A Imagens do Recife I: representações da cidade no Ciclo do Recife

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O Ciclo do Recife: anos 20 1. O Ciclo do Recife; 2. Uma cidade modernizada; 3. Burguesia moderna, mas nem tanto; 4. Espaços da modernidade; 5. Imagem e euforia. 1. O ciclo do Recife A primeira exibição pública de cinema aconteceu em Paris em 1895 e é considerado o marco do nascimento do cinema enquanto instituição cultural e econômica, difundindo-se daí em diante como grande novidade pelo mundo. As primeiras filmagens em solo tupiniquim são realizadas em 1896 ou 1897 e a primeira sala fixa de exibição de filmes surge em 1897, no Rio de Janeiro (GOMES, 2001, p. 19-20). Em Recife, as primeiras exibições ocorrem já em 1895, em espaços como o Teatro Santa Isabel; a primeira sala exclusiva de cinema da cidade teria sido o Pathé, surgido em 1909 (SETTE, Mário apud SARAIVA, 2013, p. 18). Há registros de que em 1910 o Cine Pathé filmou alguns naturaes (filmes documentais) e de que dois cinejornais foram aqui produzidos em 1916 e 1917 (CUNHA, 2010); também outras duas produções locais de cavação, feitas por Aristides Junqueira, foram exibidas em 1920 (ARAÚJO, L. 2011); nisso resumiu-se toda a produção cinematográfica do Recife nas duas primeiras décadas do século XX. Durante a década de 20, viu-se surgir no país polos de cinema outros que Rio de Janeiro e São Paulo. Esses surtos produtivos, ocorridos em Campinas, Belo Horizonte, Cataguases, Porto Alegre, Pelotas e várias outras cidades, foram chamados “ciclos regionais”. Dos ciclos regionais, o do Recife foi o mais expressivo em números. Segundo Paulo Cunha (2010, p. 38), foram cerca de 29 diferentes filmes rodados entre os anos de 1923 e 1931, entre naturaes e ficções. Já Luciana Corrêa de Araújo (2012) afirma a existência de “mais de 40 filmes” de ambos os gêneros e, sem apresentar uma lista compreensiva, enumera diversos naturaes ausentes da compilação de Cunha. Alguns projetos permaneceram inacabados e muitas películas se perderam, como ocorreu com a maior parte da produção brasileira da época. O ciclo envolveu 17 diretores de um grupo de cerca de 40 pessoas e nove diferentes firmas produtoras (CUNHA, 2010, p. 90). Foram produzidos tanto naturaesquanto posados. Os naturaes eram filmes documentais e acredita-se que boa parte deles tenha sido produzida sob encomenda do governador Sérgio Lorêto, para fins de propaganda. Luciana Araújo (2012) conjectura que o governo não assumia oficialmente os gastos de propaganda. No natural Veneza Americana (1925), os diretores exibem uma cartela onde negam ter recebido apoio financeiro do governo, após tecer elogios à administração. No entanto, parece evidente, pelo conteúdo dos filmes e sua utilização posterior, que o governo de Lorêto assimilou o cinema a seu amplo aparato de propaganda. Os filmes de enredo, ou posados, como eram conhecidas à época as ficções, tiveram outra base econômica:

Transcript of A Imagens do Recife I: representações da cidade no Ciclo do Recife

O Ciclo do Recife: anos 20

1. O Ciclo do Recife; 2. Uma cidade modernizada; 3. Burguesia moderna, mas nem tanto;

4. Espaços da modernidade; 5. Imagem e euforia.

1. O ciclo do Recife

A primeira exibição pública de cinema aconteceu em Paris em 1895 e é considerado o

marco do nascimento do cinema enquanto instituição cultural e econômica, difundindo-se daí

em diante como grande novidade pelo mundo. As primeiras filmagens em solo tupiniquim

são realizadas em 1896 ou 1897 e a primeira sala fixa de exibição de filmes surge em 1897,

no Rio de Janeiro (GOMES, 2001, p. 19-20).

Em Recife, as primeiras exibições ocorrem já em 1895, em espaços como o Teatro

Santa Isabel; a primeira sala exclusiva de cinema da cidade teria sido o Pathé, surgido em

1909 (SETTE, Mário apud SARAIVA, 2013, p. 18). Há registros de que em 1910 o Cine

Pathé filmou alguns naturaes (filmes documentais) e de que dois cinejornais foram aqui

produzidos em 1916 e 1917 (CUNHA, 2010); também outras duas produções locais de

cavação, feitas por Aristides Junqueira, foram exibidas em 1920 (ARAÚJO, L. 2011); nisso

resumiu-se toda a produção cinematográfica do Recife nas duas primeiras décadas do século

XX.

Durante a década de 20, viu-se surgir no país polos de cinema outros que Rio de

Janeiro e São Paulo. Esses surtos produtivos, ocorridos em Campinas, Belo Horizonte,

Cataguases, Porto Alegre, Pelotas e várias outras cidades, foram chamados “ciclos regionais”.

Dos ciclos regionais, o do Recife foi o mais expressivo em números. Segundo Paulo

Cunha (2010, p. 38), foram cerca de 29 diferentes filmes rodados entre os anos de 1923 e

1931, entre naturaes e ficções. Já Luciana Corrêa de Araújo (2012) afirma a existência de

“mais de 40 filmes” de ambos os gêneros e, sem apresentar uma lista compreensiva, enumera

diversos naturaes ausentes da compilação de Cunha. Alguns projetos permaneceram

inacabados e muitas películas se perderam, como ocorreu com a maior parte da produção

brasileira da época. O ciclo envolveu 17 diretores de um grupo de cerca de 40 pessoas e nove

diferentes firmas produtoras (CUNHA, 2010, p. 90).

Foram produzidos tanto “naturaes” quanto “posados”. Os naturaes eram filmes

documentais e acredita-se que boa parte deles tenha sido produzida sob encomenda do

governador Sérgio Lorêto, para fins de propaganda. Luciana Araújo (2012) conjectura que o

governo não assumia oficialmente os gastos de propaganda. No natural Veneza Americana

(1925), os diretores exibem uma cartela onde negam ter recebido apoio financeiro do

governo, após tecer elogios à administração. No entanto, parece evidente, pelo conteúdo dos

filmes e sua utilização posterior, que o governo de Lorêto assimilou o cinema a seu amplo

aparato de propaganda.

Os filmes de enredo, ou posados, como eram conhecidas à época as ficções, tiveram

outra base econômica:

Tendo sido comandado por pequeno-burgueses e proletários (operários, ourives, gráficos, funcionários

de baixo escalão, comerciários), o Ciclo conseguiu convencer a elite recifense, sobretudo os

comerciantes da cidade, não apenas a financiar, mas igualmente a participar, muitas vezes como meros

figurantes, das produções. Este vínculo entre jovens quase pobres ou remediados e a burguesia local

deu ao Recife uma posição diferenciada no quadro da cultura urbana periférica moderna. (CUNHA,

2010, p. 135)

Essa aliança não transformou o cinema recifense em uma empreitada segura ou

confortável: a precariedade dos equipamentos, os riscos e as dificuldades financeiras serão

constantes; permitiu, no entanto, que a paixão de algumas dezenas de jovens pelo cinema se

transformasse em encenação da modernização da cidade.

A maior inspiração para as ficções do ciclo foram os populares filmes norte-

americanos, que serviram de modelo para quase todas as histórias pernambucanas. Em alguns

casos, o decalque, evidente para qualquer frequentador de cinema, era pintado com cores

locais, como em Aitaré da Praia (1925). Do ponto de vista artístico, tiveram como objetivo o

entretenimento e o sucesso de público. Apesar do uso de recursos como a superimpressão e o

flashback, não se tentou experiências estéticas ousadas, como fizeram as vanguardas

artísticas dos anos 20 e mesmo cineastas brasileiros da época como Humberto Mauro (Brasa

Dormida, 1928), no ciclo de Cataguases, ou Mário Peixoto (Limite, 1931).

Enquanto o cinema de São Paulo e Rio de Janeiro seguia a linguagem contemporânea

da principal produção comercial mundial, os filmes de ficção do ciclo ainda empregavam a

gramática visual da década de 1910, já em desuso no cinema que tentavam emular. Enquanto

isso, os naturaes da Pernambuco-Film, da dupla italiana Ugo Falangola e J. Cambieri, lançam

mão de recursos técnicos e estéticos mais singulares, como coloração de película e inversão

de planos.

2. Uma cidade modernizada

A modernização do Recife aconteceu em dois períodos: no primeiro, entre 1909 e

1915, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito implantou os modernos sistemas de esgoto

e água da cidade (uma parte do projeto foi concluída apenas em 1918) ao mesmo tempo em

que foram feitas as tão aguardadas obras atualizadoras do Porto do Recife e a arrasadora

reforma do centenário Bairro do Recife, cuja arquitetura colonial foi posta abaixo para que

fossem singradas novas e largas avenidas (ARAÚJO, R., 1996; MOREIRA, 1994).

No segundo período, o governo Sérgio Lorêto (1922-1926) dedicou-se à construção

do monumental Parque do Derby, a uma nova reforma do porto e à abertura da Avenida

Beira-Mar (e outras menos badaladas) na região sul da cidade, o que alargou os limites da

cidade para as regiões do Pina e Boa Viagem, fazendo surgir um novo acesso à praia para a

população recifense no que antes era um coqueiral quase inabitado. Em concertação com o

governo do estado, a prefeitura da cidade dedicou-se a projetos menores, nomeadamente o

“aformoseamento” de praças em pontos importantes dos limites da área urbanizada e obras

nas vias de ligação do núcleo central com as freguesias suburbanas, como Madalena e

Encruzilhada, propiciando a expansão da malha urbana (MOREIRA, 1994).

Este governo foi, além de contemporâneo do ciclo do Recife, relevante financiador do

surto através de suas encomendas. Seu conjunto de intervenções na cidade foi, como o do

período de 1909-1915, um exemplo típico do urbanismo então praticado no Brasil nas

primeiras décadas do século XX. Nessa época, deu-se importância à criação de novas áreas

para a expansão controlada da cidade, alargamento de vias, abertura de avenidas para a

circulação interna em veículos, embelezamento de praças e áreas centrais (“melhoramento”)

inspiradas na Paris de Haussman, obras de atualizações dos portos e “higienização” da

cidade.

Essa higienização era realizada em três frentes: a implantação de sistemas de água e

esgoto; reformas arquitetônicas que permitissem a circulação do ar e o contato com o sol nas

moradias e ruas, que de acordo com a arquitetura colonial brasileira eram tipicamente

apertadas e abafadas; e, por fim, o combate à insalubridade identificada à pobreza, através

das moradias precárias (mocambos em regiões pantanosas, sobrados super-habitados)

(LEME, 1998; MOREIRA, 1994; VILLAÇA, 1999).

Na segunda metade do século XIX, aportaram no Brasil ideologias europeias, dentre

as quais se destacaram o liberalismo e o positivismo. A fermentação dessas ideologias,

especialmente o positivismo, fez disseminar o ideário de uma “Regeneração Nacional”: uma

completa reforma moral da sociedade brasileira baseada no progresso e na ciência para

“findar a imagem de uma sociedade e de suas cidades marcadas pelo signo da imundície, da

disfuncionalidade, da promiscuidade e da pavorosa concentração das massas nos centros”

(MOREIRA, 1994, p. 53). O avanço do capitalismo europeu e norte-americano em direção à

América do Sul – em busca de matérias primas, mercado consumidor e áreas de investimento

(bancos, serviços de transporte), com forte penetração britânica – colaborou, junto com esses

ideais, para a desagregação da antiga sociedade colonial.

Os vários tipos comuns de atuação no tecido urbano originavam-se de diferentes

aportes ideológicos, mas reforçavam-se mutuamente num projeto de modernidade. As obras

portuárias tinham como objetivo a adequação das vias de escoamento da produção e trânsito

de bens para comércio, numa época em que os avanços tecnológicos nas embarcações havia

tornado antiquados muitos portos brasileiros, como o de Recife. O advento dos bondes a

burro, depois elétricos, e do carro particular vieram unir-se à necessidade de circulação do ar

na demanda por avenidas largas e retilíneas, pois a teoria dos miasmas da qual era adepta a

classe científica da época (e que viria a ser superada pela teoria microbiana em pouco tempo)

creditava aos fluidos estagnados a origem de moléstias. A influência cultural francesa fazia

da Paris reformada, moderna, não mais medieval, o modelo de referência para os ares

europeus do qual deveriam ser dotadas as cidades modernas, mesmo aquelas ao sul do

Equador. Essa nova arquitetura era formada por vias amplas que substituíram as ruelas

medievais francesas e coloniais brasileiras.

Numa cidade moderna não havia lugar para o proletariado urbano nas regiões centrais,

sendo as reformas e o medo das pestes que assolavam várias cidades brasileiras as alegações

oficiais (e provavelmente sinceras, ao menos em parte) para o higienismo praticado à época.

A modernidade era uma ideologia do progresso, da superação do antiquado, pobre e sujo

passado colonial brasileiro em direção a uma próspera e “hygienica” civilização, o que

passava necessariamente pela reformulação das bases materiais da sociedade na cidade.

A partir do século XIX se desenvolverá no Recife um discurso organicista sobre a

cidade, (OUTTES, 1991). Suas bases remontam a séculos anteriores e influências de teorias e

práticas médicas europeias, havendo um precoce exemplo de sua execução na região ao fim

do século XVII, na luta do Marquês de Montebelo contra a febre amarela. Este ideário bebe

da medicina social, de caráter preventivo e de proteção dos sãos em oposição à cura dos

doentes, e transforma a ação sobre a cidade numa forma de limpeza passível de evitar a

reprodução de doenças. A metáfora da cidade enquanto corpo biológico a partir do século

XIX trará como consequência a penetração do saber médico no poder público. Do mesmo

discurso emergem duas submetáforas importantes: de um lado, as doenças da cidade e da

cidade doente, associada à cidade colonial; de outro, a dos médicos da cidade, os sanitaristas

e urbanistas.

Surgirá uma forma de planejamento urbano totalizante e normativa: “A medicina

social quer conhecer, prever e controlar as quinas e esquinas do meio ambiente construído.”

(OUTTES, 1991, p. 20). Na passagem para o século XX, em reação à transformação da

economia escravocrata para capitalista, a medicina social será instrumentalizada pelo poder

estatal a fim de garantir não só a salubridade física e moral da população, mas a

produtividade das massas trabalhadores para o capital.

3. Burguesia moderna, mas nem tanto

O projeto moderno dos filmes do ciclo do Recife tem naturalmente suas

particularidades, o que o diferencia ainda mais de seus correspondentes no Brasil e na

Europa, como o cinema de São Paulo e o da República de Weimar. A Berlim dos anos 20 foi

palco de muitos dos filmes pertencentes ao gênero conhecido como city film, que, segundo

Barbara Mennel,

thematize urbanity, especially the period’s understanding of the dangers and pleasures of modern urban

life: crime, anonymity, a loosening of morality, unemployment, and class struggle on the one hand, and

movement, speed, entertainment, and liberated erotics on the other. (MENNEL, 2008, p. 23)1.

Jean-Claude Bernardet (1980, p. 146) aponta que, no cinema brasileiro da década de

20, a cidade foi retratada de duas formas antagônicas e igualmente “ingênuas”: numa, a

cidade parece encarnar a perdição e a decadência moral para os seres puros vindos do campo;

noutra, uma “euforia diante da urbanização galopante” prevalece nas telas e a cidade é vista

como progresso ou espaço de libertação.

Dos filmes recifenses, podemos dizer que se detiveram quase exclusivamente na

idealização da cidade, sem as nuances éticas do city film nem a demonização da urbe presente

em algumas películas do cinema brasileiro. Não há referências ao conflito de classes no

1 “tematizam a urbanidade, especialmente a compreensão do período sobre os perigos e prazeres da vida urbana

moderna: crime, anonimato, um afrouxamento da moral, desemprego e luta de classes, de um lado; e

movimento, velocidade, diversão e liberdade sexual, de outro.” (tradução nossa).

espaço urbano, apesar do ativo e combativo movimento operário2; nem à pobreza urbana,

evidente pelos mucambos que se multiplicavam; nem à violência, fosse ela a criminalidade

comum ou aquela ligada aos marcantes problemas políticos – levantes militares, assassinatos

políticos, confrontos entre grupos rivais –, nada incomuns no Pernambuco turbulento da

década de 20. Das mazelas sociais, apenas a doença figurou com clareza em um filme de

ficção, publicitário: Um ato de humanidade (1925) mostra um jovem sifilítico que mora nas

ruas e é curado por um remédio milagroso que vem a ser o produto posto a venda. Também

pelo menos um natural, Pela Saúde (A. Grossi, 1924), se refere diretamente às obras

sanitárias do período Lorêto.

Podemos creditar essas notáveis ausências e os contrastes em relação a outros filmes

da época à distância entre o projeto de imagem e a realidade da cidade, à dose de utopia da

ambição moderna em Pernambuco, que pretendia assentar as bases de um modo de vida

importado sobre uma realidade provinciana que se procurou dissimular. As ficções do ciclo

foram quase todas melodramas, onde figuravam lutas corporais, romances, traições e

assassinatos.

A Filha do Advogado (Aurora-Film, 1925/1927) é um dos filmes sobreviventes que

melhor encenam o modo de vida moderno ao qual a burguesia recifense se propunha,

mesclando modernidade e conservadorismo – socioeconômico e de costumes, na medida do

possível. Aceitava-se a modernidade como uma moda, um entretenimento, em parte uma

necessidade para as condições da economia da época, mas não como um projeto real de

alteração de valores da sociedade. Assim, tentava-se ter o melhor dos dois mundos: o luxo

burguês e a moral tradicional (e maniqueísta).

Seguindo “exemplarmente a cartilha do melodrama” (ARAÚJO, L., 2006, p. 2), a

trama se desenvolve em torno de uma moça rica, Heloiza, que se muda do campo para a

cidade, habituando-se sem choque; ela se interessa por um jovem intelectual de bons modos

que lhe retribui, mas também se torna alvo de cobiça de outro rapaz, Helvécio – seu meio-

irmão por parte de pai, embora nenhum dos dois o saiba. Ele tenta estuprar Heloiza e, para

defender sua honra, ela o mata com uma arma de fogo.

Helvécio é definido pelo letreiro como “libertino e estroina, vítima das loucuras do

mundo” e representa, em sua completa vilania, o perigo da perdição da cidade: gastador,

violento, mulherengo, irresponsável. O final feliz do filme vê a heroína absolvida do crime de

assassinato e a legitimação social de sua virtude, em oposição ao mundanismo do vilão que

esta mesma sociedade havia tolerado.

Em paralelo a este triunfo da moral burguesa conservadora sobre os perigos dos

tempos novos, o filme tem o objetivo claro de mostrar a cidade do Recife em seus aspectos

modernos: o porto e o transatlântico; o Cine Royal, que estreou muitos dos filmes do ciclo; o

grande trânsito de pessoas, automóveis e bondes elétricos na junção da Rua Nova com a

Ponte da Boa Vista em sua moderna arquitetura de ferro; as toaletes, o cabaré e a saída da

2 Já em relação ao ambiente rural, Revezes... (1927) põe em cena o confronto de uma comunidade contra um

violento coronel no Agreste pernambucano, mas mesmo em relação ao campo o tópico parece ser uma exceção.

missa na Matriz da Boa Vista; reunindo assim “um considerável repertório de

comportamentos e fetiches modernos e mundanos” (ARAÚJO, L., 2006, p. 10).

Embora, como já dissemos, Recife fosse uma cidade de fato violenta, na dicotomia

campo/cidade coube à última ser o espaço do futuro sadio e ao campo o papel de ambiente de

violência e de vulnerabilidade; enquanto a cidade era moderna (futuro), o campo era arcaico,

pretérito ou em vias de tornar-se.

A julgar pelas cópias preservadas e pelas

sinopses, nos filmes de enredo pernambucanos

não iremos encontrar a exaltação do campo

enquanto espaço idílico, reduto da simplicidade e

dos valores mais elevados. Enquanto Revezes... e

Sangue de irmão reforçam a violência de um

mundo historicamente fundado na figura da

autoridade e na desigualdade de classes, filmes

como Jurando vingar e Aitaré da Praia, mesmo

exibindo um campo economicamente lucrativo e

as atraentes belezas naturais do litoral,

respectivamente, acabam por enaltecer o espaço

urbano, mais precisamente a cidade do Recife,

“onde todos desejam viver”. O lugar do progresso

e da modernidade tão desejados é a cidade.

(ARAÚJO, L., 2013, p. 21)

A visão da cidade como progresso, futuro e destino não deixa de remeter ao

pensamento de Voltaire sobre o urbano, tal como colocado por Schorske (1998). Schorske

divide em três campos heterogêneos a tradição do pensamento europeu sobre a cidade, onde

Voltaire faz parte do grupo dos filhos do Iluminismo que viam a urbe como “virtude”. Para o

filósofo francês que elegeu Londres como nova Atenas, “industry and pleasure” era o que

tornava distinta a cidade e juntas formavam “civilization” (SCHORSKE, 1998, p. 38). O

espaço urbano era o ambiente propício para o progresso, a liberdade, o refinamento de seus

indivíduos e a vida do conforto do rico aristocrata cuja presença, contrastando com a pobreza

que lhe cerca, serviria de exemplo edificador a estimular a ascensão social.

O caminho natural, para Voltaire, é do

campo para a cidade. É exatamente o que

ocorre em Aitaré da Praia, onde os

protagonistas Córa e Aitaré reencontram-se em

Recife e retomam sua história de amor

interrompida por intrigas anos atrás, na época

em que viviam numa remota comunidade de

pescadores. Ambos encarnam uma ascensão

social sem percalços: depois de saídos da praia,

ressurgem como perfeitos burgueses citadinos.

Numa desconcertante semelhança com o rico

urbanita de Voltaire (“the spendthrift aristocrat

O cabaré febricitante em A Filha do Advogado

(1925) (Fonte: FUNDAJ).

Córa e seu irmão visitam a modista (Aitaré da

Praia, 1925) (Fonte: FUNDAJ).

pursuing a life of ease in the city, a true child of the pleasure principle”3; SCHORSKE, 1998,

p. 39), para o personagem Aitaré

a modernização implica em mudança de classe e, consequentemente, abandono do trabalho braçal – ou

de qualquer trabalho. No palacete, o momento de lazer de Aitaré e seus anfitriões aproxima-se do

abatimento, com todos eles sentados, sem outra ocupação além de ler jornais e revistas. (ARAÚJO, L.,

2013, p. 20)

A invisibilidade do trabalho também é notada no personagem de Lucio, o par

romântico de Heloiza em A Filha do Advogado, que é interpelado na rua como um jornalista

de renome (profissão de praxe dos intelectuais recifenses à época):

De resto, seu trabalho intelectual

resume-se a ler jornais e a começar por

conta própria uma investigação do

crime, que não leva adiante. No seu

quarto ou na mesa do jornal não há

livros, apenas jornais (...). No final de

contas, o jornalista que revoluciona o

mundo intelectual da cidade pouco se

diferencia do consumidor médio da cada

vez mais fortalecida cultura de massa.

(ARAÚJO, L., 2006, p. 12)

Essa visão de cidade moderna à la

Voltaire que encontramos nos filmes

parece condizente com a modernização

urbanística posta em prática. Mas se o

cinema recifense estava com ela alinhado, o mesmo não se pode dizer de parte de outros

artistas da cidade. Vários homens de letras da época demonstraram posições divergentes em

relação às obras de renovação do Recife, indo da ambiguidade à crítica mordaz. “A perda

irremediável do patrimônio arquitetônico e urbanístico da cidade comoveu alguns artistas,

escritores e literatos que proferiram críticas” (MOREIRA, 1994, p. 101). Entre os nomes de

certa expressão que se pronunciaram na década de 20 contras as reformas, constam Gilberto

Freyre4 e Joaquim Cardozo

5. Mesmo Saturnino de Brito também criticou, em trabalho

posterior e longe da imprensa, o estilo terra arrasada da reforma do Bairro do Recife, como

nos conta Roberto Araújo (1996, p.79-80) – o que é de causar certa surpresa, já que o

objetivo final das reformas era precisamente o de substituir a arquitetura antiga da cidade,

insalubre, por um novo traçado de acordo com o que preconizava o próprio sanitarista.

3 “o aristocrata perdulário que levava uma vida de ócio na cidade, um verdadeiro filho do princípio do prazer”, -

tradução de Pedro Maia Soares: Pensando com a história (Cia. das Letras, 2000). 4 Um apanhado das críticas que fez o historiador, antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) à

modernidade recifense, que desprezava suas tradições, pode ser encontrado em PALLARES-BURKE (2014). 5 Joaquim Cardozo (1897-1978) foi ao mesmo tempo poeta e engenheiro, exercendo também a profissão de

professor universitário. A ideologia dominante em sua profissão não o impediu de publicar, em 1924, durante

administração de Lorêto, um poema crítico das transformações da cidade, na Revista do Norte (Ano II, 2º

quinzena, novembro de 1924), reproduzido em Melo, 2000, p. 52-3.

Tédio burguês em Aitaré da Praia (1925) (Fonte:

FUNDAJ).

4. Espaços da modernidade

Em A Filha do Advogado, uma considerável parte das cenas se passa nas residências

dos personagens da alta sociedade recifense, em modernas e pomposas casas chamadas à

época de “palacetes”. Alguns exemplares são o novo lar de Heloiza e sua mãe na cidade; a

casa de Heloiza e seu marido, ao final do filme; a mansão dos Bergamini, família da noiva de

Helvecio; e a casa do advogado Paulo Aragão, emprestada pela tradicional família Bandeira e

situada na Avenida Rosa e Silva (CUNHA, 2010, p. 114) – todas em estilo eclético,

referenciando temas europeus, como o ar inglês da residência dos Bandeira.

Os palacetes foram, junto ao automóvel,

um dos índices de modernidade que a burguesia

da cidade passou a adotar a partir das

transformações urbanas pela qual passou Recife

na década de 20, sob batuta do governador Sérgio

Lorêto, e vieram a povoar vistosos locais como o

antigo bairro da Boa Vista, o todo recente bairro

do Derby e as novas ou renovadas avenidas Rui

Barbosa, Rosa e Silva e Beira-Mar, entre outras.

Este conjunto de obras foi do interesse de uma parcela da

burguesia local, geralmente oriunda das atividades

comerciais, que aos poucos se desloca para os subúrbios,

ávidas pelo ‘new way of life’ destes aprazíveis locais. Principalmente depois que as condições básicas

foram lançadas e que o automóvel redimensionou a noção de distância do século XIX. [...] Estes novos

espaços se tornaram o local propício para manifestações civis e de atividades características da

modernidade tão almejada. (MOREIRA, 1994, p. 136).

Muitos dos novos espaços modernos de Recife aparecem de algum modo nos filmes

do ciclo e Veneza Americana (Pernambuco-Film, 1925) é um dos que melhor os relaciona.

Nele, aparecem o porto do Recife, as obras de expansão dos armazéns portuários, as obras de

reforço do quebra-mar, a inauguração da Avenida Beira-Mar, a praia de Boa Viagem, o

recém-construído Derby, entre outras paisagens naturais e atestados de progresso.

A construção do Parque do Derby, bem

como a das avenidas para além da Ilha do Pina,

faziam parte do projeto do governo local em

guiar a expansão da cidade, antecipando-a. A

região do Derby, não distante dos bairros

centrais da cidade, era um descampado que

possuía apenas algumas ruínas dos

empreendimentos que ali foram erguidos e

abandonados no início do século. Com a

desculpa da necessidade de espaço para um

novo quartel, o governo do estado comprou a

área e ali construiu o Quartel do Derby, à beira

Palacete dos Bandeira em A Filha do

Advogado (1925) (Fonte: FUNDAJ).

Quartel do Derby (Veneza Americana, 1925)

(Fonte: FUNDAJ).

Banhistas na praia de Boa Viagem (Grandezas de Pernambuco, 1925) e vista da Avenida Beira-

Mar (Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).

do Capibaribe; criou também um amplo parque no estilo das cidades-jardins inglesas, que

seria usado para grandes eventos cívicos e sociais (MOREIRA, 1994, 1999).

O novo bairro demorou a ser povoado e o poder público tomou a iniciativa de equipá-

lo com prédios públicos nos moldes dos palacetes. As imagens do Derby presentes em

Veneza Americana foram feitas em 1924, quando o espaço sediou a Exposição Geral de

Pernambuco. Os cineastas Ugo Falangola e J. Cambieri, de origem italiana, aproveitaram

para registrar não só a movimentação de pessoas no parque como a sensação de velocidade

de dentro dos brinquedos.

Enquanto o Derby expandia a cidade para o interior, Boa Viagem o fazia em direção

ao sul, pela costa. Lá, o governo fez construir três avenidas: de Ligação, Entroncamento e

Beira-Mar, a mais famosa, que margeava a praia. A obra foi duramente atacada pelos

opositores do governo, que criticaram os enormes gastos e a prioridade da construção. Uma

vez a avenida pronta, seus lotes lindeiros foram rapidamente ocupados – novamente, por

palacetes, desta vez de veraneio – embora este subúrbio como um todo tenha levado mais de

década para ser mais densamente ocupado e perder a característica de contato com a natureza,

em meio aos coqueirais.

Se alguns viram as obras da atual zona sul como um desperdício de dinheiro, uma

larga parcela da população não deixou de considerar as avenidas uma intervenção

Brinquedos no Parque do Derby por ocasião da Exposição Geral de Pernambuco de 1924 (Veneza

Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).

extremamente proveitosa. O novo balneário, com boa aeração, reforçava as características de

modernidade da cidade dotando-o de um novo espaço social e de lazer e com uma nova

avenida costeira para carros.

Veneza Americana também dedica alguns minutos para mostrar o trajeto de um bonde

do centro ao subúrbio da cidade. O carro é um veículo especialmente inaugurado pela

Pernambuco Tramways, concessionária inglesa dos transportes da região, para fazer o trajeto

em direção a Boa Viagem (o que demonstra o impacto da criação da área), mas fazia outras

linhas enquanto não se completavam as obras das avenidas.

Em planos sucessivos, observamos o bonde partir do início da Avenida Marquês de

Olinda e trafegar por vários pontos do centro, cruzando as pontes Maurício de Nassau e da

Boa Vista – nos dando o ângulo oposto àquele da Ponte de Ferro em A Filha do Advogado,

onde um personagem toma o bonde no sentido inverso. Ao se afastar cada vez mais do

centro, a cidade toma feições mais calmas e arbóreas, até a parada final do bonde –

provavelmente na Várzea, destino afixado ao veículo.

As Avenidas Rio Branco e Marquês de Olinda foram projetadas partindo da Praça Rio

Branco, no porto, formando linhas retas e divergentes que rasgavam a estrutura pré-existente

do Bairro do Recife e criando um impacto cenográfico. Foram construídas durante as

reformas do porto da primeira metade dos anos

1910 inspiradas nos boulevares haussmanianos.

Vê-se nas imagens como a Marquês de Olinda

é larga, ladeada de prédios de três pavimentos

com fachadas maciças e imponentes. As novas

avenidas, como outras ruas movimentadas do

centro, tornaram-se importantes lugares da

modernidade em Recife, ponto de encontro e de

passeio (dito footing, no anglicismo da época),

onde transitavam “almofadinhas” e

“melindrosas”.

Plano e contra-plano: o movimento de carros e bondes na Rua Nova e Ponte da Boa Vista em

Veneza Americana (1925) e A Filha do Advogado (1925) (Fonte: FUNDAJ).

Avenida Marquês de Olinda (Veneza

Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).

Entretanto, de todos os sítios da cidade, o porto é certamente o personagem mais

importante em Veneza Americana, “o protagonista da história de progresso narrada pelo

filme” (ARAÚJO, L, 2011). Além de Veneza, o porto figura também (muitas vezes com

tempero de propaganda) em Grandezas de Pernambuco (Olinda-Film, 1925), A Filha do

Advogado (1926), No Cenário da Vida (Luís Maranhão, 1930) e num filme doméstico sobre a

passagem do hidroavião Jahú em Recife em 1927.

Nesses filmes, o porto simboliza o

cosmopolitismo da cidade e o progresso

econômico de Pernambuco, sempre com ares

de grandiosidade. Em Veneza, filma-se a

chegada do Gelria, primeiro paquete de

grande calado a atracar dentro do porto e, na

segunda visita do navio à cidade, registra-se o

encontro entre o comandante do navio e o

governador Sérgio Lorêto. O presidente da

província é filmado subindo e descendo a

rampa de acesso ao navio – mostra do

conforto e da modernização do porto, onde

agora os passageiros podiam descer diretamente ao cais, ao invés de ter que tomar outros

barcos fora da baía para completar o trajeto.

Também são mostrados os “grandiosos trabalhos, na ancia de febril movimento,” de

atualização do porto, sempre em obras; o

reforço do quebra-mar, feito com guindastes de

dezenas de toneladas sempre mencionadas nos

letreiros; as obras de expansão dos armazéns do

cais; e o transporte de mercadorias nas docas –

em Recife, “é colossal o movimento de

importação e exportação”. Claramente, motivo

de orgulho: “o porto do Recife, que, ainda ha

poucos annos mal podia abrigar os pequenos

costeiros nacionaes, é, hoje, por seu

movimento, o terceiro da Republica”, diz a

cartela.

A forte propaganda do porto em Veneza Americana apenas reflete a grande

importância que a ele davam os governantes e as elites locais. Reformas de atualização são

esperadas desde o século XIX e toda a reforma do Bairro do Recife, bem como a instalação

dos sistemas de água e esgoto da cidade, foi realizada a reboque das obras do porto –

administrativamente e financeiramente, dependeram da oportunidade criada pelos

empréstimos e consórcios firmados para as reformas portuárias (MOREIRA, 1994).

Mas nem as próprias reformas do porto se deram em razão exclusiva das necessidades

econômicas da província, como revelam vários documentos da Associação Comercial de

Cais lotado para presenciar atracação do Gelria

(Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUNDAJ).

Paquete, farol e porto vistos dos arrecifes

(Veneza Americana, 1925) (Fonte: FUDAJ).

Pernambuco (ACP), representante da diversa fauna da elite econômica local. Além de invocar

os naturais imperativos de mercado, a ACP, que sempre dera muitíssima importância à

questão do porto, não se esquece de mencionar a importância estética que ela teria, associada

à reforma do bairro portuário. Assim é que não deixam de mencionar mais de uma vez o

constrangimento causado aos conterrâneos quando da visita de um turista à cidade,

encontrando precários equipamentos portuários e um bairro considerado deselegante

(TEIXEIRA, 2012b).

Parceira dos poderes públicos locais em sua missão de “embelezar” a cidade, a ACP

se viu no direito de solicitar a esses mesmo poderes amplos benefícios em favor de um

projeto específico: a construção de sua nova e monumental sede que contribuiria para

abrilhantes o bairro remodelado. Com a adesão do governo da província e da bancada

pernambucana no Congresso, a Associação conseguiu recursos junto ao governo federal para

seu “palacete do comércio”, como passou a ser chamado.

Muito se esforçou ela [a ACP] para que este novo edifício tivesse todos os atributos capazes de

provocar um forte impacto, seja pela beleza, seja pela grandiosidade. [...] De tal modo esteve, desde o

início, a construção da nova sede marcada por esse objetivo, que ocorreu, inclusive, a desclassificação

de um dos projetos arquitetônicos apresentados à concorrência aberta, na medida em que o mesmo,

segundo parecer da comissão julgadora, deixava “muito a desejar quanto à ornamentação”, não

apresentando “o aspecto monumental que devem ter edifícios desta natureza” (TEIXEIRA, 2012b).

O novo prédio foi inaugurado com

festa em 1915, na esquina da Avenida Rio

Branco e em frente à Praça Rio Branco (hoje,

Praça do Marco Zero), tendo sido captado à

distância em Veneza Americana, quando os

cinegrafistas, provavelmente posicionados

sobre os arrecifes, filmam a visão que se tem

do porto quando se está ao mar, onde a Praça

Rio Branco revela, entre os armazéns, a

cidade, já definidas pelas avenidas e pelos

edifícios altos ecléticos encimados por cúpulas.

5. Imagem e euforia

Para Paulo Cunha, o ethos central do Ciclo do Recife foi a encenação do fenômeno da

modernidade (periférica, burguesa) dos anos 20 nesta cidade. “Havia, no Recife, um novo

modo de querer ser. De desejar se vestir, habitar, trabalhar, se movimentar – como na

metrópole –, não para se legitimar, mas para fingir se esquecer do provincianismo e adotar as

formas da vida cosmopolita.” (CUNHA, 2010, p. 82). Esse projeto de modernidade inclui a

representação visual a partir das imagens técnicas (a fotografia e, posteriormente, o cinema),

criadas e disseminadas principalmente a partir da França.

O que as imagens técnicas revelam em primeiro lugar é que a questão periférica não era a de ser igual

ao outro, mas sim a de ser o outro. Melhor dizendo: eliminar a alteridade pela inclusão total do padrão

visual hegemônico. Contra a dualidade da tensão centro-periferia, contra o binarismo do conflito

Praça Rio Branco vista dos arrecifes e sede da

ACP, segundo prédio da direita para esquerda

(Veneza Americana, 1925). (Fonte: FUNDAJ).

moderno-tradicional, a cidade se pretende simplesmente outra, mas outra em si mesma. Mais do que

negociar com a alteridade – que é uma forma de construção social –, o Recife vai negociar diretamente

com a exterioridade – ou seja, com aquilo que é dado como uma outra geografia, uma outra língua, uma

outra história. O que ocorre é uma forma muito precisa de apropriação, que começa com um

apagamento do passado. (CUNHA, 2010, p. 63).

A adoção do projeto moderno teve como requisito a imolação do mundo barroco do

qual Recife se gabava de ter sido centro. “Como explica Ana Rita Sá Carneiro, é o Recife

colonial que deve sucumbir ‘para reverter o processo de decadência econômica da região’”

(CUNHA, 2010, p. 39). Assim, enquanto se promovia a morte e ressurreição da cidade física,

o cinema se prestava à fabulação imagética e narrativa necessária à construção do novo

imaginário moderno. A “mise en moderne” dos filmes do Ciclo foi uma tentativa de

autocolonização do imaginário que permitisse a transformação em seu ideal de metrópole do

centro do Ocidente e não de sua periferia, ascensão à constelação do cosmopolitismo.

Cosmopolitismo, este, que não apenas pautou o irrestrito consumo de hábitos e comportamentos sociais

por parte das elites locais, mas também, na medida mesmo em que serviu de referência máxima de

valor a essa mesma elite, deu azo à consolidação do sentimento de pertencer àquele estágio civilizatório

ardentemente ansiado (NEEDELL, 1993) (TEIXEIRA, 2012b).

O desejo recifense de ser uma grande cidade europeia nos trópicos não é novo: “A

experiência estrangeira como uma mitificação, a ser imitada talvez não tenha sido bem

aquilatada até a atualidade” (PONTUAL, 2005, p. 31). Mas essa história de mitificação não é

uma de continuidade. Virgínia Pontual situa o século XIX como momento no qual “A Europa

civilizada, do liberalismo, do mercantilismo, das luzes, da moda impõe-se como referência

maior” (2005, p. 32), vindo a substituir a imagem de cidade barroca cujo modelo era

Portugal. É nesse século que as influências inglesas e francesas irão se estabelecer como

marcantes, com a vinda das missões francesas e sua atuação importante nos melhoramentos

urbanos do Recife realizados no século XIX, marcados pelo neoclassicismo e não mais pelo

barroco.

O impacto dessa mudança de paradigma já é sentido na tradição imagética da cidade.

“A partir de 1840 surgem os primeiros álbuns retratando a fisionomia da cidade [...] [que]

informam um Recife ora majestoso ora bucólico, diverso dos relatos dos viajantes”

(PONTUAL, 2005, p. 31). Enquanto muitos viajantes dão conta da sujeira da cidade (embora

também houvesse elogios), ela aprendia a se retratar cada vez mais distante de sua realidade e

mais próxima de sua idealidade.

Da direta influência francesa resultam obras no porto, inovações nos serviços de

saneamento e a obra do Teatro Santa Isabel, criado pelo arquiteto francês Louis Léger

Vauthier. Vauthier chega a Pernambuco em 1840, vindo a convite do governador Francisco

do Rego Barros, mais tarde nomeado Conde da Boa Vista, e aqui assume a Repartição de

Obras Públicas. Nessa época, a construção do Teatro de Santa Isabel, em estilo neoclássico, e

o Mercado de São José, todo em ferro, irão marcar a renovação da imagem da cidade,

ocupando lugar de destaque na iconografia do Recife daí em diante e marcando o advento do

moderno: “é a concepção mais forte que se impõe, sobrepondo-se às concepções barrocas do

setecentos” (PONTUAL, 2005, p. 34), concepções essas que continuaram existindo na

configuração da cidade, cada vez mais rejeitadas.

A conversão ao credo do modernismo foi uma tentativa de salvação. Sem nunca ter se

recuperado plenamente da crise no século XVII, o complexo agroexportador de açúcar

nordestino do qual Recife era o centro continuava seu declínio, enquanto outras regiões do

país conheciam novos impulsos econômicos graças ao aumento da demanda de outros

insumos primários como o café e a borracha pelos países centrais do sistema capitalista. É

nesse contexto de rupturas ideológicas, influências estrangeiras e declínio irreparável da

antiga ordem colonial que decide modernizar para salvar-se ao menos do declínio econômico.

A cidade do Recife chegara ao fim de seu primeiro surto cinematográfico

completamente remodelada: um moderno porto, novas avenidas, bondes elétricos, palácios e

palacetes em estilo eclético, uma praia urbana, perda de grande parte da arquitetura

tradicional do Bairro do Recife, novos subúrbios, maior integração com as regiões

suburbanas, expansão dos bairros centrais, aumento de seu parque industrial, praças e largos

revitalizados. E também um enorme inchaço populacional graças não só ao crescimento

vegetativo, mas à migração para a cidade de mão de obra campesina dispensada em

decorrência da modernização mecânica do complexo agroindustrial. O número de habitantes

aumentou de 238 mil em 1920 para o número estimado de 290 mil em 1930 (MOREIRA,

1994, p. 142), aumentando, em consequência, o número de mocambos.

“A política sem dúvida possui muito de teatro. Na política os ingredientes que

resultam no teatro estão presentes: o cenário, o público e não esqueçamos: o ator...”

(MUMFORD, Lewis apud MELO, 2000, p. 73). No Recife dos anos 20, atores e audiência

eram indistintos no contexto suprapolítico do movimento cultural que grassava a época, onde

tanto os governos estaduais como a burguesia citadina trabalharam o palco urbano como

espaço de autoencenação do espetáculo da modernidade periférica.

A importância que se dava à construção de uma imagem de cidade moderna não era

pequena ou coadjuvante. Era um projeto explícito do “patriciado urbano” (expressão de

Denis Bernardes), evidente nas falas e ações da elite política da cidade, entre os governadores

da província, prefeitos, comerciantes em geral. Um dos órgãos representativos desse

patriciado foi a Associação Comercial de Pernambuco, ainda hoje existente. Foi essa a essa

entidade que recorreu o prefeito Eduardo de Lima Castro, ele próprio ex-presidente da ACP,

para pedir um belo empréstimo em favor das vultosas obras de calçamento realizadas por sua

prefeitura, trabalhos estes que realizariam o “Recife modernizado, belo, progressista e

admirado” (apud TEIXEIRA, 2012b).

Assim, a modernização do Recife fora também, ou até principalmente, uma questão

de (auto)imagem:

Era preciso que se produzisse a imagem de uma cidade higienizada e organizada, como uma estratégia

para reverter o processo de decadência econômica em que se encontravam a cidade e a região. Era

patente que a cidade portuguesa colonial não atraía mais investimentos; era preciso mostrar uma cidade

moderna. (MOREIRA, 1994, p. 163).

Conjectura Fernando Moreira que é aceitável a hipótese de que “as elites não apenas

adotavam uma posição pragmática visando aos benefícios e lucros advindos da modernização

urbana, mas que também estavam seduzidas pelo fascínio proposto pela modernidade” (1994,

p. 164). Também afirma que a reforma do bairro do Recife já era acalentada desde a metade

do século anterior, mas “só tornaram-se plausíveis quando foram geradas condições mais

propícias com a própria ‘euforia’ do movimento ideológico de modernização nacional e com

a Reforma Passos no Rio de Janeiro” (MOREIRA, 1999, p.143).

Esta hipótese é igualmente sustentada pelo historiador Flávio Teixeira, que diz: a

“atuação [da elite local] enquanto agente da modernidade – de extrema importância para a

consecução de uma imagem de cidade moderna – não se deve exclusivamente a uma lógica

material, mas também a razões de ordem simbólica.” (2012a, p. 58). “Há um imaginário

social que está a moldar os desejos e demandas não só do povo, mas também, com mais

propriedade ainda, das próprias elites e seus dignatários.” (TEIXEIRA, 2012b).

A seu turno, Lucila Ribeiro Bernardet, pesquisadora do ciclo, se surpreende com a

dificuldade de explicar sua existência:

Não vemos [...] história ou explicação mais científica ou lógica para o surgimento de filmes de enredo,

com as características que teve (depois do momento inicial mais ou menos obscuro, uma súbita

consolidação e consagração ampla e relativamente duradoura, e afinal um declínio e definhamento

discreto até a silenciosa extinção). A impressão que tem é a de que, de repente, se alastrou uma espécie

de febre de fazer cinema de enredo, uma cineastite aguda e contagiosa. Esta aliou-se a uma outra febre,

de uma espécie de me-ufanismo-de-minha-província, generalizada em Pernambuco na época.

(BERNARDET, L., 1970, p. 70-1)

Durante a década de 20, houve, assim cremos, uma convergência ideológica entre as

imagens técnicas e as “imagens urbanísticas”: a criação de ambas foi em boa medida

catalisada pela aspiração ao modo de vida moderno. O “prestígio da rua” que Gilberto Freyre

identifica ter existido no século XIX e José Gonsalves de Mello, no período holandês,

Luciana Araújo reencontra no ciclo do Recife: “Naturais e posados do cinema silencioso

pernambucano acompanham o processo de urbanização do Recife. A imagem das ruas torna-

se elemento iconográfco e narrativo constante.” O que é bem recebido: “Reconhecer na tela

imagens locais é um diferencial dos filmes pernambucanos que rende comentários positivos

na imprensa, incluindo aqui os filmes de enredo.” (ARAÚJO, L, 2011).

O ciclo do Recife conheceu o fim em 1931, com a chegada do cinema sonoro

sincronizado. A novidade estética dos filmes falados estrangeiros elevou o já alto padrão da

concorrência além das precárias possibilidades de produção em Recife, que não pôde

atualizar-se dado o custo da nova tecnologia de som sincrônico, proibitiva para um sistema

produtivo diletante como eram os ciclos regionais em geral.