Hildegarda de Bingen: as suas visões e as suas razões

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Maria Luísa Ribeiro FERREIRA (Org.), Pensar no Feminino, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp.189-205. 1 HILDEGARDA DE BINGEN AS SUAS VISÕES E AS SUAS RAZÕES Maria Leonor L. O. Xavier 1. Uma autora pluridisciplinar Hildegarda de Bingen é uma figura singular e incontornável da cultura europeia do séc. XII. Este foi um século de florescimento cultural, associado ao surto das cidades e das suas instituições próprias, como as corporações de ofícios, entre as quais as universidades. Nas escolas urbanas, então emergentes, múltiplos são os mestres que se distinguiram, como Abelardo, Bernardo de Chartres, João de Salisbúria, Hugo e Ricardo de S. Vítor, entre outros. As mulheres de então, mesmo aquelas que beneficiavam de alguma instrução particular, ou nos mosteiros, não tinham depois acesso aos meios escolásticos, onde poderiam cultivar, a nível superior, os seus talentos intelectuais em igualdade de circunstâncias com os homens. Entre elas, porém, duas contemporâneas, Heloísa e Hildegarda, ousaram produzir obra, que escapou ao anonimato. Heloísa sobreviveu na memória da História, através das suas cartas, mas ao abrigo da sua relação com Abelardo. Hildegarda, que nasceu (1098) numa família da nobreza e, ainda criança, foi entregue pelos pais ao cuidado de uma religiosa eremita, de origem também aristocrática, nunca saíu dos meios monásticos protegidos, em que foi educada, e que ajudou a expandir por terras da Alemanha, fundando um novo mosteiro beneditino perto de Bingen. É certo que Hildegarda fez três viagens de pregação, já depois dos sessenta anos, com o seu prestígio consolidado, durante as quais se confrontou com auditórios citadinos, como por ocasião dos seus sermões nas catedrais de Colónia e de Trier. Todavia, a singularidade de Hildegarda sobressai na continuidade da tradicional cultura monástica, não na urbanidade da cultura escolástica então em crescimento. É verdade que o monaquismo atravessava, então, também um processo de renovação, através da reforma de Cister, e que esta reforma não era estranha a Hildegarda, dado o apoio que obteve de dois proeminentes cistercienses, como Bernardo de Claraval e o papa Eugénio III. É igualmente verdade que a abadessa de Bingen, nos seus escritos, manifesta abundantemente a sua preocupação crítica com a situação interna da Igreja, censurando todos aqueles que nela, por negligência ou inacção, falhavam na sua missão. Neles terá, pois, encontrado forte motivação, a teologia moral de Hildegarda, que elabora o papel das virtudes e promove o valor da acção. No entanto, essa elaboração hildegardiana é uma singular síntese de uma herança comum e inquestionada. Nessa medida, Hildegarda é um expoente da tradição, não um marco da novidade. A sua fidelidade à tradição, sobretudo do ponto de vista doutrinário, terá concorrido, porventura, a favor da sua aceitação entre os contemporâneos, apesar da sua condição de ser mulher. Após a sua morte (1179), o seu prestígio não desapareceu, embora a autoria das suas obras tenha chegado a ser atribuída a pseudónimos masculinos 1 . Hoje, Hildegarda ressurge plenamente 1 Cf. Barbara Newman, “Introduction” in Hildegard of Bingen, Scivias. Trad. Columba Hart e Jane Bishop, Nova Iorque/ Mahwah (Nova Jersey), Paulist Press, 1990, p. 47.

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HILDEGARDA DE BINGEN

AS SUAS VISÕES E AS SUAS RAZÕES

Maria Leonor L. O. Xavier 1. Uma autora pluridisciplinar

Hildegarda de Bingen é uma figura singular e incontornável da cultura europeia do séc. XII. Este foi um século de florescimento cultural, associado ao surto das cidades e das suas instituições próprias, como as corporações de ofícios, entre as quais as universidades. Nas escolas urbanas, então emergentes, múltiplos são os mestres que se distinguiram, como Abelardo, Bernardo de Chartres, João de Salisbúria, Hugo e Ricardo de S. Vítor, entre outros. As mulheres de então, mesmo aquelas que beneficiavam de alguma instrução particular, ou nos mosteiros, não tinham depois acesso aos meios escolásticos, onde poderiam cultivar, a nível superior, os seus talentos intelectuais em igualdade de circunstâncias com os homens. Entre elas, porém, duas contemporâneas, Heloísa e Hildegarda, ousaram produzir obra, que escapou ao anonimato. Heloísa sobreviveu na memória da História, através das suas cartas, mas ao abrigo da sua relação com Abelardo. Hildegarda, que nasceu (1098) numa família da nobreza e, ainda criança, foi entregue pelos pais ao cuidado de uma religiosa eremita, de origem também aristocrática, nunca saíu dos meios monásticos protegidos, em que foi educada, e que ajudou a expandir por terras da Alemanha, fundando um novo mosteiro beneditino perto de Bingen. É certo que Hildegarda fez três viagens de pregação, já depois dos sessenta anos, com o seu prestígio consolidado, durante as quais se confrontou com auditórios citadinos, como por ocasião dos seus sermões nas catedrais de Colónia e de Trier. Todavia, a singularidade de Hildegarda sobressai na continuidade da tradicional cultura monástica, não na urbanidade da cultura escolástica então em crescimento.

É verdade que o monaquismo atravessava, então, também um processo de renovação, através da reforma de Cister, e que esta reforma não era estranha a Hildegarda, dado o apoio que obteve de dois proeminentes cistercienses, como Bernardo de Claraval e o papa Eugénio III. É igualmente verdade que a abadessa de Bingen, nos seus escritos, manifesta abundantemente a sua preocupação crítica com a situação interna da Igreja, censurando todos aqueles que nela, por negligência ou inacção, falhavam na sua missão. Neles terá, pois, encontrado forte motivação, a teologia moral de Hildegarda, que elabora o papel das virtudes e promove o valor da acção. No entanto, essa elaboração hildegardiana é uma singular síntese de uma herança comum e inquestionada. Nessa medida, Hildegarda é um expoente da tradição, não um marco da novidade. A sua fidelidade à tradição, sobretudo do ponto de vista doutrinário, terá concorrido, porventura, a favor da sua aceitação entre os contemporâneos, apesar da sua condição de ser mulher. Após a sua morte (1179), o seu prestígio não desapareceu, embora a autoria das suas obras tenha chegado a ser atribuída a pseudónimos masculinos1. Hoje, Hildegarda ressurge plenamente 1 Cf. Barbara Newman, “Introduction” in Hildegard of Bingen, Scivias. Trad. Columba Hart e Jane Bishop, Nova Iorque/ Mahwah (Nova Jersey), Paulist Press, 1990, p. 47.

