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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMThlSTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FO&\1AÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A MISSÃO HISTÓRICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL NA ÁREA DA CULTURA DISSERTAÇÃO APRESENTADA À ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA ORIENTAÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SERGIO LUIZ DIAS PORTELLA Rio de Janeiro, 2001.

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMThlSTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FO&\1AÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A MISSÃO HISTÓRICA DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA FEDERAL NA ÁREA DA CULTURA

DISSERTAÇÃO APRESENTADA À ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA ORIENTAÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

SERGIO LUIZ DIAS PORTELLA

Rio de Janeiro, 2001.

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO pírBLICA

A MISSÃO HISTÓRICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL

NA ÁREA DA CULTURA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR SERGIO LUIZ DIAS PORTELLA

E APROVADA EM PELA COMISSÃO EXAMINADORA

QUES - DOUTOR

~ FRANCISCO WEFFORT - DOUTOR

A todos que agradeço, dedico .•.

à memória de pai: é uma felicidade que não pude dar a ele em vida.

à Simone, esposa carinhosa e companheira paciente: estímulo e apoio constantes, sem eles a chance estaria perdida.

a meus filhos, Lucas Manuela Caio e Luiza: refrigério e zelo, que me fazem avançar e consolidar.

aos mestres, e em especial ao professor Enrique Saravia: a virtude de ser capaz de possibilitar a construção, virtude incomum e nobre hoje em dia.

E como muitos foram os amigos e colaboradores, obrigado,

A todos dedico e agradeço ...

RESUMO

o objetivo do trabalho foi delimitar um núcleo reflexivo ou um núcleo de ações que pudessem ser indicadores da missão da administração pública federal de cultura, a partir do estudo da evolução histórica de suas instituições.

O estudo conclui que o período que se configura como mais denso, quando se discute a questão da missão institucional da área federal de cultura, é anterior à criação do Ministério da Cultura em 1985 e localiza-se entre o final da década de 70 e início da década de 80. Este se liga a um período ainda mais anterior na década de 30, articulando os trabalhos e os pensamentos de Mário de Andrade (1935) e Aloísio Magalhães (1980), respectivamente.

O trabalho filia-se ao ambiente dos estudos de política pública e cobre o período de 1935 a outubro de 2000. E o atual período de 1991 a 2000 é avaliado, segundo as perspectivas desse núcleo de ações e reflexões em tomo do ano de 1980.

Palavras-chaves: I. Política Pública; 11. Política Cultural; 111. Estado e Cultura; IV. Aloísio Magalhães.

ABSTRACT

The intend of this study was the delimitation of a reflective nucleus ou a nucleus of activities wich could be indicators of the mission of the public administration concerning Culture on national basis, starting from the histoical evolution of its institutions.

Considering Culture as an institutional task, the study reveals that the period of more intense configuration is the one anterior to the creation of de Ministry of Culture in 1985, and particularly evident between the late 70's and the beginning of the 80's. This period is linked to an earlier one, in the 30's, combining the work and ideas of Mario de Andrade (1935) and Aloísio Magalhães (1980).

The work is inserted in the ambit of studies on public policy covering the period between 1935 and October, 2000. The present period from 1999 at 2000 is evaluated according to the perspectives of this nucleus of actions and reflections based on the year 1980.

Keywords: I. Public Policy; 11. Cultural Policy: 111. State and Culture; IV. Aloísio Magalhães.

IV

Apresentação

Introdução

Parte I: 1990 a 1991

ÍNDICE

o Primeiro ano do Governo Collor: o Desmonte da Cultura

A Resistência ao Primeiro Ano do Governo Collor

Parte 11: De 1936 a 1989

Introdução: AM reflete MA

Capítulo I: Ante-projeto de Mário

Capítulo 11: O Bem Cultural Abaporu

Capítulo lI!: Lembranças do Futuro

Capítulo IV: O Bodoque Bem Manejado

Capítulo V: A degustação do que é propriamente cultural

Capítulo VI: Em respeito à memória de Aloísio

Parte 111: De 1991 até hoje

Introdução: O Julgamento Antropofágico

A Primeira Digressão: Ética e Ecologia Humana

A Segunda Digressão: Memória e Identidade

A Terceira Digressão: a Matéria Invisível

O Decreto e a Fortaleza da Carta

VII - IX

X - XIII

14-30

14

27

31-106

31

34

48

63

71

78

97

107 -146

107

120

129

131

132

v

Bibliografia

Anexos

Anexo I: O Manifesto Antropófago

Anexo 11: CNRC

146-152

153-158

159-162

VI

Apresentação

Seria possível através da pesquisa histórica de sua evolução delimitar um núcleo

reflexivo ou um núcleo de ações que pudessem ser indicadores da missão da administração

pública federal de cultura? Foi esta busca que norteou todo o trabalho de pesquisa, com

suas surpresas que apontaram necessárias mudanças de rumo e a própria expressão no

formato escrito desta dissertação.

A partir das surpresas, uma especial mudança de rumo deve ser destacada pois

favorece a leitura do material que se segue.

Acreditava-se que, para efeito de realização do objetivo final proposto, o período de

análise iria do ano de 1986 até os dias atuais, que praticamente coincidia com a criação do

Ministério da Cultura em 1985. O ano de 1986 inaugura no Brasil a criação de mecanismos

de beneficios à cultura utilizando-se deduções fiscais do Imposto de Renda., com o advento

da Lei Sarney. Esta Lei funciona até 1990, quando foi revogada. Em 1991, o Governo

federal resolveu reinstituir mecanismos da Lei Sarney com várias modificações,

estabelecendo novo formato e criando a Lei 8.313 de dezembro de 1991, que ficou

conhecida como Lei Rouanet. Ainda neste processo temporal, era importante destacar o

Decreto l.493 de 17 de maio de 1995 que aumenta de 2% para 5% o limite de dedução do

Imposto de Renda devido em favor de projetos culturais devidamente aprovados pela

Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a CNlC. É com este decreto que a gestão do

Ministro Weffort se inicia na prática, e com ela todos os desdobramentos que se

considerava importantes para o objetivo do projeto de pesquisa. E, portanto, o período de

1995 a 2000, era considerado o mais relevante.

VII

No entanto, o trabalho de pesquisa demonstrou que, este não era o período mais

relevante, nem muito menos os anos anteriormente citados. O período que se configurava

como mais denso, quando se discutia a questão da missão institucional da área federal de

cultura, era muito anterior e localizava-se entre o final da década de 70 e início da década

de 80. Este se conectava com um período mais anterior ainda na década de 30. Esta

surpresa determinou, outros estudos, mais históricos, e, por fim, uma nova estrutura de

exposição dos resultados encontrados.

Dessa forma, logo depois à Introdução - que visa filiar a exposição da pesquisa

propriamente dita ao ambiente dos estudos de política pública -, segue-se a Primeira Parte

da dissertação que trata especificamente dos anos de 1990 a 1991. A Segunda Parte vai de

1935 a 1989. E, por fim, a Terceira Parte conclusiva segue de 1991 até outubro de 2000.

Dito isto, podemos responder à questão: Por que iniciar a exposição dos trabalhos

desta monografia com o ano Collor/lpojuca Pontes, correspondente à Parte I? Porque trata­

se de um terremoto, de um terrível terremoto. À distância, a partir de uma metáfora

geológica, pode-se falar de uma fratura - como o terremoto Big One que se espera na

Califórnia. Mas se diminuirmos a distância - para parâmetros mais humanos - podemos

falar do terremoto que foi a gestão Ipojuca Pontes do ponto-de-vista de seus dramas

pessoais, com todas as suas conseqüências e tragédias conexas. A mais grave de todas é a

ruptura com o passado, pois cria uma incompreensão da estrutura do administração pública

federal de cultura, por parte de seus gestores maiores posteriores, alinhando ao seu objetivo

principal a gestão das leis de incentivo a cultura. Muitos podem objetar e dizer que a

primeira ruptura acontece em 1985, com a criação do próprio Ministério da Cultura. Mas

aqui preferimos dizer que houve apenas um salto e que a continuidade poderia ser

VIII

restabeleci da posteriormente, como a iniciou Celso Furtado. E, é por essa razão que tal

período está incluso na Parte 11, e certamente é muito diferente do que acontece em 1990.

