A arte de Homero e o historiador: observações introdutórias- Jacome Neto

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Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 2, p. 197-218, 2013. ISSN: 2318-9304. A arte de Homero e o historiador: observações introdutórias The art of Homer and the historian: introductory remarks Félix Jácome Neto * Resumo: Este artigo visa abordar algumas características literárias específicas dos poemas homéricos - Ilíada e Odisseia - sobre as quais uma abordagem histórica precisa estar plenamente consciente de modo a entender o tipo de registro discursivo com o qual trabalha, bem como o contexto cultural que informa a produção da épica homérica. A obscura e altamente debatida evidência sobre os estágios mais recuados da produção e da transmissão dos poemas, assim como os dispositivos estilísticos específicos de um texto derivado da oralidade, logo distinto da nossa experiência moderna de literatura, são desafios que o historiador precisa estar ciente de modo a formular suas hipóteses de trabalho de forma mais consistente. Desse modo, este artigo oferece uma visão geral destes temas, enquanto sugere leituras adicionais de aprofundamento. Abstract: This article tends to summarize some specific literary features of the Homeric poems – Iliad and Odyssey – in which a historical approach has to be in accordance with the type of discursive narrative which works in the cultural context that influences the production of Homeric epic. The obscure and highly disputed evidence on early stages about the production and transmission of the poems and also the specific stylistic dispositive from oral derived text distinct to our modern literature concept are challenges that the historian must be aware in order to formulate their hypotheses work more consistently. Thereby, this article offers an overview of these issues while suggests further reading for a more accurate deepening. ____________________________ Recebido em: 21/10/2013 Aprovado em: 30/11/2013 * Doutorando em Estudos Clássicos – Mundo Antigo – pela Universidade de Coimbra. Bolsista CAPES. Palavras-chave: Homero; Teoria Oral; Poemas homéricos. Keywords: Homer; Oral Theory; Homeric poems.

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A arte de Homero e o historiador

observaccedilotildees introdutoacuterias

The art of Homer and the historian introductory remarks

Feacutelix Jaacutecome Neto

Resumo Este artigo visa abordar algumas caracteriacutesticas literaacuterias

especiacuteficas dos poemas homeacutericos - Iliacuteada e Odisseia - sobre as quais

uma abordagem histoacuterica precisa estar plenamente consciente de

modo a entender o tipo de registro discursivo com o qual trabalha

bem como o contexto cultural que informa a produccedilatildeo da eacutepica

homeacuterica A obscura e altamente debatida evidecircncia sobre os

estaacutegios mais recuados da produccedilatildeo e da transmissatildeo dos poemas

assim como os dispositivos estiliacutesticos especiacuteficos de um texto

derivado da oralidade logo distinto da nossa experiecircncia moderna de

literatura satildeo desafios que o historiador precisa estar ciente de modo

a formular suas hipoacuteteses de trabalho de forma mais consistente

Desse modo este artigo oferece uma visatildeo geral destes temas

enquanto sugere leituras adicionais de aprofundamento

Abstract This article tends to summarize some specific literary

features of the Homeric poems ndash Iliad and Odyssey ndash in which a

historical approach has to be in accordance with the type of discursive

narrative which works in the cultural context that influences the

production of Homeric epic The obscure and highly disputed

evidence on early stages about the production and transmission of

the poems and also the specific stylistic dispositive from oral derived

text distinct to our modern literature concept are challenges that the

historian must be aware in order to formulate their hypotheses work

more consistently Thereby this article offers an overview of these

issues while suggests further reading for a more accurate deepening

____________________________

Recebido em 21102013

Aprovado em 30112013

Doutorando em Estudos Claacutessicos ndash Mundo Antigo ndash pela Universidade de Coimbra Bolsista CAPES

Palavras-chave

Homero

Teoria Oral

Poemas homeacutericos

Keywords

Homer

Oral Theory

Homeric poems

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A arte de Homero e o historiador

Se a outra cultura eacute tatildeo completamente outra como a abordagem histoacuterica

parece insistir seraacute que ela tornar-se-aacute compreensiva para noacutes em algum

modo significativo

(A PARRY 1987 p lviii)

m dossiecirc cujo tema eacute ldquoHomero entre a Histoacuteria e a Literaturardquo traz em si

dificuldades especiacuteficas ao historiador da antiguidade pela razatildeo que

diferentemente de outros textos antigos natildeo temos evidecircncias conclusivas

sobre a dataccedilatildeo a autoria e as circunstacircncias de composiccedilatildeo das obras atribuiacutedas a

