Homer, p. 19-27.284 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of

Homer, p. 30.

175

285 A. Parry, “Have we Homer’s Iliad?” em John Wright (ed.), Essays on the Iliad. p. 25.

286 A. Parry, “Have we Homer’s Iliad?” em John Wright (ed.), Essays on the Iliad. p. 27.

287 Ver B. Hainsworth, “The criticism of an oral Homer” em John Wright (ed.), Essays on the Iliad. Bloomington: Indiana Univer-sity Press, 1978, especialmente p. 30 e 40.

288 Ver R. Janko, “The Homeric poems as oral dictated texts”, p. 11.289 Ver o que diz Minna Skafte-Jensen, The Homeric Question and

the oral-formulaic theory. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 1980, p. 25.

290 Ver, além do livro, seu artigo “The how of literature”, Oral tradi-tion 20/2 (2005): 164-187.

291 P. Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. de Amália Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. S. Paulo: Cia. das Letras, 1993, p.21 e 191-3, nas quais critica a teoria Parry-Lord.

292 A teoria reaparece em artigos e outros livros, mas preferimos ci-tar esse, não só porque é onde surge pela primeira vez, mas pela apresentação mais direta.

293 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 109-110.

294 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 112.295 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 113.296 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 113. Goi-

vanni Cerri levanta a possibilidade de uma dívida não reconhe-cida, da parte de Nagy, em relação à obra de Bruno Gentili, que já propunha, em seu clássico Poesia e pubblico nella Grecia antica: da Omero al V secolo (1984), a necessidade de uma “edótica do texto oral”, que resultasse numa apresentação “aberta” e de “lei-tura ativa” (4ª. ed.: 2006; ver p. 343-344); ver G. Cerri, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto omerico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, p. 20-21 e nota 24.

297 Ver o que diz a esse respeito Giovanni Cerri, “Introduzione: bre-ve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Ome-ro, p. 22.

298 Foley, que faleceu em 2012, ainda criou, em 1986, uma revis-ta eletrônica importante, Poesia Oral [Oral poetry], que reúne as mais variadas investigações nesse campo.

299 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 16-7.

176

300 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 18.301 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 18.302 Mark Edwards também tem contribuído com uma série de ar-

tigos sobre construção típica em Homero, como “Introduções aos discursos homéricos” [“Homeric speech introductions”], de 1970, “Convenção e individualidade no Canto 1 da Ilíada” [“Convention and individuality in Iliad 1”], de 1980, e “Home-ro e a tradição oral: a cena-típica” [“Homer and oral tradition: the type-scene”], de 1992; ver, respectivamente, em Harvard studies in classical philology 74 (1970): 1-36; Harvard studies in classical philology 84 (1980): 1-28; e Oral tradition 7/2 (1992): 284-330. Ver ainda seu capítulo “Homeric style and ‘oral poet-ics’” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion to Homer, p. 261-283, e os artigos “Homer and Oral Tradition: the formula – Part I” (1986), Oral tradition 1: 171-230, e “Homer and Oral Tradition: the formula – Part II” (1988), Oral tradition 3: 11-60.

303 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 136-138.304 Giovanni Cerri já chamou atenção para o fato de que, numa

comparação com os estudos de Dante – igualmente abrangentes e rigorosos –, os de Homero pecam pela falta de uma “verdadeira interpretação”, para a qual os estudos técnicos deveriam servir de preparação; ver sua “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 27.

305 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 139.

(B) A DEMONSTRAÇÃO DE PARRY

É curioso notar que o trabalho com maior impacto sobre os estudos da poesia homérica tenha se

dedicado a um problema localizado da dicção épi-ca, a repetição da locução epíteto + nome (próprio ou comum). Ainda que Milman Parry depois tenha leva-do suas reflexões para o campo externo da comparação e da antropologia, e só a partir daí a teoria oral tenha se disseminado, o fato é que a parte mais representativa, o cerne de sua obra, continua sendo O epíteto tradicional em Homero, sua tese de 1928, na qual submete deter-minado aspecto do estilo homérico a um levantamento minucioso, para assim chegar a conclusões gerais de im-portância capital. Os artigos que escreveu posteriormente, as viagens que realizou para pesquisar a oralidade servo--croata, em 1933 e 1934-35 – todos esses passos seguintes, até sua morte abrupta em 1935, serviram apenas para iluminar e reforçar os apontamentos iniciais contidos em seu doutorado.306

178

O seu enfoque era, de certo modo, inédito. Quando Parry começou a se dedicar aos estudos da poesia homé-rica, no início da década de 20, a refrega entre analistas e unitaristas continuava bem viva, mas ganhava (como vimos) nova feição, com estes últimos passando a se impor sobre os antigos partidários da dissecação. Isso não signifi-cava, no entanto, uma posição radicalmente diferente: se na superfície ambas as correntes se contrapunham – uma enfatizando a criação múltipla no tempo e a outra a ati-vidade unificadora do gênio –, no fundo partilhavam do mesmo preconceito letrado, segundo o qual existe sempre um texto original, que opera conforme os parâmetros da criação escrita. Mais do que isso, os dois lados não par-tiam de um exame minucioso da dicção de Homero para chegar a suas conclusões: o movimento, ao contrário do desejável, era de fora para dentro.

Essa forma de abordagem teve pouca influência direta sobre Parry – e é interessante perceber como ele não perde tempo com a típica discussão de época, algo inescapável para a maioria dos homeristas de então. Das duas correntes, no entanto, a analista foi a mais decisiva em suas formulações: foram os estudos sobre a língua e o hexâmetro homéricos, desenvolvidos sobretudo em língua alemã no século XIX e início do XX, animados pela lin-guística histórica e orientados pela dissecação, que indica-ram a Parry o caminho a seguir para entender certo nível de significado na épica de Homero.

As reflexões sobre o progresso das línguas humanas não eram, naturalmente, novidade: no século XVIII já tinham surgido representantes ilustres, como Jean-Jacques Rousseau, com seu póstumo Ensaio sobre a origem das

179

línguas [Essai sur l’origine des langues], de 1781, e o alemão Johann Herder, com seu Tratado sobre a origem da linguagem [Abhandlung über den Ursprung der Sprache], de 1772; o próprio Vico, citado anteriormen-te aqui, tomou a evolução da linguagem como elemento central em sua Ciência Nova, na primeira metade desse mesmo século. O século XIX, por sua vez, vira surgir a linguística comparativa e os estudos do indo-europeu, que atestavam a vontade de se investigar a “vida” das línguas clássicas e estabelecer analogias e raízes comuns entre elas. No âmbito específico do grego antigo, o inglês Richard Bentley, que viveu na virada do século XVII para o XVIII (1662-1742), conseguira dar uma dimensão diacrôni-ca ao idioma ao chamar a atenção para a presença de um som original – correspondente a um “u” semiconso-nantal, e chamado “vau” (do fenício) ou digama, com representação gráfica pela letra “F” –, que foi deixando, progressivamente de ser pronunciado, mas é perceptível em Homero ao se escandir seus versos.307

No entanto, os quatro nomes fundamentais para Parry são os de estudiosos de Homero: Heinrich Düntzer, August Fick, Kurt Witte e Karl Meister. Düntzer, com suas Pesquisas homéricas [Homerische Abhandlun-gen], de 1872, já mostrara que a escolha dos epítetos em Homero (entre outros elementos) era determinada pela extensão métrica, e não pelo sentido; Fick, por sua vez, para justificar a mistura dialetal, tentara defender, de uma perspectiva histórica, a passagem de um Homero eó-lico para um Homero jônico (sua Ilíada eólica saiu em 1886, e sua Odisseia, três anos antes); num verbete de 1913 para a enciclopédia Pauly-Wissowa, Witte, por

180

sua vez, descartara essa transição, afirmando que “a lín-gua dos poemas homéricos é uma criação do verso épico”; e, em 1921, Meister já falava, no título de seu livro, Die homerische Kunstsprache, sobre a “língua artificial ho-mérica”.308

Ao mesmo tempo, depois do mapeamento exaustivo das repetições homéricas feito pelos analistas do Dezeno-ve, com suas concordâncias e índices, sempre com o in-tuito de determinar o que era original e o que era cópia, o caráter “formular” da tradição épica – mesmo que in-compreendido – já estava bem assente, com o termo “fór-mula” tendo sido empregado, por exemplo, pelo linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) em seu As origens indo-europeias dos metros gregos [Les origines indo--européennes des mètres grecs], de 1923.

É nesse contexto de investigação linguística que Parry insere seu trabalho, mas dando a ele outra perspectiva, que privilegia o olhar sincrônico e analógico, o que revela uma influência – ainda que indireta – do estruturalismo de Ferdinand de Saussure (1857-1913) (é bom lembrar que Parry permaneceu por quatro anos na França, onde realizou seu doutoramento, e que Meillet, seguidor de Saussure, estava na sua banca).309 Por outro lado, junto com isso havia ainda a permanência de um romantismo primitivista, que queria aplicar a Homero o famigerado método histórico, para assim conseguir descobrir o signifi-cado de um estilo que era diverso do nosso: é precisamente com esse espírito que Parry cita Ernest Renan, filólogo e filósofo, no início de sua tese (ele mesmo, depois, faria uma palestra sobre “O método histórico na crítica lite-rária”).310

7.

O EPÍTETO TRADICIONAL

Quando Milman Parry concluiu em 1923 sua dis-sertação de mestrado pela Universidade da Ca-

lifórnia, sob a orientação de George Calhoun, com o título Um estudo comparativo da dicção como um dos elementos de estilo na épica grega arcaica [A comparative study of diction as one of the elements of style in Early Greek epic poetry], ficou patente sua percepção aguda do texto homérico. Como afirma Adam Parry, nota-se imediatamente

que o impulso inicial de seu trabalho não eram os insights e as teorias sugestivas de es-tudiosos anteriores, mas o texto de Homero em si. (...)É a partir de uma percepção estética da qualidade do verso homérico que toda a dissertação se desenvolve. Aquilo de que Parry fala mais tarde como sendo o “método

182

histórico”, isto é, a tentativa de explicar o produto específico de uma época pelas condições únicas de vida nessa mesma época, é algo necessário a esse desenvolvimento. Mas o dado primeiro é a experiência que o leitor tem do estilo do poema.311

De fato, o trabalho não cita nenhuma bibliografia. Trata-se, na realidade, de um texto de apenas quinze páginas, preocupado em apontar “limites de forma” na épica homérica, a necessidade de nela se seguir “certas linhas muito bem definidas”; em outras palavras, o objetivo era mostrar “sua tradicional, quase formular qualidade, seu uso regular, de um modo determinado, de certas palavras e frases”, o que fazia com que essa épica “diferisse diametralmente da poesia moderna, que dá tanto valor à individualidade e ao estilo úni-co”.312 O leitor nota, durante a leitura, a presença – ainda sem demonstração rigorosa – dos elementos que depois se tornariam peças-chave: tabulação de dados, comparação com outros autores, a ênfase dada à tradi-ção, e a busca do significado da linguagem tradicional, ou, para empregar suas palavras, “os méritos desse tipo de arte”.313 Parry já fala abertamente em “adjetivos ornamentais”, “uso ditado pela conveniência métrica”, desconectado da situação narrativa, “moldura do he-xâmetro” – e até mesmo em “poesia oral”, ideia que só seria claramente desenvolvida, como sabemos, depois de sua tese de doutorado.314 Por trás da abordagem, ressaltam dois elementos que depois desapareceriam em seu tratamento de Homero: de um lado, a ênfase

183

dada ao caráter estético (como apontado acima por seu filho), a partir do paralelismo com a escultura, também convencional e tradicional, e, de outro, o uso recorrente da noção de raça; os dois aparecem combi-nados neste trecho:

As palavras que eram escolhidas para preen-cher [o hexâmetro] eram aquelas que ge-rações de poetas e audiências tinham sele-cionado como capazes de produzir o mais alto efeito artístico, como as mais belas e apropriadas ao assunto. O fato de que todo poeta épico as empregasse não é motivo para menoscabo: nesse caso a raça era o artista, e o artista satisfazia uma necessidade artística, e fazia dessa necessidade uma oportunidade para uma beleza extraordinária.315

Quando se passa para seu doutorado, percebe-se imediatamente que a questão ganhou outra dimen-são: “Saber que o estilo de Homero é tradicional não é suficiente: devemos saber, ainda, que palavras, que expressões, que partes da dicção, lhe dão sua feição própria”, diz ele no prefácio.316 Parry agora está cla-ramente emprenhado em demonstrar aquilo que já havia intuído em seu mestrado. As formas artificiais produzidas pelo hexâmetro homérico (com sua mis-tura de dialetos e morfologia sui generis) – estudadas a fundo pelos filólogos do século anterior – deram a ele a pista necessária para resolver o problema de estilo com que se deparava:

184

Estabelecer na Ilíada e na Odisseia a existên-cia de uma língua artificial é provar que o estilo homérico, na medida em que faz uso de elementos dessa língua, é tradicional. Pois a feição própria dessa língua revela que é uma obra que está além da capacidade de um homem só, ou mesmo de uma só geração de poetas; sabemos, consequentemente, que estamos na presença de um elemento estilís-tico que é produto de uma tradição.317

É esse mesmo método que Parry quer aplicar agora à dicção épica, para “descobrir por que Home-ro escolhe certas palavras, certas formas, certas cons-truções para expressar seu pensamento”. Antecipan-do suas conclusões, ele afirma, na “Introdução”, que essa tradicionalidade fica comprovada quando se percebe a presença de um sistema, “caracterizado, simultaneamente, por uma grande extensão e por uma grande simplicidade”.318 Com isso, temos uma estrutura complexa e dinâmica, cuja elaboração só pode ser efetuada de forma demorada, ao longo do tempo.