Na Parte lI, portanto, fazemos um trabalho de arqueologia. Diante das ruínas do

terremoto de 1990, perguntamos: Existia alguma civilização aqui? A resposta nos leva ao

início da década de 80 e esta, há uma década mais anterior ainda, a de 30, articulando os

trabalhos e os pensamentos de Mário de Andrade e Aloísio Magalhães. Sim, existia uma

grande civilização aqui e nosso esforço é descrevê-la, demonstrando como as reflexões e as

ações na busca da construção de uma missão pública para a área federal de cultura estavam

se realizando.

Na Parte m, trabalhamos as perspectivas dos novos construtores, restauradores de

ruínas, reinterpretando seus pedaços com ou sem as plantas originais ou achando-as

irrelevantes ou não. Na Parte 1I1, o período de 1991 a outubro de 2000 é julgado, segundo

as perspectivas da Parte 11. Já a Parte I, não fosse pelos desastres e mortos, poderia

simplesmente ser esquecida.

Sergio Portella

Em outubro/2000

IX

INTRODUÇÃO

Esta dissertação A missão histórica da administração pública federal na área da

cultura apresentada ao Curso de Mestrado em Administração Pública da Escola Brasileira

de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas teve como objetivo central

responder à questão sobre qual é, segundo a perspectiva de sua história e evolução, a

missão institucional da administração pública federal na área de cultura, segundo os

parâmetros criados pelos pesquisadores e executores de políticas públicas européias e

amencanas.

1.1. Políticas públicas

As administrações européias e americanas foram obrigadas a responder com maior

rapidez à modificação da estrutura do poder público caracterizada: pela dispersão da

autoridade política em instituições descentralizadas, pela fragmentação da decisão geral em

estruturas particulares só relacionadas funcionalmente, e pela crescente conversão do

Estado em uma estrutura não superior politicamente, mas ativa dentro da dinâmica social.

Este novo Estado deixa de ser soberano e racional, transformando-se em relacional e

limitado.

Neste sentido, pode-se destacar algumas reflexões sobre o assunto feitas por

Subirats, que concluiu que analisar políticas públicas parece se constituir num bom

caminho para se conseguir a melhoria do funcionamento da administração pública. Tais

análises não gerariam um manual de soluções para ser aplicado em qualquer situação. Mas,

x

à medida que se aumente a utilização destas técnicas. com sua maior prática, pode-se

chegar a considerações prescritivas sobre a realidade. (Subirats, 1989)

As políticas públicas, enquanto técnicas atuais de administração do Estado, buscam

dar conta: da rapidez com que o contexto político se modifica rotineiramente, do impacto

das novas tecnologias, da rápida obsolescência do conhecimento, do fenômeno da

globalização, e de que maneira as organizações públicas podem responder à

informatização. Tudo isso acompanhado de um aumento da participação da sociedade em

sua gestão, da legitimidade da sua existência enquanto organização, proporcionando formas

de avaliação de seu impacto social, e conseguindo gerar os seus financiamentos.

1.2. Políticas públicas em países em desenvolvimento

Neste ponto deve-se levar em conta algumas características dos países em

desenvolvimento, e de suas conseqüências para a utilização de análises de políticas públicas

nesses países, delimitadas por Saasa.

Primeiro que, nesses países, tanto a elite política como a burocrática moldam mais a

opinião das massas do que estas, os pontos de vista das lideranças. Segundo que, deve-se

sempre considerar o ambiente interno e externo do país em estudo, sempre muito

dependente dos contextos políticos internacionais e da própria percepção de seus atores.

Terceiro que, no caso dos países em desenvolvimento, a teoria da tomada de decisão

racional pode ser contestada, no sentido de que taís tomadores de decisão não dispõem de

tempo, informação, capacidade analítica e recursos financeiros, nem de estrutura

organizacional para seguir o processo prescrito pela formulação da política.

XI

Nesses países, o estilo da formulação das políticas públicas leva às seguintes

conclusões: a) a racionalidade prescrita pelo modelo é inatingível; b) o risco e a incerteza

caracterizam os processos decisórios; c) a fragmentação na formulação de políticas em

geral está ausente; d) a formulação é centralizada, com limitados insumos sociais; e) para

os indivíduos tomadores de decisões há um grande potencial da liderança política orientar

as tendências de formulação de políticas; t) existe boa possibilidade de erros de cálculo na

formulação das políticas.

A formulação da política pública é uma atividade de tal modo complexa que a sua

concepção como uma dicotomia de fim-meios, sustentada por quase todas as teorias

tradicionais, seria falaciosa. Ela não evolui linearmente, conforme os modelos do sistema

de insumos-produto mostraram, mas, sim, num padrão multi direcional em que vários

fatores interagem e exercem influência mútua nesse processo complexo. (Saasa, 1985)

1.3. Políticas públicas em cultura

Destacada a análise de políticas públicas como um caminho de razoável sucesso

para a melhoria do funcionamento e das prestações de serviços da administração pública,

deve-se portanto relativizar o seu padrão europeu e/ou americano para o contexto dos

países em desenvolvimento.

Mas o padrão de análise de políticas públicas resultante de outras esferas da

administração pública também não deve ser relativizado no momento em que este é

aplicado à esfera do sistema de cultura? O instrumental racional para o desenvolvimento

das políticas públicas seria capaz de dar conta das singularidades expressivas, simbólicas, e

na maioria das vezes subjetivas das ações culturais? Como medí-Ias?

XII

A avaliação das políticas torna-se aqui especialmente crítica. Por exemplo, uma

peça de teatro de pouco público significa que é de menor qualidade, culturalmente falando?

A avaliação de ações culturais supõe uma técnica e uma problemática adaptadas.

Como afirma Saez, deve-se construir uma problemática transdisciplinar, onde o saber do

analista não se limite apenas às tecnologias da ação pública. Pois, nesse caso, a maior

liberação das capacidades de expressão e da criatividade dos indivíduos, ou participação

social mais ativa são - por exemplo - efeitos importantes de uma política cultural que

poderiam ser desmerecidos em uma análise tradicional. Análise que não considera a

transdisciplinaridade da questão (Saez, 1985).

Trata-se aqui de entrar, por fim, no campo ainda recém nascido dos indicadores

culturais: "Cultura é abstrata. Portanto só pode ser observada indiretamente. Cada simples

materialização da cultura, evidentemente, pode ser observada e descrita em grandes

detalhes. Mas a cultura como tal - uma classe de fenômeno abstrato - não pode ser

observada diretamente. Ela deve ser estudada através de tipos de indicadores" (Rosengren,

1985: 14). Indicadores que se diferenciam dos indicadores econômicos e dos sociais, que

possibilitariam não só a comparabilidade das situações mas também a sua medição.

Discussão importante, contudo ainda pouco desenvolvida em todo o mundo, e iniciada por

Gerbner em 1969, com seus estudos sobre a TV americana. E no Brasil, certamente por

Aloísio Magalhães em seus primeiros trabalhos realizados no Centro Nacional de

Referência Cultural, década de 70.

Dessa forma, uma das tarefas da pesquisa foi adequar o instrumental da análise de

políticas públicas à área de cultura, no Brasil, associando-a a descrição de sua evolução

histórica no período que vai de 1935 aos dias atuais de outubro de 2000.

XIII

PARTE I: De1990 a 1991

o Primeiro Ano do Governo Collor - o desmonte da Cultura

Ao anunciar sua reforma administrativa, o Governo Collor (1990-91) apresentou-se

como o arauto da modernidade, cuja maior tarefa seria imprimir ao Estado brasileiro

competência e rapidez na execução de sua política, por meio de uma completa redefinição

dos objetivos da máquina administrativa federal e de uma drástica redução de suas

dimensões.