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reconhecida na sua condição de mulher autora, com relevância incontestável na história da cultura europeia.

Como se explica essa relevância? Não por uma só razão, ou seja, não por um só talento. De facto, Hildegarda não foi dotada de um só talento, mas de múltiplos talentos, e pô-los a render a todos, como atesta o conjunto da sua obra. Esta abrange diversas áreas, como a medicina e a filosofia natural, a música e a poesia, a espiritualidade e a teologia.

Na área da medicina, Hildegarda escreveu, entre 1151 e 1158, o Livro de Medicina Simples e o Livro de Medicina Compósita: o primeiro é realmente composto por nove livros, também subordinados ao título comum de Física (Physica), que descrevem as propriedades medicinais das criaturas, como as plantas, os animais, as pedras, as pedras preciosas inclusive, e os metais; o segundo, também intitulado Causas e Curas (Causae et Curae), ocupa-se de problemas concretos e comuns de saúde, explicando as suas causas e indicando procedimentos curativos. Ainda que, do ponto de vista científico, tais escritos não conservem mais do que um interesse histórico, eles exprimem concepções e posições de mais vasto alcance e perene cabimento no âmbito da filosofia da natureza.

Não é, porém, devido à sua faceta naturalista, que o nome de Hildegarda é hoje mais celebrado, mas antes pelos seus talentos artísticos, poético e, sobretudo, musical. De facto, o talento mais mediático da abadessa de Bingen é, sem dúvida, o da música, dado o enorme fascínio que a recuperação e a execução da sua obra musical têm exercido ao longo das últimas décadas do séc. XX. Consiste, essa obra, num repertório de cânticos espirituais para uso monástico, reunidos sob o título de Symphonia. Note-se, porém, que a música não era, para Hildegarda, um fim em si ou uma expressão autónoma; a música era indissociável da palavra, isto é, da componente do texto poético, e ambas, música e poesia, cultivavam a espiritualidade da comunidade monástica a que se destinavam. Entretanto, a espiritualidade de Hildegarda não concerne apenas à perfeição da vida interior, porquanto não só inclui como acentua o valor da vida virtuosa e da acção. Este realce não terá sido alheio ao desempenho das funções de abadessa, que, por certo, estimularam, em Hildegarda, o sentido da responsabilidade pelos outros e a necessidade de encontrar e dispor de modelos de vida. Daí o seu interesse, patente, inclusivamente, nos textos poéticos, pelas vidas dos santos e pelo tema das virtudes.

Este tema atravessa, aliás, todo o pensamento teológico de Hildegarda, que se exprime no núcleo central da sua obra escrita, constituído pela seguinte trilogia: Scivias; Livro dos Méritos da Vida (Liber vitae meritorum); Livro das Obras Divinas (Liber divinorum operum). O conjunto destes três livros forma, de facto, uma unidade significativa no legado escrito de Hildegarda: para além dos temas comuns que neles perpassam, os três narram visões, as singulares visões de Hildegarda. São estas visões que estão na base da sua reputação de visionária, profetisa e mística. A índole de tais visões, só por si, solicita consideração pluridisciplinar. De qualquer modo, seja qual for a natureza dessas visões, elas são simbolicamente muito ricas e constituem a experiência que apelou irrecusavelmente à ousadia da escrita. Elas deram igualmente oportunidade a um labor interpretativo que não podia deixar de convocar o intelecto e a cultura pessoal de Hildegarda. As suas visões deram, por isso, origem às suas razões. Os seus livros de visões são, pois, o lugar onde também se exprime a sua inteligência do universo e as suas posições doutrinárias. Aí se torna plausível discernir uma filosofia.

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2. A sua primeira obra: Scivias

O título Scivias é uma abreviatura da exortação Scito vias Domini, ou seja, «Conhece as vias do Senhor». Que vias? Vias de apologia doutrinária, vias de correcção moral, vias de admonição pastoral, vias de elevação espiritual. Decerto tudo isso, mas tudo isso vem a propósito da experiência que fez nascer a escrita: a experiência visionária de Hildegarda. Que experiência terá sido essa? Hildegarda não pretendeu deixar-nos, a este respeito, inteira liberdade de interpretação. Hildegarda não quis que pensássemos o que quiséssemos acerca da índole das suas visões; por isso, ela descreve objectivamente as características e as circunstâncias da sua experiência de visionária. Hildegarda não quis que imaginássemos o que quiséssemos a partir do teor das suas visões; por isso, ela determina meticulosamente o sentido de todas as partes que integram a composição simbólica de cada visão; por isso, ela desenvolve, para além da narrativa das suas visões, a sua própria hermenêutica das mesmas, produzindo uma obra como Scivias.

No “Prefácio” desta obra, a autora declara que tinha a experiência de visões desde a sua infância e esclarece sobre a natureza das suas visões: que elas não ocorriam em sonho, ou durante o sono, pelo que não devem ser tomadas por alguma espécie de perturbação onírica; que elas não eram perceptíveis para os olhos e os ouvidos corpóreos, pelo que não devem ser confundidas com uma afecção dos sentidos; que elas não ocorriam em delírio, pelo que não devem entendidas como perturbações da mente, fora do domínio da consciência; mas que elas ocorriam, sim, no estado habitual da consciência, lúcida e vigilante, não sendo condicionadas por circunstâncias de lugar exterior2. Através desta análise, Hildegarda mostra ter efectuado apurada reflexão sobre a sua própria experiência interior de visionária. O que concluir, então, da reflexão de Hildegarda, acerca da índole das suas visões? É ainda possível variar entre duas hipóteses extremas: perturbações da própria consciência ou apreensões hiperconscientes? Efeitos secundários do seu estado recorrente de enfermidade ou ápices sublimes da sua espiritualidade, cultivada em foro monástico? Não é fácil decidir entre hipóteses tão extremadas, mas qualquer que seja a hipótese mais adequada, o facto é que foi essa experiência interior de percepções visuais e auditivas, que compeliu Hildegarda a escrever a sua primeira obra.