Segundo Parry, o reconhecimento, em sua época, de que Homero trabalhava com fórmulas derivadas de um repositório comum a que todos os poetas épicos podiam recorrer – como defendiam Rothe, Shewan e Scott, rebatendo os analistas, preocupados em encon-trar o que era original e o que era secundário –, esse reconhecimento consistia numa “conclusão puramen-te negativa”, porque não vinha acompanhado de uma

185

análise exaustiva dessa característica.319 É essa lacuna que Parry quer preencher, com

uma compreensão completa do fato de que essa dicção, na medida em que é feita de fórmulas, está inteiramente condicionada pela influência do metro. Sabemos que o ele-mento não jônico em Homero só pode ser explicado pela influência do hexâmetro; da mesma forma, a dicção formular, da qual o elemento não jônico é parte, foi criada pela vontade dos bardos de terem à mão palavras e expressões que pudessem facilmente entrar no verso heroico. Os poetas épicos molda-ram e preservaram no decurso de gerações uma técnica complexa de fórmulas, uma técnica elaborada em seus mínimos detalhes com um duplo propósito, de expressar ideias apropriadas à épica de maneira adequada, e atenuar as dificuldades da versificação.320

Ainda na “Introdução”, Parry começa a fornecer exemplos do funcionamento das fórmulas, com os quais quer apontar, preliminarmente, “a imensa com-plexidade do problema do estilo tradicional”, que faz uso de uma técnica com “um grau de desenvolvimen-to que nunca estaremos em posição de compreender perfeitamente”.321 Diante disso, o estudioso afirma que pretende restringir sua análise ao uso do epíte-to, entendido, em Homero, como um qualificativo de um substantivo próprio ou comum, podendo no en-

186

tanto ser esse qualificativo um outro substantivo (por exemplo, “rei”, basileús) ou uma expressão composta (por exemplo, “bom de grito”, boèn agathós).322 Para Parry, há duas vantagens nessa escolha: as estruturas com epíteto são mais simples e seus resultados po-dem ser estendidos, por analogia, a outras partes do discurso, permitindo que se determine até onde vai a formularidade em Homero; e – o que, na sua visão, é ainda mais relevante – o epíteto traz para o primeiro plano uma questão semântica: a distinção entre aquele que chama de “particularizado”, porque diretamente ligado à ação imediata, e aquele denominado “orna-mental” (ou “fixo”), porque sem relação com a frase ou passagem em que ocorre. As consequências disso não escaparam a Parry:

(...) essa distinção semântica nos conduz a um juízo mais certeiro acerca do caráter tra-dicional do estilo homérico como um todo (...). A razão disso é que, ao sermos força-dos a reconhecer o caráter do epíteto fixo em Homero, caráter que o distingue de qual-quer epíteto presente na obra de um poeta que emprega o estilo individual, vemo-nos às voltas com uma concepção de estilo intei-ramente nova. Somos forçados a criar uma estética do estilo tradicional.323

A passagem, como se vê, estabelece a divisão estri-ta entre estilo individual e estilo tradicional, tão cara a Parry e a seus sucessores. Essa divisão, por sua vez,

187

pode induzir à “falsa impressão” – diz Parry – de que, no emprego do epíteto num estilo tradicional, estamos diante de um “processo mecânico”, em que o peso da conveniência métrica simplesmente anula o elemen-to de subjetividade. Esse equívoco decorre do fato de que, pelo epíteto, “mais talvez do que por qualquer outro aspecto do estilo, julgamos o gênio de um autor, sua originalidade, a riqueza de seu pensamento”.324 É precisamente por essa razão que ele surge para Parry como elemento ideal – não para que Homero tenha sua “honra” diminuída, mas para que seu estilo seja abordado segundo seus próprios termos.

Nos dois capítulos seguintes à “Introdução”, Parry vai se dedicar a uma comprovação exaustiva (num total de quase 100 páginas) do sistema formular homérico: ele começa por mostrar a diferença no seu uso do epí-teto em comparação com as Argonáuticas de Apolônio de Rodes e a Eneida de Virgílio (nos quais há também utilidade métrica, mas não um sistema); passa pela apresentação dos epítetos (de nomes de deuses e he-róis, principalmente, e ainda de povos e países, naus, cavalos, raça humana, escudos), revelando o uso exten-sivo e simples/econômico (isto é, com poucas sobre-posições métricas), e fazendo a distinção entre epíteto fixo genérico (como “divino”, dîos, aplicável a vários heróis) e epíteto fixo distintivo (como “puro”, phoîbos, aplicável apenas a Apolo), esta última categoria mais frequente em relação aos deuses; e toca, finalmente, na questão fundamental da analogia, “talvez o fator mais importante a ser dominado por nós, se queremos che-gar a uma compreensão de fato da dicção homérica”.325

188

É a analogia que responde pela criação de novas expressões, por meio da modificação simples e fácil – quando não está envolvida (adverte Parry) uma complexidade de ideias – de expressões já existentes. É a ela que se deve o surgimento de fórmulas equiva-lentes, as quais, embora a princípio pareçam invalidar o princípio da economia e funcionalidade (já que o cantor teria à disposição duas formas metricamente iguais para dizer a mesma ideia), acabam antes por atestá-lo.326 Como diz o norte-americano, no último capítulo da tese, em que trata unicamente dessas so-breposições:

Uma grande quantidade de fórmulas subs-tantivo-epíteto equivalentes derivam na-turalmente daquela operação de analogia que, como já vimos, é o fator dominante no desenvolvimento da dicção homérica do começo ao fim. Foi pela associação mental de diferentes grupos de palavras que os bar-dos elaboraram toda a sua técnica de dicção, criando uma palavra, forma ou expressão to-mando como modelo uma palavra, forma ou expressão já existentes, compondo uma frase ou período tomando como modelo outra frase ou período. Essa operação de analogia, cujo poder está atestado em cada artifício da dicção épica, é forte demais para se in-terromper depois de ter criado uma fórmula metricamente única.327

189

É importante destacar que, ao logo da demons-tração, apoiada em tabelas, quadros e muitos números, Parry manifesta mais de uma vez, como já manifestara na “Introdução”, a impossibilidade de se fazer um levantamento total da dicção formular. Para ele, tentar mostrar todas as maneiras pelas quais as fórmulas de uma certa categoria são empregadas levaria a um “labirinto sem fim de investigação”,328 porque

a dicção homérica, mesmo no âmbito das fórmulas substantivo-epíteto, continua sen-do algo tão complexo, a ponto de colocar uma análise definitiva de sua técnica além de nossas forças.329

Segundo Parry, nosso acesso a um número re-duzido de versos (já que grande parte da épica arcai-ca se perdeu) impõe um limite severo ao estudo da técnica formular, de tal forma que nem a escassez de uma fórmula prova que ela não é tradicional, nem a ausência de repetição indica que não se trata de uma fórmula.330 Além disso, diz ele, à medida que ideias mais complexas vão sendo enunciadas, torna-se maior o desafio da comprovação de sua formularidade.331 De todo modo, em sua “tese menor”, As fórmulas e a métrica de Homero, apresentada juntamente com O epíteto tradicional, e na qual trata de irregularidades do metro épico, Parry é capaz de dizer, mesmo admitindo que não se pode afirmar categoricamente que a dicção homérica é toda formular:

190

(...) devemos renunciar à pretensão de uma análise completa da dicção homérica. Pode-mos dizer que uma larga porção dessa dicção é tradicional e formular, e que toda ela talvez o seja também. No estágio atual de conheci-mento, uma conclusão mais categórica nos é negada.332

Se a demonstração corresponde ao núcleo “duro” da tese, é no entanto seu Capítulo 4, “O significa-do do epíteto na poesia épica”, de leitura mais fácil e prazerosa, que traz as principais consequências para a abordagem de Homero, porque aí Parry reafirma a distinção fundamental entre dicção tradicional e estilo individual (ainda não desenvolvida na oposição entre oral e escrito). Diz ele:

No nosso estudo dos vários recursos que os epítetos fixos tornam possíveis, a facilidade de versificação que proporcionam ao poeta apareceu como único fator a determinar seu uso. Alguns dentre aqueles que conhecem bem Homero ficarão descontentes com este procedimento. Para eles parecerá inconcebí-vel que o poeta não tenha se guiado em me-dida alguma, em sua escolha do epíteto fixo, pelo efeito que poderia produzir em seu con-texto particular. Nem quererão eles admitir que o poeta não escolheu o conjunto de epí-tetos aplicáveis a um dado herói por razões relativas ao seu caráter ou papel no poema.333

191

Parry toma como exemplo as linhas iniciais tanto da Ilíada quanto da Odisseia para mostrar o equívoco de aplicarmos nossa sensibilidade à épica antiga. Esse problema de leitura, como ele aponta, já era discutido pelos alexandrinos, especialmente Aristarco: nos casos em que o epíteto não recebe um emprego particulari-zado, comum, contextualizado (prós ti, na expressão dos gramáticos), mas é utilizado de maneira ilógica ou inapropriada (akaíros), a explicação consistia em ale-gar que o uso era ornamental (kósmou khárin), relativo não à circunstância, mas a uma condição geral ou na-tural, ou mesmo irônico. Aparentemente, a posição de Aristarco nesses casos não resultava em condenação ou correção do texto (como fazia seu antecessor, Zenó-doto), o que torna sua atividade crítica digna de lou-vor, diz Parry. No entanto, ele não explicava adequa-damente porque Homero usava, sistematicamente, o epíteto de uma forma que nenhum poeta alexandrino o teria feito, nem qual a razão do emprego do epíteto fixo não apenas em situações a princípio inapropria-das, mas também naquelas em que ele não entra em choque com o contexto direto.334

Foi o analista Heinrich Düntzer quem mostrou, no ensaio “Sobre a interpretação dos epítetos fixos em Homero”, contido no já citado Pesquisas homéricas, de 1872, que os epítetos fixos atendiam a necessidades métricas e não tinham qualquer relação semântica com a frase, o que representou, segundo Parry, “o mais importante passo desde Aristarco” para a compreensão do problema. Düntzer, porém, fez um levantamento pequeno, sem tomar consciência da extensão do sis-

192

tema formular e do processo de criação por analogia, o que facilitou os ataques a sua visão, centrados prin-cipalmente na presença de forma equivalentes, que o próprio autor de língua alemã reconhecia como sendo incompatíveis com sua teoria.335

A contribuição de Parry, como vimos, foi preci-samente demonstrar a existência de um sistema com-plexo, no qual a presença do epíteto com caráter pu-ramente ornamental explicava-se pelo fato de ser uma criação da tradição:

Os usos ilógicos do epíteto e seu emprego segundo o valor métrico são apenas provas de que o epíteto fixo não pode ser particu-larizado. Mas as razões que determinam sua natureza ornamental devem ser buscadas em outra parte: o epíteto fixo é ornamental porque é tradicional.336

Em que consiste esse caráter ornamental? De acordo com Parry, o epíteto nesses casos confere “um elemento de nobreza e grandeza, mas não mais que isso”,337 adornando desse modo o verso, o poema e toda a poesia heroica.338 Tal como os nossos poetas podem empregar a rima apenas com vistas a facilitar a versificação – afirma Parry, numa analogia livre –, assim também os aedos adotavam os adjetivos fixos em favor da rapidez e do embelezamento do estilo ho-mérico, sem se preocupar com a “palavra justa”.339 As implicações disso são muito claras: não se pode derivar um sentido especial do emprego desses epítetos. Parry

193

não deixa espaço para a leitura mais subjetiva, como é possível perceber em três diferentes passagens do mes-mo capítulo:

Somos assim levados a concluir que nenhu-ma fórmula substantivo-epíteto que com certeza faça parte de um sistema tradicional de fórmulas substantivo-epíteto pode conter um epíteto cujo significado seja particulari-zado. E essa conclusão deve ser categórica, não deve admitir nenhuma exceção.340

Aqueles que tentam encontrar em Homero a profundidade e a finesse que admiram na arte contemporânea terminam por denegrir o habitual para louvar o excepcional.