Homero1 Dessa forma faz-se necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees preliminares

sobre o proacuteprio entendimento do que eacute o ldquoHomerordquo cujo tiacutetulo do dossiecirc alude fato

que delimita o modo pelo qual noacutes possamos investigar algo como ldquoHomero entre a

Histoacuteria e a Literaturardquo

Noacutes temos a Iliacuteada e a Odisseia de Homero Notas sobre a transmissatildeo e a data

dos nossos textos

A primeira coisa a ser dita eacute que o elemento seguro acerca do estatuto do

texto da Iliacuteada e da Odisseia que possuiacutemos eacute que a coleccedilatildeo de manuscritos

medievais dos textos mais rica para a Iliacuteada menos para a Odisseia eacute essencialmente

uniforme e remonta de forma muito proacutexima quanto ao texto agrave versatildeo padratildeo ou

estaacutevel conhecida como vulgata2 estabelecida por Aristarco de Samotraacutecia (cerca de

216-145 aC) a partir de trabalhos preacutevios de seus antecessores na Biblioteca de

Alexandria Zenoacutedoto de Eacutefeso (cerca de 325-270 aC) e Aristoacutefanes de Bizacircncio

1 Eu chamo neste artigo ldquoHomerordquo o autor da Iliacuteada e da Odisseia por conveniecircncia isto natildeo significa

necessariamente conceber Homero como o autor individual e histoacuterico que compocircs ambos os

poemas Sobre estas questotildees abarcadas sob o termo Questatildeo Homeacuterica a melhor siacutentese em

portuguecircs que conheccedilo eacute Pereira (2012 p 49-67) Em inglecircs Fowler (2004) eacute muito elucidativo e

informa a bibliografia fundamental sobre o tema 2 Uma definiccedilatildeo de referecircncia do termo vulgata pode ser encontrada em Stuart Jones (1902 p 388)

ldquoComo aplicada para livros impressos a palavra denota um texto lsquocomercialrsquo reproduzido em

sucessivas ediccedilotildees que natildeo estaacute mais previsto sofrer revisatildeo criacutetica A caracteriacutestica distintiva de tal

texto eacute naturalmente sua uniformidaderdquo A uniformidade da vulgata eacute evidenciada substancialmente

pela comparaccedilatildeo com os fragmentos homeacutericos encontrados nos papiros por volta do ano 150 aC e

desde entatildeo os papiros apresentam menos discrepacircncias quanto ao texto homeacuterico que possuiacutemos Eacute

pressuposto pelos especialistas que a incorporaccedilatildeo desta versatildeo padratildeo no meio intelectual greco-

romano em tatildeo raacutepido tempo implicaria algum comeacutercio de livros ativo que divulgou e popularizou a

vulgata (cf JENSEN 1980 p 109 WEST 1988 p 47-48)

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NETO Feacutelix Jaacutecome

(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a

quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo

vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas

dos textos de Homero

De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as

suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em

comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram

atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns

versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem

mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter

incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra

que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo

enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo

Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares

da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm

sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou

da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do

dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados

de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o

claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5

Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que

parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as

deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de

outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas

3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees

em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda

da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial

pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma

geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense

Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o

proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p

231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho

filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero

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Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de

exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio

escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas

ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos

sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico

Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o

texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs

acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e

bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros

ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de

passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo

e Aristoacuteteles

Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens

mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do

tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo

claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as

conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro

como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que

ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas

estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias

existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos

adicionais presentes em certos papiros6

Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber

exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso

texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos

poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de

6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)

e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-

alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da

Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam

ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse

sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como

por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e

autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que

pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos

notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa

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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo

quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a

transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que

temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as

histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita

Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da

eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco

hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido

formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como

escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST

2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um

escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso

tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua

composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o

que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes

extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico

mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense

Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo

oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas

com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que

comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma

primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo

paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes

e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a

produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf

NAGY 1996)

Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem

uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira

explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema

pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um

ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria

motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos

estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo

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recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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NETO Feacutelix Jaacutecome

M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

Se a outra cultura eacute tatildeo completamente outra como a abordagem histoacuterica

parece insistir seraacute que ela tornar-se-aacute compreensiva para noacutes em algum

modo significativo

(A PARRY 1987 p lviii)

m dossiecirc cujo tema eacute ldquoHomero entre a Histoacuteria e a Literaturardquo traz em si

dificuldades especiacuteficas ao historiador da antiguidade pela razatildeo que

diferentemente de outros textos antigos natildeo temos evidecircncias conclusivas

sobre a dataccedilatildeo a autoria e as circunstacircncias de composiccedilatildeo das obras atribuiacutedas a

