A arte de Homero e o historiador: observações introdutórias- Jacome Neto
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Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304
A arte de Homero e o historiador
observaccedilotildees introdutoacuterias
The art of Homer and the historian introductory remarks
Feacutelix Jaacutecome Neto
Resumo Este artigo visa abordar algumas caracteriacutesticas literaacuterias
especiacuteficas dos poemas homeacutericos - Iliacuteada e Odisseia - sobre as quais
uma abordagem histoacuterica precisa estar plenamente consciente de
modo a entender o tipo de registro discursivo com o qual trabalha
bem como o contexto cultural que informa a produccedilatildeo da eacutepica
homeacuterica A obscura e altamente debatida evidecircncia sobre os
estaacutegios mais recuados da produccedilatildeo e da transmissatildeo dos poemas
assim como os dispositivos estiliacutesticos especiacuteficos de um texto
derivado da oralidade logo distinto da nossa experiecircncia moderna de
literatura satildeo desafios que o historiador precisa estar ciente de modo
a formular suas hipoacuteteses de trabalho de forma mais consistente
Desse modo este artigo oferece uma visatildeo geral destes temas
enquanto sugere leituras adicionais de aprofundamento
Abstract This article tends to summarize some specific literary
features of the Homeric poems ndash Iliad and Odyssey ndash in which a
historical approach has to be in accordance with the type of discursive
narrative which works in the cultural context that influences the
production of Homeric epic The obscure and highly disputed
evidence on early stages about the production and transmission of
the poems and also the specific stylistic dispositive from oral derived
text distinct to our modern literature concept are challenges that the
historian must be aware in order to formulate their hypotheses work
more consistently Thereby this article offers an overview of these
issues while suggests further reading for a more accurate deepening
____________________________
Recebido em 21102013
Aprovado em 30112013
Doutorando em Estudos Claacutessicos ndash Mundo Antigo ndash pela Universidade de Coimbra Bolsista CAPES
Palavras-chave
Homero
Teoria Oral
Poemas homeacutericos
Keywords
Homer
Oral Theory
Homeric poems
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A arte de Homero e o historiador
Se a outra cultura eacute tatildeo completamente outra como a abordagem histoacuterica
parece insistir seraacute que ela tornar-se-aacute compreensiva para noacutes em algum
modo significativo
(A PARRY 1987 p lviii)
m dossiecirc cujo tema eacute ldquoHomero entre a Histoacuteria e a Literaturardquo traz em si
dificuldades especiacuteficas ao historiador da antiguidade pela razatildeo que
diferentemente de outros textos antigos natildeo temos evidecircncias conclusivas
sobre a dataccedilatildeo a autoria e as circunstacircncias de composiccedilatildeo das obras atribuiacutedas a
Homero1 Dessa forma faz-se necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees preliminares
sobre o proacuteprio entendimento do que eacute o ldquoHomerordquo cujo tiacutetulo do dossiecirc alude fato
que delimita o modo pelo qual noacutes possamos investigar algo como ldquoHomero entre a
Histoacuteria e a Literaturardquo
Noacutes temos a Iliacuteada e a Odisseia de Homero Notas sobre a transmissatildeo e a data
dos nossos textos
A primeira coisa a ser dita eacute que o elemento seguro acerca do estatuto do
texto da Iliacuteada e da Odisseia que possuiacutemos eacute que a coleccedilatildeo de manuscritos
medievais dos textos mais rica para a Iliacuteada menos para a Odisseia eacute essencialmente
uniforme e remonta de forma muito proacutexima quanto ao texto agrave versatildeo padratildeo ou
estaacutevel conhecida como vulgata2 estabelecida por Aristarco de Samotraacutecia (cerca de
216-145 aC) a partir de trabalhos preacutevios de seus antecessores na Biblioteca de
Alexandria Zenoacutedoto de Eacutefeso (cerca de 325-270 aC) e Aristoacutefanes de Bizacircncio
1 Eu chamo neste artigo ldquoHomerordquo o autor da Iliacuteada e da Odisseia por conveniecircncia isto natildeo significa
necessariamente conceber Homero como o autor individual e histoacuterico que compocircs ambos os
poemas Sobre estas questotildees abarcadas sob o termo Questatildeo Homeacuterica a melhor siacutentese em
portuguecircs que conheccedilo eacute Pereira (2012 p 49-67) Em inglecircs Fowler (2004) eacute muito elucidativo e
informa a bibliografia fundamental sobre o tema 2 Uma definiccedilatildeo de referecircncia do termo vulgata pode ser encontrada em Stuart Jones (1902 p 388)
ldquoComo aplicada para livros impressos a palavra denota um texto lsquocomercialrsquo reproduzido em
sucessivas ediccedilotildees que natildeo estaacute mais previsto sofrer revisatildeo criacutetica A caracteriacutestica distintiva de tal
texto eacute naturalmente sua uniformidaderdquo A uniformidade da vulgata eacute evidenciada substancialmente
pela comparaccedilatildeo com os fragmentos homeacutericos encontrados nos papiros por volta do ano 150 aC e
desde entatildeo os papiros apresentam menos discrepacircncias quanto ao texto homeacuterico que possuiacutemos Eacute
pressuposto pelos especialistas que a incorporaccedilatildeo desta versatildeo padratildeo no meio intelectual greco-
romano em tatildeo raacutepido tempo implicaria algum comeacutercio de livros ativo que divulgou e popularizou a
vulgata (cf JENSEN 1980 p 109 WEST 1988 p 47-48)
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(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a
quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo
vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas
dos textos de Homero
De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as
suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em
comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram
atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns
versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem
mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter
incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra
que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo
enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo
Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares
da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm
sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou
da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do
dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados
de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o
claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5
Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que
parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as
deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de
outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas
3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees
em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda
da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial
pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma
geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense
Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o
proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p
231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho
filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero
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Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de
exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio
escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas
ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos
sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico
Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o
texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs
acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e
bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros
ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de
passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo
e Aristoacuteteles
Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens
mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do
tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo
claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as
conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro
como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que
ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas
estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias
existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos
adicionais presentes em certos papiros6
Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber
exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso
texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos
poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de
6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)
e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-
alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da
Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam
ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse
sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como
por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e
autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que
pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos
notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa
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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo
quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a
transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que
temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as
histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita
Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da
eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco
hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido
formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como
escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST
2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um
escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso
tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua
composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o
que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes
extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico
mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense
Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo
oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas
com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que
comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma
primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo
paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes
e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a
produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf
NAGY 1996)
Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem
uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira
explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema
pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um
ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria
motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos
estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo
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recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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A arte de Homero e o historiador
Se a outra cultura eacute tatildeo completamente outra como a abordagem histoacuterica
parece insistir seraacute que ela tornar-se-aacute compreensiva para noacutes em algum
modo significativo
(A PARRY 1987 p lviii)
m dossiecirc cujo tema eacute ldquoHomero entre a Histoacuteria e a Literaturardquo traz em si
dificuldades especiacuteficas ao historiador da antiguidade pela razatildeo que
diferentemente de outros textos antigos natildeo temos evidecircncias conclusivas
sobre a dataccedilatildeo a autoria e as circunstacircncias de composiccedilatildeo das obras atribuiacutedas a
Homero1 Dessa forma faz-se necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees preliminares
sobre o proacuteprio entendimento do que eacute o ldquoHomerordquo cujo tiacutetulo do dossiecirc alude fato
que delimita o modo pelo qual noacutes possamos investigar algo como ldquoHomero entre a
Histoacuteria e a Literaturardquo
Noacutes temos a Iliacuteada e a Odisseia de Homero Notas sobre a transmissatildeo e a data
dos nossos textos
A primeira coisa a ser dita eacute que o elemento seguro acerca do estatuto do
texto da Iliacuteada e da Odisseia que possuiacutemos eacute que a coleccedilatildeo de manuscritos
medievais dos textos mais rica para a Iliacuteada menos para a Odisseia eacute essencialmente
uniforme e remonta de forma muito proacutexima quanto ao texto agrave versatildeo padratildeo ou
estaacutevel conhecida como vulgata2 estabelecida por Aristarco de Samotraacutecia (cerca de
216-145 aC) a partir de trabalhos preacutevios de seus antecessores na Biblioteca de
Alexandria Zenoacutedoto de Eacutefeso (cerca de 325-270 aC) e Aristoacutefanes de Bizacircncio
1 Eu chamo neste artigo ldquoHomerordquo o autor da Iliacuteada e da Odisseia por conveniecircncia isto natildeo significa
necessariamente conceber Homero como o autor individual e histoacuterico que compocircs ambos os
poemas Sobre estas questotildees abarcadas sob o termo Questatildeo Homeacuterica a melhor siacutentese em
portuguecircs que conheccedilo eacute Pereira (2012 p 49-67) Em inglecircs Fowler (2004) eacute muito elucidativo e
informa a bibliografia fundamental sobre o tema 2 Uma definiccedilatildeo de referecircncia do termo vulgata pode ser encontrada em Stuart Jones (1902 p 388)
ldquoComo aplicada para livros impressos a palavra denota um texto lsquocomercialrsquo reproduzido em
sucessivas ediccedilotildees que natildeo estaacute mais previsto sofrer revisatildeo criacutetica A caracteriacutestica distintiva de tal
texto eacute naturalmente sua uniformidaderdquo A uniformidade da vulgata eacute evidenciada substancialmente
pela comparaccedilatildeo com os fragmentos homeacutericos encontrados nos papiros por volta do ano 150 aC e
desde entatildeo os papiros apresentam menos discrepacircncias quanto ao texto homeacuterico que possuiacutemos Eacute
pressuposto pelos especialistas que a incorporaccedilatildeo desta versatildeo padratildeo no meio intelectual greco-
romano em tatildeo raacutepido tempo implicaria algum comeacutercio de livros ativo que divulgou e popularizou a
vulgata (cf JENSEN 1980 p 109 WEST 1988 p 47-48)
U
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(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a
quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo
vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas
dos textos de Homero
De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as
suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em
comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram
atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns
versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem
mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter
incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra
que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo
enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo
Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares
da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm
sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou
da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do
dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados
de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o
claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5
Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que
parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as
deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de
outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas
3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees
em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda
da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial
pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma
geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense
Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o
proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p
231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho
filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero
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Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de
exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio
escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas
ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos
sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico
Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o
texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs
acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e
bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros
ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de
passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo
e Aristoacuteteles
Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens
mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do
tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo
claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as
conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro
como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que
ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas
estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias
existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos
adicionais presentes em certos papiros6
Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber
exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso
texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos
poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de
6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)
e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-
alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da
Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam
ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse
sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como
por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e
autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que
pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos
notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa
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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo
quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a
transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que
temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as
histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita
Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da
eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco
hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido
formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como
escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST
2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um
escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso
tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua
composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o
que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes
extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico
mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense
Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo
oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas
com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que
comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma
primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo
paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes
e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a
produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf
NAGY 1996)
Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem
uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira
explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema
pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um
ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria
motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos
estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo
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recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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(cerca de 257-180 aC) Aristarco delimitou os contornos do texto padronizando a
quantidade e a sequecircncia dos versos o que resultou na diminuiccedilatildeo
vertiginosamente das variantes textuais que marcaram as versotildees preacute-alexandrinas
dos textos de Homero
De forma mais precisa Aristarco natildeo fabricou o texto da vulgata dado que as
suas proacuteprias divergecircncias com o texto que nos chegou satildeo registradas em
comentaacuterios nas margens das paacuteginas os chamados escoacutelios que nos chegaram
atraveacutes dos manuscritos medievais Nesses comentaacuterios Aristarco condena alguns
versos enquanto propotildee para outros versotildees alternativas que ele acredita serem
mais apropriadas Assim o interessante deste trabalho eacute que o fato de a vulgata ter
incorporado tatildeo poucas sugestotildees de Aristarco ou dos seus antecessores mostra
que ele estava trabalhando sobre manuscritos que apesar de tudo tinham respaldo
enquanto textos fidedignos agravequela tradiccedilatildeo
Noacutes sabemos que na eacutepoca heleniacutestica (323-30 aC)3 circulavam exemplares
da Iliacuteada e da Odisseia conhecidos pelo termo grego ekdosis Estes exemplares tecircm
sido agrupados em trecircs grupos a) alguns eram identificados pelo nome da cidade ou
da regiatildeo de onde provinham (kata poacuteleis) b) outros pelo nome do estudioso ou do
dono do exemplar (kata andra) c) enquanto outros exemplares eram denominados
de maneira geneacuterica como obras comuns (koinai)4 Possivelmente como sustenta o
claacutessico estudo sobre a exegese alexandrina de Pfeiffer (1968 p 110) jaacute Zenoacutedoto5
Examinando manuscritos na Biblioteca selecionou um texto de Homero que
parecia para ele ser superior que os demais como seu guia principal as
deficiecircncias deste texto ele poderia ter corrigido com leituras melhores de
outros manuscritos bem como por suas proacuteprias conjecturas
3 As datas de eacutepocas histoacutericas no decorrer do artigo satildeo anteriores a Cristo salvo oacutebvias indicaccedilotildees
em contraacuterio 4 Alguns estudiosos hipotetizam que Aristarco trabalhou sobre uma versatildeo ldquooficialrdquo de Homero vinda
da cidade de Atenas a partir da recensatildeo de Pisiacutestrato (cf JENSEN 1980 p 109-111) Esta versatildeo oficial
pertenceria a este terceiro grupo das versotildees de Homero portanto seria denominada de forma
geneacuterica o que explicaria a ausecircncia de referecircncia expliacutecita dos antigos a uma ediccedilatildeo ateniense
Entretanto para argumentos ceacuteticos em relaccedilatildeo a existecircncia de tal manuscrito oficial ateniense vide o
proacuteprio Pfeiffer (1968 p 110) 5 Essa tarefa poderia ter sido feita por Aristarco antes que Zenoacutedoto como sugere Fowler (2004 p
231-2) Seja como for Fowler concorda com esta metodologia exposta por Pfeiffer acerca do trabalho
filoloacutegico dos alexandrinos em relaccedilatildeo a Homero
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Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de
exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio
escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas
ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos
sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico
Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o
texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs
acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e
bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros
ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de
passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo
e Aristoacuteteles
Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens
mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do
tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo
claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as
conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro
como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que
ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas
estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias
existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos
adicionais presentes em certos papiros6
Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber
exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso
texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos
poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de
6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)
e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-
alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da
Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam
ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse
sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como
por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e
autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que
pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos
notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa
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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo
quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a
transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que
temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as
histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita
Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da
eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco
hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido
formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como
escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST
2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um
escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso
tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua
composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o
que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes
extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico
mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense
Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo
oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas
com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que
comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma
primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo
paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes
e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a
produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf
NAGY 1996)
Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem
uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira
explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema
pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um
ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria
motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos
estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo
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A arte de Homero e o historiador
recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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A arte de Homero e o historiador
individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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A arte de Homero e o historiador
Antes dos alexandrinos durante o periacuteodo claacutessico (500-323) houve obras de
exegese dos textos homeacutericos motivadas pelo uso constante de Homero no meio
escolar Embora nenhuma dessas obras nos tenham chegado completas as suas
ressonacircncias podem ser percebidas nas argumentaccedilotildees filoloacutegicas dos alexandrinos
sobre os sentidos das palavras e as variantes do texto homeacuterico
Para aleacutem disso como resume Edwards (1987 p 23-28) a evidecircncia para o
texto de Homero antes do estabelecimento da vulgata provecircm basicamente de trecircs
acircmbitos a) as observaccedilotildees dos escoliastas (comentadores) dos periacuteodos romanos e
bizantinos sobre os meacutetodos e as decisotildees ldquoeditoriaisrdquo dos alexandrinos b) os papiros
ptolomaicos contendo fragmentos da Iliacuteada e da Odisseia c) as citaccedilotildees de
passagens de Homero por autores gregos dos seacuteculos V e IV como Heroacutedoto Platatildeo
e Aristoacuteteles
Naturalmente grande importacircncia haacute na comparaccedilatildeo das passagens
mencionadas nestas evidecircncias com nossa ediccedilatildeo de Homero baseada na vulgata do
tempo dos alexandrinos de modo a que se tenha ideia se o Homero do periacuteodo
claacutessico grego eacute proacuteximo ou distante do nosso Embora a metodologia e as
conclusotildees de tal tarefa sejam objeto de disputa entre os especialistas parece claro
como argumenta Janko (1994 p 29) na introduccedilatildeo do seu comentaacuterio agrave Iliacuteada que
ao menos a niacutevel de dialeto episoacutedios e narrativas as referecircncias preacute-alexandrinas
estatildeo proacuteximas da nossa versatildeo da Iliacuteada em que pese eventuais discrepacircncias
existentes no que diz respeito agraves palavras ou versos especiacuteficos para aleacutem de versos
adicionais presentes em certos papiros6
Embora como comenta S West (1988 p 41) seja impossiacutevel saber
exatamente a extensatildeo das variaccedilotildees entre as versotildees da eacutepoca claacutessica e o nosso
texto a consideraacutevel estabilidade dos elementos concernentes agrave narrativa dos
poemas homeacutericos eacute explicada porque houve ainda um momento anterior de
6 A mesma ideia eacute sustentada por outros eminentes homeristas por exemplo Edwards (1987 p 23-28)
e Fowler (2004) Jensen (1980 p 106-11) pontua que as variantes encontradas nos textos preacute-
alexandrinos natildeo satildeo suficientes para que se possa falar em diversas versotildees autocircnomas da Iliacuteada e da
Odisseia ligadas ainda agrave atividade dos rapsodos de modo que os textos preacute-alexandrinos seriam
ldquoclaramente representativos da mesma tradiccedilatildeo de escrita que a vulgatardquo (JENSEN 1980 p 108) Nesse
sentido a transmissatildeo do texto de Homero eacute distinta de outros eacutepicos advindos da poesia oral como
por exemplo o texto medieval intitulado A Canccedilatildeo de Rolando que possui sete versotildees distintas e
autocircnomas (cf GILBERT 2008) No caso de Homero como argumenta Janko (1994 p 29) em que
pese as variaccedilotildees de palavras ou versos diagnosticadas no decorrer de sua transmisatildeo noacutes natildeo temos
notiacutecias de uma Iliacuteada ou de uma Odisseia que fosse uma versatildeo paralelamente distinta da nossa
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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo
quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a
transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que
temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as
histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita
Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da
eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco
hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido
formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como
escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST
2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um
escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso
tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua
composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o
que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes
extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico
mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense
Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo
oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas
com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que
comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma
primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo
paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes
e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a
produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf
NAGY 1996)
Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem
uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira
explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema
pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um
ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria
motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos
estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo
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recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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relativa fixaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Quando recuamos para aleacutem do seacuteculo
quinto todavia as informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem a composiccedilatildeo e a
transmissatildeo do texto homeacuterico satildeo esparsas e inconclusivas O certo eacute que dado que
temos afinal um texto escrito em algum momento entre os seacuteculos VIII e VI as
histoacuterias contadas na Iliacuteada e na Odisseia teriam adquirido uma versatildeo escrita
Diante do cenaacuterio precaacuterio das informaccedilotildees sobre a origem e a formaccedilatildeo da
eacutepica no periacuteodo arcaico grego podem ser esboccediladas em largas linhas cinco
hipoacuteteses sobre a data e o modo de composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia que tecircm sido
formuladas pelos estudiosos A) Um poeta versado tanto na tradiccedilatildeo oral como
escrita teria fixado por escrito os poemas seja no seacuteculo oitavo ou seacutetimo (cf WEST
2011 para a defesa da Iliacuteada como seacuteculo VII) B) um poeta oral teria ditado para um
escriba (cf JANKO 1998 que defende que o ditado ocorreu no seacuteculo VIII) Com isso
tanto num caso como no outro o poeta teria tido tempo para refletir e melhorar sua
composiccedilatildeo sem contudo influir demasiado no estilo e na dicccedilatildeo dos poemas o
que explicaria as marcas da poesia oral presentes no nosso texto C) haveria partes
extensas do poema produzidas e transmitidas por via oral durante o periacuteodo arcaico
mas soacute foram organizadas e compiladas com a recensatildeo do tirano ateniense
Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf SEAFORD 1994 p 144ndash154) D) Apesar da relativa tradiccedilatildeo
oral os poemas foram compostos decisivamente jaacute sob a forma escrita mas apenas
com a intervenccedilatildeo de Pisiacutestrato no seacuteculo VI (cf JENSEN 1980) E) A tradiccedilatildeo oral que
comeccedilou no periacuteodo micecircnico encontrou formas fluiacutedas de tradiccedilatildeo oral com uma
primeira sistematizaccedilatildeo no seacuteculo VI que no entanto natildeo estabeleceu uma versatildeo
paradigmaacutetica da obra homeacuterica antes os textos homeacutericos continuaram multiformes
e sujeitos as influecircncias das perfomances orais que natildeo se extinguiram com a
produccedilatildeo de uma versatildeo escrita antes persistiram durante o periacuteodo claacutessico (cf
NAGY 1996)
Como comenta Cairns (2002) acerca da Iliacuteada os pesquisadores que defendem
uma fixaccedilatildeo tardia do texto (seacuteculo VI) escapam de duas dificuldades a primeira
explicar a passagem por escrito por volta do seacuteculo VIII ou VII de um extenso poema
pouco tempo apoacutes a incorporaccedilatildeo do sistema de escrita feniacutecio dentro de um
ambiente em que natildeo haveria uma audiecircncia de literatura escrita Assim natildeo haveria
motivaccedilatildeo nem tecnologia para o texto escrito a segunda dificuldade se refere aos
estudiosos que ao dispensarem a ideia de um texto oral extenso em um periacuteodo tatildeo
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recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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A arte de Homero e o historiador
periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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A arte de Homero e o historiador
recuado evitam a dificuldade de imaginar o contexto da performance de tal poema e
a atribuiccedilatildeo da autoria dos textos a algum autor individual
Entretanto as dificuldades encontradas por quem defende a fixaccedilatildeo tardia da
Iliacuteada e consequentemente da Odisseia satildeo tambeacutem significativas A comeccedilar pelas
razotildees elencadas pelo proacuteprio Cairns (2002) a linguagem da Iliacuteada eu acrescentaria
tambeacutem a linguagem da Odisseia representa um estaacutegio mais arcaico da liacutengua em
comparaccedilatildeo com toda a literatura arcaica incluindo Hesiacuteodo que eacute quase
consensualmente um autor datado do seacuteculo VII Argumentos sobre isso podem ser
lidos nos estudos estatiacutesticos de Richard Janko sobre o grau de arcaiacutesmos na
linguagem dos autores arcaicos que fundamenta a sua cronologia relativa dos textos
do periacuteodo arcaico Iliacuteada depois Odisseia depois Teogonia e por fim Trabalho e os
Dias os dois uacuteltimos satildeo textos de Hesiacuteodo7 A Iliacuteada precisa por razotildees linguiacutesticas
ser o texto mais antigo logo uma fixaccedilatildeo apenas no seacuteculo VI desta obra faria com
que a dataccedilatildeo de todos estes textos tivesse que ser igualmente rebaixada e tardia o
que contraria flagrantemente a evidecircncia disponiacutevel
Recentemente uma hipoacutetese tradicional tem sido retomada a de que
Pisiacutestrato tirano de Atenas no seacuteculo VI ou seu filho Hiparco teria encomendado a
versatildeo definitiva ou fixa dos poemas homeacutericos de modo a ser recitada no festival
ateniense das Panatenaicas o que seria segundo alguns um arqueacutetipo ateniense
para todos os nossos manuscritos No entanto possivelmente a principal fonte antiga
sobre o assunto ao afirmar que Homero foi introduzido em Atenas pelo filho de
Pisiacutestrato Hiparco implica que os poemas jaacute existiam previamente Trata-se do
diaacutelogo Hiparco cuja autoria atribuiacuteda a Platatildeo (1930) eacute duvidosa nomeadamente na
passagem 228b-c Heroacutedoto (1992) por sua vez escrevendo na segunda metade do
seacuteculo V na passagem 2532 de suas Histoacuterias afirma que Homero viveu cerca de
quatrocentos anos antes dele portanto bem antes da recensatildeo de Pisiacutestrato O autor
latino Ciacutecero (2002) no livro De Oratore (Sobre a Oratoacuteria) passagem III 34137
embora uma fonte latina do primeiro seacuteculo antes de Cristo sugere que a tarefa ficou
7 Sobre a sua metodologia como tambeacutem as suas conclusotildees e respostas aos seus criacuteticos ver agora
seu texto em Janko (2012) Note no seu capiacutetulo a figura 12 que mostra o decliacutenio da presenccedila de
arcaiacutesmos linguiacutesticos de Homero para Hesiacuteodo A principal criacutetica ao meacutetodo e as conclusotildees de
Janko eacute que a discrepacircncia em relaccedilatildeo ao uso dos arcaiacutesmos na literatura arcaica deve-se a questotildees
de diferenccedilas de gecircnero literaacuterio de escolhas estiliacutesticas e de dialetos usados pelos poetas e natildeo
porque um seria mais recente outro mais antigo Sobre esta uacuteltima posiccedilatildeo vide MWest (2012)
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a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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NETO Feacutelix Jaacutecome
a cargo do proacuteprio Pisiacutestrato O relato de Ciacutecero implica estabelecer ordem naquilo
que estava confuso abrindo a possibilidade para um trabalho de ldquoediccedilatildeordquo ou mesmo
criaccedilatildeo do eacutepico sob encomenda de Pisiacutestrato como querem autores como Jensen
(1980) A meu ver no entanto Ciacutecero eacute uma fonte secundaacuteria diante de Heroacutedoto e
do autor do texto Hiparco que satildeo gregos e mais proacuteximos aos acontecimentos8
Do ponto de vista do historiador aceitar que a fase definitiva e mais
importante da formaccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia tenha sido o seacuteculo VI levanta logo a
questatildeo de saber quais influecircncias especiacuteficas a cultura e sociedade deste periacuteodo
teriam produzido no texto Neste toacutepico especiacutefico ou seja acerca das evidecircncias
extra-textuais que podem ser discernidas na eacutepica homeacuterica as duas uacuteltimas
hipoacuteteses supra citadas (D E) claramente estatildeo em posiccedilatildeo desfavoraacutevel Sintoma
disto eacute esta afirmaccedilatildeo de Jensen (1980 p 164)
Uma inferecircncia de nossa leitura da Iliacuteada e da Odisseia eacute que noacutes precisamos
interpretaacute-las como expressivas de ideias e morais de Atenas da segunda
metade do seacuteculo sexto Os poemas satildeo dificilmente uacuteteis como fontes para
instituiccedilotildees de periacuteodos recuados
A tese histoacuterica de Jensen (1980 p 159-71) que o eacutepico funcionaria como
uma espeacutecie de propaganda ideoloacutegica de Pisiacutestrato eacute fundamentada porque a
deusa Atena tem um papel de relevo em Homero Que as informaccedilotildees histoacutericas da
segunda metade do seacuteculo VI quando Pisiacutestrato governou satildeo estranhas ao mundo
de Homero eacute a conclusatildeo da imensa e frutiacutefera produccedilatildeo historiograacutefica do periacuteodo
arcaico grego (700-500 aC) Sobre isso basta estudar os livros de siacutentese
historiograacutefica sobre a histoacuteria da Greacutecia como por exemplo Donlan et alii (1999)
Claramente no que diz respeito a este toacutepico de caraacuteter histoacuterico a tese que os
nossos textos foram compostos substancialmente na segunda metade do seacuteculo VI
carrega o ocircnus de ser responsaacutevel por apresentar as provas
Qualquer que seja a data eacute certo que os poemas homeacutericos satildeo oriundos de
uma longa e rica tradiccedilatildeo de poesia oral feita a partir de temas mitoloacutegicos das sagas
da guerra de Troia e das aventuras em torno da cidade de Tebas Contudo o que
propriamente significa ldquoHomerordquo diante deste cenaacuterio O que eacute ser um autor
8 Jensen (1980 p 207-26) compila toda a evidecircncia antiga sobre a recensatildeo de Pisiacutestrato na liacutengua
original
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A arte de Homero e o historiador
individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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A arte de Homero e o historiador
individual no acircmbito da poesia coletiva oral Qual a natureza do texto que Homero
compocircs Com estas questotildees passamos a abordar outros tipos de problemas que se
relacionam com os indiacutecios que possuiacutemos no nosso texto do modo pelo qual
Homero compocircs seus poemas e qual a repercussatildeo disto para a anaacutelise literaacuteria bem
como para o trabalho histoacuterico
A arte de Homero e o Historiador
Das repeticcedilotildees agrave foacutermula do texto escrito para o poema advindo da performance
oral as conclusotildees da obra de Milman Parry
Um leitor atento da Iliacuteada e da Odisseia logo percebe certamente com algum
estranhamento que os textos possuem duas caracteriacutesticas estiliacutesticas peculiares as
constantes repeticcedilotildees seja de palavras versos motivos ou cenas bem como as
flagrantes inconsistecircncias na histoacuteria apresentada pela narrativa9 No que diz respeito
agraves repeticcedilotildees elas podem ser curtas por exemplo a expressatildeo usada por Homero
para denotar o amanhecer do dia eacute sempre a mesma
ἦμος δ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
Quando surgiu a que cedo desponta a Aurora de roacuteseos dedos (Il 1 477 = Od 21
etc)10
Quando por outro lado o poeta precisa especificar qual o exato dia que estaacute a
amanhecer ou quando ele necessita contextualizar o amanhecer do dia com a accedilatildeo
especiacutefica das personagens entatildeo ele muda levemente o verso
9 As incoerecircncias na narrativa foram especialmente destacadas pela escola ldquoanaliacuteticardquo de interpretaccedilatildeo
dos poemas Entre as mais significativas esses autores tecircm destacado o motivo insuficiente para a
construccedilatildeo do muro aqueu na Iliacuteada o artigo dual usado para duas pessoas empregado para cinco
pessoas na embaixada a Aquiles no canto nono da Iliacuteada a inautenticidade do canto dez da Iliacuteada e
vinte e quatro da Odisseia Por razotildees de espaccedilo este tema natildeo seraacute desenvolvido no presente texto
O leitor poreacutem pode consultar o capiacutetulo sobre a epopeia homeacuterica em Lesky (1995) onde haacute uma
didaacutetica discussatildeo acerca da escola analista e das incoerecircncias na narrativa do poema 10 A traduccedilatildeo para o portuguecircs tanto da Iliacuteada como da Odisseia eacute de Frederico Lourenccedilo em Homero
(2005) e Homero (2003) respectivamente A ediccedilatildeo do texto grego utilizada neste artigo eacute a
estabelecida por Van Thiel em Homeri (2010) para a Iliacuteada e Homeri (1991) para a Odisseia
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μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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NETO Feacutelix Jaacutecome
μυρομένοισι δὲ τοῖσι φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Surgiu a Aurora de roacuteseos dedos enquanto eles carpiam (Il 23 109)
ἀλλ ὅτε δὴ δεκάτη ἐφάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠὼς
Mas quando ao deacutecimo dia surgiu a Aurora de roacuteseos dedos (Il 6 175)
Nos exemplos acima a parte em itaacutelico mostra a estrutura que se repete para
designar de forma geneacuterica o amanhecer do dia enquanto as palavras natildeo
destacadas satildeo fabricadas ou aproveitadas pelo poeta especificamente para o verso
Haacute tambeacutem casos de longas repeticcedilotildees na eacutepica ou seja todo um conjunto
de versos que se repete da mesma forma ou com pequena variaccedilatildeo Assim na
Odisseia a profecia de Tireacutesias para Odisseu no canto onze eacute repetida quase do
mesmo modo por este a Peneacutelope no canto vinte e trecircs Outro exemplo dessa vez na
Iliacuteada eacute o cataacutelogo dos presentes que Agamecircmnon oferece a Aquiles de modo a
convencecirc-lo a retornar agrave guerra cujos versos satildeo quase os mesmos em duas
passagens na primeira o rei de Micenas enumera os presentes (9 121-161) na
segunda jaacute diante de Aquiles Odisseu relata as palavras de Agamecircmnon (9 262-
299) Odisseu litealmente repete o que Agameacutemnon havia dito Sim e Natildeo O rei de
Iacutetaca conhecido por sua astuacutecia e retoacuterica apesar de reiterar o que diz o comandante
das tropas gregas omite os uacuteltimos quatro versos ditos por Agamecircmnon
Que se domine (pois o Hades eacute inapelaacutevel e indomaacutevel
e por isso eacute detestado pelos mortais e por todos os deuses)
e se submeta a mim pois sou detentor de mais realeza
aleacutem de que declaro pela idade ser mais velho do que ele (9 158-161)
Como se pode notar essa parte da fala de Agamecircmnon que se julga
βασιλεύτερός (9160) ou seja mais rei do que Aquiles iria soar bastante provocativa
para o irritado Aquiles e sabiamente Odisseu a eliminou no seu discurso que visava
convencer o rei dos mirmidotildees a voltar para a guerra Ao inveacutes da reafirmaccedilatildeo de
hierarquia presente nos versos finais do discurso de Agamecircmnon Odisseu preferiu
apelar para a piedade de Aquiles diante do sofrido exeacutercito dos aqueus (9 301-2)
Tanto o verso usado por Homero para designar a mesma ideia essencial de
amanhecer o dia como as repeticcedilotildees mais extensas funcionam como um recurso
mnemocircnico para o poeta oral construir seus versos e compor mesmo enquanto
recita de modo que diferentemente da nossa poesia ou mesmo da poesia grega do
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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A arte de Homero e o historiador
tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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periacuteodo claacutessico e heleniacutestico a unidade de composiccedilatildeo do poeta do eacutepico natildeo eacute
propriamente a palavra que ele escolheria livremente e adequaria ao metro do verso
mas sim a foacutermula entendida como frases feitas ou grupos de palavras com
extensatildeo de duas palavras ateacute algumas linhas completas jaacute adaptadas ou
instantaneamente adaptadas para o metro pelo poeta formando assim uma
linguagem especiacutefica (cf AUSTIN 1975 p 11)11
Assim a seminal obra de Milman Parry (1902-1935) demonstrou que o
conceito de foacutermula eacute justamente o que explica a loacutegica das repeticcedilotildees de palavras e
versos que vemos em Homero a partir substancialmente de um sistemaacutetico estudo
do uso do nome-epiacuteteto12 O epiacuteteto eacute uma palavra ou frase atributiva diretamente
ligada a um nome por isso nome-epiacuteteto Um exemplo eacute polymetis Odisseus que
ocorre dezenas de vezes na Odisseia Segundo a tese de M Parry os epiacutetetos usados
para os nomes satildeo funcionais de acordo com o enquadramento meacutetrico que passam
a ocupar no verso de modo que o poeta tem algumas opccedilotildees de epiacuteteto por
exemplo para Odisseu e vai usaacute-los de acordo com a necessidade de preenchimento
do metro no verso Nesse sentido o poeta pode usar em vez de polymetis Odisseus
(ldquoo muito astuto Odisseurdquo) a expressatildeo dios Odisseus (ldquodivino Odisseurdquo) uma forma
metricamente mais curta ou polytlas dios Odisseus (ldquosofredor e divino Odisseurdquo) se
ele precisar de uma expressatildeo mais alargada do ponto de vista da meacutetrica Sendo
assim nestes exemplos a ldquoideia essencialrdquo que o poeta quer transmitir seria segundo
11 A definiccedilatildeo de foacutermula de M Parry (1987a [1971] p 272) eacute ldquoum grupo de palavras que eacute
regularmente empregado sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas para expressar uma dada ideia essencialrdquo
Esta ideia fundamental seria ldquoo que eacute essencial em uma ideia eacute o que permanece depois que toda
estiliacutestica supeacuterflua for retiradardquo (PARRY 1987b [1971] p 13) 12 A grande novidade do trabalho de Milman Parry cujas obras publicadas essenciais datam de 1928
ateacute 1935 eacute ter logrado uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria do padratildeo que regia estas repeticcedilotildees dado que a
mera existecircncia das repeticcedilotildees nos poemas eacute destacada destes os criacuteticos da antiguidade Que
Homero teria vivido numa cultura oral e ele proacuteprio poderia ser um poeta oral tampouco foi algo
introduzido por M Parry antes remonta agrave obra fundadora da moderna Questatildeo homeacuterica a saber
Prolegomena ad Homerum (Prolegocircmenos a Homero) de autoria de Friedrich August Wolf
publicada em 1795 Mas como argumenta A Parry (1987 [1971] p xv-xvi) Wolf natildeo fazia grande ideia
de como trabalhava uma poesia oral Assim a revoluccedilatildeo nos estudos homeacutericos trazida por Milman
Parry foi provar linguisticamente as marcas da oralidade dos nossos textos de Homero De forma
complementar as suas pesquisas de campo junto aos poetas orais da ex-Iugoslaacutevia lanccedilaram luz sobre
como ocorreria a performance de um poema tradicional oral O texto fundamental sobre a carreira de
Milman Parry contendo as fases das suas pesquisas e descobertas eacute a introduccedilatildeo feita pelo seu filho
para o livro que compilou sua obra a saber A Parry (1987 [1971])
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M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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NETO Feacutelix Jaacutecome
M Parry ldquoOdisseurdquo e os epiacutetetos entrariam em cena substancialmente por razotildees
meacutetricas e natildeo propriamente para conferir sentido ou significado ao verso
A preocupaccedilatildeo meacutetrica de Homero na composiccedilatildeo dos versos pode ser
ilustrada ainda pela escassez de epiacutetetos usados para Telecircmaco na Odisseia em
comparaccedilatildeo para o frequente uso de epiacutetetos para Odisseu No canto primeiro da
Odisseia por exemplo temos Telemakhos theoeides (ldquodivino Telecircmacordquo) no verso
113 e depois o nome de Telecircmaco aparece sob duas formas neste Canto isolado
sem epiacuteteto como nos versos 156 382 384 400 420 425 em que na maioria das
vezes inicia o verso ou entatildeo com o epiacuteteto pepnumenos (ldquoprudenterdquo) Neste uacuteltimo
caso as ocorrecircncias do nome-epiacuteteto para Telecircmaco no Canto primeiro vecircm em uma
frase feita que eacute na verdade um verso inteiro τὴν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον
ηὔδα (ldquoA ela deu resposta o prudente Telecircmacordquo) Assim satildeo os versos 230 e 306 Jaacute
no verso 412 o poeta precisa adaptar levemente a foacutermula porque dessa vez a
interlocuccedilatildeo de Telecircmaco eacute com um homem Euriacuteloco e natildeo mais com a deusa
Atena Para tanto eacute feita apenas a mudanccedila no gecircnero do pronome que comeccedila o
verso τὸν δ αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα demonstrando assim a tendecircncia
do poeta apontada por M Parry em seguir as estruturas linguiacutesticas jaacute formadas e
ser econocircmico nas alteraccedilotildees
A explicaccedilatildeo para a relativa pobreza de epiacutetetos para Telecircmaco um
personagem tatildeo importante na Odisseia natildeo reside numa carecircncia de investimento
do autor sobre este personagem mas sim como M Parry (1987a [1971] p 278 318)
destaca porque a palavra Telecircmaco possui um valor meacutetrico que eacute um obstaacuteculo
para a criaccedilatildeo de epiacutetetos dentro do verso Do ponto de vista da literatura moderna
e mesmo de boa parte da literatura grega e romana posterior a Homero acostumada
ao uso do epiacuteteto em textos narrativos como um contributo essencial na
caracterizaccedilatildeo da personagem no decorrer da histoacuteria eacute impactante que o epiacuteteto
pode ser muitas vezes usado ou ocultado a serviccedilo da meacutetrica e natildeo da construccedilatildeo
da histoacuteria13
Da perspectiva da criacutetica literaacuteria bem como da investigaccedilatildeo histoacuterica a
natureza do nome-epiacuteteto nos poemas tem grande repercussatildeo porque ele eacute usado
13 Haacute nome-epiacuteteto que eacute usado inclusive contra a histoacuteria ou seja natildeo faz sentido no contexto em
que eacute utilizado Por exemplo na Odisseia 16 4-5 lemos ldquoEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees
amigos de ladrar mas natildeo ladraram agrave sua chegadardquo
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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em muitas pesquisas como evidecircncia para a caraterizaccedilatildeo das personagens e de
forma interligada para refletir sobre temas relacionados agrave forma como os poemas
representam valores ou relaccedilotildees sociais atraveacutes das personagens Este tipo de
raciociacutenio quase sempre pressupotildee que o poeta estaacute deliberadamente criando um
epiacuteteto que traz um qualificativo para a personagem A partir disto tanto o criacutetico
literaacuterio como o historiador constrotildeem complexas problemaacuteticas de estudo e
formulam diversas generalizaccedilotildees Como exemplo pode ser citado um interessante
texto de Froma Zeitlin uma excelente estudiosa das relaccedilotildees de gecircnero na literatura
grega intitulado Figuring Fidelity in Homers Odyssey (ldquoImaginando fidelidade na
Odisseia de Homerordquo) A autora afirma em dado momento que o tema da fidelidade
na Odisseia natildeo eacute tanto uma questatildeo de coraccedilatildeo mas sim de mente isto eacute de manter
a pessoa amada sempre na memoacuteria Para defender tal tese ela usa dentre outros
argumentos a semacircntica do epiacuteteto echephron que significa propriamente ldquoter bom
senso por controlar-serdquo usado pelo poeta para Peneacutelope em algumas ocasiotildees no
poema (eg 4111 13406) como uma forma de relacionar a personalidade da esposa
de Odisseu com o tipo de fidelidade representado pelo poema ldquoo epiacuteteto de
Peneacutelope echephron (manter o bom senso) natildeo apenas atesta a sua inteligecircncia e
perspicaacutecia mas tambeacutem inclui a capacidade para permanecer inabalaacutevel no noos
[ldquomenterdquo] mantendo seu marido sempre na menterdquo (ZEITLIN 1995 p 151 n 57)
Aleacutem de toacutepicos envolvendo a representaccedilatildeo da sexualidade e das relaccedilotildees de
gecircnero outra classe significativa de exemplos de nome-epiacuteteto para uma
problemaacutetica histoacuterica eacute o conjunto de epiacutetetos utilizados para destacar a
proeminecircncia de status social de certos personagens bem como a lideranccedila poliacutetica
exercida por alguns deles tanto na Iliacuteada como na Odisseia O epiacuteteto
frequentemente usado poimeni laon (ldquopastor de homensrdquo) por exemplo eacute alccedilado a
pilar central de argumentaccedilatildeo do livro de Haubold (2000) com o intuito de defender
que Iliacuteada ficcionaliza a relaccedilatildeo entre liacuteder e povo atraveacutes de um modelo de interaccedilatildeo
social baseado em hierarquias fluiacutedas nas quais o chefe ou liacuteder natildeo tinha
significativo poder coercitivo sobre seus ldquoseguidoresrdquo e natildeo podia garantir o
permanente contentamento do seu povo A relaccedilatildeo entre o pastor (liacuteder) e seu povo
natildeo era assim mediada por instituiccedilotildees estaacuteveis de modo que o liacuteder estava sempre
ameaccedilado de perder seus homens
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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Claro que o livro de Haubold eacute sobretudo acerca da representaccedilatildeo poeacutetica da
relaccedilatildeo entre liacutederes e povo e natildeo eacute uma abordagem propriamente histoacuterica de
modo que as suas conclusotildees natildeo podem ser meramente transpostas para classificar
a vida poliacutetica de algum periacuteodo especiacutefico da histoacuteria grega Apesar disto o tipo de
metodologia argumentos e conclusotildees trabalhados por Haubold tem sido usado por
outros autores cuja ambiccedilatildeo de explicaccedilatildeo histoacuterica da sociedade homeacuterica eacute mais
aguccedilada e desse modo esses estudiosos tendem a pensar que essa representaccedilatildeo
fluiacuteda e efecircmera das relaccedilotildees de poder que o poeta apresenta seria uma visatildeo
coerente de um periacuteodo histoacuterico especiacutefico do mundo grego geralmente associado
a modelos antropoloacutegicos de sociedades de chefaturas simples ou tribais14 A
questatildeo que permanece eacute ateacute que ponto um nome-epiacuteteto como este usado
dezenas de vezes por Homero para vaacuterios personagens inclusive personagens de
menor expressatildeo nos poemas pode ser uma janela para entender a vida poliacutetica de
algum periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia
O proacuteprio Milman Parry com efeito preocupou-se com a questatildeo da
prioridade semacircntica ou meacutetrica do uso dos nomes-epiacutetetos por Homero tendo
classificado os epiacutetetos como ornamentais quando cumpriam apenas ou sobretudo
funccedilatildeo meacutetrica e certos epiacutetetos especializados ou particulares que eventualmente
poderiam modificar ou criar novas foacutermulas por analogia de acordo com a
necessidade de um contexto especiacutefico15 Apesar disso dado que a defesa do caraacuteter
tradicional do poeta consistiu justamente em mostrar que as foacutermulas estavam em
todo lugar na dicccedilatildeo dos poemas logo um fenocircmeno distinto do estilo que estamos
habituados do autor-escritor moderno a ecircnfase dos estudos de Milman Parry foi
sobre o poeta como um habilidoso produtor de versos hexacircmetros a partir de
foacutermulas jaacute feitas Nesse sentido sustenta M Parry (1987a [1971] p 324)
E eacute aqui finalmente que noacutes podemos ver porque natildeo deveriacuteamos buscar
na Iliacuteada e na Odisseia o estilo proacuteprio de Homero O poeta estaacute pensando
em termos de foacutermulas Diferentemente dos poetas que escreveram ele
pode colocar no verso apenas ideias que podem ser encontradas nas frases
que estatildeo em sua liacutengua ou no maacuteximo ele expressaraacute ideias como essas
das foacutermulas tradicionais que ele mesmo natildeo poderia conhecer de forma
14 O autor mais importante que usa esta abordagem eacute sem duacutevida Walter Donlan Vide por exemplo
Donlan (1989) 15 Para as observaccedilotildees de M Parry sobre os epiacutetetos especializados vide principalmente M Parry
(1987b [1971] p 21-3 153-165)
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independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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A arte de Homero e o historiador
independente Em nenhum momento ele estaacute buscando palavras para uma
ideia que nunca tinha encontrado expressatildeo antes de modo que a questatildeo
da originalidade no estilo significa nada para ele
Com esta citaccedilatildeo de M Parry voltamos agrave epiacutegrafe que abre este artigo como
compreender um passado completamente ldquooutrordquo sem abrir matildeo de nossos criteacuterios
esteacuteticos e literaacuterios tatildeo enraizados A intuiccedilatildeo de M Parry desde seus estudos
iniciais nos EUA era que a dicccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia era de um poeta
completamente diferente do que estamos habituados e ningueacutem tinha conseguido
explicar cientificamente onde residia o caraacuteter uacutenico do registro linguiacutestico e literaacuterio
de Homero Como Adam Parry mostra na introduccedilatildeo agrave obra de seu pai esse tipo de
sentimento foi justamente o que moveu toda a carreira acadecircmica e antropoloacutegica
de Milman Parry Eacute nesse contexto da necessidade de afirmar o caraacuteter tradicional e
oral de Homero que deve ser entendida esta categoacuterica e exagerada citaccedilatildeo
De todo modo do ponto de vista das teorias literaacuterias produzidas no seacuteculo
XX a obra de M Parry deixou-nos diante de um impasse seria preciso entatildeo
criarmos conceitos para uma poeacutetica especiacutefica adaptada a um poema oral de
muacuteltiplos autores ou poderiacuteamos tratar o texto como uma obra autocircnoma e aplicar
os conceitos modernos de anaacutelise literaacuteria16 Que espeacutecie de ldquoautorrdquo eacute Homero um
nome geneacuterico ou coletivo para um variado corpus de poetas inseridos dentro de
uma tradiccedilatildeo oral ou eacute antes um poeta individual e histoacuterico
Os estudos homeacutericos poacutes-Parry a relativizaccedilatildeo da teses extremas da poesia oral e a
incorporaccedilatildeo de modernas teorias da literatura para o estudo de Homero
Parte consideraacutevel dos homeristas nas deacutecadas seguintes a M Parry
especialmente a partir dos anos setenta tem reagido as elaboraccedilotildees mais extremas
da ldquoteoria oralrdquo que suprime ou minimiza o papel criativo e inovador do poeta da
16 Como jaacute sugere o proacuteprio Milman Parry (1987b [1971] p 21) ldquonoacutes estamos compelidos a criar uma
esteacutetica do estilo tradicionalrdquo Tatildeo cedo quanto 1959 um sugestivo artigo intitulado ldquoMilman Parry and
Homeric Artistryrdquo escrito por Combellack (1959) defendeu que o impacto da obra de Parry sobre a
criacutetica literaacuteria moderna era devastadora de modo que natildeo poderiacuteamos mais comentar Homero como
faziacuteamos com Shakespeare ou Soacutefocles dado que a geraccedilatildeo de criacuteticos poacutes-Parry natildeo teria como
distinguir quando o poeta estaacute usando a foacutermula por razotildees meacutetricas ou quando ele escolhe
conscientemente uma palavra para o contexto particular Como veremos no entanto o sucesso de
abordagens recentes ao texto homeacuterico que usam conceitos modernos relativizam o tom categoacuterico
de Combellack
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Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
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tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
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predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
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Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
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NETO Feacutelix Jaacutecome
Iliacuteada e da Odisseia Estudos tecircm mostrado que o poeta afinal usava muito mais
elementos natildeo-formulares do que se pensava anteriormente e portanto tinha mais
liberdade para inovar do que pensava Milman Parry de forma que a dicccedilatildeo homeacuterica
natildeo seria completamente refeacutem das expressotildees tradicionais17 Para aleacutem disso
criacuteticos literaacuterios tecircm usado com consideraacutevel sucesso conceitos advindos da teoria
literaacuteria contemporacircnea para comentar o texto homeacuterico
Griffin (1986) por exemplo identifica diferenccedilas no vocabulaacuterio entre as
palavras do narrador principal e os discursos das personagens Ele sustenta que
muitos nomes abstratos que denunciam julgamentos morais ou expressatildeo de
emoccedilotildees apenas ocorrem atraveacutes das palavras das personagens Aleacutem disso os
epiacutetetos depreciativos satildeo prioritariamente reservados aos discursos das
personagens Assim conclui Griffin (1986 p 50) ao tornar mais subjetiva e avaliativa
a fala das personagens ldquoa linguagem de Homero eacute uma coisa menos uniforme do
que alguns oralistas tecircm tentado sugerirrdquo
A partir do final da deacutecada de 80 uma aacuterea da teoria literaacuteria que vecircm
fornecendo muitos frutos para a anaacutelise do poema e que como veremos abre uma
gama de perspectivas para o historiador eacute a narratologia tal como inicialmente
desenvolvida por teoacutericos como Geacuterard Genette e Mieke Bal O primeiro benefiacutecio
dessa abordagem explicitamente aplicada aos poemas homeacutericos pioneiramente por
De Jong (2004 [1987]) foi ter colocado em duacutevida a interpretaccedilatildeo corrente em
muitos meios intelectuais de que o narrador da Iliacuteada e da Odisseia teria um estilo
ldquoobjetivordquo ldquoimparcialrdquo ou seja descreveria os acontecimentos da histoacuteria de forma
distante sem os comentar ou julgar de maneira que os eventos se sucederiam quase
que por conta proacutepria18
O narrador homeacuterico trabalha de forma extradiegeacutetica ou seja natildeo estaacute
inserido dentro do acircmbito da histoacuteria o que garante sua omnisciecircncia acerca dos
eventos do relato eacutepico inclusive daqueles passados e futuros Caracteristicamente o
narrador homeacuterico natildeo se introduz regularmente na histoacuteria com sua proacutepria voz
17 Vide por exemplo o primeiro capiacutetulo (ldquothe homeric formulardquo) do livro de Austin (1975) 18 Uma defesa do estilo ldquoobjetivordquo do narrador homeacuterico pode ser vista no primeiro capiacutetulo ldquoA cicatriz
de Ulissesrdquo do influente livro de Auerbach (1976) Bem entendido esse tipo de avaliaccedilatildeo tem usado
como referecircncia a caracterizaccedilatildeo do narrador homeacuterico na Poeacutetica de Aristoacuteteles especialmente a
passagem 1460a 5-11 bem como a alegada retirada do poeta eacutepico enquanto responsaacutevel pela
narrativa que ficaria a cargo das Musas Nem uma coisa nem outra penso necessita ser entendida em
termos de rigorosa objetividade do narrador
212
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A arte de Homero e o historiador
tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
213
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NETO Feacutelix Jaacutecome
estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
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212
Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304
A arte de Homero e o historiador
tampouco faz comentaacuterios pessoais ou de julgamento frequentemente de forma
expliacutecita19 No entanto reconhecer o caraacuteter sutil ou discreto do narrador homeacuterico eacute
diferente de entendecirc-lo como ldquoneutrordquo ou ldquoobjetivordquo ele possui vaacuterias ldquoteacutecnicasrdquo
indiretas ou impliacutecitas para orientar a audiecircncia e o leitor a seguir seu ponto-de-vista
como por exemplo a descriccedilatildeo de situaccedilotildees hipoteacuteticas prolepses e analepses
sumaacuterios pausas e comentaacuterios indiretos20
O proecircmio da Odisseia ou seja os primeiros versos do livro eacute sintomaacutetico de
como a histoacuteria contada em Homero articula elementos subjetivos ora de forma
expliacutecita ora de modo indireto ou sutil Apesar da invocaccedilatildeo agrave Musa no primeiro
verso objetivar transferir a responsabilidade da narraccedilatildeo dos acontecimentos do
poeta para a Musa conferindo uma confiabilidade adicional para o que vai ser
contado o modo pelo qual o narrador ldquoresumerdquo a histoacuteria da Odisseia eacute subjetivo e
claramente clama a simpatia do ouvinte para o personagem de Odisseu os
companheiros do rei de Iacutetaca morreram durante a jornada de volta para casa por
conta de sua loucura e insensatez de comerem o gado sagrado do deus Heacutelio
No proecircmio portanto Odisseu eacute inocentado de qualquer responsabilidade
quanto agrave morte dos seus companheiros No entanto quando lemos a narrativa deste
episoacutedio das vacas de Heacutelio no Canto 12 262-452 a histoacuteria fica mais complexa e
polifocircnica Euriacuteloco um dos soldados de Odisseu chama seu chefe de ldquodurordquo ou
ldquocruelrdquo por possuir uma ldquoalma de ferrordquo portanto inflexiacutevel (veja os versos 279-80
deste Canto) Ainda neste Canto ficamos sabendo que a decisatildeo dos companheiros
de Odisseu de comer o gado de Heacutelio foi uma escolha desesperada feita em uacuteltima
instacircncia porque estavam haacute um mecircs ancorados em terra (verso 325) e natildeo havia
mais comida nem ventos favoraacuteveis para continuarem a viagem pelo mar Diante da
situaccedilatildeo calamitosa Odisseu adormece (verso 338) o que eacute um toacutepico poeacutetico
recorrente que o narrador usa na Odisseia para indicar entre outras coisas a
inabilidade de Odisseu como liacuteder para resolver situaccedilotildees delicadas e garantir o bem
19 Note no entanto a apresentaccedilatildeo demasiada subjetiva e avaliativa do narrador quando o
personagem Tersites entra em cena na Iliacuteada 2 212-222 O fato de Tersites ser o uacutenico personagem
natildeo pertecente agrave elite dos herois da Iliacuteada que discursa em contexto de assembleia e ao mesmo
tempo receber esta apresentaccedilatildeo incomum do narrador eacute muito significativo do ponto de vista
histoacuterico Observaccedilotildees nesta direccedilatildeo satildeo feitas em Jaacutecome Neto (2012) 20 O livro De Jong (2004 [1987]) eacute uma tese que evidencia elementos subjetivos na apresentaccedilatildeo da
histoacuteria tanto por parte do narrador como das personagens Note especialmente as paacuteginas 18-9
onde estaacute resumida uma lista de dez categorias de elementos subjetivos na narraccedilatildeo da Iliacuteada
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NETO Feacutelix Jaacutecome
estar dos seus comandados21 Euriacuteloco entatildeo sugere comer o gado e para natildeo
trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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NETO Feacutelix Jaacutecome
configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
Referecircncias
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trazer a ira divina propotildee oferecer honras futuras ao deus Heacutelio (versos 346-7) Os
demais homens aceitam eacute a decisatildeo coletiva diante do impasse extremo Para o
narrador principal do poema nos versos iniciais da Odisseia no entanto trata-se
apenas de loucura e insensatez do coletivo
Este exemplo da subjetividade do narrador no episoacutedio do gado sagrado de
Heacutelio na Odisseia leva-nos a outro contributo que os estudos baseados nos conceitos
da narratologia tecircm trazido para a anaacutelise da eacutepica homeacuterica Trata-se da distinccedilatildeo
entre narraccedilatildeo ou seja quem conta a histoacuteria e percepccedilatildeo isto quem vecirc a histoacuteria
Este segundo elemento eacute chamado pela narratologia de focalizaccedilatildeo ou seja eacute o
ponto desde o qual a histoacuteria eacute vista ordenada e interpretada seja pelo narrador
principal ou pela personagem A criacutetica que Euriacuteloco dirige a Odisseu mostra essa
distinccedilatildeo e ao mesmo tempo a complexidade da estrutura narrativa da Odisseia o
(externo) narrador-principal da histoacuteria ldquoconcederdquo a narraccedilatildeo e a focalizaccedilatildeo a
Odisseu Este enquanto (interno) narrador-secundaacuterio narra o episoacutedio do gado de
Heacutelio aos feaces e em dado momento emerge Euriacuteloco como narrador-focalizador
incrustado na narrativa de Odisseu Sendo assim noacutes passamos a perceber a histoacuteria
a partir da oacutetica de Euriacuteloco dentro de um relato que eacute jaacute em si a narraccedilatildeo e a
focalizaccedilatildeo de Odisseu que se encontra na corte dos feaces a relatar suas
aventuras22
A importacircncia destes dispositivos de apresentaccedilatildeo da histoacuteria eacute vital para o
entendimento da narrativa Como comenta De Jong (2004 [1987] p 226) a
apresentaccedilatildeo da histoacuteria pelo personagem como eacute o caso de Odisseu e Euriacuteloco eacute
condicionada por sua proacutepria identidade status personalidade e emoccedilotildees o que
21 Interpretaccedilatildeo similar possui Werner (2005 p 12-3 com nota n 24) No mais este artigo de Werner
eacute uma excelente leitura de aprofundamento para o tema da multifacetada construccedilatildeo da narrativa da
relaccedilatildeo entre Odisseu enquanto liacuteder e seus comandados que aqui se aborda brevemente 22 Um recente texto de Bakker (2009) enquanto faz justos apontamentos sobre a limitaccedilatildeo da
abordagem narrotoloacutegica tendo em conta o caraacuteter de performance oral que deixa sua marca no
texto de Homero e limita certas abordagens modernas dos papeis do narrador na histoacuteria vai muito
longe ao meu ver ao interpretar a narrativa de Odisseu entre os Cantos 9 e 12 da Odisseia como
sendo do mesmo estatuto que a do narrador principal eclipsando assim a distinccedilatildeo feita entre
narrador principal e Odisseu enquanto narrador secundaacuterio Associado a isto a sua defesa de que a
audiecircncia original do poema encararia a narrativa de Odisseu como uma performance completamente
nova (p 128-36) e logo paralela e autocircnoma agravequela do narrador principal pressupotildee uma audiecircncia
simplista e demasiada desconectada do conjunto da histoacuteria
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
216
Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304
A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
Referecircncias
Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa
ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste
Gulbenkian 2011
CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial
Gredos 2002
HEROacuteDOTO Historias Libros I-II Traduccioacuten y notas de Carlos Schrader Madrid
Editorial Gredos 1992
HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010
HOMERI Odyssea Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 1991
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2005
HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Livros Cotovia 2003
PLATON Hipparque Texte eacutetabli et traduit par J Souilheacute In Platon Oeuvres complegravetes
Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930
Obras de apoio
AUERBACH E Mimesis a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Satildeo Paulo
Perspectiva 1976
AUSTIN N Archery at the dark of the moon poetic problems in Homers Odyssey
California University of California Press 1975
217
Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304
NETO Feacutelix Jaacutecome
BAKKER E J Homer Odysseus and the Narratology of Performance In GRETHLEIN
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inconsciente poliacutetico da eacutepica homeacuterica a partir do aporte teoacuterico de Fredric
Jameson In SOUZA NETO J M G (Org) Antigas Leituras diaacutelogos entre a
Histoacuteria e a Literatura Recife EDUPE 2012 p 57-78
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218
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A arte de Homero e o historiador
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1995 p 117-152
214
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A arte de Homero e o historiador
confere subjetividade ao relato e como foi apresentado no passo da Odisseia que foi
discutido traz inclusive percepccedilotildees conflitantes sobre o significado dos
acontecimentos dentro do relato o fato dos companheiros se alimentarem do gado
sagrado foi mera loucura dos homens ou foi um ato extremo influenciado pelas
circunstacircncias e pela falta de resoluccedilatildeo do liacuteder Odisseu23
O potencial desse tipo de abordagem literaacuteria dos poemas homeacutericos para o
historiador eacute imensa principalmente se entendermos que a loacutegica social do texto
literaacuterio como argumenta a medievalista Spiegel (1990 p 84) comporta camadas de
significados e silecircncios que muitas vezes satildeo conflituosas entre si funcionando como
ligaccedilotildees privilegiadas do texto com a realidade extra-textual A partir do teoacuterico
Pierre Macherey ela vecirc o texto literaacuterio como
O lugar de muacuteltiplas e frequentemente contraditoacuterias realidades histoacutericas
que estatildeo tanto presentes como ausentes na obra [hellip] oferece [a visatildeo da
literatura de Pierre Macherey] um modo sugestivo de olhar para a natureza
inextrincavelmente interligada das praacuteticas sociais e discursivas das
realidades materiais e linguiacutesticas que estatildeo entrelaccediladas no tecido do texto
cuja anaacutelise como um artefato historicamente determinado por sua vez nos
permite acesso ao passado (SPIEGEL 1990 p 84-85)
Assim este tipo de perspectiva da relaccedilatildeo entre literatura e histoacuteria tem a
meu ver o meacuterito de reconhecer o caraacuteter jaacute simbolizado da evidecircncia histoacuterica mas
ao mesmo tempo natildeo conclui disto que texto e contexto (ou literatura e histoacuteria)
devam ser colapsados dentro de uma uacutenica unidade textualizada ou em outras
palavras dentro de um mesmo sistema uno e homocircgeneo de coacutedigos linguiacutesticos e
simboacutelicos que natildeo referem a outra coisa senatildeo a si proacuteprios
Perceber a literatura como entre outras coisas uma accedilatildeo simboacutelica que busca
resolver no plano do imaginaacuterio contradiccedilotildees sociais reais como pensa a abordagem
da literatura de autores como Pierre Macherey e Fredric Jameson pode nos fazer
refletir sobre a relaccedilatildeo do mundo ficcionalizado nos poemas homeacutericos e a histoacuteria
da Greacutecia atraveacutes das conflitantes visotildees de mundo e ideologias que disputam a
23 Com toda probabilidade haveria uma convenccedilatildeo tradicional da narrativa que a audiecircncia do poema
esperaria concretizar-se segundo a qual Odisseu teria que chegar sozinho agrave Iacutetaca sem os
companheiros No entanto concordo com a abordagem de Werner (2005) de que o poeta poderia
usar outros meios narrativos para lograr este final que natildeo fosse culpabilizar os companheiros por
suas mortes
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NETO Feacutelix Jaacutecome
configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
mundo de Odisseurdquo) que ainda hoje passados mais de meio seacuteculo eacute a abordagem
predominante nos estudos de caraacuteter histoacuterico dos poemas homeacutericos A coerecircncia
da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
as fronteiras sociais representadas nos poemas satildeo extremamente simplificadas ou
se eacute um homem livre (quase sempre ldquopoderosordquo) ou se eacute um trabalhador dependente
ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
proprietaacuterios de terra estatildeo quase ausentes das menccedilotildees expliacutecitas da narrativa tanto
da Iliacuteada como da Odisseia apesar de com certeza serem um setor fundamental do
mundo grego arcaico A aparente coerecircncia de uma sociedade protagonizada por um
grupo homogecircneo de herois lutando pela gloacuteria pessoal dentro de um alegado
coacutedigo heroacuteico natildeo eacute um fenocircmeno histoacuterico apesar de Finley
Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
fantasia poeacutetica completamente opaca ao trabalho do historiador tampouco que as
informaccedilotildees com potencial histoacuterico contidas em Homero seriam um amaacutelgama
irrecuperaacutevel e artificial de traccedilos culturais da Idade do bronze para o periacuteodo
arcaico embora em certo grau os poemas sejam fantasia poeacutetica e sejam um
amaacutelgama de eacutepocas histoacutericas distintas25
O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
particularidades estiliacutesticas e linguiacutesticas que debatemos no decorrer deste artigo e
ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia a que corresponderia Para um debate recente e pormenorizado destas
hipoacuteteses com vasta bibliografia relevante vide Oliveira (2012)
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
Referecircncias
Documentaccedilatildeo primaacuteria impressa
ARISTOTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo e notas de Ana Maria Valente Lisboa Calouste
Gulbenkian 2011
CICEROacuteN Sobre el Orador Traduccioacuten y notas de Jose Javier Iso Madrid Editorial
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Editorial Gredos 1992
HOMERI Ilias Regnovit Helmut Van Thiel Hildesheim Georg Olms Verlag 2010
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Tome XIII 2e partie Dialogues suspects Paris Les Belles Lettres 1930
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configuraccedilatildeo do mundo simboacutelico dentro do relato dos poemas24 que podem ser
vislumbradas com o auxiacutelio de metodologias da anaacutelise literaacuteria como os conceitos
da narratologia
Pensar nestes termos a relaccedilatildeo entre Homero e sua(s) eacutepoca(s) pode nos fazer
reformular a espeacutecie de coerecircncia da sociedade homeacuterica e de plausibilidade
histoacuterica defendida no ceacutelebre livro de Moses Finley The World of Odysseus (ldquoO
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da sociedade homeacuterica natildeo pode ser pensada como o reflexo mais ou menos
imediato de uma sociedade real que tenha existido na Greacutecia Para citar um exemplo
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ou escravo Setores intermediaacuterios como os camponeses livres e pequenos
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Com isto natildeo se conclui que a sociedade homeacuterica eacute mero produto da
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O texto homeacuterico precisa ser estudado levando em consideraccedilatildeo todas as
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ao mesmo tempo a coerecircncia inicial ou superficial do poema que Finley julgava ser a
historicidade da sociedade homeacuterica precisa ser posta agrave prova atraveacutes de uma
24 Para um estudo que desenvolve a validade do aporte teoacuterico de Pierre Macherey e Fredric Jameson
para os estudos histoacutericos do mundo homeacuterico vide Jaacutecome Neto (2012) 25 Por questatildeo de espaccedilo e de objetivo natildeo irei desenvolver neste artigo as hipoacuteteses que os
especialistas das uacuteltimas deacutecadas tecircm levantado sobre a historicidade da sociedade homeacuterica isto eacute
se a sociedade ficcionalizada em Homero tem plausibilidade histoacuterica ou natildeo e caso afirmativo qual o
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Romanitas ndash Revista de Estudos Grecolatinos n 2 p 197-218 2013 ISSN 2318-9304
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hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
Referecircncias
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Editorial Gredos 1992
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NETO Feacutelix Jaacutecome
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A arte de Homero e o historiador
hermenecircutica que esteja atenta ao que estaacute implicado ao que eacute atiacutepico ou
embaraccediloso ao narrador e agrave audiecircncia dos poemas ou mesmo ao que eacute silenciado
ou natildeo-dito Temos tambeacutem que estar sensiacuteveis agraves opiniotildees contrastantes sobre o
mesmo toacutepico entre as personagens da narrativa entre si e destas com a instacircncia
narrativa pois podem nos revelar modos distintos nos quais os sujeitos sociais
buscam conferir coerecircncia simboacutelica ao mundo que os cerca
Depois de tal empreitada pode natildeo nos restar uma histoacuteria dos eventos
coerente e ordenada para preenchermos um periacuteodo da histoacuteria da Greacutecia mas
certamente os restos simbolizados do passado existentes em Homero nos faratildeo
refletir sobre as formas como o poeta do passado e sua audiecircncia conceitualizaram
seu(s) mundo(s) a partir de suas condiccedilotildees materiais de existecircncia
Referecircncias
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