Não foi, todavia, com ligeireza que a autora de Scivias assumiu a escrita da sua obra, atendendo a que esperou pelos quarenta e três anos de idade (1141) para começar a escrevê-la e só dez anos mais tarde a deu por concluída (1151). De acordo com o seu próprio testemunho, Hildegarda começou a escrever, não por iniciativa própria, mas por obediência a uma voz celeste, que se fez ouvir durante uma das suas visões: «Ó frágil ser humano, cinza de cinza, putrescência de putrescência, diz e escreve o que vês e ouves»3. Tal foi a voz da sua compulsão interior para a escrita. Através dessa voz, Hildegarda descentra-se a si mesma, o mais possível, na iniciativa da escrita. Esse descentramento era, porventura, necessário para tornar credível, uma 2 «Visiones vero quas vidi: non eas in somnis, nec dormiens, nec in phrenesi, nec corporeis oculis aut auribus exterioris hominis, nec in abditis locis percepi, sed eas vigilans, circumspiciens in pura mente oculis et auribus interioris hominis, in apertis locis secundum voluntatem Dei accepi. Quod quomodo sit, carnali homini perquirere difficile est.» Scivias (doravante abreviado por Sc.), “Praefatio”: PL, 197, 384 A-B. 3 «Ecce quadragesimo tertio temporalis cursus mei anno, cum coelesti visioni magno timore, tremula intentione inhaererem , vidi maximum splendorem, in quo facta est vox de coelo ad me dicens: O homo fragilis, et cinis cineris et putredo putredinis, dic et scribe quae vides et audis.» Sc., “Praefatio”: PL, 197, 383 A.

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escrita de mulher, dado que escrever não era então senão uma rara ousadia entre as mulheres, mesmo entre aquelas que eram cultas. Num passo posterior de Scivias, a voz ordenadora da escrita reconhece, em Hildegarda, a condição desvantajosa de ser mulher e, enquanto tal, «indouta em tudo o que ensinam os mestres humanos», o que não a impede porém, antes a torna mais elegível para porta-voz directo dos «mistérios» que vê e ouve na «visão mística»4. Por um lado, a obra desmente que a autora seja tão indouta quanto a voz clama, embora a obra não denuncie expressamente as suas fontes. Por outro lado, é certo que Hildegarda assume e não questiona a desvantagem da condição feminina, incluindo páginas de indisfarçável misoginia na sua obra. Essa desvantagem afectava de tal modo a sua credibilidade que esta só com autoridade divina poderia ser assegurada. É, por isso, que Hildegarda não se arrisca no começo da escrita senão como canal de inspiração divina, o que lhe permite dar expressão também àquilo que pensa.

Segundo a voz que soa ao ouvido interior de Hildegarda, a sua visão é «mística»: de que modo? Quanto à índole ou quanto ao conteúdo? Quanto à índole, a visão hildegardiana dificilmente poderá ser identificada com um êxtase místico, ou com uma união extática com Deus, visto que aquela ocorre no estado habitual e vigilante da consciência, para além de ser figurativa e simbolicamente complexa. Pode-se compreender melhor o carácter místico das visões de Hildegarda, quanto ao conteúdo, na medida em que este é definido, por aquela mesma voz, em termos de «mistérios». Ora os «mistérios», contidos nas visões hildegardianas, são os grandes temas e as principais doutrinas, de inesgotável compreensão, com que a tradição do cristianismo se foi caracterizando teologicamente. Uma perspectiva panorâmica sobre os três livros de Scivias evidencia, desde logo, esses grandes temas, versando: o Livro I, sobre o Criador e a Criação; o Livro II, sobre o Redentor e a Redenção; e o Livro III, sobre a história da Salvação. O Livro I ocupa-se menos da génese do mundo físico do que da ordem dos seres de vontade, como Deus, o anjo e o homem, incluindo visões sobre a majestade divina (V.1), a ordem angélica (V.6), a natureza humana (V.4), a queda do anjo e do homem (Vs.2-3), e o papel do Antigo Testamento na história da Salvação, através da Visão da Sinagoga (V.5). O Livro II, mais extenso do que o primeiro, começa por versar sobre teologia da Incarnação (V.1) e da Trindade (V.2), para se demorar, ao longo das restantes visões (Vs.3-7), na consideração da Igreja, quanto à sua missão, aos sacramentos, à sua organização, e à tentação do mal no seu interior. O Livro III, o mais extenso de todos, reúne os temas da Criação e da Redenção numa concepção arquitectónica da história do diálogo entre Deus e o homem, no qual ambos intervêm como partes de uma única construção, o edifício da Salvação (Vs.1-9), para terminar com três visões escatológicas, das quais a última, a Sinfonia dos Bem-aventurados (V.13), é um cântico de louvor.

Na composição de Scivias, é de realçar a estrutura do desenvolvimento de cada unidade capitular, que é a “Visão”. Em cada “Visão”, Hildegarda começa sempre por narrar aquilo que viu e ouviu no interior da sua consciência, interpelando de imediato o leitor para imaginar o descrito e para interpretar as imagens. No entanto, Hildegarda manifesta não querer autorizar a nossa total liberdade de interpretação das suas visões, pois ela própria as interpreta e comenta a seguir, e só por acaso ou rara coincidência acontece haver alguma afinidade entre a nossa interpretação e aquela que ela 4 «Et audivi ex praefato vivente igne vocem mihi dicentem: Tu quae es fragilis terra et in nomine femineo indocta in omni doctrina carnalium magistrorum, scilicet legere litteras secundum intelligentiam litteratorum, sed tantum tacta lumine meo quod tangit te interius cum incendio ut sol ardens, clama et enarra ac scribe haec mysteria mea quae vides et audis in mystica visione.» Sc. II, 1: PL, 197, 443 A.