A verdade é que as provas já apresentadas não permitem qualquer exceção. Elas todas dão testemunho de uma indiferença tão for-te e tão habitual por parte da audiência em relação a qualquer possível significado parti-cularizado, que não há como ser contornada, por mais perfeitamente que a ideia do epíte-to se ajuste ao sentido da frase.341

Depois de tudo que aprendemos a respeito do sentido ornamental do epíteto homérico, devemos reconhecer o princípio segundo o qual um epíteto usado numa dada fórmula substantivo-epíteto não poder ser ora orna-

194

mental, ora particularizado: ele deve ser sem-pre ou uma coisa ou outra.342

Apesar do tom peremptório, Parry faz, ao longo do capítulo, uma discussão pormenorizada dos pro-blemas concernentes ao sentido do epíteto, chaman-do atenção, inclusive, para as expressões cujo caráter ornamental não pode ser determinado com certeza, pela falta de exemplos suficientes.343 De todo modo, permanece como herança sua a visão de que há um “esvaziamento” (da nossa perspectiva) na utilização de tais adjetivos, que jamais podem ser minimamente transformados segundo o contexto.

Num artigo publicado no mesmo ano de 1928, em inglês, intitulado “A glosa homérica: um estudo de semântica lexical” [The Homeric gloss: a study in word--sense], Parry investiga a presença de arcaísmos na Ilía-da e na Odisseia, termos estranhos ou obsoletos (que os antigos chamavam de “glosa”) que aparecem, na maioria das vezes, na função de epítetos – por exem-plo, os qualificativos aplicados a Hermes diáktoros e argeiphóntes, de debatida explicação. A argumentação específica a respeito desse problema permite que ele retome, no fim, suas conclusões gerais sobre o valor do adjetivo fixo. Vale a pena citar na íntegra a passagem, porque resume de maneira feliz seu pensamento:

O sentido característico do epíteto orna-mental difere profundamente daquele das palavras que levam adiante o movimento do poema; porque o epíteto ornamental não

195

tem uma existência independente. Ele for-ma uma coisa só com seu substantivo, com o qual se fundiu através do uso repetido, e a fórmula substantivo-epíteto resultante cons-titui uma unidade de pensamento que dife-re daquela do simples substantivo somente por ter, acrescida, uma qualidade de nobreza épica. O significado, portanto, do epíteto fixo tem uma importância reduzida: ele é empregado pelo poeta sem que este lhe dê atenção, e percebido da mesma maneira pelo que o ouve; trata-se de uma palavra familiar em que a mente não precisa se deter, uma vez que sua ideia não tem nenhum impacto sobre a ideia da frase. É essa circunstância da indiferença, por parte de quem ouve, em relação à significação do epíteto que explica como o poeta frequentemente o usa de modo irracional (phaeinèn... selénen, “brilhante... lua”, Il. 8, 555, amúmonos Aigísthoio, “iliba-do Egisto”, Od. 1, 29); como ele se permite usá-lo sem variação sob certas circunstâncias (o hemistíquio do tipo tòn d’ emeíbet’ épeita, “e respondeu-lhe em seguida”, em 251 de 254 casos, é completado por uma fórmula substantivo-epíteto que preenche o resto do verso); como pode usá-lo de modo despro-porcional com certos substantivos em certos casos gramaticais (Odisseu é dîos, “divino”, 99 vezes no nominativo, e apenas uma vez num caso oblíquo); como o poeta pode usar

196

repetidamente epítetos de conotação vaga (daíphron, “experiente”, megáthumos, “mag-nânimo”); e, finalmente, no caso do presente problema, como pode empregar na função de epítetos palavras que são compreendidas apenas por associações mais ou menos dis-tantes com outros termos, e às quais ele é frequentemente forçado a atribuir um signi-ficado bastante remoto em relação ao fluxo central do seu pensamento.344

Nos anos seguintes, o trabalho de Parry se de-

senvolveu de modo rápido, encaminhando-se em di-reção aos estudos da oralidade e à comparação. Ou-tros tópicos vieram a ser abordados por ele (como o uso do digama, o cavalgamento, as metáforas, o es-tilo oral, a poesia servo-croata), e depois retomados e desdobrados por seus seguidores, como vimos em capítulo anterior. Contudo, o valor do epíteto e sua (im)possibilidade de significação – junto com o uso de outras construções recorrentes – tornaram-se um ponto central no debate sobre o modo como devemos estabelecer a recepção de Homero. A abordagem do norte-americano, centrada exclusivamente no texto, deixava de ver que outros fatores poderiam tornar a fórmula funcional, em determinadas circunstâncias, também significativa.

8.

A FÓRMULA SIGNIFICATIVA

O estudo da fórmula não foi esgotado por Mil-man Parry. A despeito de seus discípulos diretos

(como Albert Lord e James Notopoulos) não terem se voltado para essa questão, ela permaneceu como um ponto importante, que merecia uma investigação que aprofundasse ainda mais o esforço já hercúleo do norte-americano. Os trabalhos mais relevantes, con-tudo, só começaram a aparecer na década de 60, com os livros de Arie Hoekstra, Modificações homéricas de protótipos formulares [Homeric modifications of formu-laic prototypes], de 1965, e Bryan Hainsworth, A fle-xibilidade da fórmula homérica [The flexibility of the Homeric formula], de 1968.

Na mesma época, surgiram também dois arti-gos importantes de Joseph Russo, “Um olhar mais atento para as fórmulas homéricas” [“A closer look at Homeric formulas”], de 1963, e “A fórmula es-trutural em Homero” [“The structural formula in

198

Homeric verse”], de 1966.345 Em 1974, Michael Nagler publicaria seu Espontaneidade e tradição: um estudo da arte oral de Homero [Spontaneity and tradition: a study in the oral art of Homer], em que propunha uma formulação afim à da gramática ge-rativa, e em 1987 Edzard Visser, autor de língua alemã, o seu A técnica de versificação homérica [Ho-merische Versifikationstechnik].346 Sobre a extensão da formularidade em Homero, houve tentativas de quantificação por amostragem, como as feitas su-perficialmente pelo próprio Lord e por Notopou-los, ambos chegando a uma percentagem superior a 90%. Mais recentemente, Margalit Finkelberg, no artigo “Teoria oral e os limites da dicção for-mular” [“Oral theory and the limits of formulaic diction”], propôs uma revisão desse tipo de enfoque e uma redução no alcance da dicção padronizada.347

Não vou me deter aqui nesses estudos, em geral muito técnicos, que ampliaram e detalharam as po-sições de Parry, sem invalidá-las em sua formulação geral. Meu objetivo é apenas apresentar rapidamente os reflexos da abordagem da fórmula no campo se-mântico e interpretativo (item, a bem dizer, não total-mente desprezado por aqueles estudos). E, nesse senti-do, talvez o maior exemplo de uma leitura inadequada de Homero, porque subjetiva e hipersensível, seja o comentário feito pelo crítico de arte vitoriano John Ruskin ao debruçar-se sobre o uso do epíteto neste passo do Canto 3 da Ilíada, que menciona a morte dos irmãos de Helena, Cástor e Pólux:

199

Assim disse [Helena], e a eles retinha a terra que dá vida (phusízoos),na Lacedemônia, lá, em sua cara terra pátria.(Il. 3, 243-4)

Discorrendo sobre o choque aí entre o qualifi-cativo de “terra” e o contexto de sepultamento, diz Ruskin, no terceiro volume de Pintores modernos, obra da metade do século XIX:

Note-se, aqui, a elevada verdade poética le-vada ao extremo. O poeta tem que falar da terra com tristeza, mas ele não vai deixar essa tristeza afetar ou alterar o que pensa a seu respeito. Não; embora Cástor e Pólux este-jam mortos, ainda assim a terra é nossa mãe, que dá frutos, que dá vida.348

No próprio século XIX, muito antes do estabele-cimento de uma teoria da formularidade, Ruskin já tinha sido alvo dos ataques de Matthew Arnold, que o censurava pela hiperleitura do que era elemento se-cundário em Homero. Parry, em seu doutorado, cita essa “interpretação extravagante” de Ruskin, sobre a qual diz, no momento em que compara a experiência da audiência original da épica com a de um estudante que vai se familiarizando com a dicção homérica:

Poucos estudantes vão ler esse epíteto pen-sando no significado que Ruskin se esfor-çou por lhe dar – mesmo na morte, a terra

200

é sempre nossa mãe –, e isso continuará a valer mesmo que estejam cruzando com a expressão pela primeira vez (ela ocorre, efe-tivamente, apenas duas vezes no nosso texto de Homero). A verdade em relação a essa questão é que é praticamente impossível atri-buir tal significado a ela. Para encontrá-lo, Ruskin precisou de toda a sua bem sabida afeição pelo pungente em poesia, além de uma concepção falsa da história das ideias, que o levou a atribuir ao poeta um modo de pensar que lhe devia ser alheio.349

Parry reconhecia, no entanto, que esse tipo de crítica era ainda vigente em sua época. De fato, se tomarmos o já citado livro de Maurice Bowra, Tra-dição e planejamento da Ilíada, de 1930, veremos que esse subjetivismo era empregado por um leitor arguto de Homero. Bowra, aparentemente, não tinha toma-do conhecimento dos estudos de Parry. No Capítulo 4, dedicado a “Alguns elementos primitivos” – en-tre os quais inclui os epítetos –, Bowra admite que muitas vezes eles “contradizem as condições descri-tas no contexto”, mas que, ainda assim, Homero os considerava “tão convenientes que recorria a eles sem pensar muito no seu sentido”.350 Em outros casos, no entanto, diz o helenista inglês, há “alguma atenção ao contexto”, como no citado passo do Canto 3 da Ilíada, em que o uso do qualificativo é visto como “admirável”:

201

É certo que alguns pensaram que o epíteto é equivocado. Por que falar da terra como a “que dá vida” quando ele é encarada como um túmulo? E, no entanto, o efeito é puro páthos. A terra, que engendra, é também uma sepultura. O pensamento é simples e antigo, e perfeitamente justo.351

Que Bowra via na linguagem formular um ma-nejo artístico fica evidente no capítulo seguinte, “Re-petições e contradições”, em que defende que muitas repetições são deliberadas e estão a serviço da criação de paralelismos e contrastes:

Com seus versos e epítetos recorrentes, ele [o poeta] pode não apenas descansar, mas tam-bém preparar uma atmosfera. Com suas pas-sagens recorrentes, ele pode dar um colorido emocional aqui e outro acolá, e através da lembrança de uma cena anterior indicar, im-plicitamente, um contraste. Com seus temas recorrentes ele emprega seu material de mui-tos modos, e dá a uma história antiga nova vida, com novas e diferentes formas. Sua arte é superior à dos épicos primitivos, em que a repetição tende a ser cansativa. Também aqui Homero tomou as fórmulas primitivas da escrita épica e lhes conferiu novos usos.352

Temos aí o olhar unitarista, que privilegia, como vimos, a intervenção do gênio Homero, com quem a

202

épica dá uma salto de qualidade, e que não consegue se desligar da escrita. Não por acaso, foram os unita-ristas que a princípio ofereceram maior resistência às descobertas de Parry, justamente porque, ao destacar a presença de um mecanismo tradicional, elas pareciam anular essa possibilidade de criação artística conscien-te. Como apontou Frederick Combellack, essa atitude hostil foi bem descrita por Theodore Wade-Gery em seu livro (com título claramente unitarista) O poeta da Ilíada, de 1952:

O mais importante assalto realizado con-tra a criatividade de Homero nos anos re-centes é o trabalho de Milman Parry, que pode ser chamado de “Darwin dos estudos homéricos”. Tal como Darwin pareceu a muitos ter removido o dedo de deus da criação do mundo e do homem, assim também Milman Parry pareceu a alguns ter removido o poeta criativo da Ilíada e da Odisseia.353

A reação, na verdade, começara bem antes. Num artigo de 1933, “Repetições homéricas” [“Homeric repetitions”], George Calhoun (que havia orientado Parry em seu mestrado) defende a visão apresentada por seu ex-aluno, mas insiste que as repetições, não de um verso, mas de um grupo de linhas, “são mais complexas”, e que apenas elas estão “mais sujeitas a um emprego consciente e deliberado”. Para ele, seria errado concluir que certas fórmulas recorrentes “são

203

usadas de uma maneira puramente mecânica, segundo um sistema rígido de composição, ou que o poeta não buscava variação quando assim o queria”.354 O artigo seria depois citado, com aprovação, por Samuel Bas-sett no já mencionado A poesia de Homero [The poe-try of Homer], publicado postumamente em 1938.355 Na esteira de John Scott, Bassett considerava a poesia homérica um “documento literário superlativo”, cujas “qualidades (...) lhe foram conferidas por um só poe-ta superior”; portanto, ainda que reconhecesse o valor das descobertas de Parry, considerava suas conclusões sobre o estilo tradicional “amplamente negativas”, faltando a elas a contrapartida do “aspecto positivo”, com as “provas de originalidade”.356

Outro que concordava com a abordagem geral de Parry, mas ressaltava a “ênfase dada pelo contexto”, era o inglês John Sheppard. Sheppard fora citado junto com Ruskin na tese de Parry como exemplo de leitor equivocado dos epítetos em Homero, pois queria em seu livro de 1922, A estruturação da Ilíada [The pattern of the Iliad], que o adjetivo diíphilos, “caro a Zeus”, ganhasse sentido especial em seus dois empregos no Canto 1 do poema (v. 74 e 86).357 Num artigo pu-blicado em 1935, com o título “Aquiles caro a Zeus” [“Zeus-loved Achilles”], Sheppard reage à crítica: ad-mite que o qualificativo é metricamente conveniente e faz parte de um estoque tradicional, mas não abre mão de ser também “vívido e significativo” em certos contextos, como o que estava em questão. A certa al-tura, ele afirma:

204

Está na moda hoje em dia dizer que Home-ro não procurava, como o poeta moderno, a mot juste. Ele tinha à mão um estoque de fórmulas tradicionais e populares, um pou-co desgastadas em seu significado por conta da familiaridade, mas pensadas para confe-rir lustro ao estilo e fazer os versos avançar corretamente. Ele as empregava, segundo a conveniência métrica, como um ornamento, com quase nenhuma atenção para sua rele-vância ou sentido. Às vezes talvez ele agisse assim. Mas também é verdade – e, para a compreensão do poema, mais importante – que tais fórmulas são frequentemente usadas como parte de séries ascendentes ou descen-dentes, numa estruturação que, através da repetição, da variação e do acúmulo, enfatiza o significado direto das palavras.358

De modo geral, pode-se afirmar que, no âmbito dos estudos orais, prevaleceu a ortodoxia parryana, que tratava com desdém abordagens como a de She-ppard. É verdade que o próprio Parry admitia certa interferência do contexto, capaz de realçar o valor de uma fórmula. No primeiro de seus dois longos artigos com o título “Estudos sobre a técnica épica de criação do verso oral” [“Studies in the epic technique of oral--verse making”], ele faz a seguinte formulação:

(...) a intensidade, onde aparece, provém em geral da ideia expressa pela passagem, e

205

não de uma determinada expressão. Muito frequentemente, durante a leitura, a ideia expressa por algum grupo de palavras vai se destacar, mas em geral é a maneira com que são empregadas que responde por isso. O verso que Homero emprega em Il. 1, 33 não parece merecer atenção na leitura, “As-sim disse, e o ancião teve medo, e obedeceu”, mas quando reaparece na cena entre Príamo e Aquiles (Il. 24, 571), torna-se um dos ver-sos homéricos realmente patéticos.359

É verdade também que, se a princípio Parry considerava as fórmulas de dizer, de idêntica extensão métrica, “E respondeu-lhe em seguida...” (tòn d’ emeí-bet’ épeita...)/“E por sua vez lhe disse...” (tòn d’ aûte proséeipe...), como expressões de ideias básicas diferen-tes, “E lhe disse....”/ “E lhe respondeu...”, e portanto não equivalentes,360 depois reconheceu que o uso dife-renciado se baseava numa necessidade de variação,361 abrindo brecha assim para escolhas mais livres e cons-cientes.

Não se pode deixar de mencionar ainda a tentati-va – tímida, é verdade – de James Notopoulos de ver, num artigo de 1951, a “repetição associativa” como mecanismo importante da poesia tradicional, e por-tanto a fórmula como “instrumento artístico de inter-conexão”, apoiando-se, para tanto, nos apontamentos anteriores de Calhoun e Sheppard.362 Digno de nota é também o livro de Cedric Whitman, Homero e a tradição heroica [Homer and the heroic tradition], de

206

1958, em que a fórmula é tratada como algo que vai muito além da funcionalidade e ornamentação. Ve-jam-se estes comentários:

Um outro exemplo do uso de uma fórmula comum de um modo incomum pode ser en-contrado na “Patrocleia”, onde Pátroclo, ao tentar escalar os muros de Troia, confronta Apolo, e corre contra ele, “igual a nume” (v. 705). (...)

(...) No esquema de Homero, ao invés de se desgastarem, as fórmulas vão ganhando peso simbólico, como bolas de neve a rolar. Aqui-les é frequentemente comparado a um leão, mas quando ele abandona sua cabana “qual um leão”, após ameaçar Príamo (Il. 24, 572), a imagem reflete, em particular, a visão que o rei indefeso tem dele. Nesse momento, ela não pode permanecer como um mero orna-mento épico.363

Talvez a mais bela e claramente significativa repetição de um motivo em toda a Ilíada seja a da “nascente de água escura”, que ocorre no começo tanto do Canto 9 (v. 14-15) quanto do Canto 16 (v. 3-4). Quando aparece pri-meiro, é Agamênon que chora como uma nascente de água escura, ao proclamar seu fracasso e propor que abandonem a guerra. Suas palavras são idênticas, mas numa for-

207

ma abreviada, àquelas com que tinha feito a mesma proposta no Canto 2, mas então ilusoriamente, com ele mesmo enganado por Zeus. Agora é Pátroclo que chora como a nascente escura na presença de Aquiles, e a imagem, com o peso das associações ante-riores e as implicações futuras, faz mais do que unir os dois cantos. Ela reflete também os sentimentos divididos de Aquiles, sua percepção da dor, à qual a cólera deu agora lugar.364

A visão de Whitman vem resumida por estas pa-lavras, no início do Capítulo 11, em que enfatiza o papel do grande cantor e sua construção “geométrica”:

(...) devemos ter sempre em mente a adver-tência de Parry de não buscarmos “falsos sig-nificados sutis nas repetições, como se pensa-das para evocar uma cena anterior em que as mesmas palavras foram usadas”. E, no entan-to, embora tais ecos estivessem presentes nos esforços de todos os cantores, um dos traços da excelência de Homero parece ter sido o dom para controlar esses ecos mais do que o fizeram os outros poetas orais. Porque os ele-mentos fixos do estilo oral são fixos apenas em si mesmos, e fora de contexto. Dentro do contexto, eles inevitavelmente mudam de cor e tom (...).365

208

A leitura de Whitman, tributária dos novos ru-mos e da Nova Crítica, por mais sensível que seja, é ainda errática. No final da década de 60 e início da de 70, teríamos as contribuições de Anne Amory, que polemiza com Albert Lord;366 do já citado Joseph Russo, com seu artigo “Homero contra sua tradição” [“Homer against his tradition”],367 de 1968; e de W. Whallon, com o livro Fórmula, personagem e contexto [Formula, character, and context], de 1969.

Enfoques mais sistemáticos a esse respeito surgi-riam mais ou menos na mesma época, com destaque para três nomes: Charles Segal, Adam Parry e Norman Austin. Segal, num livrinho de 1971, O tema da muti-lação do cadáver na Ilíada [The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad], buscava, ao analisar certos as-pectos do movimento narrativo entre os Cantos 16 e 24 do poema, demonstrar como o poeta “manipula suas fórmulas para produzir efeitos especiais, e como con-trastes e paralelismos entre cenas análogas ampliam o alcance e a significação da ação”.368 No capítulo intro-dutório, dedicado à discussão dos conceitos de “tema” e “fórmula”, Segal explica que “os paralelismos entre as situações narrativas evocam eles mesmos as repeti-ções formulares; e, inversamente, as repetições possi-bilitam que os paralelismos (ou divergências) entre as situações se esclareçam e desenvolvam”, e acrescenta:

O poeta “pensa” em termos de suas fórmu-las, e qualquer fórmula tem o potencial de evocar cenas similares em que fórmulas si-milares ocorreram. Na prática, porém, esse

209

potencial se realiza apenas em um número limitado de casos, pois muitos paralelismos envolvem fórmulas triviais ou comuns de-mais para serem notadas, ou personagens menores e situações relativamente pouco importantes, que têm pouco impacto sobre as linhas principais da ação.369

A partir dessa ponderação, Segal tenta estabelecer três critérios gerais para que determinada repetição seja considerada relevante:

(1) o uso de fórmulas que não ocorram com muita frequência, a ponto de tornar um caso particular de repetição imperceptível ou des-provido de significado (embora se deva re-conhecer aqui que mesmo fórmulas bastante comuns podem ser empregadas de maneiras inesperadas, e poeticamente significativas); (2) o envolvimento de personagens impor-tantes; e (3) uma situação narrativa de alta voltagem emocional ou intenso páthos, ou (o que dá no mesmo) alguma crise nos destinos de figuras importantes ou da comunidade como um todo.370

Na leitura temática que faz do terço final da Ilía-da, Segal explora de maneira brilhante esses efeitos de associação, deixando claro que esses critérios gerais não são absolutos, e que a interpretação, no fim das contas, depende do modo como se lê o texto.

210

Já a reflexão de Adam Parry, contida num artigo, “Linguagem e caracterização em Homero” [“Language and characterization in Homer”], publicado postuma-mente, em 1972, tem valor especial, porque estabelece um diálogo do filho com o pai, Milman. Adam não demonstra nenhum tipo de acanhamento em rever a posição paterna; logo no início, ele se pergunta sobre a poesia homérica:

As frases fixas de que é largamente feita têm um sentido dependente das palavras indivi-duas que constituem seus ingredientes? Ou o estilo formular impede esse tipo de sentido, de tal modo que essa frases são, operacional-mente, equivalentes a simples palavras? Tais questões têm resposta difícil, mas são vitais, porque as respostas a elas vão determinar todo o modo em que essa poesia será lida; elas vão determinar o sentido dessa própria poesia.

A maneira tradicional de lidar com a questão é apresentada logo seguir:

(...) o próprio Milman Parry e muitos de seus sucessores deram sua resposta: as palavras no interior dessas expressões que podem, pelo seu uso repetido, serem vistas como frases fixas, ou fórmulas, não têm um sentido par-ticular. Elas são partes inseparáveis do con-junto da frase, e a atenção não deve recair sobre elas.371

211

Tomando então como exemplo o verso 7 do Can-to 1 da Ilíada, “...o Atrida senhor de homens e o di-vino Aquiles”, Adam rebate a visão do pai de que “se-nhor de homens” (ánax andrôn) e “divino” (dîos) não têm, aí, um sentido contextual:

(...) qualquer um, penso eu, não importa quantas vezes tenha lido Homero, vai ter a sensação, ao começar o poema e chegar ao verso 7 – que encerra de modo grandioso o primeiro período e a invocação –, de que Agamênon e Aquiles estão sendo bem des-critos. Ele vai, apesar da rigidez dessa escola dos estudos modernos, pensar um pouco a respeito de ánax andrôn e dîos. Ele já fica-rá ciente aqui em alguma medida do con-traste entre os dois, de que tanto depende o confronto: Agamênon, homem do poder político e figura pública, (...) com muito da insegurança que o aspirante à mais alta posi-ção pública pode ter; e Aquiles, cujos valores são mais puramente heroicos e individuais, e que se tornam crescentemente pessoais e privados à medida que a história avança.372

Mais adiante, ele acrescenta:

O importante é vermos que epítetos como os do verso 7 do Canto 1, embora conve-nientes metricamente e embora repetidos com frequência, podem ter o tipo de sentido

212

que naturalmente atribuímos a eles, podem ajudar a definir os personagens e a contar a história (...).373

Adam Parry fornece ainda um outro exemplo ilus-trativo, agora relativo ao epíteto pepnuménos, “ponde-rado”, um epíteto genérico, utilizado para Antenor, Meríones, Eurípilo, Polidamante e Antíloco:

No Canto 23 da Ilíada, Antíloco se deixa le-var pelo desejo juvenil de vitória na corrida de carros, e força Menelau a conter seus cavalos, privando-o de seu prêmio. Nos versos 570-85, Menelau profere um discurso furioso, de indignação contra Antíloco, que se inicia assim, “Antíloco, anteriormente ponderado (pepnuméne), o que fizeste?”, verso em que não se pode pôr em dúvida a clara afirmação “anteriormente ponderado”. Em resposta, Antíloco pede desculpas por sua indiscrição juvenil, e entrega o prêmio a Menelau. Esse discurso é introduzido por “E por sua vez Antíloco ponderado (pepnuménos) retrucou--lhe:”, onde novamente está fora de dúvi-da que, a despeito da posição inteiramente formular do adjetivo, estamos sendo infor-mados de que Antíloco, no final das contas, está se mostrando um homem sensato.374

Dois anos depois da contribuição de Parry filho, Norman Austin, no primeiro capítulo de seu livro so-

