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A INFLUÊNCIA DOUTRINÁRIA FRANCESA SOBRE OS MILITARES BRASILEIROS NOS ANOS DE 1960 João Roberto Martins Filho Os estudiosos da história política brasileira entre o final dos anos de 1950 e o final da década de 1970 constantemente se deparam nos textos militares com duas expressões a que não atribuem muita importância: “guerra revolucionária” e “de- fesa da civilização cristã”. Contudo, esses termos são ricos de significado, uma vez que remetem à matriz do pensamento militar que vigorou durante pelo menos duas décadas e marcou profundamente a visão de mundo de uma geração de oficiais, prin- cipalmente do Exército brasileiro. Durante muito tempo a literatura sobre essa fase histórica concen- trou-se na chamada Doutrina da Segurança Nacio- nal, elaborada pela Escola Superior de Guerra (ESG), a partir de finais dos anos de 1940. A essa doutrina atribui-se forte influência norte-america- na. Em contraste, a doutrina francesa da guerre ré- volutionnaire, introduzida na ESG em 1959, não foi até hoje analisada em profundidade. 1 Comblin e o poder militar na América Latina O exemplo mais acabado de tal concepção é o livro do padre e professor de teologia em Har- vard, Joseph Comblin – A ideologia da segurança nacio- nal, publicado originalmente em francês, em 1977 (Comblin, 1980). Destinado a ter grande influência sobre a literatura relativa às ditaduras militares do Cone Sul, o texto é uma narrativa que acaba por simplificar em demasia a questão dos influxos dou- trinários que alimentaram os golpes militares dos anos de 1960 e 1970. Sua tese central é simples: “É incontestável” que a doutrina que inspirou os golpes militares “vem diretamente dos Estados Unidos. É nos Estados Unidos que os oficiais dos exércitos aliados aos EUA aprendem-na” (Idem, p. 14). No decorrer do livro, fica claro que para Comblin o processo his- tórico de construção da mentalidade ditatorial é elementar. Segundo ele, os chefes militares latino- americanos não tinham – e nem precisavam ter – RBCS Vol. 23 n. o 67 junho/2008 Artigo recebido em abril/2007 Aprovado em abril/2008

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A INFLUÊNCIA DOUTRINÁRIA FRANCESASOBRE OS MILITARES BRASILEIROS NOS ANOSDE 1960

João Roberto Martins Filho

Os estudiosos da história política brasileiraentre o final dos anos de 1950 e o final da décadade 1970 constantemente se deparam nos textosmilitares com duas expressões a que não atribuemmuita importância: “guerra revolucionária” e “de-fesa da civilização cristã”. Contudo, esses termossão ricos de significado, uma vez que remetem àmatriz do pensamento militar que vigorou durantepelo menos duas décadas e marcou profundamentea visão de mundo de uma geração de oficiais, prin-cipalmente do Exército brasileiro. Durante muitotempo a literatura sobre essa fase histórica concen-trou-se na chamada Doutrina da Segurança Nacio-nal, elaborada pela Escola Superior de Guerra(ESG), a partir de finais dos anos de 1940. A essadoutrina atribui-se forte influência norte-america-na. Em contraste, a doutrina francesa da guerre ré-volutionnaire, introduzida na ESG em 1959, não foiaté hoje analisada em profundidade.1

Comblin e o poder militar na América Latina

O exemplo mais acabado de tal concepção éo livro do padre e professor de teologia em Har-vard, Joseph Comblin – A ideologia da segurança nacio-nal, publicado originalmente em francês, em 1977(Comblin, 1980). Destinado a ter grande influênciasobre a literatura relativa às ditaduras militares doCone Sul, o texto é uma narrativa que acaba porsimplificar em demasia a questão dos influxos dou-trinários que alimentaram os golpes militares dosanos de 1960 e 1970.

Sua tese central é simples: “É incontestável”que a doutrina que inspirou os golpes militares “vemdiretamente dos Estados Unidos. É nos EstadosUnidos que os oficiais dos exércitos aliados aosEUA aprendem-na” (Idem, p. 14). No decorrer dolivro, fica claro que para Comblin o processo his-tórico de construção da mentalidade ditatorial éelementar. Segundo ele, os chefes militares latino-americanos não tinham – e nem precisavam ter –

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008

Artigo recebido em abril/2007Aprovado em abril/2008

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idéia do tipo de sociedade e de governo que iriamfundar, e sequer sabiam que iriam criar um novoregime. O que importava eram os processos objeti-vos, vale dizer, “a coesão e a força dos fatores his-tóricos que estavam em ação, a coesão e a força domodelo de segurança nacional”, que “se realiza, decerto modo, por si mesmo, graças a seu dinamis-mo interno: utiliza os generais e seus conselheiroscivis e os leva a fazer coisas com as quais jamaishaviam sonhado”. Nessa mecânica, “toda a forçado sistema forjado nos Estados Unidos entra emação” (Idem, p. 71).

Tal explicação dispensa o estudo dos pro-cessos internos de construção da mentalidade mili-tar. Na verdade, na visão de Comblin, os setoresmilitares que apoiaram os golpes aparecem comouma simples marionete ideológica, sem históriapolítica ou capacidade de gerar seus próprios mi-tos, doutrinas ou ideologias. Há alguns problemasbásicos nesse tipo de explicação. Em primeiro lu-gar, ela parte de uma definição excessivamente ge-nérica do ideário da segurança nacional, tanto naforma como foi construído nos Estados Unidos,no início da Guerra Fria, como na forma que to-mou nas escolas de guerra de países como Brasil eArgentina. Além disso, essa análise tende a perderespecificidades nacionais dos processos de cons-trução do golpismo militar, as quais tiveram conse-qüências importantes na própria configuração dasditaduras que se seguiram. Assim, tudo se passacomo se a importação da ideologia da segurançanacional explicasse por si só o aparecimento deEstados de segurança nacional, cuja coesão internativesse sido garantida pela doutrina que lhes deuorigem. Para alguns autores, a raiz dessa confusãoestaria na própria indistinção, presente no livro deComblin, entre ideologia e doutrina. No sentidoem que a usamos aqui, doutrina significa

[. . .] um conjunto de ensinamentos, com freqüênciaum conjunto de princípios ou um credo. No jargão mi-litar, usa-se tipicamente doutrina num sentido mais li-mitado, para referir-se a princípios estratégicos ou táti-cos particulares, como a doutrina de retaliação maciça.Por outro lado, define-se comumente ideologia comoum conjunto generalizado de idéias políticas, uma visãode mundo, como o liberalismo e o comunismo. Tratardoutrina, especialmente doutrina militar, e ideologia,como termos mais ou menos intercambiáveis obscurecea questão da relação entre os dois (Fitch, 1998, pp. 107e 110).

