A Expedição Roncador-Xingu e a Epopéia do Brasil Moderno Uma breve análise à luz da...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
A Expedição Roncador-Xingu e a Epopéia do Brasil Moderno
Uma breve análise à luz da antropologia de Georges
Balandier
Gustavo Racy
06001110
Antropologia VII
Professor Rinaldo Arruda
Junho/2009
Índice
Introdução 3
Emergência de uma nova Antropologia 4
A Descoberta do Brasil Central 9
O Parque Nacional do Xingu 12
Conclusão 16
Bibliografia 17
Anexo – sobre o Xingu 18
2
Introdução
Frente à proposta de um trabalho de tema livre sobre
alguma etnia indígena brasileira, analisada segundo o
pensamento de algum autor lido durante o curso de
Antropologia VII, este trabalho pretende, de forma breve,
analisar primeiro a obra de Georges Balandier, para, em
seguida, tentar relaciona-la a um caso específico. Esse
caso específico não se detém, no entanto, em uma etnia
indígena particular, mas – tema principal da obra de
Balandier lida no curso -, na relação entre certas etnias
brasileiras (as xinguanas), frente à certa política
institucional cunhada principalmente pelos sertanistas
Villas Boas.
Assim sendo, este trabalho tem por objetivo muito mais
a explicitação e a compreensão de um certo pensar
3
antropológico do que a legitimação dele. Espera-se atingir
este objetivo relacionando aquela que Balandier cria ser a
tarefa da Antropologia Política e a atitude de três irmãos
que, mesmo não sendo antropólogos de formação, atingiram
objetivos que muitos antropólogos defenderam sem nunca
alcançar. Cabe lembrar que esses irmãos contaram com grande
apoio de importantes indigenistas, principalmente do
Marechal Rondon, tido ainda hoje como heróis por diversas
tribos indígenas e Noel Nuttels.
Emergência de uma nova Antropologia
4
De acordo com Hegel, em suas Lições Sobre a Filosofia da
História Mundial, os homens ditos primitivos se encontram
abandonados à margem da história, são como máquinas que
funcionam no vazio em sobrevivência anacrônica. Elas
desconhecem o trabalho do negativo, ou seja, da
transformação temporal. E somente o que não é atravessado
pela dúvida e pelo desespero pode fugir da ação do tempo. A
China e a Índia forma, para ele, povos que perduraram sem
história. Já a Pérsia, tendo sido o primeiro império que
desapareceu, foi o primeiro povo histórico, sofrendo com a
ruína e a queda, processos para ele naturais.
Os povos históricos são, assim, aqueles cujo negativo
emerge em seu interior, nos quais a violência externa não é
determinante. Isso significa dizer que nas sociedades sem
história, o desaparecimento da civilização é efeito de uma
catástrofe que lhe é extrínseca. Sua estabilidade e sua
“fraca temporalidade” fazem com que sejam vulneráveis aos
arbítrios externos, de modo que o negativo que as destrói
vem de fora. A história destas sociedades se firma, assim,
como uma “história sem história”, repetição de uma mesma
ruína: o novo elemento que substitui o anterior sempre
perecerá.
Para Georges Balandier, em Antropo-lógicas, a recusa pela
história na análise antropológica, herdada da tradição
neokantiana, hegeliana e durkheimiana, foi corrente até a
metade do século XX, o que mostra o atraso da ciência em
relação à sua ciência irmã, a Sociologia. Por isso, o
objetivo principal deste antropólogo será cunhar uma
5
antropologia da modernidade, uma antropologia do atual, uma
vez que o ofício do antropólogo - de interpretar sociedades
e culturas firmadas na diferença - e a do sociólogo – de
apreender a própria sociedade no que esta revela de si
mesma nos problemas atuais - entraram em crise na primeira
metade do século XX: a Sociologia por não conseguir se
distanciar das categorias próprias das sociedades
ocidentais industrializadas, com a idéia de ser sempre o
regime “que rege a produção que determina o ponto principal do debate”1;
e a Antropologia por se firmar como pesquisa meramente de
sociedades arcaicas, sem notar a relação destas com as
sociedades de onde provinham os próprios pesquisadores,
fechando os olhos para o diálogo entre si mesma e outros
campos de saber.