213

bre a Odisseia, A arte do arco na lua nova [Archery at the dark of the moon], de 1974, veio propor também, ao longo de 70 páginas, um revisionismo da posição de Parry sobre o significado contextual das fórmulas. Para Austin, a apreciação do epíteto feita por Ruskin – alvo da derrisão oralista – podia não ser, no final das contas, inválida: Parry demonstrara sim a complexi-dade do sistema formular, “mas seu sistema ignorou o contexto e, portanto, falhou em notar o quão fre-quentemente este dita o emprego de uma fórmula em vez de outra”.375 Fazendo um levantamento detalhado da dicção formular na Odisseia, Austin aponta para a riqueza e variedade das expressões – por exemplo, para introduzir Odisseu como falante –, concluindo que a conveniência métrica estava longe de ser o princípio dominante nas escolhas feitas pelo cantor. Voltando então a Ruskin, ele diz:

É uma falácia pretender que o sistema de Parry tornou obsoletos comentários como os de Ruskin sobre o páthos irônico da frase homérica “terra que dá vida” em Il. 3, 243. Na verdade, a frase é um hapax [aparece uma só vez] na Ilíada, embora reapareça na Odisseia, onde é empregada igualmente em referência a Cástor e Pólux. Mas ainda que houvesse dez repetições, a análise de Parry não pode nem recomendar nem proibir a interpretação de Ruskin. Se Homero pode evocar a Aurora em tão variadas formas poé-ticas, ou controlar sua linguagem de modo

214

que os pretendentes nunca digam polúmetis Odusseús [“multiastuto Odisseu”], não é de modo algum implausível que ele pudesse es-tabelecer um contraste entre os irmãos mor-tos de Helena e a terra que dá vida, que os retinha.376

* Na mesma linha de leitura, e contemporâneo de-

les, vale mencionar o trabalho de Harald Patzer, Ar-tifício poético e o trabalho artesanal do poeta na épica homérica [Dichterische Kunst und poetisches Handwerk im homerischen Epos], de 1972 (um dos primeiros es-pecialista de língua alemã a levar em consideração o trabalho de Parry); e, da década seguinte, os livros de Paolo Vivante, Epítetos em Homero [Epithets in Ho-mer], de 1982, e A frase tradicional em Homero [The traditional phrase in Homer], de Richard Sacks, de 1987. Em língua italiana temos o enfoque franca-mente literário – e crítico a Parry – de Vincenzo Di Benedetto em No laboratório de Homero [Nel labora-torio di Omero], de 1994. Também são interessantes os enfoques mais sucintos sobre a questão feitos por Irene De Jong, no artigo “Narratologia e poesia oral: o caso de Homero” [“Narratology and oral poetry: the case of Homer”], de 1991, e por Rainer Friedrich, em “Homero como Flaubert: a ‘phrase juste’ na dicção homérica” [“Flaubertian Homer: the ‘phrase juste’ in Homeric diction”], de 2002 377 – depois Friedrich pu-blicaria o livro Economia formular em Homero: a poéti-

215

ca das brechas [Formular economy in Homer: the poetics of the breaches], de 2007.

Essas abordagens todas tiravam de cena o dogma-tismo oralista original, mas ficavam impossibilitadas de oferecer um método consistente de leitura. Con-vém citar, a esse respeito, a conclusão de Frederick Combellack em seu artigo de 1959, após expor as li-mitações daqueles que tentavam enxergar um signifi-cado especial do epíteto segundo o contexto:

(...) não quero que me vejam como alguém a defender que podemos estar certos de que Homero jamais empregou um epíteto com uma intenção artística deliberada, ou a reba-ter a teoria geral de que ele às vezes emprega sua linguagem formular com uma maravi-lhosa habilidade. Pelo contrário: gostaria de acreditar que essa teoria geral está correta. Mas, correta ou não, a teoria geral não tem utilidade alguma para a abordagem de casos individuais e específicos como os que con-sideramos aqui, porque a teoria geral não contém em si qualquer princípio que nos permita ir em frente e defender, com uma confiança minimamente justificável, que certa passagem que muito admiramos de fato apresenta essa maravilhosa habilidade.378

A questão permanece em aberto porque não há, efetivamente, um parâmetro universal que possa ser aplicado ao nível semântico da repetição formular.

216

Não concordo, assim, com Anthony Edwards quando afirma que é “insustentável” a visão “de que o poe-ta, ou poetas, que compuseram os poemas homéricos usavam fórmulas e temas às vezes mecanicamente (= composição oral), às vezes intencionalmente e com premeditação”, simplesmente pelo fato de que, em sua abordagem, “uma análise convincente das repetições deve tratá-las todas como sendo de um mesmo tipo, e não as diferenciar com base numa leitura ad hoc”.379

Talvez tenhamos que aceitar que se trata sempre, em última análise, de uma interpretação subjetiva e móvel, aberta a diferentes recepções, o que não quer dizer que seja totalmente arbitrária: ela deve levar em conta o valor mais geral da formularidade apontado por Parry, e buscar o eco significativo apenas nos mo-mentos em que isso vem respaldado por uma com-preensão mais ampla, de conjunto, seja das passagens discutidas, seja do próprio poema. Esses parâmetros, se não tornarão decerto a leitura infalível (algo que não existe), a deixarão, ao menos, mais bem embasada, e com maior plausibilidade.

*

Vemos por esse arco temporal que os trabalhos so-bre Homero trouxeram grandes avanços na percepção da oralidade, embora estivessem longe de esclarecer por completo as questões ou mesmo de estabelecer um consenso geral. Se, por um lado, todas as reflexões sumariamente apresentadas aqui não podem mais ser ignoradas na abordagem dos poemas – sob pena de o

217

estudioso dar a impressão de ingenuidade, passadismo ou simples má vontade –, por outro é certo que, por mais que tenham revolucionado os estudos homéri-cos, elas não esgotaram as possibilidades de enfoque. Há uma série de outros elementos que são determi-nantes para o intérprete, oriundos do mesmo método histórico surgido no século XVIII, quando a alegoria foi descartada como chave de leitura e abriu-se es-paço para os estudos da antropologia, da sociologia e teologia homéricas, para não falar das abordagens estruturalistas e narrativas do século XX. Todas essas outras aproximações, cada uma delas com suas espe-cificidades e problemas, nos mostram que a oralidade entra como mais um componente na complexa tarefa de explicarmos Homero.

Como quer que seja, não resta nenhuma dúvida, hoje, de que a poesia homérica é de matriz oral, isto é, está ligada à composição durante a recitação para um público ouvinte. A chamada teoria Parry-Lord, nesse sentido, não é uma proposição especulativa, que sim-plesmente formula algumas hipóteses sem comprova-ção, mas sim um conhecimento sistematizado, com base não só no trabalho comparativo, mas também – e principalmente – na demonstração feita a partir dos próprios poemas. O conjunto de elementos levantados pela “Questão Homérica” nos dois últimos séculos, desde as variantes textuais com que se debatia Wolf (indicativas das possibilidades de expansão e retração narrativa), passando pelas repetições, fórmulas e temas (facilitadores da criação imediata), até os testemunhos históricos sobre a inserção tardia da escrita na Grécia

218

Antiga – todos eles apontam para uma composição oral que opera com parâmetros diversos daqueles de uma cultura letrada.

Não bastassem esses argumentos incontestáveis, a comunicação oral (da boca para o ouvido) é só o que vemos no interior dos poemas homéricos, nos quais a escrita está ausente como tecnologia de comunicação. A passagem do Canto 6 da Ilíada, em que o narra-dor fala de sémata lugrá, “sinais ominosos”, registrados numa tabuinha, não altera – se abordada de modo isento – o quadro. Aparentemente, trata-se de um có-digo restrito a dois interlocutores, de uma comunica-ção pictórica isolada, não inserida num sistema gráfico mais abrangente. Mas, ainda que admitíssemos a pre-sença aí de uma escrita primitiva, o que Homero nos mostra é que ela é absolutamente marginal e irrelevan-te no conjunto da sociedade que apresenta; em outras palavras, se ele conhecia a escrita (silábica, iconográ-fica ou alfabética), ela lhe parecia tão insignificante e incapaz de competir com a palavra falada, que só merece uma única menção – e muito rápida – em 27 mil versos. Trabalhar com a suposição de que se trata de uma simples convenção (que impede que heróis e deuses recorram à escrita) é ignorar a oralidade que domina não só a Ilíada e a Odisseia, mas toda a poe-sia arcaica grega, povoada de cantores; essa suposição nos obrigaria a estender a convenção a outros gêneros poéticos, criando um quadro bem mais complicado do que simplesmente admitir que toda essa poesia foi criada numa cultura oral, que assim se manteve por séculos, mesmo após a introdução do alfabeto. A

219

convenção – um poeta letrado falando em “canto” e criando um universo de pura oralidade – é bem pos-terior a esse período e só poderia ser anacronicamente atribuída a ele.

A qualidade ímpar dos dois grandes épicos gregos – uma sofisticação e profundidade que outros docu-mentos reunidos pelo trabalho comparativo não con-seguiram igualar – não me parece que seja argumento suficiente para que se defenda uma interferência da escrita na sua composição. É mais fácil imaginar que as circunstâncias históricas, culturais e poéticas da Grécia Antiga são as responsáveis por esses produtos inigualáveis. A bem da verdade, a rica tradição gre-ga não gerava apenas grande obras: como toda tradi-ção, seus resultados eram variados (do poema pífio à grande elaboração, o espectro é sempre amplo), e as referências que temos a outras epopeias gregas oriun-das da mesma fonte, além dos próprios épicos de Hesíodo, nos indicam que a Ilíada e a Odisseia são casos incomparáveis mesmo no interior da tradição em que surgiram. Isso, naturalmente, não nos obriga, mais uma vez, a pensar na figura de um cantor/poeta genial, que supera toda a produção precedente e impõe, com dois poemas grandiosos, sua nova marca. Pensar assim representaria invalidar a própria tradição, porque se há grande cantores – e sempre há – eles só existem em função da tradição, a serviço dela e de seu enriquecimento. O grande poema, a grande obra, é sempre uma exceção, mas num ambiente tradicional como o dos poemas homéricos é mais razoável deixar de lado a concepção romântica do autor original e

220

pensar que o grande acerto é um produto gradual, fruto da cooperação de sucessivos cantores por um vasto e indeterminado período.

No entanto, apesar dessa oralidade dominante e do peso da tradição, nós lemos Homero; para nós, não se trata, toda vez que entramos em contato com ele, de um texto puramente oral, mas sim de um texto oral lido. Além do mais, não se trata do texto de Homero, porque a tradição performática produzia textos suces-sivos; nossa chamada “vulgata” surgiu com Wolf no início do século XIX e deve vir entre aspas porque é absolutamente artificial. Isso acarreta pelo menos três consequências importantes: 1. não podemos trazer os componentes expressivos da performance para a nossa análise, porque eles são extratextuais; 2. interpretamos um forma final virtual (talvez jamais recitada) tanto da Ilíada quanto da Odisseia, poemas que, em outras feições, poderiam produzir significados diferentes dos atuais; e 3. nossa crítica, ainda que deva levar em con-ta as marcas orais dos poemas, vai inevitavelmente se valer das ferramentas de análise do texto literário a que estamos habituados.

Quanto ao item 2, deve-se dizer que nossos poe-mas, a Ilíada e a Odisseia, com 15.693 e 12.110 ver-sos, respectivamente, correspondem a formas narrati-vas bastante desenvolvidas (como o comparativismo atesta), e que esse desenvolvimento é característico do grande texto oral. Portanto, ainda que trabalhe-mos com poemas cujo formato final foi construído pela nossa tradição textual, eles são certamente repre-sentativos da qualidade épica grega e a interpretação

221

deles nessas condições é absolutamente válida. Sobre os itens 1 e 3, acho que é possível propor, de modo geral, a seguinte abordagem: em primeiro lugar, não negligenciar por completo o dado extratextual, por-que, usado com moderação, em certos momentos ele pode contribuir – por mais hipotético que seja – para a interpretação. Em segundo lugar, não cair na velha posição dogmática oralista de que determinadas mar-cas estipulam apenas determinados sentidos (em geral restritos), e de que sua leitura se rege por leis diferen-tes daquelas aplicáveis ao texto escrito: é preciso sim estar muito atento ao que é próprio da mecânica oral, mas, por outro lado, toda construção dramática verbal (escrita ou não) emprega os mesmo recursos – articu-lação narrativa, caracterização dos personagens, confi-guração temporal etc. –, e descrevê-los e entendê-los é atividade de qualquer crítico. É inevitável que isso produza um cruzamento de poéticas em certa medida anacrônico, mas seria ingênuo pensar que poderíamos nos aproximar de Homero como os gregos antigos o faziam. Nosso olhar de Homero vai estar sempre de-terminado por nosso tempo e lugar, por nossos inte-resses e preocupações, e essa contaminação deve ser vista de modo enriquecedor – afinal, na própria an-tiguidade Homero foi visto de diferentes maneiras, segundo diferentes épocas e perspectivas.380

Quanto à espinhosa questão da fixação de Home-ro por escrito, não há outra saída senão aceitar nosso total desconhecimento, hoje, sobre como e quando isso se deu. O fato é que, assim como a qualidade dos poemas não pressupõe a interferência da escrita, sua

222

estabilidade maior (na comparação com outras poe-sias orais) não implica necessariamente a fixação ou memorização de um texto: ela parece decorrer, por um lado, da natural manutenção de desenvolvimen-tos dramáticos cujos contornos iam se mostrando ex-celentes, e, por outro, da própria estrutura complexa do hexâmetro (como queria Parry e depois dele Kirk), propensa a desestimular modificações dentro do verso. Negar essa transformação sob a ação de uma nova tec-nologia não significa fechar os olhos para uma interfe-rência da escrita que é concreta, uma vez que o registro gráfico, convencional e artificial, não corresponde à voz, com suas entonações, ênfases, reticências, pausas, teatralizações etc. Basta olhar para os versos de Ho-mero em grego para se perceber, por exemplo, como a escrita emprega artifícios próprios para “traduzir” os característicos alongamentos das sílabas: musicalmen-te, trata-se de um procedimento rítmico natural, mas seu resultado, no papel, é o surgimento de formas es-tranhas. Portanto, não se pode negar que esse contato dá outra cara àquilo que era apenas desempenho oral, mas isso, porém, não constitui uma alteração substan-cial e decisiva.