Finalmente, há na análise uma proposta deperiodização. Para o autor, “1961/1962 são os anosem que o conceito (de guerra revolucionária) iniciasua carreira triunfal nas Américas” (Comblin, 1980,p. 44). Mais adiante, ele afirma que essa “estratégiacontra-revolucionária [. . .] serviu sobretudo paraformar uma escolástica militar rígida, um manualde guerra revolucionária, que se tornou, desde 1961,a base do ensinamento dado aos exércitos latino-americanos” (Idem, p. 47).

A guerre révolutionnaire

Pelo menos no caso das Forças Armadas dedois dos mais importantes países latino-america-nos, Brasil e Argentina, as coisas não se passaramassim. Se marcarmos a data de nascimento da erakennediana da contra-insurreição em 18 de janei-ro de 1962, quando o presidente promulgou oMemorando de Ação de Segurança Nacional 124(NSAM-124), podemos afirmar que, nessa data,alertar os militares argentinos e brasileiros para aurgência de desenvolver uma doutrina de comba-te à guerra subversiva seria o mesmo que ensinaro Padre-Nosso ao vigário. Antes mesmo do triun-fo da Revolução Cubana, os oficiais daqueles paí-ses tinham buscado, por conta própria, uma dou-trina de guerra mais adaptada às suas necessidades,que os Estados Unidos não pareciam em condi-ções de oferecer.

No processo de importação das idéias fran-cesas, o pioneirismo coube à Argentina. Comomostrou Ernesto López, o então coronel Carlos J.Rosas, que acabava de regressar da França, assu-miu em 1956 a subdireção da Escuela Superior deGuerra, em Buenos Aires, dando início a um pro-cesso de redefinição doutrinária calcado nos ensi-namentos de veteranos franceses da Indochina eda Argélia. Em 1957, o referido oficial trouxe paraa ESG argentina, na qualidade de professores e as-sessores da direção, quatro militares com experiên-cia nas guerras coloniais: os tenentes-coronéis Badie,de Naurois, Bentresque e Nougues, que ali perma-neceram até 1962 (López, 1988, pp. 137-138). En-tre 1958 e 1959, a Revista de la Escuela Superior deGuerra publicaria uma série de artigos de autoriadesses assessores e de um grupo de oficiais argenti-nos que havia estagiado na Europa, cujo tema centralera a doutrina da guerre révolutionnaire (Idem, p. 144).

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No caso do Brasil, o coronel Augusto Fragosopronunciou em maio de 1959 no curso de Estado-Maior e Comando da Escola Superior de Guerraa palestra “Introdução ao estudo da guerra revolu-cionária”, fruto aparentemente de seus própriosestudos diretos da produção francesa, que eviden-temente começaram algum tempo antes. O con-texto mais geral em que se deu a entrada dessasidéias no Brasil é lembrado pelo general OctavioCosta:

Nesse momento, estávamos profissionalmente perple-xos, sem saber que direção tomar. [. . .] Então começa-mos a tomar conhecimento de novas experiências [. . .].Nessa ocasião, a literatura militar francesa [. . .] começaa formular um novo tipo de guerra. Era a guerra infini-tamente pequena, a guerra insurrecional, a guerra revo-lucionária. [. . .] Isso entrou pelo canal da nossa ESG, efoi ela que lançou as idéias sobre as guerras insurrecionale revolucionária e passou a nelas identificar o quadroda nossa própria possível guerra. Para nós ainda nãohavia guerra nuclear, a guerra convencional já estavaultrapassada. Mas havia uma guerra que nos pareciaestar aqui dentro. [. . .] Isso tudo contribuiu para a for-mulação da nossa própria doutrina da guerra revolu-cionária, que resultou no movimento militar de 64(D’Araujo et al., 1994, pp. 77-78).2

No final dos anos de 1950, antes mesmo daeclosão da Revolução Cubana, os franceses eramos únicos a tratar do tema da guerra revolucioná-ria. Desde meados dessa década, após a fragorosaderrota em Dien-Bien-Phu e a eclosão da rebeliãona Argélia, fortaleceu-se no Exército francês a idéiade que a razão da derrocada na Indochina fora ofato de que a doutrina militar não estava preparadapara enfrentar um novo tipo de guerra. A principalcaracterística desta forma de conflito era a indistin-ção entre os meios militares e os não militares e aparticular combinação entre política, ideologia e ope-rações bélicas que ela proporcionava. Nesse qua-dro, a nova doutrina “oferecia um diagnóstico eum remédio para aquilo que um influente grupode militares de carreira franceses via como a doen-ça principal do mundo moderno — a falência doOcidente em enfrentar o desafio da subversão co-munista atéia” (Shy e Collier, 1986, p. 852).3

Por outro lado, mesmo depois do surgimentoda doutrina norte-americana da contra-insurreição,o Exército dos Estados Unidos não podia ocuparna mesma medida a condição de role model gozadapelos oficiais franceses junto a seus colegas argenti-

nos e brasileiros. Isso, em primeiro lugar, porque adoutrina norte-americana do começo dos anos de1960 nunca deixou de ser um artigo de exportaçãoe de restrito consumo interno no interior das For-ças Armadas dos Estados Unidos, apesar da ob-sessão de Kennedy pelo tema. Por sua vez, o apa-relho de Estado civil não contava com agênciascomo os serviços coloniais britânicos e franceses,indispensáveis para integrar os aspectos políticos emilitares da guerra revolucionária.

O Exército dos Estados Unidos “desconfia-va de um grupo treinado para operações irregula-res”, o que se expressou anos depois, no Vietnã,nos desencontros entre essas tropas – que opera-vam em estrito contacto com a Central IntelligenceAgency – e o comando do Exército. O Exércitofrancês, ao contrário, instalou a guerre révolutionnaireno centro de seu pensamento militar e de sua dou-trina operacional. Como reconhecem dois especia-listas norte-americanos, um deles ex-oficial noVietnã, “no seio do corpo de oficiais franceses, sur-giu uma preocupação obsessiva no sentido deaprender as lições da guerra da Indochina, de modoque as futuras guerras revolucionárias, já iminentesem outras partes do Império Francês, pudessemser vencidas” (Idem, p. 852).

Em segundo lugar, e talvez mais importante,um dos pressupostos fundamentais da doutrinafrancesa era a idéia de que, se o controle das infor-mações é o elemento decisivo da guerra revolucio-nária, seria impossível combater esse tipo de inimi-go sem um comando político-militar unificado.Assim, essa doutrina entra no campo das relaçõescivis-militares. Ao fazê-lo, não hesita em afirmarque, se a sociedade democrática é incapaz de for-necer ao Exército o apoio necessário, então seriapreciso mudar a sociedade, não o Exército. Naexpressão de um de seus principais teóricos, o co-mandante Hogard, “é tempo de perceber que aideologia democrática tornou-se impotente nomundo atual” (Paret, 1964, p. 28).