Desse modo, observando a emergência da antropologia
crítica, que insere suas considerações no campo de certo
tipo de antropologia fundamental, alguns antropólogos se
deterão na questão do trato entre as sociedades
desenvolvidas e aquelas ditas arcaicas ou primitivas,
observando que este trato não engendra necessariamente, a
deserção do “atual”. O primeiro destes antropólogos havia
sido Franz Boas. Retomando esta atitude, de revisão e
intersecção entre antropologia e outras ciências e saberes,
a fundamentação de uma antropologia do moderno será
traçada, sendo que o primeiro passo será o de uma definição
e intitulação coerente daquilo que seja a modernidade. Esse
conceito, reformulado, trará a idéia de que as sociedades
1 BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 241.
6
tradicionais e aquelas chamadas de históricas, não são como
até então haviam sido interpretadas, contrárias, sendo uma
o negativo da outra.
Balandier se preocupa, neste ponto de vista, com a
questão da colonização, na qual se efetivam os contatos
entre as sociedade tradicionais e as modernas, pois por
eles se consolidarão os dinamismos e os movimentos
históricos que transformam os sistemas de instituições das
sociedades, dos quais a Antropologia Política deve se
encarregar de interpretar. Ou seja, é pelo contato entre as
sociedades tradicionais e modernas, que ambas se
transformarão, sem necessariamente se esfacelar, mas
criando algo novo e é dessas transformações que o
antropólogo deve se responsabilizar. Por isso, o estudo das
sociedades tradicionais necessariamente perpassa a reflexão
do estatuto da modernidade.
È estudando a África negra que Balandier nos mostrará
a evidenciação das conseqüências políticas imediatas da
situação colonial. Essas conseqüências serão divididas em
cinco características principais:
a) A desnaturação das unidades políticas tradicionais – O Reino do
Congo, por exemplo, foi teve seu território cortado em
pedaços no momento das partilhas coloniais com o Tratado de
Berlim;
b) A degradação pela despolitização – Transformam-se os
problemas políticos em problemas técnicos, dependente da
competência administrativa;
7
c) A ruptura dos sistemas tradicionais de limitação do poder –
Falseia-se a relação e as obrigações recíprocas já não
parecem tão nítidas. As relações de poder, opinião pública
e religião são perturbadas pela existência do fato
colonial;
d) A incompatibilidade dos dois sistemas de poder e de autoridade -
o fato colonial introduz forçosamente a existência de
outros tipos de relação de poder e subordinação, o que
impele à racionalização, entendida weberianamente, o modo
de governar tradicional;
e) A dessacralização parcial do poder – O poder do soberano e
dos chefes tradicionais se legitima antes por referência ao
governo colonial que por referência aos antigos processos
rituais.
Embora essas características possam diferenciar entre
as sociedades, o ponto principal é que a colonização e o
contato entre sociedades históricas e a-históricas se deu
geralmente de modo à subjugar um ou outro tipo de
organização social. De modo que é
“pela modificação das estratificações sociais que o processo de
modernização, aberto no momento da intrusão colonial, influi indiretamente
na ação política e suas organizações. Ele põe a funcionar s geradores de
classes sociais constituídas fora do quadro estreito das etnias”2.
De modo geral, é observável que na maioria dos países
sujeitos à colonização e, posteriormente, à
descolonização, os efeitos acumularam-se de modo a
2 BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, Editora da Universidade de São Paulo. p. 155.
8
degradar em demasia os poderes antigos para que estes
pudessem se remodelar sob um aspecto moderno e à
incapacidade de provocar além dos limites étnicos, as
mudanças que fariam da nova estratificação social o único
gerador da atividade política moderna.
Acima de tudo, o fato colonial transforma ambas as
sociedades. Correntemente, a mais afetada será aquela de
molde tradicional. Não obstante, a noção de
“tradicionalismo” ainda carece de uma definição precisa.
Geralmente essa noção é definida como continuidade,
enquanto a modernidade é ruptura; define-se pela
conformidade a regras imemoriais, geralmente míticas,
transmitidas de diferentes formas. A análise deve se
voltar deste modo, para a configuração atual do que seja o
“tradicional”, uma vez que aquelas sociedades tradicionais
sofreram transformações das mais diversas com o fato
colonial. Só deste modo, a Antropologia Política dará
conta de uma análise que preencha as lacunas deixadas pela
colonização e pela descolonização. A primeira expressão,
das quatro apontadas por Balandier, da configuração do
tradicionalismo atual é:
a) o tradicionalismo fundamental - aquele que tenta
salvaguardar os valores das organizações sociais e
culturais garantidos pelo passado;
b) o tradicionalismo formal – geralmente coexistente com a
figura precedente, definindo-se pela “manutenção de instituições,
de quadros sociais ou culturais, cujo conteúdo se modificou; da herança
9
passada, só se conservaram alguns meios – as funções e as finalidades
modificaram-se”3;
c) o tradicionalismo de resistência – quando existiu, serviu
de anteparo ou camuflagem que permitia dissimular as
reações de recusa frente ao colonizador. Frequentemente
ocorreu no plano religioso;
d) o pseudotradicionalismo – no qual a tradição
manipulada torna-se o meio de dar sentido às realidades
novas, ou de exprimir uma reivindicação marcando a
dissidência em relação aos responsáveis modernistas.
Conjuga-se intimamente com a expressão precedente.
Aliando estes componentes, uma análise antropológica
consistente, se dá pelo diálogo entre o tradicional e o
moderno, do ponto de vista das defrontações políticas que
se expressam, não exclusivamente, de fato, por esse
embate. Assim o fazendo, a Antropologia Política deve
determinar as unidades e níveis de inquérito em que a
análise será suscetível de atingir uma eficácia científica
crescente. Balandier reconhece algumas destas unidades:
a) a comunidade aldeã – Constitui uma sociedade
reduzida, como fronteiras precisas, nas quais se reconhece
com nitidez a defrontação entre tradicional e moderno,
sacral e histórico. No seio dessas comunidades há uma
cisão entre o domínio da vida interna – dado pela tradição
– e o da vida externa, que organiza as relações múltiplas
estabelecidas com “exterior” – ande se impões as forças e
os agentes modernos. Esses fatores modernos são geralmente
constatados alheios às sociedades aldeãs. Não obstante,3 BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 160.
10
essas comunidades são as que explicitam melhor a dinâmica
em que se determinam, em estado nascente, novas estruturas
em que as incidências da ação política moderna se
manifestam de maneira mais imediata. São as unidades de
pesquisa mais pertinentes, de acordo com Balandier;
b) o partido político, instrumento “modernizante” – A
insurgência de partidos representa a forma de organização
de Estados nascentes ou renascentes. É o primeiro dos
meios de modernização e é quase geral nas sociedades
descolonizadas;
c) a ideologia, expressão da modernidade – a ideologia
política surge, no caso da África negra, estudada por
Balandier, no momento revolucionário e de mudanças
profundas das sociedades, colocando-se sobre as ruínas dos
mitos. Geralmente alimentam projetos de construção
nacional, marcadas pelas reações à situação de
dependência. Atua como um new deal emotivo, dividindo-se num
discurso destinado às elites políticas e intelectuais e
num outro discurso de adaptação das palavras da tradição
às populações camponesas e às camadas sociais menos
marcadas pela educação moderna. Levada ao extremo, essas
ideologias assumem aspectos utópicos e milenaristas.
São essas ideologias que constituem, para a
Antropologia Política um terreno de investigação rico de
problemas mal elucidados. É essa trilha que nos interessa,
que nos abre a possibilidade de estudar aquilo que o mito
tradicional encerra de ideologia política e aquilo que as
doutrinas políticas encerram de mito. É esse o ponto de
11
intersecção que nos chama para a não contrariedade total
entre sociedades modernas e sociedades a-históricas. “Esse
problema é o da dialética permanente entre tradição e revolução”4.
A descoberta do Brasil Central
Percorremos, em parte, o caminho que conduz do mito
tradicional à doutrina política moderna. O mito,
encerrando em si um saber unido aos meios simbólicos, faz
às vezes de gênese e funciona como arquivos que
frequentemente lembram as migrações e as peripécias,4 BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 171.