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acrescenta. O empenho de Hildegarda em desenvolver por escrito a interpretação das suas próprias visões talvez tenha o propósito de travar o livre curso de todas as potenciais interpretações ad libitum, alheias à sua própria reflexão sobre o teor das suas visões. Contudo, a principal finalidade dos desenvolvimentos interpretativos das visões, em Scivias, parece-nos ser outra, a saber, a exposição da sua exegese bíblica e do seu pensamento teológico-filosófico. De facto, em cada “Visão” de Scivias, a descrição inicial da visão interior dá regularmente ocasião a uma citação bíblica, que suscita por sua vez o labor interpretativo de Hildegarda. Ao momento da meditação bíblica, segue-se também regularmente a exposição de concepções teológicas, antropológicas, morais e eclesiológicas. Nessas concepções, faz-se notar uma forte presença da tradição em que Hildegarda fora educada, apesar de não haver referências explícitas no seu texto. Na medida em que Hildegarda reproduz e adopta múltiplas doutrinas tradicionalmente estabelecidas naqueles domínios, nós a apresentámos como um expoente da tradição. Não obstante a sua conformidade com a tradição, há uma singularidade incontornável do pensamento de Hildegarda de Bingen, que merece ser destrinçada. 3. O alcance teológico-filosófico de Scivias

Pelo que acabámos de observar acerca da composição de Scivias, esta é uma obra que só por si solicita abordagem pluridisciplinar. Esbocemos, neste ponto, uma das múltiplas abordagens possíveis, a partir da filosofia. Para tal, tomemos as visões de Hildegarda como pretexto do seu próprio texto teológico-filosófico. Dizemos «texto teológico-filosófico», porque a filosofia de Hildegarda não é prévia à sua teologia, nem é independente dela, antes se incorpora nela como no seu meio natural. Inquirindo o texto de Scivias sobre a mundividência de Hildegarda, verificamos que é impensável para ela uma concepção do mundo abstraída da relação com Deus. Daí a nossa atenção, num primeiro momento, à visão hildegardiana do universo, teologicamente interpretada. É discutível que a concepção do universo, em Hildegarda, seja mais teocêntrica ou mais antropocêntrica; certo é, porém, que o ser humano obtém, nela, um protagonismo incontornável. Daí a nossa atenção, num segundo momento, à antropologia filosófica de Scivias, no âmbito da qual se considera, para além da composição da natureza humana, a diferença e a relação entre os géneros masculino e feminino, as faculdades humanas, a relação e a ordem entre o conhecimento e a acção. Dado o valor da acção na antropologia hildegardiana, importa considerar aquilo que determina a acção, no seu princípio e no seu fim, ou seja, a virtude e a salvação. Daí a nossa atenção, num terceiro momento, à teologia das virtudes e da salvação. A filosofia dá lugar, novamente, à teologia. Segundo Scivias, a filosofia é uma mediação da teologia, solicitada por esta em função, sobretudo, da vertente antropocêntrica do pensamento de Hildegarda.

Atenda-se, então, antes de mais, à visão hildegardiana do universo, em Scivias, que é a Visão 3 do Livro I: a visão do universo como um ovo. Trata-se de um ovo com zonas de luz e de sombra, de ventos com remoinhos, de elementos sólidos e subtis. À primeira vista, parecia-nos que o ovo descrito poderia simbolizar a génese do cosmo, ou da ordem do mundo físico. Todavia, a interpretação hildegardiana da visão do ovo depressa fez afastar tal sugestão. Segundo Hildegarda, a visão do

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universo como um ovo simboliza Deus omnipotente5. A omnipresença do poder divino mostra-se no primeiro vento com os seus remoinhos, envolvendo todo o ovo6. Também na zona envolvente do ovo, há uma faixa de fogo claro, na qual está um globo luminoso, conotado com o sol da justiça e o inefável Unigénito7; os movimentos de subida e de descida do globo simbolizam, respectivamente, a Incarnação e a Paixão do Unigénito8. Deste modo, a visão do ovo é, para Hildegarda, uma visão de Deus, uma visão simbolicamente elaborada de Deus.

Não se trata, porém, da visão de um Deus impassível e separado do mundo. No ovo divino da visão hildegardiana, Deus incarna e padece no seu Unigénito, o que não poderia acontecer senão num mundo como o dos seres humanos. Estes também fazem parte do ovo divino, sendo conotados com o globo arenoso, que se encontra situado na zona central do ovo e circundado pelos elementos do mundo9. Deste modo, a humanidade não reside fora do universo divino, mas no seu interior e bem no centro, de forma a presidir aos elementos do mundo. A relação entre homem e mundo é, aliás, para Hildegarda, uma indissociável correlação: nem o ser humano se pode separar dos elementos que o circundam, nem os elementos existem a não ser para o ser humano. A consideração do humano no centro quer do mundo natural quer do próprio universo divino é bem ilustrativa do antropocentrismo de Hildegarda. Entretanto, registe-se que as diferenças entre criador e criatura, entre divino e humano, entre espírito e matéria, não constituem divisão alguma ou alguma cisão no ovo, que é o universo divino. A criação da matéria não se dá fora deste universo. A própria Incarnação é simbolizada por um movimento de subida, não de descida, o que significa que a natureza divina não se degrada através da relação com a matéria e a natureza humana. Hildegarda sublinha mesmo que a Incarnação não constitui uma divisão ou uma separação da natureza divina10. O ovo divino da visão hildegardiana é um universo unitário, cujo principal atributo é o da indivisibilidade.

Se inquirirmos o texto de Scivias acerca dos principais atributos divinos na teologia de Hildegarda, encontramos a omnipotência congruentemente associada com a incompreensibilidade, mas esta, justificada pela indivisibilidade11. De facto, um dos atributos divinos mais realçados, na teologia hildegardiana, é o da indivisibilidade. A relevância deste atributo sobressai a respeito, não só da Incarnação, como há pouco vimos, mas também da Trindade. Hildegarda não só reafirma a correlação divina entre

5 «Nam hoc maximum instrumentum quod vides rotundum et umbrosum secundum similitudinem ovi superius arctum, et in medio amplum ac inferius constrictum, declarat fideliter omnipotentem Deum in majestate sua incomprehensibilem, et in mysteriis suis inaestimabilem, […].» Sc. I, 3: PL, 197, 405 A. 6 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 406 A-B. 7 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 405 B. 8 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 405 C – 406 A. 9 «Et in medio istorum elementorum, quidam arenosus globus plurimae magnitudinis est, quem elementa ita circundant quod nec hac nec illac dilabi potest: qui manifeste ostendit in fortitudine creaturarum Dei, hominem profundae considerationis degentem de limo terrae mirabili modo multa gloria factum, et virtute creaturarum ita circundatum quod ab eis nullo modo separari valet; quia elementa mundi ad servitutem hominis creata ipsi famulatum exhibent, dum homo velut in medio eorum sedens ipsis divina dispositione praesidet, […].» Sc. I, 3: PL, 197, 408 A. Se os elementos se voltam contra o homem, isso é em consequência da revolta do homem contra Deus: cf. Sc. I, 2: PL, 197, 400 A. 10 Cf. Sc. II, 1: PL, 197, 446 B. 11 «Nam ille lucidi scimus ignis quem vides, designat omnipotentem et viventem Deum qui in clarissima serenitate sua nunquam ulla iniquitate offuscatur incomprehensibilis manens, quia nulla divisione dividi potest, aut initio aut fine aut ulla scintilla scientiae creaturae suae comprehendi sicuti est […].» Sc. II, 1: PL, 197, 443 B.

