A lista de instruções / Marciel Oliveira. – 1 ed. – Rio de Janeiro

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MARCIELOLIVEIRA

Copyright©2017byMarcielOliveiraLetraseVersosRuaVazdeToledo,536-EngenhoNovo-RiodeJaneiro-RJCEP:20780-150-Tel:212218-6026ProjetoGráficoMarcielOliveira/MarcoMancen/ManoelaCostaDiagramaçãoMarcielOliveiraCapaMarcoMancen/ManoelaCostaRevisãoMarcielOliveira/LuizaSantos/JulianeBauer

EstelivrofoieditadosegundoasnormasdoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa,vigente.

CATALOGAÇÃONAFONTE-PARTHENONCentrodeArteeCultura

O48lOliveira,MarcielAlistadeinstruções/MarcielOliveira.–1ed.–RiodeJaneiro:LetraseVersos,2017.366p.;23cmISBN-978-85-5700-158-91.Literaturabrasileira.2.Ficção.I.Título.

CDD:B869|B869.3CDU:82

ImpressonoBrasilTodososdireitosreservados.Proibidaareproduçãototalouparcialsemaautorizaçãodoautor.

Estelivrofoifeitoparapessoasquemoramnomeucoração:minhamãe,meupai,minhas irmãs,meu irmão,primoseprimas, tios e tias, especialmente, para vocêqueestásegurandoosonhodaminhavidaemsuasmãos.

“Desdecriançasempregosteideumaboahistória.Euacreditavaquehistórias

ajudavam a nos enobrecer, a consertar o que estava quebrado em nós e nosajudavamanostornaraspessoasquesonhávamosser.”

—TrechododiscursodopersonagemDr.FordnasérieWestworld,daHBO.

Roteiro:LisaJoyeJohnathanNolan.Tradução:Legendas.TV

PRÓLOGOEraumamanhãensolaradaquandoFelicitysaiudecasaemsuabicicleta.As

ruaslargasesombreadaspelasárvoressetornaraminfinitas.OJardineiro,bairroonde morava, era um dos mais nobres da cidade, havia algumas casas simplesenvoltasdesuntuosasmansõesealgunsprédiospróximos.

Emseupasseio,passouporumacasaemqueumasenhoraestavajogandolixoemgrandesbaldes.Umcarropretopassouemdireçãoopostaquandocomeçouapedalarmaisrápido;umgatolistradocortouseucaminhopregandoumsustonela,faloubaixinhoparasi:filhodamãe.Olhourapidamenteatrásdesieviuoveículopretoseaproximar.Voltouaolharparafrenteeascasasficaramparatrás.

Ocarroseaproximouveloz,ocoraçãocomeçouapalpitar,elaolhouparatráse para frente, a linha amarela que dividia a pista parecia não ter fim, seus péspisaramnopedalcommaisforçaeguiouabicicletaparaoacostamento.Obarulhodomotorestavacadavezmaisperto.Naúltimaolhadaocarroestavaapoucomaisde ummetro de distância, bempróximo de si, o susto foi grande, ela abaixou acabeçaegritoualto.

O veículo fez uma manobra e ultrapassou a garota, em poucos segundospercebeuquenãoestavarolandopelochão,nemcomferimentosgravesemseusbraçosepernascomoimaginavaqueaconteceria.Apertouofreioassimqueviuovulto preto tomar a sua frente. O veículo seguiu e a bicicleta foi perdendovelocidadeaospoucos.Elacomeçouagritarnomeiodarua,chamandoomotoristadefilhodamãe,desgraçado,maldito,imbecil.Forammuitospalavrõesatéperdê-lodevista.

Alguém tentou assustá-la, estava certa disso porquedeixou o caminho livre.Mesmoassimoveículoseguiapelaencostaenotouqueavelocidadeeradiminuídabruscamentequandoseaproximavademais,depoiseravelozmentejogadocontraela.

Algumengraçadinho.Seuscabelosvermelhosbrilhavamaosol.Otomflamejanteevidenciavaqueos

fios foram tingidos ou retocados recentemente. Eram cortados na altura dopescoço.Felicitypisounopedale fezavolta,decidiupedalaremumaáreamaissegura.Elapassavaporalgumascasasquandoouviuumbarulhoestranho,eraopiardeumacoruja,sóquenãoparecianatural.

Osomvinhadetrásecomeçouaficarmaispróximo.Parouabicicletaevoltouoolharparaumobjetoestranhosobrevoandoocéu,bembaixo,seaproximando.Obarulhovinhadele.Ameninaencostouamãonatestaparaprotegeravisãodosole pôde ver algo estranho, era uma ave, especificamente uma coruja, suas asasestavamabertas,maselasnãosemoviam,haviaumenvelopevermelhopresonaspatasdoanimal.

Porumbreveinstante,Felicityimaginouque,finalmente,receberiasuacartaparaHogwarts.Elaesboçouumsorrisoleve,sentindo-setrouxapelopensamentoqueteve.Quandoopássaroseaproximounotouqueoanimalestavapresoaumdrone.

Ameninaseposicionouecomeçouapedalarrápidoeganhouvelocidade.Suapelebrancaficouavermelhada,gotículasdesuorseformaramemseurosto.

Metrosmaisadiante,viualgocairdocéu,nãopercebeubemdequalalturaoborrão cinza invadiu seu campo de visão, ela freou rápido para não passar porcima, deitou a bicicleta no chão e aproximou-se, assustada e curiosa aomesmotempo.Quandochegoubemperto,viuacorujaestateladanochão,morta,presaaodroneeaumacaixinhapretadeondeeraemitidoosomqueouvia.Elamexeunobichocomopé,revirando-oeviuoenvelopevermelhonoqualestavaescrito:

Conviteparaojantar:Srta.FelicityVentura.A garota franziu o cenho ao ler aquilo, abaixou-se e desprendeu o papel

vermelhodocordãoaoqualestavapreso.Tiroudedentroumcartãopreto,eraumtipodepapelmaisduro,estavaescritoemletrasbrancas:

ConvidamosaSrta.FelicityVenturaa se fazerpresenteno jantarespecial,

diaquatorzedeabril,naruadasorquídeas,númerosete.Compareçacasoqueirainformaçõesdeondeestáseudiáriosecreto.

Uma onda de medo invadiu seu estômago e subiu como ondas elétricas se

espalhandoportodooseucorpo.Elapegouopapel,prendeunacinturaporbaixodablusa,afastou-sedoanimalepegousuabicicleta,montouesaiuemdisparada.Suarespiraçãoestavapesada,osmúsculosdaspernasestavamenrijecidosdetantopedalar.

Odiáriohaviasumido.Agoraelasabiaquealguémorouboueninguémpodiasaberoqueestavaescritonele.

AssimqueFelicitydesapareceu,otalveículopretosurgiunaestrada,fazendoo caminho de volta ao qual havia seguido. Parou ao lado da coruja por algunssegundos.

Porbaixodocarrodavaparaverpéscalçandobotaspretassaíremdoveículo,foramapenasdoispassosparafrenteedoisparatrás.Ocarroseguiu.Naestrada,restava apenas o corpo da pobre coruja e o vento soprando suas penasacinzentadas.

Oobjetovoadorforalevado.

Os sapatos vermelhos produziam um som irritante, mas praticamente

impossíveldeidentificá-losemmeioadezenas,centenadeoutrossapatostambémirritantes.Asvitrinesexibiamjoias,vestidos,bolsas,perfumes,objetosdeconsumodesejadospelosolhosfemininos.Ossapatosalcançaramaescadarolante.Adonadospésusavaumaminissaiaprovocante,suaspernaseramumchamarizparaos

olhares atentos, a blusa eramais comportada, tinhamangas curtas na alturadoombroepassavaumpoucoalémdacintura,eradecorlilás.Umcolardouradocomum pingente da imagem da Virgem de Guadalupe que ganhara do avô quandopequena cintilava em seu pescoço. Pulseiras douradas, cabelos longos e lisos,volumososecheiosdevida,castanhosclaroscomoosolhosdamoça,umabolsaatira colo e três sacolas na mão esquerda, uma na cor amarelo limão, outravermelhaemaisumaazul.

Amanda estava fazendo compras no shopping, já havia passado em algumaslojas, mas ainda queria conferir mais novidades, estava subindo para o terceiroandar.Chegouao fimdaescadarolanteecontinuousuacaminhada,maravilhadacomasvitrines.Estavadistraídaolhandoalgumacoisaquandoumsujeitodebonéejaquetadecouroesbarrounela,quasecaiu,masorapazasegurou,suassacolasqueforamaochão.Novaievemdepessoas,orapazabaixou-serapidamenteparapegá-las,ficandodecostasparaamoçaqueesbravejava,perguntandoseeleeracegoenãoolhavaporondeandava.

Ohomemfoirápidoquandotirouumenvelopevermelhodedentrodajaquetaecolocou dentro da sacola amarela, juntou as outras duas apressadamente eentregouàgarota.

—Cego,eu?Vocêqueestavafeitoumatontaolhandoparaasvitrines—disseohomemaoentregarassacolas.

—Tonta?Olheparamimevejasetenhocaradetonta.—Amandaarrancouassacolasdesuasmãos,semperceberqueelecolocaraalgodentro.—Euachoquequebreialgumascostelascomesseseupeso,vocêpareceserfeitodemetal.

—Souohomemdeferro,queridinha,nãoestávendo?Nãovoudiscutircomvocê.Seédesculpasquequer,eupeçodesculpas,agoramedêlicença,euprecisoir.Podecontinuarcomsuascompras.

—Seumaleducado.—Amoçaseguiuirritada.Ohomemaparentavatercercadetrintaanos,bemapessoado,altoeocorpo

emforma,quasederrubavaagarotaametrosdedistância.Elaerapequenamasganhavaumpoucomaisdealturacomseussaltossinuosos.Amandaentrouemumalojadesapatosepassoualgunsbonsinstantesprovandodiversosmodelos,cansouavendedora,massaiudelácomtrêspares,pagosàvista.Aindadeulongasvoltasporoutraslojas,tiraraodiaparagastar.Elásefoiaquelatardedesábado.

Estava sentada em umbanco de uma pequena pracinha, graciosa por sinal,comalgunsvasosdeplantasdecorativos.Suassacolasemumnúmerobemmaiorocupavam todo o resto do banco. Ela discou o número da mãe, já impaciente,cansadaecomdoresnaspernas.

—Mãe,ondeasenhoraestá?—Amanda, espera sómais umpouco.Estou terminando a unha,meuamor.

Chegoemalgunsminutos.—Vêsenãodemora,jácanseidebaterperna.—Nãosepreocupe,chegologo.Encontroutudooquequeria?—Algumascoisas,masjáésuficiente.Voudesligar,aindaestounapracinhae

nãopretendosairdaquiatéqueasenhorachegue.Amanda cruzou as pernas e começou a mexer no smartphone, seu dedo

deslizava na tela e os olhos acompanhavam omovimento das imagens, mas suamentereproduziacenasdanoiteanterior.Elasorrialembrando-sedeleagarrando-anobanheiro,lembravadobeijoquente,docaloredaousadia.Amandagostavadesersurpreendida.

Algunsrapazespassaramesoltaramcantadasbaratascomo“Gostosa”,“Meupequenoavião,deixaeuvoarnastuasasas”,“Parabéns,pelaspernas”,“Nossa,quegata,meu”.Amandanãodeuouvidos,algunsmaiscorajososaindaseaproximaramdamoçaetentaramalgumpapofurado,masela,educadamenteecomumsorrisonorostodissequeeracomprometidaequeestavaesperandoonamorado.

Ascantadaspodiamserbaratas,maso fatodos rapazesprestarematençãonela fazia com que se sentisse, de alguma forma, desejada. Não cederia paranenhum,masissoconfirmavatodoseupoderdesedução.Serdesejadafaziabemparasuaautoestima,maisbemaindaparaseuhumor,poissedivertiacomacaradeboboqueelesfaziam.

Elaatendeuaumachamadaemseutelefone.—Rebeca,finalmente.Ligueitantopravocê...—Desculpe,estavasemcondições.— Ah,me conta logo quem era aquele cara, você sumiu. Nãome diga que

dormiucomele?—Dormisim—disseRebeca,empolgada.—Precisofalardelepravocê.—MeuDeus,temosqueteressaconversapessoalmente.—Sim,tudobem.Nãopossofalaragora,sóligueipradizerqueestouviva.Umavoz,portrásdamoçapronunciouseunome.—Amanda.—Elavirou-separaverquemera.—Estoupronta,vamos?—Rebeca,tenhoquedesligar,minhamãechegou.Beijo.Amandadesligoueguardouotelefonenabolsa.—Atéqueenfim—disseagarotaaoavistarsuamãe,umamulherelegantee

bonitacomoafilha,cabelosumpoucoabaixodoombro.—Meajudaaqui?Afilhalamentavanãoterherdadoaalturadamãe.— Vejo que valeu a pena o passeio dessa tarde — disse Sarah, agarrando

algumassacolasdafilha.—Acheicadacoisalinda.Vamoslogo,quandochegarmosemcasamostropra

senhora.—Asduassaíramandandocomasbolsas.—Ah,encontreiumaamigasua,nãolembrobemonome,maselajáesteveláemcasa.Umaloirameioperua.

—Ah,devetersidoaPâmela.Masnãofaleassimdela.Já era noite quando deixaram o interior do shopping, o carro delas seguiu

caminhopelo trânsitoque fluíabem.Meiahoradepois,oveículoentrouemumaluxuosacasacercadaporummuroalto.Quandodesceudocarroagarotaolhouparacimaeviuoirmãodeonzeanosgritandoporelanavaranda.

—Cuidadopranãocair,seulouco.—Omeninoestavadebruçosnoparapeito.Elapassoupelasala, subiuasescadasapressadamentee largouascompras

emcimadacama.Livrou-sedesuaspulseiras,colareoutrosacessórios,deixando-osemcimadapenteadeiraefoitomarbanho.

Amandaestavaenroladaemumatoalhabrancaquandocomeçouarevirarascompras. Tirou váriasblusas, saias e shorts, e seperguntouqual deles renderia

boasfotos.Provouumvestidocurtocomumdecotesugestivo,experimentoudoisparesdesapatosparaverqualcombinavamais.

Amandafezalgumasfotosnoespelhoquetomavatodaaportadoseucloset,depoisvoltouarevirarassacolas,haviaalgumasqueaindaestavamintactasefoimexerjustamentenasacolaamarelolimão.

Oquetinhadentroeramalgumaspeçasíntimaseumenvelopevermelho.Elapegouopapeleolhouparaele,estavagravadoseunome:AmandaCastillo.Ficoumuitocuriosaparasaberdoquesetratava.

—Ah,umadeclaraçãodeamor—disseparasi.—Algumadmirador...—Elanãoconseguiu terminara frasequando leuoqueestavaescritonocartãopreto,comletrasbrancas:

Convidamos a Segunda Dama a se fazer presente no jantar especial, dia

quatorzedeabril,naruadasorquídeas,númerosete.Compareçacasonãoqueriaperderseuposto.

Elacaiusentadanacama.Olhosarregaladoseabocaaberta.Emumamãoo

envelope,naoutraocartãonegro.Nãoerapossívelalguémsaber,sempreforatãodiscreta.Equejantarseriaesse?Suamentecomeçouadarvoltas,elacaiudeitadaeficouolhandoparaoteto.Emseguida,ouviuumasbatidasnaporta.

— Amanda, quero ver o que você comprou.— Amãe entrou sorridente. Agarota apressou-se em esconder o papelmisterioso embaixo do travesseiro, suacamajáestavabagunçada,cheiadepeçasderoupasesacolas.

—Não reparaabagunçaque já fiz.—Ela estava sentadana camacomaspernas cruzadas. — Mas olha, foi tudo isso que comprei. — Ela disfarçou onervosismocomumsorriso.

—Oqueé isso?—perguntouSarah,aotirardeumasacolinhaumalingeriepretacomcinta liga.—Desdequandovocêusaessascoisas?—Aexpressãodamulhersefechou.

—Compreipravocê,mãe.—Amandaforçouaindamaisoseusorriso.—Amanda...—Tudobem,émeu.Masqualoproblemaemusarlingerie?—Problemanenhum,masessetipodecoisaeucostumousarquandoestouà

beiradeumacrisecomseupai.—Mãe,mepoupedessesdetalhes.—Amandalevantou-sedacamaetomoua

peçadasmãosdamãeeenfioudentrodeumagavetadeumcômodobranco.—Mas olha, isso aqui é seu. Escolhido pormim, tá?—Ela entregou uma caixinhavermelhaqueretiroudeumadasbolsas.

—Quemaravilha.Adoroseusgostos,achoquevoutecontratarcomominhapersonalstylist.—OsolhosdeSarahbrilharamdiantedopardebrincos,cadapeçaeraformadaportrêscoraçõespequenosdediamantes,umencaixadonooutro.—Meajudeacolocar.

—Masolha,issodaíeupasseinocartãodecrédito.—Amandaencaixouumbrinconaorelhadireitadamãe.—Aquelequeno fimdascontasquempagaéasenhora,sabe?

—ForçaGabriel,vocêconsegue.Vamos!—Osuor tomoucontadorostodo

rapaz e começoua escorrerpelanuca, o garotousou toda forçaque tinhaparalevantarvinteecincoquilosdecadaladodabarraaqualutilizavanoexercíciodesupino.

—Caralho!—disseorapazaosentarnobancodepoisdelargarabarranoapoio.

— Isso aí garoto— disse Joaquim.— Eu já terminei, vai fazermais algumexercício?

—Não,masvoutomarbanhoantesdeir.—Vamoslá.Osdoiscaminharamentreosaparelhosehomensemulheresquelevantavam

pesos.Eles terminaram,pegaramsuascoisase saíramdaacademiaemdireçãoao

carro que estava estacionado a algunsmetros. Joaquim encontrou algo no para-brisadocarro.

—Achoqueépravocê.—Oqueé?—perguntouGabriel.—Nãosei,temseunome.Deveserumacartinhadeamor,toma.Gabriel pegou o envelope vermelho e viu seunomegravado, ficou intrigado

comaquilo. Joaquim entrou no carro e o rapaz deu a volta, entrou já abrindo oenvelopeesentiusuaalmaresfriaraoleraquilo.

Imediatamente colocou o envelope dentro da mochila e tentou nãotransparecerdesconforto.DisseaJoaquimqueoenvelopeestavavazio.

Umtempodepois,Gabrielchegouemcasaedisparouparaoquarto,sentou-senacamaevoltoualeraquelaspalavras.

PARTEUM:SEGREDOSUmsegredoéumacoisaestranha.Há três tiposdesegredos.Umédo tipo

que todomundoconhece, do tipoqueprecisadepelomenosduaspessoas.Umaparaguardá-lo.Outraparanuncasabê-lo.

MaggieStiefvater,LadrõesdeSonho.

CAPÍTULO1ORIO

DIASANTES

Aáguadacachoeiradesciapelaspedrascomosefosseumaluzprateadade

magia. Murilo podia jurar que aquela garota era uma fada sendo coberta poraquelaluzqueadeixavamaisencantadaqueonormal.

Amandaestavaembaixodaquedad’águaprestesadarummergulho.Eladeualgunspassosparatrás,correuepuloudapedraondeestava.

Muriloaviuserengolidapelaágua.Elausavaumbiquíniqueodeixavacomosangueborbulhando.

Ele submergiu, nadou e a encontrou no fundo. Os dois emergiram de umamaneirafugaz.

—Seulouco,vocêmeassustou.—Amandasentiuasmãosdeleemsuacinturaaindaembaixod’água, oquea fez terumsusto.Ela ofegava jogandoáguanele,tentandoacertá-locomasmãos.

Muriloriuenadouparafugirdela.Era uma quarta-feira iluminada e a escola estava sendo dedetizada, então

tiraramodiaparanadar.—Vemmepegar—elegritoueameninanadouatrásdele.

— Você gosta dele, não é Vic?—Rebeca estava com os cabelosmolhados,

dentrod’águaesuaamigasentadaemumapedra.VicsorriuenãoprecisoudizermaisnadaporqueRebecaviuobrilhodosolhos

delaecomoosorrisoestavaalinhadocomostraçosdorostodamenina.AgarotaolhavaadmiradaparaGabrielqueestavaaalgunsmetrosdedistânciaconversandocomRaphael.

—Eleélindo—falou.—Masnãofaçootipodele.—Equaléotipodele?—Rebecaaproximou-sedeVic,impulsionouasmãosna

pedra,esentou-seaoladodaamiga.— Garotas bonitas como você. Eu vejo, Rebeca, que ele dá em cima das

gostosonasdocolégio.Comoeleiriagostardealguémquepareceumcadáver?Rebecariu.—Nãosejadramática.Vocêébonita,Vic.Sóprecisasevalorizarmais.—Rebeca tem razão— falou Felicity que estava ao lado de Vic. Amenina

mexianocelular.—Medarvalornãovaimedeixarmaisbonita.Nãovaiaumentarmeuspeitos

nem me dar curvas. — Vic falou de modo descontraído sem imprimir um tomdramáticoàsuavoz.

—Quemdissequenão?Seusolhospodembrilhardiferente,sevocêsorrirsemmedo, livredaopiniãodosoutrosedasuaprópriaopiniãonegativa.Combinandocom seus traços sua expressãopodeganhar outra vida. Isso é beleza.Vocênãoprecisaganharpeitonemcurvasacentuadas.Osmeus sãopequenos,olhe—eladissesegurando-oscomasmãos.

—Massuacinturaécomoadeumviolão.Eusoureta,pareçoumatábua.—Viccolocouumamechadosseuscabeloscresposatrásdaorelha.—Semfalarquevocênasceuruivaecomolhosazuis. Jáédifícilnascerruiva,ecomolhosazuis?Definitivamente,vocêémuitosortuda,Rebeca.

— Exagerada você. — As palavras de Vic provocaram uma onda deinquietação dentro de Rebeca. Era sempre assim que as pessoas a viam, umagarotarica,bonitaecomtodososrequisitosparasuperarosproblemasdavida.

Mentalmente,elacomeçouapensarqueestavaemummundoimaginário,queelanãoeraaRebecaquetodosconheciam.Eraoutragarota,semligaçãoalgumacomomundoreal.

— Apenas precisa assumir sua beleza — disse, forçando um sorriso. —Abandonesuastrançasesolteessecabelo

— Ah não. Solto só quando estiver molhado como agora, tirando isso,nunquinha.Eleficatodoarmado,ospassarinhosvãoacabarquerendofazerninho.

— Não seja boba Vic. — Felicity ainda teclava no aparelho. — Seu cabeloficarialindosesoltasse.Éestilosoterumcabeloarmado.

—Eoutra,vocêtemqueterpostura—continuouRebeca.—Desculpe,masvocêandamuitodesengonçada.Ergueacabeça,colunaretaeestufaopeito,quemsabeelescrescem.EsorriVic,temquesorrir.

ViceFelicityriramaoveraamigasecontorcendoquasecomumrobô.—Equandoforolhar,sempreolheporcimadoombro.Semprepracima.—Assim?—Vicergueuacabeçaeolhouparaocéu.—Nãosejapalhaça,vocêentendeu—disseRebeca,sorrindo.Elasouviramumestrondo.Umcorposechocandocontraaságuas.Gabrielemergiuesacudiuoscabelos.Vicoviusorrindocomaquelesdentesquepareciamtersidoprojetadosparao

rostodele,perfeitamentealinhados,eramretosesuaspresaspoucoacentuadas.Opeitodelearfavaeagarotaestremeceutodaquandoelegritoualgumacoisaqueelanãoentendeubem.

—Aii,eleestávindoRebeca.Nossa,atéoGabrieltemocabelobomeeunão.—Relaxaamiga.VicsesentiuumpoucofrustradaquandoviuGabrielnadandodevoltaparaa

pedradeondehaviasaltado.LáestavamMuriloeAmandagritandoporele.Maselaseanimouquandoorapazsaiudaáguaecaminhouporterra.Eleusavaumasungapretaeseucorpobrancoemusculosoarrancaramsuspirosdasgarotas.

Olocaleracercadoporárvorescommuitospedregulhoseareiaemalgumas

áreas.Osomdoambienteficavaporcontadacachoeiranumduetocomocantodospássaros.

—EleétãoforteRebeca.Pareceindestrutível—VicfalavacomoolharfixoemGabrielsemovendo,tentandoseequilibrarnocaminhoquefazia.—Écomoseelefossefeitodeummaterialdiferente,comosenãoquebrasse.

—NãoseenganeVic,todosnósquebramos.—eRebecasereferianãoapenasa quebrar ossos, mas a quebrar a alma também. — De alguma forma nósquebramos.

—Talvezvocêtenharazão.Euvivonomundodalua.Imaginoascoisasdeumjeitodiferente.Possovê-lodeasasoufeitodeferro.Possovê-locomoumanimalferozoucomoumtubarão.

—Nossa,quantoromantismodevocêsduas—falouFelicity.—Menina,oqueéquevocêtantoescrevenessecelular?—perguntouVic.—EstoutirandoumasdúvidasdaúltimaauladequímicacomaBeatriz.—Fê,agenteveioaquisedivertir,nãoestudar—disseRebeca.—Largaisso.—Tá,tudobem.Vouguardar.Deixemdeconversaevamosnadarumpouco.—

Felicitylevantou-seecomeçouacaminharemdireçãoàbarracaondeestavamsuascoisas.

—Achoque todomundo temummundoparticular—disseRebecaparaVicretomando o assunto. — É necessário ter um para poder fugir. Quando estoucansadadomundo,medeitoefechoosolhos.EumetransportoparaRadley.

Vicfezumacaraconfusa.—Nãomeolheassim.—Rebecasorriu.—Meumundoparticulartemnome,

sechamaRadley.Láascoisassãocomoeuquero.Todomundoéfelizenãoexistemdoenças,tristeza,guerras.Gostodepensarqueaspessoaspodemseroqueelasquiserem.Etambémastransformoemcriaturas.

—Comoassim?—questionouVic,interessada.— Exatamente como você imagina o Gabriel. Com asas ou feito de ferro.

Indestrutível.—Vocêtambémovêdessaforma?—Nãodessa forma.EmRadley,Gabrieléumgrande lobo feroz, compelos

brancoseolhosvermelhoscomodoisrubis.VicpassouaimaginarGabrielsetransformandoemumlobo.Naimaginação

dela, ele teria caninos afiados, a língua rosada e conseguiu ver um linha fina debaba que ligava o dente inferior ao superior. Elamontaria nele e correria pelaflorestaparaondequerqueelealevasse.

—Acheique sóeugostassede imaginar comoaspessoas seriamse fossemanimaisoucriaturasmágicas.Vocêcriaessashistórias?

—Crioeescrevoalgumas,outrasficamsónaminhaimaginação.—Quelegalevocênuncapensouempublicar?—Ahnão.Elassãominhas.Éummundoquequerosópramim.Nãoseipor

queteconteisobreisso.— Relaxa, não vou contar pra ninguém. E o que eu sou em Radley? Uma

bruxa?—Viccontinuavadesdenhandodesi.—Vocêéumasereiaenãousatranças.Seucabeloéestiloso,bemdiferente

daAriel.Vicdeurisadaseimaginandoumasereia.—Faça-aseapaixonarporumlobo,porfavor.—Voupensarnoseucaso.Rebecaentrounaágua.—Vamosnadar—disseela.—Estamosperdendotempo.Vamosnosjuntaraos

outros.ElasviramGabrielsaltardeumaalturadepoucomaisdetrêsmetros.Depois

Murilo pulou e Amanda em seguida. Vic pulou na água e as duas nadaram atéalcançaremarochadeondeosamigosestavampulando.

— Desencana, Rafa — disse Gabriel. — A Fê só pensa em estudar. Se ela

estivesseafimdeoutrocaranãoteriaaceitadosaircomvocê.—É...sóqueelamedeuumbolo.Elafoiláenãotevecoragemdeentrar.Não

entendoessagarota,vaiverelasóestábrincandocomigo.EleshaviammarcadoumencontroemumCafé.EstavatudocertoeRaphael

compareceuaolocal.Eleaesperoueteveesperançasdequeelachegasseatéverumagarotapassarnacalçada,jurouqueeraFelicity.

O rapaz largou o cardápio sobre a mesa e correu para a rua, mas nãoconseguiu mais ver a garota. Ele deu algumas voltas e se aborreceu instantesdepois,aonotarqueelanãochegaria.Ligou,masnãofoiatendido.

RaphaelestavacertodequeaquelagarotaeraFelicity,poralgumarazão,ameninapassoudireto.

—NãoacreditoqueaFêsejadisso.Elasónãoestáafim.Achoquevocêpodeterconfundido.Elanãotedissequeestavacomdordebarriga?

—Falou,masfoihorasdepois.Podiaterdesistidoantes.Alémdomais,essadesculpanãocolou.Tenhocertezadequeeraela.

—Vocêtemqueprocuraroutragarotaeaprenderagostardequemgostadevocê,cara.Temummontedegatanaescolatedandobola.VocêvaiacabarfeitooMurilo.AAmandafazeledegatoesapato.

—Fazeroquêseeugostodela?Nunca teveumagarotaporquemvocêsótenhatidoolhospraela?

—Nuncatereiolhossóprauma.Mastemumagataqueeumeamarraria...—Ah,quemé?Falalogo,vocênuncacontou.—Alguémquevocênãoconhece.Équaseumamorproibido.Gabrielcolocouamãonanucadoamigo.—Saiforadesselancedeamorenquantoétempo.Agoradescelá,entrana

águapratirarumafotominha.Mepeganoar,falou?—Eledeutapasnascostelasdoamigo.

— As pessoas surpreendemmesmo. Quem diria, você com uma centena de

namoradas,sofrerporamor.—Éavidameucaro,nãosabemosoqueaspessoasescondematrásdeum

sorriso.Corre lá.—GabrieldeuumapiscadeladeolhoeseguiucaminhoparaarochaondeestavamMuriloeAmandaseagarrando.

Raphaelcorreuatéaondeascoisasdelesestavamemumabarracamontadaembaixo de uma árvore. Revirou uma mochila e tirou um smartphone à provad’águadedentro.

Felicityentrounabarracaantesqueelesaísse.—Ah,medesculpe.Nãosabiaqueestavaaqui.—Jáestousaindo,sóvimpegarocelularprafazerumasfotos.—Euvimguardaromeu.—Felicitylocalizousuamochilarosa,abriuozípere

jogouoaparelhodentro.Elausavaumshortinhopretocomumtoplilás.Raphael ficou de boca aberta observando a garota agachada mexendo na

mochila.—Opaudeselfiepodeserútil—disseela,mostrandooobjetoparaorapaz.Ela era um anjo com aquele sorriso, pensou Rafa e no mesmo instante

lembrou-sedoqueGabrielfalou.—Claro—disseele,meioqueacordandodeumaviagemmental.—Seráútil.

Vamoslá?RaphaelqueriamesmopuxarassuntocomFelicity,passarmaisalgunsminutos

admirandoabelezadamenina.Elenotouqueseuscabelos tingidosdevermelhoestavamperdendoacornaraizerevelandoosfiosloiros.Ficouimaginandocomoelaseriacomaquelesolhosverdeseloira.

—Euqueriatefalarumacoisa—eladissemeiosemjeito.Raphael estava de cócoras, com os cotovelos apoiados nas coxas. Ele nem

acreditouqueelamesmaestavapuxandoassunto.—Claro,podefalar.Orapazusavaumshortdebanhoeestavasemcamisa.Seuscabelosestavam

úmidoscomalgunsfiosjásecos.—Queriatepedirdesculpaspeloboloquedei.Felicitycomeçouaficarvermelhaeelequispoupá-ladepassarporaquilo.— Esquece isso, já passou — disse ele, cortando a fala dela. — Podemos

marcaroutrodia.—Osolhosdogarotoseencheramdeentusiasmo.Felicityoencaroucompena.—Éque...eraeuagarotaquevocêviuaquelanoite.Eufuiatéláefugide

você.Viquandoselevantou.Foierradooquefiz...Na ocasião, escondeu-se em um restaurante e encobriu o rosto com um

cardápio. Viu por cima, através da vitrine que dava para a rua, um garotoprocurandoporalgooualguém.Procurandoporela.

Depoisqueelesumiu,esperoualgunsminutosparapodersair,correrdaliparalonge.Entrouemumtáxiequandochegouemcasa,enviouumamensagemparaorapazalegandoqueestavacomdordebarriga.

Aindanãoestavapreparadaparaencontros.—Nãoprecisa falar isso, nãome importo.Não sei o que levou você a agir

assim,nãopodemosvoltarnotempoparaaqueleencontro,maspodemosteroutro

nofuturo.—Eleaproximou-sedelaesegurou-lheamãodireitacomsuasduas.—Ounopresente...agora.

Elaquis puxarde volta,masdeixouqueele segurassepor alguns instantes.Estavamdejoelhosdefrenteumparaooutro.

—Não é o que quero nomomento. Conhecer um garoto, quero dizer. Nãoestouafimdebeijar,namorar,nãoqueronadadisso.

Raphaelsoltouamãodelalentamentecomoseestivesseperdendosuasforçasefosseincapazdesegurá-la.

— Não quero que alimente alguma esperança em relação a isso. Seremosapenasamigos.

—Gostadeoutro?—Aspalavrasdelaresfriaramopeitodogaroto.—Não,nãogostodeninguém,nãonessesentido.—Todomundogostadealguém.—Issonãoéverdade,meucoraçãoestásozinho.—Então significa que posso tentar fazê-la gostar demim.—O coração do

garotovoltouaficaraquecido.FelicityesboçouumsorrisoquedevolveuaalegriadeRaphael.—Vocêéteimoso.—Nãovoudesistirdevocê.Elesouviramgritosvindosdefora.—Achoqueestãonoschamando—disseFelicity.—Vamosláentão.Felicitysaiuprimeiroeeleveioemseguida.—Porquevocêpintaocabelo?—perguntouenquantocaminhavam.— É uma pergunta um pouco difícil de responder. — A garota ficou

incomodada,masdisfarçoudandoumarespostasimples.—Eugostodelenessacor.—Vocêéloiranatural?—Sousim.Vejoquejáestouprecisandoretocararaiz.—Tantamulher sofrendo pra ficar loira e você sendo umanatural pinta de

vermelho.Vocêssãocomplicadas.Felicityapenasriuenãodissemaisnada.Osdoisentraramnaáguaecaminharamporumtrechorasoatéchegaremem

umponto que seria possível fotografar os amigos pulando da formação rochosa.Raphaelaproveitouparafazerfotosdagarotasemqueelapercebesse.

—Estoupronto—gritouRaphaelfocalizandoosamigosnacâmeradocelular.—Nãovaipular?—eleperguntouparaFelicity.

—Nãomesmo,morrodemedodealtura.—Ah,falasério,sãopoucosmetros.Felicityaindaseguravaobastãodeselfie.Elaabriae fechavaosbraçosna

águaemmovimentosleves.— Aí vou eu — gritou Gabriel lá de cima. Ele se afastou, correu e pulou

abraçadoaosjoelhos.Raphaelconseguiufazerboasfotospanorâmicasdele.—Não acredito que a Amanda vai pular— falou Felicity no instante que a

garotadesceuemquedalivre.

Murilo veio em seguida. Gabriel, que ainda dava braçadas na água, foi emdireção à queda d’água e ficou tomando banho no chuveiro natural. Amanda eMurilosejuntaramaRaphaeleFelicity;RebecaeVicsaltaramjuntas.

—Gabriel,vemsairnafoto—gritouFelicity.OrapazpulounoinstanteemqueVicemergiudaságuas.Seucoraçãopalpitou

aovê-loafundareemseguidaviuacabeçadeleromperasuperfície.Oscabelospretoscobriamsuatesta,denovoelesacudiuacabeçadeixandoagarotacomumpoucomenosdefôlego.

Gabrieljuntou-seaogrupo.RebecaestavaaoladodeleegritouporVicparaque se juntasse a eles. Rebeca agarrou o braço da amiga assim que ela seaproximoueafezficarpróximadogaroto.

—Deixaqueeuseguro,Fê—disseGabriel.Felicitypassouopaudeselfiecomocelularjáencaixado.

Gabriel esticou o braço com todos já posicionados atrás dele e apertou obotão.

—Podemedizeroqueéisto,mocinho?Ricardo entregou o celular a Gabriel para que ele visse uma foto. O rapaz

caminhouatéacozinhasementendercomoaquelafotografiahaviaidoparaemseuFacebook,postadaporelemesmo.

Mascomo?Perguntou-se.—Vocêmeseguiu?Estavanosespionando?—Comotemacaradepaudeperguntarseeuestavateespionandosevocê

mesmopostouafoto?—Eunãoposteinadadisso,pai.Devetersidoalguémquepostoupormim.AimagemmostravaGabrielnadandonorio.Ogarotopassouodedonatelae

viuquetinhaoutras.—Gabriel, eu não tenho sua idade,mas não sou burro para não saber que

vocêmesmopostou.—Ok,tudobem.Euestivenoriohojepelamanhã,masnãoestavasozinho.—

Omeninosabiaquenãoadiantavabaterbocacomseupai,eramelhornãoirritá-lomaisainda.

—Gabriel,eujátedisseummilhãodevezesquenãotequeropertodaquelerio.Alémdomaisvocêmentiupramim,dissequeiriapassaramanhãnoparqueaquático.

—Ahpai,relaxa.Nãoaconteceunada.Euestavacomunsamigosdocolégio.—Gabrielabriuageladeiraetirouumacaixinhadeleite.—Alémdomaiseunadobem.Eficamosamaiorpartedotemponacachoeira.Esetivesseditoqueeraoriovocênãomedeixariair.

—Poucome importa sevocênadabem.Vocênãoéumpeixepara respirar

embaixo d’água. — Ricardo estava mesmo furioso com Gabriel. — Não deixomesmovocêchegarpertodaquelaságuas.Éperigoso,meufilho.Pessoastãoboasquantosereiasjámorreramnaquelerio.Esperoquetenhaaproveitado,poisfoisuaúltimavezlá,estamosentendidos?

Gabrielestavadepé,vendoseupaigesticulandoparaeleeapeledopescoçoficarvermelha.Orapazestavaimóvel,segurandoacaixadeleiteemumamãoeocoponaoutra.Usavaumacalçamoletom,estavadechineloesemcamisa.Ocabeloestavaassanhadocomoseumpássarotivessetentadofazerumninhoali.

—Tudobem—disseGabriel.—Possotomarmeuleiteagora?—Agorapode.—Ricardosuspiroueretirou-sedacozinha.—Euhein,tudoissoporumafoto?—faloubaixinhoparasi,enquantoenchiao

copo. Mas pensava em como raios aquelas fotos foram parar em sua linha dotempo. Será que tinha alguémespionando eles? Todos combinaramque ninguémpostaria fotos justamenteparaevitaresse tipode incômodo.Nãoeraaprimeiravezqueianaquelerionemmuitomenosaprimeiravezquelevavabroncadopaiporsearriscar.

Gabriel subiu para seu quarto, pegou o smartphone e sentou-se na cama.Olhou seu Facebook e viu várias fotos do rio. Viu também que tinha váriasmensagensnogrupodeamigos.

Amanda:Gabriel,vocêficoulouco?Postoutodasaquelasfotos?Felicity:OMG.Minhamãequaseenfartouquandomeviunaquelasfotos.Amanda:Naguentomeupainomeuouvido,nãoparaumsegundo.Murilo:Vcvaciloucara.Sabiaqueelessãoboladoscomaquelerio.Rebeca:Minhamãenemficousabendo,ainda.Gabrielleuasmensagensedigitou:Eunãoposteiaquelasfotos!Amanda:Comonão?Estãonoseuface.Gabriel: Vocês não repararam nos ângulos que foram tiradas? Como eu ia

tiraraquelasfotos?Temimagensqueforamcaptadasdecima,temoutradetodosnósjuntos.Alguémtevedesegurarocelularouacâmera.

Amanda:Oquevocêestáquerendodizer?Quetinhaalguémnosobservando?Gabriel:Atéqueenfimentendeuné?Vocêsnãoprestamatenção?Amanda:Mascomoforampararnoseucelular?Gabriel:AcoisamaisfácildessemundoéhackearumFacebook.Amanda:hahahah,fácilpravocê!Gabriel:Estoufalandosério,alguémfezisso.Amanda:Masquem????

CAPÍTULO2BLACKSTAR

O céu estava estrelado. O vento serpenteava sutilmente espalhando leves

ondasdefrio.Afrentedaboatecomeçavaaficarmovimentada.Carrosepessoasemumvaievemanunciavamqueafestaestavacomeçandoequeanoitedesexta-feiraseriaagitada.ABlackStareratodapintadadepreto,comumaportametálicaeumagrandeestrelaluminosaacimadela.Seuinteriorestavabemiluminadocomjogodeluzesnapistadedançaeumamúsicaeletrônicatomavacontadosouvidosdaspessoasqueestavamládentro.

Umgrupodeamigosseaproximavadaentradadaboate.Umagarotaaltadecabelosruivosvestiaumvestidotomaraquecaiabemcurtocomalgumaspedrasdouradasdoladodireitoqueformavamodesenhodeumaflor.Outragarotamaisbaixadesfilavaemseuspésumsapatovermelhobemchamativoeusavavestido,ambascarregavambolsaspequenasnasmãos.Orapazeraalto,cabelosnegros,músculosrealçadosporumacamisetaapertada,usavacalçajeansetênis.Rebeca,Amanda e Gabriel, todos menores de idade e festeiros. Um outro rapaz osacompanhava.Murilo era primo deGabriel, o amigomaior de idade que dirigiaparaeles,quaseummotoristaparticular.Pegaramumafilaquenãodemoroumuitoatéalcançaremosegurança.

— Adoro quando você deixa a barba crescer, Gabriel — disse Rebeca queestavaapoiadaaoombrodorapaz.—Combinacommeucabelo.

—Achoqueformamosumbelocasal—disseele.—Documento, por favor—disseumhomemgrandeemoreno.ABlackStar

nãopermitiaquemenoresfrequentassemoambientesemumresponsável.Nestecaso,Murilonãoseriaoresponsável.

—Aqui,moço.—Rebecaapontouodocumentopresoentreosdedoscomosefosseumcigarro.Eleconferiuedevolveu.

—Podeentrar.Amandafoiapróxima,depoisGabriele,porúltimo,Murilo.Todospassaram.

Quase todas as informações no documento eram verdadeiras, exceto o ano denascimento.Eraumacópiafalsificadacomdadosverdadeiroseapenasumnúmerodiferente do original. Eles conseguiram essa façanha comGabriel, que, segundoele,descolouotaldocumentocomumamigo.Oprimosabiadetudo.

Umpaineldebebidasseerguiaatrásdobalcãodemadeira,erailuminadoporuma luzroxa.Haviadoisamigos,umde frenteparaooutrogargalhandoquandoRebecaentrou,elaosviuderelance.Amandaveiologoatrásdaamiga,Muriloapuxou pela mão alegando ter encontrado uma mesa vazia. Gabriel chamou aatenção deRebeca para acompanhá-los.Um sujeito deu de ombro comGabriel,nadademaisanãoserumpedidodedesculpasmútuo.

Sentaram-seosquatroàumamesa.Murilocochichouaoouvidodogarçom,ojovemanotouopedidoeretirou-se.

Instantesdepois,ogarçomvoltoucomumbaldedegelocheiodecervejasemaiscoposcoloridos.Gabrielafastouasbolsasdasgarotasparaajudá-lo.Orapazlargouacomandanamesaeretirou-se.

Asmesaseramdispostaspelaslateraisdeixandoumespaçovazionomeiodosalãoparacirculaçãodaspessoas.Nosfundos,seguindopeloladodireitohaviaumasinucaondehomensjogavamàvontade,pelaesquerdaumvãocomalgumasmesasenofimumaportaqueseparavaapistadedançadobar.

Murilopegouumcopocomumlíquidoazul,geloeumlimãodecorativo,ialevá-loàboca,masAmandatomouocopodesuasmãosedeuumgoleprimeiro.

—Táliberado,podetomar.—Nãotemálcool.—Murilopegouocopovolta.—Precisome certificar, quero chegar viva em casa.—Amanda pegou uma

bebidaqueeraumamisturademorangoegelo,quandoingeriusentiuogostodevodka.—TáumadelíciaRebeca,provaesseaqui.

—Deixaeuver.—Rebecalargouocanudoquesugavaacaipirinhanomesmocopo em que Gabriel bebia com o canudo também. — Toma, prefiro minhacaipirinha.—DevolveuocopodeAmandaepegouoseudevolta.

—OquehouvecomaFêquenãoquisvir?—perguntouGabriel—Dissequenãoestavabem...dordecabeça—respondeuRebeca.—Hum,minhamãeligando.Eujávolto.—Amandasaiuapressadaemdireção

aobanheiro.Ela esbarrou em algumas pessoas, pediu licença e depois de alguns passos

alcançouobanheiro.Asparedeserampintadasnumtomcinzaquaseprateadoeopiso era branco.O somdamúsica ficoumais distante e duas garotas saíramnomomentoemqueelaentrou.

—Mãe,aconteceualgumacoisa?—Não,meubem.Sóqueriasabersevaiprecisardealguémparabuscá-la.—Nãomãe, oMurilome deixa em casa, não se preocupe.— A garota se

olhavanoespelhomexendonasmadeixas.—Eemcasatudoempaz?—Tudo.—Amandaouviuumbocejodooutroladodalinha.—Seprecisar,não

hesite em ligar e tome cuidado pelo amor de Deus, não se meta com genteestranha,nemcheguepertodebebidaeomaisimportante,nãofiquegrávida.

—Aimãe,desencana.Ninguémvaibeber.Beijo,tenhoquevoltar.—Assimespero.Beijoquerida.Amandadesligouocelulareocolocounaminúsculabolsa,dedentrotirouum

batom rosa claro e começou a passar nos lábios. Ela estava de cabeça baixaguardando o objeto na bolsa quando a mão de um homem tapou sua boca derepente.O sujeito agiumuito rápido, em segundos ele a arrastou para uma dascabines, agarotaconseguiu levarabolsaconsigo,masobatomcaiunochão.Onervosismo tomou conta. No cubículo, seus olhos estavam marejados quando ohomemmisteriosogirouseucorpobemdevagar,permitindoqueelaficassecaraacaracomele.

Aovê-lo,umaondadealíviotomoucontadoseu interioreaomesmotempoumaraivasurgiadesuasentranhas.Ele fezumchiadopedindosilêncio,dandoaentenderquelargariasuacinturaqueestavapresaaocorpodele.Elafezsinalcom

acabeçadeque ficariaquieta.Ele tirouamãodabocadela,masnãoa soltou.Ficou admirando a beleza da jovem, os olhos, os lábios tão macios, e tão logo,coladosnosseus.

— O cara tá louco por mim, estou só me fazendo de difícil, mas eu queromesmoirpracamacomele.—Amandaouviuavozdooutrolado.

—Seguraohomemantesqueeledesista,enquantovocêficaaqui,deveterummonte de perua em cima — disse outra voz. — Olha, um batom aqui no chão.Achadonão é roubado, né?Adorei essa cor.—Amanda fez cara de ódio para ohomemqueprendiaarespiração.

—Vamoslogo,antesqueroubemmeuhomem—disseaoutra.Passosforamouvidos.— Eu quero meu batom de volta — sussurrou a jovem. O homem estava

sentadonaprivadacomaspernasabertasparaqueficassemescondidas,impedindoquealguémdooutroladovisseporbaixodaporta.Eletentouseguraroriso.

—Eucomprooutropravocê—disse,baixinho.—Vocêquasemematadesusto.—Elaobeijourapidinho.—Vocêélouco.—

Outrobeijinho.Eleestavacomumsorrisolargo.—Soulouco.Façoissoporvocê,minhapequena.Souloucoporvocê.— Já pensou se todos soubessemque o prefeito tentou estuprar uma jovem

donzelanumbanheirodeboate?—Nãofazdrama.Alémdomais,vocêandasumida,nãomeatendemais.Está

desistindodemim?Agarotasoltouarespiração.— Precisamos conversar. Não quero passar a vida me encontrando às

escondidas.—Aspalavrassaíramdifíceis,quasetrôpegas.Nãoeraoquequeriaqueacontecesse,maseranecessário.Nemsempreoqueénecessárioébompranós,diziasuamãe.Elalembrou-sedessaspalavras.

—Amanda.—Essa voz veio de fora cortando o climade romance entre osdois.EraRebeca.—Amandavocêestáaí?

Agarotaarregalouosolhos.Rebecaestavadentrodobanheiro.—Oi,oquehouve?—Amandasaiudocubículorapidamentedeixandoaporta

fechadaparaqueelanãopercebesse.Oprefeitoficousentadonaprivadacomospéslevantados.—Jáestavaindo.—Elafoiemdireçãoàpia,colocouabolsadoladoelavouasmãos.—Meemprestaseubatom...ainemteconto.—Elaparecianervosa,Rebecaapenasaobservavasementendermuito.—Umloucomeagarrounaportadobanheiroemebeijou.Borroutodomeubatom,achoqueesqueciomeu.Meempresta?

—Claro.—Rebeca tirouo objetodabolsa e entregou.Amanda começouapassá-lonoslábiosaomesmotempoqueempurravaRebecaparaforadobanheiro.

—Oquedeuemvocê?Estáesquisita.—NãoqueroqueoMurilodesconfie,vocêsabecomoeleé.Podeficartriste

comigo.—Vocênãoquernadacomele,nãotemcomoquesepreocupar.—Elas já

estavamemmeioàspessoas.—Mas ele quer comigo. E o mercado de homens está em crise, é melhor

garantirumbackup.— Acho que está na hora de irmos pra pista. Adoro essa música — disse

Rebecaassimquechegaramàmesaondeosrapazesaindaesperavamporelas.—Ah,DavidGuetta,adoro.—Amandaficoumuitoanimadaaoouviramúsica

tocandoecomeçouacantar.—We’llfindaway,we’llfindaway...Muriloaacompanhounotrechoseguinte.Elesandaramumatrásdooutro,atravessaramasportasduplasesejuntaram

aoamontoadodepessoasquedançavamaosomdamúsica.Rebecaestavadançando,embaladapelamúsica,ao ladodeGabriel.Elesse

remexiamnumacoreografiaquepareciamuitobemensaiada,masnaverdadeeraadançamais fácildeserrealizada,poisosmovimentosnãoobedeciamanenhumamarcaçãológica.Algumaspessoaspulavamabraçadasumasaoutrasemumtrechomais empolgante da música. Os quatro amigos ainda dançavam próximos eentoaramjuntosdamultidãootrecho“We’reburninup/Wemightaswellbeloversonthesun”,repetindoalgumasvezes.

O jogo de luzes deixava Amanda ainda mais bonita, Murilo a admirava,procuravaestarpertodela,dançando,abraçando-a,tentandobeijá-la.Amandaeraumagarotadifícil,Muriloseesforçavaparaconquistá-la.

Gabriel sumiu por alguns instantes e voltou com duas latinhas de RedBul,ofereceuaRebecaque tomouerepassouaAmanda,Murilocontinuava tentandoimpressionarsuapretendente,faziaumadancinhaestranhaparaela.

A música seguinte continuava no repertório de David Guetta, Titaniumcomeçouatocar,algunsgritosforamouvidos.OspésdeRebecanãopararamumsegundo, nem suas mãos, nem seu corpo todo, ela estava sendo observada poralgunshomens.Umsujeito aproximou-see ainda conseguiuatençãoporalgumasestrofes da música, ele estava com um copo na mão que continha um líquidoamarelado,ofereceuaela,masamesmarejeitou.Defininho,Rebecaselivroudeleecontinuousacudindoosbraçoseremexendooesqueleto.

Foinotrecho“I’mbulletproof,nothingtolose/Fireaway,fireaway”queelaviuumhomemdecabelos lourosdacordemel,deporteatlético,usavaumacamisaverdemusgocomlinhaspretasnahorizontalquedemarcavamespessurasdepoucomaisdecincocentímetros,comapenasumbotãofechado,deixandoumpoucodopeitoàmostra,asmangasiamatémetadedoantebraço.

EleveiocaminhandoapassosfirmesemdireçãoàRebeca.Elaviuquandoumagarotaaproximou-sedeleecomeçoua falaralgumacoisaqueelanãoconseguiaouvir.Ohomemcedeuoouvidoàgarota,masseusolhosestavamfixosemRebeca.

AmúsicacontinuavaeRebecaprocuravanãoperdê-lodevista.Elaoviusemovendonomeiodaspessoas,sorrateiramentecomoumanimal

prestes a agarrar sua presa. Estava caminhando em sua direção e seu coraçãodisparou.Ela o achoubonito, tinhaalgonelequea atraía comoum ímã.O jeitosériodelefaziaotipoqueRebecacostumavaadmirar.Eeraestranhoacharqueoconhecia,talvezjáotivessevistoantes.

Eleestavaseaproximandocadavezmaisechegoupertoosuficienteparaelanotaromovimentodoslábiosdele.

—Oi—eledisse.

—Oi—respondeuRebeca.—Adoroessamúsica.—Eutambémadoro—disseRebecacomumsorrisoquenãotinhatamanho.

Eladançavadeformamaislentaeeletentavaseguiroritmodela.— “Shoot me down...” — O homem acompanhou a música nesse trecho,

cantando para Rebeca como se estivesse fazendo uma serenata de amor. Seusolhosbrilhavam,eracomoseeleestivessereencontrando-adepoisdelongosanos.Elenuncahaviaencontradooutropardeolhosazuiscomoaqueles.

—“IamTitanium”—elescantaramjuntos.Rebecariueficouencantadacomele.— Essa música combina com você — falou, despertando a garota dos

pensamentos.—Comigo?Porquê?—Eusoudetitânio—dissecomoserecitasseumpoema.—Vocêparecede

titânio,seujeitointrigante.Resistente.Incorrosível.—Hum,vejoqueébomemQuímica.—Nemtanto,amúsicaajudou,entãoassocieiaoseuestilo.—Masvocêacaboudemeconhecer.Comopodesaberalgoameurespeito?— Talvez eu saiba mais de você do que possa imaginar. Consigo sentir a

energiadaspessoas.Esintoquevocêtemumaenergiaforte,vibrante.—Nossa...Andameperseguindo,sópode.Apresente-se.Qualéseunome?Eletevevontadedeseguraremseupescoçoepuxá-laparapertodesi,quis

sentirseuslábios,masconteve-seedisse:—MeunomeéThomas.A música rolava e as pessoas dançavam, o mundo girava enquanto os dois

estavamquaseparados,levandoumempurrãoououtroebalançandoocorpoemcâmeralenta.

—Como?—gritou,poisnãoouviuporcontadamúsicaqueelanemsabiamaisqualera.

—Thomas.ThomasHawk,prazer.Frequentasempreaboate?—Sóquandoomundorealmecansa.Evocê?—Primeiravez.Entãoissoaquinãoérealpravocê?Querdizerqueeunão

soureal?—Vocêéreal.Euque,naverdade,souumsonho.Rebecasoltouumrisoprovocador,comosedissesse“vemmepegar”.—Entãonãoqueroacordardessesonho.—Vocêveiodeonde?—quissaber.—Londres.— Ah, é de fora. Isso é legal. Mas você quase não tem sotaque. — Eles

dançavam enquanto se falavam. — Pretende ficar muito tempo ou só veio depassagem?

— Sempre mantive contato com o país, então não perdi meu sotaque. Edependendodoqueeuencontraraqui,talvezfiquemaistempoouvoltemaisvezes.

—SouloucapraconhecerLondres.—Possotelevarumdiasevocêquiser.Vamosprobar,émaissossegadolá.

—Eugostotantodisso.—Prometoquevaiseragradável.Vamos?Rebeca olhou em volta, não viu mais os amigos por perto, mas acabou

aceitandooconvite.Elessentaramaumamesadistantedaagitação.Thomaspediuqueelaesperasseeemminutosvoltoucomdoiscoposdeuísque.

— Você querme dar um boa noite cinderela— disse Rebeca ao segurar ocopo.

—Ah,não.Nãopenseissodemim.—Entãobebadesse.—Elalevouocopoàbocadohomemeeledeuumgole.

—Vouesperaralgunsminutospraversevocênãopassamal.—Vocêéesperta.—ThomasolhavaparaaspernascompridasdeRebecaque

estavam cruzadas, seu vestido curto era provocante. — Eu gosto de garotasespertas.

—Foi-seotempoemquepodíamosconfiaremestranhos.Mediga,oqueveiofazernacidade?

— Os negócios me trouxeram pra cá. Acho que vou passar uma belatemporada.Souconstrutor,tenhoprojetosaseremdesenvolvidosaqui.

—Hum,quelegal.Vocêconstróioque?—ShoppingCenters,condomíniosdeluxo...—Nãoconstróicastelos?—Aindanão,massequiserum,possoconstruirpravocê.Rebecariualto,estavagostandodele,eraumhomeminteressanteesedutor.

Percebeuqueeleestavasesoltando,baixandoaguarda.Notavaqueelesorriaeobservavaosolhosverdesdele,osbraçosfortes,cabeloslourosespetados.

—Achoqueestoupassandomal—disseThomas, forçandoarespiração,elepuxavaoar.

—Oquefoi?—perguntouRebeca,preocupada.—Nãoestoumesentindobem,achoquevoudesmaiar.—AimeuDeus,tinhaalgumacoisanabebida,vocêéburrodetertomado,vou

chamaralguém.—Agarotaselevantoueelecomeçouarir,riamuito.—Vocêéboba.—Deugargalhadas.—Boba,vocêacreditou.— Você émais bobo ainda.— Ela voltou a sentar-se ao lado dele, furiosa,

bebeuumgoledabebidaquehaviadeixadoemcimadoprópriosofá.—Aomenos,agoraeuseiquevocênãodeveserolobomau.

—Vocême parecemuito nova pra estar aqui.Não temmedo de encontrarlobossoltosporaí,chapeuzinho?—Thomasdeuumgolenabebida.

—Jásoumaiordeidade,veja.—Elaentregouseudocumentoquetiroudesuabolsa.

—Hum, então já posso te fazer umaproposta indecente.—Ele devolveu odocumentoeelaguardou.—Qualachancedevocêmebeijaragora?

Rebecaoolhouporuminstante,mordeuolábioerespondeu:—Umaemummilhão.—Rebecaencurtouadistânciaentreosdois,agarota

fixouoolharnoslábiosdorapaz.Derepentetudoestavaescuro,restavaosomdamúsicaeoslábiosdeThomas.EleseembriagounamaciezdobeijodeRebecaeseucoraçãopalpitou.

—Possomeconsiderarumsortudoentão—disseThomasaolargaroslábiosdela,masaindacomatestaencostadanadeRebeca.

—Talvezeuquetenhatidosorteemterencontradovocê.— Você é linda. — Thomas passava os dedos na bochecha de Rebeca,

admirandoabelezadajovem.Rebecadeuumgolenouísque,emseguidamergulhoudoisdedosnocopoe

molhou os lábios de Thomas, lentamente. Ele ficou estático. Segundos depois,sentiu os lábios da garota sugarem os seus, ela mordeu o inferior de leve, elereagiuepôsamãoemsuanuca,apuxouparajuntodesi,beijando-acomvontade.

—Querdarumavoltadecarro?—Vaimelevarpraonde?—Sequiser conhecerminhacasa,moro sozinho.Estáumpoucobagunçada

porqueaindaestoumemudando,masoquartotácompletinho,temcama.Podemosficarmaisàvontadelá.

—Hum,vocêémuitosafadinho.—Rebecadeuumbeijinhorápido.

CAPÍTULO3OQUARTOMISTERIOSO

—Juraquevocêmoranojardineiro?—Sério—disseRebecanomomentoemqueocarrocruzouoportão.—Mas

nãotenhoumacasatãoespetacularquantoasua.—Elaficouencantadaaoverojardimdacasaeumapiscinaenormefrenteàentrada.Thomasparouocarrodoladodireito,eledesceueabriuaportaparaagarota.

ElequaseesgotouseuvocabuláriotentandoconvencerRebecaasaircomele.Elateriaaceitadosemquepedissemuito,masnãofaziaseutiposermuitofácil.

—Compreiháalgunsmesesemandei reformar.Como falei, fazpoucosdiasqueestounacidade,estavaemumhotel, aíminhascoisascomeçaramachegar,entãodecidivirlogo.Gostoudapiscina?—perguntou.

—Adoropiscina—disseRebeca,agachadaepassandoamãonaágua.—Vamosentrar?Apiscinaeraem formatocurvilíneo.Acasaeraalta, acimahaviaumandar

repletodejanelaseumavarandadoladoesquerdocomumparapeitodevidro.Napartedebaixohaviaumhalldeentrada.Agramaestavabemcortadaehaviaumapassareladepedrasquepassavaaoladodapiscinaeiaemdireçãoaoportãodesaída.Rebecacaminhavadecostas,abraçadaàcinturadeThomasenquantoeleabeijavaesussurravanoouvidodela.

Elealcançouaporta,tirouaschavesdobolsoetentouabrir.—Estouquaseacertando,calma.—Thomasriacomoslábioscoladosnosde

Rebeca.—Calma,quaselá...quase...entrou.—Nãosejabobo—disseRebeca,rindo.Thomasgirouachaveeaportaabriu.Haviamuitascaixas,algunsmóveiscobertosporplásticosemumasalaampla.

UmsofágrandenoqualThomascaiuporcimadeRebeca,afogando-aembeijosecarícias.

Thomasapuxoupelamãoindicandoquesubiriamasescadas.Rebecalivrou-sedeseussapatosesubiucomele.Aochegaremaocorredor,Rebecanotoualgumasportas,pensouemqualdelasentrariam.

Eleapegounocolo,eladeuumgritocomosustoecomeçouarir.Ohomemcaminhoucomagarotanosbraçosatéumaporta,pediuqueelagirasseamaçanetaeassimofez.

Oquartonãopareciaserdamesmacasa,estavabemorganizado,limpo,comcortinas brancas nas janelas, móveis e uma cama enorme onde Thomas jogouRebeca.

—Sabiaqueotitânioétãofortequantooaço?—AvozdeThomassaiuentresua respiração pesada. Ele estava por cima dela. Rebeca disse “Não”, numsussurro.

—Vaimedarumaauladequímica,agora?—perguntou,depoisqueelesoltou

seuslábios.— Que é um metal leve, resistente — ele continuou. — Tem baixa

condutividadetérmicaealtacondutividadeelétrica.Rebecaimaginouqueseriamuitomaisfácilaprenderquímicacomeledoque

comseuprofessor.Aspalavrasdeleeramcomosefossemumamelodia.— Sabe o que acho mais interessante? — perguntou após um instante

apreciandoosolhosdela.Agarotabalançouacabeçaemnegativa.Thomasrespirouefalou:—Elequeimaquandoaquecido.

Amandaestavasuadaecansada,sentiaatensãonaspernas,masestavafeliz,

sorrindoquandosaiudaboate.Jáeramadrugada.Elapassouamãonocabelo,aoutra estava presa à deMurilo que vinha logo atrás dela. A brisa resfriou seuscorpos,umventogeladoosenvolveudospésatéacabeça.

—Estouexausta—disseAmanda.—Achoquejáestánahoradeirmos.Murilo a agarrou ali na calçada, prendeu os braços na cintura dela. Vários

carrosestavamestacionadosemfileira,pessoascaminhavampelarua.Ojovemseembriagava no sabor da pele de Amanda. Ele sugava o pescoço dela como umvampiro.

—Pormim,agenteesperaosolnascer.—Não, já quero ir.—Amanda se soltoudele e deuuma corridinha.—Vou

emborasemvocê.— Não fuja de mim — disse Murilo. Ele correu e a pegou novamente

envolvendo-aemseusbraços.Oslábiosdelaestavamtãomaciosequentesqueeletevevontadedemordê-los.Sentiuogostoamargodabebida,eracomocomerumafrutacítricaesentiroácidonocantodasbochechas,umácidoqueaguçavatodososoutrossentidosdorapaz.

—Quandoéquevocêvaimedarumachance?—perguntouMurilo comosolhosbrilhandoàluzdoluar.

—Vocêjáestátendomaisqueumachance—eladisse.—Estamosemumaruafrianosaquecendonocalorumdooutro.Aspessoaspassameeunemnoto,nemseiquelugaréesse,nemseiocaminhodevoltapracasa.Estouemsuasmãos,oquevocêquermais?

—Queroqueaceitenamorarcomigo—suplicou.—Já falamossobre isso.Euprefirocontinuarvivendomomentoscomoeste.

Nãoqueroficarpresaaninguém.Eununcaenganeivocê.Amanda forçou e ele a soltou. Ela virou-se de costas e deu alguns passos.

Murilopassounafrentedelaecurvou-se,pousouseujoelhoesquerdonochãoelheestendeuasmãos.

— Aceite namorar comigo ou então case-se comigo, aceito que escolhaqualquerumadasopções,masfiquecomigoAmanda.

Elanãoesperavaqueeleagissedaquelaforma,seaomenosestivessebêbadoela relevaria,masMurilo era espontâneo e romântico demais, não precisava debebidaparadizeroquesentia.NãoqueAmandanãogostassederomantismo,maséqueseucoraçãobatiamaisforteporoutro.ElanamorariaMurilo,casariaeteriafilhos,massempreouviudamãequesódeviacasarporamor.

Amandasempreachouqueoamoragedeformaestranha,eratãosimpleselaseapaixonarporMuriloeserfelizavidatoda,maseleescolhesempreocaminhomaisdifícil.

AmandaencarouMuriloporuminstantesemsaberoquedizer.Quaispalavrasusar para nãomagoar um coração apaixonado? Ela queria apenas agachar-se ebeijá-lo,calarsuaspalavras,masissoseriaumsim.Elaqueriadizerquenãodava,queelanãopodiaseenvolveralémdaquelanoite.

Para surpresa dela, Gabriel apareceu na calçada, cambaleando em seuspassos.Eleestavabêbado.

—Mano, levantadaí—disseGabriel segurandoMurilopelopeito, tentandolevantá-lo.Orapazficoudepé,maisparaajudaroamigo.

—Gabriel,vocêestámuitobêbado.Exageroudemais.—MuriloolhavaparaAmanda como quem esperava uma resposta. A garota foi para o outro lado dobêbadoeapoiouobraçodeleemseusombros.

—Temosquelevá-loparaocarro—eladisse.—Mesoltem,aindaconsigoandar.—QuietinhooueuchamooseuRicardo—disseMurilonumtomameaçador.— Ai não, meu pai não. Ele não pode me ver assim. Se souber que ando

bebendo...—Vai sobrarpramim—completouMurilo.—Vocênãovai voltarpracasa

dessejeito.Melhordormirláemcasahoje.—OndeestáaRebeca?—perguntouGabriel.—Elajáfoiembora—respondeuAmanda.—Emboracomo?Elafoisozinha?—Vamosandando,Gabriel.Paredefazerperguntas—falouMurilo.ElescaminharamcomGabrielapoiadonosombrosdelesporalgunsmetrosaté

chegarem ao carro no estacionamento. Rebeca havia mandado uma mensagemparaAmandadizendoquetinhaarranjadocompanhiaequenãovoltariacomeles.

OsraiosdosolcintilavamascortinasbrancasdoquartodeThomas,eleestava

deitadodebruçoseRebecaaoseuladocomobraçoporcimadacinturadele.Otravesseiro estava aconchegante demais para deixá-lo, mas Rebeca estavaconsciente,tinhanoçãodeestardeitadaemumacamacomumhomem,massuas

pálpebras pesavam e a forçava a continuar com a cabeça deitada no maciotravesseiro.Thomassemexeu,virou-sede lado,abriuosolhoscomdificuldadeeviuamoçadormindo,achou-atãolindaquelutoucontraopesardosonoparapoderadmirá-la,eassimficouporalgunsinstantes.

QuandoRebecaabriuosolhos,Thomasjánãoestavanacama.Nãopercebeuomomentoemqueelesaiu.Amoçaolhouemvoltadoquarto,levantou-seenvoltaem um lençol, caminhou até o banheiro, chamou-o pelo nome, mas não obteveresposta.Verificouavarandaequandoabriuaportasentiuumventofrionorosto.Percebeu que seu vestido estava sobre uma cadeira ali no quarto,mas preferiuvestirumroupãoqueestavaaoladoesaiu.Agorapodiaverbemocorredor,haviaduasportasdefrenteaoquartoondeestava,maisumaaoladodasuaeoutranofinal do corredor. As portas das laterais estavam abertas, ela verificou todas àprocuradeThomas,todososquartosestavamvaziosecomjanelasabertas.

Rebecacaminhouemdireçãoàportadofinaldocorredor,estavadescalça,osilêncio pairava no ar. Alcançou a maçaneta, quando forçou notou que estavatrancada.SeucorpoestremeceunomomentoemqueouviuavozgravedeThomaspronunciarseunome.

—Rebeca.—Eleestavanaoutraponta,semcamisa,usandoumpijama.Seuolharestavapenetrante,aexpressãoséria.

—Ah,medesculpeThomas—disseRebeca,semgraçaealiviadadosusto.—Euestavateprocurando,entãosaíeviessesquartosabertos.—Elacaminhouatéele.—Penseiquevocêestivesseemalgumdelesecomosórestouesse,acheiqueaportaestivesseaberta.

Rebecaoalcançouedeuumbeijinhonoslábiosdele,pousandoasmãossobreopeitodeThomas.

—Nãosepreocupe.—Eleesboçouumsorriso.—Eusempreabroasportasejanelaspraentrarvento.—ThomassegurouamãodeRebecaebeijou-a.

—Sóesqueceudeabriraquela,estáfechada.—Ah,devoteresquecidomesmo,nãosepreocupe.Vamospracozinha,estou

preparandonossocafé.—Oquevocêguardalá?—perguntouaodescerasescadas.—Hum,nãotemnada,sóumascoisasvelhas.Ficoucuriosa?—Umpouco.Porummomentoacheiquevocêtivessegostospeculiares.—Eunãotenhogostospeculiares—respondeurindo.—Digamosquemeus

gostossão...hum...normais.Rebeca era naturalmente curiosa. Se dentre os cinco quartos aquele era o

único que não estava aberto, certamente, ele guardava algo que merecia suaatenção.Masseupensamentobobologofoiafastadopelalembrançadequetodomundotememcasaumcômodoemqueguardatodasastralhasquenãopodemserjogadasfora.

—Oquevocêestáfazendo?—perguntouRebecaaoentrarnacozinha.Eramuitoespaçosaeestavamuitolimpaetodamontada,diferentedoqueviunasala.

—Fritandoovo—disseThomas.Eleseguravaa frigideira.—Jáviualguémfazerisso?—Eleestavasepreparandoparaviraroovonoar.

—Nãomedigaquevocêvai fazer isso?—Rebecapôsasmãosnaboca.—

Cuidado,nãováincendiartudo.Thomas balançava a frigideira e sorria como um garoto brincando com um

brinquedonovo.—Preparada?Aaaah...Elesoltouumgritoeriualto.Rebecaoobservavaachandoaquilomuitosem

graça,comoalguémpodiaficartãofelizemvirarumovo?—Sãoanosdeprática.Duvidoquevocêconsiga.—Ah,nãosejabobo.Thomasapertavaoovocomumacolherdeplásticoparaquefritassebem,em

seguidaocolocouemumprato.—Agoraésuavez—eledisse.—Eunãovoufazerisso.—Ah,nãosejaboba—falouenquantoquebravaoovo,numtomsarcástico.—

Sequisercasarcomigotemquesaberaomenosfritarumovo.Adoroovosnocafé.Rebecaaproximou-seepegoua colherdamãodele.Thomasaabraçoupor

trásecheirouopescoçodela.—Voumequeimardessejeito,mesolte.—Vouatésairdeperto.—Thomascorreuparalongeeficouolhando,fazendo

caradedrama.—Nãomedeixenervosa.—Rebecamexia na frigideira tentandomanter o

corpoàdistância.—AhmeuDeus—gritouThomas.—Parecomisso—retrucouRebeca.—Vocêconsegue,vamos.Rebecaestavanervosa.Umsimplesovofritoaestavadeixandonervosa,mas

ponderouqueonervosismotambémfosseporestarcomumhomemqueviuumaúnicaveznavidaeaceitouoconvitedepassarumanoitecomele.

Elanuncateveumamanhãcomoaquela,estavasendodivertidovendo-ofritarovos.Elepareciaummeninobobo.Rebecaachavaestranhoqueeleestivessetãoàvontadecomosejáaconhecessehátantotempo.

—Nãovouconseguir—eladisse,enquantotentavadefiniromomentoemqueimpulsionariaafrigideira.Percebeuquejáestavanoponto.

—Vai,agora.Eelafoi.Aquelediscobrancocomumaparteamarelanomeiovoou.Elaoviuflutuar,

olhoudevoltaparaafrigideira,olhouparaoovonoaremfraçãodesegundosetentouacertar,mas errouporpouco.Odisco acertounaborda, quebrando-o aomeioelevandometadedeleaochão.

Thomasriudacenaeaproximou-sedela.—Tudoculpasua,medeixounervosa.—Nãofazmal.—Eledeuumbeijoemsuabochecha.—Játemovodemais.

Vamoscomer.Eleretirouospratoscomovosfritosdobalcãoelevou-osàmesa.—Venha.Nãopensequevamoscomerovopuro.Temostorradas,pãointegral,queijoetudoissoaqui.

ThomaspuxouacadeiraeRebecasentou-se.

—Vocêésempretãoatenciosocomtodas?—Naturalmentecomtodasaspessoas,semdistinção.—Falodemulheres.—Rebecapassavamanteigaemumatorrada.—Éruimseratenciosocomtodas?—Nãoexatamente,équenósgostamosdeumpoucodeexclusividade.—Ela

deuumamordida.—Vocêpodeseratenciosocomtodas,mastemqueteralgoemparticularquevocêfaçaumamulhersesentirespecial.

—Tipooque?—Ah,nãosei.Podesercertascoisasquevocêfala,algumafraseespecial.Se

vocêdizqueelaé “seubrilhode todasasmanhãs”,nãopode repetirpraoutra,entende?

—Achoqueentendo.Entãoquerdizerquenãopossoensinaroutragarotaaviraroovocomofizcomvocê?

—Amenosqueeusejasómaisumaemsuavida.Thomas largouaxícaradecaféquetomavaesegurouamãodela.Ele ficou

imóvelporuminstante.Rebecaviuaquelesolhosverdesfixosnosdela,observouopeitodelesemovimentarcomarespiração.

—Podeparecerlouco,masvocêéespecialparamim.—Elepuxouamãodelaedeuumbeijonosnósdosdedos.—Vocêémeubrilhodetodasasmanhãs.

—Issoéfaltadecriatividade.—Rebecapuxousuamãodevolta.—Nãoéfaltadecriatividadequandoseestásendosincero.—Eledisse,ainda

num tom romântico.—Você é o brilhodasminhasmanhãs e euprometo jamaisfalarissopranenhumaoutragarota.

—Ah,entãoquerdizerquehaveráoutras?—Haverá.Amenosqueeunãosejasómaisumemsuavida.—Émuitocedoprafalardisso.—Masvocênãogostoudemim?—Gostei.Gosteimuito.Masnosconhecemosontem.—Quemalhánisso?—Omaléqueeunãomeapaixonotãorápidoassim.—Ok.Dequantotempovocêprecisa?—Dequantotempoeuprecisoprameapaixonar?—Pormim,prasermaisexato.—Hum,nãoseibem.Maspodeserumdia,umasemana,algunsanos,quem

sabe?Evocê,quantotempolevariaparaseapaixonarpormim?—Levariaoinstantenecessárioparaperceberqueseestávivoouoinstante

necessárioparasentirofogoqueimandoapele.—Vocêémuitointensonaspalavras.—Possosermaisintensonosmeusatos.Thomaslevantou-se,segurounamãodelaeafezficardepé.Eleaabraçou

enchendo-adebeijos.— Quero continuar meu café. — Rebeca soltava risos. — Estou com fome,

Thomas.Eleapegounocolodesúbito.Eladeuumgrito.—Pegue tudo o que conseguir.—Thomas se aproximou damesa eRebeca

conseguiupegarumabanana,umamaçãeumcachodeuvas.—Prepareiumbanhodebanheirapranós.—Elecorreucomelanosbraços.

Rebecadeuumamordidanamaçã.— Seu louco, você vai me derrubar — falou enquanto mastigava a fruta.

Thomassubiuasescadas.Empurrouaportacomoombroeapôsnochãonaportadobanheiro.Elepegouasuvaseadeixouapenascomamaçã.

Rebecaviuumcaminhodepétalasvermelhasatéabanheira,elaseguiuporele. Tirou o roupãoqueusava e entrouna espuma.Por ummomento achouquepudesse ser um daqueles sonhos reais que tinha em algumas ocasiões. Ela seperguntava como esse homem que caminhava em sua direção podia ser tãoromânticoemumprimeiroencontro.

—Moramospertinhoumdooutro—disseThomas.Eleestavaemseuveículo

comRebeca.Estavamemfrenteaoprédioondeagarotamorava.—Esperovervocêembreve.

—Tambémespero,gato.—Rebecadeuumbeijonabochechadele.—Porfavor,meligue.—Voupensarnoseucaso—faloucomumsorrisoprovocador.—Salvoumeunúmero,né?—Voudeixarvocêcomapulgaatrásdaorelha.Rebeca não lhe deu seu número, mas salvou o dele para um possível

reencontro.Thomasapuxouparaumbeijo.—Esperonãotercausadoproblemapravocêcomsuamãe.—Nãosepreocupe.DissequedormiriacomaAmanda,minhaamiga.Alémdo

mais,elamedámuitaliberdade.Agoraprecisoir,obrigadapelanoitemaravilhosa.—Rebecadeuumúltimobeijoesaiudocarro.

Thomasaobservoucaminhar.ElegostavadojeitoprovocadordeRebeca.Elacaminhavacomoumameninadespreocupadaeaomesmotempocomoumamulherelegante.Quandochegouaoportão,eladeuumaúltimaolhadaeumsorrisoquefezelesuspirar.

Thomasdirigiudevoltaàsuacasa.Quandochegou,foiatéoquartoerevirouagavetadocriadomudoqueficava

ao lado da cama, ele retirou da última gaveta uma caixinha demadeira, dentrohaviaumachaveeumafotografiarasgadaaomeio.Eraumagarotinhadeseteanosdeidade,seuscabeloseramruivos,longoseondulados.Osolhoseramazuis.Elasorrianafotoelhefaltavaumdentenaarcadainferior.Davaparaperceberquehavia ummenino abraçado a ela, pois umamãozinha aparecia no ombro dela epartedecabelosloiros.

Thomas sentou-se na cama, passou os dedos na imagem. Ele olhava comternura.Mas sentiu comose tudo sedesmanchassepordentro, eracomoseele

fossefeitodeareiaeestivessedesmoronando.Elebeijouafotoedisse:—Meperdoe.Thomasguardouafotografianomesmolocal.Saiudoquartoecaminhoupelo

corredor em direção à porta do final, a mesma que Rebeca tentou abrir e nãoconseguiu.Eleencaixouachaveegirou.

Aportaabriu.Eraumquarto,masdoladoesquerdohaviaumapassagemparaoqueparecia

serumporão.Degrausbrancosmergulhadosnaescuridão.Thomasdesceuasescadascomoseestivesseentrandoemumlago,seucorpo

foisumindoàmedidaquedescia.Eletateouaparedeatéencontrarointerruptor.Aescuridãofoiengolidapelaluzqueacendeu.

CAPÍTULO4OCOMEÇODETUDO

Apiabrancaestavamanchadacomgotasvermelhasemanchasserpenteadas

damesmacor.Felicityusavaluvasbrancassujasdevermelho.Elabemquetentounãoderramaratintaquepreparouparatingirseucabelo,masacaboufazendoumagrandesujeira.Elaolhava-senoespelhoepassavaopincelnaraizdocabeloondeoloiroestavacomeçandoaaparecer.Nãodavaparapercebermuito,masRaphaelnotouaqueledianorio.

Suacabeçaestavacheiadepiranhasqueseparavamsuasmexas.Bem quis ir a um salão de beleza,mas estava sem saco para permitir que

outrapessoamexesseemseusfios.Ocabeloeracurtonaalturadoombro,então imaginouquenão teriamuito

trabalho.Enquanto estava ali pincelando sua cabeça imaginava que seus amigos

estavam se divertindo na boate e que ela estava ali tentando passar uma tintavermelhanoseupassado.

Depoisqueterminou,arrumouabagunçaquefez.Secouoscabelosequandoolhou-senoespelhosentiu-semaisaliviada.

Antesdedormir,pegouseulivrodebiologiaeleualgumaspáginasdele.Erasuamatériapreferidaeprecisavadominarosconteúdosparasedarbemquandofossetentarentrarnocursodemedicina.

A garota passou algumas horas na cama estudando até que pegou no sono.Quandopercebeu,a luzdosolentravapela janela.Seriaumamanhãensolarada,pensou ainda na cama. Isso deu ânimo para que se levantasse, pois estava comvontadedeandardebicicleta.Elatomouseubanhoevestiuaroupaparapedalar.

—Estoufaminta—disseFelicityparasuaavóqueestavasentadaàmesa.Agarotadeuumbeijonabochechadasenhora.

—Jáestápronto,meubem.Sente-se.Vaipedalartãocedo?—perguntouaonotararoupaqueanetausava.

—Vou aproveitar antes que o sol esquente.E o vovô?—Felicity pegouumcopoeencheucomoleitequeestavasobreamesa.

—Saiucomseu tio.Comabem,poisestouachandovocêmuitomagra,vocêandapedalandodemais,temquesealimentar.

— Eu como bem, vó. — A menina passou manteiga na torrada e deu umamordida.—Nãoestoutãomagraassim.

—Ahnão,sóestouvendosuascostelasmarcandoaroupa—falouironizando.Aavópousouaxícaradecaféquetomavanopires.—Vaiacabarficandodoentesenãocomer.

—Estouótima,tenhoatédisposiçãoparafazerexercíciosfísicos,enquantoasenhora...

—Jánãotenhomaisidadepraisso.

—Temidadesuficiente,ésódeixardepreguiça,donaAmora.—Hum,vejoqueretocoudenovoocabelo—disse,tentandomudarofocoda

conversa.—É— amenina respondeu apenas.Desejou que ela não tivesse tocado no

assunto.—Vocêé tão lindade cabelos loiros.—A senhora colocouamãono rosto,

admirandoabelezadaneta.—Semprequevejoumfiozinhonaturalnasuacabeçatorçoparaquevocêdeixenacordele.

—Ahvó,nãovamosfalardisso.Eugostodeserassim,gostodessacor.—Tudobem,comoqueira.Quandovocêcrescer,esperoquemudedeopinião.

Sempremudamosquandoficamosadultos.Continuecomendo,adoroquandovocêcome.

Felicitysorriuaindacomumpedaçodopãocomqueijonaboca.Elatomouumgoledeleite.

—Estoucomumafomedemonstro.Amoracurtiuveranetasealimentar.Logo depois, Felicitymontou em sua bicicleta, pisou o pé no pedal e partiu

pelasruascomosolaquecendosuapeleeoventosoprandooseurosto.

Havia algo solto dentro de seu crânio, algum parafuso frouxo que fazia as

partesdocérebrosechocaremumascomasoutrasdeformaviolenta.EraassimqueAmandaimaginavaquefosseseucérebro,comoumamáquinaquefuncionavacom engrenagens e parafusos. Não tinha muitas lembranças da noite anterior,apenasalgunsborrões,algumascenassoltas.

Aospoucos iasedandocontadequeestavaesparramadaemsuacamacomumedredomquecobriapartesdoseucorpo,deixandosuaspernasdefora,equeeraumamanhãdesábado,alémdeperceberqueestiveraemumafestacomseusamigos.

Ela abriu os olhos com dificuldade e olhou em volta. Seu vestido estava nochão, sapatos jogados, calcinha, uma tolha sobre a cadeira que ficava de frenteparaamesinhadocomputador.Agarota,porummomento, imaginouqueaqueleseriaumcenáriodeumatórridanoitedeamor,masdecepcionou-sequandoviualgomuito estranho que ela se recusou acreditar se tratar do seu próprio vômito nochão,masaquiloerarealdemaisparasermentira.

A dor de cabeça era insuportável.Qualquermovimento dava a sensação dequerecebiaumamarteladanacabeça.

Asbatidasnaportaforamcomoobarulhodeumabritadeira.—Amanda,acorde.Jáémeiodia.Erasuamãe,batendo.Agarotaarrastou-sedacamaefoiabriraportaenvoltaemseuedredom.

—Aimãe.Oquehouve?—Combinamosdeiralmoçarnoshopping,esqueceu?Amulherentrounoquartodafilhaesentiuoodorazedodovômito.—Amanda,vocêandoubebendo?—Claroquenão,mãe.Achoquecomialgumaporcariaestragada.—Nãomintapramim.Voucomeçaraproibirsuassaídasseissoserepetir.—Mãe,eunãobebi.Amandavoltouadeitar-seemsuacama.Sarahpuxouocobertor.—Levante-se.Combinamosdeiraoshoppingenósvamos.—Mãe,estoucansada.Prefironãoir.—Éclaroquevocêvai,honreocompromissoquefezcomasuamãe.Anda,

vamosfazercompras.DuaspalavraserammelhorqueumanalgésicoparaAmanda:fazercompras.

Derepente,suadordecabeçacomeçouadiminuir.Andarpeloshoppingegastardinheiroemroupasesapatoscuravaqualquerressaca.

Amandasaiudacamamaisanimada.—Tudo bem, nós vamos.Mas fique a senhora sabendo que hoje estou com

muitavontadedegastar—falouenquantocaminhavaatéobanheiro.—PeçaparaaMatildadarumjeitonessequarto—gritouamãe.

Seusmúsculostencionaramquandoelecomeçouosmovimentosdecimapara

baixo.Todososseusmúsculosseenrijeceram,arespiraçãopesadaeosmovimentos

cadavezmaisvigorosos.Elesoltavaumrosnadobaixoquasecomoumanimal.Seutelefonetocou,entãotevedepararparaatender.— E aí? — falou, tentando recuperar o fôlego. Sua testa estava cheia de

gotículasdesuor.Apeleestavaavermelhada.—Tôatrapalhandoalgumacoisa?—perguntouJoaquim.—Não...claroquenão.—Eessarespiração?—Estavafazendoalgumasflexões.—Tudobem.Eaí,vamostreinarhoje?—Vamossim.Vaipassaraqui?—Meiahoratôpassando,beleza?—Fechado.Falou!

CAPÍTULO5ACOLA

Johnandavapacientementeentreasfileirasobservandoosalunosresolveras

questões do teste final. Ele parou na carteira de Rebeca, viu os cálculos que agarotadesenvolvianorascunhoeesboçouumsorrisoleve,deixandotransparecerqueelaestavaindobem.

OprofessorcontinuouandandoeencontrouoolhardeAmandadirecionadoaodele.Ameninadesviourapidamente,maselefoiemdireçãoaelaeviuqueagarotaaindanãotinhasequerfeitoumrisconafolha.

Amandaapoiouamãonatestaeinclinou-separacobrirsuafolhaderespostascomocorpo,começouaescreverosnúmerosemsequêncianorascunho.1,2,3...era tudo o que conseguia fazer, pois era uma sequência automática. Seuspensamentosestavamnaquelemalditoconvite,nãoconseguiudormirbem, foramapenasalgunsminutosespaçadosduranteanoitelonga.

Alguém sabia do segredo dela,mas quem? As palavras se repetiam em suamente,martelandocomoumadordecabeça.Elatentoulerasquestões,masnemissoconseguiu,ojeitofoiapelar.

Elaescreveuemumpedaçodepapel:Vic,meajuda,precisoderespostas!Ejogounamesadagarotaqueestavalogoatrásdela.Vicseassustou,masfoirápidaeevitouqueoprofessorquecaminhavadoladoopostovissealgumacoisa.

—Espera—cochichou.—Pssssssiu!—Johnouviaatémesmoumalfinetecairnochão.Rebeca havia passado cola para Felicity, a garota também não estava

conseguindopensarnasquestões,apesardeterestudado.Elapassouanoitetendopesadelos com a coruja que lhe entregou aquele convite. Sonhou que estava emHogwarts,àmesadagrifinóriaeumacorujagigantepousavasuaspatasenormesdestruindoobanquete.QuandooanimaldirecionouasgarrasparapegarFelicity,elaacordou.Eosonhoserepetiuatéosolnascer.

Rebeca já havia respondido tudo no rascunho e ainda copiou todas asrespostas em um pedaço de papel com letras minúsculas para repassar para aamiga.ElaachouestranhoqueFelicityestivessepedindocola,poisameninaeraótima aluna, notou que provavelmente não havia dormido bem. Nem ela, nemAmanda,nemGabriel.

Queestranho,pensouRebeca.Johnnotouumamovimentaçãoestranhadeumalunoquetentavaveraprova

dela.— Rebeca, meu bem — disse John, quebrando o silêncio. Alguns alunos

levantaramacabeça.—Seimportadetrocardelugar?—Pormim,podeser.—Poruminstanteachouqueeleativessevistopassando

acola,maspreferiunãolevantarsuadefesa.JohnpediuqueRebecasentassenafileiraàsuadireitaoqueadeixouaolado

de Amanda. A garota notou que sua amiga ainda não tinha feitomuita coisa daprovaetentouperguntarseelaprecisavadeajuda.

—Amanda—sussurrouRebecanumtominaudível.—Amanda...—Pssssssiu!—EraJohnnovamenteDepois de instantes, Rebeca tentou uma leitura labial perguntando: Quer

ajuda?PelacaradeAmanda,Rebecanotouqueelanãoentendeu,entãodecidiuficar

quieta,estavaquaseterminandodepassarasquestõesalimpo.AcolaqueRebecapassouparaFelicityjáhaviapassadoporoutrosalunosaté

quefinalmentechegounasmãosdeVic,queconferiusuasrespostaseestavamdeacordocomasdeRebeca.Vicficoufelizemterrecebidoopapel,poistevecertezadequeseusresultadosestavamcertosenãoteriaotrabalhodecopiarasquestõesparaAmanda.

Vic levantou-se e soltou o papel no colo de Amanda. Ela caminhou até oprofessoreentregouseuteste.

Amandasentiu-semaisaliviada,colocouacolaembaixodaprovaecomeçouacopiar. Ficou nervosa com o passear constante de John entre as fileiras, massemprequesedistanciavaelacontinuavacolando.

Depois de alguns instantes, Rebeca voltou a cochichar para Amanda, elaqueriasaberseaamigatinhaconseguidofazerasquestões.

MasAmandanãoentendeu.—Vocêquercola?—perguntoutãobaixoqueRebecanãoouviu.Johnsoltououtropsssiu!Rebecadesistiudetentar.Quandoestavaassinandoseunome,umpedaçode

papelamassadocaiunasuamesa.Seucoraçãocongelou.Elatentouesconder.—Rebeca—disseJohnqueestavaaduasfileirasàsuaesquerda.—Quepapel

éesse,podememostrar?—Oprofessorcaminhouapressadoatéagarota.—Nãoémeuprofessor.—É sua letra—disse ao tomar o papel damão da garota.—Você estava

colando?—Rebecaviuacaradedecepçãodoseuprofessor.— John...— ela queria dizer que não era dela, que Amanda jogara em sua

mesa.Mas a letra era sua e provavelmente John não viu de onde o papel veio,apenasqueestavacomela.

Poderiafalarquepassoucolaparaoscolegas,queasrespostasvoltaramparasi,masquerespondeutudosozinha.Detodaforma,Johnapuniriapeloseuatoeatémesmoaseuscolegas.Entãopreferiunãofalarnada.

—Nãoestavacolandoprofessor,jáiaentregaraprova.—Bom,lamentomuitoqueessepedaçodepapeldesfaçasuaverdade.Menos

doispontosparavocêRebeca.—Issonãoéjusto,John—disseRebeca,furiosa.Elalevantou-se,pegousua

mochilaeocasacorosaesaiudasalafuzilandoAmandacomumolharderaiva.Amanda se sentiu como se estivesse sobrando nomundo, como alguém que

tentavaajudar,masacabavaatrapalhando.Quediferençafariaelafalarquetinhajogado o papel para Rebeca? A amiga estaria colando do mesmo jeito, sóaumentariaonúmerodeprejudicados.

Ainda faltava copiar umaquestãoque estavana outrametadedopapel queficoucomela,masestavatãoculpadaquedecidiudeixarpelametadeeentregaraprova.

—Silêncio—falouJohnparaconterosburburinhosquecomeçaramasurgir.

—Amiga,medesculpa.—Amandasentou-senobancodapracinhadocolégio

ondeestavaRebecaeaabraçou.—Acheiquevocêestivessemepedindocola.—Cola,Amanda?Euestavaperguntandosevocêestavaprecisandodeajuda.

Aquelacolaquevocêjogoupramimfuieuquemfez,seráquevocênãoreconheceuminhaletra?

—Estavanervosa,nãopresteiatençãonisso.—Ah,quelegal.Agoradepoisdeterestudandomuito,terajudadoummonte

degentequenãotentouresolverumaquestãosequer,voumedarmal.—Foramsódoispontos.—Sódoispontos?—disseRebecaindignada.—Pramimcadaquestãovalia

meiopontoporque fizopré-teste,esqueceu?Seeuacertar todas,vou ficarcomtrêsjuntocomostrêsdopré-testequantoqueficaminhanota?

— Seis? — falou Amanda, mais perguntando que respondendo com umaexpressãodequemestavacommedodarespostadaamiga.

—Seis,Amanda!Issosignificaquevouficarabaixodamédia.FelicityeGabrielchegaramaolocal.—OquefoiquehouvenaprovadoJohn?—perguntouFelicity.Rebecaestavacomaspernascruzadasecomamãonatestasemquererolhar

paraolado.—Acheiqueelaestavamepedindocola,entãojogueiumpedaçodepapelpra

elaeoJohnacabouvendo,maselesóviuqueestavanasmãosdela.—Acolaqueeufizpravocê,Felicity—falouRebeca,encarandoaamiga.—

Passoupelasalatodaeveiopararnaminhamão.—Nossa...nãoacheiquefossedarnisso.Medesculpe.—Vocêsnãoestudaram?—Ah,eufizumaboaprova—disseGabriel.Eleestavaparado,segurandoa

alçadamochilapresanascostas.—Nãopreciseicolar.—Diferentedasmeninas,Gabrielsabialidarcomasemoções.

—Meu fim de semana não foi tão bom— falou Amanda. — Não conseguiestudarevocêsabequenãosouboaemmatemática.

— Eu estudei um pouco, mas estava sem concentração na hora — disseFelicity.

Gabrieldeuumpassoàfrenteparasentar-senobanco.—NãoGab,ficaondevocêestá—pediuAmandaaoreceberosraiosdosolno

rostoquandoGabrieldeixoudebloqueá-los.—Vocêestánosprotegendodosol.— Hahaha, engraçadinha, enquanto isso eu queimo minhas costas? — Ele

sentou-sedo ladoesquerdodeRebeca.—Relaxa,Beca,nossopassadoéescritocompilotopermanente,nãodápraapagar—disse,recordando-sedoacontecidocomodesenhodeArabela.—Oquepassou,passou.Nãoadiantaseestressar,ficarremoendo.

— Sou feita de carne, ossos e emoções— bradou Rebeca. — Não consigofingirquenãoestouchateada.

Ninguémfalounadaporumbreveinstante.GabrieldeuumbeijonabochechadelaeRebecasoltoualgoparecidocomum

sorriso. Em seguida Amanda beijou o outro lado da bochecha e sua raiva foidesparecendocomofumaçanovento.

—Meperdoa,amiga—Amandaaabraçouforte.Rebecasorriudeverdade.—Perdoatambém—falouFelicityfazendobico.—Euamotodosvocês—disseRebeca,soltandoarespiração.Felicitysentou-

se no colo de Amanda e tentou abraçar Rebeca.—Mas, por favor, nuncamaisfaçamissocomigo.

AmandadeuumtapanabundadeFelicity.—Essemomentomereceumaselfie.—Gabrielinclinou-senapontadobanco

eestendeuobraçocomocelular,registrandoafotocomsuasamigasatrásdele.

—Nemtivemostempodeconversarsobreaboate—falouRebecaassimque

Gabrielfoiembora.— Verdade, você sumiu e não explicou bem aonde foi — disse Amanda. —

Conteagoraquemeraaquelegatoquevocêarranjou.Rebecasorriuentusiasmada.—Ele se chamaThomas.Disse quemora emLondres e está na cidadepor

contado trabalho,mepareceque temalgumprojetonaáreadeconstruçãocivilaqui.

—Eleébemmaisvelhoquevocê,deupranotar.—Sim,masnãomeimportocomisso.—Praondevocêsforam?—Fuipracasadele.—Espera—disseFelicity.—Vocêfoisozinhanacasadeumcaraqueacabou

deconhecer?—Foiamiga,masconversamosbastanteantesdetoparsaircomele.—MeuDeus,Rebeca.Comovocêtevecoragemdesaircomumhomemque

viuumaúnicaveznavida?—perguntouFelicitycomaexpressãodequemestavaconfusa.

—Paracomisso,Fê.Vocêestáparecendoumavelhadesetentaanos—disseAmanda.

—Verdade, por isso ainda não beijou na boca— falouRebeca.—A vida émuitocurtaparadeixarmosasoportunidadesiremembora.Alémdomaiselemora

nomesmobairroqueagente.—Mentira!—exclamouAmanda.— Certas oportunidades émelhor que passem despercebidas— resmungou

Felicity,semdespertaraatençãodasamigas.—Sério,bempertinhodenós.—Aiamiga,contatudooqueaconteceu—pediuAmanda.—Elepodiatertesequestrado,estupradovocê,seilá—interrompeuFelicity

antesmesmodeRebecaabriraboca.—Fê,calma—disseAmanda.—Elaestáinteirinhaaquidonossolado.Maspodianãoestar,pensouamenina,sónãoquisresponderemvozalta.—Escuta,Fê—pediuAmanda.—Tudobem,falalogo.—Eleéincrível,tãoromântico.Éumpoucomaisvelhonaidade,mastemum

espírito jovem. — Rebeca contou detalhes da noite que tivera, dos momentosembaraçosostentandofritarovo,dobanhodebanheira,daspalavras.—Masnoteialgoestranhonele—disseporfim.

Asgarotasaindaestavamsentadasnobancodapraça.Rebecanomeioeumaamigadecadalado.

—Estoudizendoqueéperigoso—falouFelicityquasecomoumsermão.—Não,nãoénadadisso.Sóqueacheielemeiodesesperado.Nãosei...como

sejáesperassepormim.—Masissoécoisadepsicopata—insistiuFelicity.—NãoligapraelaRebeca,vaiacabarfeitoaArabela.Felicitydeudeombros.—Vocênãodeuseutelefonepraele,deu?—Claroquenão,mastenhoodele.Dissequeligaria,masnãovoubancara

garotaapaixonada.Foisóumanoite,nemseisequerovê-lonovamente,apesardetersidotãobom.

O sorriso no rosto dela não negava que tinha sido bom. Rebeca estavaanimada,aindacomosflashesdanoitequetevesendorebobinadosemsuamente.

—Suacaranãonegaquevaiquerervê-lodenovo—falouAmanda.—Vouesperarpassaroperíododequarentena.—Períododeque,menina?—Asquarentahoras seguintes auma relação tão intensa são cruciais para

vocêseapaixonar.Entãoémelhormanterdistânciadocaranesseperíodo.—Deondevocêtirouisso?—Acabeideinventar—respondeuRebeca,sorrindo.— Tá, mas creio que já passaram mais de quarenta horas desde o último

momentoemqueseviram.—Sim,masoproblemaéquenãoconsigoparardepensarneleeeunãoquero

meapaixonar.Osinaltocou.—Finalmente—disseFelicity,apóspassarumbomtempocaladaouvindoas

garotas conversarem. — Melhor irmos andando, não dou cinco minutos pra oinspetorpassarporaquinosexpulsando.

CAPÍTULO6OJANTAR

OsúltimosdiasforamtensosparaAmanda,FelicityeGabriel.Ostrêsforam

convidadosparaomesmojantarmisterioso,masnãosabiamqueseencontrariamlá.Emnenhummomentopassoupelacabeçadelesquemaispessoastivessemsidoconvidadas.Cadaum tinha algo a esconder e alguém sabia de seus segredos.Opensamentoeraomesmo:quemestariaportrásdaquilo?Eoquequeriam,afinal?

Rua dasOrquídeas, número sete. O endereço não saía da cabeça deles. Ascircunstâncias pareciam lembrá-los o tempo todo que tinham um compromissomarcado. Dois dias depois de encontrar aquele papel em uma de suas sacolas,Amanda recebera flores de presente, especificamente, orquídeas. Isso a deixouintrigada e assustada, estavam fazendo ela não esquecer. Sua mãe ficou muitocuriosa emsaberquemerao admirador secretoda filha, queafirmounão fazerideia. Felicity também foi presenteada com orquídeas, ela teve mais sorte, poisconseguiuescondê-lasdosavóscomquemmoravaetevetempodejogá-lasnolixoantes que ficassem curiosos. Gabriel teve de enfrentar uma situação maisembaraçosacompai,poiselefoiquemrecebeuaencomendaparaofilho,insistiuemsaberquemeraagarotaquemandariafloresparaorapaz.Constrangidocomasituação,Gabrieldissequepoderiaserpiadadealgunsamigos,quenãotinhanoçãodequempoderiaterenviadoaquelaplanta.

As aulas estavam passando despercebidas, nem Felicity, que era a maisestudiosa,estavaconseguindoseconcentrar;Amandafaltoupordoisdiasseguidos;Gabriel esforçava-se para não transparecer alguma preocupação. Quem maisobservavaocomportamentodotrioeraRebeca,amigadeles,todosdosegundoanodo ensinomédio. A garota era observadora e perspicaz, mas amoça não tinhamuito do que desconfiar, notava os amigos ansiosos, pensativos e aceitava asdesculpas como a de Felicity: “dormi até tarde vendo filme e não estou legal”;“estouadoentada”,disseraAmanda,simplesmente;“nãotemnadadeerrado”,foioqueGabrielfalou.

Aparentemente tudo estava bem e foi de aparências que eles conseguiramsobreviver até a quinta-feira, quatorze de abril. Durante esses dias queantecederam, pensaramemnunca comparecer ao jantar, ou sumir do país, fugirparalonge,masasconsequênciasseriampiores,imaginaram.Entãonãotevejeito.

Namanhãdodiaquatorze,Gabrielrecebeuumaencomendaquandoestavadesaídaparaescola, reconheceuasacoladeuma lojade roupasmasculinas,achoutudomuitoestranho,masdeuumaolhadanopacoteeviuqueeraumtrajedegala,umfraque.Umaondaderaivaseformouemseupeito,sabiaexatamentedoquesetratavaoembrulho.Gabrielrecusouedisseaoentregadorquepodiaficarcomaroupa,fazeroquequisesse,masohomemnãoquisreceber,dissequetinhaordensparaentregar,entãoorapazassinouaordemdeentregaefalouqueestavadandoumpresenteaohomem,elenãoteveoutrojeitoanãoserficarcomopresente.

Felicitynão teveproblemasemreceberseuembrulho,masnomomentoemqueosenhorresponsávelpelaentregadeuascostas,elacaminhouatéo imensolatãodelixoquehaviaembaixodeumaárvore,queficavaemfrenteàsuacasa,ejogouopacotedentro.

Amanda agiu de forma diferente, recebeu, abriu a encomenda e gostou dovestido,apesardosignificadoruimqueele trazia.Nãopodianegarqueeraumabela peça, dispôs o recorte de tecido preto em cima da cama e o admirava,pensandoseusariaounão.

ÀssetedanoiteoporteirodacasadeAmandaavisouqueumtáxiaesperavalá fora.Elasaiudecasa,disseamãequeestava indona festadeumaamigadaescola.

—Comlicença—disseAmanda,batendonovidrodocarro.— Sim, sim. A senhorita Amanda Castillo?— perguntou um homem de pele

avermelhada,aobaixarosvidros.Debigodesbrancosegrandeseumabarrigaquequaseencostavanadireçãodoveículo.

—Soueu.Osenhorpodemedizerquemomandou?—Amandaestavainquietaeamedrontada.

— Ah, tenho orientações em levá-la até a rua das orquídeas. Não foi asenhoritamesmaquemcontratouosmeusserviços?

Asituaçãopareciaembaraçosa,sealguémjásabiadosegredodeAmandaeramelhor que mais ninguém soubesse, então ela decidiu desconversar e disse aohomem:

— Bom, na verdade não foi exatamente eu, foi a empregada. É que eu sóqueriaconfirmarseeraosenhormesmo,praevitarqueoutrotáxipercaaviagem.Mastudobem,vamoslá.—Amandaabriuaportaeentrounobancodafrente.

—Asenhoritaestámuitobonita.—Obrigada,masprefiroquenãopresteatençãoemmim.—Tudobem,vamosaopróximopassageiro.—Próximo?Querdizerque temmaisgente?—perguntouamoça,deolhos

arregalados.—Tenhoalgumas instruções a seguir.—Ocarro viroua esquinaeAmanda

conheciaarua,aindaestavanomesmobairro.—Nãopodeser—disseincrédulaporcausadoqueestavapensando.—Oquenãopodeser?—Estoupensandoemquemosenhorestáindopegar.— Ah, um rapazinho. Segundo o endereço, ele mora na rua das tulipas,

trezentoseoito—falouohomemcomumolhonopedaçodepapeleooutronarua.—Oh—suspirouAmanda.—ÉacasadoGabriel.— Que belas casas tem nesse bairro — disse o homem, admirado com as

construções,aruaeralargacomotodasasoutrasdoJardineiroebemiluminada.—Oqueachomaiscuriososãoosnomesdasruas.Todastêmnomesdeplantas,certo?

—É,todasparafazerjusaonomeOJardineiro.OcarroparouemfrenteàcasadeGabrielquejáestavanaporta,esfregando

asmãospróximasdaboca.Faziafrio.Eleviuotáxiseaproximar, jáoesperava,

poisogordãohavialigadoantesavisandoquetinharecebidoorientaçõesparalevá-loaotalendereço.

—Amanda?—perguntouorapazaoaproximar-sedocarro.—Oquevocêfazaídentro?

—Parecequefomosconvidadosparaamesmafesta.Orapazabriuaportatraseiraeentrounoveículonumpulo.—Vocêrecebeuoconvite?—Hum, festinhasurpresa.Os jovensdehoje têmmuitacriatividadeparase

divertirem.Peloqueestouvendo,vocêsnãosabemquemosconvidou.Estoucerto?— Bom... saber não sabemos, mas temos uma ideia — disse Gabriel,

pausadamente,depoisdeumbrevesilêncio.—Sabemos?—perguntouAmandadesúbito.—Eupelomenostenhomeupalpite,vocênãolembraqueeuacerteiquemera

oanfitriãonaúltimafesta?—Oh,sim.—AmandaentendeuoqueGabrielqueria,queeranãodarpistaao

taxista.—Lembro,lembrosim,euatéperdiaapostacoma...—Não—disseGabriel,impedindoquesuaamigaterminasseafrase.—Oquefoi?—EstamosparandoemfrenteàcasadaFê.—Eunãoteriacoragemdeirnumafestadessas—falouohomemaopararo

carro. — Eu hein, vocês são malucos, vai que lá tem um psicopata que queirasequestrarvocêsepedirumresgate?

AmandaeGabrielseentreolharampálidos.—Anãoserqueosenhorsejaessepsicopata—disseAmanda.—Olhepraessevelho,minhafilha—disseohomemnumagargalhada.—Que

malpossofazeravocês?—Vaisaber—respondeuagarota.Gabriel olhava ansioso pelo vidro, viu a luz da janela acima se apagar.

Instantes depois, ela surgiu no portão e caminhou pela pequena passarela quedividiaojardimemdireçãoaoveículo.Ameninausavaumcasacoecalçaspretas,seuscabelosvermelhossedestacavam.

—MeuDeus—disseFelicityaoentrarnocarro,elaficouatrásdobancodomotorista—Oqueestãofazendoaqui?Tambémreceberam...

—Estáficandocadavezmaismisterioso—disseohomemaodarpartida.—Agoraestoumaistranquilapornãoestarsozinhanessa—disseAmanda.— Eu preferiria estar só— falou Gabriel.— Senhor, podeme dizer se vai

pegarmaisalguém?—Não,agarotinhafoiaúltima.Vamosnessa.Durante o percurso, que não foi longo, ficaram calados e pensativos, nem

mesmoo taxistadissealgumapalavra.Otriodeamigospareciaestarnamesmavibração,poisopensamentoeraúnico:oqueelestêmaesconder?Poissecadaumrecebeuumconviteameaçador significavaqueseusoutrosdoiscolegastambémtinhamalgoaescondereparaestaremali,eraalgograve,todossabiamdisso.

Finalmente, o táxi parou na rua das orquídeas, número sete. A casa eracercadaporummuroalto,cobertoderaízesefolhasverdes.Oveículoparoueo

senhor desejou boa sorte aos três.Não foi preciso tocar a campainha, o portãoabriu-se.Aruaestavasilenciosaedeserta,outrascasasenfeitavamosarredores,aolongeviam-seprédiosiluminados.

Amanda, Felicity e Gabriel entraram na mansão, assustados e curiosos. Ocaminho de pedras levava até a entrada da casa, as luzes acesas adornavam abeleza da construção,menos as grandes janelas da parte superior que estavamescuras. Os amigos caminhavam olhando para os lados, viam apenas o jardim.Chegaramaohalldeentrada,Gabrielolhoupelaspartesdevidrodaporta,girouamaçanetaeelaabriu.Opisoerademármoreehaviasetasvermelhasindicandoumcaminho à esquerda, Felicity e Amanda seguiram o rapaz. A sala era grande eluxuosa,umaescadadavaacessoaoandardecima.Elesseguirama indicaçãoechegarama outra porta grande,masnão conseguiamver nadapor trás de suaspartes de vidro, estava escuro. Então o rapaz aproximou-se e abriu, localizou ointerruptoreasluzesseacenderam.

Eraoutrasalacomumamesarepletadecristais,haviaapenastrêslugares,àcabeceiraestavaonomedeGabrielnacadeira,àesquerdadeleficouAmanda,eàdireita, Felicity. No fundo da sala, uma enorme televisão estava com faixascoloridas,comoquandoaTVsaidoar.

—Oqueéisso?—perguntouAmanda.—Umjantar—respondeuFelicity,comosefosseóbvio.—Sabemosporqueestamosaqui,certo?Entãoeuachoqueissofazpartedo

queplanejarampragente.Eutenhoummotivoparaestaraqui,evocê,evocê—disseGabrielapontandoparaasgarotas.—Temosapenasqueesperar.

Umruídocomeçounatelevisão.Amandaassustou-secomosom.Felicityficouparalisada e o rapaz voltou sua atenção para a TV. Começava uma espécie deprograma, umamúsica instrumental tomou conta do ambiente. Surgiu na tela aletraT,depoisO,N,Y,formandoumnome,emseguidaapalavraShow.TonyShowera o nome do programa, envoltas nas letras azuis, três estrelas giravam atéposicionaremologotiponocantoinferiordireitodatela.As luzesacenderameocenárioficouiluminado,imagensquemostravamacidadepreenchiamofundo.

—BoooaNoite,carostelespectadores.—Avozgravedohomemecoounateladatelevisão.Elevestiaumternodouradobrilhante,seuscabelospretosformavamumtopete sinuoso.Gabriel easmeninasestavamatentos.—BoanoiteAmanda,FelicityeGabriel.

O rapaz franziu a testa ao ouvir seu nome, as garotas ficaram visivelmenteperturbadas. Era ao vivo o tal programa? Estaria aquele homem vendo-os nomomentooueraapenasumagravação?

—Ora, não façam essa cara— disse o apresentador, sorridente.—Vamos,sentem-se.Oshowvaicomeçar.—Umavinhetadoprogramatomoucontadatela,enquantoissoosgarotossentaram-seemseuslugares.Quandoohomemvoltoujánão estava mais em pé no seu cenário vazio, mas sim em um sofá luxuoso,segurandoumtabletnamão.—Vocêsdevemestarmuitoansiososparaoquevempelafrente.—Oapresentadorfezcaradequemesperavaumaresposta.

—Muito— respondeuFelicity comuma certa fúria, omedo começava a sedissipar. — Não entendo o que você ganha nos trazendo aqui. Podia começar

explicandodoquesetrataisso.Quemévocê?Oquetefizemos?Queporcariadejantar é esse?— A garota encarou o sujeito, prestando atenção em seus lábiosfinos.

—Amanda.—AvozdeTonyassustouamoçaquedescobriaabandejaqueestavadiantedesi.—Peçoquenãodestampem,nãoagora.Podeser?

—Claro.Maspodeficartranquiloporqueeunãovoucomeroquequerquetenhaaqui.

—Émelhorvocêcomeçaradarseushowzinhodeumavez—disseGabrielnumtomarredio.

—Vocêsdevemestarcomódiodemimaessaaltura.Masquerodeixarclaroqueeunão tenhonadaa ver comoque vai acontecer comvocês.Estouapenasseguindo instruções. Não sei do que se trata. O que eu falo é apenas um textoescrito que passa na minha frente, como aquelas letrinhas do jornal que vãosubindo na tela quando termina. Então, assim como vocês foram obrigados aestaremaqui,eutambémestousendoforçado.

—Comovamossaberquenãoestámentindo?—perguntouFelicity.—Oqueeuganharia com isso?— falou.—Nemaomenos sei oque vocês

fizeram.Seiapenasquevocê,agarotadoscabelosdefogo,temumdiáriosecretoquefoiroubadoeneleestáescritoalgoimportante.—Enquantoelefalava,atelasedividiuemduasenasegundaumvídeodeumlocalescuroondeodiárioestavasobreumamesaeumamãocomluvaspretasfolheando-o.—Voltapramim.—Atelavoltouaenquadrarapenasoapresentador.—Achomelhorvocêsacreditarem.

—Vocênãofazideiadequemestáportrásdisso,então?—indagouAmanda.—Eleestámentido.Édinheiroquevocêquer?Podemosconseguirpravocê—

disseGabriel.—Bom,fuicontatado,porumavozmisteriosanocelularmeoferecendoalgo

queeuqueriamuito.Masparaconseguiroquequero,tenhoqueseguirumalistade instruções. A proposta foimuito interessante e cá estou. Significa que vocêsterão de seguir uma lista se não quiserem que seus segredos sejam revelados.Felicity,seudiárioseráentregueàpolíciaouaalguémqueestejamaisinteressado,casovocênãoexecuteasinstruções.

UmaondademedovoltouainvadirnãoapenasFelicity,mastambémosoutrosdois.Porquetudoisso?Quem?Quem?Quem?Inútiltentaradivinhar.PormaisqueGabrielquisessecolocarnacabeçaqueeraaquelehomemoresponsávelportudo,sentiaqueelenãoestavamentindo.

—Émelhorvocêfalarlogooquequerdenós.—Bom,jáqueinsiste.Oprimeirodesafiodevocêsestáembaixodessespratos

prateados.Deverãocomeroquetemdentro.— Como vamos saber se a comida não está envenenada? — perguntou

Amanda.—Esseéoiníciodalista.Entãovocêsterãodecontinuarvivosparaexecutar

as demais. Seremos cavalheiros, Gabriel, vamos deixar que a senhorita Amandacomece,depoisacabelodefogoevocêporúltimo.

—Cabelodefogoéasuamãe—disseFelicity,baixinho.— Tantantantammmmmm. — O apresentador reproduziu o som da música

instrumentalquecomeçara.—Bomapetite.— Ah, mas é isso? Pensei que seria mais difícil, como sabe que gosto de

laranjas? — Uma laranja partida ao meio, bem amarela, era esse o desafio deAmanda.UmcertoalíviotomoucontadaexpressãoduradeGabriel.

—Seforcomoganharnaloteria,euestouferrada—disseFelicity.—Hum,nossa.Tony...Tonyéseunome,certo?—perguntouAmandasentindo

odocesaborinvadirsuaboca.—Simenão.—Nuncaexperimenteiumalaranjatãodoce.Ah,sevocêpudermefalaronde

comprou,eusereigrata.—Oh,queridanãosepreocupe.Aproduçãovaitemandarumsacodelaspra

você.Gabriel e Felicity ficarammuito impressionados com o apetite que Amanda

devorouasduasmetadesdafruta.—Cabelo...Hum,hum...desculpe.Felicity,asuavez.Eladestampouoprato.—Oh,quediaboséisso?Nãovoucomeressaporcaria.—Agarotasentiuum

embrulhonoestômagoepôsamãonaboca.Suacaraeradenojo.—Lembre-sedodiário—disseTony.—VamosFê,vocêconsegue—disseGabrielsegurandoamãodagarota.Ele

estavaigualmenteenojadoepreocupadocomoquetinhaparaele.—Podeaomenosexplicaroqueé isto?—perguntou,olhandoparaoprato

ensanguentadoecompedaçosdecarnevisivelmentecrua.—Aproduçãoestámedizendoquese tratadecarnedecoruja.—Tony fez

caradenojo.—Vejapeloladobom,sãobichosinteligentes,entãotalvezteajudenosseusexames.Ohminhanossa.—OapresentadorviuFelicitysecurvarparaoladoparapoderbotarparaforatudooquetinhanoseuestômago.

—Meussapatos—gritouAmandaaosentirrespingosdovômitoemseuspés.Gabrielcolocouáguadajarradevidroqueestavasobreamesaemumcopoe

levantou-sedacadeiraparaajudaraamiga.—Toma,vaiteajudar.—Elepassouaáguaparaagarota.Felicityserecompôs,pegouogarfoeespetouumpedaçodacarne,observava

os pingos vermelhos caírem no prato. Amanda olhava com os olhos cheios delágrimas segurandoumguardanapoencostadoà suaboca.Gabriel estavacomocotovelodireitosobreamesapressionandoopolegarcontraoslábios.

Ogostodacarneeraestranho,Felicitynãoconseguiumastigarmaisqueumavezeengoliu.Nosegundopedaço,sangueescorreupelocantodabocadajovem,ela tossiu algumas vezes, pareceu que ia vomitar novamente. Depois de muitoesforço,botouparadentroosquatropedaços.

— Palmas, palmas. Você é corajosa, garota. — Foi reproduzido o som depalmasedegritosdeumaplateiaapesardenãoexistirninguémalémdeTonynocenário.Felicitymostrouodedodomeioparaele.—Vamosbonitão,chegouasuavez.

— Oh, Deus. — Gabriel sentia que seria algo ruim, mas não imaginou quefosse...— Sangue! Isto é sangue? Você quer que eu beba?— Bolinhas de suor

começarama se formar emsua testaqueestava franzida.Ele ainda seguravaopratoquecobriaataça,pôssobreamesaeficouadmirandoocristalcomaquelelíquido avermelhado. Seu estômago revirava como se houvesse um animal ládentro, sentiu algo ruim chegar à sua garganta, mas conteve o vômito. — Queanimal,vocêsmataramdessavez?

—Oh,temoquenãosejadeumanimal—disseoapresentador,visivelmenteenjoado.

Gabrielrespiravapelabocadeformafrenética,asgarotasoencorajaram.—VamosGabriel,acabelogocomisso.Vamosemboradaqui—disseFelicity

numavozsuave.—VocêconsegueGab—sussurrouAmanda.O rapaz virou a taça, o líquido desceu com muita dificuldade, deu goles

grandeserápidosparanãosentirogosto,masfoiimpossívelnãoimaginarquealgoestavaenferrujandoemsuaboca.Elelevantou-sedesúbitoempurrandoacadeiracomaspanturrilhas,que foiaochão,enumberroatiroua taçacontraa teladatelevisão que ficoumanchada de vermelho. Ele bufou enraivecido, algo parecidocomraízesvermelhastomoucontadobrancodosseusolhos.

—Mandeumrecadoproseudiretor,Tony—falou,apontandoodedoparaatelevisão.—Émelhorelepararcomisso,ousenãoquiserparar,seescondabem,porque se eu encontrá-lo, eu juro que o mato. E é melhor você se preparartambém.—Gabrieldirigiu-seàportapelaqualhaviaentrado,masestavafechada.—Qual é?—O sangue que bebeu havia escorrido pelo pescoço e alcançou suacamisaverde,deixando-amanchada.—Aindanãoterminouseushowzinho?

Asgarotasestavamdepé,numcanto.—Estamos quase acabando—disse Tony, agoramais sério.Não conseguia

maisdarumsorriso.Aparedelateralcomeçouaseabrirpelomeio,pareciaestarsendo engolida. — O verdadeiro banquete. Não chega a ser como a mesa dagrifinória,masestábastanteatrativa.

Elesviramumasalacomumamesacompridacheiadecomidasdeverdadeemuito diferentes do que haviam experimentado. Caminharam devagar eobservaramoquetinhaali.Asparedeseramrodeadasporespelhosdecercadesessenta centímetros de altura que reproduziam o ambiente. Uma luminária emcascatapendiano teto.Amandaavistouumapirâmidede laranjasdescascadasebrilhantes;Felicityolhavacuriosaparaoporcoquetinhanocentrodamesa,comumamaçãavermelhadanaboca,oanimalbrilhavacomoseestivessecaramelado,elapensouseeleseriadeverdademesmooueraapenasumenfeite;Gabrielfitouoolharemumataçaquecontinhaumlíquidoparecidocomoquetomouapouco,masera vinho. Frutas convidativas comomaçãs, uvas, pêras, mangas gigantes, kiwi,melancia e outros tipos desconhecidos adornavam a mesa; Felicity sentiu ocheirinhodepãofrancêsinvadirsuasnarinas.

Travessas com arroz branco, salada, macarronada, peru assado inteirinhocomo no natal, frango, carnes vermelhas, várias garrafas de champanhe, vinhos,jarras de suco e muitos doces no finalzinho, eram crepes, chocolates, bolosenfeitados,cocadas.Estavamtontoscomtantacomida.

— Digamos que seja uma recompensa por terem passado pelo primeiro

desafio.—Nãovoucomernada—gritouGabriel.—Sóqueroqueabraaporrada

portaenosdeixeirembora.—Tudobem,masantes,peçoquepeguemumpapelqueestácoladoembaixo

dacadeiranaqualestavamsentados.Éalistadeinstruçõesqueterãodeseguir.Casoconsigamcompletá-la,oanfitriãocompromete-seadestruirtodasasprovasquetemcontravocês.

—Euvouembora—disseGabriel.Emseguidavoltouàcadeiraeabaixou-separapegarotalpapel,eravermelhoeestavadobradoemtrêspartes,abriu-oeleualgumaslinhas,ficouumpoucoassustadoeenfiounobolso.Felicityveiologoatrás,pegouoseueguardounabolsa.

—Tony,váparaoinfernovocêeseuanfitrião—disseAmandaapósdarumamordidanalaranjaeleroquetinhanasmãos.—Eunãovoufazernadadoquetemaqui,estámeouvindo?—Elaatiroualaranjaquetinhanamãodireitanatelevisão.—Idiota,paspalho,euquebro todososseusdentesse teencontrarnarua,vocêpassalongedemim.—Gabrielapuxoupelobraçoeelacontinuouesbravejando.—Maldito,infeliz.

CAPÍTULO7OSANGUENACAMISA

— Fê, o que vamos fazer agora?— perguntou Amanda para Felicity, ainda

tensacomoqueestavaacontecendo,enquantoGabrielestavadejoelhosnagramabotandotudooquepodiaparafora.

—Eunãosei,nãofaçoideia.Oquetemnasualista?—perguntouFelicitynumsussurro.Estava impaciente,queriasumirdaliomais rápidopossíveleesqueceraquelanoite.

—Euprefironãotefalar.Achomelhorcadaumficarnasua,nãoestouafimdecontarmeusegredoeachoquevocêtambémnãoestá.

—Mas temosquedescobrirquemestá fazendo issocomagente.Éalguémquenosconhececomtodacerteza.Comoiamsaberqueeutinhaumdiário?

—Eujávivocêescrevendoemseucaderninholánaescola,alguémpodetervistoeficadocurioso.Aliás,comofoiquevocêoperdeu?

—Primeiro,nãoéumcaderninho,Amanda.Eacasafoiinvadidanumamanhã.Quando cheguei da escola meu quarto estava destruído, alguém revirou tudo eacharamo diário emum fundo falso domeu guarda-roupa. Fazia tempo que eleestavalá.Sónãoseicomodescobriramisso.

—Achoqueestamossendovigiadas.—Vamosdeixardeconversamoleedaroforadaquiantesqueoapocalipse

zumbi comece— disseGabriel aproximando-se das garotas. Ele estava pálido edescabelado.

—Vocêestáhorrível,amigo—disseAmanda.—Nãoligapraela,continuasendonossoamigogato.—Felicitytentousoar

engraçada,masnãotinhasalnaspalavrasdela.—Obrigadovocêsduas—disseGabriel,numtomdedesdém.—Maséuma

péssima hora para elogios. Vamos logo.— Ele começou a andar em direção aoportão.— Tenho queme livrar desta camisa, não posso chegar assim em casa,senãomeuspaisvãopensarquevireiumvampiro.

—Ouumassassino—sugeriuAmanda.—Hahahaha,engraçadinha.—Voupedirumtáxi.—Felicityestavasacandoosmartphonedabolsaediscou

umnúmero.—Éperigososairmosapé.—Nãosepreocupe,Gabriel.Nóscompraremosumacamisanovinhapravocê

—emendouAmanda.Eles alcançaramo portão que se abriu comomágica e ficaramem frente à

casaesperandootáxi.— Tira a camisa, Gabriel. Se alguém nos vir, vão mesmo pensar que você

matoualguém,anda.OrapazsedesfezdapeçaeajogouemFelicityqueaagarrounoaredepoisa

empurroudentrodesuabolsa.Amandaobservavaosmúsculosdoamigo.

—Delícia—disseAmandadandoumtapanopeitodele.—Vocêestámuitodescontraidinhapromeugosto—respondeuparaAmanda.—Vocênãodeviatertomadoaquilo,nemsabeseestavacontaminadoounão.

Vocêtemqueiraomédicoomaisrápidopossível—disseFelicity.—Para,Fê.Eu já estoupassandomal, estou com frionessa ruaesquisita e

vocêmevemcolocarideiasnacabeça?—Oquevocêfezdetãogravepraterencaradoaquelataça,hein?—indagou

Amanda.—Nadaquevocêpossaajudar,entãonãotenhointeresseemcontarpravocê.

Agoraémuitoestranhoqueseudesafiotenhasidoumalaranjinha.Seráquevocênãotemalgumacoisaavercomisso?

—Vocêficoumaluco,Gabriel?—Amandaficoufuriosa.—Vocêachaqueeuseriacapazdissotudo?Ahnão,jáentendi.Aquelesangueprovavelmenteeradeumbêbadoquemorreuatropelado,daívocê ficoualcoolizado.Tábêbado,né?Tásesentindotonto,éisso?

—Nãosejaidiota.— Parem vocês dois, vamos acabar chamando atenção aqui parados e

discutindo.JábastaoGabrielseminu—disseFelicity,olhandoenvergonhadaparaGabriel.

—Euachoqueissoteveavercomagravidadedenossosdelitos.Seéquedáprachamardedelito.Vocêsdoisdevemteralgoaescondermuitopiordoqueoqueeutenho.Entãoocastigodevocêsfoimaispesado—disseAmanda.

— Émelhor não tentar achar uma justificativa, se não só vai se complicaraindamais— falouGabriel, que estava de braços cruzados e com frio.— Essegostohorrívelnãosaidaminhaboca.Achoquevou...—Nãotinhamaisnadaemseuestômagoqueconseguissebotarparafora,masaânsiadevômitoofezexpelirumlíquidoamareloesverdeado.Apoiouobraçonotroncodeumaárvoreetossiumuito,pareciaqueestavaengasgando.

—Oooh,vocêsvãoacabarmedeixandoenjoadatambém—disseAmanda.—Achoquetenhobalinhasdementa,alguémquer?—perguntouaotirarumpotinhobrancodabolsa.

—Vocêsóvemofereceragora?—disseGabrielarrancandoopotedamãodeAmanda.Eledespejouquatrobalasejogounaboca.—Huuuum,nossa,issoalivia,refresca. Toma Fê, experimenta. — Ele passou o pote para a amiga, enquantomastigavacomvontadeasbalinhasdementa.

—Nãocometudo,euaindaquero—falouAmanda.—Acheiquesualaranjaestivessedeliciosa.—Felicitymastigavaduasoutrês

balas.—DáaquiFê.—Gabrielpegouopotinho,despejouoquerestavaemsuamão

eodevolveuvazioparaAmanda.— Isso não é justo. Eramminhas balinhas.—Amoça atirou o pote emum

cantonochão.—Justo?Eoqueseriajustopravocê?—Justopramimseriadividirempartes iguais.Somosumtrio—respondeu

Amanda.

—Masvocênemprecisadelas.Pensequeelassejamaspirinasinfantis,eueaFêestamosdoentesevocênãoestádoente,entãovocêdiminuirianossamedicaçãoapenasprasentirosaboradocicadodoremédio?Issoseriajusto?

—Gabriel tem razão. Além disso, suas balinhas podem evitar que nós doisvomitemosemcimadevocê.Entãosetodomundosaibeneficiado,aísim,éjusto.

—Doisenrolões,éissoquevocêsão.Praserjustonãoimportadequeformaseriamdivididas,teriadehaverumconsensoentreaspartes.Entãocomoeunãoconsinto com essa divisão, continuo me sentindo injustiçada. — Amanda ficouaborrecidaeGabrielcomeçouarirdacaradelajuntocomFelicity.

— Deixe de fazer drama, tome uma. — Gabriel entregou uma balinha aAmandaquepegoueenfiounaboca.

— Ai, vamos embora. Chegou o táxi — disse Felicity ao avistar o veículoestacionar.OstrêscaminharamapressadosatéocarroeAmandaentrounobancodafrente,deixandoosamigosnodetrás.

O silêncio tomou conta do veículo. Pela janela, os três observavam as ruascalados.Otaxistaestavaconcentradonotrânsitoquefluíabem.Ouvia-seasirenedeumaambulância,osomaltodeumcarroquepassourápidoporeles;pessoasandavamnasruas,carrossaíamdegaragensdeprédios.EstavamindoaoshoppingcomprarumacamisaparaGabriel.

OsilêncioestavaperturbadorquandoGabrielcomeçouasecontorcer,pareciaestarsentindoalgumador.Felicityestavacomacabeçaapoiadanobancoenotoualgodeerradocomoamigo.Eleestavaencolhido.

—VocêestábemGabriel?—perguntouFelicity.—Elevaiacabarbotandoastripasprafora—disseAmandasemolharpara

trás.—Porfavor,nãosujeomeubanco.—Otaxistatentavaveralgopeloespelho.Elenão respondeu,enfiouosdedosentreoscabeloseencolheu-seentreos

joelhos.Felicitynotouapeledopescoçoficaravermelhadaesoltouumgrito.—Aaaaaaaaaah,Gabrielestávirandoumlobisomem.—Aaaaaaaah—ogritodeGabrielpareceuserdeummonstro.—Aaaaaaaaaaaaaaaaah—ogritodeAmanda foiestridenteaoverosolhos

arregaladosdoamigoeorostovermelho.Gabriel dava gargalhadas e Felicity sentia dor na barriga de tanto rir. Era

estranhorirnaquelasituação,maslembrou-sequejáouviudeoutraspessoasque,àsvezes,riamdenervoso.

—Lobisomensnãoexistem—disseotaxistaparaAmanda.—Lembre-sedissomocinha,nãoprecisatermedodoquenãoexiste.

“Nãoprecisatermedodoquenãoexiste”,aspalavrasecoaramnamentedeAmanda.Maselaestavacommedodeumaameaçaque,defato,existia.

CAPÍTULO8ALIGAÇÃO

Rebeca digitava alguma coisa em seu smartphone quando um homem se

aproximouepediu licençaparapuxaracadeiradamesa.Elesentou-seeviuumlevesorrisonorostodela.Orestauranteestavapoucomovimentado.

—Desculpeteratrasado,tivequeresolverumacoisaurgente.—Nãofazmal,vocênãodemoroumuito.— Senhorita Rebeca... como já havia adiantado... Ah, Obrigado. — Ele

agradeceuaogarçomporentregarocardápio.—Temosquepararcomisso,nãoestoumaisavontadeparacontinuarfazendoessascoisas.

—Eusónãoentendooqueestá incomodandotantoapontodevocêquererdesistirdetudo.Medêmaisumtempo,aindanãoestoupreparadapraisso.—Agarotafalavadevagar,encarandoohomemcomseusolhosazuis.Elacolocouumamechadeseucabeloruivoatrásdaorelha.

—Nãomeleveamal,masissoéestranho,nãoénormal.—Estoutepagandotudocertinho,nãoestou?Nuncaatraseiseuspagamentos.

—Rebecafaloucomumtomdeautoridade.Tirouumpacotededentrodesuabolsaepôssobreamesa.—Ésópravocêpensarmelhor.

Avozdagarotapenetrounosouvidosdohomemcomoumcantodeumasereiaatraindo-oparaomar.

—Nãopossoaceitar—disseohomemempurrandoopacotedevolta.Rebecanãocedeueficaramsegurandoopacotedeambososladosporuminstante.

—Tudobem.—Cristianocedeu,pegouopacoteocolocounobolsodedentrodajaquetaqueusava.—Masvocêprecisaarranjaroutrapessoapracontinuar.

—Tá,masnãovamosfalardissoagora.—Rebecaergueuamãoparaqueeleparassedefalar.—Nãomepressione,prometoquevoutentaroutrapessoa.

Eramentira,porqueoutrapessoanãoseriaomesmo.—Não vouquerernada, obrigado—disseCristianoaogarçomque voltara

paraanotaropedido.Eleselevantou,apertouamãodagarotaefoiembora.Rebeca o observou deixar o restaurante até perdê-lo de vista em meio às

pessoasquecaminhavamnoshopping.—Ah,podetrazerminhaconta—disseamoçaparaorapazqueestavadiante

desi.Tudooquehaviaconsumidoeraumasaladaeumsucodemaçã.—Aguardesóummomento.—Ogarçomretirou-se, foiatéocomputadore

fechouamesavinteecinco.Voltouondeagarotaestavaeentregou-lheaconta.—Meupaiestámeligando,veja.—Rebecamostrouodisplaydocelularao

garçomqueleuaspalavras“Papaichamando”nateladoaparelho.Elaestavamuitofeliz,diferentedequandoconversavacomaquelehomem,osemblantedeincertezadera lugar a um sorriso feliz, mas seu olhar continuou o mesmo, como seprocurasseporalgo,desesperadamente.

Ogarçomapenassorriu.Elatirouduasnotasdevintedabolsaminúsculaquemaispareciaumacarteiraecolocounomeiodolivrinho.

—Obrigada—disseparaogarçomeemseguidadeslizouobotãoverdedosmartphone,levantando-sedamesacomsuabolsapresanopulsoesquerdo.—Pai.—Elajácaminhavanocorredor,andandodevagareobservandoalgumasvitrines.

—Oimeubem,comoestá?—Avozeragraveeacolhedora.—Bempai.Vimdarumavoltanoshopping,estavaquerendocomprarumas

coisaspramim.—Elaparoudiantedeumavitrineeolhouencantadaparaumcolarcujopingenteeraapenasumapedradediamante.

—Suamãeestácomvocê?—Não,estousozinha.—Sabequenãogostoqueandesozinhaànoite.— Não sou criança, relaxe. Além do mais, não adianta você se preocupar

comigoestandoaquilômetrosdedistância.—Rebecaalcançouaescadarolanteedesceuparaoandardebaixo.

—Nãofaleassimquerida,sabequenãopossovê-lacomfrequência.Efoiporissoqueteliguei,vouterdecancelaraviagem.

—Comoassim?Vocênãovemnosver?—Claroquevou,masnãoagoracomohavíamoscombinado.—Queriaqueosenhorvoltassepracasa.—Sabequeissonãoépossível,meubem.—Ahpai,vocêsaindaseamam.Eeunãoaguentomaisaquelenamoradoda

mamãequerendotomarseulugar,elaoestáusandopratecausarciúme.—Ela seguiu em frentemeubem, essa é a verdade.É isso que as pessoas

fazem.Vocêprecisaaceitarquenãodeucerto.Rebecaalcançouopiso.Váriaspessoascirculavamcomovultosemumcenário

preto e branco, exceto os movimentos de um pai segurando uma garotinha decabelosruivospelamão.Elaaparentavaterunscincoanos.

—Sóprecisoquevocêvoltepranós.Nuncavouaceitarquevocêtenhasaídodecasa.Aindaqueriaosdois juntoscomigo,somosumafamília.Nãovouaceitaraquelecretino.Eleestácadavezmaisseimpregnandonanossacasa.

—Jásepassaramtrêsanos.Elatemodireitodereconstruirsuavida.—Nãofaleassim.—AvozdeRebecasooucomoumsussurro.Rebecaparouporummomentoeobservouacenaquandoacriançalevantou

os bracinhos na direção do homem indicando que queria colo. Ele a pegou e amenininhaentrelaçouosbraçosnopescoçodele,apoiandooqueixonoombrodopai que continuou andando. Uma mulher foi na direção do homem e pegou assacolasqueelecarregava.OsolhosdeRebecaforamdeencontroaosdameninaassim que o homem virou de costas, ela esboçou um sorriso, enquanto Rebecalutavacontraaslágrimasquequeriamrompersuaspálpebras.

—Filha,vocêestáaí?Falecomigo.—Estou—disseaborrecida.—Oquehouve?— Nada, não aconteceu nada. Só senti saudade. Olha, preciso desligar, tá

certo?Depoisagentesefala.—Tudobem,meuamor.Fiquebem.—Umbeijo.

Eladesligou.Encher os pulmões de ar e soltá-los lentamente trazia Rebeca de volta ao

mundoreal.Elapegoumaisumaescadaparadesceraoandartérreoeguardouocelulardentrodabolsa.

Cristianoestavaemumalojaquandoaviudescerpelaescada.Dedentro,ficouobservandocadapassoqueeladeu.

Eleapertouomaçodedinheiroqueestavanobolsodajaquetacomosefosseseucoraçãoqueestivessedoendo.

CAPÍTULO9UMALONGANOITE

Amandaandavaapressadaemmeioàspessoas,omomentonãoeraadequado

para ficar maravilhada com as vitrines do shopping, tudo o que precisava nomomentoeraencontrarumalojaderoupasmasculinasparacomprarumacamisaparaGabriel.Agarotaentrounaprimeiraqueencontroueabordouaatendente.

—Precisodeumacamisamasculina,podeserqualqueruma—disseparaavendedora,quasesemfôlego.

—Claro,senhorita.Qualmodelovocêestá interessada?Éumpresenteparaseunamorado?Temumascamisaslindas,sóummomento.—Avendedora,muitoeducadaeatenciosa,deuascostas,retiroualgumaspeçasdaestanteedispôsnobalcão preto, porém quando se virou, viu Amanda arrancando uma camisetaamareladeummanequim.

—Voulevarestaaqui—dissecomumsorrisoforçado.—Claro.—A vendedora surpresa coma reaçãoda cliente apenas pegou a

peçaeprovidenciouumembrulho.—Podeiraocaixa.Amandadirigiu-separaafiladepagamentosque,porsorte,tinhaapenasduas

pessoas. Alguns instantes depois, que pareceram durar mais que o normal,conseguiu efetuar o pagamento. Pegou sua sacola com a atendente e saiuapressada.Caminhavaapassosrápidosquandoouviuumavozchamarseunome.

—Amanda!“Continue andando Amanda. Seja quem for não olhe para trás”, pensou a

garota que continuoudandopassos rápidos, embora insuficientes para conseguirentraràdireitaesumirdevez.Elaouviunovamentealguémchamá-la.

—Amanda!—EraRebeca.—Ei,aondevaicomtantapressa?—perguntouagarotaaotocaroombrodaamiga.

—Rebeca?!—disseAmandameiodesconcertadaeumpoucosemgraça,poisnãoqueriaqueRebecapercebessealgumnervosismoouqueestavafugindodela.—Estava indoembora,estoumuitoapressada.Eunemouvi vocêgritar—dissefinalmente.

—Ligueipravocêhoje,massófezchamar.—Rebecacolocouumamexadecabeloatrásdaorelhadireita,revelandoumaargoladourada.—Tenhoalgopratecontar,umacoisameiolouca.—Elafranziuatesta.

— Tudo bem,mas olha, tem que ser depois, você sabe como sou, gosto dedetalhes,muitosdetalhes.—Amandaestavaforçandoparecernormal,masestavamuitocaricata.

—Aconteceualgumacoisa?Vocêpareceapressada,ansiosa,nãosei...Aliás,vocêstodosestãoestranhos.

—Estouótima,nãosepreocupe.Precisomesmoir.—Amandadeuumbeijonorostodaamigaesaiuquasecorrendo.

Logo sentiu a brisa da noite soprar o seu rosto quando saiu de dentro doshopping,seguiupelacalçadaecaminhoualgunsmetrosondeosamigosestavam

esperando em um banco, ao menos tinha deixado eles sentados em um bancoembaixodeumapalmeira.

Amandaparouderepenteeencostou-seaumcantoaoverumamovimentaçãoestranha.Seu corpo ficouencobertopelo troncodeumapalmeira.DoispoliciaisestavamabordandoGabrieleFelicity.

—Precisorevistarsuabolsa,garota.—Amandaarregalouosolhosaoouviravozdohomem,elaseafastouumpoucoefechouosolhoscomforça,contraiuoslábiosaosentirquehaviapisadoemalgonojento.

—Nãotoqueemmim—disseFelicity,passandosuabolsapelascostas.—Eunãofiznada.

—Recebemosumadenúnciasobredoissuspeitos—disseosegundopolicialque era baixinho, um pouco gordo e usava bigodes.— E vocês tem asmesmascaracterísticasfísicas.

—Denúncia?Possosaberoquenósfizemos?Amandatentoulimparosapatoesfregando-onagrama,elamanteveacabeça

erguida,nãoqueriaolharparabaixopoissabiadoquesetratava,pelocheioeramesmo cocô de cachorro. Mas como deixaram um cachorro fazer suasnecessidadesalienãolimparam?Comopodempermitirisso?Elaestavafuriosasefazendoessasperguntas,maslogopercebeuqueomomentoeramaisdelicadoqueumsimplescocôdecachorro.

—Assassinato—disseoprimeiropolicialimediatamente.Ohomemtinhaumsemblantedurão,eraaltoeocorpoemforma,diferentedocolega.—Umhomemfoimortoemseuapartamentocomclarossinaisdeluta,pessoasdisseramtervistoumsujeitocorrerpelasruas,semcamisa,eumadenúnciaanônima...—OhomemseaproximavacadavezmaisdeGabriel.—...dissequeviuvocêentregaracamisamanchadadesangueparasuaamiga.

Opolicial,numgolpecerteiro,agarrouabolsadeFelicityeabriuozíper.— Me devolve isso. — A garota avançou em cima do policial tentando

recuperarsuabolsa,masogordoagarrouemseusbraçospelascostasprendendo-osnasalgemas.—Seuidiota,vocênãopodefazerissocomigo.—Felicityacertouacaneladopolicialcomocalcanhar,ohomemsoltouumgemido.

—Ora,ora,vejamisso.—OpolicialsacudiuacamisadeGabrielevidenciandoasmanchasdesangue.—Comoexplicamisso?Estouvendoquevocênãotemnemumarranhãonessasuacaradeplayboy.

Amanda estava imóvel, escutando tudo. Estava com medo demais paraaparecer, alémdomais, o que poderia fazer? Iria presa.Certamente seriamaissensatoficarondeestava.

Gabriel observava tudo com muito cuidado, pensou em correr, mas vendoFelicity algemada não teve coragem de deixá-la sozinha, olhou para a cara detriunfoqueosujeitofezaosacudiracamisacomosefosseumabandeira.

— Isso não prova nada.— Por ummomento Gabriel sentiumedo, pois nãosabiadequemrealmenteeraaquelesangue,podiamesmoserdeumhomemmortoe ele seria acusado, iria para o reformatório já quenão tinha dezoito anos, nãoteriacomosedefender,poisteriadecontaraverdade,tudosobreotaljantar,massecontasse, teriade revelaromotivopeloqualhavia semetidonisso, as coisas

ficariampioresainda.Oquefazer?Oquefazer?Gabrielpensoudemaiseopolicialfincou a algema em seu braço esquerdo, empurrando-o contra a parede comviolência.Gabrielficoudepeitocontraoconcretoenquantoopolicialprendiasuasmãospelascostas.—Vocêsnãopodemfazerisso,nãopodemnosprenderassim.

— Vamos levá-los. — O policial gordo empurrou Felicity sem a menordelicadeza,indicandoparaqueelaseguisse.

—Seuporcoimundo—disseagarota,furiosa.—Cuidado,possoteprenderpordesacato.—Jáestousendopresa,não?Vouprocessarosdois,issoécontraalei.—Oquevocêsabesobrealei,garotaburra?— Não preciso saber muita coisa pra saber que vocês estão errados, não

fomospegosemflagrante,vocêsnãotêmprovas.—Calaaboca.—Ogorduchodeuumtapafortenoombrodagarota,oquea

impulsionouparaqueandasse.OsegundopolicialpuxouGabrielpelobraçoeoarrastou,prendeuabolsade

Felicitynopescoçodo rapazecolocouacamisanoombro.O localestavamuitotranquilo,daqueleladoficavaoestacionamentoacéuaberto,umaououtrapessoasaíaouentrava.Ailuminaçãoerafraca.

Eles empurraram os garotos no banco traseiro. Amanda permaneceu ondeestavaatéquesedistanciassem.Ocarrodapolíciapassouporelaeviuosamigosindoembora.Oquefazer?Pense,Amanda,pense.Pegueumtáxiesiga-os.Foioquesuamentepediuquefizesseeassimofez.

“oito,nove,cinco,oito...oito,nove,cinco,oito”,Amandarepetiaosnúmerosmentalmente,eraaplacadoveículo,nãopodiaesquecer,seriafácilidentificarumcarrodepolícia,masparafacilitar,achoumelhordecorá-los.

—Moço, segueaquele carro—disseao finalmenteentrar emum táxi, semnemaomenospedirlicençaaomotoristaqueestavadormindonobanco.

—Como?Oquedissesenhora?—Omotoristaacordoudesúbito.—Sigaaquelecarro,rápido.—Amandaestavanervosa.— Qual carro? — perguntou o motorista, atrapalhado, tentando localizar a

chaveeajeitandooscabelosnoespelho.—Desculpe,estava tirandoumcochilo,esquecidetrancarasportas.—Amandafinalmenteouviuobarulhodomotor.—Praondevamos?

—Peguearuaprincipal,porfavor,esigaumcarro...oito,nove,cinco,oitoéaplaca.Umcarrodepolícia.Oito,nove,cinco...

—Polícia?—interrompeuohomem.—Vocêvaiseguirapolícia?Masnãoéapolíciaquemsegueosbandidos?

—Mas aqueles policiais são dois bandidos e prenderammeus amigos.— Agarotaobservavaotrânsitotentandoencontrá-los.

— Jáme pediram pra seguirmaridos, namorados, ex-maridos,mas nunca apolícia.

—Ai,tôvendoeles,aquelelá,vamosnãoopercadevista.—Voucobrarmaiscaro.Esperoqueissonãomemetaemproblemas.Adoro

aventuras,vamoslá—eledisse,sorridente.—Sóquerosaberpraqualdelegaciaestãoindo.

Foi a perseguição mais tranquila da história daquele taxista. Quandofinalmenteelesalcançaramadelegacianaqualaviaturaparou,elesesentiuumpoucofrustrado.Aruaeracalma,umpoucoescuracomcasasmodestasealgumasárvores grandes. O táxi parou do outro lado da rua e Amanda viu seus amigossaírem algemados da viatura, algo repugnante, pois eles não haviam cometidonenhumcrime.Pelomenosnaquelanoite,pensouela.

—Porqueelesestãosendopresos?—perguntouotaxista.—Bom,porumterrívelenganoeuacredito.—Vocêsnãosãobandidos,são?Membrosdeumaquadrilhaespecializada?— Ai, não fala besteira. Eu lá tenho cara de bandida? Olha pra mim, uma

garotabemcuidada,inteligenteebonitaiasemetercombandido?—Desculpe,sóachoissoestranho.Issofoimuitosemgraça.—Oquefoisemgraça?— A perseguição toda. Você precisa ver quando algumas mulheres entram

nessecarro,elaspreferemirnobancodetráspranãoseremvistas.Namaioriadoscasososmaridossaemcomgarotasmaisnovas,asesposasficamloucasquandoveem,queremsairdocarrologoepartirpracima,maseuascontenho...

—Calaabocaumminuto—disseAmandacolocandootelefonenoouvido.—Gabrielquebomteouvir.Tebateram?Oquefizeramcomvocê?EaFê,elaestábem?

—Ah,entãoquerdizerquevocêviuagenteserpegoenãofeznada?—Elaouviuavozchateadadoamigonooutroladodalinha.

—Nahoraeunãopudefazernada.Masseguivocês,estouaquiemfrenteàdelegacia.Doquevocêsestãosendoacusados?

—Euexplicodepois.Agoraeuprecisoquevocêconsigadezmilreaispratiraragentedessa.

—Dezmil?—Amandafezcaradeespantoparaotaxistaeelerepetiu“dezmil”sócomomovimentodoslábios.—Ondevouarranjardezmilumahoradessas,Gabriel?

—Háumapraçaháunsdezminutosdaquidecarro,vocêprecisairlá.Umapessoavaiteentregaressedinheiro,jápasseiseutelefoneevãoteligar.Éaúnicapraçapertodaqui,qualquertaxistasabechegarlá.Rápido,porfavor.

—Gabriel,quepessoaéessa?—Alguémdeconfiança,andalogo.—Eledesligou.—Segundotempo,amigão—disseAmandaparaotaxista.—Próximaparada

énumapraçaqueficaaquiperto,medisseramqueumbomtaxistachegarialásemproblemas.

—Éprajá!—Ohomemesboçouumlargosorriso,seusolhosbrilharam.Elegostavamesmodeaventuras.Ligouocarroedeupartida.

A praça estava deserta. Haviamuitas árvores e alguns bancos de cimento,umapistadecorridaemformadecírculo.Otáxiparouaoladodeumposte,cujalâmpadaestavaligada.

—Nãoétãoseguroagentepassartantotempoaqui—disseotaxista.—Issoaquiépontodeencontroparadrogado,olhalá.

Amanda viu o que parecia ser um ponto de luz, algo como se fosse um

vagalumeeasombradealguémsentadoeencostadoaumtroncodeumaárvore,nãodavaprasaberseerahomemoumulher.

—Estãofumandoumcigarrinho—continuouohomem.—Ligueproseuamigologopraavisarqueestamosaqui.

—Sóchama—disseAmandacomotelefonenoouvido.Suavozestavaserena.Elahaviaficadointrospectiva,algocomeçavaaesfriarpordentro.Eraomedoseaproximando.—Meu Deus, que noite. — Ela pôs a mão na testa e encostou acabeçanobanco.

—Vocêestábem?—Omotoristaseguravaadireçãocomfirmeza.—Nãovaimeexplicarcomosemeteramcomapolícia?

—Foi tudoumaarmação.Tudoarmadopragente.—Otelefonedela tocou,estavaescritonateladocelular:“desconhecido”.—Alô,quemfala?

—TenhoumaencomendaparaoGabriel.VocêéaAmanda?—Sim,soueu.Estounapraçacomoinformado,emumtáxi.—Nãodigaisso—sussurrouotaxista.—Estouvendovocê—falouagarotadooutroladodalinha.Logo,os faróisdeumcarrosurgiramnaestrada.Umcarrobrancoparoua

uma distância de pouco mais de quarenta centímetro ao lado do táxi. O vidroabaixoueAmandaviuumagarotanobancodopassageiro.Elatinhaumpiercingprateadononariz,seuscabeloseramtrançados.Apelenegra.Onarizpequenoeafinado, lábios bem desenhados. Era uma garota bonita. Amanda apenas nãogostoudocabelo,achougrosseirodemaisparauma jovem.Domotoristanãoviumuito, apenas notou que usava uma camisa branca e tinha tatuagens no braço.Apesardaluzdoposte,aruaestavaumpoucoescura.

—Amanda?—perguntouajovem.—Sim,vimamandodoGabriel.—Amandanãogostoudoolharinquisidorda

outra.—Estátudoaí.—ElapassouumpacoteparaAmanda.—Nãoperdetempoe

vailogo.Amandaacabaradereceberumaordem.Issoadeixouirritada,masnãodeu

tempofalarnada,antesqueabrisseaboca,ocarrosaiucantandopneu.—Quegarotaatrevida.Nãogosteidojeitoqueelafaloucomigo,vamoslogo—

falouapressadaparaotaxista.—NãosabiaqueoGabrielestavametidocomessetipodegente,vocêviuojeitodela?

—Amaldadedaspessoasresidenocoração,nãonaaparênciadelas.Noquevocêsemeteugarota?—Omotoristagirouachave.

Elaencostouacabeçanobancodocarroedisseporfim,ignorandoaperguntadele:AiDeus,quenoitelonga.

CAPÍTULO10SONHANDOACORDADA

Rebecachegouemcasacomacabeçacheiadepensamentos.Elapensavaem

Cristianoeno joguinhoqueeleestavafazendo,tudoaquiloerapelodinheiro,elasabia.Aquelepapodequenãoqueriamaiseraconversafiada.PraticamentetudooquerecebiadoavôestavasendogastocomCristiano,atésuaseconomiasestavamdiminuindo.Masqueopçãoelatinha?Desistirdeumavez?

Elatambémpensavanopai,emoquantoqueriaeledevoltaemcasa.Comoelaqueriasentarnosofánomeiodosdois.Estavanoelevadorquandoaimagemdohomemquenãoeraseupai,provavelmenteestariaocupandooespaçoerespirandoo ar que era de Harisson. Esse vislumbre provocou uma onda de estresse einquietação em Rebeca, ela desejou poder ficar invisível e entrar em seuapartamento sem ser vista, mas era impossível. Quando saiu de casa, sua mãeestavapreparandoojantareavisaraqueeleestariaalinaquelanoite.

OelevadorabriuasportaseRebecasaiudele.Oprédiopossuíaapenasdoisapartamentos por andar, ela caminhou pelo corredor à direita procurando aschaves na bolsa. Quando Rebeca abriu a porta deu de cara com o sujeitoesparramadonosofá.Eleestavabemàvontade.

EseguravaocontroledaTV.Rebecaoolhouderelance.Era inadmissívelqueonamoradodesuamãeestivesseocupandoo lugardo

seupai.MasMarina jánãose importavamaisparaoscaprichosdeRebeca,elaprecisavaaceitarquenuncamaisteriaospaisjuntosdenovo,nãocomoqueria.

—Oi—disseela,quandonaverdadequeriaagarrá-lopelacamisae jogá-lopelajaneladodécimoprimeiroandarondeestavam.Nãogostavadojeitodeledesesentiremcasa,foitãorápidoprasejogarnosofáeocuparolugarquenãoeraseu.Amassacorporalpodiapreencheraquelesofá,podiaocuparoespaçonacamadamãe,masnuncaconseguiriaumpedacinhodoseucoração.

—Oi,suamãenãoestá,ela...—Eleouviuaportabaterforte.Rebecaentrounoquartosemnadamaisqueaquele“Oi”oquejásignificavamuitacoisa.

Orapazjáestavaacostumado.Erasempreassim,ouquasesempre.Tinhadiasemqueameninaconseguiasuportá-lo,sereducadapelomenos,mastinhadiasqueelaotratavacomosefossenada,emoutroscomosefosseumbicho,emoutros...

Rebecanãoaceitavaqueamãetivessesubstituídoopai,—“Amorverdadeironãoacabanunca”—diziaelaemdiscussõescomMarina.Elaoviacomoumintrusoquerendoseapossardeumavidaquenãoeradele.

Ela deitou-se na cama e pegou umporta-retratos que ficava namesinha decabeceira. Nele, estava Rebeca aos três anos de idade sentada em um balançopresoaumaárvoreemumlugarlindo,commuitoverde;opaiestavaportrás,dejoelhosbeijandoorostodafilha,elasorria;suasmãosseguravamascordaseasdopai também,umpoucomaisacima,erapossívelnotarao fundoda fotografiaumbelolago.

Rebecaobservouaimagemporalgunsinstantes,depoisacolocounomesmolugar.Encolheu-senacamaeadormeceu.Emalgummomentoouviuamãebaternaportaechamarseunome,masestavatãocansadaqueseentregouàescuridão.

O vento gelado soprou os pés deRebeca. A garota estava deitada na camadormindo profundamente, deitada de bruços. O lençol deixava suas pernasdescobertas.Oscabelosruivosesvoaçavam.Ofriocomeçouaaumentar.Entregueao sono, um pensamento distante, vindo das profundezas de sua mente a fezimaginarqueajanelaestavaaberta.

MasRebecanãoestavaemseuquarto,nãonaquelemomento.Ela abriuosolhoseestavaescuroláemcima.Tudooqueouviaeraobarulhodovento.Océupareciaumapinturaóleosobretela.Rebecalevantou-seecorreuatéoparapeitodoprédio.Elaestavanotetodeumedifíciodequarentaecincoandares.Eoqueelaviuabaixoforamapenasasluzesdacidade,aruailuminadaeváriosarranha-céuscomsuasjanelasiluminadas.

Ela sentiumedo.Voltoua olharpara sua camae viu a si própriadormindo.AquelepensamentoecoounamentedaRebecaquedormia:éumsonho.

Sim,éumsonho,respondeuamentedaRebecaqueestavadepé.Agoraeracomoseelaestivesseemdoislugaresaomesmotempo:emseuquartoconscientedequeestavadormindoetendoumsonhoenoaltodaqueleprédio,livreparafazeroquequisesse.Eracomoseelafosseduas.

A Rebeca que dormia permaneceu deitada, de olhos fechados e sentindo amesmasensaçãoqueaoutraRebeca,aqueagoravoavasobreosprédios.

Ela tomou impulsocomosepulasseemumacamaelásticaea cadadescidaquando seus pés impulsionavam em nada ela subia alto e mais alto, além dasnuvens,enãotinhalimiteparasubir.Acadaimpulso,umasubidafirmequedavaumasensaçãomaravilhosadeliberdade.Elarasgavaocéucomoumfoguete.

A garota que dormia começou a sentir medo da altura, tentou pensar queaquilosetratavadeumsonho,masomedocomeçouadominá-laeaRebecaqueflutuavacomeçouaperderimpulso,elaestavacaindo,caindocadavezmais.

Houvemomentosemqueumaqueriasubirmaisaltoeaoutraqueriaacordar.Precisava acordar,mas não sabia como, não sabia como ir embora. Por onde iapassar?Ondeestavaaportaquea levariadevoltaàrealidade?Oarcomeçouafaltar e a garota começoua cair do céu emumavelocidade assustadora, estavacadavezmaispertodochão,elaiacair.Estavacaindo.

Antesdesechocarcontraoasfalto,Rebecaacordousufocada,semar,comose estivesse presa embaixo d’água e conseguisse chegar à superfície depois demuito esforço. Estava sentada em sua cama, tentando recuperar o fôlego,observandoasparedesdoseuquarto,suacamaesuajanelaaberta.Oventoestavamesmofrio,mastudonãopassoudeumsonho,tãointensoeverdadeiroquantoaprópriarealidade.

Marinabateunaporta.—Rebeca,Rebecaacorde,vocêjáestáatrasadapraescola.Rebecavoltaranesseinstanteàrealidade.Osonhoestavadesfeito,agoraela

eraapenasumaenãopodiavoar.Foiestranhoacharqueaindaeranoite.

—Aimãe,dáprafalarmaisbaixo?—disseRebecaaoabriraporta.—Estoumorrendo de dor de cabeça. — Seus olhos estavam espremidos, ainda seacostumandocomaluzdodia.

Anoitepassaratãorápidoqueelanempercebeu,aindatentavaassimilaraspalavrasdamãe.Quandonotoua luzdodiana janelasedeucontaqueashorashaviampassado.

—Rebeca,oqueestáacontecendo?Vocêandadormindodemais.—Sóestoucansada,tá?Sóisso.—Seapressequetedeixonaescola,vocêjávaiperderoprimeirohorário.—Tudobem,voumearrumar.Atélogo.—Rebecafechouaportaesentou-se

nacama,ficouimóvelolhandoparaochão,esperandoseucérebrorecarregar.Umavezououtraelatinhaessetipodesonho,erasempreintenso.Aprimeira

vezqueteveumdesses,elanãolembra.Noiníciotinhamedo,poissemprequesedavacontaqueestavasonhandoacordavaassustada,elatinhamedodeficarpresalá.Asensaçãoeracomosetivesseviajadoaoutradimensão.

Certo dia, ela ouviu em um programa de televisão algumas pessoascomentandosobresonholúcido,umaconvidadarelatavaumsonhoqueteveemqueela criava asas e voava, Rebeca familiarizou-se e ficou ali diante da TV ouvindotudo.

Acabou por descobrir que esse tipo de sonho era mais comum do queimaginavaeoquemaischamousuaatenção foiodepoimentodeumhomemqueafirmou conseguir controlar seus sonhos, disse que quando percebia que estavasonhando conseguiamanter-se lá e podia experimentar sensações quenomundorealnãoteria.

Depoisdeveroprograma,Rebeca foiparaa internetedescobriuquemaispessoasrelatavamexperiênciascomsonhoslúcidos,muitosafirmavamconseguiremsemanternosonhoporquantotempoquisessemequeessaexperiênciapoderiaserinduzida. Outros diziam que quando se davam conta do sonho sentiam medo eacabavamacordando.

Rebecacomeçouatreinar,algumastécnicasdiziamqueapessoadeviaanotaro sonho ao acordar, repetir mentalmente que iria entrar no mundo dos sonhos,escolher o local que queria viajar, comer certos tipos de alimentos ricos emvitaminaB6,elatentoutudo.Masacaboupordescobrirqueeranosmomentosemque estava mais exausta que conseguia viajar para essa outra dimensão, ondeocorrem os sonhos, pois quanto mais profundo era o sono mais ela conseguiasonhar.

Marinaapressoua filhaparanãosairdecasasemtomarcafé,maselanãoquis nada, disse que comeria algo na escola. A mãe insistiu até que a meninatomasseumcopodeleite.

—Oqueestáhavendocomvocê?—perguntouMarina.Osinalhavia ficadovermelho,algunscarrosestavamnafrentedelas.

—Nada,sópasseianoiteestudando—disseRebeca.Ajovemestavacomacabeçaencostadanovidrodajaneladocarroecomosbraçoscruzados.Elanãogostava de mentir, mas aquela era uma mentira tão boba, tudo bem que nãoestudouanoite,masestudouduranteodia.Aordem,paraela,nãoimportava.—Se

vocêsepreocupassemaiscomigosaberiaqueeutenhoumpré-testevalendopontohoje.

—AhRebeca, nãome venhabancar a vítimaporque toda vezque eu tentosabermaissobresuavidavocêmecortafora.

—Tá,tá,tá...nãoéumaboahorapragentediscutir.Marina respirou fundo,apertouadireçãodocarropara segurar sua língua.

Tudo bem, podia ser culpa dela que Rebeca tenha se tornado uma jovem tãorebelde, que já não soubesse o que se passavana vidada filha,mas ela tentou.Tentouseramelhormãedomundodepoisdaausênciadopai.ElafoitraídaeaindalevouaculpaporRebecanãotê-lomaisaoseulado,aprópriafilhaaculpouefoiissooquedistanciouasduas.

Marinatambémsofreu,seráqueRebecanãoentendiaisso?Seráqueasduasnãopodiamseabraçarecompartilharsuasdores?Marinadecidiuseguiremfrentee reconstruir sua vida, enquantoRebeca decidiu buscar uma formade voltar notempoereconstruirumafamíliaquenãoexistiamais.

O silêncio reinou entre as duas no minuto em que estiveram paradas notrânsito.Rebecagostavadeobservartudo,deumamoscaquepousounopara-brisaaumasenhoraqueatravessavaarua.Elaestudouosmovimentosdotrânsito,viuqueosinalestavaverdeparaospedestresnaruaparalelaaqueestavaeobservouamulheratravessar;depoisregistrouqueosinalvermelhoparaosveículosficaraverde,entãoaquelescarroscruzaramafaixacomoformigasmarchando;entãoosinal da mãe dela abriu e o carro seguiu; ela notou as pessoas na calçadaesperandoosinalabrirparaquepudessematravessar.

Eentãochegouàconclusãodecomoasincroniaeraperfeita.Nãopodiadarerradosetodoscumprissemseuspapéis,seaspessoasnãotivessempressa,seosjovens não gostassem do perigo. A vida podia ser perfeita como osmovimentossincronizadosdotrânsito.Massemprehaviaalguémquenãodormirabemnanoiteanterior, alguém que falava ao celular ou que procurava qualquer porcaria nobancodolado,eosquebebiamdemaiseaindaassimdirigiam.Semprehápeçasdefeituosasemengrenagensmaiores.

OdevaneiodeRebecadurouocaminhotodoatéaescola.SuamãeparouocarroemfrenteaoportãoeRebecaabriuaportasemfalarnada.

—Ei—disseMarina.Rebecapôsumpéparafora,masolhouparaamãe.—Podemosmelhorar.Sousuamãe,nãoseesqueçadisso.

“Eeusousuafilha,nãoseesqueçadisso.”Rebecaquisdizer,maspermaneceucalada.

—Deixaeutedarumbeijo—pediuMarina.Rebecaaproximou-seerecebeuumbeijonatesta.Elasaiudocarroeentrou

naescola.Marinafezacurvaeseguiu.Agoraelatinhadepedirumbeijo.Quandoeracriança,Rebecasaltavaemseu

pescoçoepraticamente lambiaseurosto.Ondeestavatodoaquelecarinho?Nãoerapossívelquetivesseacabado.OconfortodeMarinaeraquesuasamigasdiziamqueeraumafase,quetodoadolescentepassavaporisso,queameninaprecisavadetempo.

Rebecatevedeconvenceroporteiroadeixá-laentrar,poisestavaatrasada.A

escolaeracercadaporummurodecercadeummetroeacimadeleerguia-seumacercadearamecompostesquealternavamgrandesjanelas.

Havia quatro blocos de salas de aula dispostos formando um quadrado. Oestacionamento ficava na entrada dos lados. Grandes palmeiras adornavam afachadadocolégio,destacandoonomedainstituiçãoescritoemaltorelevo:

CLAN

COLÉGIOLAURENTINOANTENOREraonomedofundadordaescolaqueexistiahámaisdecinquentaanoseera

consideradaamelhoremensinoqueexistianacidade.RebecaseguiuparaoBlocoAque ficavaàdireita,naprimeiraextremidade

ficavamosbanheiros,nomeiodeleumgrandepátioenofinalassalasdeaula.Noandardecimahaviamaissalaseláselocalizavaadiretoriadocolégio.

Agarotanãoencontrounenhuminspetoresedirigiuàsalasemserpercebida.

DIÁRIODEREBECA

Meuspaiserammuitofelizesatéminhamãedescobrirquemeupaiaestava

traindo. Não sei como isso foi acontecer, mamãe é umamulher maravilhosa emuitobonita,temumcorpodedarinvejaaqualquergarotadevinteanos.Masnãoerasóisso,elasemprefoiumamulhermuitointeligenteeeducada.Alémdecuidardacarreiradearquiteta,nuncadeixoudelevarocafédamanhãdelenacama,nuncaesqueciademepegarnaescola,nemdeiràsreuniõesdepais,aindaorganizavajantaresespeciaisemfamília.

Eunãoseioqueomeupaiqueriamais,nãoseiporqueelefoiatrásdeoutra.Minhamãeeraamulherperfeitapraele.Eumemagoeicomessasituação,elesdiscutirammuito atémeu pai sair de casa. Ele não queria ir, masminhamãepraticamente o expulsou. Eu sei que ela foi a vítima da história, masmeu paiqueriacontinuareelanãoquismais.Éculpadelaeunãotermaiselecomigo.Nãoimportaoquantoeletenhaerrado,erameupai.

EEUTAMBÉMERAMUITOFELIZ!

CAPÍTULO11BEIJOGELADO

OrapazentrounabibliotecaàprocuradeFelicity.Nohalldeentradaalguns

alunosfaziamfilaparapegaroudevolveralgumlivro,masagarotaqueprocuravanãoestavaali.Eledeualgumas voltaspelasprateleiras enãoa encontrou, nemestava em nenhuma das mesas naquele andar. Então, decidiu subir ao segundoandar,olocaleramaissossegado,haviapoucaspessoaseemumamesanosfundosdoladodireitoestavaquemprocurava.

Asjanelasestavamabertaseocalordosolaqueciaoambiente.Elecaminhouapressadocomosdoispotesdesorvetequeseguravaeamochilanascostas.

Felicityviuocopodesorvetepousarsobreamesaeosdedosmagrosqueosegurava. Seus olhos percorreram da mão, subindo pelo braço até chegar aoqueixo do garoto e finalmente, olho no olho. A garota ficou envergonhada, elepercebeupelasbochechasvermelhas.

—Tudo bem? — perguntou Raphael. — Apesar do calor, minhas mãos jáestavamcongelandocomosorvete.—Eleriuepassouasmãosnacalçaparasecá-las.Tambémestavaumpouconervoso,maseramaispormedodelasaircorrendodalicomonaquelanoiteemqueFelicitynãotevecoragemdeentrarnocafé.Estavaaliparatentardenovo.—Atrapalhovocê?

—Oi, estou bem.— Feliclity fechou o livro de Biologia que estava lendo ejuntouasmãosemcimadele.—Evocênãoatrapalha.—Elaestavanervosaporcontadalista,mastentoudisfarçar.Nemestavaconseguindoseconcentrarnoquelia,suamenterepassavaospassosquedariaquandoodiaescurecesse.

—Possosentarcomvocê?—Claro.—Agarotaperguntou-seseeleaindatocarianoassunto“encontro”.—Oqueestáestudando?—Lendoumpoucosobrecomoocoraçãobombeiaosangueparaocorpo.—Nãogostomuitodebiologia.—Eleempurrouumdoscoposparaagarota.

—Esteéseu.—Obrigada, estámesmo fazendo calor aqui.—No fundo, queriamandá-lo

embora. Tinha um problema gigante para resolver e não achou que omomentofosseparatomarsorvete.

—Gostomais das disciplinas de exatas, estou querendo fazer engenharia evocêjásabeoquevaifazer?

—Querosermédica.—Felicityarrancouacolherzinhaqueestavapresaaopoteeoabriu.

—Quelegal,pretendeconsertarocoraçãodaspessoas?Pronto.Eleestavapuxandoaconversaparaoladosentimental.Seráqueele

iavoltarafalarnoencontrofrustrado?Dizerqueteveocoraçãopartidoeagoracomomédica,agarotateriadeconsertá-lo?

—Naverdadenão,queroserpediatraouobstetracomoaminhamãe.—Ela

nãodeumargemparaqueelelevasseaconversaparaooutrolado.—Aindaestounadúvida,mastempraticamentedoisanosdeescolaainda.Semcontarquetenhoqueestudarmuito.—Felicityexperimentouosorvete,erademaracujá.Quesorteelateve,pensou.Omaracujáaajudariaaficarmaiscalma.—Estáumadelícia.

—Sim,estáótimo.—Raphaelfaloucomabocacheiadesorvete.—Desculpe.—Eleriu.

Ameninanotouosorrisodele,viuqueestavarelaxado.Eletinhaoscabeloscastanhosebemvolumosos,penteadosparacima.Eramagro,masnãochegavaaserumesqueleto.Eraumgarotobonitoepopularnocolégioeestavanoúltimoanodoensinomédio.

—Bom,pramiméoúltimoano.EsperoaprenderalgumacoisanoEnem—falou, se referindo às piadas que surgem na internet após o exame, quando osestudantescontamoque“aprenderamnoEnem”.

—Nãofaçacharme.Vocêéumrapazmuitointeligente,vaiconseguirsedarbem.

— Troca de sorvete comigo, o meu é de morango com chocolate. — EleempurrouocoponadireçãodeFelicilty.—Vamos,nãosejamá.

Felicityempurrouodelaepegouooutro,comumolharquestionador.—Então,pretendoserEngenheiroCivil.Querodirigirgrandesprojetos,sabe?

Sempreadmireicomoohomemconseguiuconstruiressemardeconcreto—dissereferindo-seàcidade.

—Nuncatomeigostopeloscálculos.Gostomesmodaáreadesaúde.—Sequiserpodemosestudarjuntos,euteajudocomamatemáticaevocême

ajuda com biologia, afinal temos que ser bons em tudo, não é mesmo? — Elelevantouassobrancelhas,deixandoumarquestionadoremsuaexpressão.

—Ah, não leve amal,mas euprefiro estudar sozinha.Équeme concentromelhor.

—Tudobem,masoconvitepermanecedepéatéquevocêdigasim.Felicityriu,estavasesentindomaisconfortávelcomapresençadele.Orapaz

estavaapenasbatendopapocomelaeaconversadeleeraboa.—Dizemqueaesperançaéaúltimaquemorre.—Felicitycolocouocabelo

atrásdaorelhaemexeunosorvetecomacolher.—Bom, eu acredito que a esperança nuncamorre. As pessoas são quem a

matam.—Nãosejaduro.Vocênãosabeoquelevaumapessoaamataraesperança.

—Elafezsinaldeaspascomosdedosquandofalou“mataraesperança”.—Vocêsabe?—Tentoimaginar.—Jámatouaesperançaalgumavez?—Nãochamodemataraesperança,masdeacreditaremoutrascoisas,viver

outros sonhos. Quando era pequena queria ser modelo, mas agora quero sermédica.Nãoperdiaesperança,ouamateicomovocêfala,apenasmudeideideia.

—Vocêdesistiudesermodelo,decertaformadeixoudeacreditar.—Nãofoiisso,comojádisse,acabeidescobrindooqueeurealmentequeria.

Alémdomais,achoqueaspessoasprecisamterospésnochão,sonharcomalgo

atingível.Nãoadiantavocêquererpisarnaluaouemmarte.—MasseoMarcosPontes tivesseperdidoaesperança, jamais teria idoao

espaço.—Masissofoiumaexceção.—Nóstemosquelutarparaserexceção.—Vocêémesmoumsonhador.—Énecessárioserumhojeemdia.Aquelegarotoerabomdeargumentos,emboraFeliciltynãoconcordassecom

ele.—Tomeosorvetesenãovaiderreter.Omeujáestáacabando.Entreumapalavraeoutra,Raphaellevavaumacolherdesorveteàboca.—Nãoqueromais,podeficar.Maracujáerameupreferido.Naverdade,FelicitynãotocounosorvetedeRaphaelporqueficouimaginando

queeleenfiouacolherváriasvezesnabocaedepoisnocopodesorvete.Eparaela,issoeraalgoíntimodemaisasefazer.Sónamoradosfaziamisso,pensou.

Depoisdeuminstanteemsilêncio,ogarotoperguntou:—Jáexperimentouumbeijogelado?Felicitycoroucomaperguntaeoencarousemsaberoquedizer.—Éumasensaçãomuitoboa.Deviaexperimentar—completouorapaz.— Como sabe se não experimentei? Nem te dei a resposta — falou quase

gaguejando.—Ouviboatosdequevocênuncabeijou—faloupausadamente,analisandoa

expressãoincomodadadaamiga.—Tudomentira,éclaroquejábeijei.—Felicityalterouumpoucootomda

voz,masnãochegouasoargrossa.—Agradeçopelosorvete,massevocênãoseimporta,precisocontinuarestudando.

—Estámeexpulsando?—Não.Pedindo,educadamente,queseretire.—Tudobem.—Houveumapausa.—Praondevaidepoisdaqui?—Raphael

buscava no seu arquivo de perguntas, qualquer coisa que pudesse prolongar otempocomamenina.

—Tenhoauladenataçãoàsduas.OtelefonedeRaphaeltocou,eraopaidele.— Se quiser experimentar um beijo gelado estou à disposição. — Raphael

esboçouummeiosorriso,elefalavacomcautela,escolhendoasmelhorespalavrasparaevitarparecerumaproveitador.

—Sóqueroqueváembora,pode ser?—Ameninaengrossoua voz,masomeninonãomudouseutomdesafiador.

—Meu pai deve ter chegado, preciso ir— disse ele,mostrando o visor docelularparaFelicity.—Obrigadopeloencontro.

—Encontro?—perguntouFelicityimediatamente,surpresa.— Tomamos um sorvete, conversamos um pouco, agora eu sei que você já

sonhou em ser modelo e agora quer ser médica, que você gosta de sorvete demaracujáetemauladenataçãoàsduasdatardenasexta.Bem,dapróximavezvaisermais fácil te encontrar.—Eles ficaram se olhando por um breve instante e

depoiseleconcluiu.—Éessetipodecoisaqueacontecenumencontro.Àsvezesacontecebeijo,masnemsempre.—Elelevantou-sepegousuamochilaqueestavanochãoeapôsnumombrosó.

Agarotanotouumtomdedecepçãonavozdele.—Ah.—Raphaeljáhaviadadoalgunspassosparairembora,masvoltoupara

dizeralgomais.—Seuprimeirobeijopodeserinesquecívelegelado,nãoesquece.—Elepiscouumdosolhosparaameninaefoiembora.

Felicity abriu a boca para falar algo, mas as palavras travaram em suagarganta.Porqueosgarotossãotãoatrevidos,elaseperguntou.Porquechegamoferecendo beijo como se oferecessem um copo d’água e nem ficam vermelhoscomoelaestava?Equalagraçanumbeijogelado?Elaqueriasaber.

Quandoeledesapareceuameninafoiatéajanelaeficouespiando,queriavera reação dele. Depois de algunsminutos, ela o viu caminhar lá embaixo, estavafalandoaotelefone.EledesligoueFelicityoviudarsocosnoarcomoseestivessecomemorandoalgumavitória.

Garotoseramestranhoseelatinhaumproblemamaiorpararesolveraoinvésdetentarentendê-los.

CAPÍTULO12AINCENDIÁRIA

Àtarde,FelicityfoiparaauladenataçãocomaprofessoraCassandraeteve

um bom desempenho nos treinos, a adrenalina que percorria seu corpo estavasendodescarregadanasbraçadasquedavanapiscina.

Felicitynãotevemuitotempoparapensarcomoiafazeroquetinhanalista.Entãoselembroudesuasaulasdequímicasobreinflamáveisedeumaexperiênciaqueelafezcomumdesodoranteaerossoleumisqueiro.

Apósanatação foiàbiblioteca,deuumasvoltasentreas fileirasesaiusemlevar livro algum. O corredor estava vazio, então entrou no banheiro sem queninguém a visse, checou todas as cabines e viu que estavam vazias, uma delasestavainterditada.

A menina subiu na privada da cabine do lado e conseguiu, com certadificuldade, passar para o outro lado. Limpou a tampa da privada com papelhigiênicoquetinhanamochilaesentou-se.Tinhacheirodemofoeumidade,masficariaaliatéquetodosfossemembora,fechassemaescola,apagassemasluzese,finalmente,poriaoplanoemprática.

Entrou pela noite ouvindo música no smartphone, acabou com a bateria.Algumasbolachasasalvaramdafome.

Ela acordou e nempercebeuquehavia dormido, passou amãono canto dabocaparasecarsuababa.Passavadameianoiteenãoseouviaqualquertipodebarulho.Erahoradeentraremação.Saltoudocubículointerditadoondeestavaetrocouderoupa, tinhacolocadonamochila: luvas,umcasacopretocomcapuzeumacalçamoletom.Vestiutudoesaiudobanheirocomamochilanascostas.

Desceuatéoandartérreoparapegaromaterialdelimpezaqueficavanumasaladebaixodaescada.

Se tinha uma coisa em que Felicity se considerava boa era em arrombarfechadurascomumarame,essemétodoa fascinavae treinoubastantea técnicaquando viu pela primeira vez em um episódio de um seriado policial, vídeos doyoutubeaajudarammuito.Elaseguroualanternacomabocaenquantocutucavaafechaduracomumarame,atéqueumtempodepoisaportacedeu.

Ela pegou um balde e colocou dentro frascos de alvejante, detergente,desinfetanteeoutros líquidos inflamáveisesubiuasescadasdevoltaaosegundoandar.Seucorpotremiaporseunervosismo.Tinhaquefuncionar.Seapegassemestavaferrada,pensou.Osvigilantesficavamnaguaritadaescola,duvidavamuitoqueelespassassemamadrugadarondandopelocolégio.Ealémdetudo,na listadiziaqueelaestariaasalvodosguardasedascâmerasquehavianocolégio.

Felicity chegou ao corredor, diante da porta que dava acesso à biblioteca,metadedelaerademadeiraeapartedecimadevidro,eraumaportafrágil,poisoprédioerafechadoporumportãonotérreo,masestavafechada.Elanãoimaginouque faria isso, mas posicionou-se e chutou a porta com força. O barulho não a

intimidoueelachutoudenovo.Ovidroquebrou-seeaportaabriu.Asestantesestavamposicionadasdosdoislados,nocentroficavamasmesas.

Haviagrandesjanelasdevidro.Felicityviuoespectrodasárvoreseocéunumtomcinza quase se tornando preto. Poucas estrelas brilhavam no céu. Estava sendoguiadapela lanternaqueusava.Ela foi para o ladodireito até a última estante,largou o balde no chão e começou a derrubar todos os livros da prateleira,formando um amontoado no corredor. A luz da lanterna corria solta. Foi para osegundo corredor e derrubou todos de cima abaixo, o suor escorreu pela testaquandosesentiucansada.

Andandopeloterceirocorredor,achouumexemplardePeterPan,umaediçãoantiga,elembrou-sequeesteforaoprimeirolivroqueleranavidaedecomohaviaamado a história domenino que não queria crescer. A lembrança a impediu dedeixá-losetransformaremcinzas,entãooguardounamochila.

Apilhadelivrosquefezemtrêscorredoresteriadesersuficiente.Elapegouos frascosdos inflamáveisedespejousobreelesem linhasaleatóriaseespalhousobrealgumasmesasdemadeira.Porgarantia,elapegoualgunsfrascosdeálcoolquetinhanoarmáriodarecepcionistaedespejoupelochãodesenhandoumalinhaatéàsprateleirasepilhasqueformou.

Felicity tirou damochila um isqueiro de cozinha, daqueles que possuem umcanolongo,eumdesodoranteaerossol.Elaestavaagachadanapontadalinhaquedesenhoucomoálcool.Eramuitoarriscado,nãotinhaideiadecomoofogoiasecomportar,masborrifouo spraynapontado isqueiroqueestavaacesoeo fogoserpenteou,seguindoocaminhotraçadocomoumacobraprestesadarseubote.Entãoofogosubiupelaspilhasdelivrosecomeçouaseespalharcomopoeiraaovento.

Felicitysentiuaadrenalinadevoltaemsuasveias.Sentiumedoeumadornopeito por estar destruindo um grande acervo de conhecimento. Mas não tinhatempoparasentirnada,entãodisparououtraborrifadasobreasmesas.

Ela pegou amochila e a lanterna e saiu correndo dali. Desceu as escadas,ofegante e assustada. Estava no primeiro andar, havia uma janela no final docorredor, teria de descer por ela, era a única saída. Foi fácil abrir por dentro.Haviaumacordagrossaamarradaali,comnósespaçados.Alguémprepararasuafuga.

Felicitydesceu,olhouparacimaeviuqueumaluzalaranjadacrescianajanelado segundo andar. Atrás da biblioteca só tinhamato. Ela correu até a cerca dearame,localizouolocalondeatelaestavaviolada,trabalhofeitoporalunosparafugirdaescola.Estavamuito tranquilo,muitoquieto,haviaalgoestranhoali,elasentiu.

Anoiteestavafria.Felicitycorreunomeiodasárvoressemsaberbemondeestava pisando, tentava se guiar com a lanterna, ela só parou quando ouviu obarulhodeumaexplosão.Olhouparatráseviuumclarãoqueseseguiuaobarulho.Veiodaescolaeelanãoentendeuoquehaviaexplodido ládentro.Desesperada,apagoualanternaeseguiucaminhandonoescuro,aindaconseguiaenxergarcomdificuldade,poisaluaestavaencobertapornuvens.Depoisdenãoaguentarmaisandar,decidiusentaraoladodeumaárvore,encostou-senotroncoeolhouparao

céu.

As pessoas ouviram o barulho da explosão, muitos curiosos e corajosos

começaramasairnarua,osmoradorespróximosdaescolabateramnaportadeoutrospedindoajuda,gritoscomeçaramaecoar.Umhomemarrombouoportãodaescolacomummachado,correuatéaguaritaeacordouovigilanteaosgritos.Ohomemacordoudesorientado,sentindoacabeçapesarumatonelada.

Osujeitolargouomachadoecorreuemdireçãoàbibliotecaqueficavalogodepoisdosquatroblocosdesalasdeaula.Quandochegoupróximoaoprédio,viuafumaçasubindoparaocéu,tornando-oaindamaisescuro.

Apraçaexternacomeçoualotardehomens,mulheresecrianças.Ocorpodebombeiros chegouao local instantesdepois.Alguns rapazes searriscaramadarvoltasatrásdocolégio,masnãoentraramnamata.Apolíciafoichamada,masostrêshomenschegaramquandoofogojáestavasendocontido.Pegaramdepoimentodasprimeiraspessoasqueviramoincidenteedisseramqueseriacomunicadoaossuperioresparaqueiniciassemasinvestigações.

A biblioteca ficou destruída. O teto foi pelos ares com a explosão emuitoslivrosforamperdidos.Ocaostomoucontadamadrugada.

Aindasentadaaoladodaárvore,Felicitypensavaquealgohaviasaídoerrado,

o que poderia ter explodido naquela sala? Perguntava-se. O máximo queaconteceriaeraofogodestruirtudo,nãogerarumaexplosão.Umsomestranhoadeixouassustada.Estavacadavezmaisperto,eradepisadas,dobarulhodegalhossendoquebradospeloimpactodaspassadas.Elaprendeuarespiraçãoesentiuumarrepioaoouvirlatidosdecãesferozes,aindalonge.Estavaimóvel,semsaberoque fazer.Correrprovocariamuitobarulho,mas se ficasseparada,oscãeseaspessoasqueestivessemaliapegariamcomtodacerteza.Então,mesmosabendoquepoderiaserpega,eladecidiucorrer,porquecorrersignificavaqueelaestavatentandoescapar,quenãoseentregaria tão fácil.Seconseguissempegá-la,pelomenosapolíciateriamostradoalgumserviço.

Adecisão foi tomadanuma fraçãode segundos.Antesqueobarulho ficassemaispróximo,seuspéssaíramdisparadosnadireçãodeondehouvessequalquersaída.Elasentiaochãoirregular,pedrasnocaminho,declive,galhosdavamtapasardentesnafacedagarota,nosbraços,emtodoseucorpo.Poralgunsinstantes,ela começou a ouvir não apenas latidos, mas vozes que se misturavam e não

formavamfrasescomalgumsentido.“Elefoipralá”,foitudooqueelaentendeu,mas“ele”?Estavamtodospensandosetratardeumgaroto?Nãotinhatempoparapensarnisso,apenascorrer.

Estavaexaustaepassouaouvirobarulhodaáguacorrente,estavapertodorio.Lembrouquehaviaumaformaçãorochosacomalgunsburacosemquepodiaseesconder.Começouacaminharmaisaliviadapeloperigoterdiminuídoquandoumaluzfortesurgiudoladodireitoquaseacegando.

—Fiquelonge,eutenhoumaarma.—Elarecuouunspassoscurtostentandoseprotegerdaluzcomobraço.

—Nãoseassuste—disseumavozacolhedora.—Nãoestouaquiparatefazermal,vimteajudar.

—Émentira.—Ameninacaiunochãoao tropeçarna raizdeumaárvore.Apavorada,elarastejou,ohomemcorreunasuadireção,fazendoaluzdalanternacorrerpelaflorestafeitovagalume,oquedeixouFelicityaindamaisnervosa.Elanãogritoupormedodeatrairoutraspessoas,poissabiaquehaviamaisindivíduossoltosnamata,mesmoassimomedonãoadeixavaconfiarnaquelehomem.Noseurastejar, localizou um galho solto potente o suficiente para acertar seu possívelagressor.

Quandoohomemchegoupertoparaajudá-la, sentiualgo fortebaternasuabochecha,elegritou,agarotacorreu.Felicityolhouparatrásesóviuovagalumecorrendoloucopelafloresta.Nãotinhamaisforçasparacorrer.Ohomemsejogoucontraela,osdoissaíramrolandopelochão.Elefinalmenteadomouficandoporcimadela.

—Suaidiota,euvimteajudar.Vocêésurda,nãoouviuoquefalei?—disse,com raiva.A vozdo sujeitopenetrounos ouvidosdamenina comoumcalmante.Estavaescuro,masalanternacaiuemumcantoqueiluminavaosdois,entãoelapôdenotarseuslábiosfinossemexerem,seuscabelospretos,apelebronzeadaeabarbaporfazer.Eleapertavaseusbraçoscomforça.

—Estámemachucando.Saiadecimademim.—Eleasoltou,ficoudepéecaminhouatéalanterna.Usavaumcasacopreto,calçajeansebotas.

—Nãotemostempo,Felicity.Vamoslogoantesqueelesvoltem.—Agarotapassavaasmãosnaroupaparaselivrardasfolhaspresasquandoolhoudesúbitoparaohomemaoouvi-lo.

—Comosabemeunome?—perguntou.—Depoisdecumprirminhamissão,euteexplico—respondeu,ríspido.—Missão?Equalésuamissão?—Protegervocê.Latidosdecães.—Vamossairdaqui,agora.Os dois correram mais alguns metros. Ele sempre ajudando a garota,

segurando-aquandonecessárioparaevitarqueelacaísse.Felicitynãosabiaquemera,masestavaconfiando.

—Quemtemandou?—perguntou,enquantoandavamapressados.—Creioqueamesmapessoaquetemandouatearfogonaescola.—Quemtedissequeeuateeifogonaescola?

—Oquevocêestáfazendopelamataumahoradessassenãoateoufogonaescola?

—Tudobem,masmefalecomovocêsabemeunome?Comosoubequeestariaaquiprafazeroqueeufiz?

—Vocêperguntademais,nãotemostempoagora.Vamos.Depoisdeandaremmaisalgunspassos,Felicityfalou:— É claro. — A ideia veio como um clarão. — Você é aquele maldito

apresentador.—Elaparou.—Você tem uma boamemória pelo que vejo— disse o homem voltando-se

paraela.—Masnãosounenhummaldito.—Vocêestádiferente,masreconheçosuavoz.Vocêestáportrásdissotudo?

—perguntouFelicity.—Não,não tenhonadaaver, jádisseaqueledia.Acontecequeeu também

estou sendo chantageado. Quer dizer, não é bem uma chantagem. Eu sei que apessoaqueestátramandoissotudocomvocêstemalgoimportantequeeuquero.Tenhoapenasquerealizaralgumastarefaspraelemedaroquepreciso.

—Emeprotegeréumadesuastarefas?—Sim.—Porquê?—Olha,nãotemostempopradiscutirissoagora,maspensequeelenãoquer

causarmalavocê.—E você não acha que ele já causoumal suficiente? Aliás, como sabe que

trata-sedeleenãodela.—Olhaeunãosei,apenasogêneromasculinoéoqueprevalece,porissofalo

“ele”enão“ela”,massepreferirpossomudar.Eles chegaram ao rio, a água escorria por uma cachoeira a algunsmetros,

davaparaouvirobarulho.Desceramaencostacomcuidado,ohomemseguravaamãodagarota.

—Estoucommedo.—Entãoagarre-seemmim,certo?Eváguiandoocaminhocoma lanterna.

Tireseucasacotambém,vamoscolocá-losnasuamochilapranãomolhar,celulartambém. — Estava tirando o casaco quando começou a falar. Ele entregou osobjetoseentrounaágua.Felicityfezquesimcomacabeça,guardou-oseoseguiu.—Sótomecuidadopranãomeenforcar.—Elariuearfouaosentiraáguageladaqueestavanaalturadopeitodele.

Com dificuldade, o homem ia caminhando na água, dando braçadas,impulsionando-oscomospéstocandonochão.Agarotatentavamanteralanternadirecionada ao outro lado do rio. A correnteza estava fraca. Quando chegou dooutro lado, segurou-se emumapedra e ajudou a garota a subir em terra firme,depoiselesaiusozinho.Estavamencharcados.

—Temumaspedrasalinafrenteondepodemosnosesconderembaixodelas,éseguro,vamos.

—Apolíciaestavaatrásdevocê?—perguntouFelicity.—Naverdade,estavamatrásdenósdois.Devocê,portercolocadofogona

escolaedemimporterterminadoseutrabalhosujo.

—Aexplosãofoivocêquemprovocou?— Exatamente. Quando entrei na mata atrás de você, eles já estavam

rondando o local, então acho queme ouviram correr e colocaram aqueles cãesatrás de mim. Eu os despistei, deixando alguns pedaços de carne atrair oscachorros,depoiscorteicaminhopra tentar teachar.Foidifícil,masconsegui—falavaenquantoandavamatéchegaremaolocal.

—Obrigadapelacorda.Vejoquetambémfoivocê—disseamenina.—Sim.Aindadeicontadedoisvigilantes.Umficoucaídoao ladodoprédio,

esperoqueoencontrem.—Vocêomatou?—perguntouagarota,apavorada.— É claro que não. Só deixei o caminho limpo para que ninguém te

atrapalhasse.Eles chegaramao local, erapraticamenteumacaverna, o bomeraquenão

estava úmido e o vento não entrava. Felicity jogou a mochila em um canto,enquantoohomemtiravaaroupa.Alanternaoiluminavaeelaviuseupeitoralbemtrabalhado,notouquetinhapelosescuros.Quandoeleabriuozíper,eladesligoualuz.

—Nãoquermeverpelado?—Essenãoéumbomlugarparaficarpelado.—Anda,tirasuaroupatambém.Ficardoentevaiserpior.Elacomeçouasedespirnoescuro,tirouablusa,ostêniseacalça.Sentiafrio.—Liguealanterna,porfavor.—Felicityligoueapontouparaele,oviusóde

cuecaeficouincomodada,miroualuznorostodele.—Vaimecegardessejeito.Ondeestámeucasaco?

—Namochila,ali—indicouolocalcomalanterna.—Pegaomeutambém.—Ele tirouseucasacoevestiu.Esfregouasmãose jogouapeçade roupaparaagarota.—Obrigada.

Felicity sentou-se, preferiu proteger suas pernas no frio com o casaco. Ohomemficouaoladodela,sugeriuqueaabraçasseparaprotegê-ladofrio,maselarelutou.

—Nãoprecisa.—Vocêestátremendo.Seencostaemmim,pelomenos.Tenhoquetemanter

asalvo.—Nãoquero.SeunomeéTony?—Não,mechamoEdgar.Prazeremconhecê-la.—A lanternaestavaacesa

entreosdois.Elaapagou.—Prefiroseuverdadeironome.—Gostadoescuro?—perguntouEdgar,soandosarcástico.—Nãometoqueoueugrito.—Nãovoufazernadacomvocê.Tentedormirumpouco,iremosemboraantes

dodiaamanhecer.Precisamostercertezadequenãoestãomaisporperto.Eraestranhoestarali comumdesconhecidoemesmoassim terqueconfiar

nele.Não fosseEdgar, talvez a polícia a tivesse pego. Ela se perguntava se elesabia o que tinha acontecido com ela, sentia vergonha só de imaginar que elesoubesse.

Olocalemqueseencontravaeraumacavernaescura,úmidaesabe-seláquebichos teriam ali, mas achou que era melhor não pensar mais. Seus olhoscomeçaram a pesar. Edgar também não resistiu e os dois adormeceram poralgumashoras.

Felicity acordou com dores no corpo e desorientada, não soube em quemomentodanoitedeixou-secairnosbraçosdeEdgar.Elasedesvencilhoudocorpodeleconstrangida.Erapossívelverqueanoiteestavaindoembora.

—Ei.—Elabalançouoombrodele,enquantovestiaseucasaco.—Acorda,precisamossairdaqui.

—Haaan.—Elaouviuapenasumroncodeleeosacudiumais.—Vamos,acorde.—Oi,dormiubem?—perguntou,comdificuldadepararecobraraconsciência.—Não senti frio, graças a você.— A garota estava vestindo a calça e em

seguidacolocouostênisqueestavammolhados.Lamentounãotê-loscolocadonamochila, mas de qualquer forma não teve tempo para pensar nem achou quecoubessetambém.

—Issodói—reclamouaoreceberafiveladocinto,presoemsuascalças,nacara.

—Desculpe,vista-selogo.Edgarvestiuascalçasecalçousuasbotasaindamolhadas.—Vamoscaminharmaisumpoucoatéchegarmosaocarro.Achoqueaindasei

ondedeixei.—Uau,vocêpensouemtudo.—Vocêestáemboasmãos,garota.EdgareFelicitysaíramdacaverna.Láforaaindafaziafrio.Océuestavaazul

escuro,jáerapossívelenxergarbemmelhor.Empoucotempo,osolmanchariaocéucomumtomlaranja.Depoisdeumaboacaminhada,chegaramaumlocalondeocarroestavaescondidoatrásdealgumasárvores.

— Toma. — Edgar entregou uma garrafa, que pegou do banco de trás, aFelicity.

—Obrigada.Elegirouachaveeomotorcomeçouafazerbarulho.—Agoraconsigotevermelhor,vocêémuitobonita.Felicityestavatomandoáguaequaseengasgou.Elatambémoadmirava,viaclaramenteosolhosnegros,cabelosescurosbem

cortadoseosorrisodehomembondoso.Eraengraçado,poisFelicitysabiaqueeleeraumhomembomeomelhordetudoeraqueessesujeitoadeixavatranquila.Quantoaoelogioelanãorespondeunada,apenasesboçouumsorrisotímido.

—Vá,não fiquetímida.Vocêtambémestámeachandobonitoagoraquemevê?—Ocarrojáalcançavaapista.—Nossa,andamosmuitonomeiodessemato,ficamosumpoucodistantedacidade.—Ele ria, comoseachassegraçade tudoaquilo.—Vocêécorajosa,menina.

Elaquisdizerqueeleerabonitoequehaviapercebidoissomesmoquandoeleestavafantasiadonaqueleprogramaridículo,masdisse:—Aindanãopresteibematençãoemvocê,desculpe.

—Fico lisonjeado—ele faloucomose tivesseouvidoumelogio.—Masmedigaoquevocêfezdetãogravepratersemetidonissotudo?—Elaolhoupelajanelado carroe ficoupensativaporum instante.Sentiu-sealiviadaporelenãosaber.Masseráquenãosabiamesmo?

—Seeupudessecontarnãoestariaaquicomvocê,entãobastasaberqueeuestounumaenrascada.

—Tudobem.—Edgarbalançouacabeçaemsentidoafirmativo.—Eutenhoordensdetedeixarseguraemcasa.Ondevocêmora,podemedizer?

Elalembrou-sedeumapassagemdolivroPeterPan.Seusolhosbrilharamaoresponder:

—Segundaestrelaàdireita...—“diretoatéoamanhecer”foipronunciadoaomesmotempopelosdoisviajantes.

CAPÍTULO13OSEGREDODEFELICITY

Felicity nasceu do primeiro casamento de Christine. Seus pais eram muito

jovensemantinhamumrelacionamentodeidasevindas.Emumadasbrigasquetiveram, Eduardo conheceu outra jovem com quem tentou esquecer sua amada,maspoucotempodepoisChristinedescobriuqueestavagrávidaeoprocurouparacontar. Ele ficou confuso, sua nova garota estava fazendo-o feliz, mas o bebêmudoutudo.EleaindanãohaviaesquecidoChristine,eElisatambémnãomorriadeamoresporele.

Christine tinha vinte e um anos e cursava o quarto ano da faculdade demedicina, ela ficou apavorada com a ideia de sermãe antes de se formar, masEduardo, que já eramédico recém-formado, foi seu alicerce para não se deixarabater. O jovem a pediu em casamento. Eduardo estava certo do que estavafazendo, estava feliz coma ideiade serpai e entendeuqueaquele eraumsinaldivinodequeChristineeraamulherdesuavida.

Elisa foigentil,o incentivoua formarsua família,dissequeoqueaconteceuentreelesfoialgopassageiro,incapazdesetornaralgomaisdoquefoi.

EduardorecebeuChristinenoaltarquandoelaestavacomquatromesesdegestação,umalevebarrigajáaparecia.Eledissesimcomconvicção,elasorriuenaquelemomentoachouqueseriaaúnicavezemsuavidaquediriasimparaumhomem.Elea levouaomédicováriasvezes,abriaaportadocarroparaelaeaajudavaacaminharquandoFelicityjáestavaenormenabarrigadela.Acompanhoucadamomentodagravidezdamulher,seemocionouquandoouviupelaprimeiravezocoraçãozinhobater,quandodescobriuosexo,quandoaviusemoverdentrodeChristine.

A gestação fez Christine ter certeza de que queria seguir a carreira deobstetra.Seumaridoseespecializavaemcardiologia.

Ameninanasceucheiadesaúde,oscabeloseramloirinhos,comoosdamãe,eseusolhoseramverdes.Eragordinha,combochechasmacias.Mascomosmeses,elafoificandomaisfininha.Eduardosentia-serealizadocomohomem,estavafelizaoladodamulheredafilha.OcontatoquetevecomElisaapósdeixá-lafoimínimo,aindatrocaramumaligaçãoououtra,seencontraramporacasoalgumasvezes,elasemprefoieducadaeperguntavapelafilhaqueaindaestavaparanascer.EduardoaindatevealgumalembrançadelaenquantoestavacomChristine,masacreditavaqueerasóumalembrançacomotinhadeoutrasgarotastambém.

Christine sabia da existência da outra, mas acreditou que tinha sido umaaventura domarido e preferiu não se importar com ela, Eduardo a escolhera eestavasendoumbommarido.Otempopassou.FelicityfezdoisanoseestavacadadiamaislindaeEduardomaisfeliz.

AtéqueumdiaElisavoltou.Elavoltouparasuavida,paratirá-lodeChristine.Elisanuncaesqueceraos

momentosquetiveracomEduardo.Elatentouseenvolvercomoutrohomem,masàmedidaqueotempopassavamaisselembravadele.Então,sorrateiramente,elase infiltrounavidadeEduardo,passoua ligareaprovocarencontrosaoacaso.Eduardo não saberia explicar o que houve com o sentimento que tinha porChristine,muitomenosoquefezrenasceralgotãopequenoquesentiraporElisa.Aconteceu,elediria.

Enumanoite,Elisajáestavaarrancandoacamisadeleenquantoobeijava,elasentiaasmãosdeEduardosubindoporsuascostasemomentos intensosdepois,Eduardocaiudecostasnacamaaoladodela,eaondadearrependimentoveioemseguida. Mas bastou que os dias passassem para que ele deixasse escapar umsorrisosafadonorostoquandoselembravadanoitequetiveracomela.

Algodentrodeleseacendeu.Umapaixãoloucaedesenfreadatomoucontadosseusinstintos.Christineestavaàsvoltascomaformaturaeodeixavacomtempolivre.Elisatevecertezadequeoamava,masEduardoaindatinhadúvidas.Elisaaceitouseraoutra.

Doisanossepassaram.OcasamentodeChristineesfriaradecertaforma,asdesconfiançascomeçaram.Elapassouainvestigaravidadomarido,ligavaparaohospitalparatercertezadequeeleestavadeplantão,procuravasaberoshoráriosqueelechegavaequesaía.Masantesqueelapudessedescobrirtudo,elecontou.

Contou que queria desistir do casamento. Ela o acusou de traição, ele nãonegou, mas não deu detalhes, disse que Elisa havia voltado pra vida dele faziapoucotempoequetinhaacontecido,alegouqueorelacionamentodelesesfriaraequenãoqueriaenganá-la.

—Nãoacreditonisso,vocênuncaadeixou.Fuienganadaessetempotodo—vociferou Christine na época. — Eu fui burra, burra. Confiei em você, jamaisduvidei.

—Claroquenão,eufuisincero—disseEduardo,gritandoemsúplicatentandoconvencê-la.—Mastemcoisasqueacontecemefogemdonossocontrole.

—Sincero?Vocêfoiumhipócritabancandoobommarido,obompai.Presenteemtodososmomentos,masportrássempreteveoutra.

Nessamanhã,afilhadelesestavanaescolaenãosabiaqueospaisestavamprestes a pôr um fimno relacionamento.O início da separação foi difícil para amenina,elaenchiaamãedeperguntasesemprequestionavaquandoopaivoltariaamorar em casadenovo.Christine apenas dizia que a partir daquelemomentocada um teria uma casa e ela teria duas, as respostas eram sempre as quemostravamalgumavantagemparaFelicity.

Otempopassoueameninaseacostumouaterduascasas.Christine conheceu Fernando quando a filha tinha oito anos. Ela não tivera

algum relacionamento sério depois da separação e estava em um momento defragilidade.Decidiu-sedaroutrachanceecomeçouasaircomele,aospoucoselefoi fazendo parte de sua vida. Meses depois ele já pegava Felicity na escola.Christine a deixava na casa dos pais quando queria passar alguns dias comFernandoeexperimentardenovoavidadecasadasemfilhos.Elaoapresentouaospais,oficializouonamoroequandomenospercebeuelejáeraseumarido.

Felicitynãogostoudaideiadeteroutrohomememcasaquenãofosseseupai.

Sua mãe procurava não forçá-la a aceitar, deixou apenas que o tempo seencarregassedisso.ChristinequeriaqueFelicityovissecomoalguémdafamília,ela se sentia segura por ter umhomemao seu lado. Fernando esforçou-se paraconquistaramenina, logoeleganhouaconfiançadelacomseu jeitodespojadoefazendo algumas vontades da enteada. A garota que sempre ficava com os avósquandoamãetinhaplantõesmédicospassouaficarcomopadrastoemcasa.

Ela tinha onze anos quando tudo começou.Foi emumanoite emque ficarasozinhacomele,estavatomandobanho,cantandonochuveiro.Costumavasempredeixar a portadobanheiroque ficavanoquarto aberta.Felicity soltouumgritoquandoviuafiguraaltadeFernandonaporta.

—Nãopodeentraraqui,estoutomandobanho—disseamenina.Elavirou-sedecostasparaquenãoavisse.—Vaiembora.

—Menina,nãoprecisaseassustar.Eusouseupai—disseFernandonumavoztranquilizadora.

—Vocênãoémeupai.—Ameninacontinuavaimóvel,olhandoparaochão,vendoaáguaquecaíadochuveiroescorrerpeloralo.

—Tudobem,eusóqueriasabersevaiquererpizza.Voupedir,vocêquer?—Não.—Estoudecostas fazumtempão,vire-se.—Eleviroudecostasnomesmo

instanteemqueFelicityvirouorosto.ElaacreditouqueFernandoestavanaquelaposiçãohámaistempo.

—Queroquesaia.Elesaiueagarotafechouaportadobanheiro.Emoutraocasiãoeleentrouvendadonoquartodamenina,anunciandoemvoz

altaqueentrarianoquartodaprincesa.Elariudacaradeboboqueelefez,nessediaameninaestavadeitadanacama,eladissequeelepodiatiraravenda,poisnãoestavanobanho.Dessavez,elaaceitouapizzaeosdoisseencheramdemassaanoitetoda.

Elepassouapegá-lanocoloelevá-laparacamacomoumpaifariacomsuafilha. Mas uma noite, ele ficou deitado ao lado dela e esperou que dormisseprofundamentecomaajudadocalmantequecolocounosuco.

Eleatocou.Efezdenovoemoutraocasião.Umdia,elaacordou.Deimediatoelanãoentendeuoqueeleestavafazendo,

masquandopercebeupediuqueeleparasse.Elacomeçouachorareeletapouabocadela.

Elechioucomodedoindicadorencostadonoslábiospedindoqueelafizessesilêncio.

—Dizpramimqueméaloirinhadopapai.Felicitytentoutiraramãodele,masnãoconseguiu.—Dizpropapai:eusoualoirinhadopapai—elefalavasussurrandoaoouvido

dela.Fernandovoltouapraticarabusoquandoficavasozinhocomela.Asameaças

demortelogosurgirameameninafoitomadapelomedo.Elaviveusufocadaporalgumassemanasatéquecontouparasuaprofessora,choroudesesperadapedindo

quenãocontasseàmãe.Quando Christine soube, não quis acreditar. Ela estava apaixonada por

Fernando.Mas perguntou a Felicity e a resposta que ouviu foi um abraço forteseguidodochoroeChristinesentiuraivadesiportersidoumapéssimamãe,sentiupenadaquelagarotinhaesesentiuincapazdeprotegê-la.

—Elevainosmatar,mamãe—disseameninanaépocaentreossoluços.—Não vaimeu bem... antes eu omato. Te prometo— falou, esmagando o

corpodafilhaentreseusbraços.OódiocresceudentrodeChristinecomoumachamaflamejante.Maselanão

contou para ninguém porque a filha implorou, ela não queria que as pessoassoubessemeestavacommedodemorrer.

FernandonãopôsmaisospésnacasadamulherdepoisqueChristinesoube.Elachamouumchaveironomesmodiaetrocoutodasasfechaduras.

—Amor,nãoestouconseguindoabriraporta—disseFernandoao telefonequandoelaatendeusemdizeralgumapalavra.—Chris,estámeouvido?—Cadapalavraeracomoumafacarasgandoapeledela.

—Voutedarduasopções—falouChristine,suavozsooufria.—Aprimeiraé:euabroaporta,vocêentraeencontraocaminhoparaoinferno;ouvocêpegasuasroupasqueestãonolatãodelixoecomeçaacorrerpralonge,praumlugarondeeununcateencontre.

—Vocêficoulouca?—disseFernandoaoseaproximardobaldedelixoeverseuspertencesládentro.—Chrisquepiadaéessa?

Christine desligou. Ela estava na janela do primeiro andar da casa,observando-onarua.Elechutouoportãoedepoisentrounocarroepartiu.

Pelaspalavrasdela,elededuziuqueameninahaviacontadotudo.Certo dia, Christine levou um susto ao encontrar a filha com as mãos

manchadas de vermelho. Ela achou que podia ter sido algum corte grave, masquandoviuoscabelosdameninadamesmacorentendeuqueaquiloeratinta.Elacaiudejoelhosnochão.Umalágrimaroloupelorostodamenina.Amãeaabraçouedissequeafilhaeralinda,quenãoprecisavamudaracordocabelo,masFelicityinsistiuquenãoqueriamaislembrardeletodavezqueseolhassenoespelho,entãoChristineaajudouatingirosfiosclaros.

A psicóloga pedia que Felicity escrevesse sobre seus medos, dizia para ameninaqueissoaajudariaasuperá-los.Aterapiadaescritapassouafazerefeitoeameninapassouapreencherdiáriosrapidamente.

Mesesdepoiselanarrouumacenadeumtraumacomtodososdetalhesemumdiárionovoquenãoconseguiudestruí-locomofezcomosdemaistemposdepois.Odiárioquelhefoiroubado.

EfoiemumanoitechuvosaqueFernandovoltouparaqueChristinecumprisse

sua promessa. Entrou sem barulho na casa depois de arrombar as fechaduras.Andouemdireçãoaoquartodaex-mulher,estavammãeefilhadeitadas,embaixodocobertorcomatelevisãoligada.OgritodameninaacordouChristine.

—Fernando,vaiembora—disseChristineaovê-lo.Felicityestavaagarradaàmãe.

—Sentisaudades—disseFernando.Seuscabelosestavammolhados,abarbacrescida eusavauma jaquetapreta.Um lampejo azul sedesenhouna janela, ospingosdachuvaescorriampelovidro.Elepuxouaarmadacinturaeapontouparaas duas. Christine estremeceu e Felicity se desesperou, gritava e choravacompulsivamente.

—Nãofaçanadacomela.—Amulherlevantou-se,colocandoameninaatrásdesi,tentouaproximar-se,masfoiimpedida.

—Paratrás,putas.Pensaramquepodiammehumilhareficarporissomesmo?Não, as duas vão provar do macho aqui. — Christine viu ódio nos olhos deFernando.

Umacanecadechocolatequentefumegavanamesinhaqueficavaaoladodacama,bempertodeondeFellicityestavausandoocorpodamãecomoescudo.Agarotaestavaesperandoesfriarparaquepudessetomá-lo.

FernandotirouumasalgemasdobolsoepediuqueChristinecaminhasseatéele comasmãos estendidas para frente, amulher dispôs os braços e antes quedesseoprimeiropasso,numatodecoragem,Felicitypegouacanecaesaiudetrásdamãe,rápidacomoumraio,imaginandoquelevariaumtiro.MasFernandonãotevetempodesegurarorevólveraosentirochocolatequeimarsuaface,aarmacaiunochão,Christineouviuogritodameninaeaoverosujeitocomasmãosnorosto e urrando, ela se jogou contra ele nomesmo instante, levando o corpo dohomemdeencontroàparede.

O impacto foi forte, bateu com a cabeça e caiu no chão, desacordado.Nãosatisfeita,amulheragarrouemseupescoçoantesquesereanimasseeoesganavacomódio,Felicitygritavaparaqueamãeparasse.Masfoiemvão.Fernandoabriuosolhos,semfôlego,tentouagarraropescoçodamulher,maselafoimaisrápidaeantesdissopegou-opeloscabelosecomeçouabateracabeçadelenochãoatéqueficassedesacordado.

—Acabou—disseparasuafilha,emestadodechoque.—Elenuncamaisnosfarámal.

—Mãe,vocêomatou.—Felicityestavaaosprantos.—Acabou,querida,acabou.—AexpressãodeChristineeradedoreraiva,

sentiaumatristezaprofunda,masnãoconseguiasoltarumalágrima.—Temosquetirareledaqui—disse,voltandoasi.—Escute,vápegarumpanoeumabaciacomágua,vocêvaiterquemeajudaracolocá-lonocarro.

Ameninafoidesesperadaatrásdoqueamãepediu.Christinefoiatéocarroque estava em frente à sua casa e o pôs para dentro. O céu parecia estardesabando, a ruaestavadeserta.Elaarrastouo corpodeFernandoeo colocoudentrodocarro.

A mãe pediu que sua garota voltasse para casa e se trancasse no quarto.Christinedirigiuporumaestradaperigosaqueiadarnorio,quenãoficavamuito

longe,comdificuldadedevidoaolamaçalqueseformava,chegouemumpontonoqualouviaobarulhodacorrenteza,aságuasestavamferozes.Elausavaumatoucanacabeçaparaevitarquefiosdeseucabeloficassemnocarro,luvasdelimpeza,casaco, calça e tênis. Limpou tudo o que pôde no carro com um borrifador quelevaraconsigo,moveuocorpodeFernandoparaobancodomotorista,pôsamãonopescoçoesentiuqueeleaindaestavavivo.Bateuaportacomforçaedeixouovidrodocarrocomumaaberturaparaqueaáguapudesseentrar,usoutodasuaforçaparaempurraroveículoladeiraabaixo.

Elasóouviuobarulhodocarroentrandonaágua.AchuvaficavamaisforteeChristinevoltouparacasapelomatagal, chegou todaensopada,ameninaestavadeitadanacama.

Anoitefoidifícilparamãeefilha,ambasnãodormiramquasenada.Christinecantava uma musiquinha para que Felicity pudesse dormir, mas sempre que agarota conseguia fechar os olhos ela entrava em um pesadelo e acordavaassustada.

O corpo de Fernando foi encontrado semanas depois quando as chuvascessaram,afamíliaveiodesesperadareconhecerocorpo,masfoiimpossíveldevidoaoestadodedecomposição,ocarrodelefoiaconfirmaçãoemaistardeosexamesdeDNA.Christineagiucomfrieza,fazendoopapeldamulherabandonadaeagoraviúva,chorouempúblicoeorientouameninaanãodemonstrardesesperoalgum.Felicitychorava,passouváriassemanassemiràescola.

Diasdepois,asduas forammorarnacasadosavósdeFelicity, foiquandoameninaencontrouoconsolodequenecessitava, tinhaosavóstodososdiasparaespantaromedoquesentia,ficouassustadacomaprópriamãeporunsdias,masdepoiscolocounacabeçaque tudooqueela fez foiparaprotegerasduas.Elaspoderiamestarmortas.

Apolíciaconfirmouamorteporafogamento.Ocorpofoiencontradoforadocarro.Oshematomasnacabeça,segundoapolícia,foramcausadospelaspedrasdorio.Aparentementeforaumacidentedevidoaofatodeestaralcoolizado.

Porém,osirmãosLucaseCaioBarcellosnuncaseconformaramcomamortedoirmão.ElesprocuraramChristineparaobteralgumainformação,masamulhermostrou-se chocada com o que acontecera. E Fernando nunca mencionou aosirmãos omotivoda separação, nemmesmo inventoualgum.Eles acharamqueaseparaçãoforaamigável.

Felicityestavanoquartoquandoouviuosdoisjuraremvingança.Caiofalou,chorandoparaChristine,quevingariaamortedeFernandoseum

diadescobrissequealguémprovocaraaqueleacidente.Desse trauma, Felicity não podia conversar com sua psicóloga. Christine

orientoubemafilha,elafoiimportanteparaqueameninanãosurtasse.A formaqueFelicityencontroudegritarseusmedos foicolocandonopapel,

exatamentecomosuamédicalhedissera,escrevendo.Elanarroutodososdetalhesdaquelanoiteemseudiárioeoguardouconsigoatéquealguémoroubou.

TrêsanosdepoisdamortedeFernando,Christineconseguiucasar-secomumhomem, ainda dos tempos de escola. Ela pediu perdão à filha, disse que nãoconseguiaviversozinhaapesarde tudoequeprecisavarecomeçar.Felicity ficou

comosavóspordecisãodeambas.Agarotanãotemiaqueaquelediáriofossepararnasmãosdapolícia,elatinha

medoquecaíssenasmãosdosirmãosBarcellos.Esuamãeestavafeliz,casadaecomgêmeosdenovemeses.ElanãopodiaestragaravidadeChristine.

Aquiloeratudoculpadela,podiamesmoterdestruídoodiário,masomanteveintacto.

CAPÍTULO14OOURODOMUNDOTODO

RebecaestavaajoelhadafazendoreverênciaaoreiCristiano.Ohomemtinha

umabarrigamaiorqueaverdadeira.Suacoroadouradabrilhavacomoosol.— Isto foi tudo o que me conseguiu? — perguntou o rei, soltando uma

gargalhada.Diantedelehaviaumsacocommoedasdeouro.Algunsdegrausseparavamo

trono dele da jovem guerreira diante de si. Havia guardas armados que maispareciam robôs segurando suas espadas. Um deles lhe chamou atenção pelaaparência.

—Achamesmoqueissopagaumavida?—insistiunosarcasmo.Rebecalevantouacabeça.—Jánãoéobastantejuntandocomtodooouroquejátrouxe?—Meninatola.Quandodissequeprecisavadetodooourodomundoeuquis

dizerexatamentetodooourodomundo.Dosquatrocantosdoplaneta.—Mas isso é impossível— ela falou, sentindo que sua luta estava perdida.

Quando o rei falou pela primeira vez, achou que estivesse apenas dizendo queprecisavademuitoouroechegariaumdiaqueeleficariasatisfeito.

—Coisasimpossíveissãocaras,menina.—Tenhoumapropostamelhor—eladisse.Oreicurvouopescoçoemsuadireção.—Seéouroquevocêquer,possotedarmaisouroqueaquantidadeexistente

nomundo.Oreilevantou-sedotrono,caminhouatéajovem.—Levante-se.Elalevantou.—Ondearranjariatantoouroassim?Rebecadesembainhousuaespada.—Segure-aeobserve.Oreidispôsaespadanaspalmasdasmãos.Rebecatiroualuvadamãodireita

eatocou.Osolhosdoreisearregalaramquandooaçocomeçouamudardecor.Ficoudourado,todaaespadaficoudourada.

—Mascomofez?Éalgumtipodebruxaria?Rebecaoencaroucomumolhartriunfante.—Issoéouro—disse,comasmãossobreaespada.—Possotransformaruma

infinidade de objetos em ouro. Posso dourar este salão inteiro. Liberte-me dapromessadetetrazertodasasmoedasdomundo.

Eleandoudeumladoparaooutro,tamborilandoosdedosnatesta.—Jásei—dissedesúbito.—Queroumreino.Umreinotodofeitodeouro.—Masissoéimpossível,custariaminhavida.—Jádisse:coisasimpossíveissãocaras.Éaúnicamaneiradetrazerohomem

dasuavidadevoltaaomundodosvivos.Pareceuqueomundo todoentroupelabocadeRebecaquandoelaacordou

semar,sufocadaeassustada.Seutelefoneestavaaoladodelanacama,tocando.Elarespiroufundotrêsvezeseconseguiudeslizarobotãoverde.

—Pai—falou,sentindo-semaisaliviada.—Alô?Pai,estámeouvindo?—Oimeubem,agoraestououvindo.Estátudobem?Suavozestáestranha.—Estoubem.—Rebecaapoiouascostasno travesseiro.Os fragmentosdo

sonho ainda estavam em suamente. — É que tive um pesadelo, acordei com ocelulartocandoefiqueiumpoucoassustada.

—Desculpetê-laacordado.Nãosabiaquejáestavadormindo.—Ah,osenhormesalvoudasgarrasdeumrei,nãotemporquêsedesculpar.—Ah,é?Quereimalvadoéesse?Contacomofoiessesonho.— Foi estranho, não lembro muito bem. Eu era uma espécie de princesa

guerreira, não sei...Achoque tinhaalgumacordo como rei.Eu tinhaque levarouropraele.Entãotemumapartequelembroquetenhoopoderdetransformartudooquetocoemouro,daíelepedequeeuconstruaumreinodeouroemtrocadeletrazeroamordaminhavidadomundodosmortos.

—Nossa,ocomeçodessahistóriaestavaaté interessante.Entãoquerdizerquevocêestáapaixonada?Queroquemeconte isso,donaRebeca.Vocêémuitonovaparaterum“amordavida”.—Elereforçouasduasúltimaspalavras.

—Nãosepreocupe,foisóumsonhobobo.— Assim espero, você ainda é um bebê pramim, não quero que pense em

namorarnemtãocedo.Eemcasatudoempaz?—VocêsabequeaúnicacoisaquenãovaibeméotaldoVitor.Nãomedesce.—Precisasermaisflexívelcomele.Podemseramigos.—Nunca,nunca,nunca,meouviu?Tenhoasensaçãoqueelequerseulugarno

coraçãodamamãe.— Meu amor, você sabe que já nos resolvemos faz tempo. O Vitor está

conquistandoopróprioespaçonocoraçãodasuamãe.—Ah,nãoquerofalardele.— Tá bem, meu amor. E a escola como vai? Se saiu bem na prova de

matemática?Acabeiesquecendodeteperguntardaúltimavezquenosfalamos.Rebecasoltouarespiração.—Nemteconto,pai.Estudeibastante,tenhocertezadequeacerteitodasas

questões,masaconteceuumlancemeiotorto.FuiajudaraFelicityqueprecisavadecola,entãopasseias repostaspraela.Nãoseicomoessepapel rodouasalainteiraenofimdascontasaAmandajogouelepramimeoJohnmeviucomacola,achouqueeuestavacolando.Nãotiveoqueexplicareeleacaboumetirandodoispontos.

—Nãofiqueprabaixo.Essascoisasacontecemmesmo.—Elesestãoestranhosdesdeodiadaprova.Andamdistraídos.Nãoestãome

dandoatenção.Ontem,encontreiaAmandanoshopping,masnemquis saberdefalarcomigo.

—Relaxameubem.Vaiverelaestavaresolvendoalgumacoisaurgente.Olha,papai temmuito trabalho a fazer. Liguei só para dar boa noite e saber da suaprova.

—Jádecidiuquandovemnosver?—Estoumeorganizando,nospróximosdiasinformopravocê.—Tudobem,esperoquesejalogo—disseRebecabocejando.—Umbeijo.—Umbeijo,meubem.Rebecaaindaestavasonolenta.Seusolhospregaramnovamenteelembranças

dosonhoinsistiamemvoltar,maselalutoucontraaspálpebraspesadaselevantou-sedacama.Caminhouatéajanelaeficouobservandoacidadeengolidapelanoite.

ComeçouapensaremThomas,aindanãoligaraparaeledesdeaocasiãoemqueseviram.Tambémnãooencontroupelarua.Elaestavacomosmartphonenamão,pensandosevaleriaapenaligarounão.Perguntava-seseeleaindapensavanelaoutinhasidoapenasumaaventura.

SeuspensamentossemisturavamcomCristiano,assimqueamanhecesseodiairiaaoteatro,ondeeletinhaumaapresentação,paralhedarodinheiro.Cincomilreaisquepediuaoavô,alegandoqueprecisavacompraralgumascoisas.Ohomemnãonegavanadaparasuaneta,bastavaqueelapedisse,eledava.

Imaginou que o fato de pensar tanto em Cristiano ultimamente, fez seusubconscientecriaraquelesonhomirabolante.Eleeraumreiqueestavatirandodinheirodelanosonhoenavidareal.

Oteatrodasrosasficavanocentrodacidade.Aruaerapoucomovimentada,

cercadaporprédiosantigos.RebecaentroupelosfundosefoiguiadaaocamarimondeCristianoestava.

—Possoentrar?—perguntouapósduasbatidasdelevenaportaqueestavasemiaberta.

—Claro,entre.—Cristianopuxouaporta.Rebecaobservouoambiente.Haviaumespelhoenormerodeadodelâmpadas

como um que viu uma vez em um filme. Havia fotos da peça espalhadas pelasparedes.Algumasroupasdispostasnumaarara.

— Sente-se — falou Cristiano, indicando o sofá para a garota. — Estavarelendoapeça,vamoscomeçarosensaiosdaquiapouco.

Rebecasentou-se.—Nãofazmaisoseushowdehumor?—perguntoutentandopuxarassunto.

Elanãoqueriairdiretofalandododinheiro.RebecajáhaviadadoumaquantiaaCristianodoisdiasatrásquandoseencontraramnoshopping,nodiaseguinteeleligouimplorandopormais.

— Ainda faço, mas diminuí as apresentações. Estou gostando da peça, elaexigemaisdemim.

Rebeca conhecia pouco de Cristiano, das vezes em que se viram nãoconversaram muito, mas sentia que ele era um homem cheio de histórias paracontar.

—Qualéahistória?—Suavozerasuave,comedida.Nãoqueriabaterpapocomo se fossem amigos, mas estava interessada em saber um pouco mais dotrabalhodele.

—Ésobreumhomemquenãovêsentidoemsuaexistência.Noprimeiroatoelecontatodasassuasdesgraçasqueolevaramacrerquenãovaliamuitoapenaexistir.Então,depoisamortesurgeeoconvidaairparaooutrolado,maseledizquemorrernãovaiapagarsuaexistência.Oqueelequerédeixardeexistirnoscoraçõesdaspessoasqueoamam.Passarumaborrachaemtudo,semqueninguémsintafaltadeleequetodasuahistóriasejaapagada.

—Masporquealguémescolherianãoexistir?—Porquesuahistórianãofoiboa?!—Suafrasesaiumeioqueumaresposta

meioqueumapergunta.—Bom—Cristianocontinuou,apósumapausacomseutomreflexivo.—Depoissurgeumanjoefazumaproposta,prometequevaiapagaraexistênciadelecomumacondição.

Rebecaouviaatenta.—Oanjodizqueolevaráaumaviagemnotempoemqueelepoderáassistir

algunsmomentosdavidadelecomosefosseumfilmeemtemporeal.Entãodepoisdereveressaspassagenselepodedecidirsequercontinuarexistindoounão.

—Eoqueeledecide?—Bom, vou deixar que você venha assistir à peça e descubra.—Cristiano

esboçouumsorrisoacolhedor.—Nãoprometoqueverei,setiverumaoportunidade,quemsabe?—NossamontageméumaversãodofilmeAfelicidadenãosecompraouIt’sa

WonderfulLife,notítulooriginal.Éumexcelentefilme,veja-oentão,émelhorquenossapeça.—Elesorriu.

Rebeca tirou um pacote amarelo de sua bolsa e estendeu para o homem,ignorandooqueelefalou.

—Tome,eutrouxe.Cristianoaencarouporuminstante,analisouopacotepormaisuminstante

comoseestivesseemdúvidasedeveriapegá-loounão.—Éporumaboacausa,eujuro—disse,falandoaspalavrasdevagar,quase

queumaauma.Elepegouodinheiro.—Euvoutedevolver,prometo.Rebeca o encarava, tentando descobrir em algum traço de sua expressão

quaissegredosaquelehomemguardava.Osolhosdeleeramumuniversocheiodepossibilidades, ela imaginoumil coisas que poderiam estar fazendo com que elepedissemaisdinheiroqueoacordadoentreeles,masnãoconseguiusaberoqueera,apenasquenãosetratavadeganância.

Agarotalevantou-seedirigiu-seàporta.Quandoelacolocoupartedocorpoparafora,ouviuCristianofalaralgo.

—Elenãoexistiusozinho—falou.RebecaparouevoltouoolharparaCristianocomoseperguntasse“Como?”,

masnãofalounada.

—Quandoviajounotempo,ohomempercebeuquenãoexistiusozinho.Queele fez parte de bons momentos da vida de outras pessoas e deixar de existirsignificariaapagarhistóriasquenãopertenciamaele.

Rebecasorriu.—Eledesistiu—concluiuCristiano.

DIÁRIODEREBECA

Depois da separação, meu pai decidiu mudar de cidade para cuidar dos

negóciosqueovovôtinhaforadaqui.Ficoumaisdifícilparavê-lo,antestodososfinsdesemanaestávamosjuntos,masdepoisqueelesemudou,vinhararasvezeseminhamãenãomedeixavaviajarparaficarcomele.Foimuitodifícil,masnãoteveoutrojeitoanãosersuportareaceitarminhanovavida.

Osmomentosemquemeupaivemmevisitarsempresãoespeciais.Deiníciominhamãemaltrocavaumapalavracomele,eufaziadetudoparaqueficassemjuntos, chorava implorando para que saíssem os dois comigo como era antes.Pegavaasmãosdelesetentavajuntá-losdenovo,maserainútiljuntaroscorposquandooscoraçõesestavamseparados.

Ela nuncame impediu de vê-lo,mas não queria ter contato, preferia ficardistante.Nofundoeusabiaqueminhamãeaindaoamava,elasóestavamagoadacomele.

CAPÍTULO15OPRESENTE

Gabriel saiu de casa para sua corrida de fim de tarde. O céu já estava

alaranjado. Quando dobrou a esquina começou a correr na calçada, alcançou oasfaltoecontinuousuacorridapeloacostamento,algunscarrospassavamnarua,uma senhorinha caminhando com o seu cachorro,moradores de rua deitados nacalçada,umafamíliainteiradeitadasobrepapelões,umvelhinhocomumsacocheiodelixonascostas.EssasimagenseramregistradaspelosolhosdeGabrielenquantocorria. Em todas elas, via o rosto do seu professor de matemática, John. Nosveículos que passavam, na senhora segurando a coleira do cachorro, nos trêsmeninoseemseuspaisdeitadosnaquelepapelãoenovelhinhocatandolixo.

Johneraumsujeitoadoradopelosalunos,aqueletipoqueestavasemprecomumsorrisonorostoenuncareclamavadavida.Gabrieltambémgostavadele,sedavabemnasaulaseadmiravaseu jeito largado.MasonomedoJohnapareceunaquelamalditalistaeagoraorapazprecisavadarumamexidanavidadele.

Ele chegou ao parque, alcançou a pista de corrida e deu algumas voltas.Poucas pessoas circulavam pelo local.Momentos depois ele sentou-se na gramapróximoao troncodeumaárvoree ficouobservandoo lagodiantedesi.Algunsgansosselvagensnadavam.Osolfaziaaáguabrilharcomoumcristal.

NãodemorouatéqueumhomemsentasseaoladodeGabriel.Eleusavaumbonépreto,calçadetecidomoleeumaregata.Entrelaçouasmãosentreosjoelhosedisse:

—Eaí,comovãoascoisas?—Feias—respondeuGabrielsemdesviaroolhardapaisagemqueadmirava.

Avozdelesoouseca,sememoção.—Seprecisardeajuda,jásabe.Gabrieldesfezaexpressãoduraesoltouarespiração.—Porenquantoprecisoapenasdoquepedi.Trouxe?Osujeitosoltouumsorrisosarcástico.Pôsamãonobolsodireitoetirouum

pacotinho.ElecolocouaoladodeGabriel.—Aquiestá.Gabrielpassouamãonosaquinhopretodeveludoecolocourápidonobolso.

Umaondadeagitaçãopercorreuseucorpo.Depoisdemuitotempoquebrariaumaantigapromessa.Ele tirouumenvelopeamarelodacinturae tentouentregaraohomem.

—Que issorapaz?Achaquevouaceitardinheiroseu?—AntesqueGabrielpudesseestenderamão,ohomemjáestavaempurrandooenvelopedevolta.

—Toma,deixedebesteira—insistiuorapaz.— Você salvou nossa rainha. Nem que eu te desse todo o pó dessemundo

pagariaoquevocêfezporela.—Ohomemolhavanosolhosdorapaz.—Vocês nãome devem nada, absolutamente nada. Estou comprando a sua

drogaequeropagarporela.—Sossega,vocênuncavaideixardesernossomano,rapaz.Deixadebancaro

galodebriga.Gabriel guardou o envelope de volta na cintura e voltou a olhar para o

horizonte.—Comoelaestá?—Avejobem.Massóelapodedizercomosesente.Achoqueelaestávivendo

avidaqueescolheu.Houveumbrevesilêncio.—Elasentesaudade—completouosujeito.Eleviuumsorrisonocantoda

bocadeGabriel.Ele queria dizer que também sentia. Queria, na verdade, seguir dali com

aquelehomemparaencontrar-se comela,mas jáhaviadecidido seguir longedavida que ela escolheu. Mas nunca sentiu tanta vontade de vê-la como naquelemomento.

—Precisoirembora.—Foitudooquedisse.Gabrielacertouamãodooutroemumcumprimento,sentiuamãoarderesaiucorrendo.

Quando chegou em casa, tomou seu banho e trancou-se no quarto. Só saiupara jantar e voltou para debaixo de suas cobertas tão macias, a cama estavaquente e aconchegante, ele teria uma noite de conforto não fosse por suaslembranças.

—Gabriel!—Essenão foiumgrito, foiumberro.—Gabriel.—Opaidele

continuavaagritar,agoraaopédaescadanasala.—Gabriel.—Maisumgritoqueassustouorapazaosurgirnapontadocorredor.

— O que foi pai? — Ele estava com uma cueca samba canção, o rostoamassadoeoscabelosdesgrenhados.Seusolhosardiamdesono.

— O que foi? Eu vou te mostrar o que foi. — O homem estava realmentefurioso.—Descelogo,anda.

—Voucolocarumaroupa.—Orapazaindatentavaentenderomotivodaquelagritariatoda.Eraumamanhãdesábado,jápassavadasdez.

— Desça, agora. — Aquele olhar, Gabriel conhecia. Não adiantava hesitar,seria pior. Ainda cambaleante, desceu os degraus lentamente. Seu pai saiu pelaporta.Gabrieloseguiu.

Oladodeforaestavailuminadopelosol,orapazmalconseguiaabrirosolhos,caminhoudescalço e sem jeito até oportãode sua casa.Agramaestava verde,haviaumaárvoredoladoesquerdoeumbalançopresonela.

—Euqueroquemeexpliqueisso—disseopai,apontandoparaarua.NãohaviasolqueimpedisseGabrieldeapreciaramaravilhaqueestavadiante

deseusolhos.Eleficouincrédulo.

—Mascomoassimeutenhoqueexplicar?—perguntouogarotocomcaradequemnãoentendianada.Aindaestavamaravilhado.—Dequeméessecarro?

—DequemGabriel?—Orapazsentiuohálitoquentedopaidetãopróximoqueficoudofilho.—Éseu!Masagorameexpliqueondevocêarranjoudinheiropraconseguircomprá-lo?

— Mas como pode ser meu? Foi o senhor quem comprou? — O rapazaproximou-sedoreboqueparaolharbemoLandRoveriluminadopelosol.

—Nãose façade idiota.—Opaicaminhouatéomotoristaqueestavacomumapranchetaemmãoseaarrancoudamãodele.—Aquidizqueéseueestápago.—Elequaseesfregouoobjetocomasfolhasnacaradofilho.

—Eunãotenhoideiadoquesetrata.—UmventofriomudouosemblantedeGabriel.Foi comoumrelâmpago.Naverdade,agoraele sabia.—Deve ter sidoalgumengano.Podetersidoumengano,nãopode?—Eledirecionouaperguntaparaohomemresponsávelpelaentrega.

—Bemsenhor,aíestámuitoclaro.Eleéseu,estátudoemordem.Sepermitirdesçoeleagorinhaevocêjápodeatédarumavolta.

—Nempensenisso,Gabriel.—Opaisoltouaspalavraspausadamente.—Anãoserquequeirameexplicarcomooconseguiu.

— Eu não tenho ideia, já disse. Pensei que fosse presente seu, ou algumapegadinha,nãosei.

— Presente? Pegadinha? Você nem tem dezoito anos pra dirigir e seuaniversárioaindaestálonge.—Opaicontinuavaesbravejando.

Oentregadorcoçouoouvidocomoquemestavaincomodadocomosgritosdopaiedisse:

—Sevocêsnãoseincomodam,euvouembora.Jáquenãoqueremocarrovoulevá-lodevolta,semepermite.—Eleestendeuamãoparapegarapranchetadevolta.—Semudaremdeideiaésóligarpraconcessionária.Tome.—Eleentregouumcartãoquetiroudobolsodacamisaaopai.

Ricardoarrancouocartãodamãodoentregador.—Nãopensequedeiporencerradoessecaso—disseparaofilhoeentrou

peloportão.Gabrielficouolhandooreboquelevaremboraocarrodosseussonhos.Podiam

levá-lo, isso não significava que não pudesse ir até lá e pegá-lo de volta, afinalestava em seu nome e totalmente quitado. Um lampejo iluminou sua mentemostrandoquemhaviamandadoaqueleveículo.Sópodiateravercomalista.

QuandoGabrielentrounasala,viuseupaidescendoasescadasmaiscalmo,porémaindacomaqueleolhargelado.Orapaznotouqueestavacomaschavesdocarronamão.

—Vaisair?—Vouprocurarsaberquemtemandouaquelepresente.Anãoserquequeira

mepoupardetirarocarrodagaragemmecontandoaverdade.—Jádissequenãosei,pai.Nãofaçoideia.—Émelhorquenãoestejametidocomcoisasestranhas.Ricardo jáestavapróximoàporta.Gabriel sóesperouqueelea fechassee

saiu correndo pelas escadas, alcançou o corredor e logo estava em seu quarto,

encontrouseucelularemcimadocriadomudoqueficavadoladodireitodacama,discou um número. Estava chamando. Ele estava impaciente, aproximou-se dajanelaeviuocarrodoseupaijánarua.

—Droga—disseparasi.Elediscounovamente.—Vamos,vamos...Gabriel se jogou na cadeira e agarrou-se namesinha de estudos fazendo a

cadeiradeslizarparaperto,prendeuocelularentreoombroeoouvidoenquantoabriaonotebook.

—Eaí,resolveudarascaras?—perguntouumavozdooutroladodalinha.Eraumagarota.

—Krystal,estouencrencado,precisodasuaajudaurgente.—OWindows10iniciavanateladocomputador.

—Mandavergaroto.Maisumaveztesalvando.—Precisoqueatraseomeupai.Eleacaboudesairdecasa.Nãopossotedar

detalhes,maseleestáindoàconcessionáriaX-Car.Impeça-odechegarlá.—Oquequerqueeufaça?Quesequestreele?—Desdequenãoomachuque,podefazeroquequiser.Maseutinhapensado

que você pode provocar um acidente. Ninguém precisa se ferir. — O garotocomeçouateclarrápido,muitorápido.—Bastaamassarocarrodeleearranjarumaconfusão.Ganhetempoatéeuconseguiracessarosistemadaconcessionária.

—Agenteprecisaseveroquantoantes,vocêtemqueexplicarnoqueestámetido,Gabriel.Jánãobastouaquelelancedosdezmil?

—Gata,relaxa.—Krystalpodiaouvirosuavebarulhodasteclasdonotebookdele.—Sófazoqueestoutepedindo.Euqueromuitotever,vaiserlogo.

—Ok,masvaiterqueexplicarporquevaiinvadirosistemadeles.Vocêdissequenuncamaisfariaisso.

—Masagoraéporumaboacausa.Precisosalvarminhapele.—Nateladocomputador aparecia um programa de rastreamento, agora Gabriel sabiaexatamenteondeestavaopai.—Pronto.Vocêvaipassararecebernotificaçõesdaposiçãodoveículodeleacadatrintasegundosnoseucelular.Vouprecisardepelomenostrintaminutos,achaqueconsegue?

—Issonãoéperguntaquesefaça.Gabriel ouviu o barulho do motor. Sim, Krystal já estava pronta para sua

missão.—Beijo gata.— Ele desligou e pôs o telefone sobre amesa e continuou a

teclar.Suatelaagoraexibiaumajanelapretaeeledigitavacomandos,seusolhosfixosnatela,otraçopiscavaaguardandonovostoques.

OplanodeGabrieleraacessarosistemadaconcessionáriaealteraralgunsdadosnopedidodaquelecarro.Elealterouoendereçodaentregaeosnúmerosdeseusdocumentos.Alielepôdevertodososdetalhesdopedido,incluindoonomeetelefonedomotoristaresponsávelpelaentrega.

Depois de algunsminutos estava com o telefone no ouvido aguardando quealguémdissesse“Alô”.

—Oi,SenhorGeorge?—Elemesmo.Quemé?—Gabriel,osenhormeviuhápoucosminutos.Veioentregarumaencomenda,

masmeupaicausouconfusão.—Sim,sim.—Euqueropegar,comofaço?—Ora,seupaidissequenãoeraseu,comopossosaberseépravocêmesmo?—Estaaí,nãoestá?Meuendereço,meunome,meuRG.Houveumbrevesilêncio.—Tudobem,masumresponsávelterádeassinaradocumentação.—Eupossoassinar.—Ouviseupaidizerquevocênãotinhaidadepradirigir.—Oh,não.Sabecomosãoospais,seremossempreosbebêsindefesosdeles.

Meupainãoaceitaqueeujásoumaiordeidade,quejápossosairdecasa.Eletempavorsódepensarnisso,porissofalapratodomundoqueaindatenhodezesseteanosdeidade.Nãoseiatéquandoelepensaquevaiconseguirenganaraspessoas.

—Claro,tenhoumfilhogrande,masaindasintovontadedepegá-lonocolo,demorderabochecha.Eleodeiaisso.—Ohomemsoltouumarisada.

—Távendo?Meupaiéassimtambém.Maseujátenhodezenoveanos,vocêpode conferirmeu documento.—Gabriel não estava interessado em estender opaposobrepaisefilhos.—Nãopossoreceberocarroaqui,temqueseremoutrolocal.

—Sópossoentregarnoendereçoespecificado.—Quebraessegalho.Olha,averdadeéqueessecarrofoiumpresente.Uma

coroaricaque tôpegandomedeu.Elagostademesurpreender,masdessavezerrouamão.Alémdomaisvocêestaráapenasfazendoseutrabalho.

—Tudobem,sabiaqueaítinhacoisa,masvocênãotemcaradequemprecisafazerprograma.

—Eunãofaçoprograma.—Ok.Euteajudo,masnãovaisairdegraça.

Ricardodirigiatranquilo.TodaairritaçãoquetinhatidocomGabrielestavase

dissipando como a névoa em dias frios se esvai de forma lenta e silenciosa. Otrânsito estava calmo. O sinal fechou e um garoto de rua aproximou-se jogandoáguano para-brisa do veículo, ele começou a limpar rápido, atento ao sinal queabririaaqualquermomento.

—Isso.Limpebem,vagabundinho—disseRicardo.Elemascavaumchicleteeobservavaomeninoespalharaágua.Eminstantes,estavalimpo.

Quando o garoto terminou, bateu no vidro do carro, estendendo a mão epedindo algum trocado. Usava uma camisa que um dia fora branca, agora eraamarela;umdiainteiraeagoracomburacos.Estavadescalço.

—Meajudesenhor,sóumtrocado.—Omeninoinsistiuporalgumasmoedas.MasosinalabriueRicardoesboçouumsorrisoemostrouodedodomeioparao

garoto.Oscarroscomeçaramapartir,masantesomeninomostroualínguaparaRicardo.Essafoisuavingança.

Omeninocorreuparaoacostamentoeficouaguardandoapróximavezqueosinalfechasse.

Ricardodobrouaruaedirigiupormaisalgunsmetros.Outrosinalvermelho.Aruaagoraestavacompoucoscarros.Eleestavadoladodireito,nãohavianinguémnatraseira.Doladoesquerdo,umHondaCivicPrata,depoislogoatrásparouumKiavermelho.Ricardotamborilavaosdedosnadireçãoenquantoouviaumamúsicaecantavabaixinho.

Dias atrás, Ricardo começou a receber mensagens no celular queperguntavam se ele sabia no que o filho estavametido. As insinuações davam aentenderqueGabrielestavaseprostituindo,massefosseisso,seugarotonãoseriatãoburroapontodepermitirquelhemandassemumcarrodepresente.Haviaalgomuitoestranhonaquelahistóriaqueelequeriadescobrirsozinho.

Osinalficouamarelo.AmandíbuladeRicardosecontorceuaopensaraquelascoisassobreofilho.

Quandoelepuxouamarchaepisounoaceleradoralgoaconteceu.Umabatida.Alguém bateu no seu carro. E agora, a névoa de raiva se condensava. O

impacto o impulsionou para frente. Ele pisou no freio. Seus olhos ferveram. Aimagem da traseira do seu carro completamente amassada se formou em suamente.Suasaídadoveículofoibrusca,bateuaportacomforçaerespiroufundoparaquepudessesoltarsuaspalavras.

—Tinhaqueser!Minhafilhavocêpassoupelaautoescolaprapodersairassimnarua?—Eletentoucontrolaravoz.

—Desculpe,perdiocontrole—disseKrystalcolocandoacabeçaparaforadoveículo.Elatinhaumsorrisodetriunfo.

—Perdeuocontrole?—Agoracomeçouaesbravejar.—Evocêmedizassimcomessacaradefelicidade?

—Nãoprecisagritarcomigo,ok?—Sevocênãofossetãoestúpidaeunãoestariagritando.Olha,nãovouficar

noprejuízo,vocêvaiterquemepagarpeloconserto.Krystalsaiudocarroebateuaportacomforça.—Pagar?Você acha que eu vou pagar por isso depois de você ser tãomal

educado?—Ah,evocêmerecequeeusejabemeducadocomvocê,garota?—Ricardo

estavavermelho.Osoldamanhãcomeçouaesquentar.—Algumproblemamoça?—Krystal olhoude lado e viuumhomememum

carro,aparentavaterpoucomaisdetrintaanos.—Esseidiotanãoviuosinalabrireacabeibatendonele.—Vocêainda temcoragemdementir?—Ricardoagarrou forteobraçoda

jovem.—Ai,melarga.Támemachucando.—Ow,Ow,Ow...—Ohomemhaviaparadoocarroesaiucorrendoparaajudar

Krystal.

—Nãosejacovarde,elaésóumagarota.—Ricardosentiuopesodamãodohomemnopeito.

—Nãosemetanisso—retrucouRicardo.Krystalsecolocounomeiodosdoisparaevitarumabriga.—Paremvocêsdois.Vaiemboramoço,nãoqueroquesemetaemconfusão

porminhacausa.—Elaempurrouosujeito,eleeraforteeporissonãoconseguiamantê-lodistante.

—Vaimesmoenãosemete.—Ricardopassouamãonoscabelosescuros.Osuor começou a molhar seu rosto. Ele estava impaciente, mas seu orgulho nãopermitiaquesimplesmentefosseembora.Krystaltinhaquepagar.

—Temcertezadequenãoprecisadeajuda?—perguntouTom.— Tenho certeza, vai embora. Eu agradeço, mas vamos resolver — ela

respondeu.—Negrinhanojenta.—Aspalavrasforamproferidascomoumsussurro,mas

Tomouviu.—Repeteoquevocê falou,vamos.Repetese forhomem.—AmãodeTom

acertouoombrodireitodeRicardocomforçasuficienteparadespertarafúriadopaideGabriel.

—Querouvir?—RicardodeuumsolavanconopeitodeTom.—Temcerteza?—Outrosolavanco.—Vourepetir.—DessavezfoiumsoconamandíbuladeTom,oqueofezperderoequilíbrioeiraochão.

Um veículo prata passou devagar, um garoto que estava no banco dopassageiroolhouabrigapelajanelaeanimou-se,dissealgumacoisaparaohomemquepareciaserseupai.ElepareciasedivertircomoseestivessevendoumfilmedoJackChan.

—Chega,paremcomisso.—Krystalcomeçouaberrar.Outroscarrospassavamdevagar,buzinando.Umsujeitoapontouocelulare

começouagravar,todospassavameseguiamseucaminho,nenhumcorajosoestavadispostoaencararabriga.

Tomlevantou-serápidoeacertouoestômagodeRicardo,depoisoutroemaisoutro,tãorápidoqueRicardonãotevecomorevidar.Tomojogoucontraoveículoeavançou,masrecebeuumchutenabarrigaeRicardofoipracima,acertandoseunariz.Osdoisseagarraramerolarampelochão.

— Parem... socorro... ajudem... — Krystal gritava e sorria. Estava muitosatisfeita em ter conseguido aquilo. Aquele sujeito caiu como uma luva. Umestranhobondosoquerendoajudá-la.Defatoacabouajudando,masdeoutraforma.

—Pravocêaprenderanãomexercomumagarota—disseTom,depoisdeterlevadomaisalgunssocoseacertadovárioschutesnooutro.

Ricardoestavanochão,jánacalçada,comumaexpressãodequemestavanodeserto sem forças. Aquele sorriso de triunfo se formou em seus lábios quandonotou os dentes de Tommanchados de vermelho pelo sangue que escorria pelonariz e, certamente, por cortesnaparte internadasbochechas.Mas seus olhosficaramapertadosquandoouviuumbarulhodeumabatida.

Enquantoosdoisbrigavam,Krystalfingiaseimportarsoltandoseusgritos.Agarota entrou no seu carro, deu ré e arrancou dando uma forte batida no de

Ricardo.Elasorriuparaele,nãochegouaouvir,masconseguiulernoslábiosdohomemapalavra“vagabunda”.

—Defendeelaagora,babaca.—Elesecontorciadedor.—Naverdade,achoquevocêmereceu isso.—Tomcuspiunochãoeandou

comdificuldade,sentindodoresnascostelas,atéseuveículo.Porquehaviaparadoocarro?Poderiasimplesmenteterseguido,masaoverumagarota,aparentementefrágil, diante de Ricardo, um homem corpulento de aparência nem um poucoamigável, discutindo por conta de uma batida parecia ser um bommotivo paraparar.Elesóqueriasaberseestavatudobem,masfoiaformacomoRicardopegouKrystal pelo braço que o fez encostar o veículo e semeter onde não devia; foiaquelafrase“Negrinhanojenta”queofezpartirparaabriga.Tomtambémhaviasesentidoofendido.

Ricardo o viu indo embora, levantou-se e ficou olhando para a traseira doveículoqueagoraestavadestruída.Decidiuqueomelhorseriavoltarparacasa,não iria chegar a uma oficina naquela situação, muito menos em umaconcessionária.Estavamaisfuriosoainda,aideiadedescobriralgosobreaqueleveículoenviadoparaofilhonãosaíadesuacabeça.

Gabrielestavadentrodoveículoadmirandoopainel,colocouumamúsicapara

tocarecomeçouasemovimentarcomoseestivessedançandosentado.Ogalpãoestava com uma luz fraca, havia coisas cobertas por lonas da cor de terra,pareciam grandes caixas ou algum equipamento. O piso era de cimento, já umpoucodesgastado.Aportadosfundosseabriu,aluzdosolbrilhoufortedeixandoaimagemescuradeumagarotaseformar,elacaminhavaquasecomoseestivessedesfilando,mascandoseuchiclete.

—Teuvelhosedeumal—gritouKrystalaoseaproximardoveículo.—Comoassim?—perguntouGabrielaosairdedentrodocarro.—Oquevocê

fez?— Calma, não foi nada demais. — Krystal observava cada detalhe daquela

máquina.Chutouopneuecontinuou.—Eraprasersóumabatidazinhade leve,masumotárioresolveupararprasalvaragarotaindefesaeacabourolandoumabriga.

—Briga?—É,masseupaibatebem.Achoquequebrouonarizdocara.—Oh,Deus.—Umsorrisodealíviomudouaexpressãodorapaz.—Espero

queminhamãejátenhachegadoemcasa.—Agorameexplicaoquesignificatudoisso.Ondeconseguiuestecarro?—Os

olhosdagarotabrilhavam.Gabrielapuxoupelacinturaeencostou-senalateraldoveículo.—Nãoquerqueeuexpliquedepois?—Ogarotoabriuumsorrisomalicioso.

Suasmãosacariciavamascostasdekrystal.—Vamosinaugurá-loprimeiro.—Oslábios de Gabriel encontraram os de Krystal, ela correspondeu acariciando oscabelosnegrosdeleesentiuosfiosdebarbaquedespontavamnorostodogaroto.

—Então,começaaexplicaremqueconfusãovocêsemeteu.Elesoltouumsuspiroeentrounocarro.—Estousendochantageado.AlguémsabeKrys...alguémsabesobremim.—Comoassim?—perguntouKrystal.Elasentou-seaoladodelenobancode

trás.—Nãovouentraremdetalhesporquequerodeixarvocêforadisso.—Gabriel

segurava o rosto da garota e a encarava com ternura. No dia anterior nãoimaginouquefossevoltaravê-latãocedo.—Massópossotedizerquetemumloucotentandoferrarcomaminhavida.Mandaramessecarropraminhacasa,meupaificouputocomigo,querendosaberondeeutinhaarranjadogranapraterele.

—Eaí?—E aí que eu disse que não fazia ideia, que podia ser algum engano,mas

estavatudolá.Meunome,meuendereço,meusdocumentos,tudo.—Masquempodeterdescoberto?—Eunão faço ideia,masapessoasabe tudoe temprovascontramim.Por

sorteconseguiinvadirosistemadaconcessionáriaemudeiacidadeemeusdados,meupaiterádeacreditarqueaquelecarroerapraumGabrieldistantedaquiequefoitudoumengano.Deisortetambémcomoentregador,foifácilcomprá-lo.

—Vocênãoprecisaenfrentarissosozinho,eupossoteajudar.Podemostentardescobrirquemestáportrásdissotudo.

—Eu prometo que caso eu precise, te chamo.Como chamei hoje. Vocêmeajudoumuitoatrasandomeupai.

—Sónãoteconteiumdetalhe.—Qual?— Enquanto eles brigavam, eu bati no carro do seu pai de propósito, com

força.—Krys...—Elemereceu.Nãomepergunteoporquê,masmereceu.KrystalviuquandoRicardomostrouodedoparaogarotinhonotrânsito.—Sóesperoqueeleestejainteiro—suspirouGabriel.—Nãoentendiporqueessamovimentaçãotoda.Vocêsabequeoseupapai

nãovaicairnessaconversatãofácil.— Eu sei — ele falou. —Mas eu queria te ver. Senti saudades dos velhos

tempos.

CAPÍTULO16MR.JACKELADYROSE

Gabriel entrou na escola observando todos que circulavam por ali: alunos,

professores,funcionários.Erasegunda-feiraeasaulasiriamseguirnormalapesardoincêndio.Seusolhoseramcomosefossemdeumanimalselvagemembuscadesuapresa.Orapazestavacomamochilapresaàscostasapenasporumaalçaeasegurava.Haviaumvaievemdepessoas,algunsprofessoresjásedirigiamàssalasdeaulas.Oprofessor JohnpassouporelequandoorapazalcançouacalçadadoblocoA.Eleficoudesconcertadocomaformacomoorapazoencarou,sorriuparaeleeacenou.Gabrielficouparadosóoobservandoatéperdê-lodevista.

Orapazseguiuparaondetodososalunosestavamsedirigindo,abiblioteca.Gabrielsentiuocheirodefumaçaaoseaproximar.Umafaixaamarelademarcavaolocal.Eleviu,deondeestava,doispoliciaisqueinvestigavamocaso.Olhouparaolado esquerdo e viu Felicity na sombra de uma árvore. Gabriel deu um sorrisosarcásticoeaproximou-sedaamiga.

—Belotrabalho—disseeleecolocouasmãosnosbolsosdojeans.Felicityoencarousemdizernada.Elaobservavaosegundoandardoprédio

tododestruído,asjanelasestavamquebradas,aparedeborradadepreto.—Devoreconhecer,foiumbelotrabalho—dissenumsussurro,olhandopara

os lados certificando-se que não havia ninguém por perto. — Mas não fiz issosozinha.

Agarotanãoestavafelizpeloquefez.Estavaaliviadapornãotersidopegaeaomesmotempotensacommedodedescobrirem.Elaobservavaaquelespoliciaisse perguntava o que estariam procurando. Digitais não serviriam de nada, poiscentenas de alunos frequentavam a biblioteca. É claro que eles saberiam que oincêndioforaprovocado,masFelicity foracuidadosaosuficienteparanãodeixarnenhumobjetopessoalcair,usouluvasparaevitardeixarmarcasnosobjetosqueutilizou.

—Comoassim?Pediuajudaaalguém?Vocêficoulouca?—Claroquenãopediajuda.Oapresentadordoprogramaapareceunomeio

danoiteprameajudar.—Aquelecaradourado?Comoémesmoonomedele?Tony,nãoémesmo?—Elemesmo,masnarealidadesechamaEdgar.Parecequeahistóriadeleé

verdadeira.Eletambémtemumalistaepeloqueentendi,suasinstruçõessãonosajudar.

—Nãoseisedápraconfiar.Nãofuimuitocomacaradele.—Nósnãotemosmuitaopção.Elesficaramobservandoamovimentaçãodosalunosedaspessoasdentrodo

prédio.—Comofoifazerisso?—perguntouGabrieldepoisdeumtempodesilêncio.—Foiestranho,tivemedo,mas...

—Mas?—quissaberorapaz.—Foimeiolibertador.—Libertadorcomo?—Nãoseiexplicar,Gabriel.Foiestranho.Fizissopraterminhaliberdade.Me

senti no controle, como se eu pudesse definir os próximos passos, como se eutivessealgumpodersobreascoisas.

GabrielpercebeuosolhosdeFelicityseinundaremdelágrimas.—Sóquedepoiseupercebiquenãoestavacontrolandocoisaalguma,queeu,

apenas,eraumapeçanojogodessemaluco.Umamarionete.Gabrielapuxouparajuntodesieafezpousaracabeçanopeitodele.Orapaz

aabraçouepassouamãonacabeçadela.—Fiquecalma—disseele.—Vocênãoestásozinha.Nósprecisamosvencer

esse jogo.Você se saiubem.Napiordashipótesesvamos fazer tudooqueelesqueremepegarasprovasquetêmcontranós.

—Eseelenãoder?Ouela.Seilá,oueles.—Bom,estamoscaminhandodeolhosvendados.Precisamosacreditar,ésóo

quenosresta.Acreditar.—Achomelhorirmospraaula.—Felicitysesoltoudosbraçosdele.—Quando

vocêvaifazeralgumacoisa?—Hoje.—Ondevaiser?Aquinaescola?—É.Estoucommedotambém.Esperoquenãomejulgue—disseesfregando

asmãos.Amanhãestavafria,osolaindafracolutavacontraasnuvensparailuminaro

dia.—Maségraveoquevocêvaifazer?—Odehojenão,mastemcoisabempiornaquelalista.

AmandaeFelicityestavamsentadasemumadasmesasespalhadasnaáreada

lanchonetedaescolaqueficavanapracinha.Elasestavamemumdosquiosques.—Issoestámedeixandonervosa—disseAmanda.—Estáficandoperigoso—disseFelicitynumsussurro.—Masoquepodemos

fazer?Agarçonetepôsumpratosobreamesacomumsanduichedeatumeumcopo

desuco.Elasestavamnointervalodaaula.— Obrigada — disse Felicity. Ela deu uma mordida no sanduíche. — Tem

certezadequenãovaicomernada?—Nãoquero,estouumpoucoenjoada.Medesculpe,masessecheiroestáme

dandovontadedevomitar.Felicityaolhouestranho.

—Viucomoficouabiblioteca?—perguntouFelicity.Todavezquetocavanoassunto,sentia-sevigiada.

—Visim.Vocênãotevemedo?—Claroqueeutivemedo.Maseudecidifazertudooqueestálá,éaúnica

opçãoquetenhoparaconseguirodiáriodevolta.—Queriafugirpralongedissotudo.—OestômagodeAmandaserevirou,o

cheirodoatumprovocaraumaondaenormedeenjoo.Elasaiucorrendo,entrounacantinaepediuparausarobanheiro.

—Amanda?—Felicitygritou,masAmandajáestavalonge.Logo em seguida, Felicity ouviu gritos. De onde estava viu uma multidão

correndo para o pátio do bloco A. As garotas estavam eufóricas. Os celularesposicionados.Umarodaestavaformada.Felicityaproximou-separaverdoquesetratavaaconfusão.

Gabriel estava desfilando no pátio da escola, desinibido. Ele acenou para aamiga quando a avistou. As meninas tiravam fotos, alguns garotos estavamfilmando.

—Nãosabiaqueeletinhaaquilotudo.—Ai,nuncatinhavistooGabrielassim.—Quevontadedeapertarabundadele—suspirouumaaluna.—Felicitydocéu,oqueéisso?—Vicapoiou-senoombrodela.Felicityestavadebocaaberta.Seuamigoestavafazendoposesfisiculturistas,

exibindo seus músculos brancos apenas de cueca no meio da escola para todomundo ver. Era um item da lista dele, pensou.Mas pelomenos isso não foi tãodifícil,nãoparaGabriel.

—Oquedeunele?—perguntouRebecaqueestavaaolado.Umalembrançadequemhaviavistomaisqueaquiloarrancouumlevesorrisodela.

—Vaisaber—disseFelicity.—Nossa,queamigovocêstêm.Rebeca,querolevá-lopracasa.—Vicestava

todaanimada,jáotinhavistocompoucasroupasantes,nacachoeira,masoqueaencantava naquele momento era o jeito dele, a atitude. Quebrando regras eintenso,eraassimqueovianaqueleinstante.

Ogarotogostavadeseexibir,deservistoedesercobiçado,masapesardisso,estavadesejandoqueaquiloterminasselogo.

—Quebagunçaéessa?—gritouoprofessorDaniel,quetambémeradiretordaescola.Seutamanhoavantajadodesfezarodaqueestavaformada.—Gabriel?—Oprofessorprestouatençãoemcadadetalhedocorpodogaroto.—Oqueisso...significa?Aquinaescola?

—Gabriel,tiraumafotocomigo?—gritouumagarotadoprimeiroano.—Ain,tambémquero—choramingououtra.—Chega.Acabou.—Danielaindaolhavaderabodeolhoparaorapazseminu.

—Gabrielvistasuaroupajá.Evocêstodosvoltemparasuassalas,agora.— Professor — disse Gabriel. Ele ficou um pouco sem graça. — Deixe-me

explicar.Issofoisóumabrincadeira,umaapostaqueeuperdi.—Aposta,Gabriel?—Daniel olhouparaopeitoraldo rapaz.—Ondeestão

suasroupas?

Haviacochichosportodososlados.—Estãonobanheiro,voupegá-las.Alguémjogouascalçasjuntocomacamisaeossapatospróximodeondeele

estava.Orapazpegouseuspertences.—Venhacomigoagora—disseDaniel,tentandomanterotomdavozfirme.Gabrielseguiuoprofessor.Sentiualguémdarumtapanasuabunda.Osalunos

começaram a se dispersar em grupos pequenos. Felicity viu Amanda saindo dalanchoneteefoiaoseuencontro.

—Meninas,nosvemosdepois—disseparaViceRebeca.—Perdeu.—Oquefoi?Quegritariafoiessa?—perguntouAmanda,comcaradequem

aindaestavaenjoada.—Gabrielestavadesfilandopelaescola,quasepelado.Sódecueca.—Comoé?—Issomesmo.Bastoupracausaressealvoroçotodo.Eaí,melhorou?—Vomiteiumpouco,masestoumelhor.—Estavanalistadele,tenhocerteza.—Masoquequeremcomisso?Porquefazê-lodesfilarpelaescoladecueca?—Eunãosei.MasnoteioprofessorDanielolhandopraelediferente.Quase

comoseadmirasse,nãosei.Talvezcomdesejo.—Eoquevocêquerdizercomisso?QueoDanielpodeestarportrás?Não

acreditonisso.—Não,claroquenão.SóqueeletambémtemumaquedinhapeloGabriel.—VaihaverumadisputaentreaArabelaeoDaniel.Asduasderamrisada.—Achoqueestánahoradeabrirmosojogoentrenóstrês—falouAmanda.—

Precisamosrevelarnossossegredosparanosajudarmos.—Não,achomelhornão.—Porque?Oquefezdetãograve?—Amanda...éalgoquenãoquerodividir.—Ah,tudobem.Achomelhorvoltarmospraaulaecontinuarmosfingindoque

nadaestáacontecendo.

— Você ficoumaluco Gabriel? Onde já se viu fazer isso aqui na escola, na

frentedetodomundo?Vocênãotemvergonha?Gabrieltinhacolocadoasegundapernadacalçaesubiusemfecharozíper.—Foisóumabrincadeira.Foiumaaposta,tá?Coisadeadolescente.Euacho

quevocênãodeviacontarpromeupai.Danielengoliuemseco.—Fecheozíperrapazeponhalogoessacamisa.— Só dessa vez, não chame meu pai. — Gabriel juntou as mãos como se

estivesserezando.—Podemosresolverissodeoutraforma.EDanielvoltouaengoliremseco.Arabelaabriuaportadasaladadiretoriaondeelesestavam.Avelhasenhora

erabaixinha,seuscabelosbrancosjátomavamquasetodasuacabeça.Elausavaumvestidoflorido.

Gabrielvirou-separaverquemera,amulherfechouaportaeentrounasala.—Masoqueestáacontecendoaqui?—perguntoucomosolhosarregalados.OrapazesperouqueDanielrespondesse.—Danielvocênãoestáobrigandoessemeninoatirararoupanasuasalanão

émesmo?—Elaperguntou,quasefuzilando-ocomoolhar.—Vocêficoulouca?—retrucounumberro.—Oquevejodizqueoloucoaquiévocê.—ElaolhouparaGabrielporcima

dosóculoscomumolharmaisdevoradorqueodoprofessor.Gabrielficoudesconcertadoe,finalmente,falou,fechandoozíperdacalça.—Nãofoinadadisso,DonaArabela.Perdiumaapostacomumcolegaetive

quepagarummico.—Gabrielpegousuacamisa,masantesqueconseguissevestir,asenhoraoagarroupelobraço.

—Precisomuitodasuaajuda,venhanaminhasala.—Elaarrancouacamisadasmãosdogarotoeoempurrouportaafora.—Eujádevolvoele—disseelaparaodiretor.

—Gabriel,nãopensequeissovaificarassim.ArabelacaminhoupelocorredorpuxandoGabrielpelobraçoatéchegaràsua

sala.Algunsalunosquecaminhavamporaliacharamacenaengraçadaesoltaramrisinhos.Arabelatrancouaportacomachave.

—Eagora,vaimeviolentar?—perguntouGabriel.—Claroquenão,achaqueumapobresenhoraindefesafariaalgocontraum

rapaztãobonitoetãoforte?—Suaspalavrasforamcomoumsuspiro.—Sóqueroquemeajudeapegaracomidadosmeusfilhotesaliemcima.—Elaapontouparaoaltodeumarmário.—PediaoTadeuparanãocolocartãoalto,poisnãoalcanço,maselenãoseimporta.

—Ah,tudobem.Voutentarpegar.Estáaquiemcima?—Gabrieltateouamãoemcimadoarmárioprocurandopelacomida.

—Sim,achoquesim.Estánumpotinho.—ArabelaolhavaparaascostasdeGabriel.Elaobservavacadamúsculosecontorcendo.Seguravaacamisadomeninoentreaosmãosencolhidasabaixodoqueixo.Seusolhosbrilhavam.

—Nãotemnadaaqui.—Procuremais,porfavor.Mr.JackeLadyRosenãopodemficarcomfome.—Temcertezadequeestáaquiemcima?—Gabrielvoltou-separaasenhora,

caminhouparabempertodela.Elecoçouacabeça.—Claro.—ArabelaolhouparaopeitobrancodeGabriel.—Possotocaroseu

peito?Sóparatercertezadequenãoandatomandoanabolizantes.—Ah,nãotomobomba,asenhoranãoestávendo?Sãomúsculosdeverdade.

—GabrielmostrouseubícepsparaArabela.—Tocaaqui,soutãofortequantooThor.

—Nossa,sãodurinhos.

—Agoraquejátirouumacasquinhademim,possoirembora?— Não antes de achar a comida deles. — A senhora arrancou a chave da

porta.—Vamos,sómaisumaolhadinha.—Aaai,tábom,vouolhardenovo.—Gabriellevantouacabeçaerevirouos

olhos. — Se eu não achar nada, vou começar a gritar por socorro. — Gabrielarrastou uma cadeira e subiu nela. — A escola inteira vai saber que a bela erecatadaDonaArabelasequestrouumjovemdonzeloeabusoudesuavirtude.—Enquanto falava, revirava alguns potes, sacos e papeis que estavamem cimadoarmário.

— Grito antes de você gritar, então vamos ver em quem vão acreditar —respondeuasenhorinhanumtomdesafiador.—Alémdomais,vocênãoéumgarotoinocente,jáandoucomtodassuascoleguinhasdocolégio.

— Achei. — Gabriel pulou da cadeira. — Deve ser isso aqui. Agora me dêminhacamisa.—Elepegousuaroupaecomeçouavestir.—Seuarmárioprecisadeumaarrumação.

—Meusbebêsestavamcomfome.—Arabela jáhaviadestampadoopoteecomeçouajogaracomidadospeixinhosnoaquárioqueficavaaoladodesuamesa.NasalahaviaoutramesadoprofessorTadeucomquemcompartilhavaoespaço.—Olha,vejacomosãolindoscomendo.Vemver,menino.

Gabrielaproximou-seajeitandoacamisa.—Sãolindos—disseGabriel.—Asenhoragostatantodelesassim?—Éclaro,osamomuito.—OsolhosdeArabelabrilhavameela jánemse

importavamaisemolharparaGabriel.—Sãoumaexcelentecompanhia.—Maspeixenãolatenemmia,quediferençafazseestãoounãoaí?—Exatamenteporissosãoumaexcelentecompanhia—disseela,aborrecida.

—Cadaserirradiasuaenergiadeumaformadiferente,nãoéprecisobarulhoprapodersentir.Issosignificaamá-losdojeitoquesão.

O aquário era grande, quase do tamanho de um baú. Havia algas e umpequenocastelodentrodele.

MrJacknadouatéofundo,apóscomerasmigalhasqueforamjogadaseLadyRosecontinuavacomendo.

—Olha,eleadoraocastelinhodele—disseArabelaaoveropeixinhoazulselocomover.

—Seasenhoranãoseimportar,precisoirembora.—Ah,sim,claro.Tomeachave.—Elaestendeuamãosemolharparaorapaz.Gabrielfoiatéaportaeabriu.Antesdesaireleviuopeixinhoamarelonadar

atéondeoazulestava.EpensouqueaquelasópodiaserLadyRose.

CAPÍTULO17UNIVERSOPARALELO

RebecaestavanoquartodeFelicityrespondendoumalistadequestõessobre

a revolução industrial. Já estavam no final da tarde e estavam sentadas à umamesinha de estudos, alguns livros abertos sobre a mesa. Rebeca escrevia nocaderno enquanto Felicity lia uma passagem do livro de história. Arabela nãoaceitavalistadequestõesdigitadasnocomputador,tinhadeseràmãomesmo.

—Precisodeumpostit.Vocêtem?—perguntouRebeca.—Achoquetenhonaquelagaveta.—Felicityapontouparaumgaveteiroque

tinhaaoladocama.Rebecalevantou-seefoiabriragaveta.—Eeste livro?—Rebecaestava folheandooexemplardePeterPan que a

amigafurtoudabibliotecananoitedoincêndio.—Ah,eradabibliotecadaescola.Nemdevolvi, jáquehouveoincêndiovão

pensarqueelefoidestruído.—Estranho,eudevolviesselivronasexta-feira.—Euopegueinodiadoincêndio—disserápido.—Eleagoraémeutesouro.