12
evocando clãs originais e seus fundadores. Encerra, no
entanto, uma parte de ideologia, pois devem ser vistos
como diz Malinowski, “como uma carta social concernente à forma
existente da sociedade, com seu sistema de distribuição do poder, do privilégio
e da propriedade”5.
É no contato colonizatório que esta questão tomará
forma nova uma vez que toda administração colonial tentou
pôr em cena um aparelho despolitizado, esforçando-se, por
conseguinte, no sentido de expurgar o político de todas as
manifestações da vida indígena. É fundamental, então, uma
análise antropológica que desvele as relações criadas no
contato entre as sociedades tradicionais com as sociedades
modernas, uma vez que ele traz à tona uma gama de mudanças
que visam a dita modernização e o desenvolvimento das
sociedades colonizadas.
No Brasil, o fato da colonização também é observável
e este fato ainda não se encerrou. O primeiro contato dos
portugueses colonizadores com os índios foi traumático,
embora tenha sido menos violento do que em outras regiões
da América. Durante a história da consolidação do país,
quando já existem os “brasileiros”, por assim dizer, os
conflitos ainda existem e atualmente, de tempos em tempos,
alguma questão relativa aos indígenas ganha destaque e
importância no cenário nacional. O que queremos, no
entanto, é nos centrar numa questão em particular: a do
Parque Indígena do Xingu e da epopéia da Expedição
5 MALINOWSKI, Bronislaw. The Foundations of Faith and Morals, Londres, 1936. In: BALANDIER, Georges. As Dinâmicas Sociais. Sentido e Poder. Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. p. 203.
13
Roncador-Xingu, que deu forças e destaque ao grupo de
sertanistas mais importantes do Brasil, os irmãos Villas
Bôas.
A Expedição Roncador-Xingu teve base na concretização
de um plano que vinha sendo esboçado no Brasil desde a
proclamação da República: o de transferir a capital do
país para o interior, região ainda erma e pouquíssimo
explorada. Com a Primeira Guerra, a idéia ganhou corpo,
tanto que durante a década de 20 se vendiam lotes no
Brasil Central aos montes. No entanto, somente na Segunda
Guerra é que a tese voltou a ganhar força. O Brasil
deixava de ser uma nação litorânea e a população não
parava de crescer. A Segunda Guerra, com tônica de espaço
vital, serviu para trazer à visão dos governantes a carta
geográfica do país com suas imensas zonas em branco.
Nasceu, então, em meio ao estado de guerra, um impulso
expansionista, aleitado pelo próprio Estado. Esse impulso
se efetivou por meio de dois órgãos criados pelo Estado: o
primeio, a Expedição Roncador-Xingu, que tinha por
objetivo entrar em contato com as “zonas brancas” das
cartas geográficas; e o segundo, a Fundação Brasil
Central, com a função de implantar núcleos populacionais
nos pontos ideais marcados pela Expedição.
Para dirigir os primeiros passos, e fiscalizar a
administração, que contava com pouca verba devido à
guerra, Getúlio Vargas, então presidente, designou o
ministro João Alberto Lins de Barros, da Coordenação e
Mobilização Econômica, criada especialmente para a Guerra.
14
Ele deveria providenciar estatutos, estipular dotações,
instalar sedes, ajustar gente e tudo o que fosse
indispensável para o funcionamento de ambos os órgãos,
somando a isso a responsabilidade de ser cauteloso nos
gastos, o que fez com que sugerisse uma campanha de
doações, na qual São Paulo se destacou mormente. As
primeiras frentes da Expedição foram compostas por
paulistas e cariocas principalmente, contando na maioria
com médicos e oficiais do exército.
A Expedição partiu, então, para o Brasil Central,
compreendido entre o rio Araguaia e seus afluentes, mas
não é na expedição que nos focaremos e sim na principal
conseqüência dela: a formação do Parque Nacional do Xingu
pelos irmãos Villas Bôas. Orlando, Cláudio e Leonardo,
irmãos de uma família de 11 filhos do interior de São
Paulo, perderam o pai em 1941, quando tinham entre 27 e 23
anos. Cinco meses depois, perderam a mãe, deixando então o
casarão que ocupavam, alugando uma casa menor para os
irmãos e mudando-se para uma pensão na Vila Buarque.