Em outras palavras, a doutrina da guerre révo-lutionnaire trazia subjacente um projeto de interven-ção militar na sociedade — que resultaria nas crisesmilitares de 1958, 1960, 1961 e 1962. Não por aca-so, um autor como Peter Paret, escrevendo na pri-meira metade dos anos de 1960, encontrava nosescritos do general Lyautey, datados de 1891, o “an-seio por uma elite regeneradora, que testa e provaa si própria no serviço militar antes de liderar sua

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nação rumo a uma nova grandeza” (Idem, p. 108).Uma mensagem que devia soar como música aosouvidos das correntes militares conservadoras, noBrasil e na Argentina do final da década de 1950.Trocando em miúdos, enquanto os militares e civisnorte-americanos pareciam dizer “façam o que digoe não o que eu faço”, a doutrina francesa rezavasimplesmente “façam o que digo e o que eu faço”.

Há ainda outro aspecto relevante. Em exércitoscomo os da Argentina e do Brasil nos anos de 1950,envolvidos cada um à sua maneira na criação deuma ideologia militar abrangente e ambiciosa, caíacomo luva o exemplo francês dos intelectuais milita-res que pensavam por conta própria, em pé de igual-dade com seus colegas e aliados civis, que de restonunca faltaram. Não menos importante, o romantis-mo e a mística quase religiosa que acompanhavama doutrina francesa também funcionaram como atra-tivo adicional para oficiais em busca de uma missãopara seus exércitos, no apogeu da Guerra Fria.

Enfim, a doutrina militar francesa oferecia aosmilitares de nossos países uma definição flexível efuncional do inimigo a enfrentar, ao mesmo tempoem que, no plano geopolítico, valorizava o TerceiroMundo como cenário do confronto mundial daGuerra Fria. Afinal, ocupava o centro dessa dou-trina a idéia de que, “enquanto os Estados Unidose seus aliados estavam hipnotizados pela perspecti-va da guerra nuclear, o comunismo flanqueava asdefesas do Ocidente a partir do Sul, e se não fossecontido destruiria, ao fim, a civilização ocidental”(Shy e Collier, 1986, p. 852).

Nesse quadro, o inimigo era definido de formaampla o suficiente para servir às mais variadas situa-ções nacionais. A idéia geral era de que a civilizaçãocristã estava envolvida numa guerra permanente emundial, em que as distinções tradicionais entre guerrae paz passavam a ser insignificantes, assim como –na expressão de um analista – as diferenças entreanticolonialismo, nacionalismo anti Ocidente e comu-nismo. Vale dizer, o esquema francês era genéricoo suficiente tanto para permitir que o Exército ar-gentino definisse como seu principal inimigo operonismo, que nada tinha a ver com o comunismo,como para dar ao Exército brasileiro uma justifica-ção a mais para combater os nacionalistas ou os cató-licos radicais, além dos comunistas de várias feições.

Faz-se necessário, então, entender em que con-sistia, em linhas gerais, tal doutrina. Para usar a de-finição do sociólogo Raoul Girardet, essa seria

“uma doutrina internacional capaz de efetivamentese opor às teorias marxistas-leninistas [. . .] um siste-ma de valores suficientemente forte para unir e esti-mular as energias nacionais” (Apud Paret, 1964, p.27). O coronel Georges Bonnet resume a questãonuma fórmula simples: “guerra partisan + guerra psi-cológica = guerra revolucionária”. Trata-se, assim,de uma doutrina que extraía seu nome do fenômenoque visava combater – a guerra revolucionária. Esta,por sua vez, é definida por Girardet como “uma dou-trina de guerra exposta pelos teóricos marxistas-leninistas e explorada por movimentos revolucioná-rios de várias tendências” (Apud Paret, 1964, p. 143).

Esse efeito de espelho é uma das característi-cas mais particulares da doutrina francesa. Para esta,a guerra revolucionária é diferente da guerra con-vencional porque coloca o recurso às armas no fi-nal e não no começo do conflito. Ela se constituide um processo diversificado e prolongado, cujaevolução pode ser dividida em cinco etapas. A pri-meira seria a da preparação cautelosa do terrenoque se pretende conquistar, ou seja, a população.Nessa etapa, os militantes agem sem declarar seusobjetivos. A segunda fase se expressa na constitui-ção de uma rede de organizações subversivas, con-troladas pelos militantes. Nesse estágio, formam-sebases que subvertem a capacidade de ação gover-namental. Surgem as manifestações, os tumultos eos atos de sabotagem.

A terceira etapa é marcada pela constituiçãode grupos armados, que iniciam ações de menorescala, destinadas a corroer os poderes constituídos.É a fase do terrorismo como principal método deação. A penúltima etapa é a do estabelecimentode zonas liberadas ou bases d’appui, onde o Exércitoregular não consegue mais entrar, ao que se segue aformação de um governo provisório que procurareconhecimento externo. Forma-se um exército re-gular revolucionário. A quinta etapa significa a con-quista do poder numa ofensiva final. É fundamen-tal notar que essas fases se sucedem muitas vezessem fronteiras nítidas, pois a fluidez seria a princi-pal característica da guerra revolucionária. De todomodo, a doutrina fornecia uma régua com a qualse podia medir o agravamento da ameaça revolucio-nária (Paret, 1964, pp. 12-15). O único modo deevitar a progressão desse processo seria derrotaros revolucionários com suas próprias armas. Assim,no centro da doutrina da guerre révolutionnaire apare-ce a idéia de guerra psicológica (Idem, pp. 21-25).

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A conexão francesa

Os dois anos finais do governo JuscelinoKubitscheck foram de intensa atividade na EscolaSuperior de Guerra. Como registrou um historia-dor dessa instituição, “o estudo da Guerra Revo-lucionária, na ESG, teve início em 1959, através deuma conferência do então coronel Augusto Fragoso,que a reproduziu, em termos semelhantes, porémampliados, no ano seguinte, já como general e as-sistente do comando” (Arruda, 1980, p. 245). Denossa perspectiva, essa aula pode ser consideradaum marco divisório, na medida em que estabeleceum ponto final no período de indefinição no de-bate sobre as formas de guerra na ESG. Sua idéia-força foi a tese de que os militares brasileiros de-viam concentrar-se, daí em diante, num “novo” tipode guerra: “hoje, o estudo da guerra revolucionáriadeve merecer, mormente em países em desen-volvimento como o nosso – importância parale-la, quando não maior, ao da guerra nuclear. É soba forma de GR – afirma o Cel Lacheroy – que odestino do mundo se decide na hora atual, e vai sedecidir nos próximos 20 anos!” (Estado-Maior dasForças Armadas, 1959, p. 12). E, mais adiante: “Aoestudo da GR, muito mais que ao da chamadaguerra nuclear total, mormente nos países subde-senvolvidos, deve se dar a máxima importância”(Idem, p. 48).

Em seu aspecto mais geral, a aula do coronelAugusto Fragoso constituiu-se numa apresentaçãoda literatura francesa sobre a guerra revolucionária,sem menção aos estudos que se faziam à época naArgentina. Suas fontes principais são o documentoContribution a une étude sur la guerre révolutionnaire, pu-blicado pela Escola Superior de Guerra de Paris(1955-1956); os livros do coronel Gabriel Bonnet,Les guerres insurrectionelles et révolutionnaires (1958);4 dePierre Debray, La Troisiéme Guerre Mondiale (1958);de Claude Delmas, La guerre révolutionnaire (1959) eartigos de J. Hogard, Lacheroy, Ximenes, Berteil,Cailloux, Renaud e outros, que vieram à luz nasrevistas militares francesas, além de uma edição emfrancês da obra de Mao Tsé-tung, Os problemas es-tratégicos da guerra revolucionária na China ([1936] 1957).

A exposição de Fragoso inicia-se com umatentativa de distinção entre guerra insurrecional eguerra revolucionária, na qual, com base em J.Hogard, ele define que a GR é: 1) “a guerra daRevolução para a conquista do mundo”, enquanto

as GIs podem se restringir a um país, e 2) a GR temuma doutrina: a marxista leninista, ao passo que asGIs “tem processos empíricos”. Seu marco históricoseria a Revolução Chinesa de 1949 e seu teórico prin-cipal, Mao Tsé-tung. Ainda com base em Hogard,Fragoso enfatiza a ruptura da GR com a guerra clás-sica, na medida em que a primeira não seria pura-mente militar e, em vez de ser uma continuação dapolítica, funcionaria como um apoio da política.

Além disso, a GR, segundo Fragoso, tem umcaráter basicamente insidioso e subliminar, apresen-tando como elemento-chave a atuação sobre asidéias, vale dizer, a ação psicológica. Citando Bon-net, o coronel brasileiro retorna à já citada fórmulaque define a GR como uma combinação entre guerrapartisan e guerra psicológica. Ela seria uma guerraparticular, na medida em que seu meio principal,seu objetivo e sua arma mais importante recairiamsobre a própria população do país-alvo. Nesse senti-do, não haveria GR sem a atuação de uma minoriamilitante e organizada e, em geral, sem o apoioexterno. A GR tem duas fases: a destrutiva, centradana dissolução física e moral do corpo social, e aconstrutiva, na qual surge a sociedade totalitária.Enfim, Fragoso retoma de Hogard o esquema jácitado das cinco fases.

O aspecto que mais nos interessa na palestrade 1959 é a tentativa de inserir o Brasil no quadrogeral da guerra revolucionária mundial. Com baseem C. Montirian, a idéia que percorre todo o textoé a de que a GR atua em círculos cada vez maiores,que se afastam das fronteiras dos países socialistas.Nessa dinâmica teria soado a hora da América La-tina. Voltando ao esquema da Hogard, Fragosolembra que a GR pode ser dividida em duas fasesmaiores: a pré-revolucionária, ou clandestina, e arevolucionária, ou ostensiva. A primeira fase é amais perigosa, porque nela as instituições vêem-sedespreparadas para enfrentar a ameaça subversiva.Na visão do coronel Fragoso, o Brasil do final dosanos de 1950 já viveria o estágio pré-revolucionário(Estado-Maior das Forças Armadas, 1959, p. 48).A partir de uma leitura particular de documentospartidários, o texto da ESG vê na estratégia paci-fista e legalista do Partido Comunista a ante-sala darevolução violenta, distinguindo-se apenas por seucaráter subliminar, em que se procura arregimentaro movimento nacionalista para a Revolução.

Nesse quadro, seria impossível escapar à con-clusão de que algo precisava ser feito a fim de

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preparar o Estado e as Forças Armadas para en-frentar a ameaça do inimigo interno. O problema éque as autoridades responsáveis, “em face do direi-to”, não dispunham “senão de campo de iniciativamuito limitada quanto à escolha das técnicas e dosmeios legais a aplicar, enquanto os revolucionáriosconsideram válidos todos os meios imagináveis deluta” (Idem, p. 22). Em tal contexto, haveria urgência“para combater a subversão, para enfrentar a guerrarevolucionária, desde o seu período clandestino, deuma legislação adequada”, na medida em que “nãose pode manter em relação aos militantes da guerrarevolucionária, o respeito das liberdades individuaisasseguradas aos demais cidadãos e as medidas deproteção que beneficiam, na ação judiciária, os de-linqüentes do direito comum”. Diante disso, a con-clusão de Fragoso é simples: “O regime democráti-co característico do mundo livre, e tão prezado portodos nós, não favorece, pelo abuso de liberdadesque, via de regra, propicia ao adversário, nem a paradapreventiva, nem a resposta enérgica” (Idem, p. 40).

Por sua vez, as Forças Armadas, “organizadasessencialmente em função das servidões da guerraclássica contra um inimigo exterior”, enfrentam sé-rios obstáculos para adaptar, uma vez que eclode aviolência, “sua organização para a luta contra o ter-rorismo urbano e os bandos guerrilheiros nos cam-pos” (Idem, ibidem). A partir dessa situação, um dosproblemas mais difíceis no combate à GR seria opapel a ser desempenhado diretamente pelas For-ças Armadas. Algumas conclusões, no entanto, ser-vem de ponto de partida: de um lado, é precisocriar serviços de informação capazes de anteciparos movimentos do inimigo interno; de outro, cabeàs Forças Armadas construir uma organização dedefesa interna do território, ao mesmo tempo emque cria unidades especialmente adestradas na lutaanti-revolucionária. Porém, antes de tudo, é neces-sário reconhecer que a preparação para a guerraanti-subversiva supera as atribuições tradicionais dasForças Armadas. A ação contra-revolucionária exi-giria uma iniciativa conjunta decidida por todos ospoderes do Estado.

A ação psicológica: o público interno

Vale registrar que os estudos sobre o proces-so político-militar brasileiro dessa fase parecemperder aspectos fundamentais da evolução do qua-

dro político das Forças Armadas. Mesmo traba-lhos que se destacam pela importância que confe-rem à questão militar, centram-se basicamente emseus altos escalões, principalmente nos ministériosda Guerra, da Aeronáutica e da Marinha e nas che-fias dos quatro exércitos. Ficam de fora, assim, osprocessos atuantes no campo em que, por excelên-cia, se define a cultura militar dominante, isto é, asescolas de comando e o estado-maior, onde efeti-vamente se transmitem as idéias que perpassam todaa instituição e onde é possível medir a temperaturaideológica da organização militar.

No final da década de 1950, apesar do qua-dro de divisão militar evidenciado pela luta de per-sonalidades e pelas disputas no Clube Militar, oscorações e as mentes de parte relevante do Exército,da Marinha e da Aeronáutica começavam a penderdecididamente para uma doutrina cujo desenlacenatural era ou um governo civil que incorporasseas visões das Forças Armadas ou um golpe militar.Para entender esse processo, convém voltar à his-tória especificamente militar do período.

É verdade que uma palestra na ESG não sig-nificava necessariamente o início de uma mudançadoutrinária importante. Contudo, a conferência docoronel Augusto Fragoso teve conseqüências insti-tucionais que não se pode deixar de considerar.Quatro meses depois, em 2 de setembro de 1959,o Chefe do Estado-Maior do Exército nomeouuma comissão para estudar a programação e a co-ordenação da instrução sobre guerra moderna, con-siderada então sob dois aspectos: guerra atômica eguerra insurrecional (Idem, p. 5). Há indícios de queesse processo começara antes na Marinha. De todomodo, a evolução iniciada no final do governo JKteve continuidade até que, em 27 de julho de 1961,sob o breve governo de Jânio Quadros, o Estado-Maior das Forças Armadas [EMFA] consolidou emdoutrina as definições esboçadas dois anos antes.Nessa data, o general Oswaldo Cordeiro de Farias,então Chefe do EMFA, aprovou e recomendou aconceituação de guerra insurrecional, guerra revo-lucionária, de subversão (guerra subversiva), de açãopsicológica, de guerra psicológica e de guerra fria,constante no documento FA-E-01/61 (Estado-Maior das Forças Armadas, 1961).

Já em sua primeira frase, o documento esta-belecia que “a doutrina militar francesa enquadratrês formas básicas de guerra” – convencional,nuclear e subversiva –, esclarecendo a seguir que

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era “vasta a literatura militar francesa sobre a últi-ma das três guerras acima”. E continuava: “Sob opeso dos acontecimentos na Ásia e na África doNorte, os pensadores militares franceses tiveramnecessidade de se embrenhar no conhecimentodesta forma de guerra que, embora possuindo raí-zes profundas na História, passara a ostentar umanova fronde, alimentada pela seiva que lhe foi mi-nistrada, principalmente, por Karl Marx, Lenine eMao Tse-Tung” (Idem, p. 1).

Segundo o mesmo texto, apesar de constituir“uma excelente fonte de estudo e de consulta”, essaliteratura ainda sentia falta de “uma terminologiabásica uniforme”, o que vinha dando margem a di-vergências, “algumas vezes sérias”. O trabalho re-feria-se em seguida à doutrina militar norte-ameri-cana com sua definição de três formas de guerra –convencional, nuclear e não convencional – apenaspara concluir que “a literatura militar norte-ameri-cana proporciona parcos ensinamentos” sobre aúltima. Na continuação, a partir dos estudos da “li-teratura militar mundial, particularmente da fran-cesa”, efetuados pela comissão já mencionada, odocumento expunha as idéias de vários autores,classificadas em dois grupos. As “doutrinárias” co-tejavam, basicamente, as definições sobre guerrasubversiva e guerra revolucionária, em autores comoBoulnoie, Bonnet, Hogard, Étienne e Souyris, aolado da documentação da Escola Superior de Guer-ra de Paris e de alguns autores norte-americanos.As “lexicológicas” compreendiam apenas as defi-nições sobre insurreição, subversão e revoluçãoencontradas nos principais dicionários da época. Emambos os tópicos apareciam também definiçõesde guerra fria, ação psicológica e guerra psicológi-ca. A partir daí, o EMFA recomendava definir aguerra revolucionária nos seguintes termos:

É a guerra interna, de concepção marxista-leninistae de possível adoção por movimentos revolucionáriosdiversos que – apoiados em uma ideologia, estimuladose, até mesmo, auxiliados do exterior – visam à conquis-ta do poder através do controle progressivo, físico eespiritual, da população sobre que é desencadeada, de-senvolvendo-se segundo um processo determinado, coma ajuda de técnicas particulares e da parcela da popula-ção assim subvertida (Idem, p. 21).

Em contraste, a guerra insurrecional era carac-terizada como a guerra interna que obedecia a pro-cessos geralmente empíricos, vale dizer, não estava

apoiada numa ideologia. A subversão (também cha-mada de guerra subversiva) corresponderia ao es-tágio pré-revolucionário ou de preparação da guer-ra revolucionária. Enfim, definia-se a ação psicológicacomo o conjunto de ações de caráter defensivocentradas na formação moral e cívica da popula-ção, a fim de fornecer-lhe meios de fazer frente àofensiva da subversão ou da guerra psicológica. Estaera definida como o conjunto de ações de caráterofensivo, com o alvo de minar a moral das tropase da população inimiga.

Assim, seis meses antes do ato do governoKennedy que inaugurou a era da contra-insurrei-ção – o NSAM 124 –, o EMFA já dispunha deuma conceituação básica que orientaria a evoluçãoposterior de sua doutrina da defesa interna. Noplano doméstico, menos de um mês depois da pu-blicação do documento do Estado-Maior brasilei-ro, a crise militar em torno da renúncia de JânioQuadros, a resistência da Campanha da Legalida-de e a posse de João Goulart contribuiriam paraconsolidar as visões que aqui vimos examinando.Na verdade, a renúncia apenas atrasou os planosem curso, no sentido de disseminação da doutrinada guerra revolucionária nas escolas de comando eEstado-Maior. O terreno para a semeadura já esta-va preparado pela publicação regular de artigossobre o tema em periódicos de distribuição restritaaos estados-maiores de cada força, até aqui nãomencionados na literatura. Entre estes se destaca-vam Mensário de Cultura Militar (a partir da ediçãofinal de 1965, Cultura Militar), Boletim de Cultura Mi-litar e Boletim de Informações, todos de responsabili-dade do Estado-Maior do Exército.

Em setembro de 1961, o Mensário lançou umasegunda edição especial – a primeira fora publi-cada em novembro/dezembro de 1960 – dedi-cada à temática da guerra revolucionária. O im-portante é notar que a publicação dos textos sobrea guerra revolucionária não apenas tinha a funçãode divulgar a doutrina, mas já configurava o exer-cício da ação psicológica, destinada, seguindo o exem-plo dos 5es Bureaux do Exército francês, a prepa-rar ideologicamente as próprias forças, além de“assegurar a coesão do conjunto da nação e a de-senvolver em cada um a vontade de lutar” (Paret,1964, p. 57).

É essa a motivação mais geral do estágio so-bre guerra revolucionária de agosto de 1962, doqual participariam noventa oficiais, principalmente

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6746

do Exército. Na introdução ao novo número es-pecial do Mensário, que publicou seu conteúdo (Es-tado-Maior do Exército, 1962),5 afirmava-se: “Aimportância da Ação Educacional e de Instruçãocontra a Guerra Revolucionária tem sido ressaltadapelo Estado-Maior do Exército, através de Dire-trizes, Programas e Conferências, com o objetivode preparar o Exército, psicológica e materialmen-te para opor-se a qualquer tipo de ação subversi-va”. Ao mesmo tempo, salientava-se que as ForçasArmadas estavam “alertas e vigilantes, irmanadaspelo mesmo ideal democrático”, mas era “impres-cindível que estejam esclarecidas sobre as bases daideologia comunista e sobre os processos e técni-cas utilizados para a consecução de seus objetivos”.Nesse quadro, o objetivo desse tipo de estágio se-ria elevar o padrão de instrução, “com a criação dereflexos e atitudes adequadas”.

Aparentemente, o conteúdo foi baseado nosensinamentos do Primeiro Curso de Guerra Con-tra-Revolucionária a que oficiais brasileiros assisti-ram na Argentina, em outubro de 1961, juntamentecom colegas de outros treze países latino-america-nos. No entanto, as aulas começam com a obser-vação “coordenação e adaptação de” ou “coorde-nação e compilação de documentação existente noEME”, o que supõe acréscimos nacionais. A pales-tra sobre guerra psicológica é uma exceção, pois,proferida por um almirante, baseia-se em textosnorte-americanos. Por sua vez, a aula sobre “Guer-ra Revolucionária no Brasil” destina-se a lembrar aversão do Exército sobre a “Revolução de 1935no Nordeste”, tomada evidentemente como evi-dência das profundas raízes do comunismo no país.6

O estágio parece ter conseguido os objetivosalmejados, pois foi repetido em 1963, com audiên-cia ampliada e a participação de professores de filo-sofia civis, para aprofundar temas que fugiam àdoutrina militar propriamente dita. Além disso, a do-cumentação publicada naqueles periódicos era en-viada “regularmente para os Estados-MaioresRegionais, servindo de base para a instrução deoficiais, ao longo do ano”. Assim, os ensinamentosfranceses desceram das alturas da Escola Superiorde Guerra até chegar a tenentes e sargentos – aestes, evidentemente, com os devidos cuidados,dada a situação de efervescência política vigentenesses escalões entre 1962 e 1964. A importânciada disseminação institucional dessa doutrina para aunificação das forças golpistas parece evidente. Vale

reproduzir o testemunho de um oficial que ocupoucargos importantes no regime do pós-64:

No início de 1964, já sentíamos que o confronto erainevitável. Do Rio de Janeiro, em suas novas funções, ogeneral Taurino mantinha conversações com seus pa-res. Em carta que me enviou, de próprio punho, ogeneral Taurino dava notícia de um memorial a serdirigido ao Presidente da República, por intermédio doministro da Guerra, e que seria assinado por todos osgenerais da ativa dispostos a expressar sua preocupaçãocom os rumos que a nação estava tomando.

E continua:

No Estado-Maior do Exército, seu chefe, o general Cas-tello Branco, encerrara um novo simpósio sobre Guer-ra Revolucionária. Comunicando-me o evento, o co-ronel Curvo dizia-me que o encerramento fora “a portasfechadas e com aviso prévio de que o assunto seriasecreto, com recomendações de não se comentar o as-sunto”. O coronel Curvo me adiantava, porém, que “ogeneral Castello botara o dedo na moleira, falando cla-ramente sobre o que estava acontecendo no país” (Pas-sarinho, 1996, p. 176).

A ação psicológica: o público externo

O progressivo fechamento interno foi acom-panhado pela abertura da ação psicológica ao públi-co civil, como parte da ação psicológica golpista.Assim, a partir de 1961, começam a ser publicadoslivros e panfletos destinados a um público mais am-plo, cujo primeiro exemplo foi, talvez, Democracia ecomunismo, coletânea de artigos extraídos de A DefesaNacional, editada como “publicação autorizada peloEstado-Maior do Exército”, sem indicação de edito-ra ou local de publicação. Já em 1964, o folheto de54 páginas, Livro Branco sobre a guerra revolucionária noBrasil, reproduz quase literalmente as discussões mi-litares sobre a doutrina francesa – técnicas destruti-vas, técnicas construtivas, fases de desenvolvimento,guerra psicológica, parada e resposta etc. – paraem seguida demonstrar, numa longa lista de trinta eoito episódios relativos às greves e crises do perío-do, que a guerra revolucionária já existia no país.7

O fundamental nesse sentido é o trânsito dasidéias de dentro para fora das Forças Armadas, oque contraria teses até hoje muito influentes queenfatizam a dependência intelectual e política dosoficiais conservadores em relação a seus aliados civis.Não por acaso, em outubro de 1961, ao substituir

A INFLUÊNCIA DOUTRINÁRIA FRANCESA SOBRE OS MILITARES. . . 47

na chefia do Estado-Maior das Forças Armadas ogeneral Oswaldo Cordeiro de Farias, o generalOsvaldo de Araújo Mota apresentou a questão deforma um tanto cifrada:

A política social do mundo influi na doutrina militar aeleger e determinar uma atitude a manter. Assim, senão nos faltam a nós, militares, inteligência, observa-ção e conhecimentos, para formular, oportunamente,aquele conceito, dentro de nossas reais possibilidades edos compromissos internacionais, não nos deve faltar enos conforta saber que não nos faltará a constante vigi-lância de uma ideologia e a contaminação de uma dou-trina, que, cerceando a liberdade e ameaçando a paz,repugna o espírito cristão de nossa gente (Apud Carone,1985, pp. 177-178).8

A frase tem sintaxe confusa, mas sentido cla-ro. Inteligência, observação e conhecimentos tinhamlevado os militares a buscar em suas próprias dou-trinas a justificativa para a intervenção na política.A crise da renúncia e a posse de Goulart sob umregime parlamentarista, a volta do presidencialismoe o debate sobre as reformas de base, tudo issoserviu para confirmar as visões doutrinárias sobreo avanço da guerra revolucionária no Brasil.

Faltava apenas traduzir a árida linguagem dosdocumentos militares para o mundo civil, se possívelcom o brilho da retórica parlamentar. No início de1964, isso se fez pela voz do presidente da UniãoDemocrática Nacional (UDN), o partido mais im-portante da oposição a Goulart — e o mais próxi-mo dos militares. Assim, embora a crônica políticada época insistisse em que “o Sr. Bilac Pinto, Presi-dente da UDN, assegura que restringe seus contatosà exclusiva área política civil, jamais mantendo con-versas com generais ou outras patentes das ForçasArmadas” (Castello Branco, 1975, p. 146), em dis-curso proferido na Câmara dos Deputados a 23de janeiro de 1964, ele conjurou os heróis intelectuaisdos militares para aguçar seus argumentos contra oque considerava o avanço do golpismo do presiden-te da República e de seu cunhado, o deputado fe-deral Leonel Brizola. Sem maiores escrúpulos, ci-tou profusamente nomes e fontes militares já nossosconhecidos. Em seu pronunciamento de janeiro de1964 e nos que fez em seguida, a guerre révolutionnai-re saiu dos círculos militares e entrou diretamente,como arma da guerra psicológica, no processo deagitação civil-militar que desembocou no golpe.9

Tudo indica que o oficial de ligação entre acúpula do Exército e a ala mais radical da UDN

foi o general Antonio Carlos Murici. De todo modo,o jornalista Carlos Castello Branco, do Jornal do Brasil,dizia em nota publicada no mesmo dia em que oparlamentar faria seu primeiro discurso sobre o te-ma na Câmara: “O sr. Bilac Pinto, cuja atualizaçãoem matéria de terminologia política é louvada pelosr. Pedro Aleixo, está com a pasta abarrotada deliteratura sobre a guerra revolucionária. São Livrosde Mao Tsé-Tung sobre guerrilhas, estudos do Es-tado-Maior do Exército brasileiro, revistas milita-res norte-americanas e uma tese do general Murici[. . .]” (Idem, p. 168).