O que talvez a “Questão Homérica” nos ensine de forma mais contundente, em sua longa abordagem da oralidade, é que mais importante do que elucubrar sobre a história, a gênese, o desenvolvimento, a au-toria e a fixação dos poemas é concentrar-se em seus textos. Nesse sentido, o trabalho de Milman Parry é exemplar, porque foi o estudo atento do Homero que temos hoje diante dos olhos que o levou a comprovar

223

a presença de uma determinada tecnologia de co-municação – o que não quer dizer que devemos ficar atentos apenas (ou principalmente) a essa tecnologia, porque a criação é mais importante do que o modo de criar. Importa, assim, atentar mais para os efeitos e significados dessa criação do que para seus modos de produção, ou para as intenções de um criador. Como já disse Giovanni Cerri, “a crítica homérica não pode ficar exclusivamente reduzida nem à diacronia das in-dagações genéticas nem à sincronia das análises for-mulares e temáticas”, porque “seu objetivo primeiro permanece sendo a compreensão sempre mais profun-da dos próprios poemas”.381

NOTAS

306 Para um apanhado do trabalho de Parry, ver James Holoka, “Homer, oral poetry, and comparative literature: major trends and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung, p. 456-463. Ver também o que diz Charles Beye, “Milman Parry” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia, 361-366. Beye insiste que a morte por arma de fogo num hotel da Califórnia foi acidental, e não suicídio.

307 Sobre Bentley, ver R. Pfeiffer, History of classical scholarship from 1300 to 1850, cap. XI (p. 143-158). Pfeiffer fala de sua época como aquela em que surge “novo refinamento do espírito, uma absoluta confiança no poder da razão para se analisar e criticar a tradição, e se encontrar a ordem legítima nas criações da mente humana” (p. 145). Segundo Pefeiffer, enquanto crítico formu-lador de conjecturas, Bentley “não encontra paralelo na história dos estudos clássicos” (p. 155), e a importância de sua descoberta foi enorme: “pela primeira vez um passo fora dado para além do texto tal qual fixado pelos gramáticos alexandrinos e seus segui-dores” (p. 157). F. A. Wolf escreveu em 1816 um artigo sobre

224

Bentley, a quem admirava, mas considerava a reinserção do diga-ma “senil ludíbrio” (ver Pfeiffer, p. 148, nota 8, e p. 157).

308 Ver J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclo-paedia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 974, onde chama a atenção para a importância das descobertas relati-vas aos epítetos feitas já na primeira metade do século XIX por Gottfried Hermann, ao estudar o hexâmetro.

309 Ver o que diz E.J. Bakker, “Introduction: Homer and oral po-etry research”, em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-ments, vol. 1, p. 166, e também Thérèse de Vet, “Parry in Paris: strcuturalism, historical linguistics, and oral theory”, p. 257-284. Lembra-se ainda que é de 1928 o clássico – escrito em russo – de Vladimir Propp, Morfologia do conto popular.

310 Ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 408-13.311 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xxii e xxiv.312 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 421-422.313 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 424.314 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 429.315 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 428.316 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 4.317 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 6.318 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 6.319 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 8.320 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 9.321 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 20.322 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 20, nota 1.323 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 21.324 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 23.325 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 68.326 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 68 e 175.327 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 176.328 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 45.329 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 74.330 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, respectivamente, p.

103, 44 e 218.331 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 105-6, e também

p. 246 e 314.332 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 221.333 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 118.

225

334 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 120-4.335 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 124-5.336 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 126 (grifo origi-

nal).337 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 127.338 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 137.339 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 133.340 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 130 (grifo origi-

nal).341 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 141.342 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 156 (grifo origi-

nal).343 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 155-65.344 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 249.345 O primeiro, em Transactions of the American philological associa-

tion 94: 235-247, e o segundo, em Yale Classical Studies 20: 219-240.

346 Uma versão condensada, publicada em 1988, com o título “For-mulae or single words? Toward a new theory on Homeric verse-making”, está em I. De Jong (ed.), Homer: critical assessments, vol. 1, p. 364-382.

347 Oral tradition 19/2 (2004): 236-252. Veja-se ainda a distinção feita por C. Pavese entre “densidade formular” e “porcentagem formular”; em termos de “densidade”, que seria o critério mais importante, ele chega a perto de 60% tanto para a Ilíada quan-to para a Odisseia; ver seu “The rhapsodic epic poems as oral and independent poems”, Harvard studies in classical philology 98 (1998): 63-90, p. 66-68.

348 Cito a partir do excelente artigo de Frederick Combellack, “Mil-man Parry and Homeric artistry”, em Comparative literature 11/3 (1959): 193-208, p. 197, onde toda a questão é muito bem exposta.

349 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 125, nota 2, e p. 129.

350 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 82.351 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 83-4.352 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 96. Ver também

p. 92. Décadas depois, Bowra mantém basicamente a mesma po-sição, mesmo já familiarizado com a obra de Parry. Ver seu livro

226

Heroic poetry, de 1952, e seu capítulo “Style” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer, de 1962.

353 Citado a partir do artigo de F. Combellack, “Milman Parry and Homeric artistry”, p. 194-5.

354 G. Calhoun, “Homeric repetitions”, University of California pub-lications in classical philology 12 (1933): 1-26, p. 9 e 12.

355 S. Bassett, The poetry of Homer, p. 115; ver também p. 160-164.356 S. Bassett, The poetry of Homer, p. 4 e 16 (a discussão sobre Parry

ocupa as páginas 14 a 20).357 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 126.358 J. Sheppard, “Zeus-loved Achilles” em Journal of Hellenic studies

55/2 (1935): 113-123, p. 114.359 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 306.360 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 10-4.361 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 380.362 Ver seu artigo “Continuity and interconnexion in Homeric oral

composition”, em Transactions of the American Philological As-sociation 82: 81-101, p. 96.

363 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 114-5.364 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 279.365 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 249.366 Vejam-se artigos “The gates of horn and ivory”, Yale classical

studies 20 (1966): 3-57; “Homer as artist”, Classical quarterly 31 (1971): 1-15, e o livro póstumo Blameless Aigisthos: a study of “amúmon” and other Homeric epithets. Leiden: Brill, 1973. Para discussão com Lord, ver James Holoka em “Homer, oral poetry, and comparative literature: major trends and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung, p. 470-473.

367 Arion 7: 275-295. Mais recentemente, em 1997, Joseph Russo contribuiu com o texto “The formula” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion to Homer, p. 238-260.

368 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad. Leiden: Brill, 1971, p. ix.

369 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad, p. 6.

370 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad, p. 6.

227

371 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-guage of Achilles and other papers. Oxford: The Clarendon Press, 1989, p. 302.

372 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-guage of Achilles and other papers, p. 303-4.

373 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-guage of Achilles and other papers, p. 305-6.

374 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-guage of Achilles and other papers, p. 308.

375 N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in Homer’s Odyssey. Berkeley: University of California Press, 1975, p. 13 e 25.

376 N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in Homer’s Odyssey, p. 68.

377 Poetics Today 12 (1991): 405-423, e Arion 10/2 (2002): 1-13.378 F. Combellack, “Milman Parry and Homeric artistry”, p. 207.379 A. Edwards, Achilles in the Odyssey: ideologies of heroism in Ho-

meric epic. Königstein: Anton Hain, 1985, p. 3, nota 3.380 Ver a discussão lúcida de James Holoka, que encerra seu artigo

“Homer, oral poetry, and comparative literature: major trends and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung, p. 476-481.

381 G. Cerri, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto ome-rico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, p. 29.

POSFÁCIO:

OS CLÁSSICOS PELAS BEIRAS

Condenado a ser exato,quem dera poder ser vago

Paulo Leminski, “Mais ou menos em ponto”

Quem se envolve com os Estudos Clássicos no Brasil logo constata que nossa tradição é míni-

ma, para não dizer inexistente. Vivemos um círculo vicioso: não temos uma produção forte e contínua, que se autoalimenta, porque importamos as visões de fora, e precisamos importar as visões de fora por-que não temos uma produção forte e contínua. Não se trata de defender, simplesmente, um nacionalismo ingênuo, de pleitear uma criação genuína, livre de es-trangeirismos. Essa postura – se é que factível – repre-sentaria um tiro no pé: na área da filologia clássica, a produção mais que centenária de alemães, ingleses,

230

franceses, italianos e americanos é tão importante, por sua abrangência e profundidade, que abrir mão dela significaria matar qualquer abordagem crítica de ina-nição. Sem recorrer a ela, qualquer autor, por maiores que sejam sua sensibilidade e compreensão do texto antigo, corre o risco de mergulhar no vazio. Por outro lado, a adoção irrestrita do modelo externo, como se a forma com que os estudiosos do Hemisfério Nor-te leem as obras gregas e latinas fosse única e ideal, é sinal da nossa incapacidade de pensar minimamente por conta própria, incorporando à abordagem um ân-gulo nosso, que a torne também interessante, mas de outra maneira.

Há uma dura ironia na adoção dessa segunda postura, que tem largamente predominado entre nós: escreve-se em português mimetizando-se aquilo que se lê em inglês, francês, alemão, italiano, com o intui-to de fazer parte do debate deles, mas somos alvo da mais completa indiferença e ignorância externa (ou, quando não, de um paternalismo constrangedor), sen-do sumariamente excluídos da discussão antes mesmo de fazermos parte dela. Escrever em inglês – a língua franca do conhecimento – é uma saída possível: o tra-balho será lido (será?) pela comunidade acadêmica in-ternacional. Mas o preço a ser pago por esse ingresso no sumo círculo da filologia é o esquecimento por par-te de estudantes e estudiosos em geral em português, para os quais a obra em língua estrangeira passa a ter menos interesse e visibilidade. Não sou contra que se escreva em inglês (ou francês, ou alemão), mas des-confio da postura em que o idioma é apenas o índice

231

mais visível de uma vontade de “ser igual” e ingressar num “círculo superior”.

Sei que o risco da generalização é grande. Há inú-meras contribuições valiosas por parte dos que vieram antes de nós, e com as gerações mais recentes elas só vêm crescendo, em quantidade e variedade. São muitos a produzir na área de grego e latim no Bra-sil – traduções, ensaios, artigos especializados, livros acadêmicos e de divulgação –, não apenas em letras, mas em história, arqueologia, filosofia, antropologia etc. Não seria possível mencionar aqui os nomes de todos. Cada um tem a sua formação, seu enfoque, seus interesses, e dificilmente se reconheceria nesse quadro geral; os “estudos clássicos” são, efetivamente, um uni-verso heterogêneo. Mas o que quero sublinhar aqui é tão-somente a visão, que recebi de Jaa Torrano, de que estudar os clássicos no Brasil, e em português, não pode ser tomado apenas como um simples acaso, um acidente facilmente contornável através de um movi-mento de internacionalização; no entanto, de modo geral, é um movimento assim (muito mais complexo do que eu seria capaz de descrever aqui) que tem pre-valecido.

Na minha visão, precisamos manifestar “a diferen-ça que acusa a reação própria”, para usar a expressão de uma figura fundamental, José Cavalcante de Souza. Na introdução que redigiu para sua tradução do Ban-quete, da década de 60, Cavalcante reconhece a “falta de disciplina e de tradição (...) nesse setor [os Estudos Clássicos] da nossa atividade intelectual”, mas insiste em falar sobre “o que seria uma reação especial nos-

232

sa a um texto helênico, que conhecemos geralmente através da sensibilidade e da elucubração do francês, do inglês, do alemão”. Diante das “possibilidades de expressão (...) ofuscadas e ameaçadas no tradutor brasileiro de textos gregos e latinos pelo prestígio das grandes línguas modernas da cultura ocidental”, ele comenta:

Nossa língua tem necessariamente uma ma-leabilidade especial, uma peculiar distribui-ção do vocabulário, uma maneira própria de utilizar as imagens e de proceder às abs-trações, e todos esses aspectos da sua capa-cidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verdadeiro desafio que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para uma tradução. (...) Fazer com que se manifestasse nesta tradução jus-tamente a diferença que acusa a reação pró-pria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo sempre presente do tradutor.

As palavras valem para a atividade tradutória, mas podemos extrapolar o contexto e tomá-las em sentido mais amplo: devemos investir numa expressão singu-lar nossa. Mais uma vez, não se trata de ser contra a in-ternacionalização em si, nem de fechar os olhos para o que vem de fora: se somos capazes de criar o germe de algo que podemos dizer que é nosso, isso só é possível por causa da base riquíssima que os estudos filológicos nos deram. Sem ela, não teríamos de onde partir. Sem

233

as edições críticas, sem os comentários, sem as mais variadas análises e explicações, estudar qualquer poeta ou prosador da antiguidade seria impraticável. Nun-ca pudemos abrir mão delas, e não torço aqui para que um dia possamos: não se deve jamais levantar a bandeira a favor do fechamento ao que vem de fora. Mas o fato é que cada uma dessas contribuições traz a marca de um olhar específico – da França, da Ale-manha, da Inglaterra, dos EUA, da Itália –, não sendo elas uma massa indistinta (havendo, ainda, diferentes correntes dentro dos próprios países). A posição que essas contribuições ocupam depende, em grande par-te, do aporte próprio que trazem para o debate, segun-do cada tradição.

Nós, aqui, queremos eleger o modelo ideal – ini-cialmente, por causa da “missão” que fundou a USP, o francês, com seu pendor “filosófico”, e mais recen-temente a filologia dura anglo-americana, com seu pragmatismo. Temos a ilusão de que recriaremos aqui as mesmas condições, para que os estudos clássicos flo-resçam segundo o padrão. Mas a verdade é que não só estamos atados a uma língua “inculta e bela” que nin-guém lê, mas a um ambiente que muitas vezes sabota a adoção daquilo que é responsável pela qualidade da produção externa: o debate efetivamente crítico. Que-remos ser como eles são, mas cultivamos um corpo-rativismo cuja lei máxima é não interferir de maneira alguma na esfera alheia. Palestras são dadas, mas o de-bate é magro, quase pró-forma; livros são publicados, mas as resenhas (quando existem) são burocráticas, descritivas; bancas e grupos são formados, mas inves-

234

timos menos do que poderíamos na troca de ideias. Ou seja, aquilo que entre os filólogos que admiramos é discussão viva e parte essencial de sua própria produ-ção torna-se aqui um mecanismo estranho, que deve ser mantido à distância e sob controle, para não ferir suscetibilidades. A crítica ao trabalho de um colega corre o risco de ser tomada pessoalmente, como se as objeções o diminuíssem aos olhos dos outros, quando deveria ser sinal de respeito e consideração pela pro-dução alheia.

O resultado é que quase não nos lemos e não nos citamos (embora, é verdade, a situação esteja paula-tinamente se alterando). E, não obstante, todos que-remos que nossos artigos e livros tenham o reconhe-cimento que achamos que merecem. Mas como ser levado em consideração, quando o que se faz é sim-plesmente desconsiderar o trabalho alheio? Como in-sistir que meu trabalho deve ser lido em português, quando o que minha bibliografia mostra é que esses trabalhos merecem pouca ou nenhuma atenção? Mos-tramos aos nossos alunos que temos sim nossa própria produção, mas só a produção de cada um de nós é relevante. Cria-se, no fim, um verdadeiro arquipéla-go de pesquisadores e obras: fazemos parte do mesmo conjunto, mas na prática tendemos a nos ignorar.

Um dos indícios mais penosos desse ambiente vem da publicação de livros. Eles são editados, mas não são comentados. Mesmo obras importantes, de autores estrangeiros que admiramos, se traduzidas, são ignoradas. Exagerando, é como se o que sai na nossa língua fosse menor, com menos valor. É verdade que

235

o desdém se dá, em parte, por causa da própria quali-dade: o valor das obras é muito irregular; as traduções, se entregues a não especialistas (e, às vezes, mesmo a especialistas), derrapam ao lidar com o universo clássi-co; as próprias editoras, pela falta de tradição, não têm condições mínimas de decidir sobre o nível do que estão publicando. Mas isso tudo não é desculpa para que desprezemos essa produção – no fim das contas, vítima dos defeitos que nossas próprias obras também podem trazer.

Se passamos aos periódicos especializados, vemos que há uma proliferação de títulos (com a publicação de textos interessantes e variadíssimos), mas, infeliz-mente, na proporção inversa de sua divulgação – mes-mo sendo ainda pequena a área de Estudos Clássicos no Brasil. Ou seja: a produção se amplia e é documen-tada, mas falta ainda, a meu ver, um movimento que faça esses textos circularem entre os estudiosos, para que eles se tornem, efetivamente, elos e fontes de estí-mulo para a reflexão.

O magro universo das resenhas também ajuda a escancarar nossa postura: trabalhos fundamentais fo-ram produzidos no Brasil nos últimos 40, 50 anos, mas pode-se contar nos dedos das mãos quantas rese-nhas realmente críticas foram escritas a respeito deles. É curioso ver como, quando essas abordagens críticas acontecem, muitas vezes recebem uma reação passio-nal, em que a exposição de problemas transforma-se em ofensas; outras vezes, o autor resenhado trata com desdém as críticas, considerando-se “incompreendi-do”. É normal que, com nossa falta de tradição, es-

236

sas resenhas não tenham espaço nos grandes jornais: o profissional da área não é capaz em geral de aferir a importância ou qualidade de um livro lançado; e, quando encarrega alguém da tarefa (algum especialis-ta), a escolha – tanto do resenhista quanto da obra a ser resenhada – se dá segundo relações e interesses poucos objetivos.

No entanto, a despeito desse e de outros proble-mas, é preciso tentar ver o que há de interessante na nossa formulação, sem tachá-la de amadora e preteri--la em nome da “verdadeira” filologia clássica. Talvez o que a leitura de grandes medalhões da área mais nos ensine é que a pretensa exatidão, o almejado cientifi-cismo da nossa disciplina, com a reunião espantosa de informações e ferramentas, não raro conduz a uma posição que é, em certa medida, ingênua. Eles pavi-mentaram sim o caminho para nós, mas isso não é tudo. Há uma margem imprecisa, vaga e obscura nos textos que estudamos – que são literários – que pre-cisamos abordar mais com sensibilidade do que com a implacável lucidez que vem de fora. Essa impressão consolida-se em mim quando consulto os comentários minuciosos – e de erudição acachapante – que grandes filólogos produziram nos últimos cem anos: o mate-rial reunido é de tirar o fôlego, o que torna a consul-ta dessas obras indispensável. Ao mesmo tempo, em várias passagens sinto que o autor (estou pensando, por exemplo, nos apontamentos de Kenneth Dover às Nuvens de Aristófanes, ou nos de Denys Page ao Agamênon de Ésquilo) deixa de fora questões poéticas, detalhes de interpretação e sensibilidade, conexões su-

237

gestivas, que são tão importantes para o entendimento da obra quanto aquelas exaustivamente expostas.

O que quero dizer, em outras palavras, é que a busca por exatidão e luz científica pode ser, para nós, uma grande armadilha, da qual devemos estar cons-cientes. Há uma fala de Georges Dumézil que, me parece, ilustra bem isso: ao ser indagado, em sua en-trevista a Didier Eribon de 1986, sobre o que pensava do trabalho do amigo Claude Lévi-Strauss, Dumézil fez a seguinte distinção: ele próprio seria “filólogo”, em contraposição ao colega do Collège de France, que via como “filósofo” associado à poesia, porque desvin-culado do campo rigoroso dos fatos. Essa afirmação, lida hoje, põe em evidência exatamente a ingenuidade de se imaginar que há, muita claramente, um caminho acadêmico mais preciso, mais embasado. Sim, a obra monumental de Lévi-Strauss é uma construção inte-lectual imaginativa, com o estabelecimento de premis-sas e relações que podem parecer muitas vezes arbitrá-rias, mas a filologia indo-europeia de Dumézil é mais “real” do que a filosofia do seu colega? Ela também não é uma construção sofisticada? No fim das contas, imagino que o mais prudente é que o filólogo “duro” reconheça que sua abordagem é fruto de uma época, de um olhar, de uma elaboração teórico-discursiva – e sujeita, portanto, às mesmas limitações.

Depois de um ano fazendo meu pós-doutorado na Universidade de Brown, de agosto de 2011 a julho de 2012, fiquei com a impressão de que a filologia nos EUA (e provavelmente na Europa) encontra-se num impasse: o peso da longa tradição (em que quase

238

tudo, da perspectiva deles, parece já ter sido mapeado e estudado), somado a um excesso de erudição e cien-tificismo, parecem indicar um esgotamento das pos-sibilidades. As palavras do inglês Hugh Lloyd-Jones sobre Karl Reinhardt, tiradas do livro Blood for ghosts: classical influences in the nineteenth and twentieth cen-turies, de 1982, parecem valer mais do que nunca:

Em nosso tempo, os estudiosos clássicos frequentemente dizem uns aos outros que deveriam parar de se concentrar excessiva-mente no trabalho técnico e se dedicar mais à interpretação literária das obras. Mas tem sido mais fácil falar do que pôr isso em prá-tica.

A queixa é antiga: Milman Parry, numa comuni-cação de maio de 1934, “The historical method in li-terary criticism”, já chamava a atenção para os limites da abordagem restrita e encastelada.

O mesmo Lloyd-Jones tem consciência de que a empreitada não é fácil: é preciso combinar trabalho duro com sensibilidade, alguma base sólida e não im-pressionista com a interpretação mais solta. Mas o fato é que, como ele diz na introdução ao mesmo livro, o “hard work”, ainda que etapa absolutamente necessá-ria, corre o risco de – existindo por si – se tornar algo “vazio” e “estéril”:

A erudição existe para pessoas, e não as pes-soas para a erudição; nós estudamos a An-

239

tiguidade a fim de usá-la segundo nossos interesses. Uma obra de arte ou literária é sim um documento histórico, que precisa ser estudado em seu contexto; mas é um do-cumento que foi criado com determinado interesse, e seu significado histórico e social só pode ser adequadamente apreciado se tivermos em mente seu propósito e caráter artístico.

Mas o fato é que os Estudos Clássicos não conse-guem se libertar de seu nascedouro positivista (e seu binômio crítica textual/reconstrução histórica), visto, muitas vezes de forma inconsciente, como seu lastro. Como diz John Peradotto, no artigo “Modern theore-tical approaches to Homer”, há na área basicamente duas grandes correntes, uma que “se volta para o pas-sado e se preocupa com fontes, origens, considerações históricas”, e a outra que “olha para frente e enfatiza o contexto e a situação do leitor moderno”. A primeira, diz Peradotto citando a classificação de outro especia-lista, é “centrípeta” (“concebe o texto em termos de uma intenção original que se situa em seu centro”), e a segunda, “centrífuga” (“vê a vida do texto como algo que se dá em sua circunferência, que está constante-mente se expandindo, abarcado novas possibilidades de sentido”). Diante desses dois caminhos (que se re-partem, cada um, em muitos outros), ele não hesita em dizer que “estamos condicionados a pensar a filo-logia clássica como algo que se define mais por uma leitura retrógrada ou centrípeta do que pela outra [a

240

centrífuga]”. É uma maneira simplificada de dizer o que diz de modo contundente Antoine Campagnon no seu livro O demônio da teoria, sobretudo no capí-tulo “O autor”, que deveria ser leitura obrigatória para qualquer filólogo.

Acredito que a nossa posição periférica, de estu-diosos clássicos brasileiros, nos permite explorar essa limitação que, de diferentes maneiras, é vivida pelas fortes tradições da Europa e dos EUA. A margem nos exclui, mas também nos dá a chance de ver tanto o que americanos e europeus veem quanto o que não veem (em parte porque, para eles, a filologia conti-nuar a ser feita como vem sendo feita é quase tão na-tural quanto o ar que respiram). Na realidade, a dura constatação sentida por um estagiário no exterior de que, para eles, só eles mesmos existem e nós somos apenas um ruído distante e incompreensível – que tratam com desdém ou com a simpatia que se dis-pensa ao pitoresco –, nos dá uma grande vantagem, porque, a despeito de outras limitações, essa, do olhar dominante, de uma tradição já sufocante, nós não te-mos. Simplesmente reproduzir o que eles fazem é, por um certo ângulo, confirmar essa inexistência. Extrair da experiência deles o que é interessante e fundamen-tal – como o debate aberto e contínuo –, somando a ela o que talvez só nossa periférica condição permita (e que, portanto, é para eles incompreensível), é uma possibilidade – entre outras, é bom frisar – instigante, ainda que os resultados sejam imprevisíveis, porque dependem do movimento de muitos, por um tempo extenso.

Podemos fazer comentário filológico e edição crí-tica (e fazermos bem), mas não seremos menores se não fizermos – ou se fizermos de um modo talvez não aceitável para eles. Nossa erudição pode também ser outra, menos explícita e mensurável. Ela pode traba-lhar com uma indeterminação maior, ciente de que, a par da riqueza, há algo de mecânico e inibidor no tipo de abordagem que importamos. Europeus e ame-ricanos têm, em geral, uma necessidade de objetivida-de científica que às vezes pode acabar por tolher uma compreensão mais profunda e, nos piores casos, levar à posição de que tanto querem se afastar com sua ciên-cia. Se o classicismo deles é abrangente (implicando necessariamente a conjugação de Grécia e Roma) e se baseia num conhecimento quase sobre-humano de autores e obras, por que o nosso não pode ser menos totalizante, mais restrito e interpretativo?

É verdade que alguns desafios são comuns a todos os filólogos, no mundo inteiro. São desafios antigos: investir na construção de uma narrativa clara e minimamente acessível, livre de tecnicismos e afim à natureza da área das humanidades; apostar mais no diálogo seletivo, sem a pretensão de um mapeamento exaustivo das notas em profusão, que confundem; buscar sempre que possível a visão mais geral e panorâmica, e não deixar de ancorá-la às ques-tões contemporâneas. É verdade também que estou sendo de novo reducionista, porque o próprio Lloyd-Jones, junto com inúmeros outros – mesmo dentro da tradição mais “dura” – buscaram justamente caminhos alternativos e ensaísticos, uns mais, outros

242

menos conscientes do esgotamento do enfoque técnico-científico. Os resultados são muitas vezes excelentes, mas suspeito que dificilmente o autor será de fato respeitado apenas por isso – é preciso que ele revele em seus estudos a tradicional base formativa... A impressão final que tenho é de que eles não conseguem, efetivamente, encontrar atalhos; por que então nós, livres desse peso, não exploramos, além das costumeiras, outras sendas?

Sempre de olho nas possibilidades que vêm dos grandes centros, podemos ainda acrescentar outras, advindas de outras partes, de outros campos. Te-mos aqui, por exemplo, uma tradição importante de crítica literária (ensaística e interpretativa), com autores de peso, desde o século XIX. Essa material pode servir como fonte de inspiração e orientação para a análise das obras clássicas, dando assim um feitio próprio à nossa abordagem. Pode-se ainda bus-car mais o diálogo com trabalhos produzidos fora do eixo dominante EUA-Inglaterra-Alemanha (além de França, Suíça e Itália, deve-se pensar em Espanha, Holanda, Portugal, Argentina e a própria Grécia, entre outros), ou o diálogo com vertentes de análi-se presentes nesses e em outros países em geral não contempladas pelos Estudos Clássicos – como, por exemplo, o trabalho desenvolvido pelo norte-ameri-cano Robert Alter com a narrativa da Bíblia hebrai-ca. Em outras palavras, devemos sim reconhecer a autoridade de uma tradição que é forte e produtiva, mas não precisamos nos submeter a ela, sem propor críticas e alternativas.

243

Outro dado característico do nosso ambiente acadêmico é a atenção dispensada à tradução criativa dos textos poéticos (e também em prosa) e, mais recentemente, ao estudo das traduções. Surgida, me parece, por conta da grande influência exercida pelos concretistas nos últimos 30 anos (veja-se, na área de clássicas, a conexão estreita entre Haroldo de Campos e Trajano Vieira), essa prática já é uma realidade entre latinistas e helenistas – ainda que a dependência ex-terna nos faça relutar em acolhê-la devidamente como algo legítimo (ou nos permita a acolhida, contanto que enquadrada pela tendência mais recente deles de valorizar a Recepção). A meu ver, dois nomes são fun-damentais nesse movimento: o de Jaa Torrano, com suas traduções do grego, publicadas a partir da déca-da de 80, e o de João Angelo Oliva Neto, com suas traduções do latim e do grego, a partir da década de 90. Os muitos pesquisadores que hoje se dedicam nas universidades a verter poeticamente gregos e latinos (e a produzir reflexões a respeito) dependem, direta ou indiretamente, desses dois nomes, e esse trabalho conjunto, à medida que se intensifica e adensa, mostra que talvez tenhamos algo próprio com que contribuir.

Não acredito, contudo, em originalidade absoluta; tradução em verso feita por um acadêmico ou – como já apontei – estudo mais interpretativo/ensaístico pro-duzido por um especialista: há exemplos disso em ou-tras línguas, nos séculos XIX e XX. Mas talvez não nas condições e na forma como pode haver hoje no Brasil, de modo minimamente singular. Claro que reconheço que reflexos de um turbante de bananas não seriam

244

particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido no Brasil. Apenas sei que este fato “Brasil” só pode liberar energias criativas que façam proliferar pesqui-sadores de tais disciplinas (ou inventores de disciplinas novas) se não se intimidar diante de si mesmo.

OBRAS CONSULTADAS

N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic pro-blems in Homer’s Odyssey. Berkeley: University of California Press, 1975.

E. Bakker, “Introduction: Homer and oral poetry re-search”, em Irene De Jong (ed.), Homer: critical as-sessments. 4 vols. New York: Routledge, 1999, vol. 1.

V. Bérard, Introduction a l’Odyssée. 3 vols. Paris: Les Belles Lettres, 1924-1925.

M. Bowra, Tradition and design in the Iliad. Oxford: The Clarendon Press, 1930.

W. Briggs & W. Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1990.

H. Browne, Handbook of Homeric study. London: Longmans, Green & Co, 1905.

G. Calhoun, “Homeric repetitions”, University of California publications in classical philology 12 (1933): 1-26.

246

G. Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero. Roma: Carocci Editore, 2006

_________, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto omerico: Il concetto di ‘poema tradizio-nale’”, Quaderni Urbinati de cultura classica 70/1 (2002): 7-34.

F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Ho-meric originality”, American journal of philology 71/4 (1950): 337-364.

_________, “Contemporary Homeric scholarship – I”, The classical weekly 49/2 (1955): 17-26.

_________, “Contemporary Homeric scholarship – II”, The classical weekly 49/3 (1955): 29-44.

_________, “Milman Parry and Homeric artistry”, Comparative literature 11/3 (1959): 193-208.

P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero Omero, seguita dal Giudizio sopra Dante. Pisa: Edizioni ETS, 2006.

M. Croiset, Histoire de la litterature grecque. Paris: Li-brairie Thorin & Fils, 1896.

_________, “La question homérique au début du XXe siècle”, Revue des deux mondes 41 (1907): 600-625.

J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer. Lon-don: Macmillan, 1962.

T. de Vet, “Parry in Paris: strcuturalism, historical lin-guistics, and oral theory”, Classical antiquity 24/1 (2005): 257-284.

C. Dué (ed.), Recapturing an Homeric legacy: images and insights from the Venetus A manuscript of the

247

Iliad. Washington: Center for Hellenic Studies, 2009.

C. Dué & M. Abbott, Iliad 10 and the poetics of am-bush. Washington: Center for Hellenic Studies, 2010.

A. Edwards, Achilles in the Odyssey: ideologies of heroism in Homeric epic. Königstein: Anton Hain, 1985.

A. Ercolani, Omero. Roma: Carocci Editore, 2006.B. Fenik, Studies in the Odyssey. Wiesbaden: Franz

Steiner Verlag, 1974.L. Ferreri, La Questione Omerica dal Cinquecento al

Settecento. Roma: Edizioi di Storia e Letteratura, 2007.

J. Foley, “Traditional history in Southslavic oral epic” em David Konstan & Kurt Raaflaub (ed.), Epic and history. West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010.

_________, Homer’s traditional art. University Park: Pennsylvania State University Press, 1999.

W. Goethe & F. Schiller, Correspondência. Tradução de Claudia Cavalcanti; S. Paulo: Hedra, 2010.

A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prole-gomena to Homer. Princeton: Princeton University Press, 1985.

G. Grote, A history of Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 2009-2010.

B. Hainsworth, “The criticism of an oral Homer” em John Wright (ed.), Essays on the Iliad. Blooming-ton: Indiana University Press, 1978.

A. Heubeck et alii, A commentary on Homer’s Odyssey. 3 vols. Oxford: The clarendon Press, 1988-1993.

248

J. Holoka, “Homer, oral poetry, and comparative lit-erature: major trends and controversies in twenti-eth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zwein-hundert Jahre Homer-Forschung. Stuttgart: B. G. Teubner, 1991.

R. Janko, “The Homeric poems as oral dictated texts”, The classical quarterly 48/1 (1998): 1-13.

J. Kakridis, Homeric researches. Lund: C.W.K. Gle-erup, 1949.

G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of Homer. Cambridge: Cambridge Universi-ty Press, 1965.

S. Lacerda, Metamorfoses de Homero: história e antro-pologia na crítica setecentista da épica. Brasília: Edi-tora da UNB, 2003.

R. Lamberton (ed.), Homer’s ancient readers: the hermeneutics of Greek epic’s earliest exegetes. Princ-eton: Princeton University Press, 1992.

W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad. 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

H. Lloyd-Jones, Blood for the ghosts: classical inflluences in the nineteenth and twentieth centuries. London: Duckworth, 1982.

A. Lord, The singer of tales. Cambridge (Mass.): Har-vard University Press, 1960.

V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures acadé-miques ou dissertation sur l’Iliade. Paris: Librairie Hachette, 1925.

P. Mazon, Introduction a l’ Iliade. Paris: Les Belles Let-tres, 1942.

D. Monro (ed.), Homer: Iliad. 2 vols. Oxford: The Clarendon Press, 1884/1888.

249

I. Morris, “The use and abuse of Homer”, Classical antiquity 5 (1986): 81-138.

M. Murko, “The singers and their epic songs”, Oral tradition 5/1 (1990): 107-130.

A. Murray, Homer: The Iliad. 2 vols. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1924/1925.

G. Murray, The rise of the Greek epic. New York: Oxford University Press, 1907.

J. Myres, Homer and his critics. London: Routledge & Kegan Paul, 1958.

G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996

M. Nilsson, Homer and Mycenae. Philadelphia: Uni-versity of Pennsylvania Press, 1933.

J. Notopoulos, “Homer and heroic Cretan poetry”, Transactions of the American Philological Associa-tion 73/3 (1952): 225-250

_________, “The Homeric Hymns as oral poetry”, American journal of philology 83/4 (1962): 337-368.

_________, “Parataxis in Homer: a new approach to Homeric literary criticism” em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assessments. 4 vols. New York: Routledge, 1999, vol. 4.

_________, “Continuity and interconnexion in Ho-meric oral composition”, Transactions of the Ame-rican Philological Association 82: 81-101.

A. Parry (ed.), The making of Homeric verse: the collec-ted papers of Milman Parry. Oxford: Oxford Uni-versity Press, 1971.

_________, “Have we Homer’s Iliad?” em John Wri-ght (ed.), Essays on the Iliad. Bloomington: India-na University Press, 1978.

250

_________, “Language and characterization in Ho-mer” em The language of Achilles and other papers. Oxford: The Clarendon Press, 1989.

R. Pfeiffer, History of classical scholarship from 1300 to 1850. Oxford: The Clarendon Press, 1976.

J. Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day. Cambrid-ge: Cambridge University Press, 1915.

J. Scott, “Repeated verses in Homer”, The American journal of philology 32/3 (1911): 313-321.

_________, The unity of Homer. New York: Biblo & Tannen, 1921.

C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad. Leiden: Brill, 1971.

J. Sheppard, “Zeus-loved Achilles”, Journal of Hellenic studies 55/2 (1935): 113-123.

E. Sienaert, “Marcel Jousse: the oral style and the an-thropology of gesture”, Oral tradition 5/1 (1990): 91-106.

M. Skafte-Jensen, The Homeric Question and the oral--formulaic theory. Copenhagen: Museum Tuscula-num Press, 1980.

A. Snodgrass, “An historical Homeric society?”, Jour-nal of Hellenic studies 94 (1974): 114-125.

F. Turner, “The Homeric Question” em Ian Morris & Barry Powell, A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1999.

A. Wace, “The history of Homeric archeology” em Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer. London: MacMillan, 1962.

251

C. Whitman, Homer and the heroic tradition. New York: W.W. Norton&Company, 1958.

U. Wilamowitz, History of classical scholarship. Trans-lated by Alan Harry, with introduction and notes by Hugh Lloyd-Jones. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1982 (edição original: Geschichte der Philologie, 1921).

R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer. London: H. Hughs, 1775.