Quando ficam sabendo da Expedição, em 43, decidem
inscrever-se. Procuram a Fundação Brasil Central e são
recusados, pois por ordem superior, só eram aceitos
“sertanejos”. Decidem, então ir diretamente para Barra do
Garças, onde estava sendo montada a base da Expedição.
Disfarçam-se de sertanejos e ganham emprego: Cláudio e
Leonardo na enxada; Orlando, auxiliar de pedreiro. Devido
a problemas com a construção da base, os irmãos acabam
ajudando e, revelando-se educados e alfabetizados, tem
15
seus cargos trocados: Cláudio é nomeado chefe do pessoal,
Leonardo chefe do almoxarifado e Orlando secretário da
base.
Assim começou a epopéia de 40 anos destes irmãos.
Epopéia essa que deixou impressionantes 1500 quilômetros
de picadas abertas, 1000 quilômetros de rios percorridos,
43 vilas e cidades nascidas no roteiro da marcha, 19
campos de pouso, dos quais quatro se tornaram bases
militares e pontos de apoio de rotas aéreas
internacionais, 5 mil indígenas contados e, por último, a
criação do Parque Nacional do Xingu, descrito pelos irmãos
como uma “sociedade de nações”, onde viviam, em 1994, 6
mil índios falando dez línguas diferentes em 18 aldeias. O
sucesso da criação do Parque é reconhecido
internacionalmente e rendeu aos irmãos diversos prêmios.
Isso nos leva a repensar a forma pelas quais as sociedades
se relacionam. Obviamente, muito mudou desde a criação do
Parque e posteriormente da FUNAI, onde Orlando foi
diretor. Não obstante, o primeiro contato, entre diversas
etnias indígenas que habitam o que hoje é o Parque, e os
irmãos, brancos, ocidentais, de certa forma determinou um
tipo novo de política a ser adotada frente às sociedades
“arcaicas” ou “primitivas”.
16
O Parque Nacional do Xingu – O Moderno delimitando o
Tradicional
O Parque constitui uma reserva federal, criada pelo
Governo Jânio Quadros em 1961. Está situado ao norte do
Estado do Mato Grosso, numa zona de transação florística
entre o Planalto Central e a Amazônia. A região é cortada
pelos formadores do Xingu e pelos seus afluentes da
esquerda e da direita. Os cursos formadores são os rios
Kuluene, Ronuro e Batoví. Os afluentes, os rios Suiá-Missí,
Maritsauá-Missú, Uaiá-Missú, Auaiá-Missú e Jarina.
17
O Parque foi criado tendo em vista dois objetivos:
constituir uma reserva natural onde a flora e a fauna
intocadas guardassem, para um Brasil futuro, um testemunho
do Brasil do Descobrimento e, acima de tudo, fazer chegar
diretamente Às tribos indígenas a ação protetora do
Governo, prestando assistência e defendendo-as de contatos
prematuros com as frentes de ocupação nacional.
Em 1946, ano da chegada dos irmãos, os povoadores da
área do Xingu eram estritamente is mesmos encontrados pelo
etnólogo alemão Karl von den Steinen em 1977. A
distribuição das aldeias era a mesma, o intercâmbio era o
mesmo e assim também eram a hospitalidade, a curiosidade e
as atitudes ingênuas e amistosas que impressionaram o
explorador alemão. A única mudança considerável era a
redução de quase metade do número de seus habitantes,
tomando como verdadeiro o montante ponderado naquela
ocasião, que, se real, ocorreu provavelmente devido a
surtos gripais e disentéricos levados por índios do baixo
Kurizêvo que entraram em contato com povoamentos do Alto
Paranatinga, do Posto Simões Lopes e de outros locais.
Os grupos indígenas que vivem na região são
representantes de três das quatro famílias lingüísticas do
Brasil (Jê, Karib, Tupi e Aruak), além de uma família
isolada, cujos hábitos e costumes são descritos
detalhadamente pelos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas.
Eles atentam, por exemplo, para a mesma crença entre as
tribos e para as festas e ritos cerimoniais realizados da
mesma forma.
18
O que nos interessa aqui, no entanto, não é só o
trabalho etnográfico dos irmãos, mas a política que eles
cunharam que ditaria, de meados da década de60 em diante, a
forma de relacionamento entre Estado e sociedades
primitivas. Obviamente, a política indianista que eles
traçaram não deixa de certa forma, de ser um trabalho
etnológico, uma vez que ela é resultado de anos de contato
e convívio com os índios xinguanos. É preciso ter em mente
também que, embora essa política tenha se tornado um modelo
admirado internacionalmente, ela não é absoluta e hoje em
dia o que vivemos cotidianamente é um distanciamento dela,
uma vez que ela é provavelmente a única reserva não
dizimada no país6.
De fato, o que fizeram os Villas Boas, foi, nada mais
nada menos, que saber lidar com os povos, adquirindo uma
consciência do valor que os povos de lá possuíam. Darcy
Ribeiro dizia que todo contato da “civilização” com os
índios era ruim. No caso dos xinguanos foi menos pior,
porque esse contato se deu pelos irmãos.
Qual a relação, no entanto, com a primeira parte deste
texto, a Antropologia de Balandier, com estas segunda e
terceiras partes? Ora, a relação é que, sem nos
aprofundarmos muito, podemos enxergar diversos pontos de
intersecção entre a postura dos Villas Boas e aquela à qual
Balandier acreditava ser a de uma séria Antropologia
Política.
6 Essa afirmação é de Fernando Zarur e pode ser checada em http://www.brasiloeste.com.br/noticia/1193/invasao-branca
19
A primeira de todas, se seguirmos os passos da
primeira parte deste texto, é de que toda história, seja
ela mítica ou não, é História. E os Villas Boas perceberam
isso. Tanto o perceberam que, para conhecer os hábitos, os
costumes e para entender o funcionamento das sociedades
xinguanas, registraram dezenas de mitos fundadores. Nunca
desconsideraram os vestígios arqueológicos, parcamente
estudados, da presença humana na região, ou seja, nunca
desconsideraram juízos científicos da história das tribos
xinguanas, mas tampouco consideraram inverídicas as lendas
e mitos contados pelas tribos.
O segundo ponto, é que coincidentemente, cuidaram para
que o contato com os índios tenha preservado os limites
regionais corretos. Nos 30 mil quilômetros que preenchem o
Xingu, nenhum território tribal foi posto de fora. Quanto
aos problemas políticos, talvez não seja muito considerar
que tenham sido transformados em problemas técnicos, mas
nem por isso, perderam, para os Villas Boas, o caráter
político. Diversas medidas foram tomadas dentro do Parque
para que as sociedades não fossem descaracterizadas e um
dos maiores feitos dos irmãos, foi a quase que reconstrução
de todo um povo, os Yualapiti. Quanto à forma de poder,
essa questão era, no início, mais facilmente resolvida, uma
vez que, tal qual observamos em Clastres, as tribos
xinguanas não possuíam chefes no sentido “ocidental” da
palavra, ou seja, não possuíam um líder, detentor de poder,
responsável pelas decisões totais dos grupos. Quanto aos
Villas Boas, o Parque não visava ditar a forma de
20
organização das tribos, senão preservar exatamente essas
formas tais quais lá se encontravam. O mesmo vale para as
formas religiosas e os representantes desta instância. De
fato, alguns dos textos etnográficos de Orlando, se deterá
exatamente na questão dos pajés, cuja mágica ele via como
uma arte. Neste texto, ele explicita a relação entre os
pajés e os médicos funcionários do parque. Segundo ele, a
visão dos pajés sobre a medicina ocidental não é contrária.
A “nossa” medicina vem simplesmente como “algo a mais” para
os pajés, como um tratamento adicional. A cura – e isso o
sabemos desde que Lévi-Strauss explicitou as
características da eficácia simbólica – vem na verdade da
magia do pajé, de modo que a medicina é só uma proteção,
uma segurança.