—Felicity levantou-seeoarrancoudasmãosdeRebecaeoguardounamochilaqueestavasobreacama.—Falandonisso,soubealgumacoisadoincêndio?Sabesesuspeitamdealguém?

Felicity estava apreensiva, com medo que alguma notícia de última horarevelassequeelaeraaincendiária.ApesardeconfiarquefizeratudocertoequeEdgaraajudou,aincertezainsistiaemvisitá-la.

—Nãosoubedenenhumanovidade.MasviqueatépassounoprogramadaVanessa. Só sabem que foi provocado. A polícia perseguiu um sujeito, mas nãoconseguiramcapturá-lo.

Felicityesboçouumsorrisoao lembrar-sedeEdgar,ohomemqueasalvou.Sentiu-sefelizemimaginarqueelesconseguiramescapar.Sóficoupreocupadaemsaberqueocasotinhaidopararnaqueleprogramasensacionalista.

—Tárindodequê?—Nadanão.Vamosvoltararesponderessasquestões.—Tudobem—disseRebeca,aosentar-sedevoltanoseulugar.—Terminei

delerOSoléparatodos.Felicityveioemseguida,sentou-seevoltoualersobrearevoluçãoindustrial,

ignorandooqueaamigafalou.—ÀsvezeseuqueriasercomooBooRadley—continuouRebeca.—Comoquem?—perguntouFelicitydandoatençãoaoqueRebecafalou.—BooRadley,opersonagemdeOSoléparatodos.Vocênãolembradele?—Bom,aindanãoliolivro,entãonãotenhocomolembrar.—Comonão?Foivocêquemmeindicouesselivro.—Eu?Não,Rebeca.Jáouvifalaremmuitobemdesselivro,masnuncaolinem

teindiquei.ExistiamalgumasimagensnocérebrodeRebecaondeficamarmazenadasas

memóriasreaisemqueelaeFelicityestavamemumcorredordeprateleirasdeumabiblioteca,queacreditavaserdaescola,eemalgummomentoRebecafalavaqueestavaàprocuradeumbomlivroparaserlidoeaindicaçãodeFelicityforaOSoléparatodos,disseelanessalembrançaqueeraumlivroquefaziabemparaaalma.

—VocêdisseFêqueomundoprecisavademaispessoascomoAtticusFinch.Felicityfezcaradequemestavaouvidoalguémfalaremmandarimcomelae

disse:—Eununca falei isso, nem sei quepersonagens são esses, vocêdeve estar

confundindo.Devetersidooutrapessoaquetefalouisso.—Eunãoestoulouca,Felicity.Tenhoessalembrança—insistiuRebeca.—Eutambémnãosoulouca,vocêqueestáfazendoconfusão.Masoquetem

essepersonagemquefazvocêquerersercomoele?—Nãoénada—disseRebeca,umpoucodesanimada.—Ésóqueelevive

enclausuradodentrodecasa,longedaspessoas,longedosproblemasdomundo.—Ai,masissonãoévida.Eporqueeleescolheuviverassim?—Porqueelequis.—Porqueelequis?—Sim,simplesmenteporqueelequis.Nãosuportouomundo.—Vocênãopodequererviverdessejeito.Achomelhorvoltarmosaresolver

essasquestõespranãoperdermostempo.FelicityvoltoualersobrearevoluçãoindustrialeRebecacontinuoutentando

identificar se aquela era umamemória falsa ou se era um sonho.Bem, se fossealgumadessasalternativasseucérebrohaviaarmazenadonolugarerradoporqueelatinhacertezaabsolutadequeeraverdade.

—Vocêtemcerteza?—perguntouRebecaapósalgunsinstantesdesilêncio.—Sobreoquê?—QuandoFelicityolhounosolhosdaamigaentendeuaquese

referia a pergunta.—Rebeca, claro que não falei desse livro pra você— disseachandograçanacaradepreocupaçãodeRebeca.

—Maseupossojurar.—Rebecaacabourindodasituação.—Vocêestádeondacomaminhacara,podefalar.—Não,seráqueeusonhei?Àsvezeseutenhounssonhosloucos,sãotãoreais

quantoaprópria realidade.Porummomentoeu sintoqueaúnica realidadequeexisteéaquelanaqualmeencontro,masdepoiseuperceboqueestousonhando,aindadentrodosonhoaíalgoaconteceeeuacordoassustada.

—Achoquejátiveumsonhoassim,maseunãoconfundoascoisas.Todanoiteeurezopranãoterpesadelos,façolongasoraçõesefunciona.

—Eulinainternetquechamamdesonholúcidoquandovocêtemconsciênciade que está sonhando. Algumas pessoas disseram que é possível controlá-los eexperimentarsensaçõesquenãopodemosternarealidade.

—Tipo,vivercoisasproibidas?—Sim, já imaginouexperimentarasensaçãodebeijarumsapoevê-lovirar

príncipedeverdade?

—Nãomesmo.Prefeririacriarasasesabercomoévoar.Euseriaumpássarosepudesseescolher.

Ao invés de se imaginar voando, Felicity pensou em Edgar, lembrou-se doslábios dele. Por um instante achou que poderia beijá-lo em sonho. No mesmoinstante veio a imagem de Raphael lhe oferecendo um beijo gelado. E como asmocinhasderomanceselaseimaginoudivididaentrequaldelesdariaseuprimeirobeijo.

—Jásonheiqueeuvoavaeasensaçãoédeliberdade.Sóquenãotinhaasas.Elasriramalto.—EuiriaparaaFantásticafábricadechocolate.Adorariamergulharnaquele

riodechocolate.—IriaparaHogwarts,Nárnia,sónãoiriaparaosJogosVorazes.Elasriram.—Eu li também que os espíritas dizem que você pode sair do seu corpo e

viajarparaoutrasdimensões.Equealgumaspessoasconseguemaprojeçãoastral,masnãopercebem,quandoacordamachamquefoitudoumsonho—disseRebeca.

—Ah,nãoseiseacreditonisso.—Qualquerumpodeconseguirsetentar.—Deusmelivre,tenhomedo.—Felicityfezosinaldacruz,mostrando-seum

poucoassustada.—Vaiqueapessoanãovoltemaisparaocorpo?—Nãosejaboba.Ocorpoastralnãosedesprendedocorpo físico.Háuma

espéciedefioqueligaosdois.Umfiodeprataoucordãodeprata,comochamam.—Vejoquevocêestámuitoinformadasobreoassunto.Nãovaimedizerque

vocêquerfazerisso?—AhFê,nãomeolhaassim.Vouacabarmesentindoumaloucadesvairada.

Eu adoraria conhecer outro universo, um mundo paralelo diferente desse,controlado por mim. Sabe que eles dizem que existem criaturas más nessesuniversos,maselasnãopodemnoscausarmalporquenóscontrolamostudo.

— E você acredita nisso? Se tudo isso é como num sonho, por que temospesadeloscomcoisasquenosfazemmal?

—Fê,édiferentedesonho.Alémdomaisvocêtemqueestarcientedequeaquilo que você está vivendo não é real. Eu já tentei utilizar umas técnicas deconcentração.Talvezeutenhaconseguidoalgumasvezes,maseuaindanãoconsigodistinguirumsonholúcidodeumaprojeção.

— Já entendi tudo. Você deve ter viajado para um universo paralelo econhecidooutraversãodemimqueteindicouolivro,acertei?

—Nãotenhocomosaber.Naminhacabeçafoivocêquemmeindicou.—Issoémuitaloucurapraminhacabecinha,desculpe.Pramim,essascoisas

nãopassamdesonhos.Melhorcontinuarmosestudando.—Medrosa—disseRebeca,comumsorriso.Elapuxouolivroecomeçoua

procurarasrespostasdoseuquestionário.

CAPÍTULO18OSEGREDODEAMANDA

Natardedaquelasegunda-feira,AmandaabriuaportadesuacasaparaDona

Tereza,umasenhoramagra,queeraamigadesuamãeefaziaanálisecomSarah.A casa de Amanda era uma mansão cercada por um muro alto, o porteiro jáconheciaamulhereadeixouentrar.Agramapermaneciaverdeotempotodo,apiscinaeragrande,retangulareficavaaoladodacasa.

—OiDonaTereza,tudobemcomasenhora?—perguntouAmanda,aoabriraporta.

—Estoubem,digoquasebem.EuprecisofalarcomaSarah,porfavor.—Elafalava apressada, com o olhar perdido. Sua expressão era séria, o rostomagro,com as rugas que os cinquenta anos de vida lhe trouxeram. Alguns poucos fiosbrancoscompunhamseuscabeloscastanhosqueumdiaforamtãobelosquantoelaprópria.Apeleaindaconservavaotommarrom,masnãotinhaamesmafirmezadeantes.

—Minhamãenãoestá,entre—disseAmanda—Aluzestáficandofraca.Eelasestãovoltando—continuou,semolharpara

agarota.— Quem? — perguntou Amanda, um pouco assustada. Ela notou o olhar

perdidodeTerezaeconcluiuqueelaestavaprestesaterumacriseeAmandanãosabiacomolidarcomessassituações.ApenasSarahconseguiaacalmá-la,aúnicapessoaqueTerezaconfiava.

— As lembranças, minha filha. — Tereza segurou nos braços de Amanda eolhou nos olhos damenina.— Elasme atormentam, precisomandá-las embora.Elasaparecemquandoaluzestáfraca.

—Dona Tereza, se acalme.— Amanda se desvencilhou dasmãos dela comcuidado.—Venha,voute levaraumlugarquetemmuita luz.Vamos,medêsuabolsa. — A garota jogou a bolsa em cima do sofá e ajudou Tereza a subir asescadas.

Asduaschegaramaumcorredor largo.Amandaabriuas janelas,afastouascortinasealuzdosolinvadiuoambiente.Daquelelocalerapossívelvê-loaltonocéu,eracomoseelejogassetodooseubrilhoparaaquelajanela.

— Está vendo? Vê como tem luz lá fora? Se eu fechar as janelas vai ficarescuro.— A garota fechou as janelas e puxou amulher para dentro de um dosquartos,eraopróprio.—Aluzsóvaiemborasevocênãofizernadaparaqueelafique.Entende?Vouacenderalâmpadaevaivercomomelhora,veja.—Oquartoescuroganhouvida,Amandaabriuasjanelasdolocalondedormia.—Quandoessaslembrançasruinsquiseremteatormentar,vocêtemqueacenderaluz.

— Eu tento, mas elas são mais fortes, dominam minha mente e me fazemsofrer,tudovoltacomosefosseumfilme—falouTereza,comumolharvazio.

—Vocêtemqueforçaropensamento,lembredealgobom.Tenhocertezade

queaídentrodasuacabeçatemalgumaimagemboa.Seagarreaessaimagematéqueasoutrastedeixemempaz.

—Eulembro,lembrodoNicholas...mastudomelevaàqueledia...eleadoravabichos, foi ele quem me pediu pra pegá-lo. — Ela começou a falar maisdesesperada,aslágrimasameaçavamsaltardeseusolhos.

—Acalme-se.Euseiquenãofoiculpasua—Amandaestavadejoelhosdiantedamulher,conheciasuahistóriaesentiapena,issoaenchiaaindamaisdeculpa.—Você agora está bem, pense nisso. Você não está mais nas ruas, minhamãe teajudou e não vai querer decepcioná-la, vai? Vai querer vê-la triste?—Amulherbalançouacabeçaemsentidonegativo.—Entãosejaforte.Logoissovaipassar,certo?Háalgumashorasvocêestavabem,nãoestava?

—Sim—sussurrou.—Vaivoltaraficarbem,deite-seaqui,venha.—Amandaacomodouasenhora

emsuacama.—Voudescerefazerumcháprasenhoraseacalmar.Terezaficouencolhida,enquantoagarotafoiaobanheirodoquartoepegou

umsabonetebranco,desceuasescadas, localizouabolsadamulheremcimadosofá onde jogara e encontrou o molho de chaves, eram cinco no total. Amandamarcou uma a uma no sabonete, criando moldes das chaves. Ela ouviu alguémmexer na porta e só deu tempo guardar tudo dentro da bolsa, quando suamãeentrouemcasa.

—Oifilha.—Mãe.—Amandadeixouosabonetecairatrásdeumtravesseirodosofá.—Oquehouve?Pareceassustada.— Estou um pouco. — Ela realmente estava. — A Tereza apareceu aqui,

desesperada.Achoqueestátendooutracriseeeunãosoubeoquefazer,entãoadeixeideitadanaminhacama.

—MeuDeus,denovoisso.Eusabiaqueelaiacairdenovo,ésempreassimquandoo aniversáriodele se aproxima.—Sarah já estava subindoas escadas esumiudocampodevisãodafilha.

Amandapegouaschavesnovamenteelimpou-asemsuablusaparaevitarqueficassealgumrestodosabonete.SubiuasescadascomabolsadeTerezaeentrouemseuquarto,viuamãeempé,olhandoparaamulherprostradanacamaquejádormia.

—Mãe,abolsadela.Comoestá?—Pobremulher,elanãoconsegueesquecerogaroto.Fazalgunsdiasqueestá

confusa, tereide interná-lasecontinuarassim.Nicholas fará trintaanossemanaquevem.

—Asenhoraachaqueeleaindapossaestarvivo?—Euprefiroacreditarquesim.—Bom,vousair.MarqueideestudarcomaFê.Estouindodetáxi.Amandadeuumbeijonorostodamãe,pegoualguns livrosqueestavamem

cimadeumacadeira,suabolsaedesceu.EstavanervosaepensandoqueseDonaTerezafosseinternadaseriamuitomaisfácilexecutarseuplano.Passoupelosofá,pegouosaboneteeguardou-o.

AverdadeéqueAmandanãoiaestudarcomsuaamigacomofalouparaamãe.

Pediuaotaxistaquealevasseaumchaveiro.Eladeixouosaboneteepediuqueorapazfabricassechavesdeacordocomosmoldes.

QuandoAmandaentrounoflat,ohomemjáaesperava.Elearecebeucomum

abraçoapertadoebeijoscalorosos.Oambienteeraagradável,asjanelasestavamabertaseissodeixavamaisiluminado.

—Estivecomsaudade,minhapequena—disseohomemaosoltaros lábiosdela.Agarotasedesvencilhoudosbraçosdeleesentou-senacama,comcaradepreocupação.

—Estoucomproblemas...querdizer,nósestamoscomproblemas.—Comoassim,oquehouve?Vocêestátomandooscomprimidoscertinho?—

Elesentou-seaoladodelaesentiuumfriogeladonopeitoaoimaginarqueAmandapudesseestargrávida.

—Claroqueestou.—Amandatinhacertezadequeestava.Semcontarcomumcertodiaemqueesqueceu,masforasóum.

—Ah,menosmal.—AexpressãodeRomeuficoualiviada.Eleeraumhomemgrisalho, muito atraente. Tinha idade para ser pai da garota. Muitas mulheressuspiravam por ele e dariam tudo para estar no lugar de Amanda, bem, nãoexatamentenasituaçãoemqueelaseencontrava.—Entãooquehádeerrado?

—Alguémsabedenós.—Comoassimalguémsabedenós?—Romeuvoltouaficarpreocupado.—Euestousendochantageada.Temum loucoouuma loucaquesabe tudo,

estão nos vigiando e aposto que aqui tem alguma câmera escondida.—Amandacomeçou a vasculhar tudo, abriu as gavetas da cômoda, revirou os quadros daparede,checouos imãsdageladeira;olhouparao tetoprocurandoalgumacoisaestranha.—Gravaramagentetransando,aqui.

RomeuviuodesesperoestampadonafacedeAmanda.—Ah,meuDeus.Vocêtemcertezadisso?—Ohomemlevantou-seecomeçou

aolharporbaixodealgunsquadrosquehaviaali.Nãotinhamuitoondeprocurar,maseleolhouatéembaixodascadeiras.—Estãotepedindodinheiro?Eupossoteajudarcomisso.

—Vejacomseusprópriosolhos.—Amandaentregouocelularcomovídeojánatelaparaqueelepudessever.Elarecebeuasimagensantesdeiraojantar,comessaprovanãotevecomoserecusarairàquelacasa.

— É dinheiro que querem? — voltou a perguntar. Olhava incrédulo para oaparelho.

— Não é dinheiro que querem. — Amanda passou as mãos nos cabelos,segurandoanucaemseguida.—Estãomepedindoprafazercoisas.

—Oh,Deus.Comopudemosnosdescuidardessejeito.—Romeuestavaaflito.Suavidapolíticaeseucasamentoestavamcomosdiascontados,pensou.—Que

coisas?—ElecolocouotelefoneemcimadamesaesegurouAmandapelosbraçossacudindoamoça.—Vocêtemquefazertudooqueestãotepedindo,nãoimportaoquê,masfaça.

—Mesolta,nãoprecisamemachucar.—Agarotasedesvencilhoudohomem.—Medesculpe.—Ele tentou seacalmar,baixandoo tomdevoz.—Oque

queremquevocêfaça?— Alguns desafios, prefiro que você não saiba, fique fora disso. Só preciso

sabersevocêtemalguémqueteodeia.—Han,alguém?Amanda,eutenhomuitagentequemeodeia,édifícilpensar

emalguém.Umpolíticonuncasabequemsãoseusinimigos.Derepente,podeseralguémqueeunemconheça.

—Masdeveteralguémespecífico.Algumapessoapróxima,alguémdoprédio,nãosei,suaesposa...

—Ah,não.Minhaesposasóestápreocupadacomapróximacordoesmalte.Elanãoseriatãointeligentepracolocarumacâmeraescondidaaqui.Alémdomais,nóssomosmuitodiscretos.Nãoentendocomopodemternosdescoberto.Deveseralgumnamoradinhoseu,ciumento,deveterteseguido.Aquelebabacaquevivenoseupé.

—OMurilo?—perguntouAmanda,surpresa.—Elenãoéumbabacaenãotemcoragemdefazermalaumaformiga,quantomaisamim.

—OpaidoGabriel.TivemosumarixaantesdelesecasarcomaElisabeth,ummalentendido,nãoseiseelesuperouaquilo,mas...

—Não,não,não...opaidoGabrielestáforadequestão,nãofoiele.—Comopodetercerteza?—Ah, eu tenho certeza e ponto.—Amanda pensava que o próprio pai não

fariaaquilocomofilho.—Jáviquenãovaiadiantarmuitacoisa levantaralgunssuspeitos. Eu estou tão perturbada com isso tudo. — A garota não aguentou ecomeçouaenxugaraslágrimascomasmãos.—Nãoseiondeestavacomacabeçaquandofuimemetercomvocê.

—Oh,minhapequena,vemcá.—Romeusentou-senabeiradadacamaeapuxou para junto de si, envolvendo-a em seus braços. — Vai ficar tudo bem,prometo.Vamospedirajudaàpolícia.

—Sevocêcolocarapolícianomeioserápior,sintoqueestousendovigiadaotempo todo. Estou ficando louca, desconfiando de todo mundo, do taxista, daempregadadaminhacasa,daspessoasquepassampormimnarua.Atédosgatosestoucommedo.Prometaquenãovaicolocarapolícianisso.Sóháumamaneiradeconseguirmosdestruiraquelevídeo.

—Equalé?—Tenhoquecumprirumalistadecoisas.—Masquecoisassãoessas?—Coisascomoroubar,matar,extorquirdinheiro,invadircasas,etc,etc.—Você está brincando? Por que alguém ia querer que você fizesse isso? A

trocodequê?—perguntouRomeu,comocenhofranzido.—Estouexagerandoumpouco,masébemporaí.Enãofaçoideiadequem

estejabrincandocomigodessaforma.—Lágrimasrolarampelorosto.

—Tomecuidadocomoquevaifazer.Vemdeitarcomigo.—Romeuapegounocolo e colocou-a sobre a cama, deitou-se ao seu lado e ficou abraçado com ela.Continuoufalandoemseuouvido.—Nãofaçanenhumabesteira,podemosrastrearonúmeroqueteenviouovídeo.

—Jádissequenão.Chameivocêaquipraterminarmostudodeumavez.—Aspalavraslhedoeram,maselasentiaqueeraamelhorcoisaafazer.—Euteamomuito,masquefuturotereiaoseulado?Sereisempreasegundadama?—Elasoouirônicaaopronunciar“segundadama”.Aslágrimascontinuaramrolando.—Vocêtemsuafamíliaenãoqueroserumadestruidoradelares.

— Ei, ei. Fica calma, dê tempo ao tempo para que as coisas se ajeitem.Estamosnosgostando,nuncapenseiquefossechegaratanto,maseuqueriaquevocêfosseaprimeira.Sóquenãopodeserassimdodiapranoite.Vocêémuitonova ainda, nem fez dezessete anos. Eu não possome envolver num escândalo,destruiriaminhacarreiraesuavidatambém.Etemseupai,elememataria.Umescândalodessesjamaisotornariameusucessorcomoprefeito.

Era sempre a política na frente de tudo. Será que ele não pensava nelatambém?Erasóocasamentodele,acarreiradele.Eavidadela,comoficaria?

—Agoraestamosferrados—eladisse,apenas.—Voupedirquevasculhemtudoatéencontraremquemcolocouumacâmera

aqui.—Nãovaiadiantarmuitacoisa.Eujádecidi,queroterminartudo,mesmoque

issomedoamuito.Fiquetranquiloporqueeuvoufazerdetudopraessevídeonãovazar,eusótepeçoquenãoatrapalhe,nãocoloqueapolícianomeio.—Agarotaselevantoudacama,pegousuabolsaeoslivroseindicouqueiaembora.

Romeulevantou-selogoemseguidatentandoimpedirqueelapartisse.—Vaisermelhor.—Amandanãocontinhaochoro.—Nãomedeixe,porfavor—disseRomeu,abraçando-a.—Medesculpe.Porenquanto,nãotemosmaisnada.Talveznosencontremos

ainda.—Elaobeijouapaixonada.—Euteamo.—Amandaatravessouaportaesumiudevista.

Romeuficouatormentadonoquarto,pensandonasituação,compenadesuagarota. Ele não a deixaria sozinha,mesmoque ela não quisesse ajuda, ele fariaalgumacoisa.

CAPÍTULO19OPASSADODETEREZA

Hádoisanos,SarahencontrouTerezanaportadeumrestaurantetodasuja

com as roupas velhas e rasgadas, magra, cabelos duros como se não tivessemchegadopertodaáguahámuitotempo,elapediaalgumalimentooudinheiroparaque pudesse matar a fome. Sarah olhou intrigada para aquela mulher, o rostoparecia familiar. Decidiu convidá-la para almoçar, o garçom tentou impedir aentradadamendiga,masSarahinsistiuelevouTerezaaobanheiroparalavarasmãos,orostoeselivrarumpoucodasujeiraparaquepudessecomer.

Sentadaàmesa,Sarahcomeçouaconversaperguntandoonomedaestranha,aoouvi-lo,confirmousuassuspeitas.

—Sarah?VocêéaSarah?Aquecuidoudomeubebê?—Terezaestavacomosolhoscheiosdelágrimas.

—SimTereza,soueu.—Elaseguravaasmãosdamulher.—Oqueaconteceucomvocê?

—AindaprocuropeloNic,nuncaparei,nemumdiasequer.Vocêestá linda,continuaumaprincesa.—Terezafalavadebocacheia,deixandocairalgunsgrãosdearrozsobreamesa.

—Estávivendonasruas?Ondeesteveduranteessetempotodo?—Estiveandando,procurando,procurando...Sarah notou que ela não era mais a mesma mulher. Havia algum sinal de

loucuranomodocomofalavaenoolharperdido.—Tereza,vocênãopodevivernasruas.Suacasaestáabandonada,voltepara

lá.Agoraeupossoteajudar,tenhocondições.Voumandarreformá-laevocêpoderecomeçaravida.Querocuidardevocê.

— Não sei se consigo entrar lá de novo. — Depois de um breve silêncio,perguntou:—EoCésar,temnotícias?

—Ninguémmaissoubedele,depoisqueteabandonou.—Desgraçado.—Seusolhosdemonstravamódiopelohomemqueumdiafora

seumarido.Eladeuumgolenosucodelaranja.Sarahcomeupouco,estavamaispreocupadacomamulherdiantedesi,não

pareciamaiscomaTerezacheiadevidaqueconheceranopassado.SarahcuidavadeNicholasparaqueelapudesseirtrabalhar,omeninoerafácildesercriado,nãodavamuitotrabalho,gostavadeiràescolapelamanhãeatardeSarahopegavaeficavacomeleatéanoite,quandosuamãeobuscava.Naépoca,Terezatrabalhavaemumalojaderoupas,umpoucodistantedeondemorava.

—Amanda é uma garota linda— disse Sarah para Tereza enquanto dirigiapelas ruas da cidade. — É a mais velha, engravidei enquanto ainda estava nafaculdade,mastiveasortequeelequiscasarcomigo.Hojeeusoupsicóloga,tenhomeuconsultórioemeumaridodirigeasempresasdopai.GraçasaDeusmelivreida pobreza, tenhoumbommarido, filhos adoráveis quemedão problemas,mas

também se não dessem, não seriam filhos, nem eu saberia o que é sermãe.—SarahparoudefalarquandonotouaexpressãotristedeTereza.Elaparounosinal.—Praqueladoagora?

—Vireàesquerda.—Euqueroajeitarumpouco sua vida,mepermitaTereza, vocêmeajudou

quandoeuprecisava.—Esquerdanovamente—respondeucomosenãoprestasseatençãonoquea

amigafalava.—Podeseguir,távendoaqueleprédioali,éláqueeuvivo.Olocaleraumaconstruçãoinacabada,estavaabandonada,naruatinhamuito

lixo, poças d’água. Sarah ficou umpouco assustada, pois havia outrosmendigos,algumas crianças mal cuidadas. Elas entraram no local onde Tereza vivia, umcômodoescuro,sóhaviaumcolchãoealgunspapelões.Ocheirohorríveldasujeiradosgatoserainsuportável.Sarahficoumuitotristequandoviuaquilotudo.

—Querolevá-loscomigo—disseTereza.—Todoseles?—perguntouSarah,observandoum,dois,três...setegatosno

total.—Sim,nãoquerodeixá-losaqui.Elessãominhacompanhia.—Terezaestava

debraçoscruzados.—Tudobem.Masnãovaipoderseragora,vocêvaificarcomigoatéquesua

casa seja reformada.Mas eles... não poderão ficar lá em casa, o Arthur não iaaceitá-los.Alémdomais...

—Entãonãosaiodaqui.—Tereza,euprometoquevoltaremosparapegá-los.—Não,Sarah.Querolevá-los,sãomeusfilhos.—Tudobem.—Sarahtirouocelulardabolsaediscouumnúmero.—Praquemvocêvailigar?—Pedro?Oi aqui é aSarah.Estou comumprobleminhaegostariaqueme

ajudasse. Tenho seis... não, são sete animais. Alguns estão feridos e magros.Consegueficarcomelesporalgumtempo?

Terezaapenasobservava,curiosa,aamigafalandoaotelefone.Depoisqueelaterminouquissaberoqueiaacontecercomoanimais.

—Praondevãolevá-los?—AumPetShop,oPedroémeuamigo.Nãosepreocupe,elesserãotratados,

vãocuidardessasferidasdeles,serãoalimentadoselogoestarãocomvocênasuacasa.

—Porquefazerissopormim?—Porqueeusempregosteidevocê.SempregosteidoNicholascomosefosse

meufilhotambém.Eeusintoafaltadele.Masjásepassaramtantosanos,apolícianuncaconseguiuencontrá-loevocênãopodeviverassim,perdida.Temqueseguiremfrente,recomeçaravida.Vocêpoderecomeçar,Tereza.

SaraheTerezaseabraçarameseentregaramaochoro.Lágrimasbrotaramdosolhosdelas.Osgatosapenasasobservavam.

— Vai dar certo, tudo vai ficar bem. Confie em mim— disse Sarah, aindaemocionada.

Instantes depois, um furgão branco chegou ao local. Pedro e um ajudante

recolheramosanimaiseoscolocaramemjaulaspequenasparaquepudessemsertransportadosemsegurança.SarahdeixouTerezaemumSpaenquantofoiatrásderoupasparaaamiga.

Anoitecera quando Sarah chegou em casa ao lado de Tereza, rejuvenescidauns dez anos. Estava com uma aparência bem melhor, roupas limpas, cabeloscuidados,unhaspintadas.Sarahexplicouasituaçãoaomaridoque,prontamente,sesolidarizoucomasituaçãodapobresenhora,masavisouquenãoaqueriaemcasapormuito tempo.Ele lembravadocaso.Falouqueseria responsabilidadedelaenãohesitouquantoaoqueSarahplanejavaparaTereza.

Levou quase dois meses para que a casa de Tereza ficasse pronta. Entrarnaquele ambiente de novo não a fez bem no início, mas aos poucos algumaslembranças boas do garotinho brincando pela sala, os carrinhos espalhados portodocanto, logose transformaramem lembrançasmelhoresdoqueasque tinhaquandovagavapelas ruas.Acasaera simples, ficavaaduasquadrasdamansãoondeSarahmorava.Umasemanadepois,osseteanimaischegaramparaalegrarumpoucoavidadamulher.

TerezadisseaSarahqueprecisavadealgumtrabalhoparaseocupar,entãoaamigalogoteveaideiadecompraralgumaslavadorasderoupasparaqueTerezativesseumaocupação.ComaajudadeSarahconseguiualgunsclientes.Depoisdealgunsmesesestavaconseguindosemanterporcontaprópria.

FicoudecididoqueTerezafariaacompanhamentocomSarahpelomenosduasvezespormês.Terezaadquiriubonsespaçosdetemposemterapia,massemprehaviaummomentoemquealuzestavaseapagando,eraassimqueelasereferiaquandoestavaprestesaterumacrisedepressiva.NamaioriadasvezesrecorriaaSarah,outrasvezesseusbichosconseguiamconsolá-la.Assimiavivendoentreosdiasescuroseosdiasdeluz.

Avidadavelhasenhoramudouderumofazmuitotempo,emumdiaquetentou

passarumaborracha,masnuncaconseguiuapagá-lodesuamemória.Elaaindaeraumamulher feliz, tinha seumarido e um filho pequeno de cinco anos de idade.Estava passeando com o garoto no parque em umamanhã de sábado. A toalhaestavaforradanagramaeumacestadecomidasdoladoparaopiquenique.

Terezaestavasentadanagrama,conversandocomsuaamigaSamanthaquetambémtinhaummeninoloiroumpoucomaisvelhoqueNicholas.Osdoismeninosestavambrincandoalipertodelas,chutandoumaboladeumparaooutro.

—Eunãoseimaisoqueeufaço—disseSamantha.—Diegonãomedeixaempaz, ele quer fugir Tereza.—Ela colocou amecha de cabelo loiro que o ventosoproudevoltaatrásdaorelha.

—Sam,vocênãopodeiremboraassim.Largarseumaridoeseufilho?Issoéloucura.VocêdeviaterminartudocomesseDiego.Salveseucasamento.

—T,nãoconsigomaisvivercomoJuliano.EuamooDiego,estoucertadisso.OúnicoproblemaéqueelenãoquerlevaroEnzojunto.

—Samvocêficoulouca.Teriacoragemmesmodefugir?—Terezatirouosfiospretosdeseucabeloqueentraramemsuaboca.

— Estou pensando seriamente nisso. — Samantha olhava para seu filhocorrendoatrásdabola.—Temosqueficarcomquemagenteama,Tereza.

—Mas comquemnosama, também,Sam.Seele te amassede verdade, teaceitariacomomenino.Então,jácomeçaporaí.

—Cuidariadelepramim?—Quepergunta!— Prometa, T. Prometa que cuidará dele se eu partir ou se me acontecer

algumacoisa.— Sam...— Tereza não acreditava que aquelas ideias estivessem passando

pelacabeçadaamiga.—Claroquecuido,prometo.Masnãofaçanenhumaloucura.— Mamãe — o grito de Nicholas cortou a conversa delas. O garoto veio

correndoemdireçãoaela.—Mamãe,temosquesalvarogatinho—disseomeninoassimqueaalcançou.

— Gatinho, meu bem? — Tereza o achou tão lindo, mas ainda do que decostume, havia momentos como aquele que o amor que tinha pelo filhotransbordavasemexplicação.

—Simmamãe,estápresonaárvore,vamos.Enzochegouemseguidaeabraçousuamãe.—Játemosqueirmeuamor.Estáficandotarde.—Queroficarmais—disseEnzo.—Nósvamossalvarogatinho.—Vamos,mãe,vamos—insistiuNicholas.—T,estánahoradeirmos.—Vamosmãe.Terezaolhouparaorostinhodomeninoesentiuvontadedeajudá-lo.—Tudobem, vamos ver se conseguimos tirá-lode lá.Sam, você recolheas

coisas?Prometoquevoltorápido.—Tudobem,podeir,masporfavor,voltelogo.Terezalevantou-seepediuqueofilhomostrasseocaminho.Ogarotocomeçou

acorreranimado.—Enzo,ficacomamamãe—disseSamanthaaoveromeninoirjunto.—Queroir.—Porfavor,ajudeamamãeaguardarascoisas,sim?—Ah,mãequeroir.—Enzo.—Samanthafalouonomedeledeumjeitoqueomeninojásabiaque

nãoadiantavainsistir.Entãoelevoltouecomeçouaguardarosrestosdecomidanacesta.

Nicholaslevousuamãeparadentrodaflorestaquehaviaaoredordoparque.Andaram alguns metros e Tereza se sentiu assustada por imaginar que o filhoesteveandandoporalicomoamiguinho,sozinhos,pisandoemgalhosepedras.Elaestava distraída conversando com Samantha e não notou até onde os meninostinhamido.

—Nicholas,vocêsvieramatéaqui,sozinhos?—Sim,mamãe.—Nuncamais faça isso, vocês podem se perder. Vamos embora.—Tereza

agarrouamãodogaroto.—Nãomamãe,temosquetirá-lo.—VamosNicholas,nãotemgatonenhumaqui.Entãoelaouviuomiadodesesperadodoanimal.—Ali.—Nicholasapontouparaoalto.Tereza sentiu pena do bichano no alto de uma árvore, amedrontado sem

ninguémquepudesseajudá-lo.—Voutentartirá-lo,masjáavisoquenãovamoslevá-loparacasa, játemos

gatosdemais.Enãosaiadaqui,peloamordeDeus.Prometaquenãovaisemover.—Prometo.Ela subiu na árvore com dificuldade, aproximou-se o máximo que pôde do

bichoechamava-ocomamão,naesperançadelecriarumpoucodecoragem.—Nic,estáaíembaixo?—Elaviaofilhoentreasfolhasdaárvore,masqueria

certificar-sequeeleestavabem.—Estou—disseomenino.Terezaconseguiuchegarpertodele,masobichomordeuamãodelaetentou

arranhá-la.— Calma gatinho. Vou te salvar. — Tereza falava com doçura, ela gostava

muitodeanimais,principalmentedosfelinos.Nicholasherdoudesuamãeoamorporeles.

Depoisdemuitainsistência,Terezadesceucomelenosbraçoscomosefosseumbebê.Eladecidiuqueolevariaparacasa,poispeloestadodemagrezaealgunsferimentospertodoolho,ogatonãoteriaalguémqueseimportassecomele.

Elachamoupelomeninoenquantodescia,empolgadaparamostrarobichano,masogarotojánãoestavanomesmolocal.

—Nicholas?—chamouonomedeleassimquedesceudaárvore.Olhouparaosladosenãoviumaisogarotinho.Começouaficarpreocupada.

—Nicholas?Eladeualgunspassosmaisadentrodafloresta.—Nicholas?Nãohaviabarulho,alémdosomdasárvoresedealgumasvozesqueconseguia

ouvirvindasdoparque.—Nicholas?Ouviu um barulho estranho como se fosse algum animal correndo entre os

galhos.Pensouquepoderiaserseufilhooualguém.Correu de um lado para outro gritando pelo filho. Omenino prometeu que

ficaria ali e ele não era de quebrar promessas com sua mãe. Alguma coisa odistraiu,qualquercoisa,umpassarinho,umaborboleta,eleeraloucoporbichos,foiissoqueaconteceu,pensouTereza.

Maselanãooencontroualinomeiodomato,entãovoltoucorrendoparaoparquenaesperançadeencontrá-lo.Nenhumdosgarotosqueviaeraodela.ElafoiatéondeSamanthaestava,jácomascoisasrecolhidaseofilhonocolo.

—Sam,cadêoNicholas?Eleveioaqui?—Não,eleestavacomvocê—disse.—MeuDeus,omeufilho...euperdimeufilho,Sam.—OcontroledeTereza

havia sedissipado.Opavorepânico tomaramcontadelaeas lágrimas contidasdesabaram.—Meajudeaachá-lo.

Terezaaindaestavacomogatonosbraços.Elacomeçouaberraronomedofilho,correndodesesperadaperguntandoaspessoassehaviamvistoummeninodecincoanos.

SamanthaagarrouamãodeEnzoecomeçouaprocurarpelofilhodaamiga,pediuinformaçõesatodosqueencontrounoparque,masninguémsabiadizernada.

Tereza voltou ao mesmo local onde salvou o animal. Seus gritos estavamcomeçando a falhar, tudo o que pronunciava era o nome do filho, isso comoveuváriaspessoasquesedispuseramaajudar,vasculharamtodososcantospossíveis,masnãoencontraramogaroto.

Seu marido, César, chegou ao parque duas horas depois quando a mulherperdeuaesperançadeencontrarogarotoali,ele ficoutranstornado,gritoucomTerezaeacertouamãopesadanafacedamulher,elafoiaochãoaosberros,nãopeladoreaqueimaçãonorosto,maspelovazioqueseinstaurouemsuaalma.

Samantha ficou assustada com a cena e gritou com César pedindo que eletivesseumpoucodecompaixão.Enzocomeçouachorareamãetentavaacalmá-lo.

Apolíciafoichamada,passaram-sehoras.Passaram-seosdias.Tereza continuava nas ruas procurando pelo garoto. Sarah, a garota que

cuidavadeNicholasiajuntocomela,colandocartazescomafotodeleempostesemuros.

Passaram-sesemanas.ECésaraabandonou.Umdia,Sarahchegoucedoemsuacasaparacontinuaremasbuscasenãoa

encontrou.Terezahaviapartidoporumcaminhosemrumoenuncamaisparoudeandarà

procurado filho.Ela passou a viver nas ruas, entregue à sorte.As latas de lixoeramsuafontedesobrevivência,asportasderestauranteslhegarantiamalgumasmoedaseàsvezesumpratodecomida.

A loucura tomoucontadelaenãosabiamaisondeestava.Elaseperdeunomundo, pegou várias caronas. Conheceu o mundo das drogas, mas nunca seesqueceudomenino.

Aindaestavavivaporquetinhaesperançadeencontrá-lo.

CAPÍTULO20BOANOITEVANESSA

— Chegou a hora mais esperada, meus queridos. Agradeço a paciência de

vocêseagoranósvamosverovídeoemqueocineastaRicardoValenteinsultaumagarota de “negrinha nojenta”. Isso mesmo que vocês ouviram. Roda o VTprodução.

VanessaVelasqueseraaapresentadoradoBoanoiteVanessa, umnoticiáriosensacionalista que passava no início da noite. A maioria das reportagens eraflagrasdeacidentesecoberturadecrimesquechamavamatençãodapopulação.

AsimagensmostraramomomentoemqueKrystalbateunocarrodeRicardoeadiscussãodosdois.

— Agora prestem atenção nos lábios dele. — A imagem voltou a focar aapresentadora.—Asimagensnãocaptaramsom,masacenafoiexaminadaporumespecialistaemleituralabialqueconfirmamasduaspalavras:“negrinhanojenta”.

AparteemqueRicardoinsultaKrystalpassouemcâmeralenta.—Virammeusamigos?Eaindatemgentequedizqueracismonãoexiste.Se

poracaso,elafossebranca,seráqueeleateriachamadodebranquinhanojenta?Certamente,não!Vejamoquesaiudabocadeumdiretordecinema,umhomembem instruído, educado, que inclusive já tratou do tema em um filme em quedefendea igualdaderacial.Pramim, racismoéumsentimento,écomooódio,ainveja,algumaspessoassimplesmentecultivamemseuscorações.Querosaberaopiniãodevocês,mandemTwittespragentepoderdebater.

Vanessaeraloiraeusavasempreumterninhocomumdecotequedestacavaseusseiosavantajados.Elamantinhaumaposturasériaeumpoucoarrogante.Suavozerairritante.Elaerabonita,etinhaseucharme.

@gutodezessecaraéumcanastrão,osfilmesdelesãopéssimos@movieandmovie deve ter sido um equívoco, o Ricardo jamais falaria uma

coisadessas@mano10elabateunocarrodele,seráqueninguémviuisso???@nadaeimpossivelnadajustificaaatitudedele@mulhermaduraentão,vocêquerdizerquesomostodosracistas???Porque

todoserhumanosenteódio,invejaeaporratoda.VocêéracistaVanessa?@pretinhacara,vocêéumavaca,paradefalarbesteiranaTV@dadopravcmostraaporradovídeotodoeparadeenrolar@paulaeletemquepedirdesculpasempúblico,issonãopodeficarassim@vitinho10nãoassistomaisnadadessecaraseelenãopedirdesculpas— Gente como vocês estão empolgados nas mensagens. — Vanessa estava

sentadaàbancadalendoasmensagensemumtablet.—Estãoatéperguntandoseeusouracista.Meubem,sócultivooamor,étudooquetenhoprateresponder.Olhasó,muitagentefalandoqueeleprecisapedirdesculpas.Euapoioacausa,quetal nós subirmos a hashtag #RicardoValentePedeDesculpas ? Está lançada acampanha.Eatendendoapedidosvamossoltarorestodovídeo,aparteemqueeleagrideumhomemnegroquetentouajudaragarota.Vejamsóisso.

—Essavadiavaiacabarcomaminhacarreira—disseRicardonomomento

emquedesligouatelevisão.—Aimbecilcortouaparteemqueeleiniciaabriga,nãofuieu.

—Calma,pai—disseGabrielqueestavasentadoaoladodelenosofá.—Mastambém,tinhaquechamá-ladaquilo?

—Gabriel,elabateunomeucarro,vocêprecisavavercomoelafoiestúpida.Tive a impressão de que foi de propósito.—Ricardo estava furioso, segurava ocontrole remoto apontando para o garoto, suas palavras pesavam toneladas nosouvidosdofilho.—Perdiacabeçanahora,jáestavaestressadoporsuacausa.

—Eunãofiznada.Nãotenhoculpadememandaremumcarroporengano.—Sóseiqueessahistóriaémuitoestranha.—Eaí,voltoulánaconcessionária?—perguntoucomoquemnãoquernada,

masquerouvirtudo.—Secertificoudequetudonãopassoudeumengano?—Decidi nãoperdermaismeu tempocom isso.Sóqueria saber comoessa

vagabundaconseguiuessasimagens.—Sei lá, temcâmerapor tudoquanto é ladonessa cidade.Vai ver ela tem

contatocomopessoaldo trânsitoouquemsabeaproduçãodela tenhacolocadocâmeraspararegistraralgumflagra.Eladeusortedetersidovocê.Eacoisavaificarséria,vocêtemquepedirdesculpas.

—Engraçadinho.Nãovoupedirdesculpas.—Amoçapodeteprocessar,vaiserpior.Seuquisereupostoumfrasebem

legalporvocênoTwitter.—Gabriel,vocênãovaifazerisso.ElesouviramavozdeElisabethvindadasaladejantarchamando-osàmesa.—Euvouindo,estoucomfome.Vocênãovem?—Jáchego,precisotiraraimagemdessamulherdaminhacabeça.Apaguea

luz,porfavor.Gabriellevantou-seeapagoualuzdasalaondeestavadeixandoopaisozinho

noescuro.Ricardo respirava fundo, tentando afastar as imagens que viu na TV e

procurandoummotivoparaaquelagarotatercruzadooseucaminho,piorainda,paraaquelecaratersurgidodonada.Foiumdiademásorte,pensou.

Aindahaviaalgunsferimentosemseurosto,manchasesverdeadasadornavamseuolhoesquerdo.

O display do celular acendeu. Ricardo olhou de lado e viu que era umamensagemdetextoquedizia:

Euseinoqueoseufilhosemeteu!Aguardemaisinformações.

Foicomojogarlenhanafogueira.Ofogoardeudentrodelequandoleuaquilo,

nãosabiasesuaraivaeradapessoaqueestavamandandoaquelasmensagensoupelo fato de imaginar que Gabriel pudesse estarmetido com coisas erradas. Jáhavia recebido outras anteriormente, uma delas pedia que Ricardo olhasse oFacebook do filho no dia em que ele foi ao rio. Depois recebeu fotos do garotopelado, pôde perceber que o próprio Gabriel havia feito as fotografias, pois eleseguravaosmartphoneemfrenteaoespelho,amensagemseguidadafotoelogiavaabelezafísicadorapaz.Gabrielmandouasimagensparaaquelenúmero,poiseraumdositensdesualista.

Na noite em que arranjou aquela briga, a mensagem recebida dizia: Belopresenteseufilhorecebeu.Seiquemmandou,fiqueemsilênciocasoqueiramaisinformações.

Ricardotentouligarparaonúmero,masnãoconseguiu.Tevevontadedechamá-loali,poisaquelesrecados jáestavam lhe irritando,

mas preferiu esperar e tentar descobrir sozinho se seu filho estavametido comalgumtipodeprostituição.

PARTEDOIS:SEGREDOSEMENTIRASOSegundoéumtipomaisdifícildesegredo:aquelequevocêescondedesi

mesmo. Todos os dias milhares de confissões não são feitas a seus potenciaisconfessores, e nenhuma das pessoas sabe que todos os seus segredos jamaisadmitidosseresumemàsmesmaspalavras:estoucommedo.

MaggieStiefvater,LadrõesdeSonhos.

CAPÍTULO21AASSASSINA

Tereza passou alguns dias na clínica de reabilitação na qual iniciou seu

tratamento com Sarah. Ela mesma quis isolar-se um pouco. Suas lembrançasestavam confusas e não estava conseguindo se controlar. Sarah percebeu que aamiga andava alterada e ficou preocupada que Tereza estivesse perdendo ocontroledesiprópria.

Umasemanapassourápido.Natardedesexta-feiraAmandasaiudecasacomroupadecorridaparadaralgumasvoltas,poisaansiedadeestavaconsumindo-aaospoucos.Pareceroteirodecinema,masagarotapassoucorrendopelacasadeTerezaquandopercebeuumamovimentação.Ocarrodaclínicaestavaestacionadoemfrente,elaparoueescondeu-seatrásdeumaárvoreparaobservar,viuTerezasairdocarro,acompanhadadeumrapazeumamulhergorda,vestidosdebranco.

—Entrem,entremqueridos.Vamos,vouprepararumcafépravocêsdois—disse a velha para os enfermeiros. Aparentemente ela estava bem. Amanda nãoouviu,poisestavalonge,dooutroladodarua,mascontinuavaaobservar.

—Nãosepreocupeconosco,senhora.Temosoutrosafazeresenãopodemosnosatrasar,vocêconheceaSarah—disseamulhergorda.

—FiquebemTereza,cuide-seeseprecisardealgumacoisanãoseacanhe—falouojovem.

—Agradeçoavocês.SóDeuspoderápagá-los.Osenfermeirosentraramnocarroeforamembora.Amandaencolheu-seatrás

do tronco para que não fosse vista. Tereza abriu sua porta, entrou em casa,chamandopelosfilhotes.

—Mamãechegou,queridos.Ondeestão?—Quandoelavirou-se,viuBertrandestiradonosofá.—Preguiçosodemamãe,acordaquerido.—Elafalavademodocarinhosobatendopalmasnadireçãodele.—AcordaBert,cadêseusirmãos?

Bertrand tinha o pelo marrom, sem marca alguma, apenas uma tonalidademaisfortenaspataseorelhas.

Elapassouamãonogatoenotoualgoestranho.Elenãosemexeueestavaduro.Um frioarrepiouospelosdobraço, subindoatéanuca.Elaafastou-sedoanimal,assustada,tentandoafastaraquelepensamentoquelheveioàmente.Erasó um pensamento, precisava se concentrar, Bertrand estava bem e não podiadeixarqueospensamentosruinstirassemsuapaz.

—Gertrudes,ondevocêestá?—Agataerabranquinhaetinhaumolhosó.—Linda, Bartolomeu...?— A velha estava amedrontada, se sentia em um filme deterror. O silêncio reinava na casa. Ela andou devagar até a cozinha e sentiu ocoraçãogelar ao avistar Leonel, em cimada geladeira,Bartolomeu eGertrudesestavamemcimadamesa,Lindaestavanochão,aoladodofogãoearquejava,suapatinha ainda tremia. Ela era amais linda, com seu pelomacio e dourado, suacaudapareciaumespanador.

“Elessóestãodormindo”,pensou.Pôsamãonocoração,puxouarespiração,caminhoucaladaatéseuquartoenãoachoumaisnenhum.Voltouaandarpelasala,olhouparaBertrandporcimadosofáebalançouacabeçaemsentidonegativo.Dirigiu-se ao quarto dos filhotes, como os chamava, era bem organizadoespecialmente para eles. Havia três camas beliches em miniaturas, feitas sobmedida para seus gatos, com colchões e lençóis, uma cama era normal paracompletarosseteleitos.

Haviaalmofadasredondasdispostaspeloscantosparaquepudessemteroutrolocaldedescanso, algumasbolinhasde linhaeoutrosbrinquedos,umprato comraçãoeumbebedouroparaanimaisaindacomágua.

QuandoTerezaacendeualuz,viuMagnóliaesparramadanacamadecimadeumadasbeliches,Serafimestavaemumadasalmofadasesticadoecomosolhosarregalados. A mulher ficou perturbada, mas só pensava que aquilo tudo eraalucinação de sua cabeça, afinal passara alguns dias na clínica para evitar umarecaída,talvezaindaestivessesoboefeitodealgummedicamento.Elaapressou-seemocuparamentecomalgumacoisa,ligouatelevisãoepôsnoúltimovolume,onoticiáriofalavadealgumcrimeocorridonaperiferiadacidade,entãoelapassouvárioscanaisatépararemumprogramadeculinária.

Correuatésualavanderiaqueforaimprovisadaemumantigoquartoamplo,ajanela ficava na frente da casa. Ela ligou asmáquinas, começou a jogar roupasdentrodelas,masopensamentocontinuavaemseusfilhotes.

Elesestãodormindo,sóestãodormindo.—Sim, estão dormindo. São dorminhocos, eles adoram isso, adorampregar

peçanamamãe,euseidisso.—Nãoparavadejogarroupasdentrodaslavadeiras,eramtrêsefalavasozinha.

Amandaaindaestavaláfora,escondidaatrásdaárvoreesperandoumgritodehorror, algum desespero, mas nada. Decidiu continuar sua caminhada, mas nãopassouemfrenteàcasadavelha,deumeiavoltaeseguiuoutrocaminho.Seurabode cavalo balançava de um lado para o outro conforme suas passadas, quandodobravaumaesquinaesbarrouemGabriel.

—Ah,ah,vocêquermematardesusto?—perguntou,aborrecida.—Calma, não sounenhumestuprador pra você ter tantomedo.Oque está

aprontandohein?—Nada...sómeassustei.—Sei...comoandasualista?Atéagoranãosoubedenadaquetenhafeito—

perguntouGabriel,falandobaixinho.—Estounervosacomisso.Fizumacoisaquemedeixouarrependida,mas...—Nãoteveescolha—completouGabriel.—Tenteipensaremumaformade

descobrirquemestáportrásdisso,maséimpossível.—Mepergunto por que estão fazendo a gente cometer essas bizarrices. A

trocodequê?—Não sei.—Gabriel deu de ombros, sentindo-se impotente, sem saída.—

Estamoscomafacanonossopescoço.—Vocênãotevevergonhadeandarpeladopelaescola?—perguntouagarota,

sentindo-securiosa.

Gabrielsoltouumrisoefalou:—Umpouco,mas pelomenos as pessoas da escola gostaram deme ver, e

corrigindosuafala,eunãoestavapelado.Umcarropassoudevagarnaruaondeestavamparadosnacalçada.Amanda

olhoudeesgueiraeviuumhomemmagro,commetadedorostomanchadodecinzapelasombradabarbafeita.

—Vamosemboradaqui—disseAmanda.ElaagarrouGabrielpelobraçoeoforçouacaminhar.

—Oquefoi?—Aquelecarropassoudevagardemais,tiveasensaçãodequeeleolhoupra

nós.—Seacalme,vocênãopodedartantabandeiraassim.—Achoqueestamossendoseguidos,vigiadosotempotodo.— É, pode ser... — disse Gabriel, analisando a possibilidade. — Mas da

próximavezajacommaisnaturalidade,observebem,memorizeaplacadocarro,orostodapessoa.

—Achaqueeuconsigopararprapensar?—falou,irritada.—Nãotenhoseusanguefrio,comovocêconseguenãoficarpreocupadocomtudoisso?

—Éclaroqueeuficopreocupado,masnãopodemosperderocontrole.Vamosseguira lista,mastemosque ficaratentosacadadetalhequesurgir.Temosquedescobrirquemestáportrásdetudo,pormaisremotaquesejaapossibilidade.

—Tudobem,prometoquevoutentardapróximavez.—Euvoucontinuarminhacorrida—disseGabriel.Ele seguiuocaminhoqueAmandaestava trilhando, logopassoupela ruade

Dona Tereza, amulher estava na janela e o viu, gritou seu nome,mas o jovemcontinuoucorrendo.

—Gabriel, socorro—gritouamulher. Issochamouaatençãodo rapazqueparoue ficouolhando,ela sumiuda janelae logosaiupelaportacorrendocomopôde, seu corpo esquelético se balançava num vestido florido, seus cabelosestavam,digamos,dominadosporumelástico.

Terezasegurounosombrosdelequandooalcançou.—Precisosódeumaajudarápida,simgaroto?Gabrielusavaumaregatabranca.—Nãoseisepossoajudar.Estoucompressa—respondeu,tirandoasmãos

deladecimadesi.— Só preciso queme diga que não estou louca novamente, quero que veja

algumacoisaemedigaseéoqueeuvejo.Porfavor,meajude.—Amulherestavaatônita,falavarápido.Gabrielficouumpoucoassustado.

—Oquequerqueeufaça?—Apenasquevejasemeusgatinhosestãobememedigaqueestãodormindo.—Ah,seusgatos.Eondeelesestão?—Venha—amulherarrastou-opelobraçoatéacasa.Gabrielentrouetapou

onarizporcontadoforteodorqueosanimaisdeixavamnoambiente.Eleolhouemvolta,viuoanimalnosofá.

—Estáduro—disseaosentirobichano.—Asenhoraomatou?

—Não,nãoomatei—rosnou.—Eleestádormindo.Venhaverosoutros.—Tereza levouGabrielatéacozinha,eleviuosbichosemcimadageladeiraedamesa,notouqueestavamnomesmoestadodeBertrand.ElemexeuemLinda,queestavanochão,comopéepercebeuqueestavadurinhacomoumapedra,mortacomotodososoutros.

—EstãomortosDonaTereza.Oqueasenhorafezcomeles?—Eunãofiznadagaroto—berrouamulhernacaradorapazaoagarrarsua

camisacomasduasmãosetrazê-loparabempertodesi.Gabrielsentiugotículasdesalivarespingaremseurostoeumhálitoquente.—Nãoosmatei,nãosouumaassassina.

—Melargue,porfavormelargue...—Nãoestãomortos,émentirasua,digaqueémentira.—Terezasacolejava

Gabriel, que conseguiu desvencilhar-se dela e saiu desesperado, correndo pelasruaseeminstantesentendeutudo.

Sim, Amanda havia feito aquilo. Como? Ele não sabia, tinha alguma ideia,provavelmentealgumveneno.Foiesseodesafiodagarota,porissoelaestavatãonervosa.Gabriel continuousuacorridaatéoparquequenão ficavamuito longe,davaparaencararacaminhadatranquilamente.

Anoiteceu.Amandaabriuaportadecasaparareceberavisita.EraGabriel.O

rapazestavacomasmãosnosbolsosdocasacoquandooviu.—Olá,boanoite.—Oi,boanoite,entra—disseAmanda,cumprimentandooamigocomumbeijo

norosto.—Algumproblema?—É...—GabrielprocuravaaspalavrascertasparanãopreocuparAmanda.—

Euprecisavafalarcomsuamãe,elaestá?— Ainda não chegou, mas o que você quer falar com ela? — perguntou

Amanda,intrigada.—AconteceuumacoisacomaDonaTereza.Maiscedoquandoeuteencontrei

narua,algoruim...—Gabrielobservavacadadetalhedaexpressãodagarotaeaviuengoliremseco.

—Oquefoi?—perguntou,sentindooestômagorevirar.—ATerezamepuxoupradentrodesuacasapramostrarosgatinhosdela,

mortos. Estavam espalhados pela casa — disse Gabriel, num sussurro com aintençãodecausarmedoemAmanda.Elegostavadeveracaradepavorqueelafazia.

—Deus...—disseAmandanumsussurro,levandoamãoàboca.—Vocênãopodefalarissopraela.Minhamãejátemmuitosproblemas.

— A velha precisa de ajuda, ela não quer acreditar que estão mortos, sealguémnãoforlá,osbichosvãoapodrecer.Eninguémmelhorquesuamãeparaajudá-la.

—DeixedeserhipócritaGabriel.—Amandaabriuaportaeagarrounobraçodoamigolevando-oparaforadacasa.—Peloquepercebo,vocêémuitoespertoejá sacou que fui eu quem fez isso e mesmo assim você vem colocar lenha nafogueira.Queamigoévocê?

—Réconfessa—ironizouorapaz.Elerespiroufundoecontinuou.—Eunãoestoufazendo issoprateprejudicar.Alguémtemqueajudaraquelamulher,vocêprecisavaveroestadoemqueelaestava,nãoacreditouqueestivessemmortos.Eutenho certeza de que ainda estão lá nomesmo canto e vão ficar até que ela seconvença.

—Deixeascoisasacontecerem,vocênãoprecisasemeternisso.Amandaviuocarrodamãeentrarpeloportão,elaparouocarropróximode

ondeelesestavamconversando.—OiGabriel.—Saraho cumprimentou.—Porqueestãoconversandoaqui

fora?Estáfrio,vamosentrar.—Mamãe— gritou o irmão de Amanda, da varanda, no primeiro andar da

casa.Esumiuemseguida.—Elejáestavaindomãe—disseAmanda,antesqueorapazfalasse.—Sim,estavaindoporqueasenhoranãoestavaemcasa.Masjáquechegou...—Hum,queriafalarcomigo.Algoqueeupossaajudar?—ÉsobreaDonaTereza.—Gabrielexplicoutudooqueaconteceuecomo

imaginavaqueapobresenhoraestava.—MeuDeus.Elatemagidodeformaestranhadeunstempospracá.Eunão

seimaisoqueeufaçocomaTereza.Euvouláagora,vocêsqueremvircomigo?—Ai,eunãovoumãe.—Eupossoircomasenhora.—Mamãe.—Oirmãojáestavaagarradoàspernasdamãe.—Agora não, filho.Mamãe vai sair e já volta. Fique com sua irmã. Vamos

Gabriel.—Euvoujunto.—Omeninonãoperdeutempoeentrounobancodafrente.

GabrielentrounocarroeseguiucomSarahatéacasadaTereza.Sarahdesceudocarro.Gabrielveiologoatrásdela,passarampelacercade

madeira,pintadadebranco,dacasadeTereza.Ogarotoosacompanhou.AmãedeAmandaabriuaportacomaschavesquetinha.

—Tereza—gritouaoentrar.—Umdelesestavaaqui,Sarah,nosofá—disseGabriel.—Outrosestavamlá

dentro.—Elescaminharamatéacozinha,aportaquedavaparaoquintalestavaaberta,aluzdoladodeforaacesa.

— Tereza— disse Sarah, com a voz mais fraca ao ver a velha de joelhos,fincando uma pá no solo. Estava cavando um buraco. Os cabelos desgrenhadoscobriamtodoseurosto.Olocalestavaescuro,eraembaixodeumaárvore,aluznãoiluminavamuitobem.

Sarahaproximou-se,Gabrielficavamaisdistante,estavacautelosoemrelaçãoàreaçãodamulher.Elapareciacomódio.

—Vocêtinharazãogaroto.Estavammortos—disseTerezaaofincarapánaterra,olhandoparaorapazqueestavaaoladodaamiga.

—Tereza,oqueestáfazendo?—perguntouSarah,comumolhardepena.— Apenas preparando o descanso dosmeusmeninos. É aqui onde eles vão

descansar.Pertinhodemim.—OolhardeTerezaeravazio,comoseprocurassealgoparaadmirar,masnãoencontrava.Elavoltoucavar.

—Tereza,oqueaconteceucomeles?—Estavammortosquandoeucheguei,durinhos.Chegouahoradeles.—Ela

nãoparavadecavaroburaco.GabrielnotouosseteanimaisdispostosumaoladodooutroatrásdeTereza,

elesestavamemcimadeumatoalhabranca.—Achoque jáestábom.—Avelha levantou-seecaminhouemdireçãoaos

bichanos,agachou-seaagarrounasduaspontasdatoalha.—Meajuda,garoto?—perguntouaGabriel, indicandoqueo rapaz segurassea outra extremidadeparaquepudessemcolocá-losnacova.

—Claro.—Orapazagachou-seejuntocomavelhalevantouatoalhacomoscorpos,dispuseramcomcuidado.

—Tereza...—OcorreuaSarahaideiadenãoenterrarosanimaiseinvestigaramortedeles,masvendoamulherconformadacomasituação,hesitouenãodissemaisnada.Terezaaencaroueelaapenassorriu.

Tereza havia colhido alguns girassóis que existiam na frente de sua casa,estavamaolado,elacomeçouacolocarasfloresentreoscorposdeseusmeninos.Sarah aproximou-se, ficou de joelhos e ajudou-a a colocá-las. Por fim, a velhasenhoracobriutodoselescomummantobranco.

—Nãoqueroquefiquemsufocadoscomaterra.Gabrielpegouapáecomeçouajogartodaaterradevoltaaoburacoquenão

eramuito fundo.Terezapermitiuque ele fizesse isso semdizer algumapalavra.Sarahlevantou-sejuntocomTerezaeapoiouobraçosobreoombrodaamiga.

—Vamosentrar,estáfrio—disseSarah.Tereza jogouoúltimogirassolquetinhanamãoemcimadacova.

Os três caminharam para dentro da casa. Sarah levou Tereza ao quarto,enquantoGabrielficounasalaesperando.

—Elaestánobanho—disseSarahaovoltar,faloubaixinhoparaqueaoutranão ouvisse.—Quero que recolha tudo que eles possam ter comido. A ração, aágua,qualquerbiscoitoqueencontrar.Elesnãoiammorrerassimdonada.

—Asenhoraachaquepodemtersidoenvenenados?—Acho,nãovejooutraexplicação.Nãoquiscomentarnadacomelaparaque

nãofiqueperturbadacomisso.Masquerotiraressadúvida.Podetersidoalgumvizinho,enquantoelaesteveausente.

—Tudobem.Gabrielfoiatéacozinha,pegoualgunspotesdeplásticonoarmárioecolocou

araçãoqueencontrounochãoemumabandeja,despejouaáguadobebedouroemoutrorecipiente,encontroualgunsbiscoitosprópriosparaanimaisjogadosnochão,examinou cada canto e depois procurou mais na sala, depois no quarto dosgatinhos.

Momentosdepois,SarahconseguiufazerTerezadormircomaajudadealgunsremédios.ElaeGabrieldeixaramacasa.

—Coitada,vivesozinha.Tenhopenadela.Nãotemnenhumparentevivo?—perguntouGabriel,jádentrodocarro.

—Localizei uma irmãdela que aindamora aqui,masnãoquis saber. Todossentemraivadelaporterperdidoogaroto.Eraummeninoadorável,naépocaemqueeledesapareceutodosaculparam.Elacomeuopãoqueodiaboamassou.

—Felizmentetemvocêparaajudá-la.—Sim.EuadoravaoNicholas,eraababádele.Foiumtempodifícil,euera

uma menina ainda, passava um sufoco danado sem dinheiro. Minha mãe ficoudoentenaépocaeadivinhaquemmeajudou?

—Tereza.—Sim,eutenhoumadívidapratodavidacomela,por issonãovoudesistir

Gabriel,nuncavouabandoná-la.—Sarahnãoseconteveepermitiuquelágrimasmolhassemseu rosto.—Deuscolocoueladevoltanomeucaminhoparaqueeupudesseretribuirtudooqueelafezpormim.Coitadadavaumdurodanadoprasesustentareaindasepreocupavacomigo.

—Nãoseimuitosdetalhesdessahistória,maseomaridodela?Meupaidissequeelenãoeramuitobom.

—Nãoera.Elefoioprimeiroaatirarpedrasquandoomeninodesapareceu,nãotiroarazãodeletersentidoraiva,afinal,foidescuidodaTereza,masninguémperdeumfilhoporquequer,entende?

GabrielbalançouacabeçaemsentidoafirmativonomomentoemqueSarahparouocarrodiantedacasadele.

—Obrigadopormedeixaremcasa.—Euqueagradeçoporteravisado.—Secuida.

Sarahchegouemcasacomospotesdeáguae raçãoqueGabriel recolheu.

Amandadesciaasescadasnomomentoemquesuamãefecharaaporta.—Eelacomoestá?— Péssima, mas parece que aceitou que eles morreram. Estava fazendo o

enterro deles quando chegamos. Só não sei como vai reagir daqui pra frente—disseSarah.

—Oqueéissoquevocêtrouxe?—Restosdacomidaeágua.Tenhocertezadequealguémosenvenenou.Não

seisecomeramalgumacoisaforadecasaousefoiaprópriacomida,oqueachobemmaisprovável,elesnãoandavamjuntosotempotodo.Algumvizinhodeveterseaborrecidocomeles.

—Coitados.—Émuitamaldade, eunão entendoquem teria coragemde fazer isso com

animaisindefesos.—Sarahsumiudevistanasescadas.Amandaficounervosa.Foiatéacozinha,pegouumafacaesentou-seemuma

das cadeiras damesanaqual tinha várias laranjas reluzentes.Ela pegouumaecomeçou a descascá-la em espiral, a cada volta que dava pensava em Romeu,pensava naquela laranja do tal jantar, ainda não experimentara uma parecida;pensavanosgatos;emGabriel,nasuamãe;nareaçãodeTereza.Quandopercebeujátinhatrêslaranjasdescascadas,partiuumanomeioeabocanhouumametade.Sentiucomosealgoborbulhasseembaixodesualíngua.

Gustavo, seu irmão de onze anos, sentou em uma cadeira de frente paraAmandaeficouobservando-a.

—Quecaraéessa?—perguntouAmanda.—Euvouprecisardasuamesadaessemês.—Éoque?Repetedenovoqueeunãoouvibem.—Amandanãoesperavapor

essa.—Equemdissequeeuvoutedarminhamesada?Jágastoutodoseudinheiro,garoto?Caifora,pedemaispropa...pai...—Agarotagaguejouaúltimapalavraepousouoqueaindarestavadalaranjaquedevoravasobreamesa.Elaficoupálidaaoveroirmãoergueromolhodechaves.—Oqueéisso,menino?

—Chaves,nãoestávendo?—Euseiquesãochaves,masporqueestámemostrando?—Vocêsabeporquê.—Omeninoabaixouamãotãorápidoquenãodeutempo

Amandaagarraraschaves.Elefoiesperto,notouquandoairmãpreparouobote.—Nãoseidoqueestáfalando.—MasAmandasabia,eramaschavesdacasa

deTereza,asmesmasquesumiramdoseuquarto.—Entãoporquetentoupegá-las?Foivocênãofoi?—Ogarotoficoudepé.—Euoquê?—Amandatentoudesconversar.—Vocêosmatou.Vocêéumaassassinadeanimais.Euviquandovocêmarcou

aschavesdaDonaTerezanaquelesabonete.Vocêfezcópias,amamãetemumasiguaizinhasenãoestãofaltando.Sópodetersidovocê.

—Nãosouumaassassina.—Amandaestavacompletamentearrependidadeter tentado tomar as chaves do irmão, praticamente confessara o crime com aatitude.Estavatentandomanteracalmaparanãoseentregarmais.

—Entãoporqueencontreiessaschavesnoseuquarto?Amandatrincouosdentes,sentindoraivadaquelemolequelhedandoliçãode

moral.Jánãobastavaelaestarsesentindomalpeloquefez,aindatinhaqueserchantageadapelopróprioirmão?

—Gus...—Ouvocêmedátodasuamesadaoueucontopramamãe.Vocêprecisapagar

peloquefez.— Eu não fiz nada menino. Não sei que chaves são essas, não sei onde

conseguiuisso.—Sementir, vai serpior.Vou tedarum tempoprapensar, tematéameia

noitepramedarumaresposta.Eleadeixousozinha.

CAPÍTULO22OSUMIÇO

A biblioteca estava novinha em folha. A reforma durou alguns dias e já

funcionava como antes, como se nunca tivesse sofrido um ataque criminoso. Oacervode livrosperdidos foi resposto, asprateleiras substituídas.Havia vidadenovoali.

Era a primeira vez após o incêndio que Rebeca estava circulando peloscorredores. Estava procurando um livro para o trabalho de literatura. Elacaminhava perdida entre as prateleiras, tentando ler o título de todos eles.Finalmente,encontrouoqueprocurava:Senhora,deJosédeAlencar.

Ela encontrou com Vic pelo corredor e as duas caminharam juntas para oguichê.

—Jáescolheuseulivroprafazerotrabalho?—perguntouRebeca.—AchoquevoufazerdoDomCasmurro, jáoliumavez,entãovaisermais

fácil.TambémquerotercertezadequeaCapitutraiuoBentinho.—Eujánãoachoqueelaotenhatraído.Pramim,foitudoloucuradacabeça

dele.TodaahistóriaénarradapelopontodevistadoBentinho,nãodápraconfiarnumhomemtomadopelociúme.

—Eutenhominhasdúvidas.—Próximo—gritouaatendentedoguichê.Rebecaseguiueentregouo livropeloespaçonaparte inferiorda janelade

vidro.—Oimeubem,comovai?—Voubemeasenhora?—falouRebeca,sorridente.—Estouindo.Esteémeuromancepreferido,achoquevocêvaigostardele.

MeembriagonasmetáforasdoAlencar.—Ah,quebom.Épraumtrabalhodeliteratura.AmulherestavadigitandonotecladoàprocuradocadastrodaRebeca.—Próximo—outroatendentegritoueVicsedirigiuaele.—Soubealgumanovidadedo incêndio?—perguntoua senhoraqueatendia

Rebeca.—Nadinha—disseagarota.—Nãopegaramninguématéagora,né?—Não,masestãosuspeitandoquetenhasidoalguémdaescola.Afinal,quem

fariaumacoisasdessas?—Verdade.—Tome.—AmulherentregouolivroaRebeca.—Sônia,vocêpodeverificarqualfoioúltimolivroqueeudevolvi?—Claro,meuamor.Sóumminutinho.OPeterPanfoisuaúltimaatualização,

devolvidodiaquinzedeAbril.Deveterviradocinzas.—Conseguesabersealguémopegoudepoisqueeudevolvi?— Sim, querida. Deixe-me ver. — A mulher olhava atenta para a tela do

computador. Abriu o cadastro do livro e viu que a última atualização fora adevolução deRebeca.—É, ninguém o pegou depois que você devolveu. Chancezerodeletersobrevivido,todososlivrosvoltamparaasprateleirasnomesmodiaquesãoentregues.

—Rebeca,játerminei.Vamoslogo—disseVic.—Tenhoqueir,Sônia.Muitoobrigada.—Pornadameubem,voltesempre.RebecaretribuiuosorrisodamulhereseguiucomVic.Elaficouimaginando

comoFelicityconseguiupegaraquelelivro.Pensouqueelapoderiaterlevadosempassar pelo registro, mas não conseguiria sair do prédio quando passasse pelodetectordeobjetos,todososlivroseramcadastrados.

Talvezela tivesse jogadopela janelaecorridoparapegá-lo láembaixo,masalguémpoderiatervisto.

TalvezFelicitysoubessequemeraoincendiário.Talvezo incendiário fossealguémdocolégio edeuaquele livrodepresente

paraela.TalvezFelicityfosseaincendiária.O último pensamento levantou os pelos do corpo deRebeca. Felicity jamais

fariaumacoisadessas,suaamigaeramuitoestudiosa,amavaoslivrosenãoeraumagarotarevoltada,elagostavadeestudar.Serealmentefoialguémdocolégiotinha que ser umdesocupado comalgumproblemamental, só pode.Quemotivoalguémteriaparaqueimarlivros?

Rebecaviunonoticiárioqueapolíciahaviaperseguidoumsujeitoduranteanoite do incêndio, um vulto, mas que parecia ser um homem. Eles não deramcerteza.Eimaginarquesuaamigatenhacolocadofogonaescolaeaindafugidodapolíciananoitefriapelaflorestanãofaziasentidoalgum.Elaerasóumamenina,incapazdecometerumcrimedesses.

—Alooo—disseVic,enquantocaminhavamjáforadoprédiodabiblioteca.—Terrachamando.Noquevocêestápensando?

—Nãoénada.—Atenção,todososalunosdirijam-seaopátiodoblocoA.—Umavozsoouno

altofalantedocolégioeficousendorepetidacomoumdiscoarranhado.—Eagora,oqueseráhein?—perguntouVic.—Seilá,vamoslogoantesqueosinspetorespassemporaquienosobriguem

air.Elascorreramapressadasseguindooutrosalunosquecaminhavamporperto.

— Estou me sentindo péssima — disse Amanda enquanto caminhava pela

lateraldocampodefutebol.Algunsalunospraticavamtreinocomabola.Felicityestavaaoladodaamiga,andandoapassosdetartaruga.

—Euqueriagritarcomvocê,dizerquevocêfoilouca,quefoicrueldadeoquevocêfez,maseuconsigomecolocarnoseulugar.Teriafeitoamesmacoisa.

— Não tive coragem de olhar pra Tereza. Coitada dela. Eles eram umacompanhia.Minhamãeestárevoltada,dissequevaiprestarqueixa.Elamalsabequefuieuquemmatouaquelesgatos.

—Vocêtomoucuidadoquandofoilá?Alguémpodetervistovocê.—Ninguémmeviu,entreidemanhãquandotodomundosaiuprotrabalho.A

rua dela émuito tranquila, quase impossível de achar alguém caminhando.Masmeuirmãodescobriutudo.

—Comoelesoube?—O pirralho viu quando peguei as chaves na bolsa da Tereza, devia estar

escondido.Vivefalandoquevaiserdetetivequandocrescer.Elesoubequeosgatosforamenvenenadoseveiomeameaçar.

Felicitycolocouamãonabocademostrandosurpresa.—Metiroutodaamesada.Estoudura,semumcentavo—concluiuAmanda.—Elevaicontinuartepedindomais,chantagemésempreassim,nuncaacaba.—Nossa,obrigadapeloapoio.—Desculpe.Elasderammaisalgunspassosemsilêncio.—Estamoscometendocrimes,Fê,podemosserpresasemandadasparaum

reformatório.Sóavirgempranosproteger.—Amandaalisavaseupingentecomaimagemdasanta,ganharadoavômexicanoquandopequenaeaprenderacomeleaacreditarnela.

A temperatura damanhã estava agradável,mas a ideia de imaginar-se numreformatórioresfriouoventoquentequesopravaoscabelosdeFelicity.

—Temosqueficarsoltaspelomenosatéofinaldalista,eusuponho—disseFelicity,esperandodarumpoucomaisdeesperançaaAmanda.—TemoEdgarnahistória.Elegarantiuqueeuconseguisseescaparnanoitedo incêndio,podenosajudarmais.Etemasuavirgem,rezemuito,iremosprecisardela.

—NãoconfiomuitonesseEdgar.Agoravocêvêestrelasquandofalanele.Felicitycorou.—Oquevocêquerdizercomisso?—Quefinalmentevocêestáseinteressandoemumhomem.—Claroquenão.Apenasfiqueisurpreendidaporeleteraparecido.Fazparte

dalistadele.Meperguntooqueseráqueeletantoquer,porquepeloquefalounãotemnadaaesconder,masotalanfitriãotemumacoisaqueoEdgarquermuito,porissoestámetidonesserolo.

—Deveestarfazendotudoissopordinheiro.—Nãocreioqueseja.ElasviramRogeremaisdoisgarotosseaproximando.Orapazveionadireção

delas, caminhando com a postura de um galo. Ele carregava uma mochila nascostas e usava a camisa do colégio, uma polo branca na frente e vermelha nascostas. O símbolo do CLAN ficava no lado esquerdo do peito, eram as letrasdesenhadas emum círculo sobrepostas uma sobre a outra. Ele era alto, tinha ocorpoatléticoeseusamigoserammenores.

—Vamosdesviarocaminho—disseFelicity.—Porque?—NãoquerocruzarcomobabacadoRoger.Elevivemeenchendoosaco.—Oquefazemasdonzelasperdidas?—perguntouogaroto.Elemascavaum

chicleteeolhavaparaameninascomoseestivessetirandoaroupadelascomosolhos.

—Estamosvoltandoprasala—disseAmanda.—Deixe-nospassar.Ele e os amigos que mais pareciam dois cães de guarda bloquearam a

passagemdelas.— Até deixo, se ganhar um beijo. — Ele sorriu mostrando seus dentes

enormes, os músculos do seu rosto se esticaram como se fossem de borracha.Rogereraatrevido,semfreios,falavaoquedavavontade.—Eaírapazes,queremumbeijotambém?

—Euqueroabocavirgem—disseumdeles.—Ah,não.Adonzelajátemdono.VocêsdoisficamcomaAmanda.Amandacruzouosbraçoseoencaroucomimpaciênciaseperguntandocomo

alguémconseguiasertãoestúpidoquantoaquelegaroto.—Evocêvainosagarraraqui,àforça?Quermesmoqueeucomeceagritar?—Vocênãovaigritarporqueeuseiquenãoestáresistindoaomeucharme.Amandasoltouumarisadadedeboche.Felicity estava quieta, evitando que ele voltasse a atenção para si. Com

certezairialheencherosacofalandoembeijonaboca.Haviadiasemqueeleseofereciadescaradamenteparaseroprimeiroadarumbeijonelaeaquilojáestavavirandoumainsistênciaemserbabaca.

Amandaoempurrou, tentandopassarporele,mas sentiuumadornobraçoquandoRogerosegurou.

—Ai,seuidiota.Largameubraço.—Ninguémmeignoraassim—eledisseaopuxarAmandaparajuntodesi.Imediatamente,Felicityfezoquemaissabiafazer.—Imbecil—gritouaoacertarumchutenacaneladele.Rogersoltouumgritodedor,soltandoAmanda.—Suabocavirgemdosinfernos—elegritouquandoasduasjáestavamlonge

deles.Seuscãesdeguardapermaneciamaoseuredor,semsabermuitoquefazer.—Nãoentendoessapressãotodaemcimademimparaqueeubeije.Nãosei

comoumaescolainteiraconseguesertãobabaca—disseFelicity.—Vocêpodiabeijarlogopraacabarcomisso.Aescolaficousabendoquandoelaconfessouparasuasamigasquenuncahavia

beijado, confiou nelas, mas a fofoca se espalhou e logo começaram a surgir aspiadasbaratas.

—Nãovoucederaessaspiadinhassemgraça.—Sófaltavocêdizerquesonhaencontrarocaracertopraisso,né?Queestá

esperandoseupríncipeencantado.Felicity queria dizer que era verdade, que ela queria mesmo seu príncipe

encantado ou que no mínimo fosse com um garoto que realmente estivesseinteressadonela e, principalmente,queela sentisse vontade,masnão respondeu

nada.Elascaminhavampelapracinhaquandoouviramoanúncionoaltofalantepara

queosalunossedirigissemaopátiodoblocoA.—Vamosláveroquequeremdessavez—disseFelicity.

GabrieleRaphaelestavamdepéjuntoàmultidãodealunosqueaguardavam

nopátio.Asconversassemisturavam.Cadavezmais,osalunosiamchegandoemgrupos.

OdiretorDanielsurgiuaoladodaprofessoraArabela.Elaestavavisivelmenteabalada,haviachorado.Gabrielpercebeu.

—Carosalunos,professoresefuncionários.Desculpem-nosaparalisação,mastemosumavisoimportante—Danielcomeçouafalarnomicrofone.

Amaioriadosalunosseaproximouparaouvirmelhor.RebecaeVicchegaramjuntodeondeGabrielestava.

—Jádisseramoqueera?—perguntouRebeca.Vic sentiu as pernas tremerem ao ver o rapaz que ela tanto desejava. Ela

segurouobraçodeRebecaparaconteronervosismo.—Não,oDanielcomeçouafalaragora—disseGabriel.—Vamosouvir.AmandaeFelicitysejuntaramaosamigos.—Eaí,jásabemoquehouveaqui?—perguntouAmanda.—Saberemosagora—falouVic.Felicity se sentiu incomodadacomo jeitoqueRaphael olhavaparaela, com

aqueleolharfaminto.—Acontece,meusamigos—oprofessorcontinuou.—Quehouveumfurtona

nossaescola.Arabela arrancou o microfone das mãos de Daniel de forma brusca. Ela

encarouosrostosqueaobservavamefalou:—Nãofoiumfurto.—Suavozsaiusecaequente,elafaloucomosefosseum

dragãocuspindofogoemtodosaoredor.—Foiumsequestro.AlguémsequestrouMr. Jack e Lady Rose. Eu exijo saber quem foi o ser monstruoso que teve acoragemderoubá-losdemim.Quem?—elaberrouaúltimapalavra,deixandotodomundoemsilêncioporuminstante.

Gabriel coçou a nuca e encarouAmanda, queprendeu a respiração e olhouparaFelicity,queabriuabocalevementedemonstrandosurpresaeencarouoolhardeGabriel,queencontrouoseu.

—Quemroubouosmeuspeixinhos?Queroelesdevolta.Eupagooresgate,mas,porfavor,devolvamelescomvida.

Arabela estava chorando. Alguns alunos começaram a reclamar que haviamparadoparaouviraquilo.

—Nossa,todaessaconfusãoporcontadepeixes?—gritouumamenina.

—Issoémaldade,roubarospeixinhosdaArabela?—disseoutra.—Aigente,elaestáchorando—falouRebeca.—Pedimosquequemtenhafeitoisso.—Danieltomouomicrofonedevolta.—

Devolva os peixinhos e não sofrerá nenhuma punição, mas se descobrirmos oresponsável,esteseráexpulso.Orecadoestádado.

Eleretirou-sejuntocomArabelaqueestavainconsolável.Ozumzumtomouconta,asconversassemisturaram.—Podíamostentardescobrirquemfezisso—falouRebeca.—Achoboaideia—disseVic.—Podeser—concordouRaphael.—Eunãoachoissoumaboaideia—retrucouGabriel.Vicdesanimouaoouviroqueeledisse.—Nemeu—concordouAmanda.—Eutambémnão—disseFelicity.

CAPÍTULO23NOVEEMEIA

Amanda estava em um restaurante. Uma cantora fazia voz e violão. Ela

chegoupor voltadas oitodanoite, dissera à suamãeque ia sair comFelicity eGabriel.

Tudo que Amanda tinha de fazer era ficar sentada à mesa, comer o quequisesse e esperar até o relógio marcar nove e meia em ponto. Caso nãoaparecesseninguémelapoderia levantar-se e ir emboradali.Esse era oquartoitemdesualista.

— A senhorita já decidiu o que vai querer? — perguntou o garçom, vinteminutosdepoisde ter feitoamesmaperguntae terouvidodagarotaquesó iriapedir quando sua companhia chegasse.Mas como já havia se passado quarentaminutoseelenotouqueAmandaestavaansiosa,mexendonosmartphoneotempotodo,quistentarajudar.

—Euvoupedirumsucodelaranja,podeser?Meusamigosatrasaram,aindabemquenãoestoucomtantafome.—Elaforçouumsorriso.Tudooqueelaqueriamesmoera estar deitada em sua camaembaixode seu cobertor, ali estava frio.Pior de tudo, ela estava com medo. Medo de que aparecesse alguém. E seaparecesseoquefariamcomela?

Tudo no que conseguiu pensar foi no suco de laranja, fazia dias que estavasedentaporessafruta,nãopodiaverumanasuafrentequedavaáguanaboca.Com o nervosismo não sentia vontade de comer nada, nada. Mas um suco delaranjaachouquenãofariamal.

— Claro, senhorita. Como quer o seu suco? Gelo e açúcar? — O garçomsegurava o bloquinho com a mão esquerda e a caneta na outra mão já estavaposicionada.

—Comgeloesemaçúcar,porfavor.—Amandaobservouosolhosdorapazporuminstante,pareciamjabuticabasbrilhantes.Eleerafeliz,pensou.Nãoporqueelesorria,maspeloolhar limpoqueeletinha.Elaexaminouamandíbuladelesecontorcer,osdetalhesdasobrancelhaumpoucorude,elagostavadisso,dascoisasnaturaisnoshomens.Nadademetrossexuais.Eporumsegundo,masapenasumsegundo ela achou que poderia flertar com ele,mas uma luzinha se acendeu naescuridãoquandoviunamãoqueseguravaoblocoumaaliançapresanodedodorapaz,reluzindocomoouro.

Casado,meuDeusdocéuAmanda.Vocêestánessaenrascadaporcontadeum homem casado. Trate de imaginar esse homem com peitos grandes e umabundaenorme,alémdomaisassobrancelhasdeleestãofiníssimas,vocênãoestávendo?Ospelosforamarrancadosumaum.

—Voltonuminstante—disseogarçomapósanotaropedido.EleseretiroueAmandaoobservouiremboraatéperdê-lodevista.

Estava cansada demexer em seu smartphone, atraiu todos os pensamentos

possíveispara sedistrairouaomenosaliviarumpoucoaansiedadequecorroíasuasentranhas.Elaestavavendoumcasal,ohomemeramaisvelhoqueamulher,elesriamenquantoconversavamemumamesapróxima.Nossa,nãopodiaserelaeRomeu? Não podiam estar felizes os dois? Aquele casamento era apenas umafachada,amulherpoucoseimportavaporondeeleandava,nãoestavanemaíseestava sendo traída, então ela bemque podia deixá-lo livre. Romeumerecia terumadamaque o amasse e nãoumadondocaque apenas aparece nos eventos eposaparafotos.

Mastalvez fossedissoqueeleprecisasse.Deumretratoda famíliaperfeitaparamostrar aos seus eleitores que era um exemplo a ser seguido, um homemíntegroeamadopelaesposaquetinhalhedadoduasfilhas.

Não seja bobaAmanda, você era apenas a amante e podia ter continuadosendo,masfoivocêquemdesistiudele.

Eladesviouoolharparaoutramesaeviuumhomemmagro,decabeloscurtose pretos, a região do rosto abaixo do nariz era cinza-azulado. Os pelos de suabarba erammuito grossos, por sinal, marcava seu rosto brancomesmo quandofeita. Assim que percebeu que Amanda o tinha visto, ele levantou o cardápio eescondeu-seatrásdele.

Já o tinha visto antes,mas onde?Ela puxou a imagemdele em seu arquivomental,aquelerostocinzentoerafamiliar.

Algunsdiasatrás!Ela lembrou-se, tinhaquasecertezadequeeraomesmohomemnaquelecarroquandoelaestavaconversandocomGabrielnarua.

—Prontinho.—AvozdogarçomcortouospensamentosdeAmandacomoumanavalha.—Desculpeseassustei—disseaopousarocoposobreamesa.

—Nãoassustou.Obrigada.Elese retirou.Equandoelavoltouaolharparaosujeitoestranho jánãoo

encontrouàmesa.Amanda rasgou o plástico que protegia o canudinho e omergulhou no copo

abocanhando a outra ponta.O líquido geladomolhou sua língua e escorreu pelagarganta. Que sensação maravilhosa. Não havia nada melhor do que matar avontadedebeberalgumacoisa.Estavatãodoce,imaginouqueaquelalaranjadeviaterumacascareluzenteefina,eramasmelhores.

Amandaengasgou-se.Tossiu.Pegouoguardanapoparasecaroslábios.Tinhaum homem caminhando em sua direção. Era ele. Provavelmente sua companhiaestava chegando, já passava das nove. Ele estava sério, caminhando entre asmesas,masseuolharestavaemAmanda.

—Moça—disseohomem.Asmãosdelaestavamimóveissobreamesa,comoseestivessemcoladas,seus

olhosarregaladoseagargantacomeçouacoçar.Elaqueriatossir,masnãopodia.— Desculpe incomodá-la — continuou o sujeito. Ele era careca, um pouco

forte.Estavasendoeducado,mastinhacaradevilão.—ÉquetemumHondaCivicimpedindoqueeutiremeucarro,precisoirembora.Jápergunteiaváriaspessoasenãoacheiodono.

Pronto,agoraelenãotinhamaiscaradevilão.Eraumsujeitocomum,pensouAmanda.Elaestavavendocoisas.

—Nãosenhor,nãoémeu—disseAmanda,bastantealiviada.— Tudo bem, desculpe incomodá-la. — Ele dirigiu-se a outra mesa, depois

AmandanotouquefinalmenteeleencontrouadonadoCivic,eraumamulherqueaparentavatermaisdequarentaanos.Osdoissaírampararesolveroproblema.

Amandacontinuoutossindobaixinhoparaaliviaracoceira.Passarammaisalgunsminutos.Ogarçomtambémespiavadevezemquando

parasaberseelaaindaestavaali.Droga!Elapensou,agoratodomundoresolveuespionar.Parecia que ele estava preocupado ou com pena dela. Ela o chamou em

determinadomomento,pediuacontaeaguardouosminutosfinais.Nove e meia em ponto Amanda estava de pé empurrando a cadeira para

debaixodamesa.Eladeualgunspassosedeudecaracomumhomemquepareciaconhecido. Mais um que achava ter visto antes, mas esse ela não conseguialembrarondeovira.

Eleagarrou-apelobraço.—Querida,medesculpeoatraso.Juroquetenteiteavisar.Esperoumuito?Amandaestavadebocaaberta,encarando-o.Nãosoubeoquedizer.Entãoele

aabraçoueafezandar.Saíramabraçadospelarua.—Nãosepreocupe,nãovoutemachucar.—Elesussurrou.OcoraçãodeAmandadisparou.—Oquevocêquercomigo?—Jádissequenãosepreocupe.—Eleabriuaportadocarro, sorrindo.—

Finjaqueestáfeliz,aspessoaspodemdesconfiareentrelogonessecarro.—Suavoz ficoumais grave e incisiva. Ele bateu a porta assim que Amanda sentou nobanco.

—Alguémmeajude,porfavor—gritouohomemqueestavacomAmandanos

braços. Ele entrou apressado no hospital, estava falando com a recepcionista emuitosdospacientesqueaguardavamatendimentoselevantaramassustados.—Avicaídanarua,precisodeummédico.

—Seacalmemeufilho—disseasenhoraqueficavanarecepção.—João,trazumamacarápido,amoçaprecisadeatendimento.

OenfermeirosurgiucomumamacaondeAmandafoicolocada.Algunscuriososestavampertodemaistentandosaberquemeraeoquehaviaacontecido.

—Oqueelatem?—perguntouoenfermeirojánocorredor.—Nãosei.Avivomitandonarua,entãopareiparaperguntarseelaestava

bem.Antesderesponderelacaiumolenochão.—Não se preocupe. A examinaremos e tentaremos reanimá-la.—O rapaz

estavanaportadaenfermaria,amacacomAmandahaviaseguidopelasmãosdeumaenfermeira.—Vocêterádepreencherafichadela,podemeacompanhar?

—Olha,estoucomosdocumentosdelanomeucarro...nabolsadela.Possopegá-los,voutentaravisara família,masnãovoumeresponsabilizar.Eusóquisajudar.

—Tudobem,nãosepreocupe.—Oenfermeirodeuumtapinhanoombrodosujeitoeoinduziuavoltarpelocorredor.

Quando ele passou pela recepção notou que havia uma garota e um rapazconversando com a senhora da recepção, havia uma mulher e um homemdisputandoaatençãodela.Agarotaeramagra,tinhaoscabelosvermelhoseapelebranca. O rapaz estava com uma camisa branca e usava um boné, ele tinha osbraçosmusculosos.EramFelicityeGabriel.

Eles estavam vigiando Amanda do lado de fora do restaurante comocombinaramcomela.

—Senhora,nossaamigafoitrazidapracá.OnomedelaéAmanda,émaisoumenosdaminhaaltura,temoscabeloscastanhosmuitobrilhosos—diziaFelicity.

—Nósvimosumsujeitocarregandoela—falouGabrielaomesmotempodaamiga.

— Oh, minha senhora, ninguém sabe dar informação aqui? Estou tentandosaberdomeufilhoquedeuentradahoje,ninguémmefalanada.—Ohomemquefalavaestavaimpaciente.

—Escutaaqui,sóquerosaberohoráriodevisitatá?Nãotemninguémquepossameinformar?

—Éumapoucavergonhamesmo—disseohomem.—NãotemnenhumaAmandaaqui—dissearecepcionistaparaFelicity.— Não é possível. Nós vimos um sujeito carregando ela pra cá — disse

Gabriel.—Seoviramcomooperderamdevista?Olha,aquelemoçoali trouxeuma

garotaapouco,nãoseiseéamesma.Tentevercomele.Gabrielolhouparatráseoviu.EraomesmohomemquelevouAmandanaquelecarro.Alto,pelebronzeadae

osmesmoslábiosfinosqueFelicityconhecia.—Éele—disseFelicity.—Vamosatrásdeleagora.Quandonotouquefoivisto,osujeitoapressouopasso,masGabrieleFelicity

praticamentecorreramparaalcançá-lo.Desceramosdegrausrapidamente.—Espere.—Gabrielagarrounobraçodele,jánarua.—Oquevocêfezcom

ela?Precisanosdizer.—Melargue—disseEdgar,irritadoepuxouobraço.—Elesestãobem.Não

fiznada.Gabrielpercebeuquereconheciaaquelehomem,masnãolembravadeonde.—Eles?—perguntouFelicity,sementender.Agoratevecertezasetratarde

Edgaresentiuumapontadealívioporque,certamente,estariaajudandoAmanda,assimcomofezcomela.

Ohomemandouatéocarroqueestavapróximo,tirouabolsadeAmandadobancoejogouparaGabrielquepegounoar.

—Sófizoquemepediram.Atéapróxima,cabelodefogo.—Eleentrounocarroearrancou.

Da primeira vez que Edgar chamou Felicity de cabelo de fogo naqueleprograma de TV improvisado ela não gostoumuito, achou atrevimento da partedeletratá-lacomcertaintimidade.Masdepoisqueeleaajudounoincêndio,criouumaafeiçãoporele.Edessavezaceitouserchamadadecabelodefogo.

— Esse cara é o mesmo daquele jantar— disse Gabriel. — Te chamou decabelodefogo.

—Sim,éele.—Masnemeuquesouseuamigotechamodecabelodefogo.Vouquebrara

caradelequandotiveroportunidade—disse,irritado.— Ah, não faça isso. Eleme ajudou no incêndio. Provavelmente deve estar

ajudandoAmandatambém.—Foielequemapegounorestaurante,comopodeestarajudando?Gabriel eFelicity correramde voltaparaohospital.Quandoalcançaramos

trêsdegrausouviramumavozdehomem.—Gabriel!—Ai,merda—suspirouFelicityaovê-lo.— Desculpe meu jovem — disse uma senhora ao bater seu ombro no de

Gabriel.Elenãoregistrouessefatopoistinhaumproblemamaiordiantedesi.—Sr.Arthur—disseGabrielnumsussurro.Arthurcaminhouapressadoatéalcançarosdois,estavaofeganteelogoatrás

delevinhaSarah.OspaisdeAmanda.—Ondeelaestá?Eporquenãoavisaramantes?—Eleestavabravo.—Meu

Deus,oquevocêsestavamfazendo?—Calma,Sr.Artur.Elaestábem.Sarahpassouporelessemfalarnada.Tudooqueimportavanomomentoera

sabercomosuafilhaestava.Gabrieldissequeelaestavabem,masestavamesmo?Elenãosabia,masfoitudooquelheocorreufalar.Detodaforma,issotudoeraumteste, mais um teste que Amanda teria de passar para não ter seu segredorevelado,entãoprovavelmenteelaestariabem.

— Estávamos jantando no restaurante e de repente ela passou mal. E atrouxemospracá.

Essaeramaisumamentiraquepodiaserencaixadaperfeitamentenasituaçãoemqueestavam.Afinal,Edgarnão iria reivindicar seuatoheroico.Pronto, essaparteestavafeita.

—Ok,ok.Vamosdeixarexplicaçõespradepois.Vouprocurarsaberdela.Arthur entrou e encontrou-se com Sarah que vinha acompanhada do

enfermeiroqueatendeuAmanda.FelicityeGabrielseguiramatrás.—Elaestánaenfermaria.Vamos,esserapazvainoslevaratéela.Tinhaum

homemcomvocês?—perguntouSaraholhandoparaGabrieleFelicity,elasoubequeo talhomementraracomsua filhanosbraços.Queriasaberquemeraparaagradecer.

—Sim,eleestavaconosco—Gabrielapressou-seemdizer.—Nosajudouatrazê-la.Maselejáfoi,sófomospegarabolsadelaqueestavanocarro.

— Acho melhor vocês dois ficarem — disse o enfermeiro para Gabriel eFelicity.

— De jeito nenhum, precisamos vê-la. A gente estava com ela e podemosdescreveroqueaconteceu,casoaindaestejadesacordada.

—Nãocompliquemvocêsdois—disseArthur.—Vamoslogo.—EleseguiuoenfermeiroeSarah.GabrieleFelicityseguiram.

FelicityeGabrieltiveramdeficaresperandonocorredor.OspaisdeAmanda

estavamfalandocomomédicoqueatendeuAmanda.Elesestavamansiososparasaberoqueaconteceucomagarota.

— Você tem algum fetiche com enfermeira? — perguntou Felicity muitocuriosa.

—Como?—Gabrielnãoentendeu.—Vocênãopodeverumapassarquearregalaoolho.— Na verdade não é nenhum fetiche. Só estou olhando pra cara de todo

mundo. Não tenho culpa se só passou mulher por aqui até agora. Isso é umaarmação,Fê.Sómaisumaarmaçãoquefizerampragente,praAmandanessecaso.Sónãoentendoporquetrazê-laaumhospital.

—Seráquefizeramalgummalaela?—Nãosei...talvezalgumalienígenatenhafeitoalgumtipodeexperiênciacom

ela,nãosei...—Sério que você acha isso?—Felicity perguntou, incrédula.Ela estavade

braços cruzados, sentindo-se cansada e com as pernas gritando por umamassagem.

—Claro que não! Só quero que preste atenção no que eu falei. Temos quecomeçar a gravar o rosto dessas pessoas, qualquer detalhe que as denuncie emoutrasituaçãoemqueestivermosmetidos.

— Mas como a gente vai conseguir registrar todas essas pessoas? Comolembrardealguémquenemsabemosondevimos?

— Contando com a sorte. Veja. — Gabriel tirou o smartphone do bolso emostrou algumas fotos. — Algumas pessoas que passaram por aqui. Fingi queestava falando ao telefone, mas estava tirando várias fotos sem saber o que iacaptar.—Elepassavaasimagenscomodedo.Algumaseramapenasborrões,emoutrasdavapraidentificarapessoa.—Opa,essaaquinãoeraprateraparecido.—Eraumafotodabundadeumaenfermeira,GabrielriueFelicitydeuumbeliscãonobraçodele.—Ai,issodói.Olha,deixeigravandoenquantoestavanoouvido.

—IssofoiquandofingiuqueestavafalandocomoMurilo?—Exatamente.—Eoquevocêpretendefazercomisso?—Arquivar.Voucriarumapastaparacadadia.Tipo,hoje:diaemqueAmanda

foi parar no hospital. Então vou cruzar com outros momentos e esperar queencontreumamesmapessoaemváriosarquivos.

—Comovaifazerisso?Émeioconfuso.Edigamosquevocêencontrealguémnessasfotos,eaí,comovaiachá-la?

—Bem, tenhoumamigoquemexecomprogramasde reconhecimento fácil.Acho que vai dar pra desenrolar. Quando acharmos uma pessoa que tenhaaparecidoemmaisdeumevento,aínóssaberemosporquemprocurarnopróximo.

OsolhosdeFelicitybrilharam.Pareciaumaideiagenialparaquemnãotinhaporondecomeçar.

—Podefuncionar.—Pode,masvaidependerdasorte.

CAPÍTULO24OEXEMPLOPERFEITO

Grávida!Arthurestavadeitadodeladocomascostasviradasparaaesposa.

Aspalavrasdomédicoecoavamemsuamente,falaracomtantanaturalidade,issoporquenãoeraafilhadele.Amandaestavagrávida,comoissofoiacontecer?Suagarotinhagrávida.Eleseriaavôtãojovem,antesdecompletarquarentaanos.Seusolhos estavam fechados,mas ainda estava consciente.Ele ouvia a respiraçãodeSarah. Ambos estavam exaustos, chegaram em casa às duas damanhã. Amandaestavabemfisicamente,mascomaalmaempedaços.

Amanhã... amanhã, não Arthur. Hoje já é amanhã! Ele procuraria Murilo,pegá-lo-iapelabecaeoobrigariaacasarcomsua filha.Seunetonãocresceriasemumpai,suafilhanãoseriamãesolteira.Amandanãopodiasermãesolteira.

Ondejáseviuumcandidatoaprefeitocomumapropostadecampanhaparaconscientizar jovens sobrea importânciado sexo seguro, sobretudoquandoseéadolescente, ter uma filha grávida aos dezesseis anos e ainda por cima mãesolteira?Definitivamenteessenãoseriaumbomexemploparaseuseleitores.

PenseArthur,seessanotíciavazarvocêpodeposardebompai,ohomemquenuncaabandonaraafilha.Elanãoeraaúnicanasituação,haviamuitospaisqueentenderiam e lhe dariam apoio. Pensou agora emum comentário no Facebook:Gente como a gente. Essa seria sua jogada. Uma onda de liberais atacando osconservadorestãohipócritasquantoelemesmo.

Masissose,somentese,oplanoAfalhasse.Ofatoeraquealgopiorpoderiaacontecer.ArthurnemsonhavaqueRomeu,

seualiadopolítico,fosseopaidoseuneto.JamaisimaginouquenaquelasfestasemquedeuemsuacasaelestrocaramolharesedepoistrocaramtelefonesedepoistrocaramumbeijoalinaprópriacasaquandoRomeupuxouAmandaparadentrodeumdosquartos.

RomeuestavaemseusegundomandatoeagorafariadeArthurseusucessor.Não fora um mau prefeito e sempre liderava nas pesquisas. Arthur era umempresáriomuitoconhecido, tudooqueprecisava fazereramanter sua imagemlimpaatéaseleições.

AmelhorsoluçãoseriaAmandacasaroumandá-laparaoutropaís.Ouquemsabe,nãoteraquelefilho.Eletentariaaprimeiraopção.

Depoisdedivagarporumtemposentadonacamacomoolhar fixonochão,voltouadeitar-seedessavezconseguiudormir.

CAPÍTULO25CASE-SECOMELA

Amandaestavasentadanacamacomascostasapoiadasnoespelho,aspernas

estiradas.Seusolhosestavamvermelhosde tantochorar, asbochechas rosadas.Seguravaumlençocomoqualsecavaaslágrimas.Felicityestavasentadaaolado.

—Agoranãoseioqueeufaço,Fê—diziaAmandaemmeioasoluços.—Oquevoufazercomumbebê?Nãoseiserumamãe.

—AhAmanda agora o que resta é aceitar.—Felicity não sabia bemoquedizer, mas tentava confortar a amiga de alguma forma.— É natural que estejaassustada,maséumbebê...evaiserseuprasempre.Vocêvaiteralguémquevaiteamardaformamaispura.

—Maseminhavida?Aescola,assaídas,aspessoas...comovãomeolhar?—AhAmandaissonãoécoisaprasepensar.Vocêéresponsávelporumavida

agoraeissodeveestaracimadequalquercoisa.—Nãoqueriaquefosseassim.LembraquecombinamosquevocêeaRebeca

seriam as primeiras a terem filhos? Era o combinado. Eu seria a última, noentanto...—Aslágrimasvoltaramacair.

—Noentanto,aconteceu...—Felicitysegurouamãodela.Eradifícilacreditarque sua amiga que brincava de boneca com ela estivesse esperando um filho.Quando falavamemter filhoseraalgomaispróximodecriarbonecasdoquedefatosermãe,eramplanosparaumfuturobemdistante,maselasestavamvendoquemuitasvezesosplanosnãoseguemocronogramaestipulado.—Vocênãosabiaqueestavagrávida,nemdesconfiou??

—Naverdadenãoseisesabiaounão...bom,euestavadesconfiadaFê,masnãoqueriapensarnisso.Atrasou,masbem...eupenseiquepodiasernormal, jáaconteceuantes.—Elaassoouonariz.—Tenhomedodecriaressacriançasozinhasemumpai.

—Vocênãoestásozinha.TenhocertezadequeoMurilonãovaiterproblemaemassumirofilhodele.

FelicityfaloucomtantaconvicçãoqueAmandaquasetevedúvidadequemeraopaiporumafraçãodesegundo,masimediatamenteelalembrouquenuncahaviafeitonadacomMurilo,nadaalémdebeijosealgunsamassos.

Amandasoltouumrisinhofraco.— Acontece que ele não é o pai.— Amanda quase se perdeu nas palavras

misturadasemseuchoro.ElaatédesejouqueMurilofosseopai,seriamaisfácilencararasituação,elejamaisadeixariasozinha.

—Comoassimelenãoépai?—perguntouFelicity.Suatestaenrugou-senoprimeiroinstante,seusombroscaíramdandosignificadoàsuadecepção.

—Simplesmentenãoéele.Opiordetudoéquemeuspaispensamqueestougrávidadeleeeudeixeiquecontinuassemacreditando,nãotivecoragemdefalaraverdade.Estãofuriososcomigo.

Felicityficoudepé,sentindoanecessidadedeandardeumladoparaooutroparatentarentenderoproblema,juntaraspontassoltas.

—Espera,issotemavercomalista?Opaidacriançaéoseusegredo?Amandasecousuaslágrimas,respiroufundoefalou:—Paredemeolharcomessacaradeinquisidoraesenta,porfavor.Estáme

deixandonervosa.—Elaquis chorar,mas segurou.—Ograndeproblemanãoéapenas o pai da criança... — Amanda procurou palavras para tentar suavizar ahistóriaenãochocarFelicity.

—Vaidizerquetemmais?—Temumvídeomeu...emquefaço...sexoFelicityficouimóvel,semaçãoaindaabsorvendoaspalavrasdeAmanda.—Eeutenhoquecumpriralistapranãovazaremessevídeo.—Éinformaçãodemaispraminhacabeça—disseFelicitycomaexpressãode

quemestavatontaoumesmobêbada.—Poracaso,opaiéalgumfamoso?—ÉoRomeu—soltou.—Romeu?QueRomeu?Nãoconheçonenhumatoroucantorchamado...—De

repenteumaluzacendeunamentedela.—Romeu?—perguntouincrédulacomosolhosarregalados.—VocêestáfalandodoRomeuprefeito?—Elacolocouamãonatesta.—Céus,vocêestálascada.

—Obrigadaporanimardesse jeito—disseAmanda, sentindo-seaindamaisdesanimada.

— Desculpe, amiga. Mas essa situação é muito embaraçosa. O Romeu éprefeitodacidade,casadoealiadodoseupaiquepretendeassumirolugardele.Nossa,seriaoescândalopolíticodoséculo.

—Paradefalarassim,vocêestámedeixandoangustiada.—Ah,medesculpe.—Felicityselevantouecomeçouaandardeumladopara

outro novamente. — É que fiquei nervosa por você. Entendo como está sendodifícil.

—Porissoeudigoqueestamossendovigiadosotempotodo.Colocaramumacâmera escondida no flat onde nos encontrávamos. Aposto que deve ter algumaaquiemcasa,járevireialgumascoisas,masnãoencontreinada.

OspelosdocorpodeFelicityarrepiaram-se.Umfriopercorreusuaespinha.Foiassimquedescobriramsobreseudiário.

—Gabrielachaamesmacoisa.—Elavoltouasentar-senacama.—Eletáficandoparanoicotentandopegaralguém.

—Maseledesconfiadequemseja?—Não, disse que temos que ficar atentos para pegar alguém suspeito. Ele

andoufotografandotodomundonaquelehospitalepediuquefizéssemosomesmoquandoestivermosem“ação”,querpegaralguémqueestejasempreporpertodenós.

— Posso estar enganada, mas vi um homem no restaurante que tinha vistooutrodianarua,sentiqueelemeobservavanosdoismomentos.Masoquevamosfazersedescobrimosalguémsuspeito?

—Nãosei,nãofaçoideia—disseFelicity.—TalvezoGabrieltenhaalgoemmente.

Elasouviramalguémbaternaporta.Elogoemseguidafoiaberta.— Oi, estou entrando — disse Gabriel. Sua voz estava calma, cauteloso,

procuravaaspalavrascorretasparafalarcomAmanda.Elesentou-sedooutroladodacamaesegurouamãodeAmanda.—Comovocêestá?

— Péssima. Você já sabe, né? — A voz de Amanda quase falhou, Gabrielpercebeuqueelaiachorar.

—É,seuspaisacabaramcontandopragenteontemànoite.Vamossairdessa.Tudooquenãopodemosfazeragoraéentrarempânico.—Houveummomentodesilêncio.—Esperoquesejaummenino—eledisse,passandoamãonabarrigadeAmanda.—Elevaiaprenderumascoisaslegaiscomotio.

Gabriel sabiaqueMurilonãoeraopaiporqueoamigo sempre lhe contavatudo o que acontecia entre os dois,mas não quis entrar nesse assunto, preferiusuavizaroimpactodoproblemanavidadeAmanda.

Amandasoltouumrisofraco.—Melhorquesejaumamenina,émaisfácildecriar—disseFelicity.—Além

domais,dápraarrumarocabelodela,escolherroupaslegais.—Não,não,não...meninossãoprotetores,menoscomplicados,enaverdade

sãomaisfáceisdecriardoqueasmeninas.—Deondevocêtirouisso?Porqueseuprópriopaisemprefalouocontrário.—Meupaidiziaaquelascoisasporquenuncateveumamenina.—Paremvocêscomisso—interrompeuAmanda.—Eunãovoucomprarum

bebêprapoderescolherosexodele.—Apalavra“bebê”sooucomoumalerta.—MeuDeus,umbebê!Oqueeuvou fazercomumbebê?—Ela levouo lençoaonarizedesatouachorar,aslágrimassaltavamcomogotasdechuva.

OcoraçãodeGabrielapertou,quandoolhouparaFelicityelaestavacomosolhos molhados. O rapaz sentou-se ao lado de Amanda, apoiando as costas noespelhodacama.Felicityficousentadaaoladodelaeostrêsseabraçaram.

—PorDeus,Amanda.Oquesefazcomumbebê?Seeduca,dáamor,vocêvaicriá-lodaformacomofoicriada—disseGabriel.

—Nãoestoupreparadaprasermãe.—Mastudoseaprendenessavida,amiga—disseFelicitytentandoconfortá-

la.—Precisamosfazeralgumacoisa.—Gabrielmudouotomdevoz.—Alguém

estánosvigiandodesdemuitotempo.Descobriramquevocêestavagrávidaantesde você mesma, Amanda. Por isso te fizeram chupar aquela laranja, porqueperceberam seu desejo de grávida. Deve ter câmeras na sua casa por ondeobservamseudiaadia.Maseunãoentendoquem faria isso.Eporquecolocarvocênumasituaçãodessas?

FelicityolhouparaAmandaeasduascomeçaramarir.OrisodeAmandasaiusemgrandevontade,masfoimaisfortequeela.

—Doquevocêsestãorindo?— Do seu momento inocência. Na verdade fizeram um vídeo dela fazendo

sexo.—Fê?—repreendeuAmanda.—Ah,nãoacredito.Sério?Euqueroveressevídeo.

Amanda acertou a mão na coxa de Gabriel e ele sentiu faíscas de fogoqueimandosuapele.

—Ai,issodói.—Orostodeleestavatodocontorcidodemonstrandoadoreosustodoinesperado.

—Pravocêaprenderanãofalarbesteira.Felicitycontinuavarindodele.—Temosquechamarapolícia,nãovouaguentarmaisviverassim.Podemos

pedirsigilo—falouAmanda.—Não,deformaalguma.—Gabrielfoidireto.—Vamossairdessasozinhos.

Podemoscumprirtodasasinstruçõeserecuperarasprovasquerecaisobrenós.—Gabrielestácerto,Amanda.Nãopodemosarriscar.—Oquevocêsescondemdetãograve?—perguntou.—Nãoémomentoparadiscutirmosisso.

—Amandanãovaienfrentarissosozinha,estámeouvindo?Seuirresponsável.

—Arthurestavavermelho,seusdedosfinosagarradosàbecadeMurilo,opobrerapazestavacontraaparede,sentiuapancadanacabeça.

Quando Arthur entrou na sala, Murilo levantou-se da cadeira onde estavalendoumdeseusprocessos.Sorridente,deualgunspassoseestendeuamãoparacumprimentá-lo,masosorrisodeulugaraopânicoquandoohomemoagarroucomviolência.

— Do que o senhor está falando, seu Arthur? — A testa de Murilo estavaenrugada,osolhosespremidos.—Mesolte.

Murilopodiadarumsolavanconaquelehomem,eramuitomaisfortequeele.Masaquelenãoeraumhomemqualquer.EraopaidaAmanda,agarotaporquemMuriloeraloucamenteapaixonado.

—Nãosefaçadeestúpido.Convivetantocomelaenãopercebeunada?—Ela?Amanda?Masosenhorconvivemaisqueeu.A raiva impedia que Arthur pensasse. Não queria ser direto, não queria

pronunciaraquelapalavra,masofezquandosoltouorapaz.— Grávida — disse num sussurro, de costas para Murilo. — Amanda está

grávida.— Como? — Murilo posicionou-se na frente do pai que estava de coração

partido.—Eosenhorachaquesouopai?—Enãoé?Vocênãofoihomemprafazeressacriança?Porquenãoconsegue

serhomemagora?Amandanãogerouessefilhosozinha.—Arthurpodiasermagro,massuavozgravemetiamedoemMurilo.

—Espera,espera,senhorArthur.—Muriloointerrompeufalandoatropelado,pausouuminstanteecontinuou.—Nósnuncatransamos.

Nuncatransamos.

MurilosentiuapalmadamãodeArthuremseuombroesquerdo,erapesadaparaalguémcomoele,edeuumpassoparatrás.

— Nunca use essa palavra para falar de uma filha para um pai. —Murilorecebeuoutroempurrão,depoisoutroecaiusentadonosofá.—Minhafilhanãotransa,entendeu?—Arthurestavasuando,Murilopodiaveraraivaqueelesentianosolhos.Detodaformanãoiarevidar,eraopaidaAmanda.

—Desculpe,senhorArthur.—Eleestavacomasmãosespalmadastentandoacalmarohomem.—Nósdoisnunca tivemosalgo tão íntimo.Vocêmeconhece,sabequeeunãomentiria.Eseeufosseopai,ahonraria.

Arthur conhecia bem Murilo. Era um rapaz educado, louco por sua filha.NuncaentendeucomoAmandaaindanãohaviaformalizadoumnamorosériocomele.Eraumrapazbom,trabalhador,oaceitariacomogenro.Masessajuventudenãoquersaberdecompromissosério.Senãoqueremcompromisso,entãonãoseenvolvam,pensava.

MasAmandaseenvolviacomMurilooraporpena,oraporummotivoqueelanem sabia. Gostava de estar com ele porque podiamostrá-lo para suas amigas,podia sair em público. Com Romeu era diferente, tudo escondido. Ela sempredeixouclaroqueMuriloerasuacópiadesegurançaeRomeueraohomemqueadeixavaplenamentefeliz.

—Temrazão,oconheçobem.—Arthurparceria se tranquilizar.—Masaspessoasnossurpreendem.

—Eujuro.Nãotivemosnada.Arthurnãoprecisoudemuitoparaseconvencer.Bastouolharacaradebobo

apaixonado, e agora decepcionado por saber que sua garota estava grávida deoutro,feitaporMuriloaoproferiraquelaspalavras:“Nãotivemosnada”.

OpaideAmandaengoliuemseco.—Medesculpe—eledisse.Caminhouatéaportaeparouquandoouviu:—Espere—disseMurilo.Elepensouemprocurarpelaspalavrascertas,mas

em algumas situações não era preciso procurá-las, elas já estavam prontas, napontadalíngua.—Eumecasocomela—falou,surpreendendoasipróprio.

Arthurficouparadoporuminstante,olhandoparaorapazsentadonosofá.—Seelaquiser,éclaro—emendouMurilo,umpoucosemjeito.Eleficoude

péaoverArthurcaminharatéele.OpaidagarotapôsamãonanucadeMuriloeopuxouparamaispróximo.

— Ela vai querer — disse, olhando nos olhos deMurilo. — Você terá meuapoio.

Muriloesboçouumsorriso.Seopainãoeraele,quemeraentão?Amandatinhaoutro.Nãopodiadizer

queforatraído,mashaviaoutroalémdele.EsehaviaoutroeraporqueMurilonãoeraomaisimportante,nãofoicomelequeAmandafoiparaacama.

MasMurilolembroudosbeijosdela,oslábiosquentes.Lembroudoabraço,dosorriso,dasbrincadeiras.Dasvezesqueelaligavapedindoparabuscá-lanosalão,naescola,eraquaseummotoristaparticular.Tudonãopodiasermerocomodismo.Haviaalgobomnarelaçãodeles,erasónãoexistirooutro,Amandaoamaria.Foiporissoqueeledissequecasava,porqueacreditavaquepodiaconquistaraoutra

metadedocoraçãodagarota.

CAPÍTULO26OLADRÃO

De onde ela estava via frestas de luz brilhando entre as folhas e galhos da

árvore.Aindaerapossívelnotaroazuldocéu,apesardeosol jáseencaminharparailuminarooutroladodoplaneta.Erahoradeficaremcompanhiadaescuridãodanoiteedobrilhodasestrelas.Elaadoravapresenciaressatransiçãoentreascoresdocéu.

Aterraonderepousavaestavaúmidaeabrisadoventolhetraziaalgumapaz.Agramaqueplantarasobreotúmulodeseusseteanimaizinhoscomeçavaaformarumbelo tapete verde. Agora era assim namaioria de suas tardes, a companhiadelessedavanomomentoemquefechavaosolhoseosimaginavaaliaoseulado,mordendoseusdedos,dandopulosoubrincandocomoseestivessemlutandocomoaqueles homens que se agarram no tatame; ela sorriu ao imaginar essa últimacena.

Osbichinhoserampuroamor.Quemteriafeitoumamaldadedessascomeles?Não eram de sair pelas casas dos vizinhos, em raros momentos isso acontecia,estavam agora tão bem cuidados sem aquelas feridas de antes. Estavam...realmente“estavam”,porqueagoraeleserampassado,apenasumalembrançaquepovoavaoimagináriodeTereza.

Alguémenvenenaraseusgatinhos.Sarahlhederaessainformaçãocomreceio,mas não quis esconder isso dela, afinal estava na cara que teriammorrido porenvenenamento. Tereza imaginou a agonia que foi para os bichanos morreremlentamente,sufocadosporalgoinvisívelprendendoarespiraçãodeles,deixando-ossem forças, o coração sendo esmagado tão lentamente por algo que eles nãosabiamoqueera.

Seráqueum tentouajudar o outro?Seráque tentarampermanecer juntos?Seráqueperceberamoqueestavaacontecendoumaooutro?Elapensouqueelespodiamtersaídopelaaberturadaportadacozinha,maspreferiramficaremcasa,esperandoporela.

Terezaabriuosolhosaosentirasmordidasdeformigasnascostelas,sentou-se embaixo da árvore onde estava deitada, coçou as costas e quando inclinou acabeçaparacimaviuapernadeumhomememcimadomuro.

—Quemévocê?—perguntou,aborrecidaeafastou-separavermaisdelequeestavaencobertopelosgalhosdaárvore.

Ele estava sentado com a perna esquerda pendurada e a outra dobrada demodoqueapoiavaocotovelonela.

— Sintomuito— disse ele. A calça que usava estava desgastada, o chinelotinhaumadastirassoltas.Acamisaestavasuja,erademangascompridas,partedelaestavadentrodascalçaspresasporumcintodecouro.

Terezaoobservou,olhouparaseuscabelospretosqueapareciamembaixodogorro que usava; a pele queimada do sol, parecendo envelhecida e a barbamal

feita.Elanãoconseguiusuporaidadedohomem.Pelaaparênciaeleeraumvelhocomoela,acabadopelosanos.Masumvelhocomoelanãoteriaforçasparasubiraliemcimadaquelemuroquepassavadosdoismetrosdealtura,pensou.

—Sentepeloquê?Sumadaíouvouchamarapolícia—gritouaindasentada.—Pelasuador—elerespondeu.Embaixodaárvorehaviaumcírculofeitodepedrasbrancasecinzas,feitopor

elamesmaparademarcaraáreaondeosgatosestavamenterrados.Tão rápidaquantoumaleoa,levantou-sedeondeestavaeagarrouumadelas,posicionou-sedefrenteparaosujeitoeficouemposiçãodearremesso.

—Quemévocê?Nuncateviantes—rosnoucomoumbicho.—Vaiemborasenãoquiserqueeuteacerte,tenhomiraboa.

—Espere—disse,espalmandoamãoparaavelha.—Nãoquersaberquemfezisso?

FoicomoseumavendativessesidotiradadosolhosdeTereza.—Doquevocêestáfalando?—Dosseusgatos,vocênãoquersaberquemosmatou?Terezabaixouobraçodevagaratéquedeixouapedracairnochão.— Como você sabe? — O ventou soprou seu vestido florido, ela estava

descalça.—Permite-me?—perguntou,indicandocomumgestodecabeçaqueiriapular

paradentrodoquintal.Elaoencarouintrigada.Nãodissenada,entãoeledesceu.Agoraviaqueosdentesdeleeramamarelos,queapelenãoeradeumjovem,

oscabelosgrudadospelasujeira.Asroupaseramfolgadas,maselanotouqueosbraçoserammusculosos.

—Souumladrão,euconfesso.Invadisuacasacertodia.Terezarecuouumpasso.Elepercebeueficouondeestava,tentandoganhara

confiançadelacomaspalavras.— Não se assuste — continuou. — A gente tem que sobreviver de alguma

forma,nãovoufazermalavocê.— Maldito! Entra na minha casa pra me roubar e ainda tem coragem de

confessartudo?—Entrei porque sabia que vocênão estava emcasa,mas logopercebi que

aqui não temmuito o que roubar. Só comi algumas porcarias que tinha na suageladeiraaídepoisviquealguémestavaentrando.Comoeunãogostodeconfusão,meescondinasualavanderia.Viquandosurgiuumagarota,percebiqueelaestavamuitoassustada.Resolvitestaressagracinhaaqui.—EletiroudobolsodacalçaumIphoneeolhava-ocomosefosseumdiamante.—Istoaquieuroubei,tá?Comeleeugraveiorostodessagarota,euviquandoeladespejouumlíquidoquetinhadentrodeumfrasquinhonobebedourodosseusanimais.

Terezaanalisavacadadetalhedoqueelefalava.Umagarota.—Porquenãoaimpediuentão?Deixouqueelajogassevenenonaáguadeles?

—Avozdamulheraindarespingavafúria.—Comodisse,sousóumladrão.Procuromemanterlongedeproblemas.—Oquevocêganhacomisso?Oquequeremtrocadessevídeo?—perguntou

comoolharfixonoaparelho.Eleojogoueotelefonecaiupróximodospésdela.—É todo seu e eu não quero nada.Mas você deve querer a sua vingança,

suponho.Terezaoencaroueolhoudevoltaparaoaparelhonochão.—Nãosabemexer?Euteensino.Terezaabaixou-se,pegouosmartphoneeaproximou-sedohomem.Ocoração

começouapalpitareansiedadetomoucontadesi.— Vamos, abre isso logo. Quero ver o rosto dessa desgraçada. A maldita

assassina. — O homem pegou o telefone de sua mão que tremia e esboçou umsorrisodetriunfo.

— Aqui, veja. — Ele posicionou a tela do aparelho para que pudessem verjuntos.—Omomentoemqueelaentranalavanderia,acendealuz,procuraalgo,quandonãoencontra,elavira-sedecostas.—ElepausouovídeoeTerezaviuorosto da assassina, o rosto deAmandadentro do capuz que ela usava.—Entãoseguiuparaoutroscômodos,veja.Conseguifilmarissonasuacozinha.

Terezaarrancouotelefonedasmãosdeleeoatirounaparede.— Desgraçada. — A velha andava de um lado para outro. A raiva crescia

dentrodesi.—Elamepaga.O homem a observava sendo tomada pela loucura como se uma fumaça a

envolvesseeatransformasseemoutrapessoa,emumavelhainsanaeperigosa.—Acalme-se.—eletentoutocá-la,maselaoacertoucomtapasnobraço.—

Descarregasuaraiva.—Elemudouotomdevoz,agorapareciaumagalodebriga.Ficouparadodepeitoestufadoefezumgestocomasmãoschamando-a.

A velha entendeu e partiu pra cima acertando murros no peito dele. Eleesperouquedoessemenos,masaguentouopunhofechadodelaporváriasvezes.

—Maldita,maldita—berravaenquantoaindadavamurros.Tereza perdeu as forças e estava chorando. O sujeito a segurou em seus

braços e a deitou no chão, devagar. Ela encolheu-se e chorou feito criança. Elesentou-se ao seu lado, encostou-se no tronco da árvore e ficou ali esperando ossoluçospassarem.

—Tenhoalgoquevaiajudá-laa superar isso tudo—dissedepoisdealgunsinstantes.Tirouumsaquinhodobolso.—Veja.—Terezapermaneceu imóvel.—Vamos,vejaisso.—Elaolhoueviu.

—Ondearranjou?Nãotomomais,estoulimpa.—Ora,deixedepuritanismo.Vai te fazerbem.—Ele jogouosaquinhoque

caiupertodela.Aquelescomprimidoscoloridosqueexperimentaraalgumasvezesquandovivia

nasruasestavamaoseulado.Ecstasy.LSD.Elavoltouaexperimentá-losnaquelemomento.

—Achoquequemfazissocomanimaismerecesufocardamesmaforma—elesussurrouaspalavrasnoouvidodela.—Euafariapassarpelamesmacoisacomminhasprópriasmãos.—Eleestavasegurandoumcomprimidonafrentedelaeaconvenceuatomar.

OladrãosaiudacasadeTerezasemqueelapercebesse.

Instantesdepois,agramacresceueesverdeoutodooseuquintal.Umaumsurgiramdaterra,suaspatinhasbrotandodagramaencheramosolhosdeTerezacomlágrimas.Osgatinhosestavamcercando-a,elasentou-seetodosforamparacimadela.Estavasorrindoesentindo-seleve,semopesodadesgraçaemsuavida.Elavirou-separafalaralgoaoladrão,maspercebeuqueelenãoestavamaisali.Nãotinhaproblemasehaviapartido,elaestavafeliz.Começouarirquandoviuumdosfelinosvoandocomasasdeanjo.

Narua,oladrãodeuumchuteemumgatoquecruzouseucaminho.Eleentrou

noveículoeolhou-senoespelho,coçouassobrancelhasgrossasecomeçouaforçá-lasatéquecederam.Puxouuma,depoisaoutra.Agoraviaassuasnaturais,muitomaisbonitas.Arrancouogorroqueusavaeojogounobanco,passouasmãosemseuscabelosloiros,sorriucomoseestivessedivertindo-se.Começouafuçarcomasunhasnatestaatéqueconseguiuarrancarumpedaçodepele.Apelefalsaqueodeixavamaisvelho.

Conseguiuarrancaraospedaçoselogoficoucomumaaparênciamelhor.Viu-sedeolhoscastanhoseatéachouquecombinavam,maspreferiaseusolhosverdes.Acordosdentesresolveriaquandochegasseemcasa.

Ligouocarroepartiu.OladrãoeraThomas,disfarçado.

CAPÍTULO27UMAROSASEMESPINHOS

Amanda caminhava comMurilopelo jardimde sua casa.Elapassouporum

caminhodepedrasretangularesfechadonaslateraisporrosasvermelhas.AndousemolharparatráseMuriloagachou-separacolherumarosa.Eleusouachavedocarroparacortá-laeretirartodososespinhos.

Quando terminou seu trabalho de jardineiro, voltou seu olhar para ondeAmanda estava: sentada em um balanço de madeira, impulsionando-o emmovimentoslentoscomospéssemqueelessaíssemdochão.

EleviuAmandacomacabeçaencostadanacorrentequeseguravaobalançonaestruturademadeira,desejouqueaquelacorrentepudesseseroseupeito,queseus braços pudessem envolvê-la como os ramos verdes se entrelaçavam pelamadeira.

Murilo caminhou pelas pedras para que não pisasse na grama verde. Elesentou-senobalançoaoladodelaelheestendeuarosa.Amandaapegoucomumsorriso tímido.Elausavaumvestido levecomumcintopresoporcima,cheiodecores.Seuslábiosbrilhavameeledesejavapodertocá-loscomosdele.

—Eutirariatodososespinhosdasuavida,semepermitisse—disseMurilo,quebrandoo silêncio e abafandoo somdo ventoquedançava comas folhasdasplantasaoredor.Derepente,anaturezaparouparaprestaratençãonaquelesdois.

—Mesmoassim,eupoderiaserumespinhonasua.EelesentiucomoseAmandaespetasseseucoração.—Nãodigaisso.Vocêéespecialparamim.Vocênãoéumespinho,éumarosa

semespinhos.Amandasorriu,aindaolhandoparaolado.—Meu vocabulário romântico está se esgotando, eu sei—disse, umpouco

semgraça.EntãoAmandavoltou-separaele.EosolhosdeMurilobrilharam,seucoração

aceleroucomoseestivessevendo-apelaprimeiravez,comosefosseaprimeiravezqueestivessetentandoserromântico.Sóporqueelasorriuparaele.

—Eugostodascoisasquevocê fala,atéquandonão têmgraça.—Amandacontinuava com seu tommelancólico,mas algo na sua expressão haviamudado.Gostavadojeitocomoeleseesforçavaparafalarpalavrasbonitas.

Sempreforasincera,deumjeitoqueàsvezesmachucavaMurilo,maseleaaceitavacomoera,porquenãoimportavaoquefalasse,sósentiamaisvontadedeficaraoladodela.

Murilosorriuedisse:—Voutomarissocomoumelogio.Houveumsilêncioentreeles,poisorapaznãosabiabemporondecomeçar.

Dizerquequeriacasar-secomela,elejáhaviaditováriasvezes.Eagoraestavamaisparecendoumcasamentoarranjadoporinteressedopaidela.

— Você não precisa fazer isso — falou Amanda. — Além do mais, te devodesculpas.Deixeitodomundopensandoquevocêéopaidomeufilho.Atéminhamãequeétãoespertadeixoupassar.

Murilorespiroualiviadoporelaterabertoocaminho.—Sabequantasvezeseujátepediemcasamento?Amandarevirouosolhoscomoseestivessefazendoumacontamental.—Sóme lembrodaúltimavez, foinaquelanoitenaboatequandooGabriel

nosinterrompeu.—Sim,eelemepoupoudeouvirodécimosegundoNÃO.—Murilodeixouos

ombros caírem e relaxou, suas pernas relaxaram tanto que se não estivessesentadocairiacomoumagelatinamolenochão.

—Mentira,vocênãomepediudozevezesemcasamento.Orapazanimou-seaoverAmandarelaxartambémeabrirumsorrisosoltando

algopróximodeumarisada.—Claro,lembrodetodasasvezes.—Masvocênãoquiscasarcomigodeverdadeemtodaselas.—Bom,achoqueaprimeiravezquandovocêtinhadozeanoseunãoqueria

casarmesmo,tirandoessa,emtodasasoutrasonzeeuteriacasadosim.—Houveumbrevesilêncio.—Evocêteriacasadocomigoemalgumadelas?

—Eueramuitonova,mesmoqueamaioriadospedidos tenha sido feitanoúltimo ano.Mas... eu não quero casar cedo, aos dezesseis anos. Aindamais umcasamentoarranjado.

—Nãofaçacomqueeumesintaumaproveitador.Eusempreteamei,semprequis ficar com você. Eu disse ao seu pai que aceitariame casar com você, queassumiriaacriançaporamoravocê.—Eleagarrouforteacorrenteeinclinouseucorpo paramais perto do dela.— Tudo por você, pormim também, pelaminhafelicidade.Porqueeuseiquesentealgopormim,eusintoquandomebeijaemesmoquesejasóatraçãofísica,jáéumcomeço.

—Masnãoésuficiente.Eunãoquerotefazerinfeliz,nãoqueroqueolhepraessacriançaesofraimaginandoqueelapoderiasersua.Quenãofoiomeuamorporvocêqueagerou.

—Elaseráminhasevocêpermitir.Nãomeinteressasaberqueméopai.Eupossoserumbompai,alémdissopodemosternossos filhos também.Nãoqueroquefiquecomigopelacriança,queroquemequeirasomenteseacreditarqueeupossotefazerfelizevocêamim.

—Eutenhomedo.—Masdoquevocêtemmedo?—De fazer você sofrer. De que você se arrependa, que eu não consiga te

amar.Quetudonãotenhasidopornósdois.O sol parecia querer ir embora e ao mesmo tempo querer ficar para

presenciar o final da cena. Ele era um expectador e suas emoções estavamestampadasnacordocéu.Oazulestavasendoengolidopelotomfortealaranjado.

— Meu Deus, Amanda, cresça. — Murilo levantou-se e ficou diante dela,gesticulandocomasmãosenquantofalava.—Vocênãoprecisafazerdezoitoanosparacrescer.Algumaspessoascrescemtãocedo,aosdoze,quinzeanos...Porque

nãomedeuumNÃOdaquelesquesempremedeu?Pormedodoseupai?Éesseseu realmedo?Entãoenfrente-oedigaquenãoquernadacomigo.É tudomaisfácilpravocêquandooventoestáaseufavor?Senãodercerto,caramba,eunãovoutemanterpresacomcorrentes.—Elebalançouascorrentesdobalançodelacom vigor. Amanda encheu os olhos de lágrimas, observou por um segundo aexpressãodeleesaltouemseupescoço.

Murilo sentiu o calor do corpo dela no seu. Seus braços segurando-a numabraçoapertado,enquantoelao sufocava,apertando-o forte, soluçandoentreaspalavras.

—Nãoqueroenfrentarissosozinha...nãoseisermãe...estoucommedodecolocar essa criança no mundo. — As lágrimas de Amanda rolavam como umacachoeiranosombrosdorapaz.

Murilo era alto, ele a ergueu em seus braços e girou lentamente com ela,comoseestivessesegurandoumbebê.

—Arrisquecomigo,Amanda—elesussurrou.Amanda desvencilhou-se dos braços dele e olhou em seus olhos e se sentiu

seguraquandoospéspousaramnochão.—Arriscarei—eladisse,deitandoorostonopeitodele.Enfim,osolcedeuseulugaràsestrelasquebrilharamnocéu.

CAPÍTULO28ADÚVIDA

Murilo estava sentado em um banco com o cotovelo esquerdo apoiado no

joelho, flexionando o bíceps com um halter de dois quilos. A música eletrônicatomavacontadeseusouvidosmisturando-secomaconversadeoutraspessoas.Seelefosseumapessoanormalestariautilizandoumpesodedezquilosenãodois.Nãoeracomoosoutrosquedescarregavamtodasaspreocupaçõeseanseiosnospesos.

Murilo frequentavaaacademiaporpuraobrigação. Imaginava-sevelho sempoderandarsemsentirdores,essaerasuamaiorinspiraçãoparalevantarpeso.

MaiscedopediraAmandaemcasamento.Eleestavacertodequeaamava,masodiabinhodadúvidaestavaperguntandosefizeraacoisacerta.SeperguntavaseAmanda sóaceitouporqueestavagrávida semumpaipara cuidardo filho.Eimaginavaseelachegariaaamá-locomoesperava.

— Meu irmão, o que fizeram com você? — A voz de Gabriel cortou ospensamentosdeMuriloqueergueuacabeçaeviuorapaznasuafrentesegurandoumagarrafad’águanamãoeluvaspretasnaoutra.—Vaiacabarlesionandoalgummúsculodessejeito—faloucomironia.

—Nãofoinada—disse,desanimado.Elesoltouopesonochão.Gabrielsentou-seaoladodeleedeutapinhasnascostasdoprimo.—EstáassimporcausadaAmanda?—Elecolocouagarrafanochãoentre

seuspés.—Estouassimporqueapediemcasamento.—Uau...eeladissenão,acertei?—Claroquenão,dissesimpelaprimeiravez.Gabriel queria ficar feliz por ele, mas vendo-o tão desanimado não se

empolgou com a ideia. Ele torcia para que Amanda aceitasse o primo por puravontade, que eles começassem a namorar, depois houvesse um noivado parafinalmente um casamento. Eles erammuito novos e a gravidez de Amanda nãopodiaserumfatordecisivo.

—Temcertezadequequerfazerisso?—Eutinha,atéalgumashorasatrás.Masdepoisfiqueimeperguntandoseeu

nãohaviapressionadoeladealgumaformaouseopaidelanãoapressionou.Táparecendoumcasamentoarranjado.

—Éumcasamentoarranjado,desculpefalar.Masessearranjonãoestásendofeitoporvocê,cara.OArthurcomcertezadeuumapressãonelaporcontadolancecomapolítica.Eeladeixoupensaremquevocêéopai.

UmsorrisoteimososeesboçouemMurilo.—Bemqueeupodiaser,né?Dequalquerforma,sintoqueapressionei.Podia

terficadoquietonocanto,deixarqueelaresolvessedaformaquequisesse.—Atéeuchegueiapensarqueeraseu,mascomovocêdissequenuncarolou

nada...—OArthurtambémsabequenãosouopai.Éclaroqueelepreferiudeixar

quetodospensassemissoeeuconcordei.—VocêpodiadesencanardaAmanda.Tantamulhergostosaàsuavolta.Olha

praisso.—Gabrielolhouaoredorapontandocomoolharasgarotasquefaziamexercícios.

—NenhumadelaséaAmanda.Opersonalveiocaminhandoentreosequipamentosatéondeelesestavam.—Bora,borarapaziada.Queanimaçãoéessa?—Joaquimbateupalmasfortes

enquantofalava.ApertouamãodeGabriel,puxando-oparaqueselevantasseedeutapasnascostelasdele.—Vamostreinarpesadohoje?

—Sónãocontacomessedaqui—disseGabriel.—Oquehouvecomele?Deixaeuverseeuadivinho.—Joaquimsegurouo

queixocobertopelabarbapreta,analisandooânimodeMurilo.—Elepediuumameninaemcasamento—disseGabriel,semcerimônias.—Não!—exclamou,surpreso.—Jásei,eladissenão.—Pior...dissesim—falouGabriel,enquantocolocavasuasluvas—Masqueméessasortuda?NãodigaqueescanteouaAmanda,finalmente?

—JoaquimpôsamãonacinturaeolhouincréduloparaGabriel.—Écomelaqueelevaicasar—disseGabriel.Joaquimarregalouosolhos.—Elaestágrávida—completouogaroto.—Queriamuitotedarparabéns,mascomessacaranãoseioquedevodizer

—falouJoaquimparaMuriloqueaindaestavaprostradonaquelebanco.—Ahhhh, não precisa dizer nada.—Murilo levantou-se como se fosse uma

minhoca preguiçosa arrastando o corpo, falando lentamente como se estivessebêbado. — Eu estou feliz, não está vendo? — Ele mostrou os dentes tentandodesenharumsorrisonorosto.—Vouemboraporquejálevanteipesodemaishoje.

—Nadaisso,vocênãovaiemboraassim.Vamosládentroconversar,mecontaessa história direito. — Joaquim passou o braço pelo ombro de Murilo e o fezcaminhar em direção à sua sala. — Vai aquecendo que já chego — disse paraGabriel.

—Tápesandoseubraço.—Deixadesermole.—JoaquimdeuumtapanoabdomedeMurilo.—Precisa

trincarissoaqui.Estáparecendoumagelatina.Joaquim eramais que um professor.Mantinha um relacionamento amigável

comtodososseusalunosdaacademia.EeraamigopróximodeMurilo.Faziaasvezes de psicólogo, além de dicas demusculação dava conselhos amorosos. Elesabia da história de Murilo com Amanda, de que a menina só queria curtirmomentos com o advogado. Ele não a julgava, afinal Amanda tinha apenasdezesseis anos, tinha o direito de aproveitar a vida. Murilo é que era ansiosodemais,elepodiaaproveitarosmomentoscomela,maseraromânticodemaisparaviverdesaidinhas.

Ele queria levá-la para jantar, ir ao cinema, andar de mãos dadas, dormiragarradinho.

—Querquetecarreguenocolo?—Joaquimperguntouaochegaremaospésdaescadaparaoandardecima.Elesestavamnosubterrâneodaacademia.

—Umdiaaindatereiumshapecomooseu—disseele,subindoumdegraudecada vez. — Vou fazer você engolir suas palavras. Barriga de gelatina?! —desdenhouporfim.

Joaquimgargalhourevelandoseusdentesenormesebrancos.Eles chegaram a uma sala. Havia um sofá acolchoado logo na entrada, um

colchoneteestavaespalhadonochão.Umamesinhametálicacomumcomputador.Joaquimsentou-seatrásdelaeMuriloficounacadeiradopaciente.

—Então,contaessahistóriadocomeço.Murilo contou sua história com Amanda, parte dela já conhecida pelo

professor, então chegou na parte em que descobriu que ela estava grávida, queArthurquasequebrasuacaraachandoqueeleeraopai.Contousobreopedidodecasamentoesobrecomosesentia.

—Nahora,foicomosefosseumcometapassandopormim,entãomeagarreiaeleparaquemecolocassenocaminhodafelicidade.Foiumaoportunidade,agiporimpulso,eusei,maseusemprequiscasarcomelaeeudisseaopaidelaquecasaria.Eagora,eunãoseisefizacoisacerta.

DesdequeMurilocomeçouafalar,Joaquimsóoouviujogartodasaspalavrasqueestavampresasnasuagarganta.

—Vocênãotemmedoqueopaidacriançaresolvaassumirofilhoeeladesistadevocê?

—Nãopenseinissodeimediato.Masseeladeixouquetodospensassemqueeusouopaiéporqueoverdadeironãotemrealinteressenela,ouseja,éalguémproibido.

— É complicada sua situação. Não diria para você desistir disso. Mas éestranhovocêseaproveitar.

—Nãomeaproveitei,Joaquim—disse,levementeirritado.—Agisempensarfoisóisso.

—Tudobem,desculpe,meexpresseierrado.Maspensequeelanuncatequisdeverdade,etalvez,estejaapenasquerendoumpaiparaobebêdela.

—Eupenseinissotambém.—OcoraçãodeMurilomurchoueficoucomoumabolasemar.—Mas,mediga.Sefossevocê,assumiriaofilhodeoutroparaficarcomamulherquevocêama?

Joaquimergueuassobrancelhas,endireitou-senacadeiraerespondeu:—Sim,eucriariaofilhodeoutrocomosefossemeu.

CAPÍTULO29FOIVOCÊ?

SarahpuxouocobertordeAmandaeadespertoudosono.—Vamosmocinha,saiajádessacama.Estánahoradeencarararealidadee

voltaràsuavidanormal.—Mãe,medeixadormir.—Amandapuxouacobertadevolta.—Deformaalguma,jáfazdiasquevocêestátrancadanestequarto.—Amãe

dagarotasedirigiuàs janelasepuxouascortinas,a luzdosol invadiuoquartoquasecegandoAmanda.—Hojenósvamosaomédico.

—Médico?Mas você vive dizendo que gravidez não é doença.—A garotaprotegiaosolhosdaluzcomasmãos.

—Nãoédoença,masprecisadeacompanhamento.—Sarahcruzouosbraçosdiante da filha, demonstrando não estar com um pingo de paciência. — VamosAmanda,levante-selogo.Desmarqueivárioscompromissospraircomvocêhoje.

—Tudobem,medêumtempo.—Ah,evocêvaiparaaescolaaindahoje.—Sarahsaiudoquartoaoterminar

depronunciaressaspalavras.Voltarparaaescola.NãoeraissoqueAmandaqueria.Logotodoscomeçariam

a notar sua barriga crescer. Teria de lidar com os comentários maldosos. Osrapazes não a veriam mais como uma garota atraente, mas como uma mulherprestesadaràluz.

Não teve jeito, ela foi ao médico e quando estava saindo do consultóriopercebeuumhomemestranhodooutroladodarua.Eleeramagro,cabelospretoseusavaumsuéteramarelo,estavafalandoaotelefone,masagarotapercebeuqueoindivíduoaencaravaeeletentoudisfarçarquandonotouseravistado.

AmandaentrounocarroenãocomentounadacomSarah.Omaisestranhoéqueaquelafigurajáhaviaaparecidoantes,sónãoconseguiulembrarnahoraondeotinhavisto.

Sarahdirigiudoconsultórioatéaescola.Notrajetoagarotatentavalembrardeleeimaginavaqueseosujeitofossealgumespiãoenvolvidocomaquelalistaeleeramuitoburro,deixarasernotadofacilmente.Aospoucososflashesexplodiramemsuamentecomofogosdeartifícios.Elalembrou-sedele.

Pela janeladocarroviuumhomemabriraportadeseuveículoestacionadoretirandoumacestinhadedentro.MaisadianteSarahparouemumsinaleagarotaviuumamulhergrávidanacalçada, sujaecomroupasvelhase rasgadas,depoisumabarrigudaentrandonocarro,semfalarnasmulheresqueviranoconsultório.Elafechouosolhosparafugirdaquelasimagens,masmesmoassimpermaneciamemsuamente,sóosabriuquandoSarahparouocarroemfrenteàescola.

Amandadespediu-sedamãeecaminhouatéatravessaroportão.Pareciaqueelaentraraemoutromundo,algumacoisaestavadiferente,olhouparaagrama,observouabandeiradaescolahasteada,asárvoresnaentradaeosesquilosque

lhedevolveramaatenção.Apesardasensação,estava tudo igual.Nãoeraomundoquehaviamudado,

era ela. Amanda se sentia estranha. Percebeu que estava com a mão sobre abarrigaelogotratoudeficarmaisàvontade,estavaotodotempoimaginandoseaspessoas já notavam alguma diferença.Mas ninguém, além de pessoas próximas,sabiadagravidez,entãoelatentourelaxar.

—Amanda—gritouFelicity.Elavirou-seeviusuaamigaatravésdastelasdeproteçãodomurodaescola.

Felicitycorreueatravessouoportão.—Amanda,vocêestábem?—Asduasseabraçaram.—Estoumelhor—respondeu,semanimação.—Melhoreessacara.—Vocêachaquejádápranotar?—Bom,issoseráinevitável.Entãoachomelhorvocênãopensarnisso.Ainda

nãodápraperceber.—Nãoseicomovoureagirquandoaspessoascomeçaremanotar.Nãoqueria

mais pisarmeus pés aqui.—Era impossível não ter a sensação de que todos aestavamobservando,prontosparaencontraralgoparafalardela.

Umagarotaqueestavagrávidajácomumabarrigadeunscincomesespassoupelocorredorondecaminhavam.

—VejasóaMichele,elaenfrentouumabarranoinício.Ocaranemassumiuofilho,masláestáelacaminhandoparaassistiraulacomseubebênabarriga.

Elas atravessaram o primeiro bloco e caminharam até uma pracinha esentaram-seemumdosbancos.Asárvoresprojetavamumasombraagradável.Osoljáestavaaltoindicandoqueodiaseriaquente.

—Prasersincera,nuncanoteiaMichelegrávida.Querdizer,nãocomoagora.Anteseuaviaapenascomumbarrigão,eracomoseelafossefiguranteemumanovelaqueninguémprestaatenção,sabe?Agorativeasensaçãoqueelaeraumdos personagens principais. Não imaginei que pudesse ser difícil pra ela. Agoratenhoideiadoquepossaterenfrentado.Enuncavitantagrávidanaminhavidaemum único dia. Será que se eu não estivesse grávida aMichele passaria por nóshoje?

—Elasemprepassou—disseFelicity.—Masvocênuncanotoucomoagoraporquenuncasecolocounolugardela.

Amandasentiu-seumpoucoegoístaaoouviraspalavrasdaamiga.—Acho que você tem razão.Nuncame imagino em situações difíceis.Mas

qualosentidodisso?Criarumaimagemdesofrimentoparasi.—Talvezporquequandoacontecercomagenteestejamosmenosvulneráveis.Apracinhaondeestavamerarepletadeárvores.Algumasfolhassecasnochão

foramarrastadaspelovento.—OMurilomepediuemcasamento.— Imagino que essa é uma notícia boa — disse Felicity tentando mostrar

animação.—Não sei se é o certo a fazer. Não sinto que estou sendo justa com ele.

Parece que estou me aproveitando da situação. Usando-o para resolver um

problemameu.—Vocêspodemserfelizes.Sedãotãobem.Vocêsvivemseagarrando.Acho

quevocêsemprefoiapaixonadaporeleenuncapercebeu,oamoragedeformasestranhas,àsvezes.

—Seagarrarnãoéamar,Felicity.Masvocêtemrazãoquandodizqueoamorage de formas estranhas. Não entendo como um sentimento bom pode trazersofrimentoparaalguém.

FelicityqueriadarumarespostaparaconfortarocoraçãodeAmanda,maselanãosabianadasobreoamor,nãosabianemcomosaberseestavaamandoalguém.Elanãotinhanadaparafalaràamiga,mastentoudizeralgoparecidocomoqueaprenderanoslivros.

—Achoqueosamantessedesencontramàsvezes, seperdemumdooutro,então no meio do caminho surgem os obstáculos e demora um tempo pra sejuntarem.Oamorverdadeiroéassim,édifícil,cheiodeprovas.

—AgrandequestãoésaberseeudesencontreidoRomeuoudoMurilo.—EsperoquetenhasidodoMurilo—falouFelicity.—Estámaisfácilterum

finalfeliz.—Vocêacaboudedizerqueoamorverdadeiroédifícil.— Sim, quer que fique mais difícil ainda pra você? Não acha que já foi

suficienteevocêmereceseufinalfeliz?—Euqueromeufinalfeliz,mascomele.PelotomdavozdeAmandaquesooucomoumasúplica,Felicitysoubequeele

eraRomeu.— Mas você mesma falou que ele nem te deu atenção depois que você

terminou, nem ligou nem nada. Ficou preocupado só com a carreira dele, nempensounoperigoquevocêcorriacomaquelevídeo.

— Eu sei, mas não vou negar que ainda penso nele. Eu sinto um pouco dedecepçãoenãovoltariaseelequisesse,masaindanãoconseguitirá-lodacabeça.

Amandaqueriachorar,masjáhaviaderramadotodasaslágrimasquepodia.Agoraoquesentiaeraumvazioquecresciadentrodela,mesmoquenãotivessemaisespaçoparacrescerelecontinuavaaumentandoseutamanho,engolindo-apordentro.

—Vocênãopodeamaralguémquetefezmal.—Queminventouoamoresqueceudecolocarregrasnele.—SenãoháregrassignificaquevocêpodeamaroMurilo.—Talvezeupossa...Amandaolhouparalonge,paraalémdaspessoasqueviacaminharporpertoe

bemalémdocéu,seuolharseperdeuporumbreveinstante.—Àsvezeseupenso—disseela,voltandoasi.—Queseriabemmaisfácilse

euperdesseessacriança.Felicity não saberia explicar o que sentiu quando Amanda falou aquilo. Foi

medo ou talvez pena. Medo que Amanda fizesse alguma coisa que pudesse searrependerparaorestodavidaepenaporquesuaamigaestavasofrendoenãohavianadaqueelapudessefazerparaamenizaradordela.

—Amanda...—Aspalavraslhefugiram.

— Desculpa, Fê. Mas esses pensamentos passam pela minha cabeça. Nãoprecisameolharcomessacara,nãovouabortarseéoqueestápensando.Ésóquesefossedeformanatural...

—Você não podedesejar isso. Às vezes coisas ruins nos acontecemporquedesejamos que elas aconteçam. A gente nem se dá conta e depois fica seperguntando por quê? Por que sofremos tanto? Agora pode não fazer sentidonenhum, mas depois quando você o tiver nos seus braços, quando ouvi-lo techamandodemãe...

—Nãoqueropensarmuitonisso—falouAmanda.Elarespiroufundo.Asirenedeumaambulânciasooupertodemais.—Pareceseraquinocolégio—disseFelicity.—Temrazão—Amanda levantou-seeviuamovimentaçãodealgunsalunos

quecirculavamporperto.Elescomeçaramacorrer.A sirene invadiu os ouvidos delas como a água invadiu os corredores do

Titanic.Omedosetransformounasondasquesaíramdestruindotudo.Elas correram e viram que a ambulância estava dentro do colégio. Os

paramédicospassarampelopátiocomumamaca.Alguémhaviapassadomal.

Oaquárioestavavazio,apesardehaveráguaalieaindaocastelinhodeles,

para Arabela, ele estava vazio, era apenas um objeto retangular sem vida. Ospeixinhos alegravam seus dias e agora ela se sentia triste semMr. Jack e LadyRose. A velha senhora estava sentada em sua cadeira com a mão segurando oqueixoeocotoveloapoiadonoencostoestofado.Seuolharestavafixonoaquário,elaseperguntavaquemhaviaroubadoeleseporquê?

Jáhaviacoladocartazespelaescolacomfotosdelesoferecendorecompensaparaquemdessealgumanotíciasobreoparadeirodospeixesousobreodesalmadoquefizeraaquilocomela.

Arabelasesentiatriste,poisimaginavaqueosalunosgostavamdelaapesardeassustá-loscomsuarégua,mesmoquenuncatenhaacertadoapalmadenenhumdosalunosda atual geração.Aquele costumehavia ficadopara trás,mesmoqueainda sentisse vontade de pedir a certos alunos que estendessem a mão paraapanhar com a régua demadeira. Ela sempre achou que seumétodo de ensinosempretrouxeraresultados,nãoconhecianenhumdeseusantigosalunosquetenhaseguidoporcaminhoserrados,amaioriadeleserabemsucedida,conheciamuitosengenheiros, empresários, professores e até um cineasta, este, era um de seusalunospreferidosdaquelageração.

A garotada de hoje pinta e borda porque aposentaram a régua, dissera elaumavezemsaladeaula,masoqueelaouviudosestudantesfoiapenasrisadasealgumaspiadas.Eramuitomaisdifícileducá-losqueantigamente,elaachava,mas

ainda assim não conseguia largar a profissão porque aquilo era como o ar querespirava,oambienteescolaradeixavaemêxtase.ElafoiaprimeiraprofessoradoCLANeachavaimpossívelsaberquantosalunospassaramporela,dealgunsnemlembravamais quando a cumprimentavam na rua e isso a deixava triste porquecadaumforaimportanteparaela.

Arabelasempreamoupeixesporumarazãoqueelamesmadesconhecia,paraamarnãoprecisademotivos,eladiziasemprequeperguntavamoporquêdetantoamor por eles. Desde que começou na escola colocou aquele aquário e por elepassaram vários peixinhos, muitos deles morreram, outros foram roubados emoutras épocas,mas antes eramais fácil suportar, ela comprava novos e logo seacostumavacomeles.

Comaidadeavançadaesemterencontradoograndeamordesuavidasentia-semaisfrágil,vulnerável,carentemesmo,entãoseuspeixinhoseramtudoparaela.Eleseramosfilhosquenãoteve.

Naquele momento de dor em que buscava respostas, um fio de lembrançasugouseuspensamentosparamuitosanosatrás.Elarelembroudeumepisódioqueaconteceuquandoumdeseuspeixinhossumiram,ooutroficaradesconsolado.Elaficou furiosa na época, o colégio lecionava apenas para o ensino fundamental.Ameaçoucolocartodososalunosdecastigosenãodevolvessemobichinhodela.

O menino que anos mais tarde viera a se tornar um cineasta acusou umcoleguinhaeArabelaacreditounele.

Elaoobrigouaestenderamãoeaprofessoradesferiutrêsgolpescomsuaréguademadeira.

Aslágrimaspularamdosolhosdelecomosefossemgotasdechuvacaindodocéu.Apósoacessodefúria,Arabelasentiu-seculpada,masdissequeeraparaeleaprender.

Entãoogarotoaencaroucomaquelesolhosmolhadoseemmeioaochoro,após ter negado tanto que não havia sido ele, falou uma coisa que ela nuncaesqueceu:

“Euvoumevingardasenhora”.Ela nunca esqueceu daqueles olhos, pareciam profundos, tão ou mais

profundosqueomar.Omeninosaiudasalaeadeixoucomumpesonocoração.Sentadaalinaquelacadeiraeobservandoopequenomardiantedesi,Arabela

pensou que aquele garoto poderia ter voltado para cumprir sua promessa devingança,mastãorápidovoltouasi,poisera impossíveleletervoltado,afinal,omeninoestavamorto.

Duasbatidasnaportacortaramospensamentosdela.—Professora,medêlicença—pediuRebeca.—Entremeubem.—Arabelaendireitou-senacadeira.—Asenhoraesqueceuessapastanasalaeviemosdevolver.RebecaestavaacompanhadadeVic.—Nãoolhamosnada,juramos.—Vicbeijouosdedoscruzados.—Nãomeimportoquetenhamolhado.—Arabelalevantou-seepegouapasta

vermelha,depoisajogousobreamesa.

RebecaolhouoaquáriovazioepercebeuporqueArabelaestavatãoapática.—Nemumsinaldeles?—perguntou.—Nada,minhafilha.—Queríamosajudar,masagentenemsabeporondecomeçar—falouVic.—

Asenhoranãotemalgumsuspeitoparaquepossamosinvestigá-lo?— Todos vocês são suspeitos — disse Arabela rispidamente, jogando as

palavrasnelascomosefossempedras.—Nãofomosnós—disseRebecacomcaradesuspeitadeumcrime.—Pelo

menos,nãonósduas.—É,nãofomos—falouVic,balançandoacabeçaemnegativa.— Bom, já eliminamos duas suspeitas. É um bom começo, o que acha?—

RebecaencarouArabela,sorridente,dando-lhedealgumaformaumapontinhadeesperança.

—Nãome interessa saber quemos roubou, só quero queme devolvam, sóisso.Seporacasodescobriremapessoaquefezissocomigo,digamissoapenas.

—Tudobem—falouRebeca.—Agoranósvamosaproveitarointervalo.Fiquebemtá?Vamosdescobrirquemfezissoetrazê-losdevolta.

Arabela sorriu e nãodissenada, apenas agradeceu comumolhar terno.Asmeninasdeixaramasala.

—Porondecomeçamos?—perguntouVic,jánocorredor.—Jácomeçamos—respondeuaamiga.—Duassuspeitasforameliminadas.—Comopodetertantacerteza?Vocêpodeestarmentindo.Rebeca parou e a olhou como se fosse uma assassina prestes amatar uma

testemunha.—Ouvocêpodeestarmentindo.Seráquenãofoivocê,Vic?Agarotariuemresposta.—Somospéssimasdetetives—eladisse.Rebecadesfezsuamáscaradeassassina.—Vamoslogo,precisocomeralgumacoisa—falou.Vicseguiucaminhandocomaamigaeelaspararamquandoumsujeitosurgiu

pelaescada,vindodotérreo.Eleusavaboné,tinhaabarbaporfazerecarregavaumasacolanamãoenaoutraumacaixa,pareciapizza.

Ohomemsegurouaabadobonécomosecumprimentasseasmeninas,masdesviouoolhardelas.

VicarregalouosolhosparaRebecacomoseelogiasseabelezadosujeito.—Oquetemdebonitotemdemaleducado—disseRebeca.—Vamoslogo,

Vic.Lembre-se,cabeçaerguidasempre.—Vocênãovaiconseguirfazerdemimumadama,desista.Vicsaiucaminhandocomoumrobô.Rebecanãoconteveasrisadasenquanto

desciamasescadas.Notérreo,caminharampelopátioemdireçãoà lanchoneteaindadebatendo

quais os passos para tentar descobrir o sequestrador dos peixinhos. Não havianenhumalvosuspeitoquepudesseminvestigar.

—Obonitãojáestáindoembora—disseVicaoveroentregadorpassaremdireção à saída colégio. — Ah, esqueci meu celular na sala da Arabela. — Ela

colocouamãonatestaemtomdedecepção.—Temosquevoltarlá.—Nãoacreditonisso,voupassarmaisalgunsminutosdefome.Entãoelasvoltaramlá.

OentregadorbateunaportadeArabela.Elapediuqueeleentrasseeachou

estranhoapresençadele.—Essaencomendaéparaasenhora—falou.—Maseunãopedinada—retrucoucomasmãosnacintura.—Pediramqueeuentregasse—disse,gentilmente,colocandoacaixasobrea

mesajuntocomrefrigerante.—Oqueéisso?Nãovoupagarporisso.Nãopedinada.— Já está pago, senhora. — Ele segurou a aba do boné e despediu-se

educadamente.Arabelaficoualiencarandoaquelacaixa.Nãopediranada.Nemmesmotinha

onomedo restaurante. Pensou em jogar direto no lixo,mas a curiosidade a fezexaminar o que era aquilo. Depois de alguns instantes, criou coragem e muitodevagarabriuaquelacaixa.

Então,seuspelosseeriçaramquaseficandopetrificados,seucoraçãodisparoutãorápidoquandoumdespertadoreseusolhoscresceramquasetomandotodaasuaface.

UmgritodehorroreestranhamenterasgantesaiudagargantadeArabela.Eramelesaliservidosemumpratinhocomdireitoaummolhoestranhoem

uma garrafinha minúscula de vidro. O prato estava dentro de um quadrado demadeiraenvoltoempapelfilme.

Mr.JackeLadyRoseestavamliteralmentefritos,tostados.Erameleseestavammortos.Alguémfritouospeixinhosdela.Tudo estava se desfazendo, fugindo da mente de Arabela, aos poucos os

pensamentosforamsilenciandoemsuamente.Suaúltimaaçãofoicolocaracaixasobreamesa, imaginandoquepoderiamsemachucarcasocaíssemnochão,maselesnãosentiriamnada.

Danielouviuogrito,saiudesuasala,queficavaaolado,aostropeços.ViceRebecaviramoprofessorcorrerdesesperado.Elasapressaramopassoequandochegaramnasala,odiretorjáestavaajoelhadomedindoopulsodavelha.

—Chamemumaambulância,rápido—elegritouparaasmeninas.Vicpegouocelularqueaindaestavasobreamesaediscourápidoonúmero

daemergência.—Oquehouvecomela,Daniel?—perguntouRebeca,jánervosa.—Nãosei,sóouviogrito.AbraajanelaRebeca,rápido,saiamdecimadela.Rebecafezoqueoprofessorpediu.

Danielabriuoarmário,suasmãosgorduchasreviraramascoisasquetinhamládentroàprocuradeálcoolealgodão.

—Droga!—Elesestãovindo—falouVic,apósdesligaraligação.—Rebeca,vejaisso.Rebecalevouamãoàbocaemumaexpressãodehorror.—Sãoeles—falou.—Daniel,vejaisso.Ospeixinhos.—OhDeus,quemfezisso?—Danielestavapassandooalgodãomolhadoperto

donarizdelaparatentarreanimá-la.—Gentequemaldade—disseVic.—Estãofritos.—Foramlongedemais—falouDanieljádepéobservandoaquelepacote.—Foi o entregador, Vic. Aquele que vimos. Daniel, nós vimos o sujeito que

trouxeessaencomenda.—Comoassim?Vocêssabemquemfoi?Conseguiramidentificar?— Não o conhecemos, mas provavelmente foi alguém que pediu pra ele

entregar.— Se eu descobrir que foi algum aluno do colégio, será expulso — berrou

Daniel.

QuandoAmandaeFelicityalcançaramopátioavirampassarnamaca.Dois

socorristas correram apressados comArabela para a ambulância. Rebeca e Vicsurgiramemseguida.

— O que houve com ela, Rebeca? — perguntou Felicity, visivelmentepreocupada.

Amandaestavaaoladocomamãocobrindooslábios.— Algum idiota fez isso— sua voz respingava diferentes tons de fúria. Ela

arrancouacaixinhademadeiradasmãosdeVic.—Entregaramelesnasaladelaagoraapoucoeacoitadapassoumalcomosusto.

Felicityabriulevementeabocaindicandoestarsurpresa.—Sãoospeixinhosdela?Masquemfezisso?—Éoquegostaríamosdesaber—falouVic.— E vamos descobrir — emendou Rebeca. — Vamos acompanhá-la até o

hospitalatéquecheguealgumparente.Depoisagentese fala.—ElaagarrouobraçodeViceapuxouemdireçãoàambulância.

Amanda,queestavacaladaotempotodo,encarouosolhosverdesdeFelicity.—Foivocê?—perguntaramemuníssono.—Não—responderamaomesmotempo.—Então,sópodetersido...—OGabriel—Felicitycompletouafrase.

CAPÍTULO30OESPIÃO

Apósaaula,asmeninasdecidiram iraumasorveteriaque ficavapróximoà

escola.Elasentraramesentaramàumamesanosfundos.AmandapediutrêsbolasdesorvetesaborlimãoeFelicityduasdemorangoeumademaracujá.

—Perdeuogostopelaslaranjas?—perguntouFelicity.— Não posso mais ver laranjas na minha frente. Mas continuo nas frutas

cítricas—respondeuAmanda,rindo.Elaestavamaisaliviadaagora.—AchaqueaRebecapodeestardesconfiadadealgumacoisa?—perguntou

Felicity.—Nãosei—respondeuAmanda.—Estamosumpoucodistantesdela,talvez

issogerealgumincômodo,masnãocreioqueelavádesconfiarqueagenteestejafazendo essas coisas, que você tenha colocado fogo na escola — falou numsussurro.

— Tem algome preocupando. Eu peguei um livro na biblioteca na noite doincêndio.PeterPanfoioprimeirolivroqueeulisozinhaenãoqueriadeixá-lovirarcinzas.

—Edaí?—DaíqueaRebecaoviunomeuquartoeporcoincidênciaelatinhadevolvido

aquele mesmo livro na sexta-feira. Eu disse pra ela que tinha pegado naquelemesmodia,masnãoseiseacreditou.Éumexemplarúnico.

—Vocêdeubobeira.Ela podenão suspeitar denada agora,masdepois, semais coisas acontecerem, se deixarmos qualquer pista que seja, a Rebeca podecomeçar a desconfiar. E depois dessa com os peixinhos, ela e a Vic vão quererinvestigar,tenhocerteza.

—É,temosquetomarcuidado.Evocêdeviacontarpraelaqueestágrávida.Se ela souber por outra pessoa vai acabar ficando chateada, tendomaismotivoparaacharqueescondemoscoisasdela.

—Voucontar,masaindanãotiveoportunidade.Felicityestavadecostasparaarua.Amandaviaaspessoasquepassavamlá

fora pelo janelão de vidro. E tinha um homem atravessando em direção àsorveteria.

—Oqueéquevocêestáolhando?—perguntouFelicityaonotarAmandacomoolharfixoporsobreseuombro.

— Um homem estranho. Posso jurar que já o vi outras vezes. Ele estáentrando,tentaolharparatrássemchamaratenção.

Felicitytirouumespelhodesuamochilaeoviupeloreflexo.—Nuncaoviantes.—Maseu tenhocertezadequeovihojecedoquandosaídomédicocoma

minhamãe.Achoqueestousendoseguida.—Será?

—Claro,eraele.Seráqueeleestánosvigiando?—Amandaagoracochichava.—Temcertezadequenãooviuantes?

—Tenho—falouFelicity,baixinho.—Temosquetirarumafotodeleedepoisprocurá-lonasimagensqueoGabrieltempratermoscertezadequeelenossegue.

—Nãosouumaboadetetive.Tentevocê.Felicitypegouseusmartphoneeocolocounomodocâmera.Levouaoouvidoe

fingiu estar em uma ligação. O homem estava fazendo seu pedido no balcão. OpolegardeFelicitytocounatelaváriasvezes.Elaficoudepéparadarmaissorte.

—OiGabriel,estamosnasorveteria.Nãoestouteouvindobem,achoqueosinalestáruim.Espere.—Elacaminhouemdireçãoàsaída,passoupelohomemetevecertezadequeregistrouaimagemdorostodele.

Felicityvoltou-separaAmandaedisse:—Caiualigação,vamosembora.Elequeriafalarcomagente.Ohomemestavanocaixapagandopelosorvete.AmandapegousuamochilaesaiudalijuntocomFelicity.—Seeleestánosvigiandoestáfazendoumpéssimotrabalho—disseFelicity

jácaminhandopelacalçada.— Vamos voltar para a escola— disse Amanda.— Precisamos encontrar o

Gabriel.Felicityligouparaoamigoeforamatrásdelenasaladecomputaçãoondeo

mesmoencontrava-se.AmaioriadasaulasnoCLANeraministradanapartedamanhã,à tardeos

alunos tinham matérias complementares como informática, aulas de natação,teatro,dança, línguaseartes.Essasúltimaselespoderiamincluirdeacordocomsuaspreferênciasdesdequecumprisseacargahorária.

Olaboratórioeratodobrancorodeadodejanelas.Ascabineseramdispostasem fileiras. Gabriel estava na parte de pesquisa, as duas entraram apressadastentandoidentificarorapaz.

— Aqui Amanda — disse Felicity quando encontrou Gabriel. — Precisamosfalarcomvocê.

Eleusavaacamisadocolégioeacalçamoletom.Seuscabelosnegrosestavambemalinhadosnasuacabeça,cadafioemseulugar.

—Oquefoidessavez?—Gabrielgirouacadeiranaqualestavasentado.—Temalguémnosseguindo—disseAmandaassimquechegouperto.—É,tiramosumafotodeleequeremosversevocêconsegueidentificá-lono

seuarquivodeimagens.GabrieljáhaviaenviadotodasasfotosquetiraraparaKrystalepediraqueela

utilizasseumprogramaemquepudessefazeroreconhecimentofacialdequalquersujeito que aparecesse repetido nos vários grupos de imagens que ele mandou.Haviaumapasta“restaurante”,quefoinodiaemqueAmandafoilevadaeoutras:“hospital”,“escola”,“imagensFelicity”,‘imagensAmanda”.Oqueoprogramafaziaeralocalizarrostosiguaisousemelhantesemtodososarquivos.

—Jámeadianteiepediparaumamigofazerisso—eledisse.Adorariadaroscréditosparasuagarota,masnãoeraomomentodasmeninassaberemsobreaexistênciadeKrystal.Gabrieltirouocelulardamochilaqueestavaaoladosobre

uma cadeira. — Tem um sujeito estranho que aparece na saída daquelerestaurante. — Ele dirigiu o olhar para Amanda. — E também no hospital. Aimagemestáborrada,masdápraver.

ElemostrouoaparelhoeAmandaoreconheceudeimediato.—Éele,essehomemGabriel.Lembradaquelediaemquenosencontramosna

rua? Quando você encontrou a Tereza... — Ela não quis terminar, lembrar quehaviamatadoaquelesgatinhosenvenenadosadeixavamal.—Faleipravocêqueeleficounosencarando.Eovinorestaurantetambém.

—Lembro.—Tiramosfotosdelehojenasorveteria.—Felicitymostrouasimagensnoseu

smartphone.—Éomesmocara.—OsolhosdeGabrielrefletiramaluzdoteto,ansiando

porumaesperançadepegaralguémquetivesseportrásdaquilotudo.—Ondeeleestá?

—Deveestarláforaainda—falouFelicity.—Temosquefazeralgumacoisa—disseGabriel.—Vocêtemcertezadeque

eraelemesmo?—perguntouparaAmanda.—Ah,claroquetenho,masoquepodemosfazer?Seeleésóumespião,não

vainosrevelarnada.—Seagentechegarcomeducaçãoparabaterumpapocomele,certamente

não,masseusarmosoutrosmétodos...AmandapodiadizerqueoolhardeGabriel,naquelemomento,setransformou

emumapaisagemfria,dominadapelogeloepeloventocortante.—Oquevocêestápensandoemfazer?—elaperguntoucomcautela,sentindo

medodoquesepassavanamentedele.—Vouprecisardaajudadevocês.Ele se levantou, pegou a mochila e saiu caminhando. Elas o seguiram pelo

corredor.—Entenderamondefica?—Gabrielquissaber.Elehaviaexplicadoqueelas

deveriamcaminharpelaruaatéumbairropróximodaescola.Eraperigoso,maselegarantiuqueestariamseguras.—Temqueserapé,nãoémuitolonge,issovaichamaraatençãodele.

—Sim—disseAmanda.—Masoquevocêpretendefazer?—Vamospegá-lo.Eelevaiterquefalarquemestáportrásdisso.FelicityagarrounamãodeAmandaeapuxou,elasentiuafriezadapeledela

emboraatardenãoestivessefria.ElasdeixaramGabrielnocorredoreseguiram.—Estounervosa—falouAmandaenquantoandavaparaforadocolégio.—Deupra sentir, suasmãos estão geladas. Vamos logo antes que o portão

feche— disse Felicity. Elas correram e alcançaram a rua.— Eu também estounervosa,masestamossemsaída.Nósvamosconseguir.

—Eleaindaestáali—falouAmanda.—Veja.Felicityviuohomemfalandoaocelular.Eleestavadepéaoladodocarro.—Vamos descer por ali— Felicity caminhou em direção à rua queGabriel

indicou.—Elevainosseguir.E elas caminharam, passando por casas, prédios e algumas pessoas na rua.

Haviaalgumasárvoresemfileira,umasmenoresqueoutras.—Nadadele?—perguntouAmanda.—Achomelhornãoolharmosparatrásagora.A inquietação tomou conta de Amanda. Elas estavam se distanciando da

escola,daparteseguradobairro.—Podemosserassaltadas,achomelhorvoltarmos.—Agoranão,Amanda.Elaspararam.Umcarrovermelhopassou.Umcãoferozlatiunacasavizinha.OcoraçãodeAmandadisparou.—Cuidado—disseFelicity.—Fiqueatenta,nãovaiserbomvocêtomarum

susto.—Elaolhouintrigadaparaaamiga,imaginandoseporalgummomentoeladesejou ter um susto e perder o bebê. Não quis falar nada, só de lembrar daspalavrasdeAmandadizendoqueseriamelhorperderseufilhojálhedavaumnónoestômago.

Amandaassentiu,nãoaguentoueolhouparatrás.Elaoviuumsegundoantesdeseescondernotroncodeumaárvorequeera

tãofinoquantoelepróprio,masnãodavaparaesconder-seatrásdela.—Oidiotaestánosseguindo.—Foiestranho,masperceberqueeleeratão

burro,umpéssimoperseguidordeixouAmandaumpoucomaisaliviada.Comoumdetetivesepermitiaservistoassimtãofácil?—Vamosapressaropasso,Fê.Enãoolhemaisparatrás.

Elas continuaram caminhando. Chegaram ao final da rua e pegaram àesquerda,apistaeramovimentada,carrospassavamemaltavelocidade.Andarampela calçada até pegarem a rua da direita que eramais tranquila, havia apenascasas,masossinaisdapobrezacomeçavamaaparecer.Maisadiantealcançaramumaruacercadaporprédiosantigos,algunsinacabados.

Segundo as instruções de Gabriel, deveriam encontrar uma construçãoparada, um prédio erguido como um esqueleto. Entraram numa viela e oencontraram,estavacercadoporummuroimprovisadodemadeira.

Ohomemdorostocinzentoestavacansado,masasseguiaapémesmo.Nãoimaginouquefossemtãolonge,ficouarrependidopornãoterpegoocarro.

Eleviuquandoelasentraramporumaaberturatãopequena.Agradeceuporsermagro.Aproveitoueconseguiutirarfotosdelasentrandonaquelelocal.

Entãoseguiuospassosdasgarotas.Eleestavasendopagoparaisso,tinhadesearriscar,saberoqueestavamfazendoali.

Quando entrou viu poças d’agua espalhadas pelo terreno, alguns tufos decapimcresciam,haviapilhasdetijolos,entulhos.Aconstruçãoestavaabandonada.Eleolhouaoredorenãoasviu,caminhoufarejandooambientecomoumcãodecaça,seuolharestavaatento.

Eleaproximou-se,cuidadoso,doprédio.Olhoudaentradaenãotinhaninguém,estavaescuro,apesardosolaltonocéu.Haviajanelaspequenasporondeosraiosdosolinvadiamcomosefossemlasers.

Olocalestavaassustadoramentevazio.

Então,resolveusair.Masquandodeuascostas,alguémsurgiudassombraseosufocoucomumamãofortetapandoabocadele.Ohomemtentousugaroar,massentiu algo forte penetrar suas narinas e quase imediatamente uma sensaçãoestranhasubiuparaseucérebro.Suas forças foramsumindo juntocomomundoquefoiengolidoparadentrodaquelaescuridão.

—Eagora,oquefazemos?—perguntouAmandaaosurgirdoescuro,olhandoohomemcaídonochão.

Felicityaproximou-se.Gabrielhaviaexplicadoqueaquelesujeitoestariaaliesperandoporelasepor

aquelehomem.Elasnãosabiamquemeleera,maseraomesmosujeitoquedeuadrogaparaGabriel.

—Vamos levá-loaumlocalseguro—disseohomem.Elearrastouosujeitopelospés.

—Nãoprecisamajudarsenãoquiserem—disseKrystalsurgindoporalgumaentrada.Elatinhaumamochilanamãodaqualtiroucordaseumafitaprateadaeasjogouparaoamigo.

Amanda arregalou os olhos ao reconhecê-la da noite em que foi pegar odinheiroparalivrarGabrieleFelicitydaquelespoliciais.Hojeelaestavadiferente,seuscabelosestavampresoselisos.

Felicitytambémnãodissenada.Nãosabiaqueelaestariaali.Krystal jogouumpedaçodepanopretoparaFelicity eAmanda semalguma

delicadeza.—Vocêsnãopodemsaberparaondeestamosindo—disse.—Comoassim?Seremosvendadas?—quissaberAmanda.—Exatamente.Assimqueentraremnocarroterãodecolocaressecapuzesó

tirarãoquandodissermosquepodem.Amanda notou que ela podia estar com o visual diferente,mas ainda vestia

aqueleatrevimentoqueeradela,erasuamarca.—Vamos nessa— disse o amigo deKrystal que já estava com o sujeito no

ombrocomospésemãosamarrados.Elecaminhoumaisadentro.Krystal fez sinal coma cabeçaparaque as duas o seguisseme ela foi logo

atrás.Era impossível não estar assustada,mesmoque confiasse tanto emGabriel,

Amandanãoconseguiaficaràvontadecomaquelesdois.ElaosachavacomcaradeperigososeseperguntavacomoGabrieltinhasemetidocomeles.

Quando saírampelo outro lado, Felicity e Amanda viram o carro.O homemjogouocorpoadormecidonoporta-malas.Elasentraramnocarro.

Apenascomoolhar,Krystaldissequeerahoradecolocarocapuz.As duas meninas se entreolharam, seus olhares se cruzaram na mesma

pergunta:quaissegredosGabrielestavaescondendo?Então tudo ficouescuroequandopuderamenxergaromundonovamente, o

localondeestavameraoutro.

Ohomemestavaemumacadeira,amordaçadocomasmãosamarradaspara

trás,seuspéstambémestavampresosporcordas.Amandaestavadepécomamãodireita no rosto e a outra sobre a barriga. Sua expressão era demedo e pena.Gabrielestavasendomuitocruelcomele.Felicityobservavacuriosa,ao ladodaamiga,esperandoqueorapazarrancassealgumacoisadaqueleseresquisito.

Orostodeleestavapálidocomoseseusanguetivessesidosugado,seuolhareradepânico,osuorestavadeixandoseuscabelosmolhados.

Gabriel estava sentadonuma cadeira, curvadopara frente e comas pernasabertas,estavasuadoesealguémperguntasseoqueestavasentindo,diria:nada.Elelevantou-seepuxouopedaçodepanodabocadosujeitocomviolência,otecidoficoupenduradoemseupescoçocomoumcolar.

Elenãoestavadispostoafalar,sódeugritoseporissoforaamordaçado.—Euvoutedarmaisumachanceparafalartudooquevocêsabe—dissecom

avozfria,seuolharpenetrante,transparecendofúria.—Comecefalandoporqueestánosseguindo.

OhomemolhouparaAmandacomosepedisseajuda,depoisparaGabriel.—Então,decidiufalaralgumacoisa?—Socoooorro!—oberrodohomemecooupelogalpão.Gabrieldesferiuumtapacomascostasdesuamãodireitanorostodele.O

sujeitosoltouumgrito.— Para, Gabriel — gritou Amanda, assustada mais com Gabriel que com o

supostoespião.—Eletemquefalar,Amanda—disseFelicity.Amanda ficou mais assustada quando viu Gabriel em cima do homem,

segurando-o pelos cabelos e com uma navalha daquelas de barbear próximo aoqueixopontudo.

—Achomelhorvocêfalarsenãoquisersemachucar.Possofazerisso,sabia?—Orapazfalavabempróximodohomem,olhandofundonosolhosdele.—Então,qualé?Vaicomeçarafalar?

—Nãoseidenada,nãoestavaseguindoninguém.—Elepareceudesesperado.— Deixe-me ir. — Os dentes dele estavam manchados de vermelho. Um corteinternoemsuabocaprovocadopelotapa,sangrava.

Gabrielencostouanavalhanamandíbuladele.—Fale—sussurrouorapaz.OhomemapenasoencarouapavoradoeGabriel forçouedeslizoua lâmina.

Uma linha vermelha se formou no rosto dele e o sangue escorreu. O corte foisuperficial,masosujeitosoltouumberropelosusto.

—Tudobem,tudo...—Eleestavasemfôlego.—Eufalo.Nãoestavaseguindovocês,masapenasela.—EledirecionouoolharparaAmanda.

—Amim?—Eunãoseioqueestãopensando,maserasóela.Oproblemaéquevocês

sempreestãojuntoseeuprecisosabercomquemelaanda.—Masporquê?—perguntouGabriel,parecendodesapontado.—Sãovários

devocêsnosseguindo?—Nãoseisetemalguémmaisseguindo.Apenasfuicontratadoparavigiá-la.—Quemocontratou?—Émelhor confessar logoquemmandouvocê seguir aAmanda.—Gabriel

aproximou-sedohomemameaçandoumnovocorte.—EsperaGabriel.Elehesitou.—Euseiquemcolocouessehomempramevigiar—continuouAmanda.FelicityeGabrielaolharamsurpresos.—Entãofale,quemfoi?—Vamosdeixá-loirembora,Gabriel.Nãoéquemestamospensando.—Claroquenão—disseohomem.—Falalogo,Amanda—insistiuFelicity.— Tudo bem,mas ele tem que confirmar. Foi o Romeu não foi?—Amanda

aproximou-sedohomem.Eleassentiuquesimcomacabeça.—MasqueméRomeu?—perguntouGabriel.Felicity o encarou, depois olhou para Amanda, para a barriga de Amanda.

EntãoGabrielentendeu.—Não!ORomeu?Prefeito?Entãoéisso?Eleéopaidoseufilho?—Elesóestavapreocupadocomasegurançadagarota—falouohomem.—

Pediuqueeuavigiasseapenasparasabersobreobemestardela,jamaisfariamalalgumavocês.

Oalívio veio comouma rajadadevento frescoparaAmanda.Romeuestavapreocupadocomela,sentiusaudadedeleporummomento,maslembrou-sequeelehavia sumido desde que terminara tudo com ele. Nemmesmo uma ligação forafeita,tudobemqueelahaviadeixadoclaroparanãoprocurá-la,massumirassimecolocarumdetetivequenãofoibomosuficienteparanãoserpegoparavigiá-ladelonge?Certamentesoubedagravidezeaoinvésdeentraremcontatoparasabersobreacriança,elecolocouumvigia.

Depoisdoalívioveioadecepção.Amandaaindapensavanele,aindaimaginavaqueelesentissealgumacoisaporela.Podiaatésentir,masacarreirapolíticaeramaisimportante,oquadrodafamíliaperfeitaeramaisimportanteparaeledoqueserfelizdeverdade.

Masquemdissequeelenãoerafelizdeverdade?OqueAmandaerapraele?Umcasodeamorsecreto.Eascoisassecretassãoparasemanteremescondidas.ElegostavadeAmanda,masdojeitoqueelesestavam,semterqueseexpor.

—Diga pra ele que eu não preciso de proteção, eu seime virar sozinha—disseAmanda.—Eeleestáenganadoporqueessefilhonãoédele,peçaparamedeixarempaz.Eu juroqueseeu tevirnovamentepróximodemimeuchamoapolícia.—Amandaapontavaodedoparaosujeito,estavavisivelmenteaborrecida.

OqueelaqueriamesmoeraqueRomeuestivessealiparaacertá-locomumtapa.Oumelhor,elapegariaaquelanavalhadasmãosdeGabrieleriscariaaquelacaradesafadoqueeletinha.

—Vamosembora—disseGabriel.Elecaminhouemdireçãoàportaeparouvoltando-separaasgarotas.

—Maseele?—indagouFelicity.—Voupedirparaalguémcuidardele,nãosepreocupem.FelicitypuxouAmandapelobraçoecaminhouemdireçãoàGabriel.—Vocêsnãopodemmedeixaraqui—gritouohomem.—Seusimprestáveis.

Vocêsnãosabemcomquemestãosemetendo.Gabriel apagou a luz, passou pela porta e o homem ficou ali no escuro,

gritandoporsocorro.Tudooqueeleviaeraummontedepilhasdealgumacoisacobertas por lonas, eram caixas, máquinas talvez. O ambiente estava úmido.Algumaluzentravapelasfrestasnoaltodoteto.

Aquilo tudo foimuito desgastante e frustrante paraGabriel. Foi umesforçovãoporqueestavamnaestacazero.Nenhumapistadoautordaquelamalditalistadeinstruções.

CAPÍTULO31COMIDADEPEIXE

Gabriel abriu a porta do seu quarto e deu de cara com seu irmão pequeno

mexendoemsuamochila.— Dênis, está remexendo minha mochila com a permissão de quem, posso

saber?Gabrielvestiaumaregatabrancaeumshortpretoqueusavaparafrequentar

a academia. Ele estava suado após o treino que fizera para descarregar suafrustraçãocomocasodohomemcinzento.Tantoesforçogastoparanada.

— Com a minha — disse o menino, tão sério que pareceu ter algumaautoridadesobreGabriel.—Porquevocêtemcomidadepeixenasuamochila?—elemostrouopacoteaoirmão.

Gabriel continuavaparadocomasmãosnacintura.Mesmoquenão fosseaprimeiravezqueviaogarotomexendoemsuascoisassempresesurpreendiacomojeito“tônemaí”domenino.Elepodiafazeroqueelequisesse,Gabrieloamavade qualquer jeito e não se irritava com aquilo, desde que o pequeno não dessesumiçoemnadanemquebrassealgumacoisa,tudoficavaemperfeitaordem.

—Comidadepeixedámúsculos,sabia?Dênisarregalouosolhos.—Mentirasua.—Poracasoeutenhocaradequemmente?—Gabrielsentou-senacama,ao

ladodele.—Estávendomeunarizcrescer?Omeninobalançouacabeçaemsentidonegativo.— Somente o nariz dos mentirosos que crescem. — Gabriel tocou o dedo

indicadornonarizdelecomcarinho.—Comovocêachaqueconseguificarassim?—Gabrielflexionouobícepsmostrandotodasuaforçaparaoirmãopequeno.

Dêniseracomoele,branquinhocomoscabelospretos.—Comendocomidadepeixe?—perguntouomenino.—Issomesmo.Sevocêquiserficarforteigualamimvaiterquecomercomida

depeixe.—Eca,issotemumcheiroruim.—Ogostoébom,experimenta.Dênisabriuosaquinhoepegouumasmigalhasdaquelas.Elecolocounabocae

fezumacaretaquearrancouumarisadadeGabriel.—Não,Dênis,nãocuspa...Masjáeratarde.Omeninocuspiuumapapaemcimadacama.—Sujoutodomeulençol,seuporquinho.Omeninoria.—Nãogosteidisso—elefalou.Gabrielcompraraaquelacomidaparaalimentarospeixinhosenquantodecidia

oquefazercomeles.Alistadiziaqueeleteriadeentregá-losfritosàArabela,até

pensou em comprar outros e substituí-los pelos originais, mas recebeu umamensagemde textomisteriosadizendoqueestavadeolhonele,que teriadeseraquelespeixesaseremmortos.

MasGabrielnãotevecoragemdematá-los,pediuparaqueseuamigofizesseissoparaele.Aquelemesmosujeitoquearranjouadroga.Alguémdoseupassado.

O rapaz foi até o banheiro e voltou com um papel higiênico para limpar asujeira.

—Váproseuquarto,garoto.Precisoficarsozinho.—Queroficaraqui.—Amamãeprecisadasuaajudacomojantar,vailogo.Elatechamou.Opequenopuloudacamaecaminhouatéaporta.—Olhaoqueeuachei.—Eleretiroudobolsoumamedalhadouradapresaem

umafitaazuleestendeuparaqueoirmãovisse.Gabrielviuaquelepequenodiscodouradobalançandodiantedesi,pareciaque

Dênisoestavahipnotizandopoisficouimóvel.—Possoficarcomela?—perguntouomenino.— Pode— respondeuGabriel.— Agora, vai.— Ele empurrou o irmão com

carinhoefechouaportanachave..

DIÁRIODEREBECAQuerido,querido,queridodiário...Hoje,odiaestátãolindo.Obrilhodosolfaztudoparecerserdecristal,vejo

ascasaseosprédiosbrilhando,oscarroseosolhosdaspessoas.Tudoestátãomaisbonito,atéospássarosestãomaisafinados.

E tudo isso sabe por quê? Porque eu tenho uma notícia boa. Acho que asnotíciasboasdissipamonegrumedenossasvidas,nospermiteenxergaralém.

Vocêdeveestarcuriosoprasaberoqueé,masqueridodiáriomedeixefazerumpoucomaisdesuspense.Euseiquetenhotecontadoalgumascoisasruins,masnãotenhoculpaseelasmeacontecem.

Enfim, só mais uma coisa: neste momento estou deitada de bruços eescrevendoemvocê,estoubalançandomeuspésparafrenteeparatrás.Ajaneladomeuquartoestáabertaesintooventosoprarmeurosto.

Euescuteiumaconversadaminhamãefalandoaotelefone,foiissooquemedeixou feliz.Entrei noquartodela porquequeria que encontrassemeu vestidolilásparairvisitarmeuavô,entãopercebiqueelaestavanobanheirofalandocomalguémefiqueiouvindotudo.

Elafalavacomomeupai,melhor,comomaridodela.Eusabiaqueapoeiraiabaixar.Elesestãofazendoaspazes,naverdade,achoquejáfizeramenãomecontaramnada.Minhamãedisseque seriamelhoresperarmeuaniversáriodetrezeanosporqueaí seriaumagrande surpresapramim.Bem,não serámaisumasurpresa,masumpresente.Omelhordaminhavida.

Peloqueentendi,papaivemdevez.Eleestávoltandonodiadaminhafesta,demalaecuia.

CAPÍTULO32APEQUENASEREIA

AportadoquartodeKevinestavaaberta.Rebecaaproximou-seeviuseuavô

sentadonacama,aoladodelehaviaumacaixinhademadeiracomalgunsobjetosdentroefotosespalhadaspelacama.Agarotaentrousemfalarnada,sentou-seaoladodeleeoenvolveunumabraço.Kevindeuumsorrisoevirou-separabeijarorostodaneta.

—Tudobemcomosenhor,vovô?—Vocêmepermitefalaraverdade?—Comigovocêsabequesemprepodeseraverdade.—Bom,entãoaverdadeéquenãoestátudobem,nemnuncaestará.Faltam

pedaçosdemimquenuncaostereidevolta.—Ah,vovô.—Rebecaentrelaçouosbraçosnopescoçodohomem.Eladeuum

beijonacabeçadele.—Vocêtemamimeeutenhoaosenhor.— Todos decidiram seguir em frente,mas eu simplesmente não consigo. Se

digoqueestouseguindo,naverdadeestouapenassendolevadopelacorrenteza.EraassimqueRebecatambémsesentia:sendolevadapelacorrenteza.Mas

elanãopodiaafundarjuntocomseuavô.Elasempreachouquepormaisquebradaque estivesse por dentro, quando se está diante de alguém que também sedespedaça,vocêdevedaramãoparaqueadorpossasercompartilhada.

—Elaeralinda—disseRebecaaopegarumadasfotografiassobreacama.—Muitolinda—disseKevin.Seusolhosbrilhavamcomoomaraoreceberos

raiosdosolnasuperfície.—Vocêpuxouaela.Asúnicasruivaseolhosazuisnafamília. Nem mesmo seu pai teve olho azul. — Rebeca viu um sorriso ganharcontorno no rosto dele, mas seus olhos pareciam uma paisagem fria e escura,apesardobrilho.

Kevinadoravafalardesuagarotinha,suapequenasereia.Ameninadeolhosazuisecabelosruivos,tãoespertaealegre,eracheiadeenergiaeadoravanadar.Eratãoboaemnataçãoqueseuscoleguinhaslogoaapelidaramdepequenasereia.

A fotografia para a qual Rebeca olhava era de uma garotinha de sete anosdentrodeumapiscina,sorrindo.Notava-sequefaltavamdoisdentinhosnaarcadainferior. Seus cabelos estavammolhados e ela usava um biquíni lilás como o deAriel.

— Adoraria tê-la conhecido. Posso ver o que tem na caixa? Você nuncamemostrouessascoisas.—OavôassentiueRebecapegouumpeixinhodecerâmicaqueestavanacaixa,listradodeamareloeazul.—Linguado?—perguntou,curiosa.

—Émeutesouro.Elaganhouessepeixinhodeumcoleguinhadaescola,elediziaqueseriaseupríncipe.—Eleriu.—LembroqueosleveinaestreiadofilmeApequenasereia.ElesficaramencantadosebrincavamqueaAnnaseriaasereiaeoEnzo,opríncipeEric.Temumafotodomeninoaídentro,veja.—Kevin tiroudedentrodacaixaumafotografiaqueestavarasgadaaomeio.

Rebecaviuummeninoloiroeolhosverdes.Ocabeloeraespetado,elesorria,epercebeuquehaviaumamãozinhanoombrodeleeumamechadecabelosruivos.Entãoelaimaginouqueogarotoestavaabraçadoàmeninaqueseriasuatia,casoestivesseviva.

—AindacismaramqueofilhodelessechamariaLinguado.—Kevinsoltouumrisomaisanimado.

—ApostoquevocêeraoreiTritão.Kevinsorriueassentiu.— Onde está esse garoto, vô? — Rebeca olhava para a imagem como se

conhecesseaquelemenino.—Eletambémmorreuumtempodepois.OspelosdeRebecaseeriçaram.—Nossa,Vô...nãoconheciaessapartedahistória.—Foiumamorteestranhaadele...—Kevintentavapuxarfragmentosdesuas

lembranças.—Amãeosabandonouedepoisdeumtempo,opaianunciouovelóriodele.Mas ninguém viu o corpo... é estranho que ninguém tenha visto. O caixãoestavafechadoeopainãopermitiuquealguémabrisse,dissequeaquiloeraumpedidodogaroto,elenãoqueriaqueseusamigosovissemdentrodeumcaixão.

—Podeparecercoisadefilme,masosenhorachaqueelepossaestarvivo?—Eleeraapenasumgaroto,nãocreioquealgoassimpassassepelacabeça

dele.Forjaraprópriamorte.—Mastalveztenhasidoopai,parasevingardamulherqueosabandonou.—Podeparecerestranho,masprefiroacreditarqueelenãoestámaisneste

mundo,queestãoosdoisjuntosemalgumlugarcomodeveriatersido.NinguémnuncahaviacontadodetalhesdessahistóriaparaRebeca,tudooque

ouviraeraquesuatiahaviamorrido,porironiadodestino,afogada.Agarotaquevenciatodososmeninosemcompetiçõesdenataçãonaescolamorreuafogada.

—Quemestavanessafotoaoladodele?—Suatia.Aoutrametadeficoucomomenino,masnãoseiondefoiparar.Eles

gostaramtantodessafotografiaquedecidiramparti-laaomeioecadaumficoucomaimagemdooutro.Adorariaacharaoutrametadeparapodervê-losjuntos.

Elesnuncacasaram,nuncativeramfilhos.Agarotinhanãosetornouamulherdetrintaedoisanosqueserianaquelemomento,queseriaodiadoseuaniversário.Kevinnuncaconheceuseusnetinhos,nemnuncasaberáseelesherdariamosgenesdafamíliaeteriamcabelosruivoscomoele,seusfilhosesuaneta.NuncasoubeseamaturidadeimpediriaqueosdoisbatizassemseufilhodeLinguado.Kevinnuncaentrounaigrejacomelacomosonhou,nuncaentregousuaArielaoPríncipeEric.

—Achomelhorvocênãoolharmaispraessas fotos,estádeixandoosenhortriste.—Rebecacatouumaaumaeasdispôsdentrodacaixinhademadeirajuntocomopeixinho.—Queroumfavorseuenãopodemenegar.

—Hum,ésódizeroqueé.RebecacontouoqueaconteceucomArabelaecomoelaficouabaladacomo

sumiço dos peixinhos, depois explicou como a professora tinha ido parar nohospital.

Kevinnãoestavamuitodispostoasairdecasa,maslembrou-sequeelafora

professoradeseusfilhostambém,entãosentiuvontadedevê-lanovamente,faziaumbomtempoqueatinhavisto.

—Masvocêachaumaboaideiadarnovospeixesparaela?—Ah,vô,achoquesim.Elanãogostadegato,nemdecachorro.Vamos,por

favor.Rebecaopuxoupelobraçocomcarinho.Ohomemlevantou-sedacamameio

que sem vontade. Ele estava vestido com um roupão azul marinho. Era alto ecorpulento.Caminhouatéobanheiroedissequenãodemoraria.

Rebecaorganizouasfotografiasepegouacaixinhademadeirasparaguardá-las e observou que ali dentro também tinha uma foto do seu pai. Ela ficouencarandoafotografiadelequandofoidistraídapelotoquedocelular.

— Papai — disse ao atender a ligação. Chegou perto do banheiro paracertificar-se que o avô já estava embaixo do chuveiro.— Estou com o vovô.—Rebecacaminhouatéajaneladoquartoeolhouparaaestufaumpoucodistantedeondeestava.—Estoucomumafotosuaaquiguardadacomovovô,osenhorestámaisnovo,umgato.

—Opapaiguardaverdadeirasrelíquiasnossas—disse.—Sóesperoquenãosejaumadaquelasantigas,euerahorrível.

—Nãoé tãoantiga.Enãotemcomovocêserhorrível.—Rebecatinhaumsorrisonorostoquebrilhavacomoasestrelasnocéu.—Fosseassimeunãoterianascidolinda,puxeiaosenhor,ovômesmofalouisso.

—Vocêé linda,minhaprincesa.Masolha,nãopossofalarmuito,vouentraremumareunião.Sóqueriatecontarumanovidade.

—Ah,querosaber,mefalelogo—insistiu,animada.—Conseguialgunsdiasdefolgaeireipassarumfimdesemanacomvocê.—Não acredito nisso— ela colocou amão na bochecha como se estivesse

encantadacomalgoqueestivessevendopelajanela.—Voucontarosdias.—Nopróximomeubem.Estaremosjuntos.Agora,nãoconteaninguém,quero

fazerumasurpresa.E,meubem,precisodesligar.Beijo,beijo.—Tudobem.Beijo!Instantesdepois,seuavôsaiudobanheiro.—Ouvivocêfalandocomalguém,eraaquinoquarto?— Não vô, estava ao telefone com um amigo. Nossa, como o senhor está

cheiroso.—Elaaproximou-sedeleecheirouopescoçodeKevin.—Vista logoaroupa,vouesperá-loláembaixo.

Rebeca se sentiu no fundo do mar quando entrou na loja. Havia muitos

aquários de diversos tamanhos, alguns enormes com réplicas do fundo do mar,cheiosdepeixinhoscoloridos.Seuavôficouentusiasmadoaovê-lafeliz,ajudou-aaescolherquaislevar.

Depoisdealgumtempoescolheuumcasaldebettas.Omachoeravermelhocomumacaudaenormequeparecia feitade fios, a fêmeaera verde, semmuitaornamentação. Ela preferiu levá-los de outra cor para evitar que Arabelalamentasseapartidadosoutrosdois.Rebecaqueriaqueelapudessegostardeles,semquefossemumasubstituição.

—Omédicodissequeelasofreuumpré-infarto—disseRebeca,jánocarrocomseuavô.Eledirigiacomtranquilidadepelasruas.

—Sério?—Kevinnãoacreditavaqueaprofessorativessequaseinfartadoporcontadospeixes.

—Sim,maseledissequenãofoicausadonecessariamentepelosustoqueelatomou,aquilofoisóumagravante.Elajáestánaidadedeseaposentar.

—Temrazão,jádeviaterlargadoaquelaescola.EleschegaramaohospitaleRebecaencontrouosobrinhodeArabelaquea

acompanhava.Ohomeminformouqueelaestavabem,serecuperavaeteriaaltanodiaseguinte.EstavaacordadaeRebecapediuparavê-la,prontamenteforalevadaaoquarto.

—Olá,tiaBela—disseRebeca.Elapôsapenasacabeçaentreaporta.Arabelasoltouumsorrisofraco.—Entre,meubem.—Elagesticuloucomamãoindicandoqueentrasse.Ficou

surpresaquandoviuoavôdameninaentrarlogoemseguidasegurandoumaquáriopequeno.

Rebecasegurouamãodela.—Aindalembrademim,Arabela?—perguntouohomemruivocomumsorriso

amigávelnorosto.—Emboratenhasumido,nãoesqueci.Ficosurpresaemvê-loaqui.— Soube do que aconteceu com você. E minha neta insistiu que a

acompanhasse.Queriatetrazerumasflores,maseladissequeficariamaisfelizsetrouxessepeixes.Issoéverdade?

—Certamenteéverdade.Achaquesuanetamente?—Ah,claroquenão.— Espero que goste deles — falou Rebeca. Ela estava de pé ao lado da

senhora.Usavaumvestido levenaalturados joelhose seus fios ruivosestavampresosnumafranjaparatrás.

— São lindos — disse a enferma ao vê-los bem de perto quando Kevin seaproximouparamostrá-los.

—Ainda não descobrimos nada sobre quem fez aquilo comMr Jack e LadyRose,masnãovamosdesistir.

Arabelatossiucomdificuldade.—Nãosepreocupecomisso.Nãoqueroqueseincomode.Kevincolocouopequenoaquáriosobreumabancada.—Porquenão largaaquelaescola?Achoqueaquantidadedealunosque já

teveequivaleàpopulaçãodaFrança.—Nãosoutãovelhaassim.—Ah,não?—questionounumagargalhada.—Ensinouaomeufilhomaisvelho

quetemquarentaanos.

—Possoestarvelha,masaindaestouganhandodevocê.—Duvidomuito,aindaconservominhaforçadegaroto.Vocêprecisamever

pegandoondas.Arabela deu risadas imaginando-o em cima de uma prancha, tentando se

equilibrarsemamesmacoordenaçãomotoradeantes.Rebecasorriaaovê-losconversandodaquelaforma.Estavafelizemveroavô

descontraído,fazendopiadascomaprofessora.—Vocêsparecemdoisadolescentes,sério.Elesriram.—Podiamseencontrarmaisvezes.Rebecaviu,pelapartedecimadaportaqueeradevidro,umhomempassarno

corredor.Foirápido,maselateveasensaçãodeconhecê-lo.—Fiquemconversandoumpouco,vouaobanheiroejávolto.Elapegousuabolsaquedeixaranacadeiraesaiu.Andoudevagar,procurando

aquelevultofamiliar.Umaenfermeirapassoupelocorredor;doisjovensresidentesandavam conversando distraídos como se estivessem passeando em algum localpúblico.

Ela andou alguns metros e virou à esquerda, o viu prestes a entrar noelevador, ele estava de costas falando ao telefone e sua voz o denunciou. Ela oconhecia.

EntãoeleentrounocubículoeRebecadeuumpassoàfrente,saindodetrásdeumaplantacolocadaali.Antesdasportassefecharam,elaviuemumalinhaquepareciaaaberturadeumportalmágicosendofechado,orostodele.

EseperguntouseCristianoaestariaseguindo.

CAPÍTULO33OAGRESSOR

Quando Gabriel chegou em casa, encontrou os pais e o irmão à mesa da

cozinhaparaocafédamanhã,haviaalgumastorradas,manteiga,pães,umajarradesucobemamarelo,queijoeleite.

Elisabetheraumamulherbaixa,tinhaoscabelosdacordecarameloelisoscortados na altura dopescoço.Gabriel podia agradecer àmãepelos fios lisos esedososqueherdara,dopaiganhouabrancuradapeleeostraçosdehomemrudequeeramquebradospelobomhumorquepuxoudamãe.

Dênis,oirmãocaçulaeramuitoapegadoaElisabeth,andavapregadonelaotempo todo, só se soltava quando estava na escola. Amulher era dona de umacrecheeocupavaseutemponaadministraçãodonegócioenaeducaçãodo filhomaisnovo.Paraela,Gabrieljáeraumhomemfeito,sabiasecuidarsozinho.

—Saiucedohoje—comentouamãe,queestavapassandomanteiganopão.—Estavaprecisandocorrerumpouco.—Gabrielcaminhouatéoarmárioe

pegouumcopo,dirigiu-seàgeladeiraeoencheucomágua.—Vai seatrasarpraescola, vá logo tomarbanho—disseRicardo, olhando

paraofilhoedepoisvoltandoosolhosparaojornalquelia.—Dênis,largueessecelularecoma—disseopaiparaomenino.—Sóestoujogando.—Exatamenteissoquenãoqueroquefaça.—Dênisme dê seu aparelho— pediu amãe.—VamosDênis. Termine seu

leite.Omeninoentregouotelefoneàmãeelevouocopodeleiteàboca.—Senta,Gabriel.—Vou subirpimentinha.—Gabriel acabarade tomar suaáguae colocouo

copodentrodapia.—Mejogaumatorrada.DênisjogoueGabrielpegounoar.Deuumamordidaesaiuàspressasantes

quealguémfalassealgumacoisa.— Parece que aquele shopping vai mesmo sair — disse Ricardo para sua

mulher. Ele lia uma notícia sobre um antigo projeto de construção de um novoshoppingparaacidade.

—Será?Osdonosseresolveramentão?—perguntouElisabeth.Dênisjáhaviapegadoocelulardevoltaejogavaminecraft.Aobraforaerguida,masestavainacabada.Oqueexistiaeraoesqueletodele.

Umprojetoarrojado.Masalgunsdesentendimentosentreosdonosparalisaramaconstrução.

—Na verdade venderamoprédio junto como terreno.Masnãodizempraquemfoivendido.Dênis,estoudeolhoemvocê.

Ogarotoolhouparaopaiesorriu.—Sódessavezvoufingirquenãoestouvendo.—Ricardopermaneceulendo

seujornal.—Estánahora,querido.Vamos.—Elisabethlevantou-seecomeçouaretirar

amesalevandocoposepratosatéapia.—Subaearrumesuascoisas.Amulher viviadividida entre o trabalho, cuidarda casa edo filhopequeno.

Paraalgunstrabalhosdomésticoselacontratavaumadiarista,apartedacozinhaela gostava mais e tinha seus funcionários que ajudavam na administração dacreche.Nadadeempregadasemsuacasa,pensavaela.PormaisqueRicardofosseumbommarido,nãoconfiavanoinstintoanimaldoshomens.

Gabrielentrounoquarto,fechouaportanachave,pegouosaquinhopretoque

estavaescondidonofundodoguarda-roupa,abriueretirouoconteúdoqueestavaemumsacoplástico,rasgou-oedespejouopóemumalinharetanabancadadapiado banheiro. Ele ainda lembrava como fazia aquilo, uma onda de excitação eansiedadetomoucontadele.Pegousuacarteiraqueestavaemcimadamesinhadeestudos,tirouumanotadedezreaisquetinhaefezdelaumcanudinho.

Já estava de volta ao banheiro enquanto enrolava o papel, olhando-se noimensoespelho.Aquela linhabrancalhetrazia lembrançasdeumpassadoque jáhavia enterrado, mas alguém cavou essa cova e o trouxera de volta ao seupresente.

Imerso em lembranças, Gabriel curvou-se, tapou a narina direita e sugouatravésdoseucanudinhoaquelalinhapeloladoesquerdo.Poruminstante,teveasensaçãoqueestavasugandoomundoparadentrodesi.

Aochegaràsala,aprofessoradeBiologia jáexplanavaoconteúdo.Gabriel

caminhoupelafileiradaesquerdaesentou-seatrásdeAmanda.Elepuxouocabelodaamigadeleveapenasparachamaratençãodela.Rebecaestavanacarteiraaolado.AmandapiscouparaoamigoesorriuparaFelicityquesesentouàsuafrente.

Gabrielviajouparalongedasaladeaula,tudooqueeleviaeraasilhuetadaprofessora, o que ele ouvia eram palavras jogadas que formavam frasesdesconexas.Quemovisse,achariaqueeleestavaaltamenteconcentradonaaulasobreosistemarespiratório.

Finalmente, o sinal tocou. Os adolescentes começaram a sair das salas. Ocorredorseencheudegente.Gabrielsaiuapressado,sabiaqueJohndavaaulasnaturmadoprimeiroano,eleoviusaireoseguiu,passoupelaescadaquedavanoprimeiroandar,algunsalunosdesciamfrenéticos.Orapazviuoprofessorcruzaro

pátioemdireçãoaobanheiro.Eleestavacomsorte,pensou.John estava lavando as mãos na pia quando Gabriel entrou. Havia quatro

banheirosdecadaladoformandoumcorredor.Johnseolhounoespelhoeviuo reflexodoseualunocomumacaradecão

feroz.—Olá,professorJohn.—Gabrieleracorroídoporumaansiedadeeadrenalina

que se misturavam em seu sangue. Sua expressão era de um animal prestes aatacaralguémporpuradefesa.Oinofensivoprofessorvirou-separaorapaz.

—Gabriel.—Johndesenroloualgumasfolhasdepapeldeumroloqueestavana pia e começou a secar as mãos. — Você está bem? Notei você um poucoestranhohoje.

—Bem?—Gabriel deu dois passos e ficou bem próximo de John, olhou nofundodosolhosdohomemeprosseguiu.—Vocêachaqueestoubemdepoisdeterpassadoamãonaminhabundaeterameaçadomereprovarcasoeunãotivesserelações sexuais com você?— O rapaz ficou vermelho, seus olhos pareciam devidro, prestes a se quebrarem, a sua voz ecoou como um sussurro desolador.Gabriel viu a expressão de John se desmanchar, escondendo a sombra de algopróximodeumrisoqueeleimaginoutervisto.Podiaseromedo,algumaspessoasreagemaomedodeformaestranha.

—Gabriel,eunão...—falougaguejando.OpunhodeGabrielacertouoestômagodoprofessorJohn,quesecontorceu

dedor.Osocofoiforte.Johnolhouparaoaluno,assustado,tentandofalaralgumacoisa,masfoiimpedidopelosegundosocoqueolevouaochão.Gabrielacertouumchutenascostelasdele,emseguidaapoiouasmãosnapiaeseolhounoespelho,estavasuadoearespiraçãopesada,suaspernastremiam.

Johntentouselevantar,caminhoualgunspassosatéseralcançadopelorapazque o arrastou pela camisa porta afora, jogando-o no chão, na frente de algunsalunos que começaram a gritar, algumas garotas pediram por socorro, outrosincitaramabriga.

Umgarotocomeçouafilmaracenacomocelular.Gabrielsaiudobanheiro,rápidocomoumanimalselvagematacandoasuapresa,foiparacimadoprofessorquetentavaficardepécomdificuldadedevidoàdorquesentianoestômago.ElepediuqueGabriel parasse,mas o rapaznão tevepiedadee acertouum soconamandíbuladeJohnqueolevoumaisumavezaochão,opobrehomemcomeçouacuspirsangue.

Osgritossealastrarampelocolégio.AntesqueGabrielpartissepracimadeJohn,umalunodoterceiroanosurgiu

empurrandotodosàsuafrente,suasmãosforamdeencontroaopeitodeGabriel,impedindoqueorapazmachucassemaisaquelecorpomagrelocaídoaseuspés.

—VocêficouloucoGabriel?—esbravejouooutroestudante,encarando-o.—FiquelongeRaphael.Essepedófilomeatacou.—Oque?—Raphaelfezcaradenojo.—Vocêendoidou?—Bebezão.Vocênãoémaiscriança—outroestudantegritou.Rebeca viu quando duas garotas estavam ajudando o professor a sair dali,

apoiadoemseusombros,ecorreuparaajudar,perguntouoquehouveeasmeninasresponderamqueforaumabrigaentreeleeGabriel.

—Gabriel?OGabriel fez isso?—Seusolhos searregalaramcompondosuaexpressãodehorrorempensarqueoamigohaviafeitoaquiloaoJohn.

—É, foi ele sim.Euo vi quando jogouoprofessorno chão.Eles saíramdobanheiro,brigando—disseumadasmeninas.

Rebecacaminhouentreaspessoasparasaberoqueestavahavendonaquelabagunçatoda.

—Oquedeuemvocê,Gabriel?Piroudevez?—berrouamoça,indignada.—Johnnãofariaumacoisadessas,Gabriel.Émelhorvocêcontarlogooque

aconteceu—ordenouRaphael.—MasoqueoprofessorJohnfez?—quissaberRebeca.—Gabrieloacusoudeassédio.—Comopodetertantacertezadequeelenãofaria?—rosnouorapaz.Outrosalunosseaproximavam.Acorreriahaviatomadocontadaescola.Dois

rapazestãofortesquantoGabrielseaproximaramquerendobaternele,Raphaelosempurrou tentando proteger o amigo e levou um soco de um deles, não deixoubaratoepartiuparacima.OoutroalunotentouacertarGabriel,masrecebeuumsoconoestômagoantesqueconseguissefazeralgumacoisa.

Rebecagritavaemmeioàbrigaparaqueparassem,maserainútil.Raphael estava rolando no chão agarrado ao outro, quando mais um aluno

chegouparaajudá-lo,ogalegodeuchutesnomeninoepuxouRaphael,ajudando-oalevantar. Uma garota surgiu para impedir que o outro garoto partisse pra cimanovamente.

Entãoumgritoparalisouacena.—Chega.Ohomemgordoveiocaminhandoentreosalunos.—Paremtodosvocêscomessabagunça.—Oestrondodesuavozsilencioua

garotada,algunsrapazesaindabrigando,sesoltaram.—Queinfernoéesseaqui?— perguntou a todos e se dirigiu ao culpado.—Gabriel?—O professor estavadiante do garoto, cobrando uma explicação com o olhar de desaprovação edesapontamento.—Meexpliqueoquefoiisso.Todosvocês.—Eleapontavaparaosalunos.—Prasala,agora.EvocêGabriel,meacompanhe.

Gabrielseguiuoprofessoraindaalterado,suapeleestavaavermelhada.Haviaalgo de errado com ele, Rebeca notou. Ela podia esperar qualquer atitude doamigo,menosqueagredisseumprofessor, aindamais o Johnqueeraumsujeitoadmiradopelamaioriadosalunos.

Doisinspetoressurgiramparalevarosadolescentesdevoltaàssalasdeaula.Rebecagritoucomelesperguntandoporondeestavamquedemoraramtanto.

GabrielchegouàdiretoriaacompanhadodeDaniel,oprofessorgorduchoquetambém era diretor da escola, ele hesitou quando chegou na porta e viu aprofessoraPatrícia cuidandode John, o enfermoestava sentadoemumacadeirarecebendocuidados.MasDanielopuxoupelobraçoeforçouogarotoasentaremumacadeira.Gabrielestava,agora,angustiado,araivaqueelemesmocrioudentrode si sedesmancharanummistode sentimentosconfusos,maso tempo todoele

tinhaquedemonstrarrevolta.Defatoestavarevoltado,masomotivoeraoutro.—Expliqueagora,amerdaquevocêfez,Gabriel—rosnouDaniel,encarando

oaluno.—Oumelhor,expliquemvocêsdois.—Nãoseioquehouve.Ogarotocomeçouameagredir,eunãoesperavanem

entendi omotivo.— John estava nervoso, suasmãos tremiam, a voz falhava emalgunsmomentos.

—Émentira.—GabrielcomeçouafalarencarandooprofessorJohn.—Vocêvinhameassediandohátempos,ameaçandomereprovar,casoeunãocedesseàssuasinvestidas.

—Pera, pera...Comoassim, investidas, assédio?—Daniel olhouparaumeparaoutro.Patríciaestavaimóvel,deolhosarregalados.

—Émentiradele—gritouJohn.—Vocêtentoumeagarrarnobanheiro,euhesiteiemesmoassimvocêveiome

tocarcomsuasmãosimundas—berrouGabriel.—Paremdegritarfeitoloucos—pediuPatrícia.—NãoesperavaissodevocêGabriel.Porqueisso?Oquevocêganha?—John

seguravaumabolsadegeloaoladodorostoondelevaraumsoco.—Gabriel, isso não faz sentido—disseDaniel.—Todos nós conhecemos o

John,elenãoseriacapaz.— Eu também achava que o conhecia. — O garoto estava suado, sua

respiraçãoerapesada,estavatenso,pordentrosentiamedo.—Mascomopodemver,nãoéohomemsantoqueaparenta.

—Chega.Nãomereçoouvirtantacalúnia.Ésempreassim.Emumabrigadebrancoepretoobranco sempre temrazão,mesmoestandoerrado.Meajudeasairdaqui,Patrícia.

—Nãosefaçadevítima—disseGabrielnumtomfraco.—NãofaleassimJohn—disseDaniel.—Vocêtemdireitoasedefendereserá

ouvido,poderácontestaroqueoGabrieldiz.—Vamoseu teajudo—dissepatrícia.—Vou levarvocêaomédicopraver

essesferimentos.—Johneaprofessorasaíramjuntosdasala.Elesentiadoresnascostelasenobraço,masconseguiuandarsemprecisarseapoiarnacolega.

—Mocinho,ébomvocêcomeçaraseexplicar.—DanielpuxouacadeiraemqueJohnestavaesentou-se,mirandoorapaz.—Vamos,estououvindo.

—Dan, eu já expliquei. Eu usei o banheiro, então ele estava lá, começou afalarumascoisasestranhas—falavapausadamente.

— Coisas estranhas? Que coisas? — Daniel encarou o aluno com um olharpenetrantecomosetentassedescobriralgumamentira.

—Disse que eu estava ficandomuito bonito.—Gabriel se controlava paramanteroolhardeencontroaodoprofessoredemostrarrevoltacomocaso.—Equeestavanahoradeeucederalgumacoisapraele,senãoiafazerdetudopraeuserreprovado.Nãofoiaprimeiravez,jáhaviaacontecidoantes.

—Onde?—Nasaladeaula,umavezqueestávamosasós.Nopátio,emoutrasocasiões

no banheiro, sempre me assediou. Eu procurei fingir que era tudo brincadeira,mas...

—Masoque?Gabrielprecisavasustentaramentira.Tudooqueimportavanomomentoera

queseusegredosemantivesseasalvo.Nadanemninguémficarianoseucaminho,entãoelecontinuou.

—Mashoje,elepassoudoslimites.—Orapazalterouotomdevoz.—Tentoumeagarrar à força, ele pegou ondenãodevia e tentoumebeijar. Por isso, batinele.

—Acalme-se—disseDaniel,depoisdeummomento.—Vaificartudobem.—Pousousuamãogordanoombrodogaroto,queestavadecabeçabaixa,tentandocontrolarumchoroqueseesforçavaparatorná-loverdadeiro.—Masvocêprecisatercertezadoqueestádizendo,issopodeacabarcomavidadoprofessor.Éumaacusaçãogravequevocênãopoderávoltaratrás,nãotemmaiscomovoltar.Euteadiantoqueeleseráafastadodaescola.

—Euqueroirembora.—Umalágrimaescorreudoolhodireito.—Seupaiestávindotebuscar.Gabriel ficou impaciente, andando de um lado para o outro até que seu pai

chegasse.Danielcontinuoualinasala,digitandoalgumtrabalhonocomputadorenãopermitiuqueninguémmaisentrasse.OsdoispermaneceramcaladosatéqueRicardo apareceu. Ao vê-lo, Gabriel correu para abraçá-lo. O homem cobrouexplicaçõesaDanieleoprofessorreproduziuaspalavrasdorapaz,oquedeixouopaidomeninomuitofurioso.

—Euqueroprovidências,entendeu,Daniel?Issonãopodeacontecer,ondejáse viu um professor assediar um aluno? E ainda, por cima,menor de idade. Euprocesso sua escola, acabo coma reputaçãodesse colégio se vocênão expulsaressemerdadesseprofessor.—Ricardogritava,estavacomorostovermelhoecomofilhoabraçadoaele.

— Acalme-se Ricardo. — Daniel tentou tranquilizá-lo. — O John é um dosnossosmelhoresprofessores,nuncasemeteunessetipodecoisa,precisamostercertezadoqueaconteceu.

— Certeza? — questionou indignado. — Você está chamando meu filho dementiroso?VocêachaDaniel,queoGabrielsepassariaporisso?Atrocodequê?EuconheçooJohnmelhorquevocêenuncagosteidelemesmo.

—Sóquerodizerquetudopodetersidoummalentendido,oGabrielpodeterseconfundidocomalgumacoisaqueeletenhadito.

—Queroirembora,pai.Vamosemboradaqui—pediuorapaz.—Sim,vamos.Masvocênãopisamaisnessaescolaenquantoesseprofessor

nãofordemitido.Ouviu,Daniel?Demitido.Ricardo saiu com o filho pelo corredor, desceu as escadas e passaram pelo

pátio,algunsalunosrondavamatrásdealgumainformação.Gabrielouviuameaçasdizendoqueissonãoficariaassim,queoprofessorJohnseriavingado.Ogarotonãodeuouvidos,seguiucomopaidecabeçabaixaatéoestacionamento.

Os alunos estavam perplexos com o que havia acontecido, a maioria delesestavadoladodeJohn,oconheciamtãobemquenãoacreditavamdeformaalgumaque ele tenha feito algum mal a Gabriel, mas outros diziam não confiar noprofessor.

—AchoqueoGabrielquemdeuemcimadele—disseumaluno.—Issoémuitoestranho,porqueoprofessornãoseriaburrodeagarrá-lono

banheiro—emendouumagarota.— Ou vai ver ele pensou que o Gabriel não teria coragem de causar um

escândalodessesnaescola—disseumterceiroaluno.Elesestavamcaminhandopróximoaoestacionamento.

—Masnãotinhamaisninguémnobanheiroquepudessetervistocomotudocomeçou?—perguntouagarota.

—Parecequenão.Epelo que eu ouvi, essanão foi a primeira vez.O Johnvinhaassediandofaztempo,entãooGabrielexplodiu.

Gabrielpassouporeleseouviuapenasseunome,sabiaquetodomundoestavacomentando.Sabiaquemuitosalunosestavamcontraeleesabiamaisaindaqueteriadesustentarsuaversãodahistória.

— Gabriel, por que você não me contou isso, filho? Como pôde ficaraguentandoessascoisas?—questionouopaiaodarrénocarro.

—Tivevergonha.—Orapazestavadebraçoscruzados,comacabeçaviradaparaajaneladocarro.

— Você não pode guardar essas coisas pra você, tem de confiar em mim.Vamosàpolíciadarqueixa.

—Não—disseGabriel,desúbito.—Porquenão?— Eu não quero me expor — falou compassadamente, tentando manter a

calma.—Jábastatodaaescolaestarsabendo,alémdomaiseunãotenhonenhumaprova,éminhapalavracontraadele.

—Masnãopodemosfingirquenadaaconteceu.—Oveículoparounosinalqueestavavermelho.—Danielterádeafastaressecretinodaescola,dissoeunãoabromão.

Gabriel viu o sinal ficar verde, pensou que hoje havia avançado o sinalvermelhomais uma vez. Avançar o sinal sempre significou aventura, adrenalina,sempreo faziasesentirmelhor, invencível,gostavadedesafiarseus limites,masnaquelemomento, a única coisa que sentia era um vazio crescer cada vezmaisdentrodesi.

O pai deixou seu filho em casa e seguiu para seu trabalho. Gabriel ficousozinho,subiuparaoquarto, tomouumbanhoeemseguida,pegousua listaqueestavanaúltimagavetadamesinhadecabeceiraeriscouoquintoitem.

CAPÍTULO34ADETETIVE

—Oquehouve aqui,Rebeca?—perguntouAmandaao se encontrar coma

amigaaindanopátiodoblocoA.ElaeFelicityvieramcorrendoquandoouviramosgritos, mas já era tarde. As duas estavam caminhando próximo ao campo defutebol.OuviramconversasdequeoGabrieltinhasemetidonumabriga.

—Atéagoranãoentendibem.—Rebecapassouamãonoscabelosruivos.Elaestava visivelmente preocupada como amigo.—Umabriga entre oGabriel e oprofessorJohn.

Entreumblocoeoutrohaviabancosdepraçanaáreaqueseparavaosdoisprédios. Havia também árvores que sombreavam boa parte do local. Rebecaconvidouasamigasasesentarem.

—Briga?— perguntou Felicity, enquanto caminhava comuma expressão depânico.

—É.NaverdadedisseramqueoJohnassediouoGabrieleeleacaboudandoumasurranoprofessor.—Rebecasentou-se.

AmandaeFelicityseentreolharam,umasoubeoqueaoutrapensou:seráqueteveavercomalista?

Asduassentaram-sedefrenteparaRebeca.—Eondeeleestá?—ODanielolevouparaadiretoria,fuiatélátentarouviualgumacoisa,mas

temuminspetornocorredoreexpulsoutodomundodelá.Ouviquechamaramopaidele.

—Ah,gente,masessahistóriadoJohnterassediadoeleéestranha—falouFelicity.—TodomundoconheceoJohnesabequeelenãoégay.

—Naverdadesóoconhecemosnaescola—ponderouAmanda.—Sabe-seláoqueelefazforadaqui.

—MasoJohnnãoseriatãoburrodefazeralgumacoisacomoGabrielaquinaescola—emendouFelicity.

—EvocêachaqueoGabrielinventariaessahistória?—perguntouAmanda—Olhalá,oseuRicardo—disseRebeca.Elasobservaramohomemcaminharapressado,comocelularnoouvido.Um

inspetor o interceptou no caminho e o acompanhou até a sala em que Gabrielestava.

—NãoachoqueoGabrielmentiria sobre isso—disseRebeca.—Alémdomaiselebateunoprofessor.Agentesabequeelenãoédotipoquesaiespancandotodomundo.

—Rebecatemrazão.Masachoquetemalgumacoisaestranhanessahistória—falouAmanda.

— Tem muita coisa errada acontecendo neste colégio, Vic. Desde aquele

incêndio,coisasestranhasvêmacontecendo.OGabrieldesfilouquasepeladopelaescola.

—Ah,masaquilonãofoiestranho,foilindo.—OsolhosdeVicbrilharamcomodoiscristais.

—RoubaramospeixinhosdaArabelaeosmataram—continuouagarota.—EagoraoGabrielquebraacaradoJohnacusando-odeassédio?

— Sua cara ficou parecendo uma omelete agora. — Ela soltou um risoestranho,comsetivesseficadopresonocaminho.

— Ah, deixa de piada, Vic — disse, irritada. — Presta atenção. — Rebecacolocou seu cabelo atrás da orelha. Levantou umpouco e puxou a cadeira paramaispróximodamesa,inclinandoseucorpoparamaispertodaamiga.—Euachoquetodosessescasospodemestarrelacionados—falouquasenumsussurro.

Viccongelouaexpressãocomoseanalisasseoqueaamigafalou.—VocêestáquerendodizerqueoGabrielestáportrásdetudoisso?Ah,não.

Me recusoaacreditar. Issoé loucurada suacabeça,oGabriel jamais colocariafogonaescola,nemmatariapeixinhosindefesos.

—Ah,não?Vocêachaqueeleseriacapazdeagredirumprofessor?—Bom.—Vicreconsiderouoquefalouporuminstante,massaiuemdefesa

dele.— Isso não conta, ele se defendeu de um assédio. Ele é bonito Rebeca, énatural que as pessoas se interessem por ele. Ninguém conhece ninguém deverdade.OJohnpodiaestarsesegurandohábastantetempoenãoaguentoumais.Talvez ele tenha pedido com educação, daí o Gabriel se aborreceu e partiu prabriga.—Vicacertouopunhofechadonapalmadaprópriamão,produzindoosomdeumestalo.

—Tenhopenadosapaixonados—suspirouRebeca,encarandoaamiga.Elaficouadmiradacomaquelaexpressãoquejulgavaboba.—Elesveemcéuondeháinferno.

—Nossa,queprofundo.—Viccolocouamãonocoração.—VaimedizerqueoThomasnãotemostrouocéu?

—NãosejapalhaçaVic.OThomasfoisócasodeumanoite.Vic sentiu nas palavras da amiga que havia sidomais que um caso de uma

noite, sóqueRebecanãoqueria admitir.A expressãodela foi dequemescondiaalgomais.

—Sérioquevocênãoligoupraele?—Claroquenão.Nãosinto falta.—Rebecadirecionousuaaudiçãoparaas

batidasvindasdoseupeito,elassoaramnumafrequênciadiferentedonormal,masnãosaberiadizerexatamenteseeraumdiferentebomouruim.

— Acho que você tem medo de se apaixonar. — Vic lançou um sorrisoprovocador.

Rebecaanalisouoqueaamigadisse.

—Oamornoscega,Vic.Vejavocê,nemconseguedesconfiardoGabriel,tudoporqueoama,senãosentissenadaporeleconseguiriapensarcomoeupenso.

— E como você pensa? Do que você o está acusando? Sinceramente, nãoentendoaondevocêquerchegarcomessadesconfiança.

— Não sei. — Rebeca passou as duas mãos em seus cabelos, os fiospreencheram os espaços entre seus dedos, ela deslizou a mão pela nuca e aspousou sobre amesa em seguida.—Só acho que quem colocou fogo na escola,quemmatouospeixinhos,equem...

Rebecaparouporuminstante,masViccompletousuafrase.—EquemagrediuoJohn...Sim,termine,vamosqueroentender.—Agarota

soouprovocadora,saindoemdefesadoseugaroto.—Vocêpodeacharqueestoulouca.Mas...Vicaencorajouafalarsócomoolhar.—Talvezexistaumasociedadesecretanaescola.Tudooqueouviu foiumarisadaengasgada,algoestranhoquesósuaamiga

desajeitadasabiafazer.— Desculpe, amiga, mas isso é muita viagem sua. Sociedades secretas não

existem.Aindamaisnestecolégio.—Porqueachaquenão?Jálialgunslivrossobreoassunto,éperfeitamente

possível.—Perfeitamentepossívelnoslivrosvocêquerdizer.—Vicsentiu-seumpouco

mal por não levarRebeca a sério quando percebeu que a cara dela não era dequemestavabrincando,entãodecidiudaralgumcrédito.—Masoquevocêachaqueessasociedadeestáplanejando?Destruiraescola?

—Nãosei,eraoquequeriadescobrir.—EntãovocêachaqueoGabrielpossafazerpartedessegrupo?—Nãosei.Foiumaideiamalucaquepassoupelaminhacabeça.Masqueria

descobrirquemfezaquilocomaArabelaequemcolocoufogonaescola.—EuachoquevocêdevialigarproThomas,esqueceressahistóriatodaeser

feliz.FoiengraçadoperceberquedesdeomomentoemqueVic falounelealguns

minutos atrás, a lembrançadele não fora apagadaquandomudaramde assunto.Thomas permaneceu ali dentro da cabeça de Rebeca como uma memóriasecundária,esperandoomomentodeseracessada.

—Não venha bancar o cupido. Sabemuito bem que Rebeca Flores não seapaixonatãofácil.Estoupensandoemdeletaronúmerodeledevez.

—Ah,nãofaçaisso.Nãosejamá.—Nãoqueropensarnele,senhoritaVic.Queroapenasquedigaquevaime

ajudaradescobrirquemmatouospeixinhosdaArabelaequemcolocou fogonaescolaeomotivodoGabrielterbatidonoJohn.

Rebecasentiu-semalpordesconfiardoamigo,masnãoeraapenasdelequedesconfiava. Teve o estranho caso de Felicity ter um livro que deveria ter sidoqueimado,elaconfirmoucomabibliotecáriaqueninguémhaviapegadodepoisdelanodiadoincêndio.Aideiadasociedadesecretaexistirerasuperficial,elamesmanãoestavaconvictadisso,aindamaisquandoimaginavaqueFelicitypoderiafazer

partedela.EramaisfácilacreditarqueGabrielestivessemetidocomessetipodecoisa.

Rebeca sentiu vontade de falar tudo pra Vic, todas as suas suspeitas, maslembrou-sedoslivrosdeinvestigaçãoqueleraenamaioriadeles,odetetivenuncacontava tudo ao seu assistente, pelo contrário, ia colhendo mais dele do quesoltandoinformações.

—Podemosserumadupla—disseRebeca.— Já somos umadupla— respondeu a amiga, concentrada na ponta do seu

cabelo que enrolava nos dedos. Então seus olhos subiram de encontro aos deRebeca,quandoouviu:

—Nãoumaduplaqualquer,masumadupladedetetives.

DIÁRIODEREBECAEu estava correndo atrás de um pássaro branco em meio às árvores

gigantes.Aquelepassarinhovoavabaixocomoseestivessemeguiandoaalgumlugar.Eumedivertiaperseguindo-o.Estavanofinalzinhodatardeefeixesdeluzsolaraindaclareavamafloresta.

Tropecei em uma raiz e caí no chão, quando me levantei vi um garotoescondido atrás de um tronco, ele me observava. Acho que devia ter a minhaidade.Eucorrinadireçãodele,masquandochegueilá,haviasumido.

Sentialgoespetandominhacabeça,eumeassusteietenteiespantaroquequerquefossecomasmãos.Eraele.

Opássarobrancoestavadevolta.Volteiapersegui-lo.Eleerapequeno,masde uma hora pra outra, a cada batida de asas, elas cresciam, foram ficandomaioreseopássaroficouenorme.

Ele saiuda floresta, gigante.Eo vi dispararparao céu.Então,umacoisaestranha aconteceu, as pontas das asas dele começarama pegar fogo, percebiqueacaudatambémardiaemchamas.

Foi a coisamaisbelaqueeu já vi, umpássaroqueimandonocéu.Elenãoestavasofrendo,percebiporqueestavaseexibindonumvooespetacular.

O pássaro de fogo veio emminha direção, eu vi aquelas asas batendo, aschamasotornavamacriaturamaisbela.Olhei,encantada,paraelepousandoapoucosmetrosdemim.Ouviumgrito cortanteeperturbador sairdagargantadele,aquelebicoenormepareceuabocadeumdragão,aúnicadiferençaéquenãotinhadentesnemsaiufogo.

Elecurvouopescoçoeentendiqueelequeriaqueeusubisseeassimfiz.Asgarraspareciamdeummonstro.Sentiapenasocalordaschamas,maselasnãomequeimaram.Opássarolevantouvoocomigonascostasdele.Voamospralonge,umventofortefezmeuscabelosesvoaçaremeumasensaçãodeliberdadetomoucontademim.Euviasárvoresemontanhasabaixo.

Estávamos sobrevoando uma floresta quando comecei a ouvir barulho detirose,derepente,agravidadeestavanospuxandoparabaixo,rápidocomoumfogueteemdeclínio.

Opássarohaviasidoatingido,ogritodelemedeixouperturbada.Antesdecair,euvimuitodistante,umacidade.

Eu acordei sufocada, tentando captar o ar para aliviar meus pulmões.Somentedepoisdealguns instantes,percebiqueestavasonhando.Eumesentiumpoucoaliviada,melevanteidacamaparairaobanheirolavarorostoeeuovinajanela.Aquelepássarobrancoemseutamanhonormal,elepareciaumcorvo,sóquemenorebranco.

Meuestômagoserevirou,eu tinhaqueestarsonhandoainda.Tivecertezaquando me virei e vi o garoto que me observava diante de mim. Eu gritei e

acordei, estava sentada na cama gritando, mas ele ainda estava lá e disse,atropelandoaspalavrascomosenãotivessemuitotempo:estáchegandoahora.

Euacordeidenovo,nãoseiquantasvezes,mastivecertezadequeossonhostinham acabado quando comecei a chorar. Chorei muito, com medo de nãoconseguirvoltar.

CAPÍTULO35OSSONHOS

Orelógiomarcava15:31.Umamoçamorenacomcabelosextremamentelisoselambidospresosporum

elásticoficavaquaseescondidaatrásdeumbalcãobranco.Rebeca estava esperando naquele consultório fazia pouco mais de trinta

minutos,aindahaviatrêspessoasnavez.Elaestavasentadanosofá,porsinalbemconfortável,folheandoumarevista.

Dooutrolado,estavamduasmulheresadultas,umadelasacompanhadadafilhaqueaparentavateraidadedeRebecaeumasenhorajácomcabelosbrancoseapelemarcadaporrugas.

Rebeca gostava de observar as pessoas, seus traços, suas expressões. Elaimaginavaoquecadalinhadeexpressãodiriasobreavidadedeterminadapessoa,oquantoelatinhasofrido,oquantotinhasidofeliz,queestilodevidativeramparaenvelhecerem tanto ou permanecerem tão jovens. Ela se perguntava sobre ahistóriadevidadelas,sabiaquebastavaouvi-lasparadescobrirqueportrásdeumsorrisoexistiaumahistóriatãoincrívelquantomuitasquesãocontadasemlivros.

Aquelasoutrasmulheresestavamalitrocandosuasexperiênciaseelanotavaquecadaumatinhasuahistóriaparticular.Elatambémtinhaadela,maspreferiuficar quieta no seu sofá, folheando aquela revista boba que só tinha fotos depessoasfamosas.

Amulhercoma filha foichamada.Asenhoracontinuoubatendopapocomaoutra,elafalavasobreotrabalhodoméstico,diziaqueamulherque limpavasuacasaeramuitofelizcomaprofissãoequetiravamaisdinheiroquemuitaspessoasquetrabalhavaminfelizesemescritórios.

— A Tatiana vai na minha casa três vezes por semana, lá não tem muitotrabalhoporquesomosminhafilhaeeu—disseasenhora.

—Estouprecisandomesmodealguémque faça limpeza, sepudermedarocontatodelaficareiagradecida.

—Sim,sim—continuouasenhora.—Elaestámesmoprecisandodeumextra,sabe?Temdoisfilhosdeumsujeitoquenãovalenada.MasDeusébom,confioqueelevaimandaralguémdecentepravidadela.

—Verdadesenhora,sabequeumavezmedisseramquesevocêéumapessoaboa,Deuscolocapessoasboasnasuavida.

Rebecaestavaouvindoaconversaeachouaquelateoriainteressante,decidiuprestarmaisatençãonoqueelasconversavam.

—Possomeconsiderarumapessoaboaentão,porqueDeusmedeuummaridomaravilhoso.Nossaquehomemelefoi,tivemosumafilha.Eufuifelizdemais,eumesentia uma rainha. Nunca brigamos desde omomento em que eleme pediu emnamoro.Eudisse:sóaceitosevocêprometerquenuncavamosbrigar,pornada.Nempormigalhas,nemporouronenhumdessemundo.Entãoelemedisse: “Eu

prometotransformarsuavidanocontodefadasmaisbonitodomundo”.Eelefezdaminha vida um conto de fadas sim, só que ele esqueceuque a rapunzel ficoupresanuma torre,abelaadormecidaesperoucemanospraserdespertadapelopríncipe, a branca de neve... eu nem lembro o que aconteceu com a branca deneve,enfim.Todocontodefadastemsuador,aminhafoiperdê-locedodemais.Euprefeririatertidoumavidadeplebeia.

OcoraçãodeRebeca ficouapertadoaoouviraquelaspalavras.Sentiupenadaquelasenhora,imaginoucomoseriaviversemalguémapósmuitosanosjuntos.

—Estouaquiesperandominhahora.—Aoutramulheraouviaatenta.—EusempreacheiqueDeuspodia terme levadocomele, issoémuito injusto, sabe?Acho que devíamos ir todos juntos, com todas as pessoas que amamos. A gentepodiaentraremumônibusepartirparaocéu.Oqueacha,hã?

— Nossa, isso é muito forte. Acho que não adianta tentar desvendar osmistérios divinos, porque o queDeus guardou pra nós é algo que foge do nossoentendimento.

—Eu acho que ninguémdeveriamorrer. Poderíamos ser imortais, vivermosjuntoscomquemamamosparasempre—falouRebeca,entrandonaconversa.—Ninguémmerecesentiradordaperda,nemterumavidasemrespostas.

— Mas isso é possível. Deus nos prometeu a vida eterna, mas depois depassarmospornossasprovações.

—Masporqueasprovações?— Porque as coisas boas levam tempo e exigem sacrifício pra se tornarem

reais. Temos que provar que somos merecedores. E não adianta sofrer porrespostasquenuncateremos.Vivaoagora.Voudeixarvocêsduas,éminhavez.

Agoraestavamnaqueleambiente:Rebeca,umarecepcionistaquenãofalavanadaeumasenhoraquefalavamuito.Rebecatentounãolhedirigiroolharparaevitar que ela grudasse em si como fez com os outros, apesar dela parecersimpáticanãoestavaafimdeouvir.

—Seuscabelossãolindos,menina.Rebecaaencaroucomosetivessedúvidadequeeracomelaqueasenhora

estavafalando.—Obrigada—disse,alisandosuasmadeixas.Rebecavestiaumablusaverde

comumacalçajeanseumasandáliapretadesalto.—Venhasentaraquicomigopragenteconversarepassarotempo.—Estoubemaqui,obrigada—disseRebecatentandosergentil.A senhora levantou-se e sentou-se ao lado de Rebeca, o sofá era de dois

assentos.—Velhicenãosepegasabiadisso?—disseelaolhandoporcimadosóculos,

antesdesentar-se.—Desculpe,nãoquisquepensasseassim—disseRebeca,rindoeumpouco

constrangida.Elaestavacomamãodireitananucaeocotoveloapoiadonosofá.— A velhice já está no nosso sangue desde que nascemos. Eu já fui bonita

assimcomovocê,tivemaisforçadoquetenhoagora.Noentanto,olhepramim.Evocê não vai pegar isso demim, você nem vai perceber quando acontecer comvocê, quando se olhar no espelho e se ver com a pele cheia de rugas, aí vai se

perguntarquandofoiqueaquiloaconteceu.Otempoétraiçoeirominhafilha.Rebecasorriueasenhoracontinuou:—Seusolhossãolindos.Ruivoscomolhosazuissãoumacombinaçãoperfeita

danatureza.Sãocasosraros.—Ah,muitoobrigada.—Rebecapousouasmãossobresuabolsa.—Sempretiveumaquedinhaporgarotosruivosnaminhajuventude,issoantes

deconhecermeumaridoqueeramoreno.Queelenãoouçaporquenuncafaleiissopraele,tambémnemtinhaimportância.

Rebecasorriu,masnãoquispuxarassunto.Houveumbrevesilêncio.Rebecadirecionouoolharparaarecepcionistaea

viufalarcomalgumpacienteaotelefone.—Sabeminhaquerida,eujáfuidesenganadapelosmédicos.—Recomeçoua

senhora.Porum instanteRebecapensouqueaquelamulherestava tornandoseudiamaisangustiantecomessashistóriassemfinaisfelizes,masrespeitouodesejodamulheremcontarsuavida.Àsvezeseraprecisodesabafar.

—Nossa,comofoiisso?—perguntouRebecamostrandoalguminteresse.— Tive um tumor no cérebro, veja. — A Senhora passou a mão no cabelo

procurandoacicatrizquetinhanacabeça.—ODr.Ambrósio,nãoseiseoconhece.—Rebecabalançouacabeçaemnegativa.—Eledissequenãotinhaoquefazer,queeu teriadeaceitarevivero restodosmeusdiasdamelhormaneiraqueeupudesse.

—Masissonãoécoisaqueummédicofale—avozdeRebecasoouindignada.—Ah,minhafilha,hámédicosemédicos.Jávidetudonessavida,entãonão

medeixeiabalarefuiprocuraroutroespecialista.Minhafilhaconseguiuocontatodeummédicomuitoamigodonamoradodela.Issofoihádoisanosatrás.Poisessemédico, depois de fazer os exames olhou pra mim e disse: Me diga quando asenhoradesejaseroperadaDonaMaggie.Aprimeiracoisaquefizfoiolharparaasmãosdele,tãojovens,eleeraumrapazdetrintaedoisanos.Entãoolheipraminhafilhaqueestava comigoedisse: “Iolandanãovouentregarminhavidanasmãosdesserapaz”.Ojovemmédicoapenassorriu.

Rebecaesboçouumsorriso.— Coisa de velho mesmo tratar um jovem médico desse jeito. — Maggie

continuou sua história.—Depois ele disse: “DonaMaggie, a senhora não já foijovem um dia? Esqueceu-se do vigor que tinha e de sua capacidade de realizarcoisascommaishabilidadequeagora?”.Elemechamoudevelhadeuma formaeducada.—MaggiedeuumarisadinhasegurandoamãodeRebecaesoltoulogodepois. — Bom, mas era verdade. A gente envelhece, cria hábitos estranhos,mesmoquevocêsesintajovemeachequeseusgostosnuncavãomudar...issotudoé ilusão. Mas voltando ao assunto, o Dr. Juliano me disse: “Bom, se a senhoraquiser,possooperá-lana segunda-feira”.Aquelediaeraumaquinta feira.—Elaestava olhando por cima dos óculos apontando o dedo para Rebeca. — E nasegundaeuestavaláentregandominhavidanasmãosdele.Eoresultadovocêvê:estouviva.

—Ficofelizpelasenhora—disseRebeca.—Vocêpareceinquieta.Estouteincomodandocomessaconversa?

— Não, não. Eu gosto de ouvir as histórias das pessoas, percebo que sãohistóriassingulares.Sóestouumpoucocansada,dormimalontem.

— Ótimo, porque ainda não terminei. Quero só concluir pra você. O sogrodesse médico que me operou teve um problema parecido com o meu. Então afamíliaqueriaqueeleooperasse,masoDr.Julianonãosesentiuseguroprafazerporquesealgodesseerrado,afamíliapoderiaacabarjogandoaculpanele.Bom,depoisdemuitoconversaremdecidiramqueoutromédicofariaacirurgia.Minhaquerida, ele não teve amesma sorte que eu, infelizmente omédico perdeu seusogro.TalvezoDr.Julianotivessesesaídomelhor.Vocêpercebeoqueeuquerotedizer?

—Não sei... que ele teria sobrevivido se tivesse sido operado pelomesmomédico?Ouqueasenhoratevemaissorte?

—Não,exatamente.Querodizerque todos temosnossahora.Eagente sópartequandoDeuschama.Édifícilaceitar,maséaverdade.

—DonaMaggie?—chamouarecepcionista.—Ésuavez.MaggieseguravaobraçodeRebeca,olhounosolhosdelaedisse:—Vejoqueessemarazultemsuaprópriahistóriasingular.Rebecasentiuumarrepio.AvelhasenhoracolocouumpapelnamãodeRebeca.—Meprocureparafalarmossobreosseussonhos—disseMaggie,apertando

opapelnamãodela.—Como?—Rebecasegurouopapelporinstinto.—Sobreosseussonhos.—Maggiejáestavaentrandopelocorredor.—Venha

meversequisersabermaissobreeles.—Eladesapareceu.—Rebeca,ésuavez—falouarecepcionista.—Nãoouviueuchamar?—Desculpe,euestava...Otelefonetocou.—Tudobem,podeir—falouamoçacomotelefonenoouvido.

CAPÍTULO36ABESTAEOTIGRE

Ascorrentesrangiamcomomovimentodobalançopresoàmadeira.Aquele

agoraeraolocalpreferidodeAmanda,obalançodojardimdesuacasatraziapaz,o local era cercado de plantas, agradável e tinha sombra. Ela adorava apoiar acabeçanascorrentesesedeixarlevarparalonge.

ElaseperguntavasedeveriapermitirqueMuriloprendessesuavidaàdela.Eleeraapaixonado,dissonãotinhadúvidas.Muriloeraumrapazjovem,educado,eraadvogadoetrabalhavanoescritóriodopai,sabiaoquequeriadavida.Eleeraengraçado, romântico, bonito e inteligente. Poderia reunir mais característicasboas dele,mas aquelas, pensou, eram suficientes para alguém se apaixonar porMuriloeperguntou-seporqueelanãoseapaixonouantesporele?Porqueaquelefilhoqueelaesperavanãopodiaserdohomemqueaamava?

Amandasentia-sesozinha,abandonadaporRomeu.Apesardeletercolocadoaqueledetetive fajutopara vigiar a vidadela, não significoumuito, o quequeriamesmoeraquenomínimotivessetentadoentraremcontatocomela.

Elenãoquissaberdofilhodele,pensouAmanda.Éclaroqueelenãoassumiriaacriança,seriaarruinaraprópriavida.Eleengravidouafilhadoamigoeaindaporcima, seu futuro sucessornapolítica.Seriaoescândaloperfeito,umpratocheioparaVanessaVelasquespassarnoitesemaisnoitessaboreando-o.

UmafiguraquemaispareciaumespectronomeiododesertotransformouospensamentosdeAmandaem fumaça, elesganharamoutras formase conformeafiguraseaproximou,afumaçaformouaimagemdeumamulhervindonadireçãodagarota.

Tereza.Amandaendireitou-senobalançoeaviucruzarseuenormejardim.Elaveio

caminhando rápido pelo caminho de pedras que dava para o local onde Amandaestava.

Ajovemficoudepéesegurouseuvestidoparaqueoventonãoolevantasse.Terezacontinuavaseaproximandoeestavacadavezmaisperto.Numrelance,Amandaviuoutrafiguravindo,aindadistante,maispróximoda

casa.EraMurilo.Amandaestavaesperando-o.Elescombinaramdeseencontrarde

novo naquele local. Era mágico passar a tarde ali conversando sobre qualquercoisa,ouapenasadmirandoosolsepôr,queestavagigantenocéu.

Ela não soube para qual deles olhar. Então quando voltou sua atenção deMuriloparaTereza,oqueviufoiumborrãodisparandocomoumabestaparacimadesi.

Os dedosmagros de Tereza agarraram o pescoço de Amanda levando-a aochão,elaficouporcimadagarota.Amandagritouquandosentiuopesodocorpodelasechocarcontraoseu.

—Assassina—disseavelhanumsussurromortal.Murilo disparou como um tigre feroz, usando toda sua força para ganhar

impulsocomaspatasquandoviuaquelamulheravançarsobresuagarota.—Vocêosmatou.Assassina.Euvitudo.Enforque-a. Mate-a como o veneno matou seus filhos. Sufoque-a e a faça

sentiraagoniaqueelessentiram.A voz de Thomas se transformou em sussurros na mente dela. Na noite

anterior,eleafezusardrogas.Eafezalucinar,ficarmaislouca,maisinsana.Diziaqueelamereciasuavingança.Edesenhouaqueleataquenamentedela.

Amanda estava sufocada. Com mais medo daqueles olhos cheios de raízesvermelhasdoquedemorrernasmãosdela.

Elaengasgou,tentougritar,tentouselivrardaquelasgarrasmortíferas,masavelhatinhamaisforçaqueAmanda.

OssegundosatéMurilochegarpareceraminfinitos.Maslogo,otigrecravousuasgarrasnabestaeajogousempiedadeparao

lado.MurilosegurouAmandanosbraços,ameninaaindatossia,estavavermelha,

semar.TerezaavançouparacimadeMurilo,eleprotegeuAmandacomseucorpo.Avelhaagrediuorapaztentandotomarsuapresadevolta.Eleseprotegeu

comobraçoelargouAmanda,apenasparaerguer,ferozebrutal,asuamãoparairdeencontroaorostodeTereza.

Eleaacertoucomascostasdasmãosesentiusuasjuntassechocaremcomalgumossodorostodela.

Avelhafoijogadaaochão.—Sualouca—eleberrou.Amandachoravadiantedacena.—Vocêiamatá-

los— berrou de novo, aindamais forte. Tereza o encarou como se não tivesseentendido.—Elaestágrávida.

Avelhamurchouaoouviraquilo.MuriloabraçouAmandaeviuumobjetoestranhovoandoacimadeumaárvore

próxima.Terezaficouconfusaeatormentou-semaisquandoouviuogritodeSarah,sua

meninavinhacorrendoparaentenderoquesepassavaali.Sarah, suamenina linda. Amulher que a tirou das ruas. Tereza olhou para

AmandaesentiuadorqueSarahsentiriaaochegarali.Terezafugiu,saiucorrendonadireçãocontrária,atormentadapelaculpaque

acorroía,pelomedodeolharparasuameninaevernosolhosdela,nadamaisquedecepção.

CAPÍTULO37APRAÇADOPÔRDOSOL

Rebeca observava as asas do pombo cortando o ar. Seu voo era como um

mergulho infinito. Ela estava sentada em um banco de uma praça. Não havianinguémalémdelaedasárvoresaoredor.

ElepousounochãoeinclinouopescoçoparaobservarRebeca.Aquelesolhosminúsculos se reviravam. A menina jogou alguns grãos de milho e a ave saiucatandoumaum.

Agarotalevantou-seeaproximou-sedele,inclinando-sedevagarparaqueelenãovoasse.

—Tenhomuitomaiscomidanaquelesaco—disseelaparaopombocomoseeleacompreendesse.Seusolhosazuisestavamcomoomarcalmo.—Massóvoutedarmaissevocêvoarpralongeevoltarcomumacentenadeseusamigos.—Opomboaobservavacomose,defato,entendesseoqueeladizia.—Andagaroto,voe.

Rebecabateupalmasparaassustá-lo.Opomboseesquivoueameninadeupassadasecomeçouacorreratrásdeleatéquelevantassevoo.Elaoviutornar-seumriscopretonocéutingidopelosraiosdouradosdosol.

Quando voltou seu olhar na direção norte, viu a figura de um homemcaminhando.Eleeraalto,forte,vestiaumajaquetadecouroeumacamisabrancapordentro.Oscabeloseramruivoseeleseguravaumsacodepapelnamão,cheiodemilho.

Rebecacorreuparaeleegritou:Papai.Seugritopreencheuapraça.Ela voou em seus braços e ele a girou no ar como fazia quando ela era

pequena.—Que saudadede você,meubem.—Harrisonapertou seu corpo contra o

dela. Rebeca recebia toda proteção que sentia falta. Ela queria segurá-lo paranuncamaissoltar.

—Papai,sintotantosuafalta,tanto...Harrisonsegurouorostodelacomumadasmãos.—Estouaquiminhapequena.Nãosepreocupe,sempreestareicomvocê.Eu

trouxeacomidadeles.—Elependurounoarosaquinhoquetrazia.—Achoquenãovãodemorar.Vamos.—Rebecaopuxoupelamão.Elessentaramnobancodapraça.Osolestavagigantecomoumaboladefogo

queimandoocéu.Harrisontirouamochilaquetrazianascostasecolocousobreobanco.

—Trouxecomidapragentetambém.—Eletirourecipientesdeplásticosdedentro.

Rebecaabriuetirouosanduíche.—Estavacomsaudadedosseussanduíches.

—Estouumpoucosemprática,masesperoqueestejambons.— Nossa, cada vez mais deliciosos, Sr. Harisson — falou Rebeca, ainda

mastigando.—Eaviagem,foiboa?Digaquevaificarmuitosdiascomagente.—Foitranquila.Nãovoupoderdemorarmuito.Mecontecomovãoascoisas.

—Eledeuumamordidanoseusanduíche.—Umsacocomosempre,vocêsabe.—Naverdadenãosei.—Aquelenamoradodamamãe,nãogostodele.— Tá na hora de deixar o coitado em paz. Tome, é suco de maçã. — Ele

entregou-lheumagarrafinhaquetiroudamochila.—Coitado?Achoeleumaproveitador,émuitonovopramamãe.Deveestar

comelaporinteresse.—Ah,nãoacredito.Suamãeéumamulherinteligente,nãosepermitiriaser

enganada.—Nãoacreditoquevocênãosintamaisnadaporela.— Tivemos nossa história, minha filha. Mas você precisa entender que

seguimoscaminhosdiferentes,elatemodireitoderecomeçar.—Nãogostodessaideia.Atéfizumacoisa,masmearrependidepois.—Oquefoi?— A mamãe comprou um presente pra dar de aniversário pro Vitor. Eram

sapatosnovos.Euencontreiummendigonaruaepediosdele,estavamgastosetroqueioembrulhodoVitor.Deiosnovospromendigo.

— Não acredito que você fez isso — Harrison falou mais num tom deincredulidadequederepreensão.Eletomouumgoledosucoeolhouatentoparaamenina.

—Minhamãedeupraelesemquepercebesse.OuviquandoelafaloucomumaamigaaotelefonecontandoqueficousuperenvergonhadaquandooVitorabriuopresente.

—Coitada,nossa...minhafilha,nãofaçamaisisso.—Desculpe.—Peçadesculpapraela.Aliás,paraosdois,estámeouvindo?—Maselanemveioreclamarcomigo.—Prometa,Rebeca.—Tudobem,quandomedercoragemeupeço.Prometo.Elalevouumpequenosustoquandoouviuobaterdasasasdopombopousar

próximoaeles.—Chegaram.Rebecalevantou-seejogouumpedaçodosanduícheparaopombo.—Trouxeacâmera.—Harissonengoliuorestodopãoetiraraumacâmera

fotográficadamochila.Rebeca viu dezenas deles empoleirados nas árvores. Pegou o saquinho de

milhoe jogouumpunhadodegrãosamarelosnochãodapraça.Harissoncaptouatravésdesuaslentesasbolinhasamarelasaindanoar,saindodamãodeRebeca.Afilhasaiucomumsorrisodecantoacantonorosto.

Elesvieramcomoumenxamedeabelhasdeváriasdireçõesepousaramum

porcimadooutro,bicandoochãoembuscadecomida.Rebecacorreuentreeles, fazendo-os levantarvooenquantoHarisson tirava

fotos dela, exatamente comoquando ela era criança.Umdos passeios quemaisgostava, onde observava a noite chegar na Praça do pôr do sol, a despedida doastromaisbeloquejáviranavida.

—Vocêvaiveramamãe?Rebecacaminhavaabraçadaaopaipelapraçaquepareciainfinita.—Claroquesim.Esairemosprajantar.—Sónóstrês,semochatodonamoradodela?—Sim,sónóstrês.—Comoquandoeraantes.—Nãocomoantes,mascomoéagora.Enãovaiseressasemana,sintomuito.

Precisoresolverumascoisascomseuavô.—Preferiacomoeraantes,mastudobem.Oimportanteéqueestamosjuntos.Harissonparoueacariciouabochechadelacomamãoesquerda.— Sempre estaremos juntos, meu bem. Mesmo quando eu não estiver por

perto,estaremosjuntos,ligadospeloamorquenosune.—Sequiseradiaro jantarporumasdezsemanas, fiqueàvontade,assim,o

senhorficamaistempocomagente.Elesorriu.Rebeca o abraçou forte, forte o suficiente para segurá-lo por mais alguns

minutos,comumdesejotãofortedepararotempoeimpedirqueelefosseembora.ElaviuumgarotoandandodebicicletaeachouquepudesseserGabriel,mas

conformeeleseaproximou,viuquenãoeraele.— Precisamos ir, está anoitecendo— disse o pai damenina.— Ah, não se

esqueçadoseupedidodedesculpas—acrescentou.Rebecasoltouumarisadaeelesepermitiurirtambémcomafilha.

CAPÍTULO38TERAPIAFORÇADA

OcarroparouemumlocalqueGabrielconhecia,jáestiveraaliantes,umavez

emcompanhiadeAmanda,poisagarotaprecisavafalarcomamãe.NaépocanãoentendeuoqueaquelaspessoasfaziamaliesperandoSarahatendê-los.Paraquê?Perguntou-se. A Sarah por acaso iria pagar as contas deles, ou traria seusnamoradosounamoradasdevolta?Apagariaaslembrançasdopassadodealguém?

A rua era tranquila, a maioria dos prédios eram consultórios médicos eclínicas. Ricardo parou o carro ao lado de um prédio de dez andares, era todoespelhadocomumaentradadiscreta.

— Pai, não acredito que me trouxe aqui! — exclamou o rapaz, sentindo-sedecepcionado.

—Poisacredite,nãovejoproblemanisso.Saialogo.—Ricardotirouocintodesegurançaesaiudocarro.—VamoslogocomissoGabriel,nãotenhoodiatodo.

— Eu não estou louco, tá? Não preciso conversar com ninguém — disseGabriel,olhandoparaopaiporcimadocarro.

—Essaéaprimeirafrasequetodoloucodiz,sabiadisso?Masvoufingirquenãoouvi.VocêestáestranhoGabriel, temagidodemaneiraduvidosa.Você ficouquase pelado na escola e ainda agrediu um professor. Você acha que eu nasciontem,meufilho?PensaqueeuengoliahistóriadoJohn?Tedefendiporquesouseupaiefareidenovoseissoacontecer,masentrenósahistóriavaiseroutra.Ejáquevocênãoquerabrirojogocomoseupai,vaiabrircomapsicóloga.

—Nãotenhonadapracontar,foitudodojeitoquefalei.— Vamos logo, antes que isso aqui lote de gente. — Ele caminhou alguns

passos em direção ao prédio e parou, olhou para trás e viu Gabriel na mesmaposição,comosbraçosapoiadosnotetodocarro.BastousoltararespiraçãoparaGabrielentenderqueprecisavairaondeeleestavaindo.

Agoramaisessa.NãobastavaestarsendochantageadoporsabeDeusquem,seupaiagoraoestavaobrigandoaconsultarumpsicólogo.Dosmalesomenor,eraSarah,amãedaAmanda.Nãodirianada,estavacerto.Conversariasobreoqueelaquisesse,menossobreoqueestavaacontecendo.

“Bati no John porque me pediram, quase fiquei nu na escola porque mepediram... Não, pediram não. Me obrigaram... E sua filha também tem umsegredo,elamatouosgatosdaTerezapraevitarqueviesseàtona.Ah,eaFelicitycolocoufogonaescolaetemosmaisterrorasertocado.”

Gabriel se imaginava contando tudo para Sarah, deitado no divã, mas nãoconseguiuvisualizaracaraqueela faria.Eleestavasubindonoelevadorparaosexto andar. Continuou divagando enquanto esperava seu pai na recepção, eleentraraantesparafalarcomapsicóloga.

—Issoaquiéapenasumaconversa,entãopodesesentiràvontade.Sente-senosofásequiser—disseSarah,sorridente.

—Não,aquitábom.Semprefiqueiimaginandooqueessebancopodiafazerpelas pessoas, o que significava estar aqui deitado contando todos os problemaspara um desconhecido...—Gabriel estava deitado no divã, de braços cruzados,olhandoparaoteto.Sarahpercebeuaacideznotomdevozdorapaz,masfingiunãonotar.

—Ecomosesente?Épertodoqueimaginou?—Naverdadeéumbomlocalparalerumlivro,achoquevoupedirpromeu

pai comprar umdesses pramim, já que ele anda tão preocupado comigo.Muitoconfortável,porsinal.

—Mefalecomovocêsesente.—Nadadói.—Bomquevocêestejabemfisicamente.Mascomovocêsesente?Pordentro.

Temalgumpensamentoconfuso...—Pordentromeucoraçãobate—elea interrompeu.—Meusanguecorre

pelasveias,pulsaemalgumaspartesdocorpo.Sarahignorouasrespostasdeleecontinuou:—Gabriel,vocêdeumotivosaoseupaipratetrazeraqui—avozdeSarah

era tranquilizadora, nem Gabriel podia negar. — Estou a par do que estáacontecendonasuavida.Nãoseioquetelevouafazeraquelascoisas,nemqueroforçá-loamecontar.Seupaieeutivemosamesmaidadequevocêefizemoscoisasquetodojovemfazesearrependedepois.Sabemosqueéumafasedifícilnaqualbuscamosporrespostas,mascadavezqueprocuramostudooqueseencontrasãomais perguntas. Nem todomundo sabe lidar com a falta de respostas, por issomuitoscaemnasdrogas,enlouquecemousetornambandidos,enfim...Háalgoqueestejalheincomodando,algoquepossamecontar?

Gabrielbalançouacabeçaemnegativa.—Bom, serei forçadaa tocaremalgunsassuntos.Pode falar sobreo John?

Sobreoqueolevou...—NãoqueroSarah—respondeu,interrompendo-a.—Oqueolevouaesmurraroprofessor?Vocêestavanaescola,nãopensou

queresolverdeformaamigávelevitariamaioresproblemas?—Nãoquerofalarsobreisso,tábom?—Sarahpercebeuqueogarotoestava

irritado.—Vocêagiupor impulso,nãosepodesairporaí fazendo tudooquevemà

mente.Vocênãoéassim,nuncaconheciesseseuladoagressivo.—Bom,deveriasabermaisqueninguémqueospaisnuncaconseguemmoldar

seus filhos. Não tenho culpa se vocês não enxergam que nós crescemos, quepodemoscometererrosgraves,errosdeadultos.

—Nósenxergamossim,porissoestáaqui.Porquecometeuumerrodeadultoeagoraprecisaresponderporelecomoadulto.

—Ah,Sarah,tudobem.Querperguntar,pergunta,vourespondertudo.—Me diga, Gabriel — a voz de Sarah continuava inalterável, diferente do

rapazqueestavaimpacienteeagitado.—Oquelevouvocêadesfilardecuecapelaescola?

—Umaaposta.

—Umaaposta?—Sim,umaaposta—repetiuele.Gabrielestavaincomodadocomacalmade

Sarah,eleestavasendomaleducadoeelanãorevidava,nãoalteravaotomdavoz,issoestavadeixando-o irritado.Respire fundo,garoto.—Apostei comumcolegaquenãolevariaumforadeumagarotaeacabeiperdendo,tá?Tudooquetinhadefazereraandardecuecapelaescola,pagaressemico,foisóisso.

—Masvocênãosentiuvergonha?—De verdade, não. Eu sou bonito, não tenho vergonha domeu corpo e as

garotasadorarammeverdaquelejeito,muitasqueriammeverpelado.—Gabriel,aescolanãoéumlugarparaseexibirdessaforma.—EuseiSarah,sóqueissofoiapenasumabrincadeiradeadolescente.Você

mesmafalouquejáfezcoisasdasquaissearrepende,noentanto,hojevocêéumamulheradulta,umaprofissionalrespeitada.Entãoporquevocêemeupainãomedeixamaprendersozinho?

—Claro,maseutiveminhamãeprapuxarminhaorelha,damesmaformaquevocêtemaseupaipranãotedeixarsairdostrilhos.Sehojesomosresponsáveiséporque tivemos alguémparanos colocar limites.Vocênão vai chegar aondenóschegamossealguémnãocolocarumfreioemvocê.

Gabrielsoltouarespiração.Aquiloerainútil.Noqueiaadiantaraquelepapotodo?Ele jáeracrescido, sabiaoqueeracertoeerradoe jamais revelaria seusegredoaumapsicólogaamigadeseupai.Elairiacorrendocontarparaele.

— Já que quer ir direto ao ponto. Seu pai está commedo que você tenhavoltadoausardrogasouquevocêestejaenvolvidocomalgumtipodeprostituição.

Gabrielsegurouumriso.— Eu não voltei a usar drogas nem muito menos faço programa. Faço de

graça,sequersaber.—Temalgumpensamentoquetefaçasentirvontadedevoltarausar?—Nãogostodefalarnisso.Aliás,nãomeleveamal,masoquevocêsquerem

de mim? Não sei onde essa conversa vai me levar, nem como ela pode metransformar,aliás,nãoseiporqueaspessoasprocurampsicólogos.Mediga,Sarah,você paga as contas deles, traz namoradas e namorados de volta, consegueempregos, cura as pessoas, traz os mortos de volta à vida? Se eu estivessemorrendodecâncerqueconfortovocêmedaria?Oquediriapramim,Sarah?

Houveumbrevesilêncioquefoiquebradopelaspalavrasdapsicóloga.Suavozsoounotomdasbadaladasdosinodeumaigreja.

—Gabriel, imagine-seemumlabirinto.Vocêestásozinho,commedodoquepodeencontrarnaquelescorredoresescuros.Váriasvozessemisturamtentandotemostrar a direção certa,mas você está confuso e não sabequal escutar.Então,você encontra alguém que te dá ummapa que te mostra a saída. É assim quefunciona,nósmostramosocaminho,masvocêvaisozinho.Referenteàsuaúltimapergunta,oque tenhoadizeréquevocênãoestámorrendodecâncer,Gabriel,masháoutracoisamatandovocêpordentro.

PARTETRÊS:SEGREDOS,MENTIRASEVERDADESEentãoháumterceirotipodesegredo,dotipomaisescondido.Umsegredo

que ninguém sabe a respeito. Talvez ele tenha sido conhecido um dia, mas foilevadoparaotúmulo.Outalvezsejaummistérioinútil,ocultoesolitário,perdidoporqueninguémoprocurou.

MaggieStiefvater,LadrõesdeSonhos.

CAPÍTULO39AMIGOSDELONGADATA

—OquevocêsabearespeitodaagressãocometidapeloGabrielValente?É

mesmo verdade que o professor assediou o rapaz no colégio? — perguntou orepórter.

— Eu duvido muito que o John tenha assediado o Gabriel — respondeu amenina. Ela mastigava um chiclete que parecia estar muito saboroso. Puxou omicrofonedamãodorepórterese jogoudefrenteparaacâmeraaocomeçarafalar.Aadolescentetinhaumasmechasroxasnocabelo.—Aquelegarotoseachaogostosãodocolégio.Bem,eleatépodeser,masissonãodáodireitodelesairporaíagredindooJohn.Algunsdenósoconhecemosdesdepequenos,elenãopodeseroqueestãofalandodele.Euseiquetemmuitomaiscoisaportrásdisso,eledevetámetidocomalgumamerdaeoprofessorpodeterdescoberto,nãosei.Talvezeletenhadadoemcimadoprofessor.É,achoquefoiisso,essaéumadasteoriasquelevantamos. Alguns dizem tambémque ele é gay e tentou beijar o John,mas euacho muito difícil que ele seja, porque, né? — A menina lançou uma expressãoenvergonhadaparaacâmera,elamexianocabelootempotodo.

—Vocênãoachaqueeleagrediuoprofessorporelesernegro?—quissabero repórter. — Você soube do incidente que ocorreu com o pai dele? O RicardoValenteinsultouumajovemnegraedepoisagrediuumhomemtambémnegro.Achaquepodeserdefamíliaessaquestãodoracismo?

Agarotaanalisouasperguntasdaquelehomem.—Olhasó—começou.—OGabrielpodesertudo,menosracista.Nuncavi

nenhumaatitudedelequeocomprometaemrelaçãoa isso.Ninguémexplodedeumahorapraoutra.Eleteriadeterdadosinaisantes,né?

Atrásdeles,haviaalgumasdezenasdealunos,algunssegurandocartazesquepediam a expulsão de Gabriel. Eles estavam em frente ao colégio, barrando aentrada e a saídade todos.Ouviam-segritos deles.Umagarotamandavabeijosparaacâmera.

—Ninguémviucomoabrigacomeçou?—Não.—Elabalançouacabeça.—SóvimosquandooGabrieljogouoJohn

nochãodopátio,nemnotamosdeondeelestinhamsurgido.—Vocêsestãopedindoaexpulsãodogaroto.Jáquenãoháprovasconcretas,

nãoachaqueelepodeseravítimanissotudo?—Éele—alguémgritou.—Comovocêmesmofalou,nãoháprovasconcretas.Eatéqueeleprovequeo

Johnéumfilhodaputa,nóspediremosaexpulsãodelesim.Alémdomais...Orepórterarrancouomicrofonedamãodagarotasemqualquerdelicadeza

aoveramovimentaçãodosalunosemdireçãoaocarrodeRicardoqueacabaradechegarcomofilho.

—Seumaleducado,quebrouminhaunha—protestouagarota.

—Desculpe—elegritoudevolta.OsestudantescercaramocarrodeRicardo,haviamaisoutrosdoisrepórteres

quetentavamconseguiralgumapalavradeles.—Não acredito no que estou vendo— falouGabriel, dentro do carro. Ele

conseguiuleroqueestavaescritonoscartazes.—Estãopedindominhaexpulsão.— Esse bando de desocupados não têmmais o que fazer— disse Ricardo,

visivelmente irritado.Eleapertouabuzina, tentoudarrénocarro,massóouviugritos.

—Émelhorvocêfalaralgumacoisa.Ricardobufoueabaixouovidro.Elesearrependeuquandoviuomicrofonedo

repórterqueentrevistavaagarota.Elereconheceuamarcadoprograma.—Vagabunda—dissebaixinho,mordendoosdentes.— Eu disse que não seria uma boa voltar pro colégio agora — resmungou

Gabriel.—SenhorRicardo,oqueosenhortemadizersobreaagressãocometidapelo

seufilho?Esperavaessaatitudedele?— Como tem lidado com as acusações de racismo? — perguntou outra

repórter.Umamulherdecabeloscurtosqueanotavaalgumacoisaemseubloco.—Podemosouvirseufilho?Sóumapalavrinharápida—perguntououtro.—OGabrielnãovairespondernada—respondeuRicardoemtomáspero.—

Oqueaconteceufoiuminconveniente.Osjovenssãoimpulsivos,vocêssabem.Elereagiuauminsultodaqueleprofessor.

—Osenhorestádizendoqueseufilhofezcertoemagredi-lo?—Nãofoiissoqueeufalei.Soucontraqualquertipodeagressãobarata,mas

nóssomoshumanos,àsvezesnãocontrolamosnossosimpulsos,eleerrou.— Mas o senhor agrediu um homem faz uns dias — falou o repórter do

programadaVanessa.—Agiuporimpulsotambém?—Ouça, seu programa editou as imagens. Eu não comecei aquela briga. A

garota bateu nomeu carro, nos desentendemos. Ela começou a gritar e aquelecaraparouemeagrediu.Eurevideiemlegítimadefesacomoqualquerumfaria.

—Osenhorachamoudenegrinhanojenta.Agrediuumhomemnegroeagoraseufilho fezomesmotambém.Osenhortemsidoacusadoderacismonasredessociais.Oquetemafalarsobreisso?

Ricardoquissairdocarroesocaracaradaquelerepórter,maselesuavizouseuolharagressoredisse:

—Jamaisachamariadissoquevocêfalou.Foiumequívoco,aquelasimagensnãoprovamnada.Alguémestátentandodestruirminhacarreira.Tudoissofoiumainfelizcoincidência.Meufilhoeeuestamossendoalvosdepreconceitoporsermosbrancos.Somososbrancosracistasquesaemporaíagredindopessoasdecor.Éesse rótulo que sua mídia fajuta está tentando colocar na cabeça das pessoas.Somosasvítimas.Agorasemederlicença,precisoir.

Ricardo levantou o vidro e pisou no acelerador. Ele forçou a saída, osrepórteresaindagritaramalgumasperguntas,masforamdeixadosparatrás.

—Meus amores.— Vanessa Velasques estava em seu cenário, na bancada,comaspernascruzadas.Amesaeradevidroedavaparaverapartedebaixo.

Estavacomseudecoteusual.—Essasimagensforamfeitashojepelamanhã.Eufiquei chocada com a postura desse homem quando ele falou que estava sendovítima de preconceito. Vejam a que ponto chegamos, o opressor se sentindooprimido.Éissomesmoprodução?

VanessafoiengolidapelaescuridãoquetomoucontadateladaenormeTV.Thomasestavasentadonobraçodapoltrona,jogouocontroleremotonosofá

epousousuataçadevinhosobreamesadecentro,inclinou-secomoquemestavasentindoumadornoestômago,masestavagargalhando.

— Isso é bem a cara dele. Estamos sendo alvos de preconceito — eledesdenhou,afinandoavoz.Thomascomeçouaficarvermelhodetantorir.

Os dois estavam conversando enquanto a reportagem passava na televisão.Johnjáhaviacontadoahistóriadaagressãoumastrêsvezes.

—Issofoidemais,vocêfoimuitocorajoso—disseThomasaindarindo.—Eudariatudopratervistoacaradele.

—Eledissequeiriamedenunciarporassédio,imaginesó.—EutedariaumOscarporsuaatuação,foiperfeito.Aindaconseguivervocê

emalgunsvídeosquerolarampelainternet,ficarammelhoresqueasqueconseguicaptarcomodrone.

—OGabrielbateforte.Meumaxilaraindaestádolorido.—Eleapertouseusdedosmagros no rosto.—Você deu sorte comessamulher, ela pegouno pé doRicardomesmo.

—Poisé, foisortemesmo.Nunca imagineiqueocarroqueenviei fossedarnaquilo. Casou direitinho com o que eu queria. Nós sabemos que ele épreconceituoso,desdepequenoéassimenãovaimudarnunca.

—Vocêaindanãomecontoudetalhesdoquepretendefazercomisso.Thomasaproximou-sedajanela,olhandoparaojardimedeuumgolenoque

estavaemsua taça.Aáguadapiscina refletiauma luzprateadavindadealgumlugar.

—Darumaliçãoneles.—Nãovámachucaressesgarotos.—Quemficoucomacaratodainchadafoivocêouele?—Thomasvoltouarir.John deu uma risada, pegou a garrafa de vinho que estava sobre amesa e

encheusuataçaquejáestavavazia.Sentou-senapoltrona.—Thommy,comoeusintosaudadesdonossotempo—disse,apósdarumgole

novinho.—Nãoconsigosentirsaudade.—Thomasoencarou.—Eusóqueriaqueo

tempovoltassepraconsertaralgumascoisas.—Ah,qualé,amigo?Nemdasnossastravessuras?Euseiquevocêsemagoou

muito,mastevealgobom.Vocêdeviadesistirdesseseuplanodevingança.—Tevealgobom—disseThomas.Elevoltouasentar-senobraçodapoltrona.

—Masoquefoibom,passou.—Oqueébomnuncapassa,Enzo.—Enganoseu.Tudopassa,atémesmooqueébom.EnãomechamedeEnzo,

porfavor.—Desculpe,àsvezeseusintovontadedetechamarassim.

—Nãogosto.—Sendoassim,vamosesqueceropassadoebrindaraopresente.JohnergueuataçaeadeThomasfoideencontrocomadele.OtelefonedeThomasvibrouemalgumlugar.Ele jogouasalmofadascorde

cremenochãoàprocuradoaparelho.—Droga,nãoseiondedeixei—resmungou.—Achei.Eleolhouparatela,tinhaumnúmeroqueelenãoconhecia.—Alô?—Oi.—Avozdooutroladoerasuave.—ÉoThomas?—Sim,soueu—disseapressadoapósoinstanteemquetentouidentificara

vozdela.—Evocê,quemé?—Possoapostarquevocêsabequemestáfalando.Elademoroutantoparaligar,pensou.Thomasachavaquefossedemorarmais

umpouco.Nãodeixoudepensarneladesdeaquelanoite,mascomoestavaocupadocomseuplanonãoviuosdiaspassaremtãorápido.

—Talvezeusaiba,talveznão.Johncontinuavadepé,escutandoatentooqueoamigofalava.—Possoirnasuacasa?—Agora?—Thomaslevantou-seecomeçouapegarasalmofadasdevoltaeas

colocou em seus lugares. Ele olhou para sua sala como se estivesse procurandoalgumabagunça.

—É,agora.Seiondevocêmora.—Claroquevocêpodepassaraqui...agora!ThomassorriuparaJohncomoumadolescente.—Porfavor,nãolargueessetelefone.Teligoempoucosminutos.Eladesligoueelepôdeperceberquehaviaoutrastrêschamadasperdidas.—Nãodigaquejáconheceualguém?—perguntouJohn,interessadoemsaber

quemera.—Mais oumenos.—Thomaspegoua taçadamãodele.—Vocêprecisa ir

emboraagora.Meajudecomessascoisas.Johnpegouasgarrafasvaziaseseguiuatrásdoamigoatéacozinha.—Jogue-asnolixo.Assimelefez.—Agentesefaladepois,andalogo.—Thomasempurrouoamigoemdireção

àsaída.Anteseleentrouemseuescritório,umasalacomestantescobertasporlivroseumamesagrande.Retiroudagavetaumenvelopeamarelo.

ElecaminhouparaforaeencontrouJohnaoladodapiscinaqueeracheiadecurvas.

—Quaseesqueço—falou,entregandooenvelopeaoamigo.—Tom,Tom,nãoseicomoteagradecer.—Aproveiteaviagemecuidebemdomeuapartamento.Nãovolteatéqueeu

permita,precisoquecuidedasminhascoisasemLondresenquantoeuestiveraqui.Estãoaqui,passagens,passaporte,cartões.Tudooquevocêprecisa.

O que Thomas queria mesmo era tirar John do caminho por medo que eleatrapalhasseseuplano.Contouaoamigoapenasumrascunhodaversãofinal.

Johnsegurouoenvelopeesorriu.—Eu não sei o que você pretende fazer aqui,mas espero que não cometa

nenhumaloucura.Achoqueoquefezfoisuficiente.—NãoJohn,aquilofoiocomeçodealgomaior.Masnãosepreocupe,ninguém

vaisemachucar.Vaisersóumapegadinha.—Bom,eujámemachuquei.Thomasriu.— Obrigado por ter topado. Não sei se conseguiria apanhar sabendo o

momentocertoemqueiaseratacado,sempoderrevidar.—Aindasintoasdores.—JohnfezcaradedoreThomasretribuiuamesma

expressão. Os dois começaram a rir.—Me conte quem é essa garota que estávindo.

Thomascoçouacabeça,seperguntandosefalariaounão.—ÉaRebeca—eledisse,enfim.Quisdarumvotodeconfiançaaoseuamigo

deinfância,mesmodepoisdetodososanosquepassaramThomasaindasentiaumaafinidademuitograndeporJohn,tinhacoisasqueelenãopodiacontar,coisasquesópertenciamaeleeestavadispostoapagaropreçoquefossenecessárioparaconseguiroquequeria.

— Thomas...— John tentou assimilar se ouvira bem o nome.— A Rebeca?Minhaaluna?AfilhadoHarisson?

—Sim, sim, elamesma.Mas não faça essa cara. Depois a gente conversa,vocêprecisairemboraagora,nãoqueroqueelatevejaaqui.

—IssotemavercomaAnnabel?Éporqueelaseparecedemaiscomasuasereia? Tommy, cuidado pra não confundir as coisas. Você está imaginando aRebecacomosefosseaAnna.

—Não,John.—OolhardeThomaseraummistodefúriaeconfusão.—NãonegoquemelembrodaAnnabel,queimaginoqueelaseriaigualaRebeca...ouqueaRebeca podia ser ela. São tão parecidas e aomesmo tempo diferentes. EstouinteressadonaRebecapelojeitodela,nãoéporquelembraaminhaAnna.

—Temcerteza?—Éclaro—disseThomas.—Masnãotinhatantacertezaseeratãoclaro

assimcomofalou.—Agoravá,porfavor.—Tudobem.Thomasabraçouoamigodandotapascalorosasnascostasdele.

DIÁRIODEREBECA

Orelógiomarca11:59.Minhamãebateunaportaalgunsminutosatrás,ela

entrouetentoumeacordar.Segundoela,quasemederruboudacamaparaqueeu abrisse os olhos.Quando consegui vê-la, percebi que estava nervosa, quasecomosetivesseencontradoumapessoamorta.Elaquasechorouemeabraçou,perguntandorepetidasvezesseeuestavabem.Mesentiamuitotontaeconfusaprasaberseeuestavabem,minhacabeçapesavamaisqueonormaleaindaestápesando. Não estava assimilando bem a preocupação dela, eu estava apenasdormindo.

Faleiqueestavamuitocansada,quetinhaidoàacademiananoiteanterioretinhaidodormirmuitotarde.Aospoucoselafoificandocalma.

Jáhavia acordado tardeemoutrasocasiões,maselanuncahaviamevistoassimporqueeusempredeixeiaportatrancada.Etalveznuncatenhadormidotãoprofundoquantohoje.Entãosóquandosaiudoquarto,percebiqueelatinhaumacópiadachave.

Talvez,desconfiequeeuestoutomandoremédiosparadormir.

CAPÍTULO40ELAPAGAACONTA

Rebecaestavadeitadaemsuacama,tentandoseconcentrarparaviajarpara

a terra dos sonhos e se libertar de sua vida real sufocante. Ela estava quaseconseguindoultrapassarolimiteentrearealidadeeosonoprofundo.

Masmarina,suamãe,abriuaportadoquartocomimpaciência.— Rebeca, acorde — disse, tentando evitar que seu nervosismo se

transformasseemraiva.A filha foi trazida de volta do sono. Com dificuldade, foi abrindo os olhos e

reconhecendoaformahumanadiantedesi.—Mãe?Oquehouve?— Precisamos conversar. Quero que me explique o que isto significa —

respondeu,segurandoumacaixinha.Agarotaempalideceu.Nãotinhaumarespostacertaparaaquilo,entãosaiu

peladefensiva.—Deupramexernasminhascoisasagora?—disse.Elapensouquepoderia

termentido,terditoquenãoeradela,dadoaclássicadesculpaquehaviacompradoparaumaamiga,maspreferiuganharumpoucomaisdaatençãodeMarina.

—Nãointeressaseeumexinassuascoisasounão.Sousuamãeequeroquemedigaseestágravida.—Elasoltouaspalavrascomosefosseseucoraçãosaindopela boca. Tudo o que menos queria era ver a filha esperando um bebê aosdezesseisanos.

OtestefoiencontradopeladiaristaquandoelaarrumavaasroupasdeRebecanocloset.Agarotanemlembravamaisondehaviadeixadoaquelacaixinha.

Rebecasentou-senacamaebufou.—Eunemuseiisso,comovousaber?Acaixaestálacradanãoestávendo?—

Eladeuumsorrisinhodemaldade,poderiaacabar logocomadúvidadeMarina,masresolveudeixá-lamaisapreensiva.

—Massecomprouisto—disse,apontandootestedefarmáciaparaRebeca.—Querdizerquevocêsuspeita...quejáestáindoparacamacomalgumhomem.

—Eunãoestougrávida,nempreciseiusaresseteste.Foisóumatraso,masfiqueicommedoeantesqueeuusasseissodaí,veio.

PartedeMarinasereestruturou,oalíviotomoucontadela.Sentou-seaoladodeRebecaeapuxouparaumabraço.

—Precisatomarcuidadocomessascoisas,minhafilha.Vocênãopodeconfiaremqualquerum—falou,aindacomumcertodesesperonavoz.

—Mãe,nãoqueroteressaconversaagora—disseRebeca,achandoaqueleassuntochatodemais.

—Éclaroquequer.Vaimecontaragoracomquemestásaindo.—Nãoestousaindocomninguém.Foisóumavez.—Nãointeressaquantasvezesforam.Querosaber.Podiaterfaladocomigo

sobreissoantes.Rebecapodiaverquesuamãeestavamesmopreocupadacomela.—Vocêviveocupadademais.—Nãovivoocupadademais,vocêquemmedeixadeforadesuavida.Estána

horadenosresolvermos,temosquemudarisso.Rebecaendireitou-senacama,cruzouosbraçosecomeçouaouvirtudooque

suamãetinhaparadizer.

Depois de balançar a cabeça várias vezes para amãe e confessar que saiu

comumamigodo colégio, semmencionar que se tratavadeGabriel, nemmuitomenos citar Thomas, Rebeca ficou sozinha no quarto. Ela ficou algum tempoolhando pela janela, admirando a cidade tomada pela noite e relembrando osmomentosquetiveracomThomas.

Ela não parou de pensar nele desde então, até ali, tinha controle sobre ospensamentos que insistiam para ela fazer uma ligação.Mas aquelas lembrançasquentesadominarameafizerampegarocelularediscaronúmerodele,oquefezseucoraçãobateremdesespero.

Marina surgiu elegante com suapostura firme.Vitor estava esperando-ana

sala.Eleolhavaumafotografiaemumportaretratopresonaparede,seuolharfoidesviadoparaamulherdiantedesi.Acadavezqueaviatãobelasentia-semaisapaixonado.Otecidoimpecáveldovestidodesenhavasuascurvastãobemqueelanãoprecisavatirá-loparaqueelevissecadadetalhedoseucorpo.

—Vocêestálinda—elefalou,segurousuamãoeafezdarumgiroleve.—Obrigada.Vocêtambémestáumgato.Marinabeijouoslábiosdele.—ARebecasaiu,dissequevoltavalogo.—Acheiquefossecontinuardormindo.—Tãocedo?—eleolhouorelógioprateadoemseupulso.—Elatemdessascoisas,nãovoumeestressarcomaRebeca,nãoestanoite.— Ela estava nomomento simpática. Colocou aquela foto ali e saiu, até se

despediusorrindo.VitorestavacomasmãosnacinturadeMarinaeelacomosbraçossobreos

ombrosdele.Amulherosoltouecaminhouatéafotografia.—Adoreiafoto—falouVitor.Elecolocouasmãosnosbolsos.

—Opaidelaquemfez.ARebecasempreadorouospombos.Marinaficouimóvelolhandoaquelafoto.Vitoraproximou-seeaabraçou.—Elaélinda.—Minhameninacresceueeunemvi.Pramim,aindaéessagarotinhaque

gostavadecorreratrásdospombos.—Elescrescemrápido.—Eleabeijounorosto.—Vamoslogo,senãovamos

atrasarpronossojantar.—Tudobem,elanãodissepraondeia?—Falouqueiasaircomaamiga.—Vocêachaqueeuadeixomuitosolta?—Euacho,maselaémuitoimpulsiva,difícildecontrolar.Nãoseculpeporela

serassim,cadaumtemumtempodiferenteparaaceitarascoisas.—Talvezvocêtenharazão.Vamosaproveitarnossanoite.—Elaobeijounos

lábiosedeixouosorrisodecorarseurosto.Vitordirigiuatéorestaurante,estavaemseuprópriocarro.Aosvinteecinco

anostinhaumasituaçãofinanceiraconfortável.EraarquitetoassimcomoMarinaedefamíliadeposses.SeurelacionamentocomamãedeRebecacomeçouquandoelaterminouocasamento,VitorfoiumaespéciedeconsoloparaMarina.Eleaindaeramuitojovemesóestavacurtindosuajuventude.

Marinaerapratersidoapenasumcaso,maisumanalistadasqueeletinhapegado.

VitorerapratersidoogarotãoquelevantariaaautoestimadeMarina.Maselefoimais.Eelatambémfoimais.Bastou uma dose de tequila e de alguns empurrões das amigas para que

Marinaseentregasseàquelerapaz.Dezenoveanosecheiodebanca.Bemotipodecididoqueelagostava.—Noquevocêestápensando?—VitorperguntouaonotaroolhardeMarina,

distante.Elaseguravaumataçadevinhoqueestavaquasevazia.Elesjáhaviamcomido,faladosobreotrabalho,sobreosamigosenãoamigos.—Emcomosouumapéssimamãe—elarespondeu.—Nãosesintaassim.—Elesecouoslábioscomoguardanapo.—ARebecaé

umagarotadifícil.Marinapousouataçasobreamesa.—Euadeixeimuitosolta.Acheiquefossebompraela,mastalveznãotenha

feitotantobemassim.— Meu amor, não pense nisso agora. A noite é nossa, vamos esquecer o

mundo.Vitorsegurouamãodela.—Elatinhaumtestedegravidez,Vitor.—Aquiloestavapresodentrodesi,

entãosoltaraquelaspalavrasfezseucoraçãoesvaziar.—Eeunãoseinemcomquemelaestásaindo.

Vitornãosoubemuitooquedizer.—Cedooutardeissoiriaacontecer—falou,tentandofazeraquiloparecerser

normal.—Hojeemdia,asgarotasfazemsexocadavezmaiscedo.

—Não faça issoparecernormalporquenuncavouacharqueaRebeca temidadepraestarsedeitandocomgarotos.Estoumesentindopéssima.Umapéssimamãe,opaidelajamaismeperdoaria.Meperguntoondeelaestánestemomento,nãodeveestarcomamiganenhuma.

Vitorsecoualágrimaqueescorreupelorostodela.—Vocênãoéumapéssimamãe.Vocêéumamulherincrível.Vaiserumaavó

linda.Ela soltou um riso emmeio às lágrimas e tomou um gole do vinho para se

recompor.—Soumuitonovaparaseravó.GraçasaDeuselanãoestágrávida,masnão

negou que saiu com um amigo da escola. Foi tudo o que ela disse. Depois daconversa que tive com ela, ummonólogo na verdade, acho que dá pra garantirpassardosquarentasemumneto.

Vitor sorriu.Marina gostava da facilidade com que ele sorria em situaçõesdifíceis,eraumsorrisoquedizia“tudovaificarbem”,erareconfortanteestaraoladodele.

—Nãosemartirizecomisso.—Sabeoquemedeixamaisfrustrada?Vitornãofalounada,apenasdeixouqueelaentendessequeeleestavadisposto

aouvir.—Elatomaremédiospradormir—continuou.—Nãopenseiqueprecisasse

disso.Encontreialgunsfrascosdetranquilizantesnoquartodela,nãofaleinadaarespeitodissoporquenãoquisqueelasoubesseque,defato,mexoemsuascoisas.Sebemquecomotestedegravidez,éimpossívelelanãosaber.Entãoeusintoquenãosousuficiente,estoufalhando,Vitor.

—Conversecomela,nãotemoutrojeitomelhorqueesse.Precisafazercomqueelafale.

—Acabo sendo grossa quando tento falar alguma coisa. Ela anda estranha,dorme em horários inadequados. Hoje cedo, entrei no quarto dela e já estavadormindo.Tinhaacabadodeanoitecer.

Vitorlevantou-seeestendeuamãoparaela.—Estou sendo chata—disse, sentindo-se arrependida de falar tanto sobre

Rebeca.—Nãoestá.Apenasquerodançarcomvocê.Ela lhe deu a mão e eles caminharam entre as mesas. O restaurante era

iluminadoporumaluzdourada,asmesaseramcobertasportoalhasbrancasqueganhavamumtomencardidocomailuminação.

Eles chegaram até a pista onde dois casais dançavam a música lenta quetocava.Elacolouseurostonodeleesedeixoulevarpeloritmo.Tudoqueexistianaquele momento eram eles. Durante uma música inteira ela relaxou em seusbraços.

Na hora de ir, Vitor colocou as mãos nos bolsos, ele ficou visivelmentepreocupadopornãoencontrarsuacarteira.

—Amor,achoquevamoslavarospratosantesdeirmos.Elariudele.

—Vocênãoachaqueeuvouestragarminhasunhas,nãoé?Podedeixarqueeupago.

—Uau—eledisse.—Nãofiquesemgraça,issonãoéofimdomundo.Ogarçomveiocaminhandocomacontaequandochegouàmesadirecionouo

livretodecouroparaVitor.—Hoje,elapagaaconta.—Vitorapontouparaaamadaquesorriatriunfante.OgarçomentregouopequenolivroàMarina.Elaoabriu.—Não— disse, surpresa.—Eu não acredito nisso.—Ela colou amão na

boca,demonstrandooquantoforasurpreendida.—Vocêdevetererradoamesa.—falouparaogarçom.

Elesorriuebalançouacabeçaemnegativa.Marinapôsasmãosnatesta.Vitortinhaumsorrisodecantoacanto.Ocotoveloestavaapoiadonamesaea

mãonorosto.ElesedivertiuaoveraexpressãodealegriaeconfusãoqueMarinafazia.

—Explique-se.—Elafalouparaorapaz.—Podemedizeroqueistosignifica?—Elaabriuopequenolivroeexpôsoquetinhadentro.

—Significaqueacontaestápagaequeeuestoutepedindoemcasamento.Haviaduasaliançaspresasporumafitadouradanaqueleobjetodecouro.Elelevantou-se,desprendeuasaliançaseajoelhou-sediantedela.—Aceitacasar-secomigo?Marinapercebeuquetodosestavamolhandoacena.Elaqueriafalar,masas

palavrasestavampresasnagarganta.Elalembrou-sedequandoHarissonapediuemcasamento.Jamaisesqueceriaosmomentosbonsquetiveracomele,massuavidaagoraestavaligadaaVitor.Orapazpodiaserbemmaisjovemqueela,massentia-seseguraaoseulado.

Então,todasaspessoasaplaudiramquandoeladissesim.

CAPÍTULO41FUTURO,PRESENTEEPASSADO

Os dedos dele pressionaram seus olhos. Ela ouviu a porta ranger de leve.

Thomasimpulsionouseucorpoparafrenteeafezentrarnacasa.Quandotirouasmãos,elaabriuabocaemsurpresa.Estavamuitodiferentedaprimeiravezqueestiveraali,nãohaviamaiscaixas,nemmóveisespalhados.Aquelesofáemqueelecaiu por cima dela estava em lugar bem mais bonito da sala, acompanhado deoutrosmenoresequadrosenormesnaparedecomfigurasgeométricasqueelanãosabiaoquesignificavam.Haviamuitasalmofadaseelatevevontadedepularemcimaoucomeçarumaguerracomelas.

As paredes eram da cor creme, luzes brilhavam no teto cor de gelo, maisparecendopedrasdeouro.Opisodemadeirabrilhava.Cortinasbrancascobriamgrandesjanelasdevidroqueiamdochãoaoteto.

Thomas conseguiu limpar a sujeira que fizera com John antes que elachegasse,aindaconseguiuescovarosdentesparaesconderobafodabebida.Elecorreu para o portão assim que o telefone tocou e recebeu a jovem comentusiasmo. Ele a abraçou e a convidou para entrar, eles se cumprimentaram eThomasdissequetinhaumasurpresa,querialhemostrarcomoacasatinhaficadodepoisdeficarcompleta.

—Uau,nempareceamesmacasaquevidaúltimavez—falou,enquantoseusolhoscorriampeloambienteobservandoosdetalhes.

Elanãotinhanotadonaocasiãoemqueestiveraaliqueocorrimãodaescadaque dava para o andar de cima era dourado, e havia um belo tapete vermelhovestindoosdegraus,Rebecaseimaginouumaprincesadescendoporelesparaseapresentaraosconvidadosnumbailedarealeza.

—Gostou?Deuumtrabalhinhodeixá-laassim.—Thomasestavacomasmãosnacintura,sorrindocomoseestivesseapresentandoacasaparasuafuturaesposa.

—Élinda.Parabéns,vocêtemumbomgosto.— Obrigado — ele disse e se aproximou. Thomas colocou os cabelos que

cobriamorostoatrásdaorelhadela.ElequaseseafogounaqueleoceanoazulqueeramosolhosdeRebeca.—Tenhomaiscoisasparamostrar.Vemver.

Thomassegurou-apelamãoeapuxoucomdelicadezaporumcorredor.Eleschegaramaumasalaampla.Haviaumpianosobreumtapeteredondoefelpudo,esofásquadradosbrancos.

Thomaspuxouas cortinas logo após ligar as luzes.Davapara ver a piscinapelasenormesjanelasdevidro,aáguabrilhavacomojoias.

—Queroquevocêtoqueparamim—disseThomas.Eleestavaalegrecomoumacriança,Rebecaodeixavaassim.Eleseesqueciadomundoedetudo.

Agarotaestavaparadanaporta tentandoentenderoqueaquilosignificava.Umsorrisoseforçouemseurosto.

—Comosabequeeuseitocar?

—Játedisse.Talvezeusaibamaiscoisassobrevocêdoquepossaimaginar.Por um segundo ela se sentiu acuada, como se ele a estivesse vigiando,

seguindoseuspassos.Thomasprovocavaumaconfusãodesentimentosqueelanuncaexperimentara.

Alegriaemedodançavamjuntos,adrenalinapercorriaseucorpo,euforia,desejo,pazetempestade,todosjuntosnumredemoinho.Maselagostavadaquelasensaçãoporque se sentia viva ao lado dele. A vida ganhava cores, cores novas que nemsabiaseexistiamdeverdade.

—Vocêandoumevigiando?—elaperguntou,descontraída.Pormaisqueumpensamento sussurrasse em seuouvidoqueelanãoo conheciade verdade, umaestranhasensaçãomostravaocontrário.Elenãoeraestranho.Elaoconhecia,oupodiajurarquejáoviraantes,talveznãonessemundo,masnumsonhoounumalembrançacriada.Talvezelefizessepartedesuasfalsaslembranças.—MeuDeus,fuipegapelolobomau.—Rebecacolocouascostasdamãodireitasobreatesta,fazendoumacaradramáticadedesespero.

—Nãoseassustechapeuzinho.—Thomascorreuparaelaeaseguroupelacintura.—Olobomaudessahistóriasóquerprotegervocê.

Eleriueelaretribuiu.Agarotasesoltoudosbraçosdeleeaproximou-sedopiano.

—Mefalecomodescobriuqueeuseitocar.—Nãosouummaníaco.—Elasentiueleseaproximar.Thomaspousousua

mãosobreadelaqueestavanopiano.Rebecasentiuarespiraçãodele,quenteecheiadedesejo.—Qualquerumquevisiteseuinstagramdescobrirádoquevocêgosta.

Ela libertou um sorriso de alívio. E se achou ingênua por não lembrar queexpunhapartedesuavidanasredessociais.

—Viumpequenovídeoseu,tocando.Entãodesejeiquevocêtocassepramim.Eulutopelascoisasqueeudesejo.

—Confioutantoqueeuvoltaria?Elaseviroueolhounosolhosdeleparaouvirarespostaquejásabia.—Sim,euconfiei.Sónãoimagineiquefossedemorartanto.Estepianoesteve

esperandoporvocê.Compreisonhandoemouvirvocêtocarparamim.Rebeca o abraçou pela cintura e pousou o rosto no peito dele. Thomas a

envolveuemseusbraços.—Vocêé louco,maseugostodoseuabraço—eladisse.—Mefazbem.É

estranhoporquemalnosconhecemos,masmesintosegura.—Sintocomosenosconhecêssemoshámaistempo.Mostre-meseusdons—

disseapenas.Rebecaosoltoueencarouopiano.—Nãoseioquetocar.—Nofundoelasabia,queriaouvirDavidGuetta,mas

precisavasaberseeleaindalembrava-sedecomoseconheceram.—A nossamúsica— disse Thomas.— Toque aquelamúsica de quando nos

conhecemos.Elanãomesaidacabeça.Temelaaí.—Eleapontouparaapartitura.Rebecasorriuemagradecimento,passouamãonasaiadovestidoesentou-se

nobanco,felizporeleterlembrado.Eraengraçadoporquesempreouviraaquela

música, a achava linda e adorava dançá-la, mas depois que conheceu Thomas,depoisqueelavirouotemadaquelemomento,amúsicatornou-seaindamaisbela,maisprofunda.Eelanãoprecisavadeconsulta.

—Meupaimeensinouatocar—Rebecafalou.—Osonhodeleeraconseguircantar,maseradesafinado.—Elasorriucomternura.—Maseleaprendeuatocarinstrumentostãobemquesuavoztornou-sedispensávelparaelemesmo.

Thomassentou-seemoutrobancoeficouaoladodela.—Imaginoqueelesintamuitoorgulhodafilha.— Acredito que sim.— Um nó se formou em sua garganta. — Sinto muita

saudadedele.Éruimnãotê-lomaistodososdias.—Masoquehouvecomele?—Thomasmexeunocabelodelaeadmirouotom

doruivo.Elelembravatãobemdaqueletom,eraperfeitamenteigual.— Meus pais se separaram e ele acabou indo morar em outra cidade pra

cuidardosnegóciosdovovô.Quasenãoovejo,masvamosaoqueinteressa.—Elainspiroutodooarquepôde,firmouaposturaeseusdedoscomeçaramnoinstanteemqueelafechouosolhos.

Tudo ficou escuro. As teclas começaram a reproduzir a melodia da músicaTitanium.Elaestavaperdidanaqueladensidadesombria,masaindaeracapazdecriar beleza naquilo. Thomas surgiu com um traje de gala, seus cabelos loirosestavam lambidos para trás. Ele veio caminhando sobre o que ela chamaria deescuro, não havia nenhuma cor, nenhum formato diferente. Apenas ele semovimentava no cenário completamente preto e a encontrou e começaram adançar.Rebecafezsurgirestrelasqueexplodiamespalhandobelezaedestruiçãodaqueleescuroagoniante.Elaestavacriando,amúsicainebriavasuaimaginação.

Osdoiscomeçaramabrilhar,amelodiaecoavanamentedeles.Nãoimportavaoquãodensafosseaquelaescuridão,elaotinhaejuntospodiamsertodasascoresdomundo.

Somosàprovadebalas,somosfeitosdetitânio.Atire,Atire.Rebecalembrou-sedequandoeledisseoqueaconteciacomotitânioquando

eraaquecidoeosdoiscomeçaramaqueimar.

ElaabriuosolhoseviuThomasencantadocomoumacriança.Rebecaacordou

doseutorporeeleaindapareciaestaremoutromundo.—Oquevocêachou?—elaquissaber.—Euadorei.Quasemeesqueciqueestavanaterra.—Elesorriu.Estavacom

ocotoveloapoiadonopianoeamãonoqueixo.—Satisfeitoouvaimeaprisionarparaqueeusempretoquepravocê??—Nãoqueroprendervocê,queroquevenhaporvontadeprópria.Elearrastouobancoparabempertodela.Rebecapousouamãosobreolado

esquerdodorostodeleedeslizouparaanuca.Thomasimpulsionouocorpoparafrenteeprovoudenovodoslábiosdela.

—Doqueestárindo?—perguntou,apósobeijoquepareceuterduradomaisqueoreal.Elenotouumsorrisonagarota.

—Demimmesma.Poreuestaraquicomvocê.Poreuestarmesentindobemcomumestranho.

—Nãosouumestranho,tireissodacabeça.Alémdomais,boashistóriasnãoseguemreceitadebolo.Efalandoemhistórias,temalgoquequerotemostrar.

—Maisumasurpresa?—Nãoseiseéumasurpresa,maséalgoquevaigostar.Thomaspuxou-apelamãoeaguioupelaescadaemespiralquehavianaquela

sala,eratodaprateada,diferentedaqueRebecaviuantes.Agarotalevouamãoàbocaemsurpresaquandochegouaoandardecima.—Estelugarémesmoincrível.Ela passou amão pelos livros na estante, sentindo a textura das capas e a

espessura. Toda a parede estava tomada por uma estante completa com livros,haviaumaluzdouradaqueailuminavaemseusquadrados,Rebecaperguntou-sedeondevinha.Havialivrosemaislivrosportodososcantosdaquelasala.

—Vocêleutodoseles?—Todos.AtiaAbigaildissequeeuiaficarloucodetantoler,maselanãosabe

queleréacuraparaaminhaloucura.Rebecasorriu.—Euacreditonisso,aleituratransforma,acreditonopoderdaspalavras.Mas

mediga,sevocêveiodeLondresefazpoucotempoqueestánacidadeenemsabesevaificar,porqueecomotrouxetodoseles?

—Vieramdenavio.Eeuostrouxeparaconquistarvocê.—Uau,umnaviodelivros!Vocêémesmoumlouco.Quetipodehistóriavocê

prefere?—elaquissaber.— Eu gosto de fantasia, romance policial, um bom thriller. E aprecio as

históriassobrevingança,achoquequemabusca,nofundoestábuscandojustiça.Se Rebeca o estivesse observando teria visto ele perdido nos próprios

pensamentos, mas os olhos dela corriam pelo ambiente. Ela dava voltas pelasestantes.Viuumapoltronareclinávelaoladodeumaparededevidro.

—Vingançanãopodeserconfundidacomjustiça,porquenelanãohámedidapara a punição, e sempre tem consequência — falou ao sentar-se na poltrona.Estavaescuro,maselapôdeverárvoresláfora,aindanapropriedadedacasa.—Vocêgostadejanelasdevidro—faloucomaintençãodemudardeassunto.

Eledespertoudospensamentos,eadmirouafelicidadenosolhosdela.—Deite-seeaprecieavista,entãoveráporquegostotanto—elefalou.Rebecainclinou-seeviuocéunoturno,decoradopelasestrelas.—Uau,vocêprojetouoparaísonasuacasa.—Empoucosdiasseráluacheia,seráumabelavisãodeondevocêestá.Ela levantou-se e caminhou em direção à outra parede para admirar uma

imagemquelhechamouatenção.EraocastelodeHogwartstalhadoemmadeira,ele era uma estante. Partes do castelo eram preenchidas por livros do Harry

Potter.—Eu coleciono algumas capas— disse Thomas.— Tenho a versão inglesa,

duasbrasileiras,claro;umaamericana,umaitaliana.—Eleapontavaparaondeoslivrosestavamencaixados.

RebecaretirouoexemplardeOcálicedefogodoencaixeeadmirouacapadura.

—Esteéomeufavoritodasérie—eladisse.—Temumcapítulocomoqualme identifico.Odapenseira.Adorariapoderacessarminhasmemóriaserevivertodasascoisasboas.

—Eunãogostomuitodememórias.—Thomastirouolivrodasmãosdelaeocolocousobreamesadevidro.—Euprefiroviveroagora.—Elesegurouasmãosdelaeasjuntounomeiodopeito.Rebecaarfou.—Desfrutardasemoçõesqueopresentenosoferece.

—Mas tudo vira história. O presente, o futuro... tudo se torna passado.—Thomas estava bem perto da boca dela e Rebeca encarava os lábios dele comvontade de beijá-lo. — Nosso momento no piano agora faz parte de nossasmemórias. É impossível parar o tempo e fazer com que só o presente exista.Somenteas lembrançasnosdãoacessoaoquevivemoseatravésdelaspodemostransformaropassadoempresentenovamente.

—Maselasnostrazemascoisasruinstambém.Elasentiualgumatensãonocorpodele,talvezfossearespiraçãopesada.—Éverdade,masasgrandeshistóriasestãocheiasdecoisasruins.Aliás,as

melhores histórias não têm finais felizes. — Ela sorriu tristemente. — Eu nãoqueriafazerpartedeumaboahistória.

—Eutambémnão—falou.—Vamosconstruirboasmemóriaspranósentão.—Thomasagarrounacinturadelaeapuxouparaumbeijointenso,oslábiosdelegrudaram nos dela. — E torcer para que, a nossa, seja uma história ruim —concluiu.

DIÁRIODEREBECAOmeuaniversáriodetrezeanoserapratersidoomaisbonitodaminhavida,

masacabousendoomaisterríveldetodos.

CAPÍTULO42OBAZAR

AcamadeRebecaestavarepletaderoupas,pareciamaisumbancodefeira

oudebazardeigreja.Suasclienteserammeninasdasuaidade,amigasdaescola.Blusas, vestidos, saias, jeans eram as diversas peças de marcas famosas comoCarmenSteffens,Dolce&Gabana,Lacosteentreoutras.

As cinco garotas pareciam urubus em cima de algum animal morto. Elasreviravamas roupas eprovavam, tagarelandoentre elasnumaconfusãode sonsqueeraimpossívelentendersobreoqueconversavam.

Rebecasaiudoclosetabarrotadadevestidos,elajogouaspeçasemcimadacamaeosurubusbateramsuasasasemdireçãoaeles.

—Se rasgaremalgumapeçasabemquevãopagar,estãoavisadas?—disseRebeca,numtomleve.Asgarotasriram.

—Nãosomos loucasderasgarmosestasmaravilhas—falouumadelascomumincrívelsorrisodecomercialdepastadedente.ElaseguravaumvestidopretoCarmenSteffens,grudadonocorpo.

—Assimespero—gritouRebeca,jádevoltaaocloset.Elavoltousegurandodoisparesdesapatosnasmãos,emostrou-osempolgada

comosefossemdoisfilhotes.—LouisVuittonouJimmyChoo?—perguntouRebecaGritosquemaispareciammiadosdegatosecoarampeloquarto.O sapato JimmyChooeraummodelo comumsaltoem formasgeométricas,

pretobrilhante,quasecomosefosseespelhado,elecobriatodoopéatéaalturadotornozeloeerapontudo;omodeloLouisVuittoneraumPumpBettyfeitodecourodecabrapretocomgranuladocinza.

— Sou louca por um Jimmy — suspirou uma das meninas ao arrancar ossapatosdasmãosdeRebecaeabraçá-los.

—Estãopraticamentenovos,useieleapenasumavez.—RebecaentregouooutromodeloaumagarotaqueestavasentadanacamaapreciandoumablusaazuldaLacoste.

—Rebecavouficarcomessadaqui.—Tudobem,váseparandoquedepoisagentefazascontas.Rebecaestavadescalça,usavaumminishortjeanseumaregata.Seucabelo

estava preso. Ela estava radiante como uma vendedora simpática disposta aatendertodasasclientesdaloja.

—Nicole,vocêficoulindanessevestido.Arrasou,amiga.—Nicoleestavaseolhandonoespelhodaportadoclosetdela.

—Adoreiele.—Dáumavoltinha.Vejamissomeninas.—Rebecasegurouamãodagarotae

afezdarumgiro.—Lindo,amiga.

—Perfeito,ficacomele—disseumagarota.—Ficacomele,façoporsetemil.—Ah,não.Támuitocaro,Rebeca.— Ih, minha filha, sabe quanto custa um desses? Estou te vendendo pela

metadedopreço.—Jávivocêusá-lováriasvezes.—Tudobem,cincomil.Nãopossodarumdescontomaiorqueesse.—Possopagardoismil.—Ah,não,podedeixarquevouusá-lomaisvezes.—Doisequinhentos—disseNicolenaesperançadeconvencê-la.—Trêsequinhentosenãosefalamaisnisso—rebateuRebeca.—Trêsmilétudooquetenhonabolsa.—Tudobem,negóciofechado!—Rebecaapertouamãodaamiga.Era um Dolce&Gabbana que custara ao avô, quase quinze mil reais, ela

pensou. Mas estava precisando de dinheiro. O que podia fazer? Precisava dodinheiroparadaraCristianoeevitarqueelecontassetudoparasuamãe.Rebecanão sabiaoqueelepretendia fazer comodinheiro, imaginavaqueele estivessemetidoemalgumadívidacontraídaemjogo,ouquetivesseseenvolvidocomalgumagiota.

Cristiano sempre pareceu ser um bom homem, sua mudança decomportamento pegou Rebeca de surpresa. Primeiro ele veio com chantagememocional,dizendoquequeriadesistirdetudo,bastavaelaoferecerdinheiroparaqueeleaceitassecontinuar.Depoispassouapedirmesmo,dizendoqueprecisavademaisdinheiro,sónuncaexplicouparaquêtanto.

Asgarotas continuaramprovandoas roupas, entãoRebeca entrouno closetparaarrumarabagunçaquefizera.Depoisdealgunsinstantesouviuseunomeserpronunciadoentreasvozes.

—QueriateravidadaRebeca.Elatemtantascoisaslindas.—Roupanãofazninguémfelizmeubem,sintoinformar.—Nãofaloapenasdisso.Elaélinda,érica,temumavôquedátudopraela,

umamãelindatambém.Ah,eavisairdaboatecomumgatolindo.Oquemaiselaquer?

—Avichorandonobanheirodaescolaumavez.Vaiveravidadelanãoétãoperfeitaassim.Tenteiperguntaroquehouve,maselanãoquismefalar.

AspalavrasdasmeninasdeixaramRebecaumpoucodesconfortada,elaparouparapensarqueeraobservada.Talvezaspessoas soubessemde tudooqueelafazia.

Para não transparecer alguma indisposição, ela respirou fundo, colocou seumaisbelosorrisonorostoecaminhouemdireçãoàsgarotas. Jáhaviampassadoalguns dias desde o último encontro que tivera com Thomas, eles estavammantendo contato por telefone. Ele andavamuito ocupado e Rebeca não achouruim passar um tempo sem vê-lo, achou que seria bom para assimilar seu realinteressenesseromance.

Rebecaestavadebomhumorenãodeixariaseinfluenciarpeloscomentáriosdaquelasgarotas.

—Então,vamosfazerascontas?—perguntou.As garotas concordaram e começaram a separar as peças que iam levar.

Fizeramuma filaeRebecaanotouosvaloresdecadaumaemumcaderno.Elaspagaram em dinheiro como Rebeca esperava. Depois se despediram. Rebecaprometeufazeraquilomaisvezes,mastorceuparaquetivessesidoaprimeiraeúltimavez.

CAPÍTULO43COMOVOCÊSESENTE?

—Vocênostrouxeatéaquiparavermosisso?—Nãoexatamente—respondeuGabriel.Eletirouocintodesegurançaesaiu

docarro.—Vamossubir.Orapazcaminhouatéaentradadaconstruçãoinacabada.Elevoltouoolhar

paraelasquecontinuaramparadasaoladodocarro.—Vãoficaraísóolhando?—Gabrielgritou.Amandaolhouemvoltaeviuomatoverdequecresciasobreaareia,caixas

velhas,entulhos,latõesdelixo.—Estelugarmedáarrepios—disseFelicity.Elas caminharamaté ele.Estavamdenovonomesmo local emqueGabriel

sequestrouodetetiveenviadoporRomeu.Amandaachouqueencontrariamaquelagarotanovamente,masnãotinhaninguémalémdeles.

O lugareraabafadoeúmido.Uma lâmpadaestavaacesa.Asduas foramnadireçãodosomdeportasdemetalsendoarrastadas.

—Venham—chamouGabriel. Ele estava dentro de umelevador de cargasparaobras.—Vamossubir.

Amanda e Felicity entraram.O barulho causado com a subida causoumedonelas.Gabrielestavacomumalanterna,iluminandooambienteescuro.Otelefonedeletocou,eraRebeca,apenascolocounomodosilenciosoeocolocoudevoltanobolso.

Oventofortesoprouoscabelosdelesquandochegaramaoterraçodoprédiodeonzeandares.

—Vejamisso.Acidadeinteiradiantedeles.Océunãoestavamaisazul,suacoreralaranja

vivo, como se estivesse queimando. As ruas estavam iluminadas e pareciamserpentesdefogo.Osprédioseramcomocolunaserguidascheiasdevagalumes.

Gabrielseaproximoudoparapeito.Amandaveiocaminhandodevagar,estavadebraçoscruzadoseusavaumcasacoazul.Felicityficouparadanaportapelaqualsaiu.

— Por que nos trouxe aqui? — quis saber Amanda. — Ela estava confusa,tentandoentenderquesignificadoaquelelugartinhaparaGabriel.

—ARebecaestáligando—falouFelicity,olhandoproseucelular.Seusamigosnãodisseramnadaarespeito.

—Algumavezvocêparouprarepararnisso?Nestacidadetãogrande,nestesprédios — ele falava sem tirar os olhos da imensidão diante de si, e ignorou aperguntadaamiga.—Sabiaquenesteinstantetemalguémmorrendo?Eroubandoematando?Alguémestánascendo.—Eleficoucaladoporuminstante,ouvindoosomdovento.

Amandafezcaradequemestavadiantedeumlouco.Gabrielriueolhoupara

ela,percebeuqueFelicityhaviaseaproximadodeles.Elanãoatendeualigaçãoeguardouotelefone.

—Érealmentemuitobonitodaquidecima.Nuncavinadaigual—elafalou.—Por que você nos trouxe aqui,Gabriel? Apenas para apreciar a vista?—

insistiuagarota.— Não seja insensível Amanda, tente ver, além disso — falou Felicity,

admirandoapaisagemcomoseestivessediantedeumaobradearte.—ÉcomooGabrielfalou.Pessoasestãosaindodotrabalhoparachegaremcasaeencontraros filhos,aesposaouomarido,ouatémesmoninguém.Temgentechegandoaohospitalcomumapernaquebrada.Gentechorandoesorrindo.Gentebebendonosbares.Gentesepreparandoparaanoite.Namoroscomeçandoeacabando.Gentechorando porque perdeu o emprego ou porque perdeu alguém especial. GentefazendocoisasquesóoGabrielfalaria.—Orapazsorriudeleve.—Etemagente,dançando a música de um maluco. Eu vejo a vida pulsando diante de nós, nãoestamos sozinhos, todomundo tem seus problemas. Temos que fazer como elesfazemqueélutarpararesolverosnossos,porquemetadedelessomosnósquemcausamos.

—Éexatamenteisso,Fê.—Gabrielvoltouafalar.—Trouxevocêsaquipararelaxarmosumpouco,pararecarregarmosnossasenergias.Oquetemacontecidocomagentetemnosdeixadoperturbados,pelomenoseumesintoassim.Eaquininguémnosouve,podemosgritar,mandaromundosefoder,ninguémvaiouvireseouvirem,quesedanem.

Oventoaindasopravaforte.—Vocêsestãoloucos—disseAmanda.—Meupaimeobrigouairaumpsicólogo.—Gabrielcontinuou.—Eleacha

queestouficandolouco,agressivoequeestoufazendoprograma.Nãoseideondeele tirou isso,mas...Eunãoqueria falarnadapraSarah.—Amanda levantouosolhosaoouvironomedamãe.—É,suamãe.Elaficoumefazendoummontedepergunta que eu achei idiota nomomento.Queria saber como eume sentia. Euachoquenuncapreciseifalarpraninguémcomoeurealmentemesentiaháumbomtempo.Naverdadenuncasentitantanecessidadequantoagora.

Amanda o encarou e deu mais credibilidade às palavras do amigo. Elacontinuavacomosbraçoscruzados,sentiaofrioprovocadopelovento.

—Eutrouxevocêsaquipradizerqueeumesintoumcaramau,éisso.—Elesentiuvontadede falarmaisecontinuou.—Era issoqueeudiriaparasuamãe,Amanda.Seeupudesse,teriaditoquemesentiaumcaramau,e issonãoéalgobom de sentir. Definitivamente, não é. Eumereço tudo o que está acontecendocomigo.Adrogadalistaestámefazendopagarmeuspecados.

Ele se distanciou das amigas, cruzou as mãos atrás da cabeça e teve uminstantedesilêncio.

—Suavez—GabrielfalouparaAmanda,quandovoltouparapertodelas.—Vamos,digacomosesente,dêaverdadeirarespostaquedariaquandoaspessoasperguntam“comovocêestá?”enósrespondemos“bem”,semnemsabermosoqueéestarbemdeverdade.

OsolhosdeAmandaficaramcheiosdelágrimas.Elacomeçouaentenderoque

significavaestarali.Eraapenasfalar,desabafarumpouco.Elesnãohaviamparadoparaconversarsobretudooqueestavaacontecendocomeles.Talvezfosseahora.

—Mesintoapiorpessoadomundo.—Umalágrimaroloupelorostodela.—Nãoqueria sermãe tão nova,mas sei que essa criança não pediu pra nascer emesmoassimeudesejeiqueelamorresse.Euquisperderobebê, sóqueagoraestou arrependidade ter pensadonisso.Quemãedesejaria amortedeum filhoantesmesmodelenascer?Eusouummonstro.Éassimquemesinto,ummonstro.—Aessaalturaelajáestavachorando,quaseaossoluços.Felicityaproximou-seeaabraçou.

—Nãopense assim. Isso foi ummomento de fraqueza.O importante é queagoravocênãopensamaisnisso,nãoé?—Felicityseguravaorostodela.Amandabalançouacabeçaemsentidoafirmativo.

Elasseabraçaram.Gabrielasencarava.—Suavez,Fê—eledisse.Elasselargaramdoabraço.—Nãoseidizercomomesinto...Vazia,talvez.Oucheiadeódio,porquenão

importaoquefizemos,apessoaqueestánoschantageandonãotemodireitodefazerissocomagente.

—Falandonisso, vocêsdoispodiamabrir o jogo. Já sabemqueestounessaporque temumvídeomeu transandocomoprefeitodesta imensacidade.—Elasoouirônica.—Maseunãoseinadadevocêsdois.

O silêncio tornou-se profundo e deu voz ao vento que sussurrou no ouvidodeles.Océuestavaficandoescuro,eleseramsombrasnoaltodaqueleprédio.Asestrelasdespontavamnocéu.

Gabriel e Felicity se encararam como se um pedisse que o outro falasseprimeiro.

—Vamos—insistiuAmanda.—Souumcriminoso.—Gabriel enxugouonariz comas costas damão.As

garotas se assustaram com a resposta e se perguntaram que tipo de crime elehaviacometido.Comoseestivesseescolhendoaspalavraselecontinuou.—Cometialgunscrimesdigitais, falsifiqueidocumentos.Sim,aquelas identidades falsasquenostornammaioresdeidadeeumesmofalsifiquei,comaajudadeumamigo,maseufaçopartedisso.Cometemosalgunsroubosonline,coisagrande.Foicomessagente que estoumetido que consegui esse carro, que tenho a habilitação falsa.Possoserpresosealguémdescobrir.Irpararnumreformatório,naverdade.Masapiorpartede tudoéacabar coma vidadomeupai, achoqueelenãomereceamídia inteira cobrindo um escândalo desses que se tornou a agressão que eucometi.Apartedefazerprograma,eunãoseideondeeletirouisso.—Elesoltouumrisofracoedeudeombrosquandoterminou.—Suavezagora,Fê.

Elaoencarou,commedodecomosuaspalavrassairiam.—Minhamãematouumhomem.—Felicityfaloutodasaspalavrasdeumavez

só.GelotomoucontadeAmandaeGabriel.Elesficaramimóveisporuminstante.—Eeu cometi abesteirade escrever emumdiário.—Felicity lutavaparanãoderramar lágrimas.—Toda a cena, tudo, escrevi tudo pra ver se eume livrava

daquilo. Eu vi tudo, vi como ela o matou. Ele queria nos fazer mal, ela só nosdefendeu.

E foi impossível não chorar, não sentir de novo a dor daquele dia que aacompanhavatodosessesanosquepassaram.

Amandasentiu-seumpoucoarrependidapor terpedidoqueelescontassem.Talveztivessesidomelhorqueossegredosdelescontinuassemescondidos.

Gabrielestavacomumaexpressãotristeevazia,suassobrancelhasestavamcaídas, os ombros também caídos. Os três estavam dispostos uma para o outroformandoumtriângulo.

—Estãoameaçandoentregarelaparaapolícia?—perguntouAmanda,comcautela.

—Ébempiorqueisso.Ameaçaramentregarodiárioaosirmãosdele.Osdoisjuraramvingançasedescobrissemquemfoi.

—Foiomaridodela?Oseupadrasto?—perguntouGabriel.—Masporqueelaomatou?—quissaberAmanda.—Elenãoaceitouaseparação.Querianosfazermal.Elasósedefendeu.—

Felicitynãosesentiuconfortávelemcontarapartedoabuso,elanãoteveforçaspara falar“eu fuiabusada”.Foidifícil falarquesuamãeeraumaassassinaeaomesmo tempo libertador, ela nunca falou isso paraninguém, sómesmopara seudiário.

Ameninatapouorostocomasduasmãosechorou.Gabrielpôsamãona testae ficoudecostasporalgunssegundos,eleolhou

paraonada.ComoelequeriaarrancaraquelapartedahistóriadeFelicity,queriaapagaraquilodelasóparanãoveradorqueaamigaestavasentido.

Orapazcorreuatéameninaeaabraçou.Amandaabraçouosdois.Ostrêsseabraçaram.

— Vamos ficar bem, Fê — ele disse com tanta vontade na voz que passoualgumatranquilidadeaela.—Vocêspercebemquenósnãosomosoalvo?

Elessesoltaramdevagar.Felicityenxugouaslágrimas.—Oquevocêquerdizer?—perguntouAmanda.—Nuncafomosoalvo.Somosnaverdade,odardo.Quemestáportrásdisso

estánosusandoparaacertarumalvo,oumaisdeum.Sódemosoazardetermossegredos,porissofomosescolhidos.

AmandaeFelicityolharamcuriosasparaorapaz.—Sempreestivemosnosperguntandoporqueestãofazendoissocomagente.

Quando,naverdade,nãoéconoscodiretamente.Sealguémquisessenosferrarjáteriam feito isso, não existiria o Edgar pra te ajudar naquele incêndio— falou,olhandoparaaincendiária.—Estamoscometendoaçõescontrapessoas.ContraoJohn,aTereza,aArabela.Atémesmocontraaescola.

—Sim, isso faz sentido—disseFelicity.—Mas você ficouquasepeladonaescola,issoafetaquem?Nosfizeramcomeraquelasporcariasnojantaresóvejoqueafetouanósmesmos.

—Paranosdesestabilizar,nosconfundir.—AmandagostoudoraciocíniodeGabriel.—Eo fatode teralunosdesfilandosemroupasómanchaa imagemdocolégio,semcontarcomaagressãoaoprofessor.

— Tudo isso esteve claro o tempo todo, mas não percebemos. — Gabrielretomouseuraciocínio.—Algumasdenossaspróximasaçõesafetamaescolaoupessoasquenãosomosnós.Nossospassosestãosendoapagados.Atéomomentoninguémdescobriuqualquer ligaçãoentre vocêeo incêndio.Misteriosamente, oJohnnãodeuqueixa,sumiudomapa.Estamosasalvo,ainda.

—Tá,masaondevocêquerchegarcomessalinhaderaciocínio?—perguntouFelicity.

—Querodizerquenóspodemosrelaxarumpouco,nadavainosacontecersefizermostudooquetemnalista,vamosconseguirasprovasquetêmcontranós.Entãotemosquefocaremterminá-laeajudaressemaníacoasevingar.

—Vingar?—questionouAmanda.—Claro—respondeuGabriel,empolgado.—Temalguémquerendosevingar

daTereza, do John, daArabela, talvez domeupai, do colégio e sabe-se lámaisquem.Essa,minhascarasamigas,éumahistóriasobrevingança.

CAPÍTULO44CHANTAGISTAARREPENDIDO

Gabrieldirigiupelasruassaindodaqueleprédioemsilêncio.Nemele,nemas

amigasfalaramalgumacoisa.EledeixouAmandaemcasaeseguiuparaentregarFelicity,segura.

Amanda se trancou no quarto e só saiu de lá para comer, depois voltou epassouumbomtempodeitada.

Quandonotouqueanoiteestavatãobonita,elalevantou-sedesuacamaefoiatéajanelaeimpressionou-secomabelezadalua,gigantenocéu,douradaquasecomoosol.Elapuxouascortinasesaiuparasuavaranda.Oventofriorodopioupeloseucorpo.

A garota cruzou os braços e ficou ali admirando a beleza do céu, quemaispareciaumgrandecobertorqueamparavaahumanidadecontrasuasdores.Elausavaumrobedesedabranco,seuscabelosestavamsoltos.Longosemacios.Seusfioseramumorgulhopessoal,seperguntassemdoquemaiselagostavaemsi,diriaqueeradoscabelos.

Diantedelahaviaacidadeacesapor luzes,agoramaisescuraquequandoaviu de cima daquele edifício, e o mundo, tão imenso, tão cheio de problemas ecoisasboaseruins,cheiodemedo,alegriaedor.

Eeraparaestemundoqueelaestavatrazendoumnovoser,umanovavida.Pelaprimeiravez,colocouasmãosemvoltadabarrigaesentiu,alémdomedo

decolocaraquelacriançanomundo,algocomoumfiodeesperançaacesodentrodesi.Eumalágrimasaltoudoseuolhodireito,escorreuatéchegaraocantodaboca.

Erasalgadacomotodasasoutrasquederramaraemsuavida,masaquelaeasoutras que caíram em seguida pareciam ter um podermais forte de purificar aalma.

Ela lembrou-sedo outrodia emquequase foimorta sufocadaporTereza epensouquesemorresse,outravidamorreriatambém.Então,sesentiucomoumaguardiã,alguémresponsávelporumtesouroqueseriaseuparatodavida.Elanãoqueriamaisperdê-lo,nemmesmopensarquejápensounissoumdia.

Amanda fechou as janelas, mas deixou as cortinas abertas para podercontinuarolhandoalua,desuacama.Elaentrouembaixodoedredom,encolheu-seepensouemMurilo, o viu esperando-anoaltar; viuumbebê chorandoemseusbraços;seviudebarrigagrande,sentindodores;umacriançacorrendopelacasachamando-ademamãe.

Semperceber, fechouos olhos e deixouqueo futuro sedesenhasse em suamente,emseussonhos.

Elanão soubequanto tempo sepassouaté sentir algoestranhoembaixodacoberta,podiaserumgatoseelativesseum.Amandaacordou-se.

—Gustavo,vocêmeassustou.Oqueestáfazendoforadacama?

—Tiveumpesadelo—disseomeninocomcaradecachorronomeiodachuva.—Pesadelossãocoisasirreais,elesnãofazemmal.Volteproseuquarto.—Elescausammedo.Omedofazmalàspessoas.Elesestavamdeitados,olhandoumparaooutro.—Àsvezes,omedotornaaspessoasmaisfortes—disseAmanda.—Comoissoépossível?—Temos forçasdesconhecidasdentrodenós,masnuncaasusamosporque

nãoprecisamosdelas,entãoquandoosmonstrossurgemànoite,sentimosmedoeelefazagenteusaressasforçasefazermoscoisasquenãosabíamosqueéramoscapazes.

—Medeixadormiraquiestanoite—pediuomenino.—Sóhoje.Nãoquerolutarcommonstros.

—Queroficarsozinha,Gus.Porfavor,volteparasuacama.— Você está chateada comigo? Toma, eu devolvo seu dinheiro.—O garoto

colocouumbolinhodenotasentreeles.Amandaolhouparaele,quisrirdacaradeassustadoearrependido.—Meperdoe—pediuogarotocomasduasmãosjuntas.—VocêaindaachaqueeumateiosgatinhosdaTereza?—Nãoachomaisisso,juro.—Quebom,Gus,porquenãofuieu.Nãotivenadaavercomaquilo.—Possoficar?—Pode,desdequenãotoquemaisnoassuntodosgatoscommaisninguém.Só

assimeuperdoovocê.—Tudobem.—Podeficarcomessedinheiro.—Sério?—Claro.Agora,mecontesobreoseusonho.—Nãofoiumsonho,foiumpesadelo.—Tábom,mecontesobreseupesadelo.—Euacordavaenãotinhaninguémemcasa,estavaescuroetinhaumvento

frioassobiandoláfora.Então,umcachorroenormederrubouaportaeeletinhaosolhos vermelhos como doismorangos.—Amanda quis rir com a comparação domenino,masconteve-se.—Eleveio latindoatrásdemimpelaescadaeeucorri.Meacordeiassustadoevimpararaqui.

—Porquenãofoiproquartodamamãe?—Eufui,masestavatrancadonachave.Vocêpodeacenderaluz?—Dejeitonenhum,Gus.Ninguémvainosfazermalaqui.—Tudobem.Voutentardormir.OcelulardeAmandavibrou,elaopegoudamesinhadecabeceiraeviuque

tinhaumamensagem.Dizia:SUALISTAESTÁSUSPENSA,TEMPORARIAMENTE,DEVIDOÀSUAGRAVIDEZ!

Umaondadealíviorodopiounoseuestômago.EladesligouotelefoneevoltouaatençãoparaGustavo.

—Espere,nãoolheparaolado.—Amandasegurounamãodoirmão.—Eleestáaqui,estouvendoosolhosdele—falou,numsussurroudearrepiar.

Omeninoseencolheucommedo.—Mentirasua.—Meabraçaenãoolhaparatrás.Vamosficarquietosparaeleirembora.O garoto a abraçou forte, tão forte que Amanda sentiu seus ossos

espremerem,maseratudooqueprecisavanomomento,daqueleabraço.

CAPÍTULO45OCOMEÇODOFIM

Terezaestavadebruçadasobreamesa.Ocopoestavavazioeagarrafapela

metade.Elajáestavaexausta,aportadacozinhaabertaenelasurgiuafiguradeumhomemmalvestidoebarbudo.Eraoladrãoquecostumavapularomuro.EraThomasqueestavaali.

—Vocênãoébemvindoaqui—sussurrouamulher,quaseinaudívelefalandocompassadamente.

— Vamos, deixe de ser mal agradecida, eu sempre te trago presentes. —Thomasentrouepôssobreamesaassacolasquesegurava.Elecomeçouatiraralgumas garrafas de dentro. — Uísque da melhor qualidade, melhor que essaporcariaquevocêtoma.

Terezamudoudeposiçãoeficousentadadeformaereta.—Porquê?—Porque,oquê?—perguntouThomasenquantoabriaagarrafa.Tereza soltou um meio sorriso amargo. Ela estava se sentindo tonta e

sonolenta.Thomasencheuocopodelaepegououtronapiaeoencheuparasi.—Porquevoltou?—Porquehojeéumdiaespecial.Vimbrindarcomvocê.—Thomasrasgouo

pacote de gelo que trouxera nas sacolas e colocou algumas pedras dentro doscopos.

—Não,não...Nãoquerosaberporquevoltoudepoisdealgunsdias.Querosaberporquevoltoudepoisdetantosanos.Ouviboatosdequeestavamorto.Vejoquenãopassavamdementiras.

Setivessemeajudado,Thomaspensou.Setivessemeajudado.Se tivesseme ajudado, desgraçada. Tudo teria sido tão diferente. Eu nem

teriapartido.Mas ele não falou nada disso, a encarou sério e terminou de preparar a

bebida.—Tome,vamosbrindar.—Brindaraquê?Aomeu fracasso?Épra issoqueveio?—Terezapegouo

copodamãodeleedeuumgrandegolelargando-osobreamesacomviolência.—Não precisava desse disfarce. Eu reconheceria você com ou sem essas lentesridículas.

Thomasbebeuumpoucodouísqueeficouaencarando.Apósalgunsinstantes,disse:

—Naverdade,odisfarcenãoéparameesconderdevocê,masparaquenãosejareconhecidonasruas.

—Não tenteseresperto—disse,gargalhando.—Vocêachouqueeunãooreconheceria.Vocêpodesujarorostodelama,colorirseusolhosdacordoarco-

íris,masnuncavaimudarseusemblante,nemasuaalma.Euaprendigaroto,nasruasquemaispareciamo inferno, aenxergaraspessoaspelaenergiadelas.Eusintoavibraçãodecadapalavraquevocêprofereeimediatamenteeureconheçosuavozcomosendodaquelegarotinhodocequemeufilhoadorava.—OsolhosdeTerezaencheram-sedelágrimas.—Sóqueagoraelaestácarregadadeamargura.

— Bom, se quer saber mesmo porque eu voltei, digo apenas que foi pararesolver algumas coisas que ficaram pendentes. Uma coisa que me impede deseguiremfrenteeviveraminhavida.—Elefalavacomfúria.Terezaobservavaseusdentesparecendopresasdeumanimalferoz.

Ela não fazia ideia das razões pelas quais o garoto retornara, nem muitomenos que ele tinha algo a ver com as mortes de seus animais. Tudo o quelembravaeraqueomeninosentiaraivadela, raivaporela terperdidoomelhoramigodele.

—Qual é? Alguma coisa comigo ainda?Me fez atacar a garota para que aSarahme odeie? Foi isso?— Tereza levantou-se furiosa.— Eu sei que vocêmeodeia, ainda lembro das suas palavrasme acusando de ter perdidomeu garoto.Masvocêeraumfedelhoidiotaquenãosabiadenada,entãoeurelevei,acheiquefossebirra,queiapassar.Masagoraolhopravocêevejoqueaindameculpa.

—Aculposim,porquevocênãopodiaterdeixadoomeninosozinhoprasubirnumamalditaárvoreatrásdeummalditogatoderua.

—Elemepediu—berrouTerezaemresposta.Elaempurrouacadeiraquecaiudelado.—Eunãotiveculpa,quandodesci,elenãoestavamaislá.Eupasseiavida inteiraprocurandomeumeninoeagoramevemvocêpra torcera facaquetenhocravadanopeito.Vaiemboradaqui.—Elaesticouobraçoapontandoodedoparaaportadacozinhaporondeeleentrou.—Nãomeinteressaoqueveiofazeraqui.

—Eu-também-o-procurei.Cacete!—Thomasfaloupalavraporpalavraedeuum murro na mesa quando terminou. Ele levantou-se e agarrou Tereza peloscabelos,encostou-anaparedeecontinuoufalandobempróximodela.—Maseufizmelhor doque você.Nãome tornei umdrogado, nemacabei comaminha vida.Olhe só para você!—Thomas fez cara de nojo.—Nãopensou em como ele sesentiriavendoamãedeleassim?Derrotada!

—Porqueseimportatanto?—Terezaoempurrouesaiudepertodele.—PorqueeuesperavaqueoNicpudesse ter amãedelede volta—gritou

Thomas.—Nãoumaloucafeitovocê.Thomassentiaraivaedesprezo,apesardaquelamulherseramãedomenino

que foi seu amigo na infância, ele a odiava por ter sucumbido à dor e setransformadonaquelamulher.Eaodiavatambémporqueelegritouporajudaesótinhaelaali,nomeiodafloresta,masjáestavaentregueàloucuraefugiucomoumanimalselvagem.

Terezaparouuminstanteeficourepetindoaspalavrasdeleemsuamente.QueoNicpudesseteramãedeledevolta.—Vocênemsabeseeleestávivo—disseela.—Eu sei.Sei oqueaconteceucomele.Depoisdemuitosanos coloqueium

exércitodedetetivesparaentenderoqueaconteceunaqueledia.Nãosabecomo

foidifícil,maselesdescobriram.—Émentirasua.—Eunãoperderiameutempovindoaquitecontarmentiras.—Thomastirou

umpacotedobolsodocasacodemendigoqueusavae jogou-osobreamesa.—Estátudoaí,ainvestigaçãocompletaeoendereçodele.Temtambémoendereçodapessoaqueo rouboudevocêeo vendeu.Ahistóriaé longa,maseleacabousendoadotadoeviveuquaseavidainteiranoMéxicoevoltoupracáhápoucomaisdetrêsanos.

TerezaolhavaparaapastaemcimadamesaenquantoThomasfalava.Avidadoseufilhoestavatodaalinaquelespapéis,vinteecincoanosperdidos.Agoraelasentiamedo,poiscomoelereagiriaaovê-la?Seráqueaindalembravadela?Seráquesentiriavergonhaaovernoqueelasetransformou?Provavelmenteeleteriasua própria vida, talvez uma esposa e filhos. Onde ela se encaixaria? Em lugaralgum,nãohaviamaislugarparaelanavidadofilho.Maspassaraavidainteiraparanofimdesuajornadachegaraessaconclusão?

—Façaoquevocêquiser.Eufizaminhaparte,agorafaçaasua.Thomas saiu por onde entrou. Tereza olhava para aqueles papéis sobre a

mesa, ela tevemedo de chegar perto. Após alguns instantes, levantou a cadeirajogadanochãoesentou-se,puxouopacoteparasietirouodossiêcompletosobreseufilho.Odocumentoestavaencadernado,elacomeçouafolhearelerosrelatos.Nas primeiras páginas havia recortes de jornais com notícias da época dodesaparecimento, ela releu um depoimento que dera na época e suas lágrimascomeçarama cair.Viuuma fotografia sua emumpedaçode jornal e pensouemcomoerabonita,emcomopoderiatersetornadoumamulhermelhordoqueerasenãotivessedeixadoqueadoradestruísse.

Perderofilhodaquelaformafoidemais.Comoseperdeumfilhonumpiscardeolhosemplena luzdodia?Eaquelemaridoqueela tinhanemficoudoseu lado,nemlhedeuforças.ElaleuumdepoimentoqueeledeudizendoqueaTerezafoiaculpada,quenãocuidoubemdofilhodeles.Aoleraquelaspalavraslembrou-sedabofetadaquerecebeunodiadodesparecimento.Desgraçado.Porquenãoaajudouaprocurá-lo?Porqueaabandonoudiasdepois?

Elafolheouaspáginaseencontroualgumasfotografiasdeumhomem,entãoficouencantada,passouosdedosnaimagem,acariciandoorostodele.Elaleuumtextoabaixoquecontinhaumresumosobreavidadeleedescobriuqueogarotohaviasetornadomédico.

Depoisdemuitosanos,lágrimasdealegriavoltaramainundarseurostoeelasorriudeumaformaquenemlembravamaiscomoerasorrir.Ashoraspassarameelaentroupelanoitelendoosrelatos.Descobriuqueofilhotornou-semédicoaosvinteecincoanosevoltaraaoBrasilhátrêsanoscomodisseraThomas.Alitinhaoendereçodohospitalnoqualestavatrabalhando.

O quemais a deixou chocada foi o relato daquele dia contado pelo própriosequestrador,segundoodossiê.Aquiloadesmanchouetiroudoseupeitoqualquerresquíciodecompaixãoqueaindapudesseterpelomalditoquelevouseugarotodesi. Para o menino, Tereza estava morta. Além de ter sido vendido, fizeram-noacreditar que seus pais haviammorrido. Ela se perguntou que tipo de lavagem

cerebral fizeramno seu filho, na dor que ele passou até aceitar e em como eleviveutodosessesanos.Aparentementeeletinhaumavidafeliz,eraummédiconoaugedacarreira.Alinãotinhadetalhesdavidapessoal,setinhafilhosouseeracasado.

Umaúnicacoisaadeixoufeliz,eleaindasechamavaNicholas.Ojovemmédiconãosabiaqueseuspaisestavamvivos.Osdoisaindaestavamvivos,oqueeraumainjustiçaparaTereza.

Tereza começou a espalhar a gasolina pela cozinha. Junto com o líquido

inflamável, caíam no chão suas lágrimas. As lembranças de sua vida felizqueimariam junto com aquela casa. Ela não queria mais sofrer. Passou a vidainteiraprocurandopelomeninoeerahoradeparar,aceitarqueelenãofaziamaispartedesuavida.Seaquilotudofosseverdade,seriaumhomemfeitoenenhumhomemgostariadeterumamãecomoela,umaloucadrogadaedestruída.

FizeramalàSaraheestavaenvergonhadaporquaseterenforcadoAmanda.SaraheramãeeseTerezatinhaumavidadesgraçadaagoraeraporqueforamãeumdiaeperderaseubemmaisprecioso.ElaestavacegaquandofezoquefezcomAmanda.QuandoviuodesesperodeSarahcorrendopelo jardimpercebeuadorquehaviacausadoàúnicamulherqueaindaacreditavanela,aqueatiroudaruaelhedeuesperançasdeumavidamelhor,longedosperigosquecorria.Sarahestavasendogrataaelapelopassado,quandoTerezalheajudounomomentomaisdifícilquefoiquandoamãeestavaprestesamorrer.

Ogalãodegasolina jáestavanametadequandoela jogavasobreosofá,asparedesestavammolhadas,opiso,osmóveis,tudovirariapó.

Ela sedesmanchavapordentro, seu coraçãoderretia comoumavela sendoqueimada; suas pernas estavam fracas e o nó na garganta desatou; ela caiu dejoelhos e soluçou comouma criança; sentiu-se sozinha como se omundo tivesseacabadoefosseobrigadaaprocurarabrigo.

Depoisdochoro, levantouacabeçaeentendeuqueahorahaviachegado.Ahoradeseguiremfrenteefazercomomuitosfaziam.Elajuntouosrestosdoseucoração e seguiu com eles na mão, apertou-os tão forte que sentiu o sangueescorrerentreosdedos.

Mas antes de partir, riscou um fósforo. As chamas começaram no chão esubiram lambendo as paredes, em segundos o fogo tomou conta da casa. Elacaminhou devagar pelo jardim, parou e colheu uma rosa. Quando passou peloportãodemadeira,viuoreflexodeumclarãoseformar.Haviadeixadoogásligadoeaexplosãodestruiupartedasuacasa,erguendoumaboladefogoquesedissipounocéu.

Ela queria que junto tivessem ido embora suas memórias, mas foi inútil. E

tambémerainútilpensarnissoagora.Tereza caminhoupelas ruasnamadrugada fria.Ouviu a sirenedo corpode

bombeirosseaproximandodasuacasa,ouviualgunsgritos,ouviuoutrossons,masnãoolhouparatrás.Apenasseguiucomaquelepacotedebaixodobraçoemdireçãoàprimeiraparada.

CAPÍTULO46OSEGREDODEEDGAR

GabrieldeixouFelicityemcasa,elessedespediramcomumbeijonorosto.Já

estava completamente escuro. Ele não voltaria para casa, não naquela hora.Precisavadevolverocarro.

Felicitysubiuparaoquartoesejogounacama.Ficoulásemvontadealgumade comer. Ela adormeceu e não soube quanto tempo passou até que sua mãeentrou.

—Meubem,acorde.Felicitysentiuamãodelasobreseusbraços.—Querodormir—eladisse,aindadeolhosfechados.—Mamãefalouquevocênemquisdescerparacomer—disseChristine—O

queaconteceu?—Eudissepravovóquecomeriamais tarde.Nãoestoucom fome, só isso.

Sabecomoelasepreocupacomesselancedecomida.Christinesentiunaspalavrasdelaumatristezaprofunda.Seucoraçãodemãe

seapertou.Elasentounacamaepuxousuafilhaparaseusbraços.—Lancedecomida?Éassimquesefala?Osgêmeosestãocomavovó,nãovai

querervê-los?—Felicitysempreseanimavaquandoestavapertodosdoisirmãos.Elaatésentiuvontadedepegá-losnocolo,masnaquelemomentoqueriaficaralicomamãedela.

—Estoucansadaparabrincarcomeles.—Por que está tão triste?Oque fez do seu dia?—Christine beijou a testa

dela.—Falepramamãe.Estouaqui.—Elenãomedeixaempaz—elarespondeusoltandoumapalavradecada

vez.—Eleaindameimpededeviverempaz.Todavezqueumgarotoseinteressapormim,eumelembrodeleenãoconsigoserumagarotanormal.

Christine sentiu todos os seus órgãos congelarem e virarem brasas de umsegundoparaoutro.Ogeloerapeladordasuafilhaeasbrasasqueimavamcomooódiodentrodesi.Elepodiavoltardoinfernoondeestavaquantasvezesquisesse,elaomatariadenovo.

ElaqueriadizerparaqueFelicitynãopensassemaisemFernando,sóquejáhavia dito isso várias vezes. Implorou que a menina seguisse em frente, deuexemplosdesuperação,maselasabiaquenãoexistiaummeioderetirarmemóriasdesagradáveis da mente de alguém, elas permanecerão lá, a vida toda,principalmente se forem ruins. Então decidiu abraçar forte sua menina, porquetinhapalavrasdurasparaelaouvir.

— Você nunca vai esquecê-lo, nem um dia sequer de sua vida. Ele sempreestarálánumcantoescondidodasuamente,esperandoquevocêdeixeumabrechaparaelepassar.Equantomaisvocêdeixarespaço,maiselevaiteassombrar.Vaipermearseussonhos,seussentimentos,vaiseimpregnarnasuavidaeteimpedir

defazercoisasqueasgarotasfazem.Masvocêpodeescolhersevaideixá-locomoexpectador,assistindosuavidadarcerto,vendovocêserfelizoupodepermitirqueele participe e destrua tudo o que você construir. Só depende de você, demaisninguém.

—Nãoseioquefazerparavencê-lo.—Apenasfaçaaquiloquevocêquerfazereeleimpedequevocêfaça.—Marqueiumencontrocomumamigodaescolaeodeixeiplantado,nãotive

coragemdesaircomele,porqueeusópensavanaqueledesgraçado.—Possosaberquegarotoéesseeondefoiesseencontro?—ORaphael.Eoencontroserianumcafé,maseunãotivecoragemdeentrar

lá,deixeielesozinho.—Ah,oRaphaeléumbomgaroto,conheçoospaisdele.Achoquenãomerecia

terficadoplantado.—Nãome julgue também, por favor. Já basta a Amanda e a Rebeca. Tem

tambémaescolatodamepressionandoparaqueeubeijealguém,issoéridículo.—Émesmoridículo,sequiserfalocomoDanielparaqueelesparem.—Ah,não,porfavor.Vaiserpior,deixequeeumevirosozinha.Christinecontinuavacomelaabraçada,nocolo.Felicityaindaestavatristeporcontadalista.Ficouseperguntandooquesua

mãe diria se soubesse que ela narrou a cena do crime em um diário e não odestruiu.

ChristinebeijouatestadeFelicitynovamente.—Avovó fezumasopadeliciosa.Vamosdesceremeajudaraalimentaros

gêmeos.Amãe damenina puxou a coberta de cima dela. Felicity sentiu-se bem por

estaralicomela,comoapoioquesempreteve.Entãodecidiu levantaredesceuparatomarsopa.Elasedivertiualimentandoseusirmãospequenos,doismeninosiguaizinhosnaaparênciaenaroupinhaazul.Elesselambuzaramtodos,gritaramcoisasqueelanãoconseguiaentender.Felicityfezaviãozinhoeosenganavadeumparaooutro,elesriamquandoacolherdesviavadeles.

Ela ajudou a colocá-los para dormir. Christine saiu com o marido para umeventoeosdeixouaoscuidadosdaavó.

Felicityjáestavadormindoquandoocelularcomeçouavibrar.Quandoabriuos olhos viu um número desconhecido. Ela rejeitou a ligação e fechou os olhosnovamente,masotelefonevoltouatocar,entãoelaatendeu.

—Alô?—disse,comavozfraca.—Cabelodefogo?Aquelafrasepronunciadaporaquelavozadespertou.—Como?Quemestáfalando?—Elasentou-senacama.—Edgar.Nãolembramaisdemim?Seeletivessedadomaistempoelaterialembrado.—Sim, lembro.O homemqueme ajudou no incêndio.Mas como conseguiu

meunúmero?—Tenhoalgunsdadosseusedeseusamigos.—Felicityficouemsilêncioeele

continuoufalando.—Escute,vousubiratésuajanela,seimporta?

—Éclaroqueme importo—disseFelicity,desúbito.Elanão iaquererumestranhopenduradonasuajanela.—Nemtenteissoougritoporsocorro.

—Bom,eujáteligueipraimpedirquevocêgrite.Jáestouaquiembaixo,ésópermitirqueeusuba.Tenhoatéumaescada.

Felicitylevantou-sedacamaefoiatéajanela.Elaviupelovidroohomemláembaixo,tododepreto.Eleacenoucomamãoparaela.

— Vamos, não seja medrosa, não vou te fazer mal. Preciso falar com vocêsobresualista.

—Nãoquerofalarsobreisso.Nãoéhora.Ecomovocêpassoupelacerca?—Tenhomeusmétodos,issonãoimportaagora.—Senãoforembora,vouchamarapolícia.Enuncamaismechamedecabelo

defogo.Eladesligou.Lá embaixo, Edgar sorriu e começou a subir pela escada. Ele deu umas

batidas na janela. Felicity já estava deitada novamente e ficou ouvindo por umtempoatéqueseirritoucomainsistênciadeleefoiatélá.

— Vai embora— disse, baixinho. Do outro lado Edgar não ouviu bem,masconseguiuentenderoqueelafalava.

—Porfavor,vaiserrápido.Estáfrioaquifora.Felicity abriu a janela. Edgar viu apenas uma parte dela. Ele viu seu olho

direitoepercebeuqueelahaviachorado.—Nãotentenada,senãoteempurroescadaabaixo.—Calma,nãovoutentarnada.Vocêestábem?—Estoubem.Medigaoquequereváembora,nãoqueroquealguémveja

vocêaqui.—Achodifícilalguémvercomaquelaárvorequaseescondendosuacasa.Bom,

querofalarsobresuapróximainstrução.Felicitysentiuoventofriotocarsuapele.—Sobreoqueexatamentevocêquersaber?—Naminhalistadizquetenhodeajudá-la.—Nãoprecisasepreocuparcomigo,seimevirarsozinha.—Senãoaceitarminhaajuda,nãocumprominhalistaenãotereioquequero.

Émelhordeixardebancaraduronaecombinarlogo.—Tábom,tábom.Achoquevoumesmoprecisardevocê.—Prometoquenãovoudeixarnadateacontecer—disseEdgar.Agoraelea

viaquase inteira,oespaçoaberto ficoubemmaior semqueFelicitypercebesse.Ele notou que o pijama que ela vestia era cheio de desenhos dos ursinhoscarinhosos.

Dealguma formaaspalavrasdeEdgardeixavamFelicity segura, sentiaquenãoestavasozinha.Eracomoseelefosseseuanjodaguarda.

Ameninadesviouoolharparaocéueviualuatãobonitacomonuncatinhavistoantes,elaestavaamarelada,comosetivessemjogadomelsobreela.DepoisolhouparaEdgaralitãopróximo,observouoslábiosdeleesentiuvontadedebeijá-lo.Ocenárioestavaperfeitoeelapoderiaaproveitaraquelemomentoparaacabardevezcomseumedo.Mascomoelafariaaquilo?Pediriapermissãopraeledeixar?

Esperariaqueeleabeijasseprimeiro?Seele tentasse, talvezpermitisse, ficariaparadaedeixariaqueeleguiasseseuslábios.

—Estáfrio,precisairembora—disseagarota.—Tudobem,masprecisoquemedigaquandovaiassaltaraquelaloja.Ameninaestremeceu.—Nãovaiserumassalto—disseela.—Éapenasumfurto,semqueninguém

veja.Vouprecisarquevocêmeajudeafugir,casoalgodêerrado.Nãoseiquandovaiserainda,temalgunsdetalhesqueprecisovercomoGabriel.Maseuteaviso,possoteligarnessenúmero?

—Podesim.Vouficaresperando.—Eleaproximou-semaisdela.—Nãotenhamedo.—Felicitysentiuoarquentesaindodabocadele.

Agoraelanãosabiasepodiaseaproximarmaisumpoucotambém,ouseeratudocomele.Asondaselétricascomeçaramasubirporsuaspernas,asensaçãoaestavadeixandofraca.

— Obrigada por tudo o que fez. — Ela afastou-se dele. — Não teriaconseguidosairdaflorestasozinha.

Edgarabriuumsorrisogrande,piscouoolhopraelaecomeçouadesceraescada.

—Espera—elapediu.Edgarsubiuodegraudevolta.—Mecontacomotudocomeçou.Eravocênaquelecarro?Edgarlembrou-sedodiaemqueentregouoconviteparaojantaràFelicity.—Vocêdiznoepisódiodacoruja?—Sim.Fiqueimuitoassustadaaqueledia.Acheiquefosseseratropelada.—Eraeusim,masestavaapenasseguindoas instruções.Nãoiapassarpor

cimadevocê.—Edgarsentiu-seincomodadocomaperguntadela.—Porqueumacoruja?—Nãosei,vaiverquemestáportrásdissoéfãdoHarryPotter.—Eleriu.—

Estavanaminhalista,tinhaqueserdaquelejeito.Naquelemesmodiaentregueioconvitedasuaamiga.Coloqueiemumadassacolaseelanempercebeu.Elaémeiotonta.

—Nãofaleassimdela.Edgarriu.—DepoisdeixeiodoGabrielnocarrodoamigodele.—Vocêqueorganizoutodoaquelejantar?—Não.Apenasmeprepareiparaapresentaraqueleprograma.Estava tudo

prontonacasa,tudocombinadocomospoliciais.—Ah,aquelesidiotaserampoliciaismesmo.—Elaficouirritadaaoselembrar

deles.—Sim,sim.Foitudocombinado,eleslevariamvocêsàdelegaciadequalquer

forma.Rolouqueseuamigoacaboumanchandoacamisadesangue,queeradeboi—Edgarriu.—Entãoinventamosaquelahistóriadeelesestaremperseguindoumsuspeito. A carne que você comeu não era de coruja, estava com o saboradulterado.

— Como você soube disso tudo? Como souberam que a Amanda estava

grávida?—Elescontaramdetalhesdepois.Naépocaeuri.Mashoje,lembrando...eu

não riria sepudessevoltaratrás.Eeu recebi relatórios sobrevocês todos.Nasinformações sobre sua amiga, dizia que ela estava com um comportamentoestranho, andou fazendo umas pesquisas na internet sobre atrasosmenstruais etestes de gravidez. Era apenas uma suspeita, o cara da lista não tinha certeza,entãobolouaquiloprasabersetavaounãoetirá-ladalistasefosseocaso.

—Então,estamossendovigiadosotempotodo.Detodasasformas.EQuerdizerqueaAmandavaificarlivredalista?

—Sim,elaficarálivre.Felicitysentiu-sealiviada.—Ecomofoiquetudocomeçoucomvocê?—Euestavanoquintaldaminhacasaconsertandoumacadeira,entãoolhei

paraocéueviumobjetovoador,comoaquelequevocêviu.Veioseaproximandoepousounochão.Acheiquefosseexplodir.—Elesoltouumriso.—Vioqueeraetinhaumacâmerapresaaelejuntocomumcelular.Entãooaparelhotocoueeuatendi.Umavozestranha,modificadaemcomputador,comonosfilmes,começouafalar.Acheiestranhoporquesabiameunomeedecoisas...

EleficouemsilêncioeFelicitypercebeuqueestavaimersoemlembranças.—Quecoisas?—elaperguntou.—Coisasquenãoimagineiqueelesoubesse.Meprometeualgoqueeuqueria

muitoseoajudassenoplanomisteriosoqueeletinha.Nãomedeudetalhes,maseudisse que aceitava, sempensar. Então, passei a receber as primeiras instruçõesquefoientregarosconvites.

—Eoqueeleprometeudetãoimportante?—Umnome.Poralgumarazãodesconhecida,Felicityficouarrepiadacomarespostadele.AspalavrasdeEdgarsoaramtãofriasqueseriamcapazesdecongelaroar.—Umnome?—perguntouFelicity,confusacomarespostadele.—Nãoumnomequalquer,masonomedomalditoassassinodomeupai.Entãoelaviuaquelesolhosserenossetransformarememódioefogo.—Eu...eu...eunãoseioquedizer.Nãosabiaquevocêtinhaperdidoseupai.—Nãodiga nada, nem se assuste comigo—pediu, suavizando a névoaque

pairavasobreele.—Oquepretendefazerquandodescobrir?—Senãoomatar,fareicomqueelesearrependaprorestodavidaporter

matadomeupai.Edgarnãoqueriaassustá-la,masnãopodiaseguraraspalavrasqueestavam

presasemsuagarganta,nemoódioquecrescianocoração.—Então,étudoporvingança?Tudooquevocêfaz?Edgaraencarou,confuso.—Éoquememove—elefalou.—Maseuteajudariadequalquerforma,seé

nissoquepensou.—Não,eunãopenseinadadisso.Sóacheiquepudesseserpordinheiro,por

algumarecompensa,ouqualquercoisamaisnobrequevingança.

—Ponha-senomeulugar,sefosseseupai?Nãoeramuitodifícil secolocarno lugardele.Avingançapermeousuavida

desde que aquele homem roubou um pedaço de si. Ela tinha dificuldade paraaceitarquedesejouqueFernandomorresse,masessaeraaverdade.EquandosuamãeomatouelasósentiumedoqueChristinefossepararnacadeia,nadamaisqueisso.

—Vocêjáquebroualgumobjetodevidropradescarregarsuaraiva?—Serveumagarrafadevinho?—Serve.Então,assiméavingança,umadescargadesuaraiva,masquando

vocêvailimpartodaasujeira,sempreficamcacosdevidroescondidosquecedooutardeacabamtemachucando.

Ela pensava em suamãe quematou um homem, parte por legítima defesa,parte por vingança. E Felicity também se sentiu vingada,mas a lista acabou setransformandonoseucacodevidroqueficaraescondido.

—Levareiissoemconsideração.Precisoir.—Tudobem,atébreve.—Elasorriucomdoçura.Ele desceu a escada, estava indo embora. Felicity sentiu que perdeu uma

chancedepoderdarumbeijonele,seuprimeirobeijopoderiatersidoàluzdoluar.Masohomemqueestavapartindonãoeraomesmoquebateraemsuajanela,oqueestavaindoemboratinhaumaalmaaindamaisobscuradoqueelaimaginou.

Felicitysedespediucomumacenoefechouajanela.Elavoltouparaacama.EapósoinstantequetevecomEdgar,sentiu-se,estranhamente,melhor.

CAPÍTULO47APRIMEIRAPARADA

Depoisdemuitoandar,Terezachegounaquelebairroqueprocurava.Olocal

erapobre,oesgotocorriaacéuaberto,ascasasforamconstruídassemnenhumplanejamento. Alguns bares ainda estavam abertos naquela madrugada, elaaproveitouparaperguntaronde ficavaoendereçoque tinhaanotado.Ficou felizporsaberqueohomemmoravaali,quecertamentetambémestavanamerda,peloqueouviudaspessoasaoperguntarporele.

Logo, estava diante daquele barraco que não podia ser chamado de casa.Bateufortenaporta,ninguémabriu.Bateumaisforte,ninguémabriu.Naterceiravezelagritou:César,seguidodebatidas.

Césareraomalditoquelevaraseufilho.Eraomalditoex-marido.Comoumpaipoderoubaroprópriofilhoevendê-loaestranhos?Terezanão

conseguiaentender,mastambémeratardepra isso,sóoque importavaeraqueainda dava tempo fazê-lo pagar. Ela leu naqueles documentos que os detetives,depoisdemuitainvestigação,chegaramaCésareopróprioconfessoutudooquefez,disseraquevendeuofilhoporquetinhacertezadequeelenãoeraopai,queTerezaohaviatraído.

Atraiçãodefatoaconteceu,masTerezanãoachouqueelesoubesse.Acrisenocasamentofoisuperadaeeladecidiuvivercomomaridonaépoca,ficougrávidalogoemseguida.Oamanteaindaaprocurouporquequeria saber seo filho eradele,maselagarantiuquenão.

Césareraopai.AluzacendeudentrodaquelacasaeTerezaouviuohomemberrar.—Quemdiabosestábatendonaminhaportaumahoradessas?—César,éumavelhaamiga—sussurrouTereza,comorostocoladonaporta

dele.Eleabriu.Terezaoviu,eletambémestavaenvelhecido.Oscabelosbrancos,umabarba

malfeita,umalevebarriga.Tambémestavaacabado.Elaentrourápidoantesqueelefechasseaporta.

—Oh,suavelhadoida.Quemévocêpraentraraquidessaforma?Vaiembora,vamos,vamos.—Eleabanouamãoindicandoqueseretirasse.

—Nãome reconhece?— ela perguntou, analisando cada detalhe do corpodele.—Vocêtambémmudoumuito.

Ohomemencarouaqueleolharvazioefaminto.—Vai embora sua louca.—César a agarrou pelo braço e arrastou-a até a

porta,mashesitouquandoaouviucomeçarafalar.—Tereza seumerda, sua ex-esposa— ela vociferou.—Nãome reconhece

mais?Ele a soltou e ficou olhando-a intrigado, tentando achar alguma semelhança

entre a jovemmulher que conheceu um dia e aquelamulher que se encontravadiantedele.

—Cacete,évocêmesma.Penseiqueestivessemorta.—Nãosónãomorri,comoestoubemaquinasuafrente.Elefechouaportaedirigiu-seàcama.Olocaleraapenasumcômododividido

entreoquartoeasala.Haviaumapiaeumfogãovelho,eumaportaqueeradobanheiro.Terezaolhouemvolta.

— Fico feliz que esteja na lama. Que viva sozinho aqui. Seu filho saiu tãobaratoouvocênãosoubeadministrarodinheiro?

Aexpressãodelasetransformouemfúriaeódio.—Comoé?—Nãosefaçadeburro—vociferou.—Vocêvendeunossomenino.— Aquele garoto não era meu filho — disse, alterando o tom da voz. Ele

levantou-se e ficou de frente para a mulher. — Você me traiu. O idiota do seuamantemecontoutudo,insistiuqueomeninoeradele.

—Nãodavaodireitodevocêroubá-lodemim.—Osolhosdelalacrimejaramequeimaramcomobrasas.—Vocêacaboucomaminhavida.

—Vocêsedestruiusozinha.—Eleaolhoucomdesprezo.—Comoconseguiudescobrir?Porondeandouessetempotodo?

—Peloinferno.—Entãovolteparaoinfernodeondeveio.—Césaravançoupracimadelae

agarrou-apelocabelo,puxando-acomviolênciaemdireçãoàporta.Terezaabaixou-se,tentouesquivar-seesoltougritos.—Mesolte,desgraçado.Quando César abriu a porta, ainda agarrado aos cabelos dela com a outra

mão,sentiuumgolpeemsuabarriga.Algooperfurou.Tereza tinha um punhal escondido no bolso interno do casaco que usava,

enquantoestavasendoarrastadaelaconseguiupegá-loeenfiarnoestômagodelecomforça.Elegritoudedor.

—Maldita—disseele.Terezatorceuopunhaleeleagarrounopescoçodela,caindoporcima.Tereza

estavanochãocomCésarasufocando.Elapuxoua lâminaedeuumaeoutraemaisoutraatésentirqueeleperdiaasforças.

O sangue escorreu pelasmãos dela. Conseguiu jogá-lo de lado. Ele tentavarespirarcomdificuldade.Terezatossiu,aproximou-sedoouvidodeleecomeçouafalar.

—Antesdemorrer,saibaqueaquelemeninoeraseufilho,naverdadeaindaé.Estávivoesetornouumhomemmuitodiferentedevocê.Eleagoraédoutor.Decerta forma, foi graças a você que o vendeu para uma família rica. Mas nóspodíamos ter feito isso por ele, porra. Podíamos estar orgulhosos por tertransformado nosso menino num doutor, podíamos ser uma família, mas vocêroubou isso de mim. — Tereza chorava e o homem ainda gemia com os olhosarregalados. O sangue já formava uma poça.—Você nunca vai vê-lo, nunca vai

sabercomoeleébonito.—Certasvidas—disseelecomdificuldade.—Nãovalemapena...—Elefez

forçaparamanteravozfirmeparaqueelapudesseentender.Queriaferi-lacommurrosoupegarumafacaeriscaracaradela,masnomomentotudooquetinhaeramsuaspalavrasquepodiamcortartãobemquantoaquelepunhal.—Olheparavocê. Lutou tanto, todos esses anos pra se tornar uma velha drogada, feia,acabada. — Soltou um riso fraco. — E louca. Acha que ele vai te aceitar? Ummédicocomumamãe...Ass..assa..sina—murmuroucomdificuldade.—Foitudoemvão.Você..matou...opaidele...nuncavaiperdoá-la.

— Vai pro inferno — Tereza sussurrou e novamente cravou o punhal noestômagodele,contorcendo-oaténotarque,finalmente,estavamorto.

CAPÍTULO48ESMERALDA

Edgarestavasentadoàumamesadeumbar.DepoisquedeixouFelicity,sentiu

uma vontade de beber algo forte. Tocar naquele assunto do pai o deixouperturbado.

Acadeiraerarevestidaporumcourovermelhoebemacolchoada.Eleestavacom a perna direita estirada, recostado. Seus pensamentos vagavam entre opassadoeopresente.Lembravadopai,dequandoeleestavavivoetambémdodiaem que morreu. Se perguntava o que faria com o assassino quando o pegasse,afinal,omisteriososujeitoportrásdapropostalhegarantiuqueeleestavavivoebempertodele.

Edgartinhavontadedematá-lodamesmaformaqueooutrofezcomoseupai.Mastalvezamortenãofossesuficiente.Elenãosabiacomosesentiriadepois.Naverdade,nempensavanisso,sópensavaempôrasmãosnele.

Obarestavaagitado,garçonsandavamdeumladoparaoutro.Conversaserisadassemisturavamcomossonsdacidadenoturna.

Abebidadesceuquenteegelada.Edgarpousouocoposobreamesacausandobarulho.Elepediuoutradose.Eminstantesseucopoestavacheio.

Uma garota magra passou em direção ao banheiro e lhe lançou um olharpenetrante.Ela tinhaoscabelospretoscortadosnaalturadoombroeusavaumbatomvermelho.Aimagemdelaofezseendireitarnacadeira.Algonaquelagarotao fez lembrardeFelicity, ameninaestavaali o tempo todono turbilhãode seuspensamentos,masaquelagarotatransformoutodososoutrosemfumaçaedeixouamentedeEdgarapenasparaFelicityeparaelatambém.

Todos os sentidos de Edgar se acenderam como um fósforo sendo riscado.Haviaumadiferençaentreelasduas,aqueladiantedesicairiaemseusbraçossemmuitoesforço,masFelicityeleteriadeconquistar,sentiualinaquelajanelaqueumbeijoseriamuitoparaela.Elequistantoentrarnaquelequartoebeijá-la,tocá-laemtodasaspartesdoseucorpo.

Edgar viu quando a garota saiu do banheiro e caminhou até o balcão. ElepercebeuqueFelicityjamaisseriacomoela,todainsinuanteeprovocante.Elenãotirouosolhosdaspernascompridasdamoça,seusolhosquasearrancaramasaia.Ela inclinou-separapediralgumacoisaaogarçom,depoisolhouderelanceparaEdgar.

Efoisuficienteparaqueeleselevantasseefosseatéela.Esperouqueelaonotasseedisse:

—Oigata.Ela o encarou com um sorriso largo. Edgar apoiou o cotovelo no balcão e

sentou-seemumbanco.—Estásozinha?—perguntouemseguida.—Sozinhanão,massemumacompanhiamasculinasim.

—Queótimo.—Edgarpôsseusorrisosafadonorosto.Ogarçomtrouxeabebidaqueelapediu.Agarotalevouocanudoàbocacom

osolhosvoltadosparaEdgar.Eleviucomoelatocouoslábiosnaquelecanudo,foideumjeitoqueeleosdesejouemumapartedeseucorpo.

—Uau—elefalou.—Oquefoi?—elaperguntou,curiosaesorridente.—Vocêélinda,sério.—Edgar,agoraolhavaparaodecotedamoça.—Ah,obrigada.Vocêébemgatotambém.—Elamexiaocanudonocopo.—Estácomamigas?—Ah,sim.Elasestão logoali.—Elaolhounadireçãode trêsmulheresem

umamesa.Umadelasdeuumtchauzinho.Edgaracenoudevolta.—Elasnãoseimportamseeuroubarvocêumpouquinhodelas?—Desdequemedevolvaintacta,nãotemproblemas.—Ótimo.—Edgaraproximou-sedelaetocousuacoxa.Elaesquivou-se.—Nãosejatãoapressado.—Elasegurouamãodele.Faloudeformadoce.Já

haviapercebidoqueeleestava levementealteradoporcontadoálcool.—Aindanemseiseunome.

—MechamoEdgar.Jápossotedarumbeijo?Elasorriuedisse:—MechamoEsmeralda,prazerEdgar.—Oprazerétodomeu,Esmeralda.—Elepronunciouonomedelacomose

tivesseexperimentandoumafrutamuitodoce.—Gosteidoseunome,Esmeralda.Éumnomeforte.

AjovemtinhaosolhosverdeseissoofezlembrarnovamentedeFelicity.Esmeralda voltou a sugar a bebida pelo canudo. Aqueles lábios, de novo,

mexeramcomoimagináriodeEdgar.—Nãofaçaisso.—Oque?—Ojeitocomovocêcolocanaboca.Seuslábios...mexemcomigo.—Edgar

coçouacabeça.Esmeraldariudele.—Tudo bem, não façomais.—Ela colocou o copo de lado.—Me fale um

poucodevocê.—Nãoestoumuitoafimdebaterpapo.—Eledisse,semsergrosso.—Tudobem,quermedevolverprasminhasamigas?—Ah,não.Querosairdaquicomvocê.Queroveroquevocêsabefazercom

esseslábios.—Uau,vocêémuitodireto.—Amigo,podeveracontapramim? Incluiabebidadela,por favor.—Ele

falouparaogarçom.Edgartirouacarteiradobolsoerecolheualgumasnotasedeixou-assobreobalcão.—Vemounãovem?—perguntouparaela.

A jovemolhouparaasamigaseelas fizeramgesto indicandoquedeveria ircomele.

—Vocênãoébandido,é?Edgarriu,aindamaischeiodedesejo.Eletiroualgodobolsodesuajaquetae

mostrou.Esmeraldaarregalouosolhosesedispôsair.Eleerapolicial,elaviuodistintivodele.Edgaroguardouecaminhouparafora

dobar.Esmeraldaacenouparaasamigasefoiatrásdele.Aruaestavailuminadapelobrilhodalua,haviacarrosnacalçada.Edgarouviu

ospassosdelavindologoatrás.Esmeraldaolhouparaocéu.—Estáumanoitelinda—eladisse.Edgarparouaoladodoseucarro.Destravouasportas.Elachegoupróximo

deleepousouamãosobreopeito.Eleaseguroupelacinturaeapuxouparajuntodesi,beijou-a,sedentoporaqueles lábios. ImaginouseosdeFelicityseriamtãoquentesquantoosdela.

—Vejoquealuacheiaestáfazendoumefeitoformidávelemvocê—elafalou.—Então,vamosprovardesseefeitoformidávelnaminhacasa.—Edgarabriu

aportaeEsmeraldaentrounocarro.Eledeuavoltaequandosentou-senobanco,passouasmãosnacoxadela,enquantoabeijavadenovo.

Edgarligouocarroedirigiupelasruas.ElatirouajaquetadeleeEdgarempurrouaportadoapartamentocomopé.

Eleacolocoucontraaportaeofegouemseupescoço.—Vocêémuitogostosa—sussurrounoouvindodamoça.—Estásentindoo

efeitodaluacheia?—Avozdelesoouroucaesussurrante.ElequeriaquefosseFelicityali,massabiaqueatéconseguirissodelademorariamuito.Aquelameninanãosaíadosseuspensamentos.

Esmeralda era alguns anosmais velha que Felicity, Edgar lhe daria vinte ecincoanos.

—Sinto—respondeu,comavozfraca.Logodepois,Edgarasoltou.Tirouacamisaeajogousobreosofá.Livrou-se

dossapatos.Ela tentava controlar sua respiração irregular, desabotoou seus saltos e viu

queEdgarestavasentadonosofá.Eleapoiouosbraçosnoencostoedisse:—Venhamemostraroquesabefazercomesseslábios.

CAPÍTULO49REENCONTRO

Todosessesanosnunca imaginouqueo sequestrador fosseoprópriopaido

menino,achouquealgumaquadrilhade tráficohumanotivesseraptadoseu filho.MasfoiopróprioCésar,omesmodesgraçadoquelhedeuumtapaporterperdidoofilhodeles.

Agora caía sobre ela o peso de um assassinato e isto a incomodava apenasquando lembrava do Nicholas, porque quando pensava em César, tinha maiscertezadequeomatarianovamentecasoeleressuscitasse.

Terezalimpoutodoosanguedoseucorponacasadoex-maridoepegouumcasacovelhodele.

ElaleunodossiêqueCésarpegouogarotonaqueledianoparqueeolevouparaumesconderijoemqueseuscomparsasficaramcomomenino.CésardisseaNicholas que estavam sendo perseguidos por bandidos perigosos que queriammataraeleeaTereza,dissequelogotrariaamãedeleparaqueficassemjuntosequenomomentoostrêsteriamdeficarseparadosparadespistarosbandidos.

Ogaroto ficou comuma velha senhora e umhomemmais jovempor algunsdias.Atéquenumabelatarde,Césarchegouaoesconderijochorando,abraçouogarotoedissequeosbandidoshaviammatadosuamãe.Omeninocaiunochoro,quisprocuraramamãe,dissequequeriavê-laeabraçá-la,masCésarfalouquenãoerapossível,nãopodiamsairdaliporquecorriamoriscodemorreremtambém;ogarotofalouqueaceitariamorrerparatersuamãedevolta.

— Eu vou papai, eu vou. Deixa eles mematarem pra eu ir pro céu com amamãe.—Omeninofalousoluçando,secandoaslágrimascomasmãos.

Na ocasião, a mulher que cuidava dele sentiu pena, ela estava num cantoobservando a cena que se passava numa cozinha de uma casinha velha. Por uminstanteelaquisdesistirdetudo,pegaraquelemeninoedevolvê-loàmãe,masoplano já estava traçado, o menino seria vendido a uma organização criminosadisfarçadadeorfanatoquevendiaascriançasparafamíliasinteressadas,tudosaíacomoumprocessodeadoçãolegal.

Césarnemsentiupena.Fingiuchorarumpoucoedepoispartiu.Foiaúltimavezqueomeninoviuseupai.

No dia seguinte, amulher recebeu a visita de um homem bem vestido, eleusava ternoegravata.Nicholasviuosdoisentrarememumquartoe ficarem láalgunsinstantes.Depois,amulhersaiuedissecomfriezaqueopaidomeninohaviamorrido. Ele se desesperou, esperneou gritando pelos pais, queria ir embora. Amulherdissequeeleiriaemboracomaquelehomemquevierabuscá-lo,dissequeeleseriafeliz,terianovospaisequeseacostumassecomaquilo.

Masopequenino sedesmanchavapordentro,nãoaceitavaqueosbandidostivessemmatadoseuspais.

Terezachegouaohospitalnaquelamadrugadafria.Algumaspessoasdormiam

embancosdesconfortáveis.Elaexaminouosrostosquecirculavampelarecepçãocomoseprocurasse identificarseu filho.Masseráqueo reconheceriadepoisdetanto tempo?Ele era ummeninode cinco anos.Com toda certezaNicholas nãolembrariadela,maselaachavaqueeracapazde reconhecê-lomesmodepoisdetodoessetempo.

—PrecisofalarcomoDr.Nicholas—disseelaparaarecepcionista.—Boanoite,senhora.Temalgumparenteinternadoquequeirainformações?—Não.Precisofalarcomomédico.Éurgente.—Oolhardelavagavadeum

cantoparaooutro.Elapareciaassustada,commedoquealguémapegasseantesdeverseumenino.

— Desculpe senhora, mas o Dr. Nicholas trabalha na emergência, ele nãoatendepacientesparaconsultas.

Sódesaberqueseumeninorealmentetrabalhavaali,sentiu-sealiviadaeaomesmotempoansiosa.Masesperaramuitosanosparasepreocuparcomoqueeleachariadela.Tudooquequeriaeravê-lo,nemqueissocustassesuavida.

—Quetipodeemergência?—Senhora,eleéassistentedecirurgião.Tambémrealizapequenascirurgias,

atendevítimasdeacidente.Nãopossofalarmaisqueisso.—Ouça,precisovê-lo.—Terezaagarrounobraçodamulhercom força.—

Temquemedeixarvê-lo.—AmulhersentiuohálitodeTerezaepercebeuqueelaestavabêbada.

—Senhora,elenãopodeatendê-la.Porfavor,soltemeubraço.— Você não entende? Eu sou a mãe dele. Aqui diz tudo. — Tereza tirou o

dossiêquecarregavadentrodocasacoecolocousobreobalcão.—Seasenhoranãoseretirarvouchamarasegurança.—Porfavor,medeixevê-lo.—Elacomeçouachorar.—Segurança—gritouarecepcionista.—Segurança,tireessamulherdaqui,

porfavor.Umhomemaltoeforteaproximou-sedelaesolicitouqueseretirasse.Tereza

apenasrepetiaqueprecisavavê-lo.—Porfavor,senhorameacompanhe.—Osegurançasegurounobraçodelae

forçou-aatéasaída.Terezapegouseudossiêecaminhouparafora.Oventoestavageladoeumaluaenormedecoravaocéuacimadesuacabeça.

Haviaumhomemfalandoaotelefone,umamulherfumandoeoutraspessoasdentrodeveículos.Pareciaquetodosaobservavam.Elasentou-senacalçadaecolocouamãodentrodobolsodocasaco.Aindaestavalá,opunhal.

Depoisdealgunsinstantes,elaselevantou.Andoucurvadacomoseestivesse

comdornascostas.Caminhoucomdificuldadeatéarecepçãodohospital.Quandoosegurançaaviu,dirigiu-seaela.

—Senhora—dissenumgritodepavor.Antesquepudessechegaratéelaviuseucorpocairnochão.—Alguémajude,porfavor—gritouumavoz.—Elaestáferida.Umacorreriasefezparaajudá-la.Suasmãosestavamcobertasdesangue.O

punhalaindaestavacravadoemseuestômago.Ela estava deitada no chão, pálida. Via os rostos das pessoas acima dela.

Desejava muito que algum deles fosse Nicholas. Ela procurou o rosto dele. Aspessoasformaramumcírculoparavê-la.Avisãodelacomeçoua ficarborradaepequenosflashesadespertavamdaescuridãoqueasugava.

— Elamesma se feriu. Estava sentada lá fora, ninguém a atacou. Só noteiquandoviumrastrodesanguevindodeondeelaestava—disseumhomemparaninguémemparticular.

FlashElasentiuseucorposertransferidodochãofrioparaumamaca.Arecepcionistaviuodossiêcaídoaoladodela,estavamanchadodesangue.A

mulheropegoueguardouconsigo.FlashElaviupessoasestranhasempurrandoamacaporumcorredor—PrecisoveroNicholas—eratudooqueTerezasussurrava.FlashElaseviuentrandoemumasala.FlashElaouviuvozes.FlashElasentiualguémrasgandosuaroupa.FlashElaviuumrosto.FlashElasorriu.FlashTudoficouescuro.

CAPÍTULO50OSEGREDODEGABRIEL

Gabrieldesviouocaminho.Elenãovoltouparacasa.Ricardo estava andando de um lado para outro em sua sala. Segurava o

telefone namão e estava ansioso, esperandoque tocasse. Já havia ligado váriasvezesparaGabrieleestavanaesperançaqueogarotoretornasse.

Falou para sua esposa que o filho estava bem, que iria dormir na casa deMurilo.

Ele se perguntava no que Gabriel estava metido. Aquelas mensagens quereceberanocelularderamaentenderqueofilhoestavafazendoprograma.Teveocarroqueofilhorecebeu,elenuncaengoliuquehaviasidoumenganonaentrega;Gabrieldesfiloudecuecapelocolégio;agrediuumprofessor;mandoufotosdelenuparaumnúmeroestranho.Tudolevavaàprostituição.MasGabrielnãoprecisavadaquilo.Definitivamente, ele não seria tão idiota de fornecer seu endereçoparareceberumpresentedaqueles.Tinhaalgomuitoestranhonisso,algoqueRicardoaindanãoconseguiaentender.

Horas mais cedo recebera uma mensagem no celular pedindo que ele sedirigisse à sua caixa de correio. Estava começando a escurecer. Ele foi lá eencontrouumenvelopequecontinhaumamensagemquedizia:DESCUBRAOQUEESTÁACONTECENDOCOMSEUFILHONOENDEREÇOEHORAMARCADOSABAIXO.FIQUEEMSILÊNCIOOUTUDODARÁERRADO.

Haviatambémumcartãomagnético.EntãochegouahoraeRicardosaiudecasa,suaesposajádormia.Elenãose

preocupoucomela,poistinhaumsonomuitopesado.Ocarroparounafrentedoprédio.Ricardodesceueentrounohotel.Seucoraçãoestavaacelerado.Falourapidamentecomumhomemnarecepção

eemseguidaentrounoelevador,haviaduasgarotasquedigitavamalgonocelulareumhomemsegurandoumamaleta.Chegouaononoandar,seguiupelocorredoratéencontraroquartocorrespondenteaocartãomagnéticoquetinhanobolso.

As paredes eram amarelas. Havia um tapete cinza com alguns detalhesfloridosforrandotodoocorredor.Vasosdeplantasdecoravamolocal.Eleviuumacamareirasairdeumdosquartos.

Ricardoaproximou-sedaportaepassouocartão.Elaabriu.Eleinclinouocorpoparadentroeentrousorrateiramente.Eleacendeualuz.Viuumagarrafavazianochão.Oquartocheiravaaálcool.Umhomemlevantoueficousentadonacama,encarando-o.OrostodeRicardocomeçouaficarvermelho.Nãoporconstrangimento,mas

porraiva.—Comovocêentrouaqui?—perguntouojovemrapazqueestavasemcamisa

ecobertoapenaspartedaspernascomoslençóis.

Haviaoutrorapazdeitadodebruços.Ricardoviuapenassuascostasnuaseocabelopreto,massabiaquesetratavadeGabriel.

Ricardo ignorou a pergunta e aproximou-se para o lado em que estava seufilho.Eleviuorostodele.

—Acorderapaz—disse,dandotrêstapasfortesnabochechadele.Gabrielacordou-se,assustadoesemforças.Asimagensestavamborradas,ele

teveasensaçãodeestaremseuquarto,masalgumacoisaestavadiferente,nuncafora acordado por seu pai com tapas tão pesadas na cara. Aos poucos tomouconsciência,asimagensborradasficaramnítidas.

—Pai?—perguntou,confuso.Eleolhouparaoladoeviuohomemseminunacama.—Oqueestáacontecendoaqui?

—Nãotenhonadaavercomisso,Gabriel—disseooutrorapaz.—Nãoseicomoseupaidescobriuagente.

— Como? Ficou louco? — A cabeça de Gabriel pesava uma tonelada, seucérebropareciaestarsendoespremido.

—Seresolvamosdois—ohomemsaiudacamasegurandoolençolnacintura,catousuasroupasedespareceufechandoaportacomforça.

Ricardoestavadistante,comasmãosnacabeça,olhandoacidadepelajanela.Desdemais cedoelehaviaolhadoparaaquela lua tãobrilhanteno céue teveasensaçãodequeaquelaseriaumanoiteestranha.Estavairritadoemverseufilhocomoutrohomemnacama.NãoentendiaporqueGabrielestavaseprostituindo.Elesempretevetudooquequis.

—Pai—sussurrouGabrielmeiosemjeito.Ricardoestavadecostasparaeleenãofalounada.—Pai...

— Que vergonha, Gabriel— disse ele num tom seco, um tom cortante queGabrielnuncahaviaouvido.

Ogarotolevantou-sedacama,suacabeçadoíacomoseestivessederessaca.Eleestavasódecuecaeaproximou-sedopai.

—Eupossoexplicartudo.Precisameou...Ricardovirou-seeantesdeGabrielterminardefalar,levantouamãodireita

comonuncatinhalevantadoeafezdescercomtodooseupesonoladoesquerdodorostodofilho.

Gabrielsentiucomoseamãodopaiestivessepegandofogo.Suaspernasnãotiveram forças, ele cambaleou e caiuno chão, batendo a testa emalgumaparteduradacama.Adorestremeceuaindamaissuacabeça.Eletentoulevantar,ficouapoiadocomasmãosnochão.Sentiuogostodesanguenabocaepercebeuquehaviacortadoabochechapordentro.

—Nuncapenseiissodevocê,Gabriel—Ricardodesafivelavaocinto.Dochão,ogarotoviuaimagemborrada.Suacabeçadoíaeestavatonto.

Gabrielarquejouquandosentiuocintoqueimarsuapele.—Vaiaprenderaserhomem.—Ricardoacertouocintonovamentenacoxa

dele.—Nãotecrieipraisso.— Pare.—Gabriel tentou gritar,mas sua voz saiu fraca. Ele estava fraco,

tonto.Pensouquederamalgumacoisaparaelebeber,masnão,naquelemomentosentiuumalevedornoantebraçoepercebeualgunsfurosali,alguémtinhainjetado

algumadroganele.Então,encolheu-seeesperouopróximogolpe.Mas a culpa já havia corroído o coração deRicardo, sugou as forças que o

mantinham de pé. Ele largou o cinto após o segundo golpe e andou de costasprocurandoaparedeparaseapoiar.Seucorpodeslizouatéqueficousentadonochão.

—Vocênuncaprecisoudisso.Sempretedeitudo.—EleolhouparaocorpobrancodeGabriel,marcadoporumamanchavermelha.As lágrimassaltaramdeseusolhossempedirqualquerpermissão.

Apósumbreveinstante,Gabrielsesentoucomdificuldade,apoiouascostasnacamaeolhouparaoteto.Adordecabeçaeatonturaofizeramfecharosolhos.

—Maspai...eunãosouoquevocêpensa.—Gabrielbuscouforçasparafalaroqueestavapresonagarganta.—Issotudofoi...armado.Armarampramim...pravocêtambém...Eusou...sou...

Flashesexplodiramemsuamente.Lembrançasdehorasmaiscedoquandofoipego.Umpostodegasolina,umbanheiro,sombrassaindodealgumlugarqueelenãopercebeu,umaarmaemsuascostelaseomedocongelandosuaespinha,todasessas imagenssurgiramdesconexas.Ele foipego,nãosabiacomo,masamesmapessoaportrásdalistatinhaarmadoaquilotudo,dissoeletinhacerteza.

Ricardoestavasuado,o rostovermelhoeosolhosmolhadospelas lágrimas.Tentavadecifraraconfusãodesentimentosqueinundavamseuser.Quandoouviuavozdoseumenino,voltousuaatençãoparaogaroto,sentindoummedoestranhoantesmesmodeouvi-lo.

—Eusouumbandido,umass...a...assassino.Gabriel,aindatonto,comacabeçaerguidaparaoalto,lançouaúltimapalavra

comose fosseumaadagaeRicardosentiuqueela rasgouseupeitoeexpôsseucoraçãoquesangrava.

CAPÍTULO51OSHOWDEHUMOR

O sorriso dela tinha um brilho especial que ninguém jamais descobriria a

fórmuladotruquechamadofelicidade.Rebecapassouasmãosnoscabeloseelesestavammaciosecheiosdevida,

seusolhoseramdoiscristais.Ameninasegurouacinturaeseolhounoespelho.Estavapronta.Seuvestidoajustara-sebemaocorpo.

Ela saiu do quarto e quando chegou à sala, seu pai estava sentadono sofá,vendoumprogramaesportivo.Ameninajogou-senosbraçosdeleeficousentadaaoseulado.

Asensaçãodeproteçãoaosentirocalordeleseespalhoupelaalma.—Vocêsmulheresnãoperdemamaniadenosdeixaresperando—elefalou,

acariciandooscabelosdafilha.—Amamãequemestáatrasandoagente,masesperoqueelademoremais

porquequeroficarabraçadaavocêpormaistempo.—Vocêsfalamdemais—disseMarinaaochegaràsala.Elacolocavaobrinco

naorelhadireita.—Nemdemoreitantoassim.Comoestou?Ela deu uma voltinha. Toda sua elegância rodopiou diante deles. Harisson

assobiou.—Asenhoraestáumagata,mãe.Harissonlevantou-seecumprimentou-acomumbeijonorosto,elaretribuiu.—Vamos,então?—Voupegarminhabolsa.—Rebecacorreuatéoquartoevoltoucomuma

bolsaminúsculadetirapresaaoombro.Elacaminhouatéelesquejáestavamnaportaesentiuumatontura.

Pareceuqueomundohaviagirado.—Oquehouve,filha?—perguntouHarrison,segurando-aatempo.—Estáse

sentindobem?—Estoubem.—Rebecasegurouasmãosdeleeaindasentiaummalestar.Elaseconcentrou,respiroufundoerecuperouoequilíbrio.—Temcerteza,meubem?Nãoqueresperarumpouco?—perguntouMarina,

comumolhardesconfiadoparaafilha.— Não, mãe. Estou ótima. Vamos, nosso tempo é curto. — Ela sorriu e

entrelaçouobraçodopainodamãeeelessaíramdoapartamento.Rebecasentiu-sefeliznobancodetrásaoverseupaidirigindoesuamãeao

lado.—Estavamorrendodesaudadedosnossosjantares—elefalou.—Nóstambémestávamos,queriamuitoqueosenhorvoltasse.Voupedirao

vovôprafecharessafábricaetrazervocêdevolta.Eleriuedisse:—Vocêquerquemuitaspessoasfiquemdesempregadas?Muitagentedepende

denossasempresas.—Ah,queelevendaentão.—Aproveite omomentoRebeca—disseMarina.—Deixe que as coisas se

resolvamporsisó.Depoisdealgunsminutoschegaramaorestaurante.—Uau—falouMarina.Elaergueuacabeçaparaocéu.—Quelualinda.—Parecequejogarammelnela—disseRebeca,encantada.—Nuncaviumaluacheiatãobonita.—Harissonestavaaoladodafilhacomo

braçosobreoombrodela.—Masvamosentrarqueluanãoenchebarriga.Eles caminharam pela calçada e logo entraram no estabelecimento. Foram

recebidosporumhomemaltoe forte.Oambienteestava iluminadoporuma luzdourada, uma música lenta e angustiante inundava os ouvidos de Rebeca e eladesejouquemudassemaquelamelodiaparaalgomaisanimadoecomonumpassedemágicaamúsicamudou.Agoraosomeratãopuroquantoobarulhodaáguadacachoeira,amelodiavitalizavaqualquerseresmorecido.

Ohomemosacompanhouatéamesa.HarissonpuxouacadeiraparaMarinaedepoisparaRebeca.Ameninasorriuaovê-losjuntosdenovo.

—Então,oquevamospedir?—Harissonperguntoujáfolheandoocardápio.—Adorocamarão.Porfavor,Harissonpeçaoensopadodecamarão,faztempo

quenãocomo.—Marinapediucomumsorriso.—Euquerocamarãofrito.Batatasemacarronada.Estoufaminta,papai.—Émuitobomouvirvocêfalarassimporqueestouteachandomuitomagra,

temquesealimentarbem.Harissonacenouparaogarçom,eleveioatéamesaeanotouopedido.—Nãoimagineiqueaquelecaraaindativesseoshowdehumordeleaqui—

disseHarisson,animado.Eleolhouparaopalcoeviuaimagemdohomememumcartaz,eleusavaumamáscarabrancaquecobriaapartedorostoacimadonariz.

—Ah,sim.Eleaindaseapresentaaqui.Econtinuaótimo,porsinal—disseMarina.

—EcomovãoascoisascomoVitor?—Ah,estamosbem.Felizes,possodizer.—Quebom,ficofelizquesuavidaestejadandocerto.Rebecaquis interromperaconversadelesporquenãogostoudetocaremno

assuntoVitor.Aquelemomentoerasódela,nãoqueriaouvironomedonamoradodamãe.Elaiafazê-losparar,masHarissondissealgoqueelagostou.

— Como foi que você conseguiu se safar na história do sapato? — elegargalhou.

Rebecasentiu-seumpoucoenvergonhada,masriutambém.—Papai,porfavor.Nãofaledisso.Marinariusemdemonstrarqualquerfiodeconstrangimento.— Harisson, sua filha me fez passar uma vergonha grande. Comprei tênis

novosproVitorequandoeleabriuopresente,nossaquevergonha.—Elariajuntocom ele.— Tinha sapatos velhos e destruídos dentro. Eu quis um lugar prameesconder e não achei. Minha sorte que estava no apartamento dele. Mascomeçamosarir,decarasoubemosquetinhasidoela.

—Meubem,nuncamaisfaçaisso,porfavor.—Ah, pai, foi só uma piada. Além domais, eles riram. Se não fosseminha

criatividadeteriasidoumanoitemonótona.Eomendigoficousuperfelizcomostênisnovos,precisavaveracaradele.

—Sóaperdoeiporque,deverdade,rimosmuito,eledaminhacaraeeudadele.

A comida chegou pelasmãos do jovem garçom. Ele colocou o ensopado decamarão,batatasfritas,maiscamarãofrito,veioamacarronadaeoutrascarnes,acompanhadasdevinho.

—Nossa,querápido.—Rebecapegouumgarfoeespetouumatiradebatata.—Quecheirobomessecamarão.—Elacomeuabatata.

O garçom voltou e aproximou-se dela. Ele disse em seu ouvido:Vá emboraenquantohátempo.

Rebecaoencarou,confusa.—Oqueeletedissemeubem?—Nadapai.Nãoentendibem,naverdade.—Foialgumagrosseria?Podefalar,meubem.—Nãofoinada,sóque...As luzes se apagaram.Umholofotepercorreu o salão iluminandoasmesas.

Rebecaviualgumasvazias,elaficouassustadaquandoaluzpairousobreela.—Pai?Osenhorestáaí?Elasentiuamãodeleseguraradela.—Estou,meubem.Nãoseassuste,fazpartedoshow.Então as luzes se acenderam e o palco se iluminou. Um homem elegante

surgiu,sorridente.—Boanoitemeusamigos—eledisse.—Estãoprontosparaumaexperiência

única?Queremsealegrar?Estouaquiparaisso.Parafazê-losesqueceravidadementiras que vocês levam. É isso mesmo. Todos vocês que estão aqui, estãofugindo, fugindodevocêsmesmos,dosproblemasquevocêscriam.—Elesoltouumagargalhadatenebrosa.—Riam,oqueacabeidefalarfoiumapiada.

—Essecaraéótimo—Harissoncomeçouarir.—Doquevocêsestãorindo?Nãotemgraçanenhuma,esteshowestáerrado.Elaouviumaisrisadasvindasdeoutrasmesas.—Nãosejainsensívelminhafilha,issoéhiláriovocênãoacha?—Marinaria

deumjeitoqueRebecanuncatinhavistoantes.—Euhein.—Ajovemdeudeombros.Quandotodosficaramemsilêncio.Ohomemnopalcotirouumlençobrancode

dentrodopaletó.Eleosacudiuparaaplateia.—Vocês têmmesmo esperanças de que eu irei solucionar os problemas de

vocês?Achammesmoqueeusereiacuraparasuasdores?Sabemoqueéistonaminhamão?Alguém?Alguém?Alguém?

—Oquehádeerradocomele?—Rebecaperguntou-sebaixinho.—Ouvialguém falar.Seique foi você.—Eleapontouparaagarota.—Me

respondaoqueéisto?—Umlenço—respondeuRebeca,duvidandodesimesmaseaquiloeradefato

umlenço.Ohomemsacudiuotecidobranco.—Uau—alguémexclamouquandoviuopombosurgirnamãodele,donada,

comomágica.—Aindaachaqueéumlenço,mocinha?—Pare.Agora.—Rebecafalouasduaspalavrascomoumaordem.Noinstanteseguinte,ohomemagarrouopombocomasduasmãosetorceuo

pescoçodele.Rebecaouviuoestalareviuosdentesdeletrincarem.—Estaerasuaesperançaemmim.Nãopossocurarasuador.—Doqueeleestáfalando?Peçapraeleparar.—Elapediuaopai.—Papai,

façacomqueelepare.—Meubem,ésóumshowdehumor.Vocêinsistiutantoqueviéssemospracá.Ela ofegava. Esforçou-se para controlar a respiração e então uma música

começou a tocar. Aquele homem estava cantando no palco e ele arrancou amáscaraqueusava.

Cristiano.Rebecasabiaquejáoconhecia.Loveofmylife...AletradamúsicafezRebecasearrepiar.Tudoestavaerrado,aquilonãoera

umshowdehumor.Ohomemcomeçouacantarcommuitaintensidade,talvezcommaispaixãoqueopróprioFreddieMercury.Elaolhouparaaspessoasàsuavoltaetodaspareciamenfeitiçadas.

Quemeraoamordavidadaquelehomem?Porqueelecantavadaquelaforma?Porqueeleestavaseaproximandodamesadela?Paraquemeraaquelamúsica?

Então Rebeca o viu direcionar a melodia para suamãe. Ele cantou toda amúsicaparaelaeMarinasorriacomoumagarotaapaixonada.Harissonestavaaolado,apenasolhandoebateupalmasassimqueeleterminou.

RebecaestavadiantedeCristianosemacreditarnoqueestavavendo.—Parecomisso—elaberrouparaocantor.—PareCristiano,pare.— Meu bem, o que há de errado com você? — Harisson levantou-se e se

curvoudiantedafilha.—Eleestáapenascantando,fazpartedoshow.Rebecaestavaencolhidanacadeiracomasmãostapandoosouvidos.—Queroque issoacabe logo—ela falou.Então se levantouedirigiu-seao

garçom.Agoraelapôdeveracordoscabelosdele,osfioseramprateados,comonoslivros,elapensou.Nãotinhanotadoantes.—Façaissoparar—disseparaogaroto.

Ogarçomaencaroucomumolhardepena.—Étardedemais—falou.Elavoltouoolharparaamesa.— Rebeca — a voz de Cristiano ecoou pelo salão, ele estava falando no

microfone.—Vamosacabarcomissodeumavez.—Haviadornavozdele,umadorqueatingiaaalmadela.—Vamosrevelarparatodomundoonossosegredo.

—Vocêarmoutudoisso.Todoesseshowdehorrorfoiarmado.—Rebecaveiocaminhandoatéele.Umalágrimaescorreupeloseuolhoesquerdo.—Vocênãotemodireitodeestragartudo.

—Segredo?Masquesegredo?—quissaberHarisson.—Rebeca,exijosaberdoqueestehomemestáfalando.

Marinalevantou-seefoiabraçarafilha.—Meuamor,sejaoquefornósvamosteentender.— Harisson, temo que o nosso segredo atinja diretamente você — disse

Cristiano.—AMarinamentiu,teenganouessetempotodo.EusouoverdadeiropaidaRebecaeestagarotaquediz ser sua filha sabede tudo.Eladescobriuemeachouetemmemantidoescondidodetodosvocês.Eusouoverdadeiro.

—Mentiroso—gritouRebeca.—Falaqueémentiramãe,dizqueelenãoémeupai.—Marinapermaneceuimóvel.—Anda,fala.—OdesesperocomeçouatomarcontadeRebeca.—Fala.

ElacorreuparaHarisson,sejogounosbraçosdele.—Vocêémeupai,semprevaiservocê.—Elachorava.—Tudooqueelefala

émentira.Talvezsejahoraderir,nãoé?—Rebecasegurouorostodopaicomasduasmãoseadmirouoscabelosruivosdele,eramiguaisaosdela,atéabarbatinhaomesmotom.Eosolhoseramverdescomoduasesmeraldas.—Fazpartedoshowtudoisso?—Elaforçouumarisada.—Éoshowdele,pai.—ElavoltouoolharparaCristiano.—Ria—berrou.—Riamtodos,seus idiotas—gritouparaaspessoasqueobservavamemsilêncio.

—Chegadeescândalo,Rebeca—disseMarina,numtomfirme.ElacaminhouparaoladodeCristianoesegurounobraçodele.—Estehomeméseupai.

—Meaceitecomopai—disseCristiano.—Eupossoseroseupai,opaiquevocênãotemmais.Aceitequeelemorreu,Rebeca.OHarissonmorreunodiadoseuaniversáriodetrezeanos,vocênãoselembra?Eleestámorto.

Rebecaolhouemvoltaetudooqueviaerampessoaschorando.Elaouviaumchoro desesperado e cheio de angústia, uma lamúria penosa que definhava suaalma.

Marinachorava.Cristianochorava.Omarrevoltodentrodesitransbordouporseusolhosepelagargantaquando

elagritouemdesespero.—Não!Papai!Nãoéverdade.Ela caiu de joelhos no chão.Omundoparecia estar se desmanchando.Não

sabiamaisondeestava.—Éverdade,Rebeca—disseumgarotoqueelareconheceuavozequando

ergueuacabeçaviuGabrielvestidocomoumpríncipe.Ouniformeerabrancoetinhabotõesdourados,ombreirascomdetalhesdourados.Elechorava,seusolhosestavamvermelhos.—Eusintomuito.

Gabrielajoelhou-seaoseuladoeaabraçouenquantoelasoluçava.— Rebeca. — Era Amanda, com um vestido de princesa, azul. Ela era a

cinderela.—Amiga,nãopodeser.Felicity entrou em seguida com cabelos longos em uma trança que se

arrastavapelochão.Elasejuntouaosamigosqueaabraçavam.— Estamos aqui, amiga. Vamos te ajudar — falou Rapunzel com lágrimas

escorrendopelosolhos.Eles se abraçaram e choraram juntos. O choro se tornou um grito de

desespero.Derepentenãohaviamaisninguémaoladodela.Osilêncioperturbadortomou

contadoambiente.Elalevantou-se,olhouemvoltaetudoestavavazio.Nãohaviapalco,nempessoas,nemgarçons.Quandoseuolharcompletouogiroelaviualgoeouviuocéusedesmancharemágua.

— Não, não, não, não, não, não, não... — ela repetia aquela palavraemendando uma na outra. O pânico lhe tomou por completo quando viu o pairodeadoporrosasdentrodeumcaixão.

O corredor era branco e havia uma luz brilhante nele. As portas pareciam

feitasdegelo.Haviapessoasandandodeumladoparaooutro.Rebecanãosabiaquelugareraaquele,nementendiaporqueaspessoasnãolhedavamatenção.

Elaandoueobservouasjanelasdevidro,atrásdelashaviapessoasdeitadasemcamas.Atéqueviualguémqueelaconhecia.Cristianoestavacaídosobreumacadeira,ocorpomole,eosolhosdequemhaviachoradoporhoras.Sobreacamajaziaocorpodeummenino,estavacomacabeçaenfaixada,pálidocomoaneve.

Rebeca não soube como entrou na sala, mas estava diante de Cristiano,sussurrandoaspalavrasparaqueomeninonãoacordasse.

—Entãoeraporele?Essemeninoéseufilhoeestámorrendoenãomedissenada?Preferiufazerchantagem,tirardinheirodemim.Eupoderiatertedadotudooquevocêprecisava,meuavôteriafeitotudoporeleseeupedisse.Vocêteriaosmelhoresmédicos.—Eladespejouaspalavrasrecheadasdefúriaedecepçãoeseuolhareradepenadohomemqueestavadiantedesi.

MasCristianocontinuoucalado,comoolharperdido.—Fale algumacoisa—ela insistiu.Então tocounoombrodelepara tentar

fazercomqueelefalasse,masteveumasensaçãoestranhaaotocá-lo.Rebeca afastou-se dele com os olhos arregalados, assustada demais para

aceitaroqueacabaradeentender.Elacorreudali.Caminhouporcorredoresatéqueviuumamovimentaçãodepessoas.Doisenfermeirosguiavamumamacaeumamulherchoravaseguindoospassosdeles.Haviaumhomemaoladodela.

Agarotaagitou-seecorreuparaver,algoachamavaparalá.Rebeca ficouparalisadano instanteemqueamacapassou,porqueviuuma

garotadecabelosruivosdeitadasobreela.Enaqueleinstantetevecertezadequeestavaforadoseucorpo.

EPÍLOGOMeu pai sempre gostou daquele restaurante, não pela comida, mas pelas

lembrançasqueolugarlhetrazia.Foiláondeconheceuamamãe,elamedisseumavezqueeleestavabêbadoefoicantarnoKaraokê.Ficouirritadaquandoouviuavozdele,porque,segundomamãe,papaicantavamuitomal,muitomalmesmo.Foiaprimeiravezqueelaoviuemeupaiaencarouenquantocantavaaquelamesmacanção, “Love of My Life”. Os olhares deles se cruzaram, minha mãe tentoudesviar,masmeupaimanteve-sefirme.Entãodepoisqueacaboudecantar,elefezoprimeirocontatocomela.

Outromotivoquefezpapaigostarmaisaindadaquelelugarfoiumhumoristaótimoemcontarpiadas,eleadoravaoshowdehumordoCristiano.Lembro-mequeelesedivertiamuitocomasimitaçõeseoqueelemaisadmiravaeraotalentodoCristianoemimitaravozdaspessoas,elecantavaigualzinhoaoscantoresfamosos.

Uma vez no aniversário damamãe, ele quis fazer uma surpresa, disse quetinhaensaiadoamúsicadelesequeiriacantardenovopraela.Mamãeimplorouque ele não fizesse isso porque sabia que ele continuava desafinado, mas eleteimou,foilánaquelepalcoecantoucomtodooamorquesentiaporela.Sóquedessa vez, a voz dele estava límpida como o canto de um pássaro, pareceu quehaviatiradotodaapoeiradagargantaquedesafinavaocantodele.

Viosolhosdaminhamãebrilharemmaisqueosol,osorrisodelatomoucontadorosto.Eutinhanoveanosemeachavamuitoesperta,entãofaleipraela:

—Éumaimitação,mamãe.Ocomedianteéquemcanta,papaisófazbateraboca.

—Eusei,minhafilha.Maseledublatãobemquequasepenseiquefosseele—minhamãemedisse,sorrindo.—Achoqueseeletivessecantadotãobemassim,nemteriareparadoneledaprimeiravez.

Eu fiquei rindo dos dois. Depois papai voltou para a mesa todo feliz. Vovôestavacomagenteemaisalgunstioseamigosdosmeuspais.Todosaplaudiram.

Sempreacheiaquelacançãoumapéssimaescolhaparasertemadeumcasalfeliz,masdepoiselaacabouservindobemaosdois.Meupaiquebrouocoraçãodaminhamãeemalgunspedacinhos,mesesdepoisdetercantado“belamente”paraela.Nãoseicomo,masminhamãedescobriuqueeleaestavatraindoenãoteveperdão,elasemprefoimuitoduraeseseparoudele.

Meupaiqueriamuitovoltar,maselanãoquis,nuncaquis,nuncatevenenhumtipodeensaioparaumavolta.Euquefantasiava,criavacoisas,inventavahistóriasnaminhacabeçadequeelesvoltariamumdia.

Mais tarde o Vitor entrou na vida dela e nossa relação começou a ficarestremecidaporqueeuaculpavapormeupainãoestarmaisemcasa,entãoelefoimorar em uma cidade distante para cuidar de uma fábrica de cerâmica quepertenceameuavô.Tudoficoumaisdifícilpragente,mastivequemeacostumarcomanovavida.

Então,nodiatrintaeumdeagostodedoismiledoze,HarissonFloresmorreu

emumacidentedecarro,causadoporjovensembriagados.Omeupaimorreunodiadomeuaniversáriodetrezeanos.

Minhaalmaseespatifoueeusentiadordecadafragmentodelasepartindoeaindaassimeunãomorri, tiveque suportar e continuar viva edespedaçadaporcompleto.

Minha festa era à fantasia, todos os convidados estavam vestidos de algumpersonagemdaDisney.EuestavafantasiadadeAriel,masporquemeuavôinsistiu,dissequeeueraigualzinhaaela,quenãopodiaseroutraprincesacomocabelodaquelacor.EntãoeuaceiteiseraArielporquenofundoeusabiaqueeleviaafilhadelequemorreu,emmim.NãoconheçobemahistóriadatiaAnnabel,masseiqueelamorreuafogadaaindacriança.

Gabrieleraumpríncipelindo,aAmandafoideCinderelaeaFê,deRapunzel.Semprefomosamigosdesdepequenosporquenossospaiseramamigosesempresejuntavamparaqueosfilhosdelesfizessemamizade.

Euinsistimuitoparaquemeupaiviesseàfesta,fizeleprometer,jurardepésjuntosqueviria.Eleprometeuecumpriu.

Eu estavamuito ansiosa esperandopor ele, as horas passavame nada delechegar. Eu vi minha mãe preocupada porque não estava conseguindo falar compapai.

Entãoanotíciaveiocomoumarajadadevento.Eunãomelembrocomofoi,quem foiapessoaquedissepramamãe,nãosei seeuouviou seeusoubepelaexpressão dela, mas eu gritei e chorei muito e não soube mais o que estavaacontecendo, eu só vi todas as pessoas chorando, minhas princesas e meuspríncipes estavam chorando comigo. Eu vi minha outra tia desmaiar, pessoasassustadasemuitosolharesdepenasobremim.

Choramosjuntosamortedonossorei.Mais tarde eu soube que um carro com quatro jovens bêbados perdeu o

controleesechocoucontraocarrodomeupai,eleestavaentrandonacidadeeosoutrossaindo.Trêsdelesseforamcompapaieapenasumsobreviveu,omotorista.Ele deu uma entrevista dizendo que se pudesse escolher teria partido com osoutros.

Em nenhum momento eu desejei que ele tivesse morrido, pelo contrário,esperoquetudooqueelefalousejaverdadeevivamuitosanosatormentadoportertiradoavidadomeupaiedosamigosdele.

Todasaspessoasdiziamque foiporqueDeusquis,queeraahoradeles.Eununcaaceiteiisso,nuncasupereiador.

Euseiqueminhamãesofreumuitotambém,elapodianãoquerermaisvoltarcomele,mastiveramumahistóriajuntos.Sóqueelaconseguiuseguiremfrente,ouseguiucomadordelamesmo.

Passeiatermuitossonhoscommeupai.Desdepequenameussonhossempreforammuitoreais,entãoduranteanoiteeuperdiaanoçãodarealidade,euestavacomelee,pramim,aquiloeraverdade.Quandoeuacordavamedesesperavaporme dar conta que eu não podia abraçá-lo. Minha mãe ficou muito preocupadacomigo, até fiz terapia durante algum tempo, depois abandonei, não quis maissaber.

Preferificarcomosmeussonhos,aoinvésdeficarangustiadacomeles,passeia usá-los como uma espécie de portal mágico parame encontrar commeu pai.Antes de dormir eu recordava os sonhos que tinha tido e me concentrava parasonhardenovo.

Sempredisseramquepodemosconseguircoisasextraordináriascomopoderdenossamente,procureiporrelatosdepessoasquediziamdominarosprópriossonhos,procureiaprender,treineiminhamenteparapodersonharcomelequandoquisesse.

Émuitodifícilconseguir,maseuconseguialgumasvezes,tivesonhoslúcidosque são reais demais, eu sentia o abraço dele, o cheiro do perfume que usava,consigo me lembrar de detalhes e esses sonhos ficam na minha mente comolembranças verdadeiras, como se de fato tivessem acontecido de verdade e àsvezeseuacaboconfundidoascoisas.

Meupaidiziapramim:“Tratedeviverbemparaquesuaslembrançasnãosetornemumfardoquevocêtenhadecarregar”.

Efoioquetenteifazer,construirboaslembranças.Masàsvezesmetoospéspelasmãos,comoquandomedeixeilevarpelomomentoemeentregueiaoGabriel,tiveaintençãodeterumalembrançaboadaminhaprimeiravez,acheique,poreleserbonito,educado,ogarotoperfeitoparaqualquermenina,seriabom,masnãofoi.

Depoisdeumtempo,ossonhoscomeçaramaficarescassos,poralgumarazãonãoconseguiamaiscomtantafrequência.

A minha história com o Cristiano começou oito meses atrás, quando vi um

cartazqueanunciavaoshowdehumordelenoTeatrodasRosas.Eumelembreinahorade comoelehavia imitadobema vozdomeupai emebateuumavontadeloucadeouvi-lodenovo.Umaestranhasensaçãotomoucontademimeumaideiamepassoupelacabeça.

EuprocureioCristianonoteatro,pediquemedeixassemvê-lo,queeraumafãequeriamuitotirarfoto,pedipraavisaremqueeueraafilhadeHarissonFlores,elelembraria,sabiaquemerameupai.Eassimconseguifalarcomele.

Oolharquemedirecionouera igualaoquetodasaspessoasqueconheciamminhahistórialançavamsobremim,depena.

—Tudobemcomvocê?—perguntou,comcautelanavoz.—Euestoubem.Evocê,comovai?—Vivendonamedidadopossível.Cristianoestavaumpoucodiferente.Eu lembravadelecommaisalegriano

semblante.—Desculpeincomodarvocê.Éque...—Nãosepreocupe,vocênãoincomoda.

—Meupaigostavamuitodevocê—faleiemseguida,commedodequeumsilêncioassombrososeinstaurasseentrenós.

—Eumelembrodele.Edevocêtambém.OHarissoneramaisqueumfã,oconsideravacomoamigo.

Eusorriemagradecimento.—Lamentomuitopeloqueaconteceu.Meussincerossentimentos.—Euainda

nãotinhavistooCristianodesdequemeupaihaviamorrido.Lembroqueelefoiaoenterro,masnãonosfalamos.—Então,oqueatrouxeaqui?—eleperguntoucomgentileza.

Quase não soube o que dizer, por onde começar. Eu só queria que elecantasse.

—Eu...euviocartazdoseushow.E...lembreinahora...lembrei...Nãoconseguiseguraralágrimaqueinsistiaemrolarpelomeurosto.Minha

gargantatravou.Cristianomeofereceuumlençoqueretiroudeumacaixinhaqueestavasobreapenteadeira.Estávamosnocamarimdele.Eunosofáeelenumacadeiradefrentepramim.

—Lembroudele?—Lembreide você imitandoa vozdele— falei.—Aqueledia emquevocê

cantouefezparecersermeupai.Foiincrível,amamãequaseacreditou.Solteiumrisoaolembrar,enquantosecavameusolhos.Cristianosoltouarespiração,parecia jásaberoqueeuqueria.Oencareie

pedi.—Queriaouvirdenovo.—Maislágrimassaltaramdosmeusolhos.Euviospelosdobraçodeleseeriçarem.—Nãoseiseconsigo—falou,apósuminstantedesilêncio.—Nãocomvocê

nesseestado.Euluteiparaconterminhasemoções,aperteiopolegarcontraosmeuslábios

efecheiosmeusolhos.—Apenascante,porfavor.Aquelamesmamúsicaentroupelosmeusouvidos.Eraavozdele,tãoperfeita

edesafinada,masquepreenchiameucoração.EupercebiqueoCristianoquissero mais verdadeiro possível. Eu preferi daquele jeito, era mais real, exatamentecomoelecantavapramim.

Quando terminou, eu estava me sentindo melhor. Trocamos mais algumaspalavras,depoisfuiembora.

Ànoiteeusonheicompapai,faziamuitosdiasquenãotinhasonhadocomele,estavacomsaudades.E foidaqueles sonhos reais.Estávamosemumpiqueniquecomamamãe, felizes.Nósduas ríamosdaspiadasque ele contava. Tive outrossonhosnosdiasseguintes,masdepoisforamembora.

Na semana seguinte eu procurei o Cristiano novamente, com o mesmoobjetivo.Euinsisti,masnãoparacantardessavez,apenasparamecontarpiadascomavozdomeupai.

Eledissequenãofariaaquilodenovo,eusaídocamarim,chorando.Estavanum corredor em direção à saída quando ouvi a voz domeu pai, na verdade, aimitaçãodoCristiano.Ele faloumeunome.Ele se arrependeu eme fez rir com

piadasbobas,comavozqueeuqueriaouvir.Ossonhosvoltaramnaquelasemana.OCristianomefaziasonharcommeupai,

maseracomoumadroga,aeuforiapassavaevinhaaquelasensaçãodefalta,dequerermais.

Eu voltei lá, dessa vez com um telefone e uma proposta. Ele me encarouhorrorizado,dissequeeraloucura,queeutinhaquepararcomaquilo.Insisti,masele disse para eunão o procurarmais.Quemeupai não iria gostar daquilo.Euoferecidinheiro.Elepareceureconsiderar,maspraticamentemeexpulsoudelá.

Eusaícomocoraçãoapertado,andeirápidosemsaberparaondeir,comosenãoexistisseumcaminhopeloqualpudesseseguir.Mesentiperdida.

Três dias depois, eu vi um cartaz na escola anunciando que seria a últimasemanadoshow,eleiriaseapresentaremoutracidade.Gabrielinsistiuparaquefôssemosver,euapoieiaideiaenósfomosjuntoscomaAmandaeaFênoúltimodia.Elesrirammuitoeeufingiachargraça,naverdadetinhaalgumagraça,maseunãoestavacomvontadederir.

Quando terminou, enquantoaspessoas seamontoavampara tirar fotos comele,euentreinosbastidores,semqueninguémmevisse.Encontreiumsegurançanocorredor,elequismeimpedir,masinsisti,faleiqueseriarápido,quesóqueriadeixarumpresenteproCristiano.Comoelejátinhamevistodasoutrasvezes,medeixou entrar.Deixei sobre amesinha do camarim, umpacote, comum telefonedentro.

Dois dias depois, meu telefone tocou. Olhei para a tela e estava escrito“papai”,fiqueiencarando,tentandodecidirseatendiaounão.Decidiatender,acheiqueelefossegritarcomigo,quefossemechamardelouca.

MaseusoubequeoCristianohaviaaceitadominhapropostaquandoouviavozdomeupaiaotelefone.

Eassimcomeçounossoacordo.Eleaceitouodinheiroemtrocadesepassarpelomeupai.Eleagiriadaformamaisnaturalpossível,meligariaprasabercomoestavamesaindonaescola,comoiaminhavidaedaminhamãe,enfim,elefeztudocomo combinamos. Isso me ajudou a ter sonhos com papai, a reencontrá-lo emoutromundo,euconseguiacriarpequenasnarrativascomoumpasseionoparque,tinhalongasconversascomele.EeugostavatantodeouviroCristianofalandoporele,sentiacomoseaindaestivessevivo.

Omaismágiconisso tudo eraque eupodia voltar paraum sonho, foimuitodifícil conseguir, mas depois de muito tentar passei a controlá-los, as coisasaconteciamcomoeuqueria.

Estavatudoindomuitobem,mastrêsmesesdepoisdetercomeçado,Cristianodissequeestavaprecisandodedinheiro,eudeioqueelepediusemproblemas.Oshow dele não era tão famoso, talvez tivesse precisando de alguma coisa e odinheironãocobria.

Masdiasdepoiselemepediumais,passoua ficarestranhoe ficamosnessejogo.Eleameaçavadesistir.Minhaseconomiasestavamseesgotando,eupoderiapedirmaisaomeuavô,masnãoquisparanãolevantarsuspeita.Daúltimavez,elequisquinzemilreais,dissequecontariatudopraminhamãeseeunãodesse,eunão o reconheci mais, estavame chantageando e aquele não era o homem que

conhecia.Decidi vender algumas roupas caras que eu tinha para umas meninas da

escola, junteicomoque tinhaguardadoeconseguiovalor.Euestavadispostaacolocar o Cristiano contra a parede e exigir saber por que ele estava fazendoaquilocomigo.Masaquelenãoseriameudia.

Começoumalcomaquelasgarotasfofoqueirasenchendomeusouvidoscomanewsletter da semana, assim que chegaram, uma delas falou uma coisa quemedeixouprabaixo.DissequeaAmandaestavagrávida.

Eu nem acreditei, porque ela teria me dito. Eu acho que teria me dito. AmeninafalouqueamãeeramuitoamigadaSarahetinhasabidoqueopaieraoMuriloequeeles iamcasar, foimuita informaçãoparaabsorver.Elasempremedissequenuncatinharoladonadaentreeles.

Eunãodeixeiaquilomeabalarecontinueiminhanegociaçãocomelas,jogueitodasasroupasemcimadacamaeavançaramemcima.Aindaousaramfalardemim,enquantoestavanocloset.

Quando foramembora, sódeu tempomearrumarparameencontrarcomoCristiano.Mamãe,àsvezes,usameusbatons,brincosesapatos,temosomesmonúmeroeeladizque tenhobomgosto.Masachoqueela faz issopara ficarmosmais amigas. Eu queria meu batom de um tom rosa, bem clarinho e não oencontrei. Então fui procurar no quarto dela, sempre se esquece de devolverminhascoisas.

Eu o encontrei, aproveitei para procurar qualquer outro objeto meu queestivesse nos aposentos dela. Mas achei outra coisa. Uma caixinha vermelhaescondidaatrásdosvidrosdeperfume.Euaabriedentrotinhaumaaliança.

Nãoeraaquemeupaitinhadadopraela.Osegundogolpedodiaatingiumeuestômago.Elaiacasardenovo.ComoVitor.Eufiqueiaborrecida.Desejeimaisdoquenuncatermeupainaquelahora.Ele

nãoestavaalipraimpediraquilo,eleaamava,lutouporela,eseiquelevoutodooamorquetinhaparadebaixodaterra.

MesmoabaladafuiaoencontrodoCristiano.Jáestavanofinalzinhodatarde.Fui ao teatro onde ele estava se apresentando, agora comaquela peça.Quandodescidotáxiefuiatravessararua,ouviabuzinadeumcarroqueparouàminhafrente.Cristianogritoupormimefuiatéele.

Entreinoveículo,ocumprimentei,maselenãorespondeu.Pelacara,viqueelenãoestavabem,soubenahoraquehaviachorado.Dirigiuporalgunsmetroseparounumaruatranquila.Eleabriuoporta-luvaseretirouumobjeto.

Ocelularqueeudeipraelefalarcomigo.—Acabou—eledisse,esperandoqueeupegasseoaparelhodamãodele.—Mas eu trouxe seu dinheiro. — Retirei o pacote da bolsa e ficamos um

oferecendoalgoaooutro.—Eudissequeacabou.—Avozdeleestava tãoseca, tãodolorosa.—Vou

devolvertodooseudinheiro.—Cristiano—pronuncieionomedele,quasesemforças.

Eraoterceirogolpetransformandoosmeuspedaçosempó.—Nãoqueromaisfazerpartedisso.—Eleestavachorando.—Vocêprecisa

setratar,temqueaceitarascoisascomoelassão.—Eunãosoulouca,Cristiano—falei,aborrecida.— Deixe os mortos em paz. Eles precisam de descanso, não entende isso?

Talvezexistaalgomelhordooutroladoqueessadrogademundo.Elespodemestaresperandopornós.

Nãoentendiporqueeleestavatãoperturbado.Aspalavrasdeleestavammedeixandoaindamaisangustiada.Eupegueiocelulardasmãosdeleesaídoveículo,nãoquissaberdodinheiro,deixeipraele fazeroquequisesseebatiaportadocarrocomforça.

Corri pelas ruas, chorando, esperando encontrar qualquer pessoa que meabraçasse,quemedissessequetudoiaacabarrápido,queaquiloeraumpesadeloterrível,masnãoapareceuninguém.Algumaspessoasmeolhavam,curiosas.Achoquepensaramqueeutinhabrigadocomonamorado.Maseuestavaperdendomeupaipelasegundavez.

Quandomecansei,continueicaminhandodevagar.EuviaaberturadoesgotoemumacalçadaejogueiocelularquepegueidoCristianoládentro.

Acheiquefosseahoradeaceitar.Chegueiaoparqueeprocureiumlugarcalmoondepudesseficarsozinha.Me

escondi atrás do tronco de uma árvore e fiquei lá. Tomei quase toda a água dagarrafinhaquehaviacomprado.

Eu senti vontade de gritar, gritar até explodir e desaparecer. As imagensestavam vindo umas atrás das outras formando um monstro que tentava medestruir por dentro. Minha festa, meus amigos, a notícia, o enterro dele, elesorrindo, oCristiano cantando,minhamãe, oVitor, vozes sussurravamnaminhamentedizendoqueeueraculpada,quenãodeviaterinsistidotantoqueeleviesseàminhafesta.

Aquiloestavameenlouquecendoenãoaguentei.Liberei o grito que estava preso naminha garganta e senti arder como se

estivessepegandofogo.Meassustei,quandoouvialguémfalar“veiodelá”.Saídaliporquenãoqueria

darexplicações.Corridenovoprarua.Euprecisavadele,precisavadoThomasprameajudaraficarbem.Eletemo

poder de afastar os monstros que me perseguem, senti isso desde o primeirocontato.

Liguei, liguei, ligueieelenãoatendeu.Nãoo tinhavistodesdenossoúltimoencontro.

LigueiproGabrielrepetidasvezesenada,tenteiotelefonedaFelicityenada.Tentei a Amanda e lembrei que estava grávida, que não tinha me contado. Derepente,medeicontaqueelesestãocheiosdesegredos.Eusintoqueestãomaisdistantesdemim.

Nãomerestouescolhaanãoserentrarnumtáxi.Chegueiemcasaquandoosoleraumafinacamadalaranjanocéu.Minhamãeestavasaindo,dissequeiaparaumeventodearquitetura.Quisme

levar, mas eu falei que não. Me perguntei se ela estava querendo criar umaoportunidadeparamecontarsobreonoivado.Euolheiparasuamãoenãotinhaaliança.

Me esforcei para que minha atuação ficasse perfeita, não queria que menotassetriste,nãoteriacomoexplicarpraelasemfalardoCristiano.

Fiquei sozinha no silêncio daquele apartamento. Tudo o que comi foi umasalada.Tenteiesvaziarminhamente,coloqueimúsicaaltaparaqueeunãoouvissemeusprópriospensamentos.

Eusentivontadedemedespedirdele,queriadaradeusaomeupainosmeussonhos.Deixá-loempaz,comodisseoCristiano.

Pegueiopotinhocomosremédiosecoloqueitodosnamão,nemconteiquantostinham.Coloqueinabocaeengolicombastanteágua.

Amaior dificuldade em controlar um sonho é semanter nele. Quando vocêpercebequeestásonhando,muitasvezesvemumsustoquetefazacordar.Outrasvezes,bastaqualquerbarulhoquetedesperta.Entãopasseiatomarremédiospradormirquandoqueriaficarmaistempocomele.

Naquelanoiteeuqueriaquedurassemais,sepossível,todaeternidade.Euestava láparaconcluirminhanarrativaonírica.Aparteemquemeupai

voltava pra casa. Eu tentei sonhar com ele no aeroporto dias antes, mas nãoconsegui, minha mente reproduziu aquele sonho da praça do pôr do sol e foiperfeito.

Quando estava saindo do apartamento com meus pais, percebi que estavasonhando,medeuuma tontura.Aquele foi omomento emquemedei contaquehaviachegadoaosonho,éumasensaçãoestranha.Quandonãotinhacontrole,euficavacommedoeacordava.Masconseguimemanterlá.

Tudoestavaindobem.Conseguifazeraquelamúsicatristemudar.Alicomeceiamepreocuparquealgodesseerrado.Erapraserumsonhofeliz.

Euperdiaaconsciênciaporalgunsinstantes,masrecuperavaocontrole.Ascoisascomeçaramaficarestranhas.Aquiloestavasetransformandonum

pesadeloenãoconseguiamaisacordarporcontadosremédios.Fiqueipresalá.Ogarçomdecabelosprateadosmealertou.Naquelemomentoeupoderiater

idoembora,teriaconseguidosairdaquelesonho,maseunãoquis.Entreiemdesesperocomaquelascoisas,nãosabiamaisseestavaacordada

oudormindo.Opesadeloacabouquandovimeupaidentrodocaixão.Depoisdaquilofuisugadaparaumaescuridãoprofunda.Enãoseicomosaídela,comofuipararnaquelecorredoriluminado.Mesenti

leveenãotinhaqualquer lembrançadoqueaconteceunaquelerestaurante,nemporqueestavaali.Haviamuitaluz,penseiqueeuestavamorta,euvioCristianocomaquelemeninoeficouclaropramimqueogarotoestavadoenteequeopaiestavatirandodinheirodemimpratentarcurá-lo.EutenteitocaroCristiano,masminhamão atravessou o corpo dele.Me controlei para não deixar o pânicometomar,aquiloeradiferentedesonho.

Depoisdisso,aimagemseguintequelembroédaminhamãechorandoaoladodeumamaca,oVitorestavacomela,agoraentendoquepercebeuquenãoacordei

etevedemelevaraohospital.Eu soube que não era um sonho quando me vi desacordada, e tenho mais

certezaagoraporquea lembrançaéaindamais real, euestive,de fato,naquelecorredor.

Nãoconsigoexplicarcomosedáapassagemdeumcenárioaoutro,oucomoaalmaviaja,seatravessaportais,maseufuiaoutrolugar.

Estavaemumapraia.Tudooqueouviaeraobarulhodaágua.Se o paraíso existisse, eu estava nele. Nada pesava emminha cabeça, era

comoseeutivesseacabadodenascer.Tudoeramuitobonito,ascoreseramvivas,osolbrilhavaeeuouviaosompurodanatureza.

Umbarquinhosurgiunapraiaecomeceiaouviroutrossons.Risadasdeumhomemeumagarotavinhamdaquelebarquinhodemadeira.Eu

nadeiatéeles.Aáguaestavacalmacomoadeumlago.Agarrei-meaumpedaçodemadeiraqueflutuavaalipertoefiqueiolhandoo

barcoseaproximar.Eraele.Ogarçomdomeusonho.—Éela—ouvielegritar.—Garota—gritoumaisalto.—Fiqueondeestá.AgarotaqueestavacomeleeraigualzinhaaFelicity,masocabelodelaera

loiroetinhaumsemblantediferente,maisfelizeuacho.Eunãoseiporqueminhaamigapreferepintarocabelodevermelhoseelaétãolindacomosfiosnaturais.

Talvez seja loucura, mas eu entendi que foi essa Felicity do barco que meindicouOSoléparatodos,dealgumaforma,foiela,emumsonhoounumaviagemastral.

Ogarotopulounaáguaemeassustei,nadeiatéconseguirchegaràareia.Saídaágua,sóentãonoteiqueestavacomumaroupadehospital.

Meaproximeideumgrupoderapazesetenteipedirajuda.Denovo,sentiasensaçãodaminhamãoatravessandoumcorpo.

—Espere—ouviogarotomechamar.—Elecaminhavadevagar,comamãoestendidacomosequisessemetocarouestivessecommedoqueeufugisse.—Nãotenhamedo—falou.

—Quelugaréesse?Porqueelesnãoconseguemmever?Euestoumorta?Elemeencarou,impressionado.Osrapazeshaviamseafastado.—Nãoconseguitocarneles.Vocêagiucomosemeconhecessequandomeviu

— continuei falando quando ele não disse nada.— Podeme explicar o que estáacontecendo?—Minhavozcomeçouafalhar.

—Nãopossotecontarmuitacoisaagora.Nãofariasentidopravocê.Precisoapenasquemeescute.

Eleentrouempânicoquandopercebeuqueeuestavadesaparecendo.—Nãosintamedo.Respire.Precisoquefiquemaisalgunsinstantes.Olheiparaasminhasmãoseviatravésdelas.—Estádesaparecendoporqueestácommedo.Tenteicontrolarminharespiraçãocomoelefalou.—PrecisaencontraraMaggie.Lembra-sedela?Procure-aeouçaoqueela

temadizer.Euabriosolhos.

Estavanumacamadehospital.Nãoseiseacordeinoinstanteseguinteouquantotempopasseinaescuridão

queseguiuapósaspalavrasdele.PrecisaencontraraMaggie.Lembrei da mulher que falou sobre os meus sonhos naquele consultório,

estranhamenteeunãolembravamaisdela.Mamãeestavarecostadanumacadeiracomumcobertorsobreocorpo.Meu

coraçãoencolheu,mesenticulpada,asimagensdosonhovoltaramàminhamenteemfragmentos,leveialgunsminutosparajuntá-los.

Estavafraca,minhacabeçadoía.Levanteidacamasilenciosamente,viminhabolsanumacadeira,pegueimeutelefoneetinhaváriaschamadasdoThomas.Umpedaçodepapelmefezlembrardosonhooudaviagemastral,nãoconseguisabernaquelamomento.Estavaescuro,masaluzdocorredormepermitiaenxergarascoisas,entendiquejáeranoiteoumadrugada,meuspensamentoseramconfusos.

Localizei roupas minhas, teria alta assim que amanhecesse, pelo visto. Metroqueicomcuidadoparaquemamãenãoacordasse,deviaestarmuitocansada.

Eu quis sair dali logo porque não estava preparada pra conversar com elasobreoqueaconteceu.Passeibatomsemnemmeolharemalgumespelho,masconfieinaminhaprecisão.

Peguei minha bolsa e abri a porta, caminhei sem encarar as pessoas, commedo que descobrissem que eu era uma paciente, não sabia qual deles estavacuidandodemim.

Encontrei o elevador sem que nenhum enfermeiro me interceptasse nocaminho.Éestranhocomoamenteseacostumacompadrões,seeuestivessecomaquelabatahorrível,centenasdelesteriammeimpedidodeirembora.

Océuestavaescuroefaziafrioquandochegueiàrua,masosoljáanunciavasuachegada.Entreiemumtáxiefaleioendereçoaomotorista,jáestavagravadonaminhacabeça.

Trintaminutosdepois,chegamosao local.Odiaestavaraiando,pediparaotaxistaesperarodiaclarearmais,dissequepagavaaesperaeeleaceitou.

Dormiumpoucoeosenhoraindacochilavaquandoabriosolhos.Aruaeradecasas pequenas, algumas crianças jogavam bola na rua. O número da casa queprocurava era o vinte e sete, quando localizei vi que se tratava de uma casaabandonada.Haviaummuroeumportãodebarrasdeferro.Toqueiobotãoquecertamenteseriaacampainha,griteipelonomeMaggie.Ovidrodajanelaestavaquebrado,apinturadaparededesbotada,eomatocrescianopisodepedra.

Eraimpossívelalguémmorarali.—Garoto—chameiopequenojogadordefutebol.Aproximei-memaisdele.—

SabemedizersemoraumamulherchamadaMaggienaquelacasa?Omeninodeviaterunsdozeanos,eleparoudecorreratrásdabolaquando

meaproximei,deixouseusamigosdisputaremporela.—Aquelaali?—Eleapontouparaacasinha.—Sim.Conheceasenhoraquemoralá?— Conheço... quer dizer conhecia. — O menino fitou o olhar na moradia

desgastadapelotempo.—Oqueaconteceucomela?Poracasosemudou?

—Sim—elerespondeusemtirarosolhosdaquelacasa.—Sabermedizerparaondeelafoi?—Paraocéu—eledisse,desviandooolharparamim.Senti um arrepio e logo em seguida a bola atingir minhas costas. Arqueei

baixinhoepasseiamãoportrásdoombro.—Cuidadocomamoça,vocêsestãocegos?—Tudobem,nãosepreocupe.Vocêestáquerendodizerqueelamorreu?—Sim,fazumtempojá.Achoquemaisdeumano.—Maséimpossível.Euaencontreifazpoucotempo,nãotemnemummês.—Sósevocêviuofantasmadela,porqueavimorta.Elafoienterradaetudo.Derepente,omundogirouenãosabiamaisoqueeraverdadeeoqueera

ilusão.Mepergunteiseaindaestavaviajandopelossonhos.Estavaconfusa.Mesentiloucanaqueleinstante.Osloucosveemcoisasqueninguémmaisvê.Olheiparaaquelepapelnaminhamão,nãoqueriadizernada,elepodianão

serreal.—Conseguemedizercomoelaera?—Ah,erabaixinha,cabeloscurtosebrancos,usavaóculos.Nãoeramagra,

mastambémnãoeragorda.—Etemcertezadequeelamorreu?—Claro.Evocêtemcertezadequeaviu?Tinhacertezaatéantesdelefalarnamortedamulher.—Tenho—respondimesmoassim.—Poisentãovocêestáficandolouca—disseomenino.Elevoltouasejuntar

aosamigos.Chutouaboladevoltaparaocoleguinha.Evolteiafalarcomele.—Sabedizercomquemelamorava?—Comafilhadela.Umaondadealíviopercorreumeucorpo.—Esabeondepossoencontrá-la?Afilha.Ogarotoestavadisputandoabolacomosamigos.—Nãosei—elegritou.—Masminhamãedevesaber.Casatrintaedois.—Obrigada—griteiemresposta.Caminhei até o taxi e pedi que o homem esperasse mais um pouco, ele

cochilava,masoacordei,eragordoetinhabigodesgrandes.Andeiolhandoparaascasasatélocalizaradaquelegaroto.Viumamulherlavandoroupanapiaqueficavado lado de fora da casa em uma área coberta que a protegia do sol. O ventobalançavaasfolhasdapalmeiraquetinhaaoladodacasa.

—Senhora—achamei.Amulhermeolhou.Fezumacaradequemtentavamereconhecer.Elasecou

asmãosemsuasaiaeseaproximou.—Emquepossoajudá-la?—perguntou,deixandoescaparumsorriso.—EstouprocurandoaDonaMaggie.Aquemoravanonúmerovinteesete.Aexpressãodamulhersedesfezcomoquemtemumanotíciaruimparadar.—Nãosabeoqueaconteceucomela?—Fazpoucotempoqueaconheci...bem...faleicomummeninoquedisseser

seufil...—Espere,espere.Dissequeaconheceufazpoucotempo?—Sim—falei,commedodareaçãodamulher.—Quantotempoexatamente?—Bom...—Fiqueiemdúvidasefalavaounão.—Nãotemnemummês.—Issoéalgumtipodepiada?—perguntou,claramenteirritada.— Ela me deu esse endereço. — Procurei o papel na bolsa, mas não o

encontrei, acho que o perdi. Há lacunas na minha memória que não consigopreenchê-las,comoofatodenãolembrarsedefatoeuoguardeioudeixeicair.—Devoterperdido,nãoestáaqui.Masaconheci,eujuro.

—Issoéimpossível.Elamorreufazmaisdeumano,menina.—Minha senhora, desculpe.Não estou inventando nada. Tudo isso émuito

estranhopramim.—Segureiasgradesdoportão,sóentãomedeicontaoquantoestavacomfomeefraca.—Temcertezadequeestamosfalandodamesmapessoa?

—Euquedevoperguntarsevocê temcertezaseestámesmoprocurandoavelha Maggie. — A senhora estava com uma expressão confusa. — Qual é seuinteresse?Vocêporacasoéumaparenteperdida?

Oventocolocouumamechadomeucabeloruivonaminhabocaeoretireiemseguida,colocandoatrásdaorelha.

—Não.Aencontreiporacasonumconsultóriomédico.Conversamos,elamedeuoendereçopraocasodeeuquererfalarcomeladenovo.

—Sobreoqueconversaram?— Sobre a vida. — Achei melhor não tocar no assunto dos sonhos, aquela

mulher ia me chamar de louca como fez o garoto. — Surgiu uma espécie deamizadeentreagente.

Asenhorameencarou,procurandoalgumsinaldementira.—Podemedizercomoelamorreu?—perguntei.—Teveum tumor raronocérebro.Ela foioperada,masmorreunasalade

cirurgia.—Espere,nãopodeser.Elamecontouquesobreviveuaessacirurgia.Por

quantosprocedimentoselapassou?—Vocêestábrincandocomosmortos,menina?—perguntouamulher com

desprezonavoz.—Oquequercontandoessasmentiras?—Nãosãomentiras,tábom?Temalgoestranho,masconheçoahistóriadela.

Omaridomorreujovemeelefoibompraela.Moravacomafilha.Elateveessadoença,massecurou.Elamedisse.

—Sesabetudoisso,devesabertambémqueelamorreuhámaisdeumano.Nãotemporquêsefazerdelouca.Vocêdevederlidosobreamortedelaemalgumjornal.OcasodelatambémfoinoticiadonaTVlocal.

—Ela nãomorreu.—Amulher deu as costas.—Espere, sabe onde possoencontrarafilhadela?

—Qualonomedela?—Como?—Onomedafilhadela,sesabequeelateveumafilha,sabeonome.Seme

disser,tedigoondeencontrá-la.

Maseunãosabia.Ounãolembravaseelachegouamedizer.—Vaiemboraenãoapareçamaisaqui.Vátratarsualoucura.Todosestavammechamandodelouca.Liguei pro Thomas, ele atendeu no primeiro toque, parecia estar me

esperando.Ouviravozdelefoicomosersalva,comosertiradadofundodomar.Eucomeceiachoraredissequeprecisavamuitovê-lo,precisavadele.Quisirmebuscarondeeuestava,masfaleiquechegarialá.

OtáxiparouemfrenteàcasadoThomas.Tivequenegociaracorrida,poisopoucodinheiroquetinhanãocobriuovalor,otaxistanãofezquestãodadiferença.

Oportãoda casa abriu.Euo vi caminhandoemminhadireção visivelmentepreocupado.Elemeabraçouforte,apenasmeentregueiaosbraçosdele,nãotinhaforçaparaabraçá-lo.

Ele me pegou no colo e caminhou comigo até a casa, eu apenas chorava.Encosteimeurostonopeitodele.

Thomassubiuasescadascomigo,eulembreidonossoprimeiroencontro.Comele,nãomearrependodenada.Eleabriuaportadoquartocomdificuldadeeaempurrou com o pé. Eu vi por sobre o ombro dele aquele quarto do final docorredoretiveumasúbitacuriosidadedesaberoquetemládentro,mesmoquenãotenhanada,quesejasóumquarto,fiqueicuriosadesdeoprimeirodia,somenteporqueelanãoestavaaberta.Talvezeudescubraembreve.

— Você está pálida. O que houve com você? — ele perguntou quando mecolocounacamacomcuidado.

—Nãoestoubem.Aconteceramalgumascoisas—falei.Nãosabiaoquedizer,sedeviafalaralgo.—Sóqueromeesconderaquicomvocê.

—Tá,tudobem.Masseacalme.Euaindachorava.Elebeijoumeurosto.Fuitomadaporumaestranhacalma.

Faleiqueestavacommuita fome.Elesaiucorrendodoquartoevoltoucomumabandejaquecontinhaumcopode leite,cereaisealgunspedaçosdefrutas.Comitudo,depoisfuitomarbanho.

Ficamos abraçados na cama em silêncio por alguns instantes. Mas decidicontaraelesobreomeupai,sobrecomoelemorreueoquantosintoafaltadele.Falei dos sonhos sem entrar em detalhes e nãomencionei o Cristiano, falei dosremédios,dequealgumasvezeseuconfundoessessonhoscomlembrançasreais,disse que tinha fugido do hospital e eleme convenceu a ligar praminhamãe eexplicar que estava bem. Ela só fazia chorar do outro lado da linha, mas pedidesculpas,expliqueiquequeriaficarsozinhaequevoltariapracasalogoeestavacomumamigo,alguémdeconfiança.

Ela insistiu para falar com o Thomas e deixei que trocassem duas palavrasparaqueseacalmasse.Thomasmeconvidouparafazeroalmoço.

—Souumdesastrenacozinha—faleipraele.—Nãolembradoovofrito?Elesorriuebeijoumeuslábios.Falouquegostavadeprepararaprópriacomidaquandotemtempo.Estamosemumdomingo,nãoseiquantotempopasseinohospital,minhamãe

podetermeencontradonasextaànoiteounosábadopelamanhã.Eupedi a ele algumas folhas e uma caneta e queme levasse à sua sala de

livros.Sentei-menapoltronadeleeareclinei,apoieiapranchetacomasfolhasnas

minhas coxas e comecei a escrever. Precisava descarregar meus pensamentos,tirartodasasúltimaslembrançasruinsquemeacontecerametentarorganizá-lasparaentenderoquehaviaacontecidocomigo.

Sempre gostei da escrita, tenho até alguns diários preenchidos. Depois quemeupaisefoi,sentiaindamaisnecessidadedeescrever.Elemefalavamuitodaimportânciadeviverbem,denuncaesquecerosmomentosbons.Sóqueelenãomedisse que para viver bem não depende só da gente, depende de um monte debêbadosirresponsáveis.

Gostoderegistrartodososmomentosquevivencieiejulgueiimportantesparaqueeununcaesqueçadelesouparaocasodeumdiaesquecer,poderrevivê-losatravésdasminhaspalavras.Écomoguardarasmemóriasemumlugarmágico.

Euacreditonopoderdaspalavras,achoqueescreverumdesejoéumaformadepedircomtodaaintensidadedaalma.Então,escrevinomeudiárioquemeupairetornariadeveznomeuaniversário,mentalizeiaideiacomforçaparaquedessecerto,masdessaveznãodeu.

Passeiaescreveralgunssonhosestranhosque tinha,algunsmuitoreaisqueme deixaram fascinada. E agora, somente agora, eu percebi uma coisa: aquelegarotomeobservandonosonhodaflorestaeraomesmodosonhodapraçadopôrdo sol, o que passou de bicicleta pormim, e ele também era o garçom naquelepesadelo maldito e era um dos guardas no sonho do rei que me pedia ouro. Ohomemdaminhavidaqueoreifalouqueiatrazerdevoltaaomundodosvivoserameupai,nãooThomas.

Tudoficouclaropramim,aquelegarotonãoapareceunosmeussonhosagora,lembrodeoutrosantigosemqueeleaparececomaquelescabelosprateados,aindaé difícil descrever os traços dele, mas sei que é bonito. Ele disse que estavachegandoahora,masnãoseiquehoraéessa,queriaesquecertudoisso,parardepensar nessas coisas, talvez sejam histórias que inventei das vezes que tenteicontrolarmeussonhos.

Masalgodentrodemimdizqueeleexisteecaminhapelosmeussonhosembuscadealgo.

De repente, eu tenho a estranha sensação de ainda estar dormindo, de nãoestar comoThomasde verdade,mas issodurapoucos segundosatéquandoelebateunaportaecolocoupartedocorpopradentro.Eledissequeoalmoçoestavapronto,nemmedeicontadequantashorashaviampassado.Eulevanteiedeixeiasfolhasnapoltrona,nosabraçamosenosbeijamos.Pedisómaisumtempinhoparaterminar o que estava escrevendo, ele ficou ali em pé na porta me esperandoterminarestaspalavras.

Qualquerdúvidaqueeutinhadeestaraindaemumsonhosedissipouquandosentiseucalor,tambémnãoestoulouca,pelomenosnãoquandoestoupertodele.

Thomasreconstróimeuspedaçose fazcomquemesinta inteiranovamente,achoqueencontreiomeurefúgio.Assimquecolocaropontofinalnestafolha,ireialmoçarcomeleetentarterumdiabom.Queroumachancedeencontrarminhapaz.

Vou entregar-lhemeu coração porque, ao seu lado, tenho esperanças que avidapodevoltaraserboa.

AGRADECIMENTOSMuitoobrigadoavocêquechegouatéaqui.Segostoudestahistória,meajude

a fazê-la criar asas. Comente nas redes sociais, indique para alguém que possagostar,avalienoSkoobounaAmazonevenhafalarcomigosobreoqueachoudela.

Soumuitogratoaosblogseinstagramsquefizeramasprimeirasresenhasdolivro e me ajudam na divulgação. São elas: Eduarda Garcez, do@caminhadaliteraria; Monica Rafaelly, a Rafa do @sentimentosebooks; NadyneGarcia,do@meuslivrosmeusvicios(esperolerseulivroembreve,simodaCamysrsrsr);MalaneQuadrosdo@vainamalablog.

Aos instagrams que se dispuseram a ler: o @naviodoslivros da Dine Lima;@meuslivros.minhasdicas, da Lara Prazeres e a Simone do@fernanda_avellar_eventos,queajudanadivulgação.

TaisRocha,umadasprimeirasleitoras,obrigadoporconversarcomigosobreestahistória.

AgradeçoàAlyneNascimento,queleurapidamenteedeusuaopinião,amigademuitoslivroslidosepromoções.

Aos amigos divulgadores: Alisson Farias, Talita Almeida, Thays Portela,RobertaLeal;minhasirmãsdivulgadorasMarcela,Marisa,GraçaeGabrielaeasprimasdivulgadorasThaisOliveiraeJéssicaOliveira.

Aos amigos Severino Neto e Basílio Lira pelas previsões motivadoras quefazemparaminhacarreiradeescritor,esperoquetodassecumpram(rsrs).

Obrigadoatodososamigosquesorriramquandosouberamqueeueraautordeumlivro,sãomuitosenãoconsigocitá-los.