Homero1 Dessa forma faz-se necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees preliminares

sobre o proacuteprio entendimento do que eacute o ldquoHomerordquo cujo tiacutetulo do dossiecirc alude fato

que delimita o modo pelo qual noacutes possamos investigar algo como ldquoHomero entre a

Histoacuteria e a Literaturardquo

Noacutes temos a Iliacuteada e a Odisseia de Homero Notas sobre a transmissatildeo e a data

dos nossos textos

A primeira coisa a ser dita eacute que o elemento seguro acerca do estatuto do

texto da Iliacuteada e da Odisseia que possuiacutemos eacute que a coleccedilatildeo de manuscritos

medievais dos textos mais rica para a Iliacuteada menos para a Odisseia eacute essencialmente

uniforme e remonta de forma muito proacutexima quanto ao texto agrave versatildeo padratildeo ou

estaacutevel conhecida como vulgata2 estabelecida por Aristarco de Samotraacutecia (cerca de

216-145 aC) a partir de trabalhos preacutevios de seus antecessores na Biblioteca de

Alexandria Zenoacutedoto de Eacutefeso (cerca de 325-270 aC) e Aristoacutefanes de Bizacircncio

1 Eu chamo neste artigo ldquoHomerordquo o autor da Iliacuteada e da Odisseia por conveniecircncia isto natildeo significa

necessariamente conceber Homero como o autor individual e histoacuterico que compocircs ambos os

poemas Sobre estas questotildees abarcadas sob o termo Questatildeo Homeacuterica a melhor siacutentese em

portuguecircs que conheccedilo eacute Pereira (2012 p 49-67) Em inglecircs Fowler (2004) eacute muito elucidativo e

informa a bibliografia fundamental sobre o tema 2 Uma definiccedilatildeo de referecircncia do termo vulgata pode ser encontrada em Stuart Jones (1902 p 388)

ldquoComo aplicada para livros impressos a palavra denota um texto lsquocomercialrsquo reproduzido em

sucessivas ediccedilotildees que natildeo estaacute mais previsto sofrer revisatildeo criacutetica A caracteriacutestica distintiva de tal

texto eacute naturalmente sua uniformidaderdquo A uniformidade da vulgata eacute evidenciada substancialmente

pela comparaccedilatildeo com os fragmentos homeacutericos encontrados nos papiros por volta do ano 150 aC e

desde entatildeo os papiros apresentam menos discrepacircncias quanto ao texto homeacuterico que possuiacutemos Eacute

pressuposto pelos especialistas que a incorporaccedilatildeo desta versatildeo padratildeo no meio intelectual greco-

romano em tatildeo raacutepido tempo implicaria algum comeacutercio de livros ativo que divulgou e popularizou a

vulgata (cf JENSEN 1980 p 109 WEST 1988 p 47-48)

U

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NETO Feacutelix Jaacutecome

(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a

quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo

vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas

dos textos de Homero

De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as

suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em

comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram

atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns

versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem

mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter

incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra

que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo

enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo

Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares

da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm

sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou

da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do

dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados

de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o

claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5

Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que

parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as

deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de

outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas

3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees

em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda

da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial

pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma

geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense

Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o

proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p

231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho

filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero

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A arte de Homero e o historiador

Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de

exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio

escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas

ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos

sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico

Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o

texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs

acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e

bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros

ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de

passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo

e Aristoacuteteles

Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens

mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do

tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo

claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as

conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro

como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que

ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas

estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias

existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos

adicionais presentes em certos papiros6

Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber

exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso

texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos

poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de

6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)

e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-

alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da

Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam

ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse

sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como

por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e

autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que

pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos

notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa

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NETO Feacutelix Jaacutecome

relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo

quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a

transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que

temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as

histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita

Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da

eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco

hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido

formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como

escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST

2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um

escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso

tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua

composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o

que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes

extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico

mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense

Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo

oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas

com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que

comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma

primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo

paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes

e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a

produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf

NAGY 1996)

Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem

uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira

explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema

pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um

ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria

motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos

estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo

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A arte de Homero e o historiador

recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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NETO Feacutelix Jaacutecome

a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a

quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo

vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas

dos textos de Homero

De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as

suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em

comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram

atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns

versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem

mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter

incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra

que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo

enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo

Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares

da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm

sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou

da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do

dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados

de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o

claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5

Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que

parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as

deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de

outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas

3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees

em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda

da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial

pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma

geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense

Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o

proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p

231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho

filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero

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A arte de Homero e o historiador

Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de

exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio

escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas

ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos

sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico

Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o

texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs

acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e

bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros

ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de

passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo

e Aristoacuteteles

Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens

mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do

tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo

claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as

conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro

como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que

ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas

estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias

existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos

adicionais presentes em certos papiros6

Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber

exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso

texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos

poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de

6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)

e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-

alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da

Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam

ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse

sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como

por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e

autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que

pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos

notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa

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NETO Feacutelix Jaacutecome

relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo

quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a

transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que

temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as

histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita

Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da

eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco

hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido

formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como

escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST

2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um

escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso

tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua

composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o

que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes

extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico

mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense

Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo

oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas

com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que

comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma

primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo

paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes

e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a

produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf

NAGY 1996)

Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem

uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira

explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema

pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um

ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria

motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos

estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo

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A arte de Homero e o historiador

recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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NETO Feacutelix Jaacutecome

a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de

exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio

escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas

ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos

sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico

Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o

texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs

acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e

bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros

ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de

passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo

e Aristoacuteteles

Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens

mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do

tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo

claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as

conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro

como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que

ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas

estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias

existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos

adicionais presentes em certos papiros6

Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber

exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso

texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos

poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de

6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)

e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-

alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da

Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam

ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse

sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como

por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e

autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que

pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos

notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa

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NETO Feacutelix Jaacutecome

relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo

quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a

transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que

temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as

histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita

Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da

eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco

hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido

formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como

escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST

2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um

escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso

tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua

composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o

que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes

extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico

mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense

Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo

oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas

com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que

comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma

primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo

paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes

e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a

produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf

NAGY 1996)

Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem

uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira

explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema

pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um

ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria

motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos

estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo

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A arte de Homero e o historiador

recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo

quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a

transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que

temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as

histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita

Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da

eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco

hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido

formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como

escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST

2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um

escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso

tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua

composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o

que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes

extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico

mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense

Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo

oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas

com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que

comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma

primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo

paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes

e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a

produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf

NAGY 1996)

Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem

uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira

explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema

pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um

ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria

motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos

estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo

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A arte de Homero e o historiador

recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e

a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual

Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da

Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas

razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria

tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em

comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase

consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser

lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na

linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos

do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os

Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas

ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com

que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o

que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel

Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que

Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a

versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival

ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense

para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga

sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de

Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do

diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na

passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do

seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de

quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor

latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137

embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou

7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora

seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de

arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de

Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees

de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo

porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)

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NETO Feacutelix Jaacutecome

a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

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Gulbenkian 2011

CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial

Gredos 2002

HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid

Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

PLATON Hipparque Texte eacutetabli et traduit par J Souilheacute In Platon Oeuvres complegravetes

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California University of California Press 1975

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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo

que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo

criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen

(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e

do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8

Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais

importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a

questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo

teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias

extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas

hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma

disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)

Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos

interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda

metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para

instituiccedilotildees de periacuteodos recuados

A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como

uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a

deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da

segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo

de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo

arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese

historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)

Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os

nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI

carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas

Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de

uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas

da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que

propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor

8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua

original

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero

compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se

relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual

Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem

como para o trabalho histoacuterico

A arte de Homero e o Historiador

Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance

oral as conclusotildees da obra de Milman Parry

Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum

estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as

constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as

flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito

agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero

para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma

ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς

Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21

etc)10

Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a

amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo

especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso

9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo

dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a

construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco

pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e

vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto

O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma

didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero

(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a

estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia

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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)

ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς

Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)

Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para

designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo

destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso

Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto

de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na

Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do

mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na

Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a

convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas

passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na

segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-

299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de

Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante

das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon

Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel

e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)

e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza

aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)

Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga

βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa

para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava

convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de

hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu

apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)

Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de

amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso

mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto

recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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NETO Feacutelix Jaacutecome