A emergência de uma política organizacional por parte
dos irmãos Villas Boas, aparece, assim, ligada ao estudo
das sociedades que pretendiam proteger. Não havia, para
eles, possibilidade de se firmar um comportamento por parte
das instituições governamentais moldado puramente pelos
padrões “modernos”. Tudo deveria correr, para eles, no
sentido de influenciar o mínimo as sociedades indígenas.
Lembremos, mais uma vez, que tratamos da política firmada
quando da formação do Parque Nacional do Xingu, há 48 anos
atrás e não do Parque como se encontra hoje, com lideranças
indígenas e degradações ecológicas advindas na maioria de
fora do Parque. Queremos entender aqui a atitude do irmão
Villas Boas na liderança de uma recolonização do Brasil.
21
No que diz respeito à tradição, algo a que Balandier
dará grande ênfase, não parece haver, segundo os irmãos
Villas Boas, uma disparidade inerente entre as sociedades,
uma vez que o próprio Balandier assume haver dentro da
tradição um “quê” de ideologia e dentro da ideologia um
processo de tradicionalização. O próprio exemplo da
medicina explicita isso muito bem. Talvez haja uma atitude
da sociedade moderna de trazer abaixo a tradição indígena,
mas quem permite o sucesso dessa atitude ou não, são os
indígenas até o ponto em que não se pretenda destruir os
moldes de organização de determinada sociedade primitiva
para melhor domina-la. Os irmãos Villas Boas guiavam as
relações com os indígenas, sentido oposto ao que os irmãos
Villas Boas pretendiam. A medicina moderna, por exemplo,
não destitui a crença na arte pajé. E a delimitação
territorial institucional da região, não parece fazer
diferença para os índios, contanto que ela designe os fins
para os quais foi feita. Havia e parece haver ainda, uma
forte conservação do tradicionalismo fundamental. Esse
talvez seja um dos maiores sucessos da criação do Parque.
Se o contato seria imprescindível, que ele pelo menos se
institucionalizasse com preceitos que garantissem a
reprodução cultural das sociedades que ali se encontravam.
Há, de fato, a observância das tribos xinguanas como
aquilo que Balandier de comunidade aldeãs, ou seja,
observa-se o embate entre tradição e modernidade, sacral e
histórico e, uma vez que inseridas no seio de um Estado-
nação, o confronto inevitável entre as forças externas,
22
advindas das mais diversas esferas da República e as
internas, dadas pelas tradições. Internamente, no entanto,
os problemas parecem ser resolvidos. Os índios eram capazes
de continua se organizando da mesma forma como faziam antes
do contato com o branco. Externamente, enquanto o Parque
foi dirigido pelos irmãos, era possível manter a dignidade
dessas sociedades. O cenário muda, principalmente a partir
do momento em que as lideranças do Parque são transferidas
para os índios.
23
Conclusão
Pela retomada que fizemos da antropologia de Balandier
e da construção e a ação dos irmãos Villas Boas, vemos que
a questão da modernidade frente à tradição e vice-versa no
Brasil está longe de se esgotar. Não chegamos a resposta e
nem mesmo à uma análise aprofundada do tema proposto, mas
talvez podemos concluir que a questão principal, no que diz
respeito ao confronto da sociedade brasileira moderna
frente às sociedades tradicionais do país, é que os irmãos
pregaram uma política reconhecida no mundo porque souberam,
de fato, respeitar as particularidades dos povos indígenas,
reconhecendo a importância da riqueza cultural desses
povos. Mais do que isso, reconheceram a importância de nos
determos politicamente nestas sociedades uma vez que,
dominados
“por uma sociedade mais forte, todas as motivações de sua cultura deixam de
constituir a força motriz de sua evolução social. Assim os índios não pararam
no tempo; foram e estão sendo, isto sim, impedidos de progredir a sua
maneira, uma vez que sua evolução se dá em outro ritmo e não tem
necessariamente de caminhar na mesma direção da nossa”7.
7 VILLAS BOAS, Orlando. A Arte dos Pajés. Impressões sobre o universo espiritual xinguano. São Paulo: Editora Globo S.A. 2000. p.36.
24
Talvez a questão que mais valide o sucesso dos irmãos
em relação ao comportamento entre sociedades tradicionais
e modernas, tenha sido a atitude honesta de reconhecer que
esse contato tenha sempre em vista a dominação. Mas essa
dominação pode levar ao estabelecimento de relações
sólidas que perpassam a dominação política, uma vez que a
tradição tem algo que a aproxima à modernidade – aquele
“quê” de ideologia – e, por sua vez, a modernidade tem
algo que a aproxima da tradição – ela funda-se como uma
tradição em si. E isso talvez se exprima pelo fato de que
quando morre um pajé, já que ele é “iã-catú” (alma boa),
seu “iã” parte para o “umanô-retam” (a aldeia dos que
morrem), no “ivát” (céu). É no Kuarup que várias tribos
xinguanas se unem e, evocando Mavutsinim (o herói
mitológico), homenageiam aqueles de iã-catú, há alguns
anos, Cláudio Villas Boas foi homenageado.
Bibliografia
BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, Editora da Universidade de São
Paulo.
___________________ Antropo-lógicas. São Paulo:
Cultrix, 1976.
25
____________________ As Dinâmicas Sociais. Sentido e
Poder. Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.
CLASTRES, Pierre. A Questão do Poder nas Sociedades Primitivas.
In: Arqueologia da Violência. Ensaio de Antropologia
Política. São Paulo: Brasiliense, 1982.
VILLAS BOAS, Orlando e Cláudio. A Marcha Para o
Oeste. A Epopéia da Expedição Roncador-Xingú. São Paulo:
Editora Globo S.A; 1994.
______________________________ Xingu. Os Índios, seus
Mitos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
VILLAS BOAS, Orlando. A Arte dos Pajés. Impressões
sobre o universo espiritual xinguano. São Paulo: Editora
Globo S.A. 2000.
Webgrafia
http://www.brasiloeste.com.br/
http://www.funai.gov.br
http://www.expedicaovillasboas.com.br
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Metade Norte:
Suiá, Txucarramãe (Jê); Caiabí e Juruna (Tupi);
Metade Sul:
Kamaiurá, Aueti (Tupi); Kuikúru, Kalapalo, Matipú,
Nafiquá (Karib); Waurá, Meinacó, Yualapiti (Aruak); Trumái
(família isolada).
Mavutsinim: O primeiro homem (mito kamaiurá)
Mitos do Xingu:
Mavutsinim: o primeiro homem (Mito Kamaiurá).
“No começo só havia Mavustinim. Ninguém vivia com
ele. Não tinha mulher. Não tinha filho, nenhum parente ele
tinha. Era só.
Um dia ele fez uma concha virar mulher e casou com
ela. Quando o filho nasceu, perguntou para a esposa:
- É homem ou mulher?
- É homem.
- Vou levar ele comigo.
E foi embora. A mãe do menino chorou e voltou para a
aldeia dela, a lagoa, onde virou concha outra vez.
-Nós – dizem os índios – somos netos do filho de
Mavutsinim”.
Medicina Xinguana
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Os aspectos principais da medicina xinguana são dois:
o primeiro pode ser definido como de “pronto atendimento”,
para dor de cabeça, dor nos olhos e etc, provido pela
flora abundante; e o segundo, o que sai do ervatário e vai
para o pajé, que busca no sobrenatural as explicações e as
curas para os males dos mamaés, os espíritos. É a cura
mágica.
Os principais mamaés são:
Anhangu – muito temido;
Arimacu - duende d’água, curável por pajé, gera
impaludismo;
Cunhãrrapim – da dor de barriga;
Iaruiáp – quem o vê adoece;
Iputsát – quem julga vê-lo entra em torpor;
Ivát – se configura numa grande máscara de madeira.
Dá inchaço no pescoço e dor no braço;
Jacuí – se faz presente por toque de flauta. Quem
ouve sente dor no peito e no pescoço;
Jacuí Catú – dá dor e inchaço na omoplata;
Karitoá – Ataca a garganta e provoca tosse;
Kuarrarrã – ataca a garganta e danifica a fala;
Meacarin – dá dor de barriga e desinteria;
Tavarit – dá ânsia de vômito.
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