A leitura da série de discursos de Bilac Pintosobre a guerra revolucionária em curso no Brasilpermite supor que a pasta do deputado continhajustamente os documentos que analisamos nesteartigo. Na abertura de sua primeira intervenção naCâmara, o líder da UDN, conspirador histórico ealiado antigo da corrente militar conservadora (Skid-more, 1982, p. 283), alegou que “estudos de oficiaissuperiores das nossas Forças Armadas, a respeitoda marcha da guerra revolucionária no Brasil” ti-nham despertado sua “apreensão relativamente ànormalidade da vida constitucional do país” (Pin-to, 1964, p. 63). A partir daí, o parlamentar usoulivremente os teóricos franceses como fonte parasua pregação já francamente golpista.

Nesse sentido, o argumento central do dis-curso de 23 de janeiro era de que a guerra revolucio-nária entrara em sua fase aguda no Brasil, a terceiraetapa da escala criada pelo coronel J. Hogard, doExército francês.10 Com olhos na divulgação de seupronunciamento na imprensa, assegurada peloapoio de grandes jornais à mobilização golpista,Bilac Pinto descreveu em detalhe as cinco fases deHogard, na versão que recebeu de um artigo mili-tar recém-publicado.11 Em seguida, apresentoudocumentos referentes aos “grupos dos onze” deLeonel Brizola como prova de que as duas etapasda GR – consolidação da infra-estrutura e organi-zação da rede de resistência – já tinham sido venci-das. Diante disso, citando outro texto militar (Idem,p. 68), ele pregou a necessidade de organizar oscivis da frente anticomunista.

Ao mesmo tempo, com base em denúnciaque ele próprio formulara em entrevista amplamen-te divulgada nos maiores jornais do país, o deputa-do afirmou que o governo estava fornecendo ar-mamentos aos sindicatos – para uso no momentodo golpe comunista que se preparava (Idem, p. 71).12

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Isso fundamentou seu diagnóstico de que o Brasiljá ingressara na terceira etapa da guerra revolucio-nária, que ele complementou com os seguintes tra-ços: “1) ampla infiltração comunista em todos osescalões do governo; 2) infiltração comunista nasForças Armadas; 3) ampla e ostensiva infiltraçãocomunista nos partidos”. A tudo isso ele acrescia a“promoção de greves, com motivação política os-tensiva” e o “controle das organizações estudantise trabalhistas”. Seu argumento final vinha em se-guida: no Brasil, a guerra psicológica estava em es-tado avançado e sua mensagem central eram as re-formas de base (Idem, pp. 73-76).

Depois do golpe

Nos primeiros anos após o golpe militar de31 de março de 1964, há evidências de que a dou-trina francesa permaneceu como ponto de referên-cia no interior das Forças Armadas. Exemplo detal continuidade foi o relatório final do InquéritoPolicial Militar (IPM) número 709, que investigou ocomunismo no Brasil. Redigido em maio de 1966e publicado em fevereiro de 1967, em quatro volu-mes, pela Biblioteca do Exército, dedicava o seuúltimo tomo à “Ação violenta”, com ênfase na evo-lução da guerra revolucionária nos anos de 1960.O documento partia da idéia-força de que “Guer-ra Revolucionária é a ação comunista pela conquis-ta do mundo” (IPM 709, 1967, p. 7), procurandoenfatizar a centralidade atribuída pelos comunistasàs guerras de libertação nacional como principalfrente de atuação comunista e salientando a impor-tância que o PC soviético conferia à América Lati-na, como palco da revolução mundial depois davitória da Revolução em Cuba, em janeiro de 1959.

Ao mesmo tempo, continuaram as discussõessobre o tema no âmbito do Estado-Maior das For-ças Armadas. Foram também incorporadas as mu-danças ocorridas no seio do Movimento Comunis-ta Internacional (MCI) na segunda metade dos anosde 1960. A conceituação básica permanecia a mes-ma: definia-se a Guerra Revolucionária como “umprocesso permanente de subversão, conduzido poruma adestrada minoria comunista, infiltrada nosprincipais setores da estrutura administrativa e so-cial dos países democráticos, visando à sua desa-gregação e substituição por uma sociedade comu-nista” (Estado-Maior das Forças Armadas, 1969,

p. 2). Mas o EMFA reconhecia que as divergênciasno MCI implicavam na presença de estratégias re-volucionárias diversas: “Enquanto Moscou prega aconquista do poder por meios pacíficos — políti-ca de coexistência pacífica, Pequim clama que so-mente a guerra conduzirá à verdadeira ‘RevoluçãoMundial’” (Idem, p. 12). Por sua vez, o texto opunhaRégis Debray, que via a guerrilha como desencadea-dor de guerra revolucionária, a Mao Tse-tung e Gue-vara, considerando ambos como partidários daeclosão das guerrilhas apenas em condições favorá-veis. Enfim, o documento reconhecia o debate emcurso na esquerda sobre o cenário mais favorável àguerrilha, o campo ou a cidade (Idem, pp. 25-26).

Mas o mais significativo no texto de 1969 erasua tentativa de simplificar o esquema das etapasda guerra revolucionária, abandonando o já men-cionado quadro das cinco etapas proposto porHogard e centrando-se numa divisão mais simplesque propunha dois momentos principais: o da pre-paração e o da execução. Como se vê no Quadro,a eclosão de ações terroristas e o desencadeamentoda guerrilha rural e urbana – que ocorreram no Bra-sil a partir de 1968 – eram considerados os sinais dapassagem da fase de preparação para a de execu-ção da guerra revolucionária. Estava dado, assim,o sinal verde para o envolvimento direto das ForçasArmadas na repressão à luta armada de esquerda.

Fonte: EMFA (1969), c-20-69.

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Nesse sentido, o documento do EMFA de1969 sobre a guerra revolucionária afirma que “asações repressivas não significam, obrigatoriamen-te, a aplicação da expressão militar. Somente emcasos de grave perturbação da ordem interna é quecaberá às Forças Armadas atuar contra as forçasda subversão; embora ações militares de apoio aoutras expressões do poder possam fazer-se ne-cessárias desde os estágios iniciais do movimento”(Idem, p. 29). Tudo indica que o seqüestro do em-baixador norte-americano Elbrick foi o divisor deáguas, o caso de “grave perturbação da ordem inter-na” que conduziu inequivocamente à decisão mili-tar de assumir o controle e o comando das opera-ções contra a guerrilha urbana.

Notas

O primeiro autor a citar, em artigo de 1988 (pp. 238-239), a influência da doutrina francesa no Brasil dosanos de 1960 foi Eliezer Rizzo de Oliveira. Seguiram-se Joaquim Xavier da Silveira (1989, p. 264), o depoi-mento do general Octávio Costa aos pesquisadores doCPDOC (D’Araujo et al., 1994, pp. 77-78), GeraldoCavagnari (1994, p. 47), Rodrigo Patto Sá Motta (2002,p. 261) e Élio Gaspari (2003, pp. 86-87, 105, 135).Esses autores, porém, não desenvolveram o tema.Outra fonte aponta no mesmo sentido. Em A FEB porum soldado, Joaquim Xavier da Silveira dizia: “os centrosde estudos militares brasileiros passaram a atentar paraesse novo fenômeno social-militar, o que talvez venhaa explicar o movimento antiinsurrecional de março de1964. A tão decantada influência americana, nesse mo-vimento político-militar, foi praticamente nula. O histo-riador do futuro, no exame sereno desse episódio, irácertamente encontrar uma certa influência francesa, pelomenos no campo doutrinário” (Silveira, 1989, p. 264).Agradeço a Amanda Mancuso a menção a essa fonte.Não espanta, assim, que em maio de 1959, o coronelAugusto Fragoso assim explicasse à sua audiência daEscola Superior de Guerra brasileira: “a bibliografiafrancesa sobre a GR é, pode-se dizer, a única existente.A bibliografia de origem norte-americana não deu atéagora ao assunto a importância merecida: nos catorzeúltimos números consultados da Military Review (de ja-neiro de 1958 a fevereiro de 1959) não há nenhumestudo, artigo ou tópico que fale, no título, de GuerraRevolucionária, Guerra Insurrecional ou Guerra Subversi-va” (Estado-Maior da Forças Armadas, 1959, p. 5).Publicado no Brasil, em 1963, pela Biblioteca do Exér-cito em parceria com a editora de esquerda CivilizaçãoBrasileira, em tiragem de 9 mil exemplares, particular-mente alta para a época.

O curso foi reproduzido em Estado-Maior da Aeronáu-tica (1963), com acréscimo de uma importante diretrizdo general Humberto de Alencar Castello Branco.Note-se a caracterização do episódio do levante comu-nista como “revolução”, para adaptá-lo melhor à dou-trina francesa, e não “intentona comunista”, termo ofi-cial do discurso militar.O texto encerra-se com um apelo: “Faz este livro cir-cular”.Citado a partir de matéria de O Estado de S. Paulo, de17/10/1961.Para a repercussão dos discursos, ver Carone (1985, p.203).Uma evidência de que essas idéias ainda eram desco-nhecidas dos civis é o erro na grafia do nome do coro-nel francês J. Hogard, em artigo do tão bem informadoCarlos Castello Branco: “terceira etapa na seriação for-mulada por Togard” (1975, p. 168, grifo do autor).“Tenho em mãos o estudo do Tenente-Coronel AntônioFonseca Sobrinho, publicado pelo Estado-Maior doExército”, explicou o deputado (Pinto, 1964, p. 67).A denúncia mostrou-se depois totalmente infundadae, na ocasião, foi o principal alvo das críticas do líderdo governo, o deputado Doutel de Andrade, que exigiurepetidas vezes em plenário que Bilac dissesse ondeestavam as armas.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 187

A INFLUÊNCIA DOUTRINÁRIAFRANCESA SOBRE OSMILITARES BRASILEIROSNOS ANOS DE 1960

João Roberto Martins Filho

Palavras-chave: Forças Armadas; Guer-ra Fria; Governo militar; Teoria da guer-ra; Golpe de 1964.

Com base em documentos de Estado-Maior, este artigo analisa a importaçãopelos militares brasileiros de um corpode idéias gerado na França na segundametade dos anos de 1950. Trata-se dadoutrina conhecida como guerre révolution-naire, voltada para a derrota do movi-mento marxista-leninista e desenvolvidano contexto da Guerra da Argélia. Trazi-das para a América do Sul, inicialmentepor militares argentinos, as idéias france-sas chegaram ao Brasil em 1959, numaconferência pronunciada na Escola Su-perior de Guerra. A partir de então, fo-ram adotadas como doutrina oficial peloEstado-Maior das Forças Armadas, aju-daram na campanha de idéias que prece-deu o golpe de 1954 e continuaram in-fluentes depois da ruptura do processoconstitucional. Ao contrário do que apa-rece na literatura sobre o tema, autoresfranceses, e não norte-americanos, teriamsido a fonte principal do pensamentomilitar brasileiro nos anos de 1960.

FRENCH DOCTRINAIREINFLUENCE ON BRAZILIANMILITARY IN THE 1960s

João Roberto Martins Filho

Keywords: Armed Forces; Cold War;Military government; Theory of war; The1964 coup d’état.

Based on official military documents, thearticle approaches the adoption of Frenchmilitary doctrines by the Brazilian militaryin the second half of the 1950s. Moreexactly, the article deals with the doctrineknown as guerre révolutionnaire, whose aimwas to defeat the Marxist-Leninist move-ment, in the context of the Algerian War.Brought to South America initially bythe Argentine military, the French ideashave landed in Brazil in 1959, thanks toa lecture read at Escola Superior de Guer-ra. In the following years, they were adop-ted as official doctrine by the BrazilianArmed Forces Chiefs of Staff (EMFA).They were also used as ideological ammu-nition in the juncture preceding the mili-tary coup d’état of March 1964 and itsinfluence was felt in the years after thecoup. Contrary to what is accepted by themainstream literature, French writers, notAmerican ones, were the main source ofBrazilian military ideas in the sixties.

L’INFLUENCE DOCTRINAIREFRANÇAISE SUR LESMILITAIRES BRÉSILIENSDANS LES ANNÉES SOIXANTE

João Roberto Martins Filho

Mots-clés: Forces Armées; Guerre Froi-de; Gouvernement militaire; Théorie dela guerre; Coup d’État de 1964.

Ayant pour base des documents de l’ÉtatMajor, cet article analyse l’importation,par les militaires brésiliens, d’un ensembled’idées nées en France dans la secondemoitié des années 1950. Il s’agit de ladoctrine connue sous le nom de guerrerévolutionnaire, tournée vers la défaite dumouvement marxiste-léniniste et déve-loppée dans le contexte de la Guerred’Algérie. Transposées initialement enAmérique du Sud par des militaires ar-gentins, les idées françaises sont arrivéesau Brésil en 1959, à l’occasion d’une con-férence prononcée à l’École Supérieurede Guerre. À partir de lá, ces idées ont étéadoptées comme doctrine officielle parl’État Major des Forces Armées; elles ontaidé à la campagne d’idées qui a précédéle coup d’État de 1964 et ont continué àavoir de l’influence après la rupture duprocessus constitutionnel. Contrairementà ce qui apparaît dans la littérature sur lesujet, les auteurs français et nord-amé-ricains auraient été la source principalede la pensée militaire brésilienne au coursdes années 1960.