M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute

propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso

mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com

extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou

instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma

linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11

Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o

conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e

versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo

do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente

ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que

ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados

para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam

a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por

exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento

do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus

(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma

metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se

ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo

assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo

11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute

regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo

Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda

estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928

ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a

mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que

Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo

introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber

Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf

publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia

de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman

Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma

complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre

como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de

Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho

para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])

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NETO Feacutelix Jaacutecome

M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees

meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso

A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser

ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em

comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da

Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso

113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado

sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das

vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo

caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma

frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον

ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute

no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a

interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa

Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o

verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia

do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e

ser econocircmico nas alteraccedilotildees

A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um

personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento

do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)

destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo

para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna

e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada

ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na

caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto

pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo

da histoacuteria13

Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a

natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado

13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em

que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees

amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de

forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas

representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de

raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um

epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico

literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e

formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante

texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura

grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na

Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade

na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter

a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros

argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom

senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no

poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa

de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de

Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e

perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos

[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)

Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de

gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma

problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a

proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica

exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto

frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a

pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender

que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo

social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha

significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o

permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo

natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre

ameaccedilado de perder seus homens

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da

relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de

modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar

a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de

metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por

outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais

aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo

fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo

coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado

a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A

questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado

dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de

menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de

algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia

O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da

prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo

classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo

funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente

poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a

necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter

tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em

todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos

habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi

sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de

foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)

E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar

na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando

em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele

pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases

que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas

das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma

14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo

Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry

(1987b [1971] p 21-3 153-165)

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

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A arte de Homero e o historiador

independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma

ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo

da originalidade no estilo significa nada para ele

Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como

compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios

esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos

iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta

completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido

explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio

de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de

sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica

de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e

oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo

De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo

XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo

criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de

muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar

os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um

nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de

uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico

Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a

incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero

Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry

especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas

da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da

16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma

esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and

Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a

criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como

faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como

distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe

conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de

abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico

de Combellack

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

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A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

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reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

216

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

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HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid

Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

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NETO Feacutelix Jaacutecome

Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais

elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais

liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica

natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso

criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria

literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico

Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as

palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que

muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de

emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os

epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das

personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa

a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do

que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo

A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm

fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma

gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente

desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio

dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por

De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em

muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo

ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma

distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase

que por conta proacutepria18

O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute

inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos

eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o

narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz

17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz

de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado

como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a

passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela

narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em

termos de rigorosa objetividade do narrador

212

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

213

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

214

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

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grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

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se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

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embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

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Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

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GRIFFIN J Homeric Words and Speakers The Journal of Hellenic Studies 106 p 36-57

1986

HAUBOLD J Homers People Epic poetry and social formation Cambridge Cambridge

University Press 2000

JAacuteCOME NETO F Histoacuteria Social atraveacutes da Literatura consideraccedilotildees sobre o

inconsciente poliacutetico da eacutepica homeacuterica a partir do aporte teoacuterico de Fredric

Jameson In SOUZA NETO J M G (Org) Antigas Leituras diaacutelogos entre a

Histoacuteria e a Literatura Recife EDUPE 2012 p 57-78

JANKO R πρῶτον τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν relative chronology and the literary

history of the Greek epos In ANDERSEN Oslash HAUG D T T (Org) Relative

chronology in early Greek epic poetry Cambridge Cambridge University Press

2012 p 20-43

JANKO R The Homeric Poems as Oral Dictated Texts The Classical Quarterly v 48 n1

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JENSEN M S The Homeric Question and the Oral-Formulaic Theory Copenhagen

Museum Tusculanum Press 1980

218

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

JONES H S The ldquoAncient Vulgaterdquo of Plato and Vind F The Classical Review v 16 n 2

p 388-391 1902

LESKY A Histoacuteria da Literatura Grega Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995

NAGY G Homeric Questions Texas University of Texas Press 1996

OLIVEIRA G Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas

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style In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry Oxford Oxford

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Milman Parry Oxford Oxford University Press 1987b p 1-190 [1971]

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PFEIFFER R History of Classical Scholarship from the beginnings to the end of the

Hellenistic age Oxford Clarendon Press 1968

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Oxford Clarendon Press 1994

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(Org) Relative chronology in early Greek Epic poetry Cambridge Cambridge

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WEST S The transmission of the text In WEST S et alii A commentary on Homerrsquos

Odyssey Oxford Clarendon Press 1988 p 33-48 v I

ZEITLIN F Figuring fidelity in Homerrsquos Odyssey In COHEN B (Org) The Distaff Side

representing the female in Homerrsquos Odyssey Oxford Oxford University Press

1995 p 117-152

212

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma

expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute

diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo

indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista

como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses

sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20

O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de

como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma

expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro

verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do

poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser

contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e

claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os

companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por

conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio

No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade

quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste

episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e

polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou

ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80

deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros

de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima

instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia

mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da

situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico

recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a

inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem

19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o

personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem

natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo

tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista

histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da

histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9

onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada

213

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

214

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

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NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

216

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A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa

ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste

Gulbenkian 2011

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Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

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Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930

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ZEITLIN F Figuring fidelity in Homerrsquos Odyssey In COHEN B (Org) The Distaff Side

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1995 p 117-152

213

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NETO Feacutelix Jaacutecome

estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo

trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os

demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o

narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se

apenas de loucura e insensatez do coletivo

Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de

Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos

da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo

entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria

Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o

ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador

principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa

distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o

(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a

Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de

Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador

incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria

a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a

focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas

aventuras22

A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o

entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a

apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute

condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que

21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner

eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da

relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da

abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no

texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito

longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como

sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre

narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a

audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente

nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia

simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria

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Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

216

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa

ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste

Gulbenkian 2011

CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial

Gredos 2002

HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid

Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

PLATON Hipparque Texte eacutetabli et traduit par J Souilheacute In Platon Oeuvres complegravetes

Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930

Obras de apoio

AUERBACH E Mimesis a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Satildeo Paulo

Perspectiva 1976

AUSTIN N Archery at the dark of the moon poetic problems in Homers Odyssey

California University of California Press 1975

217

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

BAKKER E J Homer Odysseus and the Narratology of Performance In GRETHLEIN

Jonas RENGAKOS A (Org) Narratology and interpretation the content of

narrative form in Ancient Literature Berlin De Gruyter 2009 p 117-36

CAIRNS D L Introduction In CAIRNS D L (Org) Oxford readings in Homerrsquos Iliad

Oxford Oxford University Press 2002 p 1-56

COMBELLACK F M Milman Parry and Homeric artistry Comparative Literature 113 p

193-208 1959

DE JONG I Narrators and focalizers the presentantion of the story in the Iliad Bristol

Bristol Classical Press 2004 [1987]

DONLAN W et alii Ancient Greece a political social and cultural history Oxford

Oxford University Press 1999

DONLAN W The pre-state community in Greece Symbolae Osloenses v 64 n1 p

5-29 1989

EDWARDS M W Homer the poet of the Iliad Baltimore The Johns Hopkins University

Press 1987

FOWLER R The Homeric Question In FOWLER R (Org) The Cambridge Companion to

Homer Cambridge Cambridge University Press 2004 p 220-232

GILBERT J The Chanson de Roland In KAY S GAUNT S (Org) The Cambridge

Companion to Medieval French Literature Cambridge Cambridge University

Press 2008 p 21-34

GRIFFIN J Homeric Words and Speakers The Journal of Hellenic Studies 106 p 36-57

1986

HAUBOLD J Homers People Epic poetry and social formation Cambridge Cambridge

University Press 2000

JAacuteCOME NETO F Histoacuteria Social atraveacutes da Literatura consideraccedilotildees sobre o

inconsciente poliacutetico da eacutepica homeacuterica a partir do aporte teoacuterico de Fredric

Jameson In SOUZA NETO J M G (Org) Antigas Leituras diaacutelogos entre a

Histoacuteria e a Literatura Recife EDUPE 2012 p 57-78

JANKO R πρῶτον τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν relative chronology and the literary

history of the Greek epos In ANDERSEN Oslash HAUG D T T (Org) Relative

chronology in early Greek epic poetry Cambridge Cambridge University Press

2012 p 20-43

JANKO R The Homeric Poems as Oral Dictated Texts The Classical Quarterly v 48 n1

p 1-13 1998

JANKO R The Iliad a commentary Cambridge Cambridge University Press 1994 v IV

JENSEN M S The Homeric Question and the Oral-Formulaic Theory Copenhagen

Museum Tusculanum Press 1980

218

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

JONES H S The ldquoAncient Vulgaterdquo of Plato and Vind F The Classical Review v 16 n 2

p 388-391 1902

LESKY A Histoacuteria da Literatura Grega Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995

NAGY G Homeric Questions Texas University of Texas Press 1996

OLIVEIRA G Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas

homeacutericos Revista Histoacuteria e Cultura p 126-147 2012

PARRY A Introduction In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry

Oxford Oxford University Press 1987 [1971]

PARRY M Studies in the epic technique of oral verse-making I Homer and Homeric

style In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry Oxford Oxford

University Press 1987a p 266-324 [1971]

PARRY M The traditional epithet in Homer In PARRY A (Org) The collected papers of

Milman Parry Oxford Oxford University Press 1987b p 1-190 [1971]

PEREIRA M H da R Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I a cultura grega Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012

PFEIFFER R History of Classical Scholarship from the beginnings to the end of the

Hellenistic age Oxford Clarendon Press 1968

SEAFORD R Reciprocity and Ritual Homer and tragedy in the developing city-State

Oxford Clarendon Press 1994

SPIEGEL G M History historicism and the social logic of the text in the Middle Ages

Speculum 651 p 59-86 1990

WERNER C Os limites da autoridade de Odisseu na Odisseia Caliacuteope 13 p 9-29 2005

WEST M The making of the Iliad disquisition and analytical commentary Oxford New

York Oxford University Press 2011

WEST M Towards a chronology of early Greek epic In ANDERSEN Oslash HAUG Dag T T

(Org) Relative chronology in early Greek Epic poetry Cambridge Cambridge

University Press 2012 p 224-241

WEST S The transmission of the text In WEST S et alii A commentary on Homerrsquos

Odyssey Oxford Clarendon Press 1988 p 33-48 v I

ZEITLIN F Figuring fidelity in Homerrsquos Odyssey In COHEN B (Org) The Distaff Side

representing the female in Homerrsquos Odyssey Oxford Oxford University Press

1995 p 117-152

214

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi

discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos

acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado

sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas

circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23

O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o

historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto

literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de

significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como

ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico

Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como

O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas

que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da

literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza

inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das

realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto

cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos

permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)

Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a

meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas

ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)

devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras

palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e

simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios

Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca

resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem

da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer

refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria

da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a

23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema

esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os

companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia

usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por

suas mortes

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

216

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa

ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste

Gulbenkian 2011

CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial

Gredos 2002

HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid

Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

PLATON Hipparque Texte eacutetabli et traduit par J Souilheacute In Platon Oeuvres complegravetes

Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930

Obras de apoio

AUERBACH E Mimesis a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Satildeo Paulo

Perspectiva 1976

AUSTIN N Archery at the dark of the moon poetic problems in Homers Odyssey

California University of California Press 1975

217

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

BAKKER E J Homer Odysseus and the Narratology of Performance In GRETHLEIN

Jonas RENGAKOS A (Org) Narratology and interpretation the content of

narrative form in Ancient Literature Berlin De Gruyter 2009 p 117-36

CAIRNS D L Introduction In CAIRNS D L (Org) Oxford readings in Homerrsquos Iliad

Oxford Oxford University Press 2002 p 1-56

COMBELLACK F M Milman Parry and Homeric artistry Comparative Literature 113 p

193-208 1959

DE JONG I Narrators and focalizers the presentantion of the story in the Iliad Bristol

Bristol Classical Press 2004 [1987]

DONLAN W et alii Ancient Greece a political social and cultural history Oxford

Oxford University Press 1999

DONLAN W The pre-state community in Greece Symbolae Osloenses v 64 n1 p

5-29 1989

EDWARDS M W Homer the poet of the Iliad Baltimore The Johns Hopkins University

Press 1987

FOWLER R The Homeric Question In FOWLER R (Org) The Cambridge Companion to

Homer Cambridge Cambridge University Press 2004 p 220-232

GILBERT J The Chanson de Roland In KAY S GAUNT S (Org) The Cambridge

Companion to Medieval French Literature Cambridge Cambridge University

Press 2008 p 21-34

GRIFFIN J Homeric Words and Speakers The Journal of Hellenic Studies 106 p 36-57

1986

HAUBOLD J Homers People Epic poetry and social formation Cambridge Cambridge

University Press 2000

JAacuteCOME NETO F Histoacuteria Social atraveacutes da Literatura consideraccedilotildees sobre o

inconsciente poliacutetico da eacutepica homeacuterica a partir do aporte teoacuterico de Fredric

Jameson In SOUZA NETO J M G (Org) Antigas Leituras diaacutelogos entre a

Histoacuteria e a Literatura Recife EDUPE 2012 p 57-78

JANKO R πρῶτον τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν relative chronology and the literary

history of the Greek epos In ANDERSEN Oslash HAUG D T T (Org) Relative

chronology in early Greek epic poetry Cambridge Cambridge University Press

2012 p 20-43

JANKO R The Homeric Poems as Oral Dictated Texts The Classical Quarterly v 48 n1

p 1-13 1998

JANKO R The Iliad a commentary Cambridge Cambridge University Press 1994 v IV

JENSEN M S The Homeric Question and the Oral-Formulaic Theory Copenhagen

Museum Tusculanum Press 1980

218

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

JONES H S The ldquoAncient Vulgaterdquo of Plato and Vind F The Classical Review v 16 n 2

p 388-391 1902

LESKY A Histoacuteria da Literatura Grega Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995

NAGY G Homeric Questions Texas University of Texas Press 1996

OLIVEIRA G Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas

homeacutericos Revista Histoacuteria e Cultura p 126-147 2012

PARRY A Introduction In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry

Oxford Oxford University Press 1987 [1971]

PARRY M Studies in the epic technique of oral verse-making I Homer and Homeric

style In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry Oxford Oxford

University Press 1987a p 266-324 [1971]

PARRY M The traditional epithet in Homer In PARRY A (Org) The collected papers of

Milman Parry Oxford Oxford University Press 1987b p 1-190 [1971]

PEREIRA M H da R Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica I a cultura grega Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012

PFEIFFER R History of Classical Scholarship from the beginnings to the end of the

Hellenistic age Oxford Clarendon Press 1968

SEAFORD R Reciprocity and Ritual Homer and tragedy in the developing city-State

Oxford Clarendon Press 1994

SPIEGEL G M History historicism and the social logic of the text in the Middle Ages

Speculum 651 p 59-86 1990

WERNER C Os limites da autoridade de Odisseu na Odisseia Caliacuteope 13 p 9-29 2005

WEST M The making of the Iliad disquisition and analytical commentary Oxford New

York Oxford University Press 2011

WEST M Towards a chronology of early Greek epic In ANDERSEN Oslash HAUG Dag T T

(Org) Relative chronology in early Greek Epic poetry Cambridge Cambridge

University Press 2012 p 224-241

WEST S The transmission of the text In WEST S et alii A commentary on Homerrsquos

Odyssey Oxford Clarendon Press 1988 p 33-48 v I

ZEITLIN F Figuring fidelity in Homerrsquos Odyssey In COHEN B (Org) The Distaff Side

representing the female in Homerrsquos Odyssey Oxford Oxford University Press

1995 p 117-152

215

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser

vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos

da narratologia

Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer

reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade

histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO

mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem

predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia

da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos

imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo

as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou

se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente

ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos

proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto

da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do

mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um

grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado

coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley

Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da

fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as

informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama

irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo

arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um

amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25

O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as

particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e

ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a

historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma

24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson

para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os

especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute

se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o

periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas

hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)

216

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa

ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste

Gulbenkian 2011

CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial

Gredos 2002

HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid

Editorial Gredos 1992

HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010

HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003

PLATON Hipparque Texte eacutetabli et traduit par J Souilheacute In Platon Oeuvres complegravetes

Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930

Obras de apoio

AUERBACH E Mimesis a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Satildeo Paulo

Perspectiva 1976

AUSTIN N Archery at the dark of the moon poetic problems in Homers Odyssey

California University of California Press 1975

217

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

NETO Feacutelix Jaacutecome

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JANKO R The Homeric Poems as Oral Dictated Texts The Classical Quarterly v 48 n1

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JENSEN M S The Homeric Question and the Oral-Formulaic Theory Copenhagen

Museum Tusculanum Press 1980

218

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A arte de Homero e o historiador

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NAGY G Homeric Questions Texas University of Texas Press 1996

OLIVEIRA G Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas

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PARRY A Introduction In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry

Oxford Oxford University Press 1987 [1971]

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style In PARRY A (Org) The collected papers of Milman Parry Oxford Oxford

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Oxford Clarendon Press 1994

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216

Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304

A arte de Homero e o historiador

hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou

embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado

ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o

mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia

narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais

buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca

Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos

coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas

certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo

refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram

seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia

Referecircncias

Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa

ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste

Gulbenkian 2011

CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial

Gredos 2002

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ZEITLIN F Figuring fidelity in Homerrsquos Odyssey In COHEN B (Org) The Distaff Side

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