Mas, apesar do discurso, o que se verificou, na prática, foi uma total ausência de

critérios na formulação da reforma administrativa. O governo apenas exibiu a sua

incapacidade administrativa, furtando-se a cumprir atribuições do Estado definidas pela

Constituição Federal. Eximindo-se de tais atribuições, o Governo Collor se entregou à tarefa

de desaparelhar o Estado, tornando-o inoperante e propondo um corte linear de pessoal,

sem uma ampla discussão de critérios de dispensa e sem uma análise aprofundada da

situação real das instituições atingidas. E o marketing político do governo passou a

extravasar um frontal desrespeito ao servidor público, transformado-o em inimigo número

um da sociedade brasileira.

Toda a máquina administrativa do Governo Federal sofreu com a falta de critérios. O

Estado teve muitas de suas atividades fundamentais simplesmente paralisadas, instalando-se

o caos, a incompetência e a continuidade de velhas práticas de desmandos. A situação

chegou ao ápice nas instituições culturais.

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Nenhuma outra área da administração pública foi tão atingida quanto a da cultura. E

nenhuma de grandes instituições culturais coordenadoras de política nacionais para o setor

permaneceu imune ao efeito devastador das medidas provisórias decretadas em março de

1990. Estas medidas, ainda que mais tarde tenham sido alteradas por projetos de conversão

elaborados pelo Congresso, não definiram nem a forma, nem o conteúdo e nem as diretrizes

básicas das instituições federais que deveriam suceder as anteriores, sobretudo no que se

refere ao Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (ffiAC). Permaneceu um vazio institucional,

pela indefinição de princípios que deveriam reger a ação do Estado na área cultural.

A lógica que presidiu a reforma administrativa do Governo Collor sobrepunha as

razões de mercado à ação administrativa do Estado. E nesse campo de batalha, essa foi uma

das posições que enfrentou uma segunda representada basicamente pelo corpo técnico das

instituições e muitas entidades civis e privadas. Para esta segunda posição, no campo da

cultura, porém, os princípios de mercado devem ser relativizados. Para ela, em relação a

determinadas faixas sociais, a oferta de certos produtos pode ser farta e ágil o bastante para

satisfazer a demanda público-receptor, mas, ainda assim, há uma extensa parcela da

população brasileira que permaneceria à margem da produção e dos circuitos de distribuição

cultural do país. A ação do mercado, neste caso, apenas exacerbaria diferenças, favorecendo

uma padronização especialmente daninha para as atividades culturais, no que se refere à sua

qualidade, sua diversificação, difusão e à formação e ampliação de seu público-receptor.

Neste sentido a ação do Estado é essencial como contrapartida a um mercado que tende a

ser cada vez mais restrito e elitista e como garantia da diversidade democrática de

manifestações culturais.

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Especialmente para esta segunda posição, no campo da preservação da memória e

do patrimônio cultural brasileiros, a atuação do Estado reveste-se de papel civilizatório de

caráter estratégico, que transcende em muito às determinações estritas do mercado e se

coloca no plano da constituição da nacionalidade. Ao Estado cabe atuar na preservação da

pluralidade de bens culturais, materiais e imateriais, garantindo a estes bens o acesso de

segmentos cada vez maiores da população. Neste contexto, não há como medir o custo da

ação estatal apenas do ponto de vista financeiro. Deixando-se de lado o fato de que, em

1990, todos os recursos destinados à cultura somavam apenas 0,05% do orçamento da

União, e de que os servidores federais desta área somavam, em todo o Brasil, um contigente

de pouco mais de três mil pessoas, o anunciado "enxugamento" das instituições culturais

significaria o seu esvaziamento e a sua total inoperância.

No caso de sua tarefa patrimonial, especificamente, apesar da amplitude da tarefa de

guarda, proteção, valorização e exposição ao público do patrimônio cultural e natural

brasileiro, as instituições responsáveis dentro da área de cultura do governo sempre

conviveram com um quadro bastante reduzido de pessoal. Até o início da reforma

administrativa do Governo Collor, a Fundação Pró-Memória contava com l.676 servidores

no seu quadro permanente, não estando contabilizado neste número o pessoal contratado

pelo regime de prestação de serviços, notadamente os encarregados de obras, responsáveis,

em última instância, pela restauração de muitos bens públicos. Contando com os prestadores

de serviços, o quadro funcional chegava a apenas 2.112 servidores.

A reforma administrativa, porém, considerou que o quadro funcional para realizar

todas as tarefas deveria se resumir, nas questões de patrimônio, a exatos l.055 servidores.

Ou seja: a reforma do Governo Collor previu um corte de cerca de 50% de pessoal. Tal

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perspectiva inviabilizava por completo o cumprimento das obrigações constitucionais do

Estado diante deste vasto patrimônio público, em especial nas áreas mais frágeis, naqueles

que são mais dificeis de serem preservados ou que precisavam de atendimento imediato

frente ao perigo de perda irreversível.

A essas duas posições somava-se uma terceira posição que defendia uma posição

entremeios às anteriores de que o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, recém criado

pela reforma do Governo Collor e que reaglutinava os órgãos federais responsáveis pela

preservação dos bens tombados, deveria restringir-se ao papel de órgão normatizador e

repassador de recursos financeiros. Desta forma, este instituto contaria com uma estrutura

administrativa bem reduzida de modo a efetuar repasses aos estados, municípios e

instituições privadas, garantindo por meio deles a execução descentralizada da política de

preservação do patrimônio cultural e natural. Esta posição era interessante para aqueles

primeiros que tocavam a reforma sem critérios do Governo Collor, mas completamente

inaceitável para os defensores da segunda posição que argumentavam o total despreparo dos

estados e municípios para receberem responsabilidades e recursos na área patrimonial.

Nessa discussão, a menos fundamentada era aquela defendida pela área central do

Governo Collor: a do mercado, que acabava se escorando naqueles que viam a

descentralização proposta pela Constituição de 88 como a solução para os dilemas da área

federal de cultura. Já para aqueles que defendiam o fortalecimento das áreas federais,

contrapunha-se a esta visão simplista da atuação do Governo Federal a própria experiência

histórica. Para eles, a experiência mostrava que a busca da cooperação com governos

estaduais e municipais - e mesmo da iniciativa privada - há muito tempo se constituía prática

da administração federal, com resultados quase sempre insatisfatórios. Tal experiência

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demonstrava que toda vez que o Estado brasileiro deixou de ter meios para fazer cumprir os

dispositivos constitucionais de preservação cultural a situação se agravou a um ponto

insustentável. Portanto, o Estado não poderia abrir mão de seu papel civilizatório

estratégico, como agente sintetizador de experiências regionais, coordenador de políticas

nacionais e como pólo difusor de procedimentos técnicos adequados.

Neste sentido, a divergência apontada na visão política das estratégias de

cumprimento das tarefas constitucionais do Estado opõe eficiência e agilidade, de um lado,

versus ineficiência e burocratismo, do outro. Esta dicotomia, na verdade, buscava ser

resolvida por todas as posições em jogo, lutando contra o que fora o "normal e o comum"

numa parte preponderante da história política brasileira: a ação clientelista, personalista,

fisiológica e desagregadora de esforços de modernização da administração pública. Esta era

uma encruzilhada que se apresentava à ação de preservação patrimonial no Brasil naquele

momento, ação herdeira de Mario de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio

Magalhães.

Os defensores dessa tradição, baseada principalmente no corpo técnico das

instituições, destacavam que ao se considerar as dimensões do país e a diversidade regional

que o caracteriza, não existiria outra forma de atuação do poder público, nesta área, senão a

de criar com sua ação um processo civilizatório nacional que integrasse as diversas formas

de manifestações regionais naquilo que se denomina como o patrimônio cultural brasileiro e

que não pode ser pensado apenas como um somatório de culturas agregadas. Caso

contrário, a Constituição não poderia ser respeitada ao atribuir à ação do Estado a

construção da cidadania e da identidade nacionais. Os artigos 215 e 216 da Constituição

Federal são bastantes claros e objetivos no que se refere às obrigações do Estado com

18

relação ao pleno exercício dos direitos culturais do cidadão, cabendo ao Poder Público

promover e proteger o patrimônio cultural e natural brasileiro.

Sem dúvida que para cumprir um compromisso deste porte, reclama da instituição

representante do Poder Público condições técnicas e administrativas sofisticadas, capazes de

integrar diversas demandas regionais num conjunto articulado de políticas nacionais de

preservação do patrimônio cultural brasileiro. Essas condições técnicas e administrativas

foram, na verdade, historicamente construídas por meio de prática e reflexão das agências

federais do patrimônio brasileiro, constituindo a sua própria razão de funcionamento, e a sua

legitimidade até aquele momento da História brasileira.

A tradição histórica de exigir a atuação do Estado na defesa e preservação do

patrimônio nacional foi mantida pela Constituição de 88. Foram igualmente

institucionalizadas as formas de atuação que caracterizam a ação governamental. Dentre as

diversas vertentes da ação estatal, a primeira se expressa na compreensão de que o

patrimônio nacional é composto por uma pluralidade de bens culturais e nacionais, devendo

as ações de preservação se restringirem, de forma específica, às partes de seu amplo

conjunto, sejam elas bens arquitetônicos, sítios históricos urbanos, bens naturais de interesse

cultural ou paisagistico, sítios e bens arqueológicos, bens móveis e integrados e bens

arquivísticos e bibliográficos de interesse cultural.

Na década de 1930, o Estado brasileiro orgaruzou a sua atuação de defesa e

preservação do patrimônio nacional. Foram envolvídos nesta estruturação vários intelectuais

brasileiros, como Lúcio Costa, Mário de Andrade, Rodrigo de Melo Franco e Carlos

Drummond de Andrade. Neste contexto surgiu o decreto-lei no. 25 de 30 de novembro de

1937, que ampliava a ação legal do Estado na preservação dos bens culturais. Este

19

instrumento legal, ainda hoje em vigor, possibilitou o início de uma adminístração

sistemática da política de preservação.

Já na década de 1930, portanto, a ação do Estado pretendia atingir a totalidade e a

pluralidade dos bens culturais e naturais signíficativos, com medidas de proteção,

conservação e fiscalização. Tal concepção das tarefas do Estado foi mantida até o presente,

passando por diversos governos federais, justificando sua necessidade, além de estarem de

acordo com as atuais recomendações da Unesco, que estabelecem que a preservação do

patrimônio histórico e artístico de cada nação deve abranger um conjunto de ações visando a

inventariar, documentar, reconhecer, proteger (pelo tombamento ou outras formas de

acautelamento), conservar (restaurar, manter, revitalizar, tomar acessível e referenciável),

fiscalizar e promover os bens culturais e naturais.

A segunda vertente é museológica, caracterizada pela administração de ações de

preservação de bens organizados em coleções, segundo critérios de ordem histórica, artística

ou científica, e administrados por instituições com a função de permitir o acesso da

comunidade ao bem protegido, por meio de sua exposição e do referenciamento de seus

significados nos museus.

Neste ponto, a ação do Governo Federal remonta a 1922, quando foi criado o

Museu Histórico Nacional, ao qual se somaram outros museus nacionais, como o Museu de

Belas Artes, o Museu Imperial, o Museu da República, os museus regionais, os museus

evocativos e as casas históricas.

A terceira vertente é originária da ação do Centro Nacional de Referência Cultural

(CNRC), criado na década de 1970 por Aloísio Magalhães. Esta vertente é caracterizada por

ações de preservação de bens e processos integrantes da cultura popular. Tais bens abarcam

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20

uma vasta gama de processos e modos de criar, fazer e viver, além de formas de expressão.

São as tecnologias patrimoniais, o artesanato popular, as línguas, as expressões culturais e

artísticas regionais, como danças, músicas, lendas, tradição oral e escrita, entre outros

processos culturais.

Não obstante esse aparato conceitual e essa especificidade no trato que requerem os

bens culturais de caráter processual, as atividades dessa vertente da ação patrimonial estão

subordinadas aos mesmos objetivos que determinam as ações de preservação nas demais

vertentes.

Assim, às ações propriamente de referência cultural (conhecimento) se somam

àquelas vinculadas ao reconhecimento legal e administrativo (tombamento, registro e outras

formas de acautelamento) e as de conservação (revitalização, divulgação, exposição etc).

As agências federais de preservação patrimonial sempre se organizaram de acordo

com objetivos e dimensões nacionais. Tais objetivos são: a definição e a coordenação de

políticas nacionais de preservação patrimonial~ a consolidação (síntese) das experiências

regionais numa política nacionalmente abrangente~ a execução direta e descentralizada de

atividades e obras de caráter exemplar e pedagógico no campo da preservação~ a

transferência de recursos tecnológicos e metodológicos da área central para as áreas

regionais~ busca de parceiros institucionais entre estados, municípios e entidades

particulares.

Esse "modo de fazer" sempre foi a maIS importante herança deixada pelas

instituições federais de patrimônio desde 1937. Até aquele ano de 1990, ela consagrava o

papel de que a área central deve ter como cabeça de um sistema executivo descentralizado, à

qual compete a geração e a coordenação de políticas nacionais, a síntese e a

21

compatibilização das ações regionais, a produção e a transferência às áreas de ponta de

conhecimento, normas, critérios, métodos e técnicas. Nela ficaria consagrado também o

papel das áreas estaduais ou regionais, como responsáveis pelas coordenações regionais de

política federal do patrimônio; pela articulação de parcerias regionais, pela difusão de

recursos tecnológicos e pela execução direta de obras e atividades de caráter exemplar e

pedagógico para a instituição como um todo e suas parcerias.

É importante ressaltar que a própria instituição, ao longo de mais de 50 anos, criou,

especializou e aperfeiçoou sua massa critica, uma vez que não existiam no país cursos de

formação em preservação do patrimônio cultural. Os técnicos da SPHANlPró-Memória não

são apenas os executores da política federal nesta área. Eles constituem um inestimável

patrimônio para a instituição, uma vez que detêm os conhecimentos técnicos necessários e a

memória dos regulamentos e limites a que a ação institucional se encontra exposta,

conhecimentos e memórias muitas vezes apreendidos na prática quotidiana.

Por esta razão, toda a orientação da política federal de patrimônio, em todos as

gestões presidenciais desde 1937, foi a de preservar e prestigiar o corpo técnico da

instituição, corpo técnico este ainda demasiado pequeno e numericamente deficiente para a

enorme tarefa, mas competente, eficaz e responsável pela autoridade do órgão.

Com relação à tentativa de reforma administrativa articulada e coerente empreendida

pelo Governo Collor, esta foi uma das principais conseqüências: a dispersão e a degradação

do corpo técnico das instituições, que dificilmente poderão ser corrigidos em prazo curto.

Não poderá ser refeito rapidamente o que demorou 50 anos para ser construído. O

esvaziamento técnico, por exemplo, do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural

corresponderia ao seu desmantelamento político e institucional. Por esta razão, a agência

22

federal de preservação sempre foi ciosa do adensamento e da qualificação de sua área

técnica.

Mas as dificuldades da formação de políticas coerentes de administração para a área

cultural já vinham acontecendo desde o Governo Sarney, que buscava descentralizar

rapidamente, a partir das prerrogativas da Constituição de 88, tentando restringir a área

central à repassadora de recursos financeiros, segundo interesses clientelistas, personalistas e

fisiológicos, já que estados e municípios não estavam tecnicamente preparados para suas

funções, nem a sociedade e a área federal possuíam mecanismos formais de controle dessas

funções. A tendência a substituir o primado da competência técnica por critérios

burocráticos sempre existiu como possibilidade. Além disso, o rigor técnico na

administração da política de preservação do patrimônio cultural brasileiro contrariou

inúmeros interesses, resultando em pressões políticas e econômicas.

O golpe decisivo, porém, deveu-se à ascensão do clientelismo generalizado na vida

política nacional, durante as negociações congressuais que resultaram na prorrogação de

mandato presidencial de José Sarney. Denominada pela imprensa de política do é-dando­

que-se-recebe, a proposta do bloco parlamentar autodenominado Centrão atrelou

definitivamente a política do Governo Sarney às práticas do clientelismo, do personalismo e

da fisiologia, que se traduzia, no discurso e no cotidiano, pelo esvaziamento da atuação

institucional de seu conteúdo técnico.

As instituições da área da cultura não foram exceções à regra. Suas áreas técnicas

foram esvaziadas, prevalecendo os critérios falsamente administrativos que visavam a

transformá-las em repassadoras de recursos aos estados, municípios e entidades privadas.

Curiosamente, as mesmas posições clientelistas apressam-se em organizar o assédio final às

23

entidades culturais, propondo ao Governo Collor uma nova fase, em nome da

descentralização, do federalismo e do municipalismo.

Portanto, para o corpo técnico das instituições federais, mesmo antes de assumir o

novo governo, já era tramada a desmantelação técnica e institucional da SPHANlPró­

Memória. Para eles, lamentavelmente, encontravam-se na Comissão de Transição do

Governo Collor defensores da política do clientelismo e do fisiologismo generalizados.

Algumas dessas forças haviam conquistado postos na própria direção da SPHANlPró­

Memória ao fim do Governo Sarney, período que lograram paralisar boa parte da

instituição.

De qualquer modo, descolorindo as ideologias, este quadro projetava para o novo

governo uma perspectiva sombria de continuísmo no esvaziamento técnico da área da

cultura. A política de desmantelamento do papel estratégico desempenhado pelas

instituições federais, inclusive para realizar a descentralização administrativa, seja na área

responsável pelo patrimônio histórico e artístico nacional ou não, confrontava diretamente

com o discurso da eficácia e da competência administrativa que o Governo Collor vinha

sistematicamente veiculando.

Os novos dispositivos constitucionais cnaram melhor distribuição das receitas

públicas entre as instâncias federativas, ocasionando a necessidade de reestruturação dos

papéis e funções da União, dos estados e municípios. Além dos aspectos orçamentários,

estados e municípios foram fortalecidos pelo quadro político democrático, ampliando suas

demandas e capacidades de influência junto à União.

Este quadro político resultou das lutas democráticas da sociedade civil brasileira e

poderia ensejar uma proficua cooperação entre os governos federal, estaduais e municipais,

24

as entidades civis e as empresas privadas, em busca de agilidade, eficácia, descentralização e

participação ampla nas ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Entretanto, caso fosse desarticulada a função coordenadora da agência federal

resultante de sua competência técnica acumulada, a ação preservacionista - aqui o corpo

técnico da área central tinha razão - poderia cair prisioneira dos interesses políticos

fisiológicos e clientelistas. Estas tendências estruturais impõem ao Governo federal a opção

entre dois caminhos possíveis. O primeiro afirma que, ao lado dos recursos financeiros, a

União pode e deve compatibilizar, sistematizar e transferir procedimentos técnicos e

metodológicos às instituições públicas, estaduais ou municipais, e as entidades privadas que

proponham a atuar na preservação do patrimônio cultural brasileiro. Desta forma seria

possível ampliar a extensão e a eficácia da ação preservacionista.

Tal ampliação, no entanto, ao mesmo tempo que implica a descentralização

federativa das ações, exige igualmente uma compatibilização nacional capaz de integrar as

diversas experiências regionais. Este caminho estabelece um vínculo de necessidade e

cooperação mútua entre o órgão federal e as diversas instâncias federativas. Este caminho

reafirma o papel estratégico do Estado por meio da administração da política nacional de

preservação do patrimônio cultural brasileiro, incentivando e elevando as iniciativas

regionais bem como compatibilizando-as através de uma coordenação nacional. Isso impõe,

portanto, um organismo eficiente e com competência técnica.

O segundo caminho é a opção pelo clientelismo, que não efetiva laços de cooperação

técnica entre as instâncias federativas, não integra nacionalmente as atividades regionais, não

as compatibiliza e nem as eleva a uma dimensão política nacional. O esvaziamento da

competência e do papel técnico dos órgãos federais destinados à cultura serviria, então,

25

apenas aos interesses privados de cunho personalista de eventuais dirigentes e beneficiários

das políticas fisiológicas.

O Governo Federal, naquele momento no primeiro ano de Governo Collor, por

ignorância, por desprezo, ou por outros interesses, pareceu optar pelo segundo caminho no

que se refere à área de cultura. Pelo menos foi o que fez parecer a ameaça de demissão que

pairou sobre grande parte do corpo técnico e administrativo das instituições federais

destinadas à cultura. No caso específico da preservação do patrimônio cultural brasileiro, o

fantasma do clientelismo surgiu por trás das reiteradas propostas de uma suposta

descentralização das ações preservacionistas do Estado, acompanhada de um esvaziamento

da capacitação técnica e do conteúdo estratégico da agência federal a que se atribui a

responsabilidade constitucional da preservação deste patrimônio.

Nesse sentido, também apostou-se no segundo caminho quando se discutiu a

proposta de atrelar a atividade preservacionista aos interesses de mercado, sejam tais

interesses considerados do ponto de vista econômico ou político. Esta proposta de

atrelamento, se efetivada, deixaria a atividade preservacionista à mercê do personalismo e do

oportunismo de eventuais dirigentes. Retirando-se, assim, da instituição encarregada de

preservar o patrimônio público qualquer conteúdo estratégico, técnico, qualquer objetivo

político a perseguir, subtraindo-a das condições essenciais para o cumprimento de suas

obrigações constitucionais e tomando tal entidade dispensável.

Quando se deixa envolver pela falácia da descentralização, o Governo Collor

procura, na verdade, desobrigar -se de suas atribuições constitucionais de guarda,

valorização e preservação do patrimônio natural e cultural brasileiro. Os maiores prejuízos

26

não foram contabilizados pelos quadros técnicos e administrativos ameaçados de demissão,

mas sim pelos cidadãos brasileiros no seu direito a este patrimônio, anos depois.

A resistência ao Primeiro Ano do Governo Collor e a posse do Embaixador Rouanet

A primeira medida do Governo Collor foi a extinção dos órgãos de cultura, com

corte linear e geral do quadro de pessoal. Não houve qualquer diagnóstico de funções e

necessidades, qualquer avaliação de desempenho e de adequação do quadro de pessoal às

atividades legais a serem atendidas.

Na maioria dos projetos tocados por tais órgãos, nos primeiros tempos de Reforma

administrativa, o corte de pessoal atingiu a até 50% dos efetivos. Para que tal corte fosse

possível seria necessário apagar a estrutura até então vigente e sua memória. E também

fazia-se necessário aprofundar o esvaziamento do conteúdo estratégico das instituições.

Caso contrário, ficaria evidente que a agência federal, fosse ela qual fosse, não conseguiria

levar a cabo qualquer objetivo com um corte de pessoal tão profundo e sem critério.

O esvaziamento estratégico adequava-se perfeitamente à política do Secretário de

Cultura Ipojuca Pontes, com a sua pretensão de atrelar a cultura às demandas de mercado.

Sob a capa de descentralização, a cultura ia sendo atrelada ao clientelismo das políticas

regionais. Era a continuidade da política do-é-dando-que-se-recebe, tão em voga no

Governo Sarney.

A criação do mAC, do mpc e da FPL propiciou mais um golpe nas já tradicionais

instituições da Funarte, Fundacen, Fundação do Cinema Brasileiro, SPHANlPró-Memória,

Biblioteca Nacional e Instituto Nacional do Livro. Aproveitando o fracionamento intenso

das instituições, o governo convocou quem sobrou e quem se dispunha a colaborar e fez

27

deles seus assessores. Com estes buscava-se implantar uma estrutura nova que negava

totalmente a tradição e as tendências de mudança estocadas há vários anos, diluindo funções

e redefinindo objetos tradicionalmente desenvolvidos pelos extintos órgãos. Exemplo: o

estatuto sugerido para o ffiPC era totalmente distinto da maioria absoluta das propostas que

eram discutidas na casa e representava apenas a posição de uma pequena minoria de

técnicos de Brasília. Com este estatuto, entretanto, cristalizava-se a desestruturação final do

sistema SPHANlPró-Memória.

Temia-se que o apagamento da memória começasse pelo nome, e com a memória,

fossem apagadas as atribuições. Este temor mostrou-se plenamente justificado, pois não foi

outra a ação do Governo Collor. Os proponentes dos nomes ffiAC, ffiPC e FBN

esqueciam-se que a superação das antigas formas de atuação não implicaria necessariamente

na implantação de novas formas. Poderia significar, como significou de fato, a colocação do

vazio institucional em seu lugar: o esvaziamento técnico e a transformação dos órgãos

nascentes em meros repassadores de recursos, sem função executiva, bem apropriada para a

política de clientela.

De todo este processo, que começou com as demissões e concluiu-se com o

esvaziamento da área técnica, resultou na paralisação das atividades e na letargia

administrativa, situação bem caracterizada nos relatórios dos inventariantes. Além da

paralisação dos trabalhos, o clima de perseguição política e insegurança fez o saldo final de

todo o processo.

Sem o conhecimento deste quadro, qualquer exposição sobre a resistência da

sociedade e dos trabalhadores da área de cultura ficaria deslocada e sem sentido. A Reforma

Administrativa, por sua extensão e violência, pegou o corpo técnico desmobilizado e com

28

um precário nível de organização. Além disso, o feroz apoio da mídia difundiu o pânico

entre eles e os induziu à paralisia. Mais ainda, a sinonimia para servidor passava a ser

marajá, incompetente, sanguessuga do dinheiro público. A desmoralização do aparelho

administrativo do Estado servia duplamente ao Governo Collor. Por um lado, a

desqualificação do Estado fazia avançar seu projeto de privatização e desregulamentação da

atividade econômica. Por outro, retirava da luta dos servidores a base do apoio social. No

início de 1990, a maioria da população, trabalhada pela mídia, defendia o ataque

indiscriminado e sem critério contra o funcionalismo público, dando legitimidade à ação do

governo, em especial, de João Santana.

Portanto, o funcionalismo estava nesta conjuntura: intimidado; sem apOlO social;

exposto em suas distorções, sem nada ser dito sobre as causas políticas e históricas destas;

dividido; enfraquecido; desorganizado e imiscuído de posições oportunistas, sem ética e

fisiológicas.

No início de 1990, existia um esforço de discussão nos diversos órgãos de cultura

em busca da superação dos problemas acumulados e do aperfeiçoamento dos trabalhos em

andamento. A Reforma Administrativa atropelou todo este processo. Sem condições, nem

tempo, de realizar um amplo debate, as associações dos servidores utilizaram a tática de

formar grupos de trabalho, com agregação mais ou menos aberta e voluntária, para redigir

propostas alternativas às disposições das medidas provisórias 150 e 151. O tempo mostrou

que a compilação de propostas tem muito pouca influência na elaboração de alternativas.

Era preciso ser mais rápido com relação aos congressistas e reverter a direção da opinião

pública, contrária aos interesses dos servidores e da própria área de cultura.

29

Nesse período, ainda isoladamente ou com apoio de outras associações, servidores

de cada instituição realizaram uma séria de eventos. Os funcionários da Funarte

promoveram a exposição "20 mil eventos" e o debate "Cultura no Governo Collor", com a

presença de Marilena Chauí, Antonio Houaiss e José Américo Pessanha. Os servidores da

Biblioteca Nacional enviaram, por duas vezes, cartas abertas endereçadas ao Presidente

Collor e ao Secretário de Cultura Ipojuca Pontes e realizaram o Abraço à Biblioteca

Nacional. Os trabalhadores da SPHANlPró-Memória encontraram-se com parlamentares

sensíveis à questão cultural.

Todas essas atividades apontaram para a necessidade de articulação mais próxima e

eficaz de todas as associações de funcionários. Foi então criado o Fórum das Associações de

Servidores da Área Federal de Cultura.

O fórum dos servidores visava à população em geral~ denúncia pública, objetivando

alargar o apoio à luta dos servidores federais e visava também aos parlamentares dos

Congresso, em especial durante a votação das medidas provisórias 150 e 151. Tal

movimento recebeu o apoio de importantes setores da sociedade civil.

Resistindo como podiam e com o apoio da sociedade as instituições federais

conseguiram preservar o que puderam e perder o menos possível de seu conteúdo pessoal e

técnico, forçando uma ação conciliatória do Governo Federal: em março de 1991, acontece

a posse do Embaixador Rouanet como Secretário de Cultura, modificando o discurso do

Governo para a área e restabelecendo o diálogo possível.

30

PARTE 11: De 1936 a 1989

Introdução: AM reflete MA

A propósito do título desta introdução, Aloísio Magalhães reflete Mário de Andrade,

em dois sentidos propriamente. Primeiro, daquele do fenômeno fisico expresso pela luz no

espelho. Nele, Aloísio Magalhães espelha Mário de Andrade, recebe a luz de Mário de

Andrade e, como um espelho, a espelha, a repete, se confunde com o original, não fosse a

inversão da imagem. Segundo, no sentido do ato abstrato de refletir do pesquisador, que se

debruça sobre o que estuda, disseca-o, vai em suas entranhas e retira as razões de sua busca

que diretamente não tem a ver com o objeto em si. Nele Aloísio Magalhães pensa Mário de

Andrade, transforma-o em objeto e, na pesquisa, busca-lhe o essencial - para si mesmo, não

se confundindo com a matéria do estudo.

Essa problemática da relação de AM com MA pode ser vista nas afirmações de dois

grandes pesquisadores brasileiros quando falam de Aloísio Magalhães. Sergio Miceli destaca

o eixo dos estudos deste último: liA partir de uma releitura da proposta inicial formulada

por Mário de Andrade, o pessoal do CNRC [Centro Nacional de Referência Cultural,

fundado por Aloísio em 1975] foi-se dando conta da relegação a que fora condenado todo

um acervo de atividades econômicas artesanais e manufatureiras que se colocam na raiz de

práticas sociais cuja inteligibilidade estava a exigir a compreensão de seu contexto histórico

de ocorrência e reprodução" (Sergio Miceli, 1981). E, Antônio Houaiss que expressa a

utopia dessa reflexão: "(. .. ) sua paixão por uma sistemática memorial que não fosse pontual,

nem linear, nem superficial, mas, se possível, cúbica ou tridimensional, graças ao que o

31

projeto da memória nacional fosse tão abrangente que nada se perdesse de nossa história"

(Antônio Houaiss in Magalhães, 1985 - abertura). Utopia pois, seria possível um projeto da

memória nacional que fosse tão abrangente a ponto de nada se perder de nossa história, a

ponto de ser a própria história (Borges, 1999 - p. 50)? A pista desta utopia/paradoxo, e da

sua formulação lógica, está em Mário de Andrade e no seu ante-projeto para a criação do

Serviço de Proteção ao Patrimônio, de 1936.

O período de que se trata nesta Parte 11 começa com o pedido do Ministro

Capanema à Mário de Andrade do ante-projeto do SPHAN, criando-o em 1937, tendo a

frente Rodrigo Mello Franco, que o chefia até o ano de 1967, sendo substituído por Renato

Soeiro, que por fim o entrega à direção de Aloísio em 1979. Nesta Parte 11, ainda seguimos

até 1989, véspera do governo Collor.

O vórtice da leitura desse período de 1936 a 1989 se encontra nos anos de 1979,

1980, 1981 e 1982. Neles, Aloísio Magalhães assume a direção de todo o sistema federal de

cultura. E, é por isso, que, antes de enfrentar o olho desse furacão, devemos considerar

ainda o modus operandis da personalidade Aloísio Magalhães, segundo seu amigo José

Laurênio de Melo. E se muitas vezes o pensamento AM parece aos pedaços - incompleto - é

porque, "para ele, não havia grande distância entre visão, reflexão e ação" (José Laurênio de

Melo in Magalhães, 1985 - p.26) sendo estas complementares entre si e sempre apoiadas

urna nas outras. Algo que também pode se ver no designo

Aliás, a descrição da personalidade de Aloísio e o seu encontro com fazer design são

realizados por José Laurênio quando escreve: "( ... ) de repente aquele moço esguio, inquieto,

viajante compulsivo, a transitar com desembaraço por todas as latitudes geográficas e

espirituais - e por isso mesmo parecendo à beira do diletantismo e da gratuidade -

32

abandona essa região fluida e rarefeita da disponibilidade e se faz designer (nota). ( ... ) Eu

não saberia dizer se ele afinal encontrou seu alvo. É dificil saber. Mas a verdade é que o

design lhe deu ensejo de mobilizar todo o seu imenso potencial de criação e reflexão. É de

se supor até que a atividade de designer é que lhe permitiu, por modos e vias de que só ele

tinha o segredo, ir pouco a pouco fazendo a sua íntima e pessoal descoberta do Brasil"

(Magalhães, 1985 - p.25 e 26).

Portanto, Aloísio não faz arte básica - a exemplo da idéia de ciência básica 1. Ele - a

exemplo da idéia de ciência aplicada - faz arte aplicada, isto é, design. E nesse movimento

visualiza o objeto em questão envolvido por seu ambiente existencial maior. E, nele, no

objeto, busca o que lhe é essencial - a sua personalidade, a sua marca. Por fim, a expressão

da sua identidade, a logomarca, conjuga esta ciência com a arte mais específica de quem a

faz. Da mesma forma, de maneira macroscópica, Aloísio age com o Brasil, quando assume

os seus trabalhos mais públicos (CNRC, SPHAN, Secretaria de Cultura do MEC), busca o

que é essencial à cultura, acreditando ser possível buscar o que é essencial a um país para

criar sua logomarca ou identificar seus símbolos, para poder compreender a sua alma e saber

estimular o desenvolvimento das formas e cores que se materializam a partir dela, da sua

brasilinidade.

Nesse trabalho constrói um dos mais poderosos quadros de referência conceitual na

área da cultura de que se tem notícia - mesmo que inacabado -, só comparável aos artistas

de 22, especialmente Mário de Andrade. Aliás, podemos dizer que Aloísio reconecta a

matriz Mário de Andrade, no sentido literal que hoje nos oferece o fenômeno da Internet:

quando a linha cai e você reconecta o provedor.

1 Distinção usada por Mário de Andrade em seu ante-projeto de lei.

33

Capítulo I: Ante-projeto de Mário, um outro manifesto antropófago

Deve-se reconhecer que quando Mário escreve o seu ante-projeto, a discussão não

era nova. Ela vem desde antes do Império2 E mesmo no período de que se trata, nos anos

20 e 30, em vários estados já se fazia a discussão ser mais frutífera, dizem que até tão

completa como a de Mário3. Este ante-projeto datado de 24 de março de 1936, é por essa

razão uma espécie de boa síntese das reflexões modernistas de Mário e seus companheiros

de 22 somadas às discussões sobre patrimônio até então realizadas, no país e no exterior.

Mas o que mais impressiona no texto de Mário, além da exterioridade da sua relação

com Aloísio Magalhães, é que em suas poucas páginas - algo próximo de 15 laudas de 25

linhas -, ele transforma a ampla questão do patrimônio, na forma como ali é

colocada, em uma ação objetiva e fundamental para a nação brasileira. O conceito

de patrimônio amplo abrange todas as manifestações socioculturais e artísticas do país e ao

S.P.A.N. de Mário - Secretaria do Patrimônio Artístico Nacional - cabia determiná-las,

organizá-las, conservá-las, defendê-las e propagá-las.

2 A primeira discussão em território brasileiro. em tomo da proteção de monumentos históricos, foi resgistrada por carta de D. André de Melo e Castro. Conde das Galveias. Vice-Rei do Estado do Brasil de 1735 a 1749 elogiando as intenções do Governador de Pernambuco a respeito de construções ali deixadas pelos holandeses. A segunda menção feita à questão da preservação ocorre já durante o Império quando o Conselheiro Luiz Pedreira de Couto Ferraz, transmite ordens aos Presidentes das Provícias, já que ele era Ministro do Imperador, para que obtivessem coleções epigráficas para a Biblioteca Nacional e.ao Diretor das Obras Públicas da Corte, para que tivesse cuidado na reparação dos monumentos a fim de não destruir as inscrições neles gravadas. Trinta e dois anos depois o Chefe da Seção de manuscritos da Bibliteca Nacional percorre as províncias da Bahia. Alagoas. Pernambuco e Paraíba. afim de recolher a epigrafia dos monumentos da região. 3 A primeira iniciativa acontece em Minas Gerais. em julho de 1925. quando o então presidente estadual Mello Vianna resolveu organizar uma comissão para estudar o assunto do patrimônio histórico e artístico. buscando impedir a redução do avcervo mineiro em função do comércio de antiguidades. A Bahia, sendo o presidente estadual Francisco Góis Calmon, tomou a iniciativa de organizar a defesa do acervo histórico e artístico através de leis estaduais e decretos no ano de 1927. E em 1928, o exemplo foi seguido pelo Estado do Pernambuco com a lei estadual que criava a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais e um museu.

34

Em seu Capítulo 11, o ante-projeto definia então Patrimônio Artístico Nacional:

"todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira,

pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais, a

particulares estrangeiros, residentes no Brasil". Ao Patrimônio Artístico Nacional pertencem

"exclusivamente as obras de arte que estiverem inscritas, individual ou agrupadamente, nos

quatro livros de tombamento adiante designados".

Essa obras de arte - a partir de então patrimoniais, por estarem inscritas em um dos

livros de tombamento - devem pertencer, pelo ante-projeto, a pelo menos oito das seguintes

categorias: arte arqueológica; arte amerindia; arte popular; arte histórica; arte erudita

nacional; arte erudita estrangeira; artes aplicadas nacionais; artes aplicadas estrangeiras.

As definições dessas artes é o que propriamente dá forma à idéia de patrimônio de

Mário. E, assim ele as cria, mesclando definições gerais com listas exemplares, onde a

expressão etecetera tem sem dúvida grande importância (como se dissesse: "se esqueci, aí

está, na etecetera. "):

"Das artes arqueológica e ameríndia. Incluem-se nestas categorias todas as

manifestações que de alguma forma interessem à arqueologia em geral e particularmente à

arqueologia e etnografia ameríndias.

35

''Essas manifestações se especificam em: a) Objetos: fetiches; instrumentos de caça,

de pesca, de agricultura; objetos de uso doméstico; veículos, indumentária, etc., etc.; b)

Monumentos: jazidas funerárias; agenciamento de pedras; sambaquis, litógrifos de qualquer

espécie de gravação, etc.; c) Paisagens: determinados lugares da natureza, cuja expansão

tlorística, hidrográfica ou qualquer, foi determinada definitivamente pela indústria humana

dos Brasil, como cidades lacustres, canais, aldeamentos, caminhos, grutas trabalhadas, etc.;

d) Folclore ameríndio: vocabulários, cantos, lendas, magias, medicina, culinária ameríndias,

etc.

''Da arte popular. Incluem-se nesta categoria todas as manifestações de arte pura ou

aplicada, tanto nacional como estrangeira, que de alguma forma interessam à etnografia,

com exclusão da ameríndia. Essas manifestações podem ser: a) Objetos: fetiches, cerâmica

em geral, indumentária, etc.; b) Monumentos: arquitetura popular, cruzeiros, capelas e

cruzes mortuárias de beira-estrada, jardins, etc.; c) Paisagens: determinados lugares

agenciados de forma definitiva pela indústria popular, como vilarejos lacustres vivos da

Amazônia, tal morro do Rio de Janeiro, tal agrupamento de mocambos no Recife, etc.; d)

Folclore: música popular, contos, histórias, lendas, superstições, medicina, receitas

culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas, etc.

''Da arte histórica. Incluem-se nesta categoria todas as manifestações de arte pura ou

aplicada, tanto nacional como estrangeira, que de alguma forma retletem, contam,

comemoram o Brasil e a sua evolução nacional. Essas manifestações podem ser: a)

Monumentos (há certas obras de arte arquitetônica, escultórica, pictórica que, sob o ponto

de vista de arte pura não dignas de admiração, não orgulham o país nem celebrizam o autor

36

delas. Mas, ou porque fossem criadas para um determinado fim que se tornou histórico - o

forte de Óbitos, o dos Reis Magos - ou porque se passaram nelas fatos significativos da

nossa história - a Ilha Fiscal, o Palácio dos Governadores de Ouro Preto - ou ainda porque

viveram nelas figuras ilustres da nacionalidade - a casa de Tiradentes em São João deI Rei, a

casa de Rui Barbosa - devem ser conservadas tais como estão, ou recompostas na sua

imagem "histórica".): ruínas, igrejas, fortes, solares, etc. Devem pela mesma qualidade

"histórica" ser conservados exemplares típicos das diversas escolas e estilos arquitetônicos

que se refletiram no Brasil. A data para que um exemplar típico possa ser fixada: de 1900

para trás, por exemplo, ou de cinqüenta anos para trás~ c) Iconografia nacional: todo e

qualquer objeto que tenha valor histórico, tanto um espadachim de Caxias, como um lenço

celebrando o 13 de Maio. Pode ser considerado "histórico" para fins de tombamento, o

objeto que conservou seu valor evocativo depois de 30 anos~ c) iconografia estrangeira

referente ao Brasil: grawras, mapas, porcelanas, etc., etc., referentes à entidade nacional de

qualquer dos seus aspectos, história, política, costumes, Brasil, natureza, etc.~ d) Brasiliana:

todo e qualquer impresso que se refira ao Brasil, de 1850 para trás. Todo e qualquer

manuscrito referente ao Brasil, velho de mais de 30 anos, se inédito, e de 100 anos, se

estrangeiro e já publicado por meios tipográficos~ e) Iconografia estrangeira referente a

países estrangeiros: incluem-se nesta categoria objetos que tenham conservado seu valor

histórico universal de 50 anos para trás.

"Da arte erudita nacional. Incluem-se nesta categoria todas e qUaisquer

manifestações de arte, de artistas nacionais já mortos, e também de artistas vivos, as obras

de arte que sejam propriedade de poderes públicos, ou sejam reputadas "de mérito

nacional". São condições para que uma obra de arte de artista nacional vivo seja reputada

37

"de mérito nacional": 1. ter a obra conquistado ao artista qualquer primeiro ou segundo

prêmio ou segundo prêmio ao ano final de curso em escolas oficiais de Belas-Artes; 2. ter a

obra conquistado ao artista qualquer espécie de primeiro prêmio em exposições coletivas

organizadas pelos poderes públicos; 3. ter a obra conquistado o título acima referido por

quatro quintos de votação completa do Conselho Consultivo do S.P.A.N.

''Da arte erudita estrangeira. Incluem-se nesta categoria todas e quaisquer obras de

arte pura de artistas estrangeiros que pertençam aos poderes públicos ou sejam reputadas

"de mérito". São condições para que um artista estrangeiro seja reputado "de mérito": 1.

Figurar o artista em Histórias da Arte universais; 2. Figurar o artista em museus oficiais de

qualquer país; 3. No caso do artista ainda estar vivo e não preencher nenhuma das duas

condições anteriores, conquistar o título por quatro quintos de votação completa do

Conselho Consultivo do S.P.A.N.

''Das artes aplicadas nacionais. Incluem-se nesta categoria todas manifestações de

arte aplicada (móveis, torêutica, tapeçaria, joalheria, decorações murais, etc.) feita por

artista nacional já morto, ou de importação nacional do Segundo Império para trás. Inclui-se

ainda, dos artistas nacionais vivos, toda e qualquer obra de arte aplicada que pertença aos

poderes públicos.

''Das artes aplicadas estrangeiras. Inclui-se nesta categoria toda e qualquer obra de

arte aplicada de artista estrangeiro, que figure em Histórias da Arte e museus universais."

Cabe ainda destacar as considerações de Mário sobre os livros de tombamento e

museus correspondentes às definições de Patrimônio anteriores. Assim, define: "O S.P.A.N.

possuirá quatro livros de Tombamento e quatro Museus, que compreenderão as oito

categorias de artes acima discriminadas. Os livros de tombamento servirão para neles serem

38

inscritos os nomes dos artistas, as coleções públicas e particulares, e individualmente as

obras de arte que ficarão oficialmente pertencendo ao Patrimônio Artístico Nacional. Os

museus servirão para neles estarem expostas as obras de arte colecionadas para a cultura e

enriquecimento do povo brasileiro pelo Governo Federal. Cada museu terá exposta no seu

saguão de entrada, bem visível, para estudo e incitamento ao público, uma cópia do livro de

tombamento das artes a que ele corresponde. Eis a discriminação dos quatro livros de

tombamento e dos museus correspondentes: 1. Livro de Tombo Arqueológico e

Etnográfico, correspondente às três primeiras categorias de artes, arqueológica, ameríndia e

popular; 2. Livro de Tombo Histórico, correspondente à quarta categoria, arte histórica; 3.

Livro de Tombo das Belas-Artes / Galeria Nacional de Belas-Artes, correspondentes às

quinta e sexta categorias, arte erudita nacional e estrangeira; 4. Livro de Tombo das Artes

Aplicadas / Museu de Artes Aplicadas e Técnica Industrial, correspondentes às sétima e

oitava categorias, artes aplicadas nacionais e estrangeiras."

Das discussões, possíveis objeções ao ante-projeto, deve-se destacar a que trata do

Museu de Artes Aplicadas e Técnica Industrial, por indicar a amplitude do que entende

Mário por Patrimônio Artístico. "Quarta Objeção: Por que o quarto museu é chamado de

Museu de Artes Aplicadas e Técnica Industrial? Então a técnica industrial é uma arte?

Resposta: Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com

que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos. Isso foi aproveitado para

preencher uma feia lacuna do sistema educativo nacional, a meu ver, que é a pouca

preocupação com a educação pela imagem, o sistema talvez mais percuciente de educação.

Os livros didáticos são horrorosamente ilustrados; os gráficos, mapas, pinturas das paredes

das aulas são pobres, pavorosos e melancolicamente pouco incisivos; o teatro não existe no

39

sistema escolar; o cinema está em três artigos duma lei, sem nenhuma ou quase sem

nenhuma aplicação. Aproveitei a ocasião para lembrar a criação dum desses museus técnicos

que já estão se espalhando regularmente no mundo verdadeiramente em progresso cultural.

Chamam-se hoje mais ou menos universalmente assim os museus que expõem os progressos

de construção e execução das grandes indústrias, e as partes de que são feitas, as máquinas

inventