Inês Isabel Salvador Cerqueira Representações em Filme de ...
A Imagens do Recife I: representações da cidade no Ciclo do Recife
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O Ciclo do Recife: anos 20
1. O Ciclo do Recife; 2. Uma cidade modernizada; 3. Burguesia moderna, mas nem tanto;
4. Espaços da modernidade; 5. Imagem e euforia.
1. O ciclo do Recife
A primeira exibição pública de cinema aconteceu em Paris em 1895 e é considerado o
marco do nascimento do cinema enquanto instituição cultural e econômica, difundindo-se daí
em diante como grande novidade pelo mundo. As primeiras filmagens em solo tupiniquim
são realizadas em 1896 ou 1897 e a primeira sala fixa de exibição de filmes surge em 1897,
no Rio de Janeiro (GOMES, 2001, p. 19-20).
Em Recife, as primeiras exibições ocorrem já em 1895, em espaços como o Teatro
Santa Isabel; a primeira sala exclusiva de cinema da cidade teria sido o Pathé, surgido em
1909 (SETTE, Mário apud SARAIVA, 2013, p. 18). Há registros de que em 1910 o Cine
Pathé filmou alguns naturaes (filmes documentais) e de que dois cinejornais foram aqui
produzidos em 1916 e 1917 (CUNHA, 2010); também outras duas produções locais de
cavação, feitas por Aristides Junqueira, foram exibidas em 1920 (ARAÚJO, L. 2011); nisso
resumiu-se toda a produção cinematográfica do Recife nas duas primeiras décadas do século
XX.
Durante a década de 20, viu-se surgir no país polos de cinema outros que Rio de
Janeiro e São Paulo. Esses surtos produtivos, ocorridos em Campinas, Belo Horizonte,
Cataguases, Porto Alegre, Pelotas e várias outras cidades, foram chamados “ciclos regionais”.
Dos ciclos regionais, o do Recife foi o mais expressivo em números. Segundo Paulo
Cunha (2010, p. 38), foram cerca de 29 diferentes filmes rodados entre os anos de 1923 e
1931, entre naturaes e ficções. Já Luciana Corrêa de Araújo (2012) afirma a existência de
“mais de 40 filmes” de ambos os gêneros e, sem apresentar uma lista compreensiva, enumera
diversos naturaes ausentes da compilação de Cunha. Alguns projetos permaneceram
inacabados e muitas películas se perderam, como ocorreu com a maior parte da produção
brasileira da época. O ciclo envolveu 17 diretores de um grupo de cerca de 40 pessoas e nove
diferentes firmas produtoras (CUNHA, 2010, p. 90).
Foram produzidos tanto “naturaes” quanto “posados”. Os naturaes eram filmes
documentais e acredita-se que boa parte deles tenha sido produzida sob encomenda do
governador Sérgio Lorêto, para fins de propaganda. Luciana Araújo (2012) conjectura que o
governo não assumia oficialmente os gastos de propaganda. No natural Veneza Americana
(1925), os diretores exibem uma cartela onde negam ter recebido apoio financeiro do
governo, após tecer elogios à administração. No entanto, parece evidente, pelo conteúdo dos
filmes e sua utilização posterior, que o governo de Lorêto assimilou o cinema a seu amplo
aparato de propaganda.
Os filmes de enredo, ou posados, como eram conhecidas à época as ficções, tiveram
outra base econômica:
Tendo sido comandado por pequeno-burgueses e proletários (operários, ourives, gráficos, funcionários
de baixo escalão, comerciários), o Ciclo conseguiu convencer a elite recifense, sobretudo os
comerciantes da cidade, não apenas a financiar, mas igualmente a participar, muitas vezes como meros
figurantes, das produções. Este vínculo entre jovens quase pobres ou remediados e a burguesia local
deu ao Recife uma posição diferenciada no quadro da cultura urbana periférica moderna. (CUNHA,
2010, p. 135)
Essa aliança não transformou o cinema recifense em uma empreitada segura ou
confortável: a precariedade dos equipamentos, os riscos e as dificuldades financeiras serão
constantes; permitiu, no entanto, que a paixão de algumas dezenas de jovens pelo cinema se
transformasse em encenação da modernização da cidade.
A maior inspiração para as ficções do ciclo foram os populares filmes norte-
americanos, que serviram de modelo para quase todas as histórias pernambucanas. Em alguns
casos, o decalque, evidente para qualquer frequentador de cinema, era pintado com cores
locais, como em Aitaré da Praia (1925). Do ponto de vista artístico, tiveram como objetivo o
entretenimento e o sucesso de público. Apesar do uso de recursos como a superimpressão e o
flashback, não se tentou experiências estéticas ousadas, como fizeram as vanguardas
artísticas dos anos 20 e mesmo cineastas brasileiros da época como Humberto Mauro (Brasa
Dormida, 1928), no ciclo de Cataguases, ou Mário Peixoto (Limite, 1931).
Enquanto o cinema de São Paulo e Rio de Janeiro seguia a linguagem contemporânea
da principal produção comercial mundial, os filmes de ficção do ciclo ainda empregavam a
gramática visual da década de 1910, já em desuso no cinema que tentavam emular. Enquanto
isso, os naturaes da Pernambuco-Film, da dupla italiana Ugo Falangola e J. Cambieri, lançam
mão de recursos técnicos e estéticos mais singulares, como coloração de película e inversão
de planos.
2. Uma cidade modernizada
A modernização do Recife aconteceu em dois períodos: no primeiro, entre 1909 e
1915, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito implantou os modernos sistemas de esgoto
e água da cidade (uma parte do projeto foi concluída apenas em 1918) ao mesmo tempo em
que foram feitas as tão aguardadas obras atualizadoras do Porto do Recife e a arrasadora
reforma do centenário Bairro do Recife, cuja arquitetura colonial foi posta abaixo para que
fossem singradas novas e largas avenidas (ARAÚJO, R., 1996; MOREIRA, 1994).
No segundo período, o governo Sérgio Lorêto (1922-1926) dedicou-se à construção
do monumental Parque do Derby, a uma nova reforma do porto e à abertura da Avenida
Beira-Mar (e outras menos badaladas) na região sul da cidade, o que alargou os limites da
cidade para as regiões do Pina e Boa Viagem, fazendo surgir um novo acesso à praia para a
população recifense no que antes era um coqueiral quase inabitado. Em concertação com o
governo do estado, a prefeitura da cidade dedicou-se a projetos menores, nomeadamente o
“aformoseamento” de praças em pontos importantes dos limites da área urbanizada e obras
nas vias de ligação do núcleo central com as freguesias suburbanas, como Madalena e
Encruzilhada, propiciando a expansão da malha urbana (MOREIRA, 1994).
Este governo foi, além de contemporâneo do ciclo do Recife, relevante financiador do
surto através de suas encomendas. Seu conjunto de intervenções na cidade foi, como o do
período de 1909-1915, um exemplo típico do urbanismo então praticado no Brasil nas
primeiras décadas do século XX. Nessa época, deu-se importância à criação de novas áreas
para a expansão controlada da cidade, alargamento de vias, abertura de avenidas para a
circulação interna em veículos, embelezamento de praças e áreas centrais (“melhoramento”)
inspiradas na Paris de Haussman, obras de atualizações dos portos e “higienização” da
cidade.
Essa higienização era realizada em três frentes: a implantação de sistemas de água e
esgoto; reformas arquitetônicas que permitissem a circulação do ar e o contato com o sol nas
moradias e ruas, que de acordo com a arquitetura colonial brasileira eram tipicamente
apertadas e abafadas; e, por fim, o combate à insalubridade identificada à pobreza, através
das moradias precárias (mocambos em regiões pantanosas, sobrados super-habitados)
(LEME, 1998; MOREIRA, 1994; VILLAÇA, 1999).
Na segunda metade do século XIX, aportaram no Brasil ideologias europeias, dentre
as quais se destacaram o liberalismo e o positivismo. A fermentação dessas ideologias,
especialmente o positivismo, fez disseminar o ideário de uma “Regeneração Nacional”: uma
completa reforma moral da sociedade brasileira baseada no progresso e na ciência para
“findar a imagem de uma sociedade e de suas cidades marcadas pelo signo da imundície, da
disfuncionalidade, da promiscuidade e da pavorosa concentração das massas nos centros”
(MOREIRA, 1994, p. 53). O avanço do capitalismo europeu e norte-americano em direção à
América do Sul – em busca de matérias primas, mercado consumidor e áreas de investimento
(bancos, serviços de transporte), com forte penetração britânica – colaborou, junto com esses
ideais, para a desagregação da antiga sociedade colonial.
Os vários tipos comuns de atuação no tecido urbano originavam-se de diferentes
aportes ideológicos, mas reforçavam-se mutuamente num projeto de modernidade. As obras
portuárias tinham como objetivo a adequação das vias de escoamento da produção e trânsito
de bens para comércio, numa época em que os avanços tecnológicos nas embarcações havia
tornado antiquados muitos portos brasileiros, como o de Recife. O advento dos bondes a
burro, depois elétricos, e do carro particular vieram unir-se à necessidade de circulação do ar
na demanda por avenidas largas e retilíneas, pois a teoria dos miasmas da qual era adepta a
classe científica da época (e que viria a ser superada pela teoria microbiana em pouco tempo)
creditava aos fluidos estagnados a origem de moléstias. A influência cultural francesa fazia
da Paris reformada, moderna, não mais medieval, o modelo de referência para os ares
europeus do qual deveriam ser dotadas as cidades modernas, mesmo aquelas ao sul do
Equador. Essa nova arquitetura era formada por vias amplas que substituíram as ruelas
medievais francesas e coloniais brasileiras.
Numa cidade moderna não havia lugar para o proletariado urbano nas regiões centrais,
sendo as reformas e o medo das pestes que assolavam várias cidades brasileiras as alegações
oficiais (e provavelmente sinceras, ao menos em parte) para o higienismo praticado à época.
A modernidade era uma ideologia do progresso, da superação do antiquado, pobre e sujo
passado colonial brasileiro em direção a uma próspera e “hygienica” civilização, o que
passava necessariamente pela reformulação das bases materiais da sociedade na cidade.
A partir do século XIX se desenvolverá no Recife um discurso organicista sobre a
cidade, (OUTTES, 1991). Suas bases remontam a séculos anteriores e influências de teorias e
práticas médicas europeias, havendo um precoce exemplo de sua execução na região ao fim
do século XVII, na luta do Marquês de Montebelo contra a febre amarela. Este ideário bebe
da medicina social, de caráter preventivo e de proteção dos sãos em oposição à cura dos
doentes, e transforma a ação sobre a cidade numa forma de limpeza passível de evitar a
reprodução de doenças. A metáfora da cidade enquanto corpo biológico a partir do século
XIX trará como consequência a penetração do saber médico no poder público. Do mesmo
discurso emergem duas submetáforas importantes: de um lado, as doenças da cidade e da
cidade doente, associada à cidade colonial; de outro, a dos médicos da cidade, os sanitaristas
e urbanistas.
Surgirá uma forma de planejamento urbano totalizante e normativa: “A medicina
social quer conhecer, prever e controlar as quinas e esquinas do meio ambiente construído.”
(OUTTES, 1991, p. 20). Na passagem para o século XX, em reação à transformação da
economia escravocrata para capitalista, a medicina social será instrumentalizada pelo poder
estatal a fim de garantir não só a salubridade física e moral da população, mas a
produtividade das massas trabalhadores para o capital.
3. Burguesia moderna, mas nem tanto
O projeto moderno dos filmes do ciclo do Recife tem naturalmente suas
particularidades, o que o diferencia ainda mais de seus correspondentes no Brasil e na
Europa, como o cinema de São Paulo e o da República de Weimar. A Berlim dos anos 20 foi
palco de muitos dos filmes pertencentes ao gênero conhecido como city film, que, segundo
Barbara Mennel,
thematize urbanity, especially the period’s understanding of the dangers and pleasures of modern urban
life: crime, anonymity, a loosening of morality, unemployment, and class struggle on the one hand, and
movement, speed, entertainment, and liberated erotics on the other. (MENNEL, 2008, p. 23)1.
Jean-Claude Bernardet (1980, p. 146) aponta que, no cinema brasileiro da década de
20, a cidade foi retratada de duas formas antagônicas e igualmente “ingênuas”: numa, a
cidade parece encarnar a perdição e a decadência moral para os seres puros vindos do campo;
noutra, uma “euforia diante da urbanização galopante” prevalece nas telas e a cidade é vista
como progresso ou espaço de libertação.
Dos filmes recifenses, podemos dizer que se detiveram quase exclusivamente na
idealização da cidade, sem as nuances éticas do city film nem a demonização da urbe presente
em algumas películas do cinema brasileiro. Não há referências ao conflito de classes no
1 “tematizam a urbanidade, especialmente a compreensão do período sobre os perigos e prazeres da vida urbana
moderna: crime, anonimato, um afrouxamento da moral, desemprego e luta de classes, de um lado; e
movimento, velocidade, diversão e liberdade sexual, de outro.” (tradução nossa).
espaço urbano, apesar do ativo e combativo movimento operário2; nem à pobreza urbana,
evidente pelos mucambos que se multiplicavam; nem à violência, fosse ela a criminalidade
comum ou aquela ligada aos marcantes problemas políticos – levantes militares, assassinatos
políticos, confrontos entre grupos rivais –, nada incomuns no Pernambuco turbulento da
década de 20. Das mazelas sociais, apenas a doença figurou com clareza em um filme de
ficção, publicitário: Um ato de humanidade (1925) mostra um jovem sifilítico que mora nas
ruas e é curado por um remédio milagroso que vem a ser o produto posto a venda. Também
pelo menos um natural, Pela Saúde (A. Grossi, 1924), se refere diretamente às obras
sanitárias do período Lorêto.
Podemos creditar essas notáveis ausências e os contrastes em relação a outros filmes
da época à distância entre o projeto de imagem e a realidade da cidade, à dose de utopia da
ambição moderna em Pernambuco, que pretendia assentar as bases de um modo de vida
importado sobre uma realidade provinciana que se procurou dissimular. As ficções do ciclo
foram quase todas melodramas, onde figuravam lutas corporais, romances, traições e
assassinatos.
A Filha do Advogado (Aurora-Film, 1925/1927) é um dos filmes sobreviventes que
melhor encenam o modo de vida moderno ao qual a burguesia recifense se propunha,
mesclando modernidade e conservadorismo – socioeconômico e de costumes, na medida do
possível. Aceitava-se a modernidade como uma moda, um entretenimento, em parte uma
necessidade para as condições da economia da época, mas não como um projeto real de
alteração de valores da sociedade. Assim, tentava-se ter o melhor dos dois mundos: o luxo
burguês e a moral tradicional (e maniqueísta).
Seguindo “exemplarmente a cartilha do melodrama” (ARAÚJO, L., 2006, p. 2), a
trama se desenvolve em torno de uma moça rica, Heloiza, que se muda do campo para a
cidade, habituando-se sem choque; ela se interessa por um jovem intelectual de bons modos
que lhe retribui, mas também se torna alvo de cobiça de outro rapaz, Helvécio – seu meio-
irmão por parte de pai, embora nenhum dos dois o saiba. Ele tenta estuprar Heloiza e, para
defender sua honra, ela o mata com uma arma de fogo.
Helvécio é definido pelo letreiro como “libertino e estroina, vítima das loucuras do
mundo” e representa, em sua completa vilania, o perigo da perdição da cidade: gastador,
violento, mulherengo, irresponsável. O final feliz do filme vê a heroína absolvida do crime de
assassinato e a legitimação social de sua virtude, em oposição ao mundanismo do vilão que
esta mesma sociedade havia tolerado.
Em paralelo a este triunfo da moral burguesa conservadora sobre os perigos dos
tempos novos, o filme tem o objetivo claro de mostrar a cidade do Recife em seus aspectos
modernos: o porto e o transatlântico; o Cine Royal, que estreou muitos dos filmes do ciclo; o
grande trânsito de pessoas, automóveis e bondes elétricos na junção da Rua Nova com a
Ponte da Boa Vista em sua moderna arquitetura de ferro; as toaletes, o cabaré e a saída da
2 Já em relação ao ambiente rural, Revezes... (1927) põe em cena o confronto de uma comunidade contra um
violento coronel no Agreste pernambucano, mas mesmo em relação ao campo o tópico parece ser uma exceção.
missa na Matriz da Boa Vista; reunindo assim “um considerável repertório de
comportamentos e fetiches modernos e mundanos” (ARAÚJO, L., 2006, p. 10).
Embora, como já dissemos, Recife fosse uma cidade de fato violenta, na dicotomia
campo/cidade coube à última ser o espaço do futuro sadio e ao campo o papel de ambiente de
violência e de vulnerabilidade; enquanto a cidade era moderna (futuro), o campo era arcaico,
pretérito ou em vias de tornar-se.
A julgar pelas cópias preservadas e pelas
sinopses, nos filmes de enredo pernambucanos
não iremos encontrar a exaltação do campo
enquanto espaço idílico, reduto da simplicidade e
dos valores mais elevados. Enquanto Revezes... e
Sangue de irmão reforçam a violência de um
mundo historicamente fundado na figura da
autoridade e na desigualdade de classes, filmes
como Jurando vingar e Aitaré da Praia, mesmo
exibindo um campo economicamente lucrativo e
as atraentes belezas naturais do litoral,
respectivamente, acabam por enaltecer o espaço
urbano, mais precisamente a cidade do Recife,
“onde todos desejam viver”. O lugar do progresso
e da modernidade tão desejados é a cidade.
(ARAÚJO, L., 2013, p. 21)
A visão da cidade como progresso, futuro e destino não deixa de remeter ao
pensamento de Voltaire sobre o urbano, tal como colocado por Schorske (1998). Schorske
divide em três campos heterogêneos a tradição do pensamento europeu sobre a cidade, onde
Voltaire faz parte do grupo dos filhos do Iluminismo que viam a urbe como “virtude”. Para o
filósofo francês que elegeu Londres como nova Atenas, “industry and pleasure” era o que
tornava distinta a cidade e juntas formavam “civilization” (SCHORSKE, 1998, p. 38). O
espaço urbano era o ambiente propício para o progresso, a liberdade, o refinamento de seus
indivíduos e a vida do conforto do rico aristocrata cuja presença, contrastando com a pobreza
que lhe cerca, serviria de exemplo edificador a estimular a ascensão social.
O caminho natural, para Voltaire, é do
campo para a cidade. É exatamente o que
ocorre em Aitaré da Praia, onde os
protagonistas Córa e Aitaré reencontram-se em
Recife e retomam sua história de amor
interrompida por intrigas anos atrás, na época
em que viviam numa remota comunidade de
pescadores. Ambos encarnam uma ascensão
social sem percalços: depois de saídos da praia,
ressurgem como perfeitos burgueses citadinos.
Numa desconcertante semelhança com o rico
urbanita de Voltaire (“the spendthrift aristocrat
O cabaré febricitante em A Filha do Advogado
(1925) (Fonte: FUNDAJ).
Córa e seu irmão visitam a modista (Aitaré da
Praia, 1925) (Fonte: FUNDAJ).
pursuing a life of ease in the city, a true child of the pleasure principle”3; SCHORSKE, 1998,
p. 39), para o personagem Aitaré
a modernização implica em mudança de classe e, consequentemente, abandono do trabalho braçal – ou
de qualquer trabalho. No palacete, o momento de lazer de Aitaré e seus anfitriões aproxima-se do
abatimento, com todos eles sentados, sem outra ocupação além de ler jornais e revistas. (ARAÚJO, L.,
2013, p. 20)
A invisibilidade do trabalho também é notada no personagem de Lucio, o par
romântico de Heloiza em A Filha do Advogado, que é interpelado na rua como um jornalista
de renome (profissão de praxe dos intelectuais recifenses à época):
De resto, seu trabalho intelectual
resume-se a ler jornais e a começar por
conta própria uma investigação do
crime, que não leva adiante. No seu
quarto ou na mesa do jornal não há
livros, apenas jornais (...). No final de
contas, o jornalista que revoluciona o
mundo intelectual da cidade pouco se
diferencia do consumidor médio da cada
vez mais fortalecida cultura de massa.
(ARAÚJO, L., 2006, p. 12)
Essa visão de cidade moderna à la
Voltaire que encontramos nos filmes
parece condizente com a modernização
urbanística posta em prática. Mas se o
cinema recifense estava com ela alinhado, o mesmo não se pode dizer de parte de outros
artistas da cidade. Vários homens de letras da época demonstraram posições divergentes em
relação às obras de renovação do Recife, indo da ambiguidade à crítica mordaz. “A perda
irremediável do patrimônio arquitetônico e urbanístico da cidade comoveu alguns artistas,
escritores e literatos que proferiram críticas” (MOREIRA, 1994, p. 101). Entre os nomes de
certa expressão que se pronunciaram na década de 20 contras as reformas, constam Gilberto
Freyre4 e Joaquim Cardozo
5. Mesmo Saturnino de Brito também criticou, em trabalho
posterior e longe da imprensa, o estilo terra arrasada da reforma do Bairro do Recife, como
nos conta Roberto Araújo (1996, p.79-80) – o que é de causar certa surpresa, já que o
objetivo final das reformas era precisamente o de substituir a arquitetura antiga da cidade,
insalubre, por um novo traçado de acordo com o que preconizava o próprio sanitarista.
3 “o aristocrata perdulário que levava uma vida de ócio na cidade, um verdadeiro filho do princípio do prazer”, -
tradução de Pedro Maia Soares: Pensando com a história (Cia. das Letras, 2000). 4 Um apanhado das críticas que fez o historiador, antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) à
modernidade recifense, que desprezava suas tradições, pode ser encontrado em PALLARES-BURKE (2014). 5 Joaquim Cardozo (1897-1978) foi ao mesmo tempo poeta e engenheiro, exercendo também a profissão de
professor universitário. A ideologia dominante em sua profissão não o impediu de publicar, em 1924, durante
administração de Lorêto, um poema crítico das transformações da cidade, na Revista do Norte (Ano II, 2º
quinzena, novembro de 1924), reproduzido em Melo, 2000, p. 52-3.
Tédio burguês em Aitaré da Praia (1925) (Fonte:
FUNDAJ).
4. Espaços da modernidade
Em A Filha do Advogado, uma considerável parte das cenas se passa nas residências
dos personagens da alta sociedade recifense, em modernas e pomposas casas chamadas à
época de “palacetes”. Alguns exemplares são o novo lar de Heloiza e sua mãe na cidade; a
casa de Heloiza e seu marido, ao final do filme; a mansão dos Bergamini, família da noiva de
Helvecio; e a casa do advogado Paulo Aragão, emprestada pela tradicional família Bandeira e
situada na Avenida Rosa e Silva (CUNHA, 2010, p. 114) – todas em estilo eclético,
referenciando temas europeus, como o ar inglês da residência dos Bandeira.
Os palacetes foram, junto ao automóvel,
um dos índices de modernidade que a burguesia
da cidade passou a adotar a partir das
transformações urbanas pela qual passou Recife
na década de 20, sob batuta do governador Sérgio
Lorêto, e vieram a povoar vistosos locais como o
antigo bairro da Boa Vista, o todo recente bairro
do Derby e as novas ou renovadas avenidas Rui
Barbosa, Rosa e Silva e Beira-Mar, entre outras.
Este conjunto de obras foi do interesse de uma parcela da
burguesia local, geralmente oriunda das atividades
comerciais, que aos poucos se desloca para os subúrbios,
ávidas pelo ‘new way of life’ destes aprazíveis locais. Principalmente depois que as condições básicas
foram lançadas e que o automóvel redimensionou a noção de distância do século XIX. [...] Estes novos
espaços se tornaram o local propício para manifestações civis e de atividades características da
modernidade tão almejada. (MOREIRA, 1994, p. 136).
Muitos dos novos espaços modernos de Recife aparecem de algum modo nos filmes
do ciclo e Veneza Americana (Pernambuco-Film, 1925) é um dos que melhor os relaciona.
Nele, aparecem o porto do Recife, as obras de expansão dos armazéns portuários, as obras de
reforço do quebra-mar, a inauguração da Avenida Beira-Mar, a praia de Boa Viagem, o
recém-construído Derby, entre outras paisagens naturais e atestados de progresso.
A construção do Parque do Derby, bem
como a das avenidas para além da Ilha do Pina,
faziam parte do projeto do governo local em
guiar a expansão da cidade, antecipando-a. A
região do Derby, não distante dos bairros
centrais da cidade, era um descampado que
possuía apenas algumas ruínas dos
empreendimentos que ali foram erguidos e
abandonados no início do século. Com a
desculpa da necessidade de espaço para um
novo quartel, o governo do estado comprou a
área e ali construiu o Quartel do Derby, à beira
Palacete dos Bandeira em A Filha do
Advogado (1925) (Fonte: FUNDAJ).
Quartel do Derby (Veneza Americana, 1925)
(Fonte: FUNDAJ).
Banhistas na praia de Boa Viagem (Grandezas de Pernambuco, 1925) e vista da Avenida Beira-
Mar (Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).
do Capibaribe; criou também um amplo parque no estilo das cidades-jardins inglesas, que
seria usado para grandes eventos cívicos e sociais (MOREIRA, 1994, 1999).
O novo bairro demorou a ser povoado e o poder público tomou a iniciativa de equipá-
lo com prédios públicos nos moldes dos palacetes. As imagens do Derby presentes em
Veneza Americana foram feitas em 1924, quando o espaço sediou a Exposição Geral de
Pernambuco. Os cineastas Ugo Falangola e J. Cambieri, de origem italiana, aproveitaram
para registrar não só a movimentação de pessoas no parque como a sensação de velocidade
de dentro dos brinquedos.
Enquanto o Derby expandia a cidade para o interior, Boa Viagem o fazia em direção
ao sul, pela costa. Lá, o governo fez construir três avenidas: de Ligação, Entroncamento e
Beira-Mar, a mais famosa, que margeava a praia. A obra foi duramente atacada pelos
opositores do governo, que criticaram os enormes gastos e a prioridade da construção. Uma
vez a avenida pronta, seus lotes lindeiros foram rapidamente ocupados – novamente, por
palacetes, desta vez de veraneio – embora este subúrbio como um todo tenha levado mais de
década para ser mais densamente ocupado e perder a característica de contato com a natureza,
em meio aos coqueirais.
Se alguns viram as obras da atual zona sul como um desperdício de dinheiro, uma
larga parcela da população não deixou de considerar as avenidas uma intervenção
Brinquedos no Parque do Derby por ocasião da Exposição Geral de Pernambuco de 1924 (Veneza
Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).
extremamente proveitosa. O novo balneário, com boa aeração, reforçava as características de
modernidade da cidade dotando-o de um novo espaço social e de lazer e com uma nova
avenida costeira para carros.
Veneza Americana também dedica alguns minutos para mostrar o trajeto de um bonde
do centro ao subúrbio da cidade. O carro é um veículo especialmente inaugurado pela
Pernambuco Tramways, concessionária inglesa dos transportes da região, para fazer o trajeto
em direção a Boa Viagem (o que demonstra o impacto da criação da área), mas fazia outras
linhas enquanto não se completavam as obras das avenidas.
Em planos sucessivos, observamos o bonde partir do início da Avenida Marquês de
Olinda e trafegar por vários pontos do centro, cruzando as pontes Maurício de Nassau e da
Boa Vista – nos dando o ângulo oposto àquele da Ponte de Ferro em A Filha do Advogado,
onde um personagem toma o bonde no sentido inverso. Ao se afastar cada vez mais do
centro, a cidade toma feições mais calmas e arbóreas, até a parada final do bonde –
provavelmente na Várzea, destino afixado ao veículo.
As Avenidas Rio Branco e Marquês de Olinda foram projetadas partindo da Praça Rio
Branco, no porto, formando linhas retas e divergentes que rasgavam a estrutura pré-existente
do Bairro do Recife e criando um impacto cenográfico. Foram construídas durante as
reformas do porto da primeira metade dos anos
1910 inspiradas nos boulevares haussmanianos.
Vê-se nas imagens como a Marquês de Olinda
é larga, ladeada de prédios de três pavimentos
com fachadas maciças e imponentes. As novas
avenidas, como outras ruas movimentadas do
centro, tornaram-se importantes lugares da
modernidade em Recife, ponto de encontro e de
passeio (dito footing, no anglicismo da época),
onde transitavam “almofadinhas” e
“melindrosas”.
Plano e contra-plano: o movimento de carros e bondes na Rua Nova e Ponte da Boa Vista em
Veneza Americana (1925) e A Filha do Advogado (1925) (Fonte: FUNDAJ).
Avenida Marquês de Olinda (Veneza
Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).
Entretanto, de todos os sítios da cidade, o porto é certamente o personagem mais
importante em Veneza Americana, “o protagonista da história de progresso narrada pelo
filme” (ARAÚJO, L, 2011). Além de Veneza, o porto figura também (muitas vezes com
tempero de propaganda) em Grandezas de Pernambuco (Olinda-Film, 1925), A Filha do
Advogado (1926), No Cenário da Vida (Luís Maranhão, 1930) e num filme doméstico sobre a
passagem do hidroavião Jahú em Recife em 1927.
Nesses filmes, o porto simboliza o
cosmopolitismo da cidade e o progresso
econômico de Pernambuco, sempre com ares
de grandiosidade. Em Veneza, filma-se a
chegada do Gelria, primeiro paquete de
grande calado a atracar dentro do porto e, na
segunda visita do navio à cidade, registra-se o
encontro entre o comandante do navio e o
governador Sérgio Lorêto. O presidente da
província é filmado subindo e descendo a
rampa de acesso ao navio – mostra do
conforto e da modernização do porto, onde
agora os passageiros podiam descer diretamente ao cais, ao invés de ter que tomar outros
barcos fora da baía para completar o trajeto.
Também são mostrados os “grandiosos trabalhos, na ancia de febril movimento,” de
atualização do porto, sempre em obras; o
reforço do quebra-mar, feito com guindastes de
dezenas de toneladas sempre mencionadas nos
letreiros; as obras de expansão dos armazéns do
cais; e o transporte de mercadorias nas docas –
em Recife, “é colossal o movimento de
importação e exportação”. Claramente, motivo
de orgulho: “o porto do Recife, que, ainda ha
poucos annos mal podia abrigar os pequenos
costeiros nacionaes, é, hoje, por seu
movimento, o terceiro da Republica”, diz a
cartela.
A forte propaganda do porto em Veneza Americana apenas reflete a grande
importância que a ele davam os governantes e as elites locais. Reformas de atualização são
esperadas desde o século XIX e toda a reforma do Bairro do Recife, bem como a instalação
dos sistemas de água e esgoto da cidade, foi realizada a reboque das obras do porto –
administrativamente e financeiramente, dependeram da oportunidade criada pelos
empréstimos e consórcios firmados para as reformas portuárias (MOREIRA, 1994).
Mas nem as próprias reformas do porto se deram em razão exclusiva das necessidades
econômicas da província, como revelam vários documentos da Associação Comercial de
Cais lotado para presenciar atracação do Gelria
(Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).
Paquete, farol e porto vistos dos arrecifes
(Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUDAJ).
Pernambuco (ACP), representante da diversa fauna da elite econômica local. Além de invocar
os naturais imperativos de mercado, a ACP, que sempre dera muitíssima importância à
questão do porto, não se esquece de mencionar a importância estética que ela teria, associada
à reforma do bairro portuário. Assim é que não deixam de mencionar mais de uma vez o
constrangimento causado aos conterrâneos quando da visita de um turista à cidade,
encontrando precários equipamentos portuários e um bairro considerado deselegante
(TEIXEIRA, 2012b).
Parceira dos poderes públicos locais em sua missão de “embelezar” a cidade, a ACP
se viu no direito de solicitar a esses mesmo poderes amplos benefícios em favor de um
projeto específico: a construção de sua nova e monumental sede que contribuiria para
abrilhantes o bairro remodelado. Com a adesão do governo da província e da bancada
pernambucana no Congresso, a Associação conseguiu recursos junto ao governo federal para
seu “palacete do comércio”, como passou a ser chamado.
Muito se esforçou ela [a ACP] para que este novo edifício tivesse todos os atributos capazes de
provocar um forte impacto, seja pela beleza, seja pela grandiosidade. [...] De tal modo esteve, desde o
início, a construção da nova sede marcada por esse objetivo, que ocorreu, inclusive, a desclassificação
de um dos projetos arquitetônicos apresentados à concorrência aberta, na medida em que o mesmo,
segundo parecer da comissão julgadora, deixava “muito a desejar quanto à ornamentação”, não
apresentando “o aspecto monumental que devem ter edifícios desta natureza” (TEIXEIRA, 2012b).
O novo prédio foi inaugurado com
festa em 1915, na esquina da Avenida Rio
Branco e em frente à Praça Rio Branco (hoje,
Praça do Marco Zero), tendo sido captado à
distância em Veneza Americana, quando os
cinegrafistas, provavelmente posicionados
sobre os arrecifes, filmam a visão que se tem
do porto quando se está ao mar, onde a Praça
Rio Branco revela, entre os armazéns, a
cidade, já definidas pelas avenidas e pelos
edifícios altos ecléticos encimados por cúpulas.
5. Imagem e euforia
Para Paulo Cunha, o ethos central do Ciclo do Recife foi a encenação do fenômeno da
modernidade (periférica, burguesa) dos anos 20 nesta cidade. “Havia, no Recife, um novo
modo de querer ser. De desejar se vestir, habitar, trabalhar, se movimentar – como na
metrópole –, não para se legitimar, mas para fingir se esquecer do provincianismo e adotar as
formas da vida cosmopolita.” (CUNHA, 2010, p. 82). Esse projeto de modernidade inclui a
representação visual a partir das imagens técnicas (a fotografia e, posteriormente, o cinema),
criadas e disseminadas principalmente a partir da França.
O que as imagens técnicas revelam em primeiro lugar é que a questão periférica não era a de ser igual
ao outro, mas sim a de ser o outro. Melhor dizendo: eliminar a alteridade pela inclusão total do padrão
visual hegemônico. Contra a dualidade da tensão centro-periferia, contra o binarismo do conflito
Praça Rio Branco vista dos arrecifes e sede da
ACP, segundo prédio da direita para esquerda
(Veneza Americana, 1925). (Fonte: FUNDAJ).
moderno-tradicional, a cidade se pretende simplesmente outra, mas outra em si mesma. Mais do que
negociar com a alteridade – que é uma forma de construção social –, o Recife vai negociar diretamente
com a exterioridade – ou seja, com aquilo que é dado como uma outra geografia, uma outra língua, uma
outra história. O que ocorre é uma forma muito precisa de apropriação, que começa com um
apagamento do passado. (CUNHA, 2010, p. 63).
A adoção do projeto moderno teve como requisito a imolação do mundo barroco do
qual Recife se gabava de ter sido centro. “Como explica Ana Rita Sá Carneiro, é o Recife
colonial que deve sucumbir ‘para reverter o processo de decadência econômica da região’”
(CUNHA, 2010, p. 39). Assim, enquanto se promovia a morte e ressurreição da cidade física,
o cinema se prestava à fabulação imagética e narrativa necessária à construção do novo
imaginário moderno. A “mise en moderne” dos filmes do Ciclo foi uma tentativa de
autocolonização do imaginário que permitisse a transformação em seu ideal de metrópole do
centro do Ocidente e não de sua periferia, ascensão à constelação do cosmopolitismo.
Cosmopolitismo, este, que não apenas pautou o irrestrito consumo de hábitos e comportamentos sociais
por parte das elites locais, mas também, na medida mesmo em que serviu de referência máxima de
valor a essa mesma elite, deu azo à consolidação do sentimento de pertencer àquele estágio civilizatório
ardentemente ansiado (NEEDELL, 1993) (TEIXEIRA, 2012b).
O desejo recifense de ser uma grande cidade europeia nos trópicos não é novo: “A
experiência estrangeira como uma mitificação, a ser imitada talvez não tenha sido bem
aquilatada até a atualidade” (PONTUAL, 2005, p. 31). Mas essa história de mitificação não é
uma de continuidade. Virgínia Pontual situa o século XIX como momento no qual “A Europa
civilizada, do liberalismo, do mercantilismo, das luzes, da moda impõe-se como referência
maior” (2005, p. 32), vindo a substituir a imagem de cidade barroca cujo modelo era
Portugal. É nesse século que as influências inglesas e francesas irão se estabelecer como
marcantes, com a vinda das missões francesas e sua atuação importante nos melhoramentos
urbanos do Recife realizados no século XIX, marcados pelo neoclassicismo e não mais pelo
barroco.
O impacto dessa mudança de paradigma já é sentido na tradição imagética da cidade.
“A partir de 1840 surgem os primeiros álbuns retratando a fisionomia da cidade [...] [que]
informam um Recife ora majestoso ora bucólico, diverso dos relatos dos viajantes”
(PONTUAL, 2005, p. 31). Enquanto muitos viajantes dão conta da sujeira da cidade (embora
também houvesse elogios), ela aprendia a se retratar cada vez mais distante de sua realidade e
mais próxima de sua idealidade.
Da direta influência francesa resultam obras no porto, inovações nos serviços de
saneamento e a obra do Teatro Santa Isabel, criado pelo arquiteto francês Louis Léger
Vauthier. Vauthier chega a Pernambuco em 1840, vindo a convite do governador Francisco
do Rego Barros, mais tarde nomeado Conde da Boa Vista, e aqui assume a Repartição de
Obras Públicas. Nessa época, a construção do Teatro de Santa Isabel, em estilo neoclássico, e
o Mercado de São José, todo em ferro, irão marcar a renovação da imagem da cidade,
ocupando lugar de destaque na iconografia do Recife daí em diante e marcando o advento do
moderno: “é a concepção mais forte que se impõe, sobrepondo-se às concepções barrocas do
setecentos” (PONTUAL, 2005, p. 34), concepções essas que continuaram existindo na
configuração da cidade, cada vez mais rejeitadas.
A conversão ao credo do modernismo foi uma tentativa de salvação. Sem nunca ter se
recuperado plenamente da crise no século XVII, o complexo agroexportador de açúcar
nordestino do qual Recife era o centro continuava seu declínio, enquanto outras regiões do
país conheciam novos impulsos econômicos graças ao aumento da demanda de outros
insumos primários como o café e a borracha pelos países centrais do sistema capitalista. É
nesse contexto de rupturas ideológicas, influências estrangeiras e declínio irreparável da
antiga ordem colonial que decide modernizar para salvar-se ao menos do declínio econômico.
A cidade do Recife chegara ao fim de seu primeiro surto cinematográfico
completamente remodelada: um moderno porto, novas avenidas, bondes elétricos, palácios e
palacetes em estilo eclético, uma praia urbana, perda de grande parte da arquitetura
tradicional do Bairro do Recife, novos subúrbios, maior integração com as regiões
suburbanas, expansão dos bairros centrais, aumento de seu parque industrial, praças e largos
revitalizados. E também um enorme inchaço populacional graças não só ao crescimento
vegetativo, mas à migração para a cidade de mão de obra campesina dispensada em
decorrência da modernização mecânica do complexo agroindustrial. O número de habitantes
aumentou de 238 mil em 1920 para o número estimado de 290 mil em 1930 (MOREIRA,
1994, p. 142), aumentando, em consequência, o número de mocambos.
“A política sem dúvida possui muito de teatro. Na política os ingredientes que
resultam no teatro estão presentes: o cenário, o público e não esqueçamos: o ator...”
(MUMFORD, Lewis apud MELO, 2000, p. 73). No Recife dos anos 20, atores e audiência
eram indistintos no contexto suprapolítico do movimento cultural que grassava a época, onde
tanto os governos estaduais como a burguesia citadina trabalharam o palco urbano como
espaço de autoencenação do espetáculo da modernidade periférica.
A importância que se dava à construção de uma imagem de cidade moderna não era
pequena ou coadjuvante. Era um projeto explícito do “patriciado urbano” (expressão de
Denis Bernardes), evidente nas falas e ações da elite política da cidade, entre os governadores
da província, prefeitos, comerciantes em geral. Um dos órgãos representativos desse
patriciado foi a Associação Comercial de Pernambuco, ainda hoje existente. Foi essa a essa
entidade que recorreu o prefeito Eduardo de Lima Castro, ele próprio ex-presidente da ACP,
para pedir um belo empréstimo em favor das vultosas obras de calçamento realizadas por sua
prefeitura, trabalhos estes que realizariam o “Recife modernizado, belo, progressista e
admirado” (apud TEIXEIRA, 2012b).
Assim, a modernização do Recife fora também, ou até principalmente, uma questão
de (auto)imagem:
Era preciso que se produzisse a imagem de uma cidade higienizada e organizada, como uma estratégia
para reverter o processo de decadência econômica em que se encontravam a cidade e a região. Era
patente que a cidade portuguesa colonial não atraía mais investimentos; era preciso mostrar uma cidade
moderna. (MOREIRA, 1994, p. 163).
Conjectura Fernando Moreira que é aceitável a hipótese de que “as elites não apenas
adotavam uma posição pragmática visando aos benefícios e lucros advindos da modernização
urbana, mas que também estavam seduzidas pelo fascínio proposto pela modernidade” (1994,
p. 164). Também afirma que a reforma do bairro do Recife já era acalentada desde a metade
do século anterior, mas “só tornaram-se plausíveis quando foram geradas condições mais
propícias com a própria ‘euforia’ do movimento ideológico de modernização nacional e com
a Reforma Passos no Rio de Janeiro” (MOREIRA, 1999, p.143).
Esta hipótese é igualmente sustentada pelo historiador Flávio Teixeira, que diz: a
“atuação [da elite local] enquanto agente da modernidade – de extrema importância para a
consecução de uma imagem de cidade moderna – não se deve exclusivamente a uma lógica
material, mas também a razões de ordem simbólica.” (2012a, p. 58). “Há um imaginário
social que está a moldar os desejos e demandas não só do povo, mas também, com mais
propriedade ainda, das próprias elites e seus dignatários.” (TEIXEIRA, 2012b).
A seu turno, Lucila Ribeiro Bernardet, pesquisadora do ciclo, se surpreende com a
dificuldade de explicar sua existência:
Não vemos [...] história ou explicação mais científica ou lógica para o surgimento de filmes de enredo,
com as características que teve (depois do momento inicial mais ou menos obscuro, uma súbita
consolidação e consagração ampla e relativamente duradoura, e afinal um declínio e definhamento
discreto até a silenciosa extinção). A impressão que tem é a de que, de repente, se alastrou uma espécie
de febre de fazer cinema de enredo, uma cineastite aguda e contagiosa. Esta aliou-se a uma outra febre,
de uma espécie de me-ufanismo-de-minha-província, generalizada em Pernambuco na época.
(BERNARDET, L., 1970, p. 70-1)
Durante a década de 20, houve, assim cremos, uma convergência ideológica entre as
imagens técnicas e as “imagens urbanísticas”: a criação de ambas foi em boa medida
catalisada pela aspiração ao modo de vida moderno. O “prestígio da rua” que Gilberto Freyre
identifica ter existido no século XIX e José Gonsalves de Mello, no período holandês,
Luciana Araújo reencontra no ciclo do Recife: “Naturais e posados do cinema silencioso
pernambucano acompanham o processo de urbanização do Recife. A imagem das ruas torna-
se elemento iconográfco e narrativo constante.” O que é bem recebido: “Reconhecer na tela
imagens locais é um diferencial dos filmes pernambucanos que rende comentários positivos
na imprensa, incluindo aqui os filmes de enredo.” (ARAÚJO, L, 2011).
O ciclo do Recife conheceu o fim em 1931, com a chegada do cinema sonoro
sincronizado. A novidade estética dos filmes falados estrangeiros elevou o já alto padrão da
concorrência além das precárias possibilidades de produção em Recife, que não pôde
atualizar-se dado o custo da nova tecnologia de som sincrônico, proibitiva para um sistema
produtivo diletante como eram os ciclos regionais em geral.