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Trindade e Unidade12, como sublinha que a geração do Verbo não constitui uma divisão ou uma separação do Pai, ao afirmar que, antes da Criação, o Verbo já estava «indivisivelmente» no Pai13. A preocupação de Hildegarda com o atributo divino da indivisibilidade compreende-se à luz do contexto da Europa sua contemporânea, na qual germinava então o movimento dos cátaros, que a abadessa de Bingen veio ajudar a combater: a insistência na indivisibilidade divina contrapunha-se a todo e qualquer o dualismo divino.

No desejo de dividir a Unidade de Deus, reside, aliás, a origem de todo o mal, segundo Hildegarda. Tal fora o pecado de Lucifer, o anjo que quis igualar-se a Deus. Hildegarda evidencia a impossibilidade de realização do desejo de Lucifer, através da seguinte comparação naturalista com o corpo humano: «E como conviria que num só peito houvesse dois corações? Assim, nem no céu devera haver dois deuses» 14. Tal como no peito um só coração assegura a unidade de todo o corpo, assim também no céu um só Deus garante a unidade de todo o universo. Para Hildegarda, Deus é a unidade do universo.

À semelhança da tentação diabólica, o mal é a divisão. Todavia, a morte, que respeita ao ser humano, não é divisão. A morte é apenas o fim do papel que cada ser humano tem a desempenhar no mundo terreno15. É certo que Hildegarda reitera a concepção platónica da morte, como separação entre a alma e o corpo16, mas esta separação não é uma divisão do ser humano. Compreender-se-á em que sentido não é, atendendo à função do corpo no composto humano. Hildegarda afirma expressamente a unidade do composto de alma e corpo17. Mas como se relacionam entre si os elementos do composto? Tal como alguém, situado num canto da sua casa, consegue alcançar com o olhar todo o espaço da casa, assim também a alma se situa no corpo, por forma a reger todos os seus órgãos18. O corpo é a casa da alma, o tabernáculo eo suporte de todos os seus poderes19. Ora, tal como alguém pode abandonar a sua casa sem deixar de ser quem era, a alma pode abandonar o seu corpo, sem perder a sua vida e a sua identidade, quando o corpo deixar de lhe ser útil. Deste modo, o ser humano é mais alma do que corpo, uma vez que a sua identidade é dada pela alma, não pelo corpo. E qual é a utilidade do corpo, segundo a autora de Scivias? O corpo, de natureza terrena, qualitativamente inferior na ordem das naturezas, foi criado para o ser humano, a fim de proteger este do pecado da exaltação de si mesmo, que determinara a queda do anjo20. O corpo, mais do que motivo de pecado, é arma ou, melhor, armadura contra o pecado; exercida a sua função na luta contra o mal, o corpo torna-se inútil.

Associada à origem do mal no ser humano, está, em especial, a condição de ser mulher. A voz que acompanha a primeira Visão de Scivias, a visão da majestade

12 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 432 D – 433 A. 13 Cf. Sc. II, 1: PL, 197, 444 B. 14 «Cum superbus angelus ut coluber se sursum erexit, carcerem inferni accepit, quia esse non potuit ut ullus Deo praevaleret. Et quomodo conveniens esset, ut in uno pectore duo corda essent: sic nec in coelo duo dii esse debuerunt.» Sc. I, 2: PL, 197, 390 D. 15 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 412 C. 16 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 429 A. 17 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 425 C. 18 «Anima stat in angulo domus, id est in firmamento cordis velut aliquis homo in aliquo angulo domus suae ut totam domum perspiciens, omnia instrumenta domus regat, […].» Sc. I, 4: PL, 197, 426 B. 19 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 427C. 20 Cf. Sc. III, 1: PL, 197, 575 C-D. Note-se que esta precaução divina na criação do homem é congruente com uma tese admitida por Hildegarda, e em debate no seu tempo, a saber, que o homem foi criado por causa da queda do anjo, cf. Sc. III, 2: PL, 197, 586 A-B.

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divina, exortando Hildegarda a escrever, refere-se àqueles que a consideram desprezível, enquanto mulher, devido à transgressão de Eva21. Recorrentemente, ao longo da sua obra, Hildegarda faz sentir, como um estigma, a desvantagem da condição feminina. A autora de Scivias, porém, não questiona nem recusa esse estigma. Na sua interpretação, a desvantagem aceite da condição feminina não decorre originariamente da transgressão de Eva, mas antes da própria natureza da mulher. Deus criou o homem e a mulher, mas não os criou iguais, posto que, segundo Hildegarda, Deus, ao unir o homem e a mulher, juntou o forte ao fraco, para que cada um deles pudesse encontrar apoio no outro22. Não se percebe, no entanto, como é que o forte poderia apoiar-se no fraco. É verdade que Hildegarda reconhece algum poder da mulher sobre o homem, aquele poder que Eva exercera em Adão ao conseguir que ele provasse do fruto proibido. Mas donde provém esse poder? Por um lado, da conaturalidade de Eva com Adão: criada a partir de Adão, Eva tem condições para dele ter um conhecimento privilegiado23. Deste modo, um dos factores do sucesso de Eva é o conhecimento que lhe é proporcionado pela sua própria natureza adâmica. Por outro lado, o poder de Eva provém do próprio amor de Adão por ela, que o torna vulnerável a ela. De qualquer dos modos, o poder de Eva provém de Adão. Nesta perspectiva, Eva não pode ser a principal responsável pela introdução do mal na vida da humanidade. Hildegarda, de facto, não a considera tal. Foi, sobretudo, devido à sua fraqueza, que Eva se tornou alvo favorito da serpente, que encontrou no casal humano uma oportunidade de realizar a sua malignidade: em vez de procurar atingir directamente a parte forte, a serpente preferiu vencer a fortaleza de Adão através da fraqueza de Eva24. Esta é, assim, mediadora, não causadora, na origem do mal humano. Em Adão, detecta Hildegarda, uma atitude condenável, pela qual só ele é responsável: ao ser chamado por Deus, após ter comido do fruto proibido, Adão acusou Eva, em vez de confessar o seu acto25. A covardia é, assim, o pecado próprio de Adão.

