A Hermenêutica Constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito

12
ÇATALOGAÇÃO NA FONTE DA RIIJLIQTEÇA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMC ISRN DTPARTAUEYTO NhCIOVAL DO LIVRO Iiirisdição r> hernic~nfiuiica con5tiiucioiial no Estado Oemncráticn dcb Uirei!o/.Varcrilo Andrade Canoni de Oliv~ira (coordena- ''' (3ol. - Bplo Harirnnlr: Mandamcnlor, 2004. Incliii Billl~ogr~fia. 15,5 x 27,s - 5112 p3~inas ISRN: RS-7h04-0?2-- 1. Urreita constitucional. 2. Hermenêutica (Direito). 3, ~i~risrdtçàa (nireito conititircional), I. Oliveira, Marcelo Andrarle Cattoni de. CDU , , , , & ,: 342..8:340.132.ú 340.1 32.k342.4 EDITOR: ARNALDO OLIVEIRA JUNIOR I Produç,5o grafica: Alexandre Cardoso I ÇOPYRICHT O 2004 RY I DEÇALOGO LIVRARIA E EDITORA Rija fcpirito Santo, 1.025 - Loja H Centro - CFP 301 60-031 - BH - MG Telefax: 131) 3226 771 7 E-mari: editora-Jm~ndamentos,torn~br LIVRARIA MANDAMENTOS Rua Coitaca.çes, R2 - Centro - CEP 301 90-050 - BH - MC Telefnx: (31 1 321 3 2777 E-rnail: [email protected] Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios oir formas, sem a expressa autorizaçào da editora. 1MPRESSO NO BRASIL PRIN TED IN BRAZII -- - TEM05 UM ADVOGADO JUNTO AO PAI, JESUS CRISTO, O JUSTO." (1 10 21) Ao Professor Douznr Menelick de Carvalho Netto.

Transcript of A Hermenêutica Constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito

ÇATALOGAÇÃO NA FONTE DA RIIJLIQTEÇA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMC ISRN DTPARTAUEYTO NhCIOVAL DO LIVRO

Iiirisdição r> hernic~nfiuiica con5tiiucioiial no Estado Oemncráticn dcb Uirei!o/.Varcrilo Andrade Canoni de Oliv~ira (coordena- ''' (3ol. - Bplo Harirnnlr: Mandamcnlor, 2004.

Incliii Bill l~ogr~fia. 1 5 , 5 x 27 ,s - 5112 p 3 ~ i n a s ISRN: RS-7h04-0?2--

1 . Urreita constitucional. 2. Hermenêutica (Direito). 3 , ~i~risrdtçàa (nireito conititircional), I. Oliveira, Marcelo Andrarle Cattoni de.

CDU ,,,,& ,: 342..8:340.132.ú 340.1 32.k342.4

EDITOR: ARNALDO OLIVEIRA J U N I O R

I Produç,5o grafica: Alexandre Cardoso

I ÇOPYRICHT O 2004 RY

I DEÇALOGO LIVRARIA E EDITORA Rija fcpirito Santo, 1 .025 - Loja H Centro - CFP 301 60-031 - BH - MG

Telefax: 131) 3226 771 7 E-mari: editora-Jm~ndamentos,torn~br

LIVRARIA MANDAMENTOS Rua Coitaca.çes, R 2 - Centro - CEP 301 90-050 - BH - MC

Telefnx: (31 1 321 3 2777 E-rnail: [email protected]

Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios oir formas, sem a expressa autorizaçào da editora.

1MPRESSO NO BRASIL PRIN TED IN BRAZII

-- -

T E M 0 5 UM ADVOGADO JUNTO AO PAI, JESUS CRISTO, O JUSTO." (1 10 2 1 ) Ao Professor Douznr Menelick de Carvalho Netto.

A HERMENEUTICA CONST1TUCIONAL SOB O PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRATECO DE

Dl REITO

MENELiCK DE CARVALHO NEaTO

São épocas difíceis para o constitucionalista essas em que o sentimento de Constituição, para empregar a expressão divulgada por Pablo Lucas Vesdií. é aniquilado nio sú pela continuidade e prevalência de práticas constitucionais típicas da ordem autocr5tica anterior, mas igualmente pela tentativa recorrente de alteraçfio for- mal da Constituição. Tentativas essas que, alcancem ou não o fim menor e específico a que visam diretamente, teminam sempre por ferir a aura de supremacia de que se deve revestir a Cnnsticuição para que seja capaz de Itgj timar e de articular tanto o Estado quanto todo o demais Direito que nela se assentam. Instrtura-se, assim. urna sittlaqno que tende a desvelar dois paradoxos bisicos da rnodemida- de. Torna-se cada vez mais visível que, na modernidade, tanta o Direito funda a si mesmo, bem como que igualmente a política, o Estado, Ç o prDplio fundamento de si mesma. Esses paradoxos do fundamento de ambos os sistemas são velados, coma demonstra Ni klas Luhmann, pela aquisiçzo evolutiva que representou a inven- ção da ConstituiçBo formal nos finais do s6çulo XVIII. É a difetençi- aç3o entre um Direito supenar, a Çonstituiqão, e o demais Direito. que acopIa estruturalmente Direi to e política, possibilitando o fecha-. mento operacional, a um sló tempo, do Direito e da Política. Em outros termos, é por intermédio da Constituição que o sistema da política ganha legitimidade operacional e C também por meio dela que a observância ao Direito pode ser imposta de forma coercitiva. Nessa situação, os próprios Orgãos legi tirnãdos pela Constituição voltam-se contra a sua base de legitimidade para devorá-Ia, tal como

I Cronos fizera com os seus próprios filhos. Revela-se a face brutal da

1 privarizaqãa da público. do poder estatal instnimentalizado. reduzi- de a mero prêmio do eleito, visto como "as batatas" a que faz jus o vencedor, nn dizer de Machado. 6 o sentimento de anomia que passa a carnpear sol to, vigoroso, alimentando-se n fartar das dificuldades que encontramos em recuperar as sementes de liberdade presentes em nossa Constituição, mergulhadas em nossas tradições. E as tradi- qOes de qualquer comunidade politico-jurídica s3o sempre plurais, por mais autoritárias que possam ser as eventualmente vitoriosas ao longo de sua historia.

A força nomativa da ConstituiçEo, como uma homenagem formal a Konmd Hesse, é reduzida a um mero ideal loewensteineano, o que s6 vem, em Último temo, reforçar a força nomativa, a idealidade, da facticidade que se revela na continuidade das velhas priticas políticas e juridicas que a Constituição veio abolir, na medida cm que se a eleva 5 condiqão de "'realidade." h. se, superando os stipostos de uma filosofia da conscicnçia, tematizarmos a condição humana como uma condição Iin@ística, discursiva, hermenêutiça, vercmos que a nossa pr0pria "'realidade" cotidiana e inafastável 6 permeada de idealidades, de pretensões Idealizantes, constitutivas da capacidade linguistica como tal. Por isso mesmo a oposiqão entre a constituição formal tomada como consrituiçiio irleal e a efetiva prag- rnfitica politico-.jurÍdica vista como çonstiritição real é, ela própria, uma construção idealizada, uma armadilha conceitual que et'erniza o que pretendera denunciar, pois, por um lado, 6 incapaz de revelar a natureza de idealidade normativa das terríveis pretensões idealizantes que ganham curso sob a capa do que denomina "realidade", e, por O U ~ O , absolritiza o poder de regularnen taçãa de condutas da Constitui- q;io e do Direito em geral. Cumpre salientar, portanto. que, por um Indo, contra a primeira deficiência da visão da Teoria da Constituição clissica, o Direito moderno é um Direita que se volta para a regula- rncntaqão de condutas futuras, sendo-lhe inerente a assunção do risco do eventiial descumprimcnto de suas normas. Aliás, o Direito regula apenns as condutas possiveis. refoge a ele a regulamentação de condu-

7 MENEtlCK DE CARVALHO NEnO

tas necessfirias ou impossíveis. E, contra a segunda falha apontada, recordamos o próprio Mans Kelsen, o mais fmafista dos juristas. que requer, uma vez que o objeto da norma jurídica não é urna determinada conduta humana e sim a internalização de um certo padrzode conduta, ou seja, uma outra norrna de car5ter sociológico, para a própria exis- tencia formal de uma noma um mínimo de internalizaç50 social. Ao nosso ver, para que a colocação do problema deixe de scr ela própria um seu reforço, 6 precise que busquemos postulá-Io de outro modo. Esse outro modo, acreditamos, deve vincular-se ao reconhecimento de que as prdticas sociais, ou melhor, as posturas e supostos assumidos pelos distintos atores em sua açio, a garnhtica dessas prfitiça sociais, é alribuidora de sentido, de significação.

Assim, acreditamos que o Judici5rio ocupe um papel central na Ardua tarefa de promover não somente a segurança juridica, mas ri

crença no próprio Direi to, na justiça. Outra característica essencial do Direito moderno é o seu carbter textual. O fato de que s6 temos acesso às suas normas mediante textos discursivarnentc constniídos e recof~stniídos. Portanto, os supostos da atividade de interpretação de iodos os operadores juridicos, do legislador ao destinatirio da norma, s5o da maior relevbncia para n implementação de um ordena- mento, o que nos remete para a tematização das gramiticas subja- centes hs prfiticas sociais instauradas. Uma delas é a que revela a crença de que todos os problemas e virtudes de nossa vida jurídica dependeriam da qualidade literal de nossos textos Fegislativos. Es- quece-se que os textos são o objeto da atividade de interpretação e n30 O seu sujeito. Que o anseado aprimoramento de nossas institui- qões pode requerer algo muito mais compIexo do que a simples reforma de textos constitucionais e IegjsEativas. Tudo esth a indicar a

que a reforma, para ser produtiva, deveria dar-se precisamente no imbito das posturas e das práticas sociais, ou seja, das gramáticas mediante as quais implementamos nossa vida cotidiana. E, nesse aspecto, a atividade jurisdiçional, na medida em que I he atribuida um papel central na arquitetura constitucional para o assentamento das expectativas jurídicas prevalenses na sociedade, é sempre o pólo

iui í i~ui~t i l t t t i tKMtNtU I ICA LONÇTITUÇIONAL r MENELICK DE CARVALHO NET'TO

em torno do qual se desenvolveu e se desenvolve a discussão teoreti- ca c teórica sobre ;i leitura e a aplicação dos textos le_eislativos, ou seja, sobre a atividade de interpretaç9o.

Contudo, o que é interpretaçb? Será que interpretamos ape- I

I nas textos? Nesse passo, temos que nos referir, ainda que rapidamen- te, a Hans Georg Gadamer e i denominada virada htmenFuticn que empreendeu. Gndatner vincula-se h tradição teorética da hemeriêutj- ca filosófica, uma corrente de pensamento na história da filosofia que se dedica ao estudo do estatuto das denominadas cisncias clo espiriro, das ciEncias humanas e sociais. A sua importfincia para nós reside no irnpuc to que sua obra produzirá sobre o conceito de ciência em geral, encontrando-se na raiz do conceito de paradigrna de Thomas Kuhn, a informar toda a atual filosofia da ciência.

Para resgatarmos os exigentes pressupostos que informam a poslura do juiz em uma tutela jurisdicional constit~tcionalrnente nde- quada ao priradi_mn do Estado Democrático de Direi te, tornaremos os supostos iniciais de Ronald Dworkin, enquanto um autor que tem por terna de sua predileção precisamente a reforma judicial que pretendemos tematizar. Para ele, a unicidade e a irrepetibilidnde que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, tarnbkrn qualquer caso concreto sobre o qua I se pretenda tutela jurisdicional, exigem do Jziiz hcrcúlea esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão c a t a para este caso cspccífico, irrepetivel por definiçfio. Em outros termos, rodo e qwal- quer casa deve ser tratado pelo julgador como um caso dificil, como um hnrd crise.' Mas, comecemos do começa. Afinal de contas o que é um pamdi gmn? E ainda mais precisamente, o que é e quais são os paradigmas constitucionais? Em que eles afetam a questso da inter- pretação em geral e da inierpretaçfio constitucional em particular?

1 DWORKIN, R. h k i n g r i ~ h t s srriorrsty. Carnbridge, Massachtisetis. Harvard Univer<r!y, 197R, p R 1-130; A rnnirfr of pr inc ip l~ . Carnhridpe. Massachusett~- Hnrvard University. 19R5, p. 119-145.

De inicio, portanto, cabe-nos intrduzir a noç3o de parad ipa e o seu emprego na Teoria Geral do Direito e no Direito Consti tucio- nal. O conceito de paradigrna, corno jii tivemos ocasião de afirmar, vem da filosofia. da ciência de Thomas Kuhn? Tal noção apresenta um duplo aspecto, Par um lado, possibilita explicar o desenvolvi- mento científico como um processo que se verifica mediante niptu- r&<, atravts da tematização e explicitação de aspectos centrais das grandes esquemas gerais de pd-compreensões e v i s h s de mundo, consubstanciados no pano de funda naturalizado de silêncio assenta- do na gramática das ptjticas sociais, que a um sd tempo toma possivet a linguagem, a comunicaçãa, e I imita ou condiciona o nosso agir e a nossa percepção de n6s mesmos e do mundo. Por outro, tarnbem padece de Ióbvias simplificações, que sO são v5lidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencial- mente hegemônicas em determinadas sociedades por certos periodns de tempo e em contextos determinados. É claro que a história como tal é it-iecupwável e incernensuravelmente mais rica do que os es- quemas que aqui serão apresentados, bem como se reconhece as infinitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos histb- ricos. Assim, a nível de detal hamento e preciosismo na recanstruç50 desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivas da pesquisa que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzimos rapidamente a aplicaçlo do oçoncei to no Direito Constitucional, so- bretudo com vistas aos supostos da hemeneutica constitucional, reconstruiremos um único grande paradigrna de Direito e de organi- zação política para toda a antiguidade e Idade Media, como contra@onto h modemidãde que, por sua vez, ser8 apresentada em - três grandes paradigrnas (o do Estado de Direito, o do Estado dc Bem-Estas Social e o do Estado Democr5tico de Direito), que

2 KUHN, T. S. A esrrimrri das rmlugões cienirfirm. S?ia Paulo: Perspectiva. 1994. p. 21 8-732.

MENELICK DE CARVALHO NETO

tendencialrnente se sucedem, em um processo de superação e stibsunçi"i (~srrifl~ehen), muito embora aspectos relevantes dos pnradigmns anterioms, inclusive o da antiguidade, ainda possam encontrar. no nível Fático, curso dentre nós. a condicionar leituras inadequadas das textos constitucionais e legais. Dai mesmo a razão e n necessidade de também apresentarmos os paradigrnas anteriores, pois, mediante essa contraposição, mel hm poderemos compreender o nova paradigma positivado e suposto pela Constituiç30 da Repii- hlicli de 1988.

Examinemos, primeiramente, o primeiro paradigma consti tu- cional em contraponto com e pd-moderno.

O Direilo e a organização polifica pré-modernos encontra- vam t raduçh, em ultima andise, em um amiilgama normativo indi- ierenciado dc religiiio, direi ta, moral, tradição e costumes transccn- dentalmente justificados e que essencialmente não se diçcemiam. O Direi to é visto como a coisa devida a aIgdm, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social [ ida como absoluta e divinizada nas sociedades de castas, e ajiisiiça se reulizn sobretudo pela sabe- cloriu F sei~sibilidade c10 crplicciclnr em "bem observar'" o princípio rln egíiirlade %erornado como a lramonia requerida pelo tsatamenro dtlsijqiicrl qrre doeria reconh~cer e reproduzir as diferenças, ns d ~ s i ~ i ~ n l d a d e s , ubsolurizndas da ressiturci social (a phrnnesis aristottlicn, a servir cle modelo para a posmrn do Iienneneidfa). O Direito, portanto, enquanto um iinico ordenamento de nomas gerais e abstraras v:ilido para toda a sociedade, nao existia, mas tão-sornen- te ordenamentos sucessivos e excludentes entre si, consagradores dos privilégios de cada casta e facyão de casta, consubstanciados em normas oriundas da barafunda legislativa imemorisil, nas tradições, nos usos e costumes locais, aplicados casuisticarnente como normas concretas e individuais. e não çomo um único ordenamento jurídico integrado por nomas gerais e abstratas vilidas para todos.

Verifica-se a dissoiução desse paradiurna ao longo de pelo menos três séculos, por um sem-número de fatores que vão desde a

I aç3o dissolvente do capital, a diluir os laços e entraves feudais e a I

fazer com que cada vez mais indivíduos livres e possessivos pcutici- pem do crescente mercado como proprietários, no rninimo. do pr6- p io corpo, ou seja, da força de trabalho que Ihes possibilita o comparecimento cotidiano ao mercado enquanto propriedrios de urna mercadoria a ser vendida (Marx}; passando peIo desenvolvi- mento das práticas de investigação policial (Foucaul t, Urnberto Eco); pela destruição da cosmologia feudal fechada e hicrarquizada. substituída pela ison0mica estrutura rnatemfitica de fitomos que constitui o universo infinito da física de Galileu (Koysk); pelas lutas por liberdade de confissão religiosa e pela çonsegilente distinçao e separação das esferas norinativas da religiiio, da moral, da ética social e do Direito (Weber), etc.

Seja como for, o relevante é que todos esses processos de mudança se integram em uma profunda alteração de paradigma. As intuições da moral individual racionali s ta, vistas como verdades rnatemhticas inquestionávei s, colocam em xeque a tradição, agora reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da época, s6 pode ser explicada como o reçul tado da çornipção hist6rica e que, assim, deveria ser alterada pela imposição de n m a s racional- mente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história, inaugurando ou remodelando um tipo recente de organização políti- ca, os Estados nacionais.

Os Estados nacionais são consmiidos como espaços laicos de definição e imposição dessas regras racionais que deveriam reger irnpositivamente a organização e a reprodução social, a nomativida- de propriamente jurídica. O Direita, enquanto essa normatividade específica, diferenciada e decorrente de idéias abstratas consideradas verdadeiras por evidência, como analisa Mmuse, s6 poderia ser, compreendido agora çomo um ofdenamento de leis mionalmen te elaboradas e impostas B observação de todos por um aparato de organização politica Paicizado.

O que se produz mediante um processo de redução, em que a direito deixa de ser a coisa devida transcendentalmente assentada na rígida e irnutavef hierarquia social da sociedade de castas, para se

rrnnsfomar no Direita. ou seja, em um ordenamen to constitucional e legal que impõe, 9 toda uma afluente sociedade de classes, a obser- vincin daquelas idéias abstratas tomadas corno Direito Natural pela j usr:ici onalisrno. Idéias abstratas tais como a da liberdade individual de se "fazer tudo aquilo que as leis não proíbam" (LockeíMontes- quieu) o11 da "liberdade de ter" dos modernos em oposição b "liher- dnde de ser" dos unti gos {Hegel, Benjamin Constnnt}; tais como si da i giialdade de todos que, conquanto muito diferenres em outros aspec- tos. siio iguais diante da lei. Ou, como explica Pashukanis, são iguais no sentido de todos se apresentarem agora coma proprietários, no mínimo. de si próprios, e, assim. formalmente, todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujei tos de direito, devem- clo-se pôr fim nos odiosos privilégios de nascimento.

Pela primeira vez na história pós-tribaf, todos os membros da sociedade são, ou devem ser, propriedrios, homens livres e, assim, iytialmente su-jeitos de direito, capazes, até mesmo o mais humilde trahalhadm braçal, de realizar atos juridicos contratuais como o da compra e venda da força de trabalho. Com o movimento çonstitucio- rinlis ta implantam-se Estados de Direito que resultam da confmacão da organizaçao política B necessidade de que essas Idkias, tidas corno direito natural de cunho racional, verdades matemáticas absolutas e inqucstfanfiveis (caracterizadoras do individuo - essa outra invenção clli modernidade) pudessem encontrar livre cursn e se impor.

O Direi to é visto, assim, como um sistema n m a t i v o de regras gerais e abstratas, vfilidas universalmente para todos os membros da sociedade. O Direito Público, no entanto, deveria assegurar, mesmo qiic por in termbdio de formas e sistemas de governo variados, o n3o- retomo ao absoliitismo, precisamente para que aquelas idéias abstra- tas pudessem ter livre curso na sociedade, mediante a limitação do Estado ri lei e ri adoçao do principio da separaqão dos poderes que, ainda que lido dc distintos modos, sempre deveria requerer, no mínimo, tarnbbrn a aprovaçao da representação censitária da "me- I hcir sociedade" no processo de elaboração dessas mesmas leis. E. assim, Bs leis deveria ser reservado o tratamento de toda a matéria

relativa h vida, 9 liberdade e i propriedade dos súditos. Contudo, em face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades evidentes, o Direito Público, ao variar, em seus detalhes, de pais para psiIs, i visto corno mera canvençiio, pois da "sociedade política" deveria participar apenas a "melhor sociedade", convcncionalmente estabelecida pela requisita de renda mínima para o exercício do voto, bem assim pelos critérios mínimos crescentes de renda censituriamente escalonados para que algukm pudesse se candidatar a cargos públicos locais, regionais e nacionais.

O Direito Privado, por sua vez, corresponderia bquelas verda- des rnatemriticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos h vida, h liberdade, i igualdade e à propriedade privada. Assim, socie- dade politica e sociedade civil são separadas por um profundo fosso. Na psirneira, os interesses gerais deveriam prevalecer mediante a ahbwição de sua identificaç50 e guarda aos membros dessa "socie- dade politica", dessa "'melhor sociedade", àqueles cultural e econo- micamente bem aquinhoados. E a "razão práticd' apontava para o estabelecimento do mínimo de leis gerais e abstratas, pois já que liberdade é fazer tudo aqui t o que as leis n5o proíbam. quanta menos leis, mais livres seriam as pessoas para desenvdver as suas proprie- dades (aqui o temo é empregado na acepção da época, como tam- bém abrangente dos dotes fisicos e mentais de uma pessoa). A segunda, a sociedade civil, é o espaço naturalizado em que as propri- edades devem ser desenvolvidas o mais livremente possível median- te a garantia da iguaidãde formal de todos perante a lei. não impor- tando quão desiguais possam ser em temos materiais.

O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer limites uni- versais preponderantemente negativos (não furtar, não matar, etc., como traduzido, por exemplo, por Fichte) é, então, visto como Ô

conjunto de regras que delimitam os espaqos de liberdade dos indiví- duos - as linhas demarcat6riaç da fronteiras em que termina a liber- dade de um individuo e em que se inicia a liherdade de outro. Assim, o paradigma do Estado de Direito ae limitar o Estado h legalidade. ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representan-

tes da "melhor sociedade" autorize a atuaçso de um Estado mínimo, restrito ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito Aquelas fronteiras que asseguravam o mais pleno exercício i s ti ber- dades individuais anteriormente referidas e, assim, garantia-se o livre jogo da vontade dos atores sociais individuaIizados, vedada a orpnizaç5o corporativo-coletiva, configurando, aos olhos dos ho- mens de então, tim ordenamento jurídica de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagíarn os direitos individuais ou de primeira geraçuo, uma ordem jurídica liberal clássica. claro q i c ~ .vnh este li rime iro paradipn cnnsfifi~cianal, o CIO Estado de Direito, (3 q ~ ~ s t ã u da atividad~! Iiemenêartica do jrtiz só poderia ser vhfa s'nrno timn atividade mect?nlca. rcsttlrnclo de uma lei! ura direta clos tex fo~ ~ U P deveriam ser claros e disriprtos, e a interpretação algo a sar riirado até rr~esmo pela consulta ao legislador na hip6fese de clrívidm c h jiiiz diante de ie.rfos obscuros 6 infrincnd~s. Ao juiz 6 scseuvndo n pupel de mera bouçhe de la lui.

A vivencia daquelas idéias abstratas que conformavam o p:tradi-ma inicial do consti tucionatismo logo conduz A nega~ão prá- tica d:is mesmas na história. A liberdade e igualdade abstratas, bem como a propriedade privada terminam por fundamentar as práticas sociais do penodo de maior exploraç5o do homem pela homem de que se tem notícia na histdria, possibi tirando um acúmulo de capital jarnai s vista, as revoluções industriais e uma disseminação da rnisé- tia também sem precedentes. Idéias socialistas, comunistas e anar- quis tas começam a colocar agora em xeque a ordem liberal e a um s6 tempo animam as movimentos coletivos de massa cada vez mais significativas e neles se reforçam com a luta pele diteito de voto, pelos direitos coletivos e sociais, como o de greve e de livre organi- zação sindical e partidhia, como a pretensão a um saIirio mínimo, a uma Jornada m Axirna de trabalho, i segundade e previdência sociais, ao acesso h saúde, Li educação e ao jazer. Mudanças profundas também de toda mdem conformam a nova sociedade de massas que suree após a Primeira Guerra Mundial e, com ela o novo pardigma coristittrcionnl cln Estndo Social. No que toca diretamente ao nosso

"I - MENEklCK DE CARVALHO N E r Q

tema, desde o socialismo implantado na Rússia Soviética em 1918, passando pelas sociais democracias como as da Alemanha de 19 1 9 e da Áustria de 1920, até o nazismo e o fascismo em ascensão, todas essas formas de organização politica configuraram um movo paradig- ma, o do Estado Social, que, por sua vez, pressupõe a materializaç3o das direitos anteriormente formais. Não se trata apenas do acrkscirno dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinigão dos de primeira (os individu- ais); a liberdade não mais pode ser considerada coma o direita de se fazer tudo o que não seja proibido por um rninirno de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma pleiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, minimamente. o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economica- mente mais fraco da relaçio, ou seja, a internrilização na legislaç3o de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material, eqüitativa. Não mais se acredita na verdade absoluta de cunho matemático dos direitos individuais. O direito privado, assim comò o publico, apresentam-se agora como meras convenções e a distinção entre eles é meramente didática e 1150 mais ontológica. A propriedade privada, quando admitida, o 15 como um mecanismo de incentivo i produtividade e operosidade sociais, não mais em temos absolutos, mas condicionada ao seu uso, h sua funçfio social. Assim, todo o Direito 6 público, imposiçao de iim Estado colocado acima da sociedade, urna sociedade arnwfa, carente de acesso h saiide ou h educaç50, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado continua a subsumir toda a dimensão do piibliço, agora imensamente alargada e positivamente valotada, e tem que prover os serviços inerentes aos direitos de, segunda geraç5o à sociedade, como saúde, educação, previdzncia, mediante os quais alicia clientelas, para que os direitos de primeira geração possam ganhar densidade no novo sentido tendencialmen te materializado que passa a revesti-los.

Com essa crescente complexificação da estrutura da socieda- de, verificada após a Primeira Guerra Mundial, no século XX item

curso, portanto, urna rernodelnção do Estado e do Direito, aqui designada "passasem do paradigrna do Estado de Direito para o do Estado Social ou de Bem-Estar Social", em que o Direito 15 mafeterji- 7.ado e, precisamente em razão dessas exigências de materializaçfio do Direito, iir7o somenfe o Estnde tem n sua seara de atuaçiio ~.~rrcrorclinnri~rnente ampliadn paro nhrmger tnrefm vinçufndas a ~ssr rs noiln.r jfjnalidade.~ ~confimicns e sociais que, o p r a , lhe são nrrihuídas, como o prr5priri ordenarnenrn ganha fim novo gralr d~ conrplexidarle. O juiz agnrn nBo p o d ~ ter a sua ntividadp rehzida a rima ntem tns<fu rnecclniçn de aplicaçiio s i l~~~is t icn da lei tornada conio a premissa mnior sob a qrrnl .Te strhnime nictomaricnm~nre o fiiro. A h~mt~nêtlticn jitriclica reclama mé~odos rnai,~ sojsticados ronro n , ~ ancilia~s relcolrj(gica, sisiêmicn e histbrica capuzes de pmnn- çipnr o senricln do lei cllr i~ontade srrhjefiva do l~~qislnrlor na d i r~ção cfo ~uantrrri~ 04 jeri i~n cln própria Sei, profiindamenr~ inserida nas d i i - ~ r s i ~ e s de nureria1i:~~nn da Direito qiie a mesma pref i~~lrn, mei-gicll~arkr na dinfirnica dns necesaidndes dos proRmrrnas e tarefas roricris. Aqrri o trabalho h jiti: jd t~na que ser visto como alago mnis çonzplexn ri gcrra~tir ns dinciirricas e anlpIas $nnlidode.r sociais que recaeni sobre os ombros do Estado. E.rplica-se assim, por exemplo, Icr~ito R t~~?rntii?a de Hans Kelsen de limitar a interpretação $0 lei trrrriv.4~ de itmn ci2ncin h Direito enrnrresada de delinear o qirndro rlcrs 1eittrxn.r po.~sirlei.r pnm n escolha discricionciria da auroridacle aplicarlorn, qunnto o decisionisma em que o mesnio recai qlaando o'n s~gr~ridn edição de sua T~or ia pura do direito.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o modelo do Estado Social já começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentraçiio e com ri explosiio das bombas arômicas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelo movi- mento hippie na dtcada de 60. No entanto, 6 no início da década de 70 que a crise do paradigrna do Estada Social manifesta-se em toda a sua dimensáo. A própria crise econômica no bojo da qual ainda nos encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivlsta dos tecnocratas e do pIanejamento economico, bem como a opasiç5o

antitétiça entre a técnica e a polltica. O Estado interventor transfor- ma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hiper- çornpFexas da era da informação ou pós-industrial comportam sela- ções extremamentt: intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos da terceira geração, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos amhientais, do consumi dor e da criança, entre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de dano, r130 podem ser clara e nitidamente dereminados. O Estado, quando não diretamente responsivel pelo dano verificado foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalizaç3e ou de atuação, criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associ- ar;&~ da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado prlvatizado ou omisso. Os denominados direitos de primeira e segunda geração ganham novo significado. Liberdade e Igualdade são retomados corno direitos que expressam e possibilitam uma comunidade de princípios, integrada por membros que recipro- camente se reconhecem pessoas livres e iguais, co-autores das leis que regem sua vida em comum. Esses direitos fundamentais adqui- rem uma conota@o de forte cunho procedimental que cobra de imediato a cidadania, o direito de participa@o, ainda que institucio- naIrnente rnediatizada, no debate piiblico constitutivo e confomador da soberania democrfitica do novo paradigma, o paradignin consfitri- cionat do Esrado Democrático de Direito e de seu Direito participativo, pluralista e aberto.

Ora, é claro que uma concepqão distinta e respectivamente adequada acerca da atividade hemenêutica ou interp~tativa do juiz integra cada um desses paradigmas, a configurar distintos entendimen- tos, por exemplo, do princípio da separação dos poderes, o que noi permite detectar, tamkrn aqui, uma grande e significativa transfoma- ção na visuo dessa atividade, bem como um incremento cmesponden- te de exigências quanto à postura do Juiz não somente em face dos textos jurídicos dos quais este hauriria a n m a , mas inclusive diante do caso concreto, dos elementos fáticos que s5o igualmente inter-

pretados e qiie, na realidade, integram necessariamante o processo de densificaç5o normativa ou de aplicação do Direito, tal como ressaltado na atutil doutrina constitucional e na teoria geral do Direito por seus tehricos centrais çomo Konrad Hessc, Robert Alexy, Friedrich MUIler, Klaus Giinther, burence Trik, Ronald Dworkin, Gomes Canotil he, Paulo Ronrivides e Oliveira Baracho, entre tantos outros.

Assim, a partir deste rápido escorço, podemos ver çomo se verificou um incremento das exigências relativas à postura do aplicador da lei e do responsãvel pela tutela jurisdicional que se I assenta em urna crescente capacidade de sofisticaq50 da doutrina e

I da jurisprudência para fmer face aos desafios decorrentes do proces- I

so de continuo aumento da complexidade da sociedade moderna. Podemos verificas a profundidade das exigências pressupostas

sob o paradigrna do Estado Democrático de Direito se tomarmos, com Hahennsis, "a teoria do Direito de Dwmkin como nosso fio condtitor, pois. lidamos inicialmente com o problema da racionalida- de, tal como posto por uma prestação jurisdicional (Rechr,sprechun,q), cu-jns decisões devem cumprir simultaneamente os critérios da certe- I za jinídica e da aceitabilidrtde rac i~na! ."~

Desse modo. no partradigrna do Estado Dernocritico de Direito, 6 de se requerer do Judiciirio que tome decisões que, ,ao retrnba- lharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Di- rei to vigente, satisfaçam, a um s6 tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança juridica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão iis particularida- des do caso concreto.

Para tanto, é fundamental que o decisor saiba que a própria composição estrutural do ordenamento jun'dico é mais complexa que a de um mero conjunto hierarquizada de regras, em que acreditava o

3 HARERMhS. Jhrgen. Fn;ikti?iiiir icnd Gtltun~. Rpitrdgp ; ~ r B i s b r ~ i h e a n ~ des RPI.IFI,F rrnddrs rleniokrniischrn Rerhrssirrots. Ftankfiirt: Suhrkamp, 1994, p. 292.

MENELICK DE CARVALHO NETTO

positivismo jurídico: ordenamento de regras, ou seja, de normas apliciveis h maneira do tudo ou nada, porque capazes de regular as suas pr6prias cmdigões de aplicação na medida em que portadoras daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da noma jurfdica: "Se é A, deve ser 3 ." Ora, os princípios são ramb&m normas jun'dicas, muito embora não apresentem essa estrutura. Qpe- ram ativamente no ordenarnento ao condicionarem a leirura das regras, suas contextualizsições e inter-relações, e ao possibilitarem a intepçfio construtiva da decisão adequada de um hard cnse. Os princípios, ao contrário das regas, como demonstra Dworkin, po- dem ser contr;Znos sem ser contraditórios, sem se eliminarem reci- procamente. E, assim, subsistem no ordenamento pnnctpios contrii- rios que estão sempre em concorrência entre si para reger uma de tminada situação. A sensibilidade do juiz para as especi ficfdades do caço concreto que tem diante de si é fundamental, portanto, para que possa encontrar a noma adequada a produzir justiça naquela siniaçlo específica. E precisamente n diferenqa entre os discursos legislativos de justificiição, regidos pelas exigências de universalida- de e abstração, e os discursos judiciais e executivos de aplicaqão. regidos petas exigências de respeito 5s especificidades e h concretude de cada caso, ao densificarern as normas gerais e abstra- tas na produçáo das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Gunther denomina senso d~ núleguahilidíide. que, no Estade Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento ao tornar suas decisões.'

E desse modo que Dworkin, também crítico literário e profun- do conhecedor da teoria da linguagem, pode afirmar que há uma única decisão correta para um caso concreto (the ri~Jzt answer). Dworkin, é claro, sabe t3a bem quanto Kelsen que qualquer texto

4 GUNTHER, Klaus. 7hc sense oJ nppropnnft-nass. Trad. 3ohn FarreF. Ncw York: State University of New York Presr, 1993.

possihi lita vhrias ieihiras, o probIema da decisao judicial, no entanto, é que a mesma se dã como soIução de um litígio concreto e envolve i~ualmente a interpretaçiio dos faloir que configuram uma situação de aplicoçào bnica e inepetíuel. Esses Jnrm. como revelam a própria ciCncin e sua teoria. por exemplo. através do conceito de "paradig- ma" cm Thomas Ktinh. 60, na verdade, eqitivoienres o texto, ou seja. somcnie apreensíveis por meio da atividade de interpretaçlo, medi- ante uma atividade de reconstruqão da situaçao fática proftindamente I rnnrcnda pelo ponto de visra de cada um dos envolvidos. Por isso mesma, aqui, no domínio dos discursos de aplicação nomativa, faz- se justiça não somente n:i medida em que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o Direito vigente, mas para isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos, de buscar ver a quest5o de todos os angulos possivei s e, assim, proceder racional ou fundamentadamente 5 esco- Ih;i da única norma plenamente adequada i complexidade e à unicidade da situa~õo de aplicação quc se apresenta. Com essa ahcrtiirn para a complexidade de toda situagão de aplicsçio, o aplicador deve exigir entfio que o ordcnsmento jundico apresente-se diante dele. n5o através de uma única n g a integrante de um tudo passivo. harmBnico e predeterminado que j6 teria de antemão regula- do de modo absoluto n aplicação de suas regras, mar em sua integralidade, como um mar revolto de normas em permanente ten- s5o concorrendo entre si para regerem silunç8es. A imparcialidade aqui, ressalta Gunther, se traduz na capacidade de o juiz levar em conta 3 rcconsh-uç2o fririca de todos os afetados pelo provimento e, desse modo. fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto plurolidade de normas que concorrem entro si para reger situações, se faça presente, buscando entáo qunl a norma que mais se adapta 21 situnçiio: qual a norma que. em face das peculiaridades especificas daquele caso visto como um hnrd ca.re. promove justiça para as partcr. sem deixar residuos de injustiças decorrentes da cegueira à si tuaç8o de aplicaq9o. Cegueira esta que até bem pouco tempo atrás podcr4in ser confundida com a própria irnparci liadade por haver sido

elevada 3 condição de suposto Emptícito do conceito mesmo de ordenamento jurídico dos dois primeiros paradigmas constitucionais na rnodemidade. Rcdução conçeitual que visualizsva o Direito ou como um ordenamento de per si racional, harmônico e sistemática de regras claras e distintas ou como um ordename610 de regras previamente racionalizada, harmonizado, sisrematizado e integra- lizado pelos juristas em sua doutrina e em seu operar. De toda sorte, pressupunha-se sempre a reduç5o da estrutura da norma jurídica ?I esmitura das regras. ou seja, das i r n a s que, estrunrralmente. hus- cam regular suas pr6prias condições de aplicaçfio. Por isso mesmo, a própria natureza juridica dos pfincipios gerais do Direito era sempre objeto de discussão. Nesse contexto, é claro que os princípios s6 poderiam ser considerados relevantes enquanto meias de integração das possíveis lacunas legislativas. Ao criticar o modo de aplicaqno normativa grevalente na rnodemidade, Gunther toma um dos exem- plos de Kant, autor paradigmitico do período do Estado Liberal, mas que neste aspecto, o da insensibilidade para cam a situaç50 dc aplicação, continua a se-lo também para o Estado Social, Para enten- dermos o exemplo dado por Kant como modelo para a atuação da razão pritica, é necessário procedemos a uma drAstica síntese das duas críticas centrais de Kant. Assim, podemos dizer em uma só frase que se, para Kant, no domínio da razão pura, devemos agir de modo a nos submetemos aos dados da experiência, no dominio da razão pratica, por outro lado, não podemos nos deixar guiar pelas consequências práticas de nossos atos, mas somente pelo imperativo categ6riço da generalidade: devemos agir de tal modo que a máxima de nossa a ~ ã o possa sempre ser uma lei universal. E neste contexto que Kant prolata o seguinte exemplo. Um dia, estava ele a lecionar em Koenningsberg, quando um aluno entra esbaforido e diz estar sendo perseguido pela polícia politica do Kaiser, solicitando a Kant que lhe permitisse esconder-se em sua sala de aula. O professor Ihe indica a sua mesa para que ele sob ela se oculte. Chegando, a policia política revista em vão a sala e, aa sair, um de seus membros resolve indagar a Kant se este vira o aluno que estavam perseguindo. Kant

snhe muito bem que essa polícia política tortura e mata os que apreende. No entanto, Kant também reconhece a bondade universal do princípio moral "n30 mentir". Assim, Kant. tal como investigado na sua critica da razão prática, não hesita e responde ao policial que o aluno se encontra debaixo de sua mesa, dando curso ao que supõe ser ri seu devcr moral, de validade universa1, não mentir. Este exemplo dado por Kant iliistra muito bem a critica que Guniher, seguindo I)\-vorkin, pretende fazer ao modo de aplicaç5o do Direito ínsito aos priradigrnns constiti~cionais anteriores, A crença na bondade da uni- versalidade da regra fazia com que as homens cometessem tsemen- dar injustiças por se fazerem cegos às distintas situações de aplica- $30. E esslis injustiças decorriam do fato de eles serem, efetivamen- te, incapazes de ver que os princípios, distintamente das regras, requerem aplicaçnr, concorrente, balizada por outros principias, so- hrettido os de sentido contrisio. No caso em exame, se outra fosse a poqfura de Kant, para ele teria se tornado c ! m que o princípio mciralmen te adequado para reger aquela situaqão específica 1130 seria de modo algum o do "1180 mentir", mas sim princípio de igual validade iiniversal, mas de sentido cantriirio, do "não delatar". O principio mais adequado à si tuação de aplicação afasta, naquele caso, a aplicação do impróprio porque aqui este produziria injustiça, sem afetar-lhe a validade universal. Aliás, suposto da validade uni- vei-siil de um princípio é precisamente uma reserva de aplicação se_giindo ris cspecificidades das distintas situaqões, Ora, o Direito, tal corno a moral, é também integrado por princípios, sobretudo no domínio crinstitucional, o que requer uma aplicação das normas sensiveI b distintas si tuações de aplicação.

As propostas de Dworkin para uma interpretação construtiva teoricamente dirigida do Direito vigente podem, assim, ser defendi- das nos termos de uma leitura procedimentalista que altera as exi- gemias idenIizadas da construção de uma teoria sobre o conteúdo idealista dos pressupostos pragmáticos necessários ao discurso jurí- dico. a operar no interior dos limites requeridos pelo princípio da separaçãri de poderes, sem que o Judiciário invada as competências

legislativas e subverta os estritos limites legais da Administraqão (Gesetzesbind~tng der Vemaltung). É claro que aqui a principio da separaçjo de poderes ganha o conteúdo da distinção enne o domínio das atividades legislativas ou discursos de justif cação, ou seja, da- queles discursos que têm por critério de imparcialidade a uni vcrsali- dade, e o domínio da atividade de aplicação de normas, ou seja. dos discursos que, por sua vez, têm por critério de imparcialidade a sensibilidade para. com as especificidades de cada situação de aplica- ç3o consoante a Iõtica de todos os afetados.

Apenas assim a concepçáo do Juiz Hércules, de Dworkin. pode ganhar solidez. buscando-se compreender a prestação j urisdi - çianal em seu aspecto funcional especifico referente h implantação, consolidaç50, desenvolvimento e reprodução não somente dn certeza do Direito, bem coma, a iam s6 tempo, do sentimento de Constitui- $" e de Justiça. Único sentimento capaz de adequadamente assegu- rar solidez i ordem jutídica de um Estado Demucrritico de Direito. Como afirma Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

" a legitimidade da ordem jurídiço-democritica requer deci- sões consistentes não apenas com o tratamento anterior de casos anilogos e com o sistema de normas vigentes, mas pressupõe igualmente que sejam racionalmente fundadas; nos fatos da questão, de tal modo que os cidadãos possam uceitá- las como decisões racionais."'

6 relevante ressaltamos mais uma vez, com Ronald Dworkin, que o custo, inclusive funcional. da insensibilidade sirnplificadora da situaçao de aplicação, típica dos paradigmas anteriores, é alto. Não levar a sétio os direitos, ou seja, simplificar uma situaçâo de aplica- ção de modo a simplesmente desconhecer direi tos dos envolvidos

5 CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo A. Tutela jirrisdirional e Ertstndo Dpmorrhrico rir I)iwiio. Belo Horizonte: Dcl Rey, 1997, p. 13 1 .

43

por se cnfocar a questão do ingulo de um Cnico princípio aplicado ao modo do tzido ou nada, típico das regras, termina por subverter o própria valor da segurança jurjdica que se pretendera assegurar. Por isso mesmo, afimamos a mera aparência de consistência de urna decisão dcste tipo, ainda que com apenas um hiço princípio juridi- co. Os princípios n30 podem, em nenhum caso, ganharem apIicaç3o de regra, ao preço de produzirem injustiças que subvertem a crença na própria juridicidade, na Constituiç3o e no ordenamento. E tempo de nos conscientizamos da importância nTio somente do que Pahlo L~icas Verdii denomina sentimento de ConstituiçBo para a efeii- vidade da própria ordem constitucional, mas que precisamente para se cultivar esse sentimento em um Estado Dernocritico de Direito, das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nlvel de racionalidade discursiva compativel coin o atual conceito process~iai de cidadania. com o conceito de Haberje da comunidade aberta de interpretes da Constituiç5o. Ou para dizer em outros temos, ao nosso Poder Judiciftrio em geral, ao Supremo Tribunal Federal em p;irticti!m. compete assumir a guarda da Constituição de modo a densi ficar o principio da moralidade constitucionalmente acolhido que, na âmbito da prestaç80 jurisidicionsl, encontra tradução na sritisfaç30 da exigência segundo a qual a decisão tornada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do Direi to

vigente quanto dos fatos específicos do caso concreto em quesMo, de modo a se assegurar ri um só tempo a certeza do Direi ta e a correçgo, a justiça, da decisão tomada.

Assim, podemos concluir que, sob as exigências da hermenêu- I tica çonstitticionril insita ao paradigma do Estado Democrático de

Direito, requer-se do aplicador do Direi to que tenha claro a cample- xidride de sua tarefa de intérprete de textos e equivalentes a texto, quc jamais ri veja como algo mec3nic0, sob pena de se dar curso a urna insensibilidade, a uma cegueira, ji não mais compatível com a Constituição que temos e com a doutrina e jurisprudência constituci- onais que a histbria nos incumbe hqje de produzir.

Parte I

DA CRISE POSITIVA A RECONSTRUÇÃO D O DIREITO:

CUNTRIBUIÇÕES A UMA