Entretanto, a fraqueza de Eva pode defender a mulher de ser responsável exclusiva ou principal do mal humano, mas não impede as consequências de relegar a mulher para uma posição inferior relativamente ao homem. Essas consequências não estão omissas no texto de Scivias, e fazem-se sentir especialmente na concepção quer do casamento quer da organização eclesiástica. Na união conjugal, define-se modelarmente a relação entre o homem e a mulher, como uma relação de poder: uma vez que a fortaleza do homem está para a fraqueza da mulher, como a dureza da pedra está para a moleza da terra, a vocação da mulher é sujeitar-se ao poder do marido26, como um servo se sujeita ao seu senhor27. À imagem e semelhança da união conjugal, com a relação de poder que lhe está associada, Hildegarda vê, em conformidade com a tradição, a relação do universo dos crentes com Deus: a Sinagoga28 há-de reunir-se ao Filho de Deus, como a Ele se uniu a Igreja29, ou seja, como uma esposa deve submeter-se ao esposo. O estigma da inferioridade da mulher repercute-se 21 Cf. Sc. I, 1: PL, 197, 386 C. 22 «Deus virum et feminam conjunxit, scilicet hoc quod forte et infirmum erat simul copulavit, ut alterum ab altero sustentaretur.» Sc. II, 6: PL, 197, 546 B. 23 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 392 A-B. 24 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 391 C – 392 B. 25 Cf. Sc. II, 6: PL, 197, 548 C. 26 «[…] et mulier sub potestate viri manet, quoniam ut duritia lapidis ad teneritudinem terrae est, ita etiam et fortitudo viri ad mollitiem mulieris.» Sc. I, 2: PL, 197, 392 B-C. 27 Cf. Sc. II, 3: PL, 197, 460 D. 28 Cf. Sc. I, 5: PL, 197, 436 C-D. 29 Cf. Sc. II, 6: PL, 197, 510 C.

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decisivamente na própria organização da Igreja. A autora de Scivias defende o celibato dos padres, porque eles nada têm a ganhar através da relação com seres inferiores30; e, em nome da fraqueza das mulheres, a mesma autora defende que lhes seja interdito o acesso aos ministérios ordenados31. São posições como estas, juntamente com as suas razões, que acusam a misoginia de Hildegarda32, e que concorreram, porventura, para criar dúvidas na posteridade acerca da autoria feminina das suas obras. Tais posições são, a nosso ver, o pior, não o melhor do legado de Hildegarda de Bingen.

Há, porém, considerações relativas à condição materna da mulher, que permitem reabilitá-la em parte. Tome-se o tema do parto. É certo que, a este propósito, Hildegarda associa a mulher ao diabo, comparando a dor perpétua do diabo à aflição da mulher em trabalho de parto33. Mas, vendo bem, esta comparação não é depreciativa para a mulher, dado que, para ser capaz de suportar as dores, como que diabólicas, de parir, a mulher tem de ser mais forte do que fraca. Hildegarda manifesta, por outro lado, idealizar o parto sem dor, ao admitir reiteradamente, em Scivias, que o nascimento de Jesus Cristo ocorreu num parto sem dor34. É, aliás, a propósito da Incarnação, que a condição feminina é teologicamente reabilitada, por via da comparação do papel de Maria, na Incarnação, ao papel do Pai na geração do Filho, no interior da Trindade35. Hildegarda não poderia ter encontrado modelo superior ao da pessoa divina do Pai, para elevar a condição da Mãe de Jesus Cristo. Mas não só essa mãe especialíssima, como também a condição materna em geral é teologicamente valorizada no texto de Scivias. Vem de novo a propósito a visão hildegardiana do universo como um ovo, um ovo completamente envolvido pelo poder divino, guardando no centro a humanidade; visão essa, obviamente compatível com o lado feminino de Deus, que Hildegarda reconhece, ao comparar o papel do Criador a uma mãe, dadora de vida e crescimento36. A visão do universo divino como um ovo é bem solidária com uma concepção maternal da Criação, embora não seja esta a interpretação expressa por Hildegarda daquela sua visão.

Retomemos ainda o caso de Eva, a fim de considerarmos a índole do pecado por ela cometido, juntamente com Adão. Trata-se, por certo, de um pecado menos grave do que o de Lucifer: enquanto este quis igualar-se a Deus, Adão e Eva quiseram conhecer mais do que lhes era permitido37. O pecado de Adão e Eva fora, segundo Hildegarda, um pecado de conhecimento. Daí uma dupla acepção do conhecimento, em Hildegarda: dom e pecado. Por um lado, é pecado, o conhecimento que o homem procura ou conjectura ter de Deus, para além do que lhe é dado, como a consideração 30 Cf. Sc. II, 6: PL, 197, 540 A-B, 544 C-D. 31 «Sic etiam nec feminae ad idem officium altaris mei debent accedere, quoniam ipsae infirmum et debile habitaculum sunt, ad hoc positae ut filios pariant, et eos parientes diligenter enutriant.» Sc. II, 6: PL, 197, 545 B. 32 Misoginia, que E. Gössmann procura atenuar o mais possível, considerando a fortaleza da fraqueza feminina e a fraqueza da fortaleza masculina nos escritos de Hildegarda: cf. “Hildegard of Bingen”, in A History of Women Philosophers. Vol. II: Medieval, Renaissance and Enlightenment Women Philosophers, A.D. 500-1600. Ed. M. E. Waithe, Dordrecht/ Boston/ Londres, Kluwer Academic Publishers, 1989, pp. 56-59. Esse esforço de atenuação dificilmente resiste ao confronto com o próprio texto hildegardiano. 33 Cf. Sc. II, 1: PL, 197, 447B. 34 Cf. Sc. II, 1: PL, 197, 446 D; Sc. II, 3: PL, 197, 458 B; Sc. III, 1: PL, 197, 571 A. 35«Qui Filius ut est unigenitus in divinitate, ita est unigenitus in virginitate, et sicut est unicus Patris, ita est et unicus matris, quia ut Pater illum unum ante tempora genuit, sic et virgo mater illum unum solum genuit in tempore, quoniam virgo mansit post partum.» Sc. II, 2: PL, 197, 452 C. 36 Cf. Sc. II, 6: PL, 197, 529 A. 37 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 414 A-B; Sc. II, 1: PL, 197, 425 C-D; Sc. III, 8: PL, 197, 664 A-B.

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de Deus antes da Criação e depois do fim dos tempos38. Por outro lado, o conhecimento que o homem pode ter de Deus, que é incompreensível, não pode ser, para Hildegarda, uma construção ou uma dedução humana, mas um dom divino39. A questão da existência de Deus e a argumentação por ela desencadeada têm, em Scivias, um valor menos cognitivo do que espiritual, pois fazem parte do processo da luta interior de negação e de confissão, que concorre para o fortalecimento da fé40. A própria fé é já conhecimento, um conhecimento interior do invisível41, que excede porém o intelecto42.

Todavia, o conhecimento não é, para Hildegarda, um fim em si mesmo. Como acabámos de ver, o conhecimento humano de Deus não é um fim sem limites. O conhecimento humano do mundo, separado de Deus, será um procedimento desviante, motivado pelo fascínio que os sentidos exercem, à semelhança de pedras preciosas43. É verdade que, ao compará-los a pedras preciosas, Hildegarda encarece o valor dos sentidos. Mas, como é que ela concebe esse valor? Os sentidos valem, não tanto como canais de acesso ao mundo sensível quanto como vias de expressão dos poderes interiores da alma. Os sentidos são emanações da alma, que manifestam os seus poderes interiores44. Deste modo, os sentidos concorrem para o conhecimento menos do mundo exterior do que do homem interior. Ora, ao homem interior, pertencem as faculdades favoritas da antropologia filosófica de Hildegarda: o intelecto e a vontade. A função destas duas faculdades define-se por analogia com a função dos braços no corpo humano: o intelecto e a vontade são os braços da alma45. Assim caracterizada metaforicamente a função do intelecto e da vontade, ambos revelam uma vocação eminentemente prática: o intelecto compreende tudo aquilo que concerne à acção e conhece quer o bem quer o mal46; a vontade desencadeia a acção e é capaz de fazer quer o bem quer o mal47. Como o intelecto e a vontade são duas faculdades práticas, perde pertinência ou, melhor, está já decidida a questão do primado da teoria ou da prática, da contemplação ou da acção. O conhecimento sem acção não aumenta, diminui48. A acção é o fim do conhecimento. Contudo, não perde pertinência, a questão de saber qual das duas faculdades práticas tem primado na génese da acção. O texto de Scivias não é claro a este respeito: por um lado, declara a proeminência do intelecto, considerando que o homem foi adornado com a coroa do intelecto49 e que

38 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 400 D; Sc. III, 7: PL, 197, 650 D. 39 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 431 C. 40 Cf. Sc. I, 6: PL, 197, 439 A-B; Sc. II, 5: PL, 197, 504 D – 505 C. 41 Cf. Sc. II, 3: PL, 197, 464 B. 42 Cf. Sc. III, 9: PL, 197, 688 A. 43 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 415 C-D. 44 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 427 C-D. 45 «Intellectus ita fixus est animae, velut brachium corpori.» Sc. I, 4: PL, 197, 425 D; «[…]; ipsa enim voluntatem quasi dextrum brachium ponit in firmamentum venarum et medullarum ac in commotionem totius corporis, […].» Sc. I, 4: PL, 197, 426 B. 46 «Nam ut brachium cui manum cum digitis adjuncta est a corpore extenditur, ita etiam intellectus cum operatione caeterarum virium animae cum quibus quaeque opera hominis intelligit, ex anima certissime prodiens; ipse enim prae aliis viribus animae quidquid in operibus hominum est sive bonum, sive malum sit intelligit; […].» Sc. I, 4: PL, 197, 425 D. 47 «Voluntas enim opus calefacit […], quoniam voluntas quodcunque opus sive bonum sive malum sit operatur.» Sc. I, 4: PL, 197, 426 A, C. 48 Cf. Sc. III, 4: PL, 197, 605 C. 49 Cf. Sc. I, 3: PL, 197, 408 B.

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este é o melhor dos tesouros vivos50; por outro lado, indica a prioridade da vontade, identificando o braço direito da alma com a vontade51, não com o intelecto.

O conhecimento prático do intelecto obtém, contudo, uma significativa elaboração em Scivias. Trata-se do conhecimento que Hildegarda designa por speculativa scientia52, expressão cuja tradução literal de «ciência especulativa» seria totalmente equívoca, atendendo ao já exposto. Optámos por seguir uma solução análoga à de Columba Hart e Jane Bishop, que traduzem expressão hildegardiana de scientia speculativa por «reflective knowledge»53. Assim, também nós nos referimos ao conhecimento prático do intelecto, em termos de «conhecimento reflectivo». Ora, em que sentido é, este conhecimento, reflectivo (speculativus)? No sentido em que esse conhecimento (scientia) é comparado a um espelho, no qual se reflecte o bem e o mal da acção54. O conhecimento reflectivo é o conhecimento do bem e do mal na acção. A acção é o domínio próprio do conhecimento reflectivo. Sem acção, o conhecimento reflectivo não tem o que reflectir. Compreende-se assim por que razão Hildegarda acusava o definhamento do conhecimento sem acção.

Entretanto, uma questão se coloca acerca deste conhecimento reflectivo do bem e do mal na acção: trata-se de uma aplicação natural do intelecto ou de uma consequência da transgressão de Eva? Nessa transgressão, vencera a tentação de um conhecimento proibido. Vimos já que, ao abrigo dessa proibição, Hildegarda censura alguns temas de especulação teológica. Mas não terá sido a especulação teológica impertinente, o efeito imediato da transgressão original. Este efeito terá sido antes um conhecimento do bem e do mal. Hildegarda admite, por um lado, que o conhecimento divino, na sua clareza, inclui o bem e o mal55, e adverte, por outro lado, de que é impossível ao homem aceder ao que está no conhecimento divino56. Ora, não será o conhecimento originalmente transgressor, uma apropriação confusa do conhecimento divino do bem e do mal? A autora de Scivias não confirma nem infirma esta hipótese interpretativa da sua própria abordagem do pecado original, mas também não nos autoriza a identificar esse conhecimento transgressor do bem e do mal com o conhecimento reflectivo (scientia speculativa). Este já não faz parte do processo da queda, mas sim da história da salvação, pois, segundo Hildegarda, é em Noé que começa o conhecimento reflectivo, ou seja, o conhecimento da escolha entre dois caminhos para a acção, o do bem e o do mal57.

Não é, porém, o conhecimento reflectivo que orienta a escolha entre os dois caminhos. Tanto o intelecto quanto a vontade estão igualmente disponíveis para ambos os caminhos. A orientação da acção solicita outros factores: as virtudes. Estas dominam o pensamento moral de Hildegarda, que é menos uma moral antropológica ou uma metafísica moral do que uma teologia moral. Com efeito, as virtudes

50 Cf. Sc. III, 10: PL, 197, 699 A. 51 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 426 B. 52 «Et haec speculativa scientia lucet in splendore lucis diei; quin per eam homines actus suos vident et considerant, quia splendidus radius est humanae mentis, se caute circumspicientis, […].» Sc. III, 2: PL, 197, 581 B. 53 Cf. Hildegard of Bingen, Scivias. III, 2, 9, p. 329. 54 «Unde etiam scientia haec est speculativa: quia ipsa est quasi speculum hoc modo, quoniam ut homo aspicit faciem suam in speculo utrum sit in ea pulchritudo an maculositas; sic inspicit ipse in scientia bonum et malum in facto opere, quod considerat intra se, quia haec consideratio est in rationali sensu quae Deus inspiravit in homine, cum in faciem ejus inspiravit spiraculum vitae in anima.» Sc. III, 2: PL, 197, 581 C-D. 55 Cf. Sc. I, 4: PL, 197, 422 A. 56 Cf. Sc. III, 10: PL, 197, 695 B. 57 Cf. Sc. III, 2: PL, 197, 579 B-C, 583 D – 584 A.

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personificadas do texto de Scivias58 não são poderes naturais do ser humano, nem formas ideais separadas dos actos humanos, mas dons divinos que se manifestam nos actos humanos59. Cabe, decerto, perguntar: por que razão é que Hildegarda rejeita o idealismo metafísico acerca da natureza das virtudes? Porventura, porque a separação das virtudes ideais constituiria uma divisão adversa à unidade indivisível do universo divino. Para Hildegarda, as virtudes divinas exprimem-se na acção humana, não tanto porque Deus opera no homem quanto porque o homem opera em Deus60.

Na teologia hildegardiana das virtudes, ressaltam dois aspectos: a ordenação hierárquica, por um lado, e a manifestação histórica, por outro. Quanto à ordem das virtudes, a pergunta que urge, é obviamente a de saber qual é, para Hildegarda, a virtude suprema. Há duas virtudes maiores que disputam entre si o primado: a humildade e a caridade. São estas, as duas virtudes por excelência da Incarnação61. Por um lado, a humildade é a virtude com a qual Deus venceu o mal, e aquela que Hildegarda considera a rainha das virtudes62. Por outro lado, a comparação usada em Scivias, para sugerir a unidade entre as duas virtudes, permite decidir a questão do primado em favor da caridade: tal como a alma está unida ao corpo, as duas virtudes divinas estão unidas entre si, de forma que, nesta união análoga, é a caridade que se assemelha à alma e a humildade, ao corpo63. De qualquer modo, se são as duas maiores virtudes que estão envolvidas na Incarnação, não há que lamentar o pecado que dera origem a tal manifestação das principais virtudes divinas. De facto, Hildegarda considera que a queda humana trouxe por benefício uma maior profusão das virtudes divinas64. Essa profusão dá-se na história da humanidade, que, devido à queda de Adão e Eva, é a história da Salvação. Nesta história, simbolizada pela arquitectura de uma construção65, intervêm as virtudes, aquelas que sobressaem no Antigo Testamento66 e a manifestação plena de todas as virtudes, com a humildade e a caridade à frente, na Incarnação67. A manifestação diacrónica das virtudes divinas determina o próprio sentido da história humana68. Não é, pois, por acaso ou sem razão que a teologia da história obtém apreciável expressão no pensamento de Hildegarda de Bingen.

Contudo, a intervenção das virtudes divinas, na história da Salvação, segundo Hildegarda, não só realça a presença da acção divina como valoriza o papel da acção humana, enquanto lugar de manifestação das virtudes divinas. Ora, a acção, a obra, opõe-se tradicionalmente à graça, na teologia da Salvação. De facto, uma das tensões mais profundamente inerentes à história do cristianismo, no Ocidente, tem sido aquela que opõe entre si a obra e a graça, o mérito humano e o dom divino. A controvérsia que opôs Agostinho a Pelágio e a divisão da cristandade entre os movimentos da Reforma e da Contra-reforma são momentos particularmente críticos dessa tensão. A própria alternativa entre o Homem e Deus, que o pensamento do séc. XX

58 O que era um artifício literário habitual na época. 59 «[…], non quod ulla virtus sit vivens forma in seipsa, sed solummodo praelucida sphaera a Deo fulgens in opem hominis; […].» Sc. III, 3: PL, 197, 592 C. 60 «[…]; quia homo perficitur cum virtutibus, quoniam ipsae sunt opus operantis hominis in Deo.» Sc. III, 3: PL, 197, 592 C. 61 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 402 B – 404 A. 62 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 401 A. 63 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 403 A – 404 A. 64 Cf. Sc. I, 2: PL, 197, 401 A-B; Sc. III, 2: PL, 197, 586 D. 65 Cf. Sc. III, 2: PL, 197, 577 B – 578 B. 66 Cf. Sc. III, 3: PL, 197, 589 C – 600 C; Sc. III, 6: PL, 197, 625 A – 642 C. 67 Cf. Sc. III, 8: PL, 197, 651 C – 674 C. 68 Cf. Sc. III, 3: PL, 197, 591 C – 592 A, 598 D – 599 A.

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multimodamente equacionou, pode ainda ser tomada por um ponto extremo dessa mesma tensão. Diferenças de séculos separam Hildegarda de qualquer destes momentos. Difícil seria, no entanto, a uma monja culta, como Hildegarda, ignorar a tradicional influência do Doutor da Graça e a controvérsia anti-pelagiana, não obstante a autora de Scivias não acusar de forma explícita as suas influências. A verdade é que ela não omite o seu interesse pelos dois elementos da tensão, a obra e a graça, em estreita aliança com a virtude. A mediação da virtude é essencial à eliminação da tensão entre a obra e a graça: como a virtude é divina, a sua manifestação na obra, não se opõe a outra forma de intervenção divina, a graça. A posição de Hildegarda, nesta matéria, define-se assim a favor da harmonia entre a obra e a graça69. Esta harmonia não é sequer, para ela, questionável, visto que é uma harmonia como que pré-estabelecida pela índole da virtude. Tanto os defensores da suficiência da graça quanto os defensores do valor das obras podem reclamar a autoridade de Hildegarda; mas nem uns nem outros poderão desse modo apreender a singularidade do seu pensamento.

69 Cf. Sc. III, 2: PL, 197, 582 B-C. Acerca da harmonia entre a obra e fé, para a Salvação, cf. Sc. III, 2: PL, 197, 580 A; Sc. III, 10: PL, 197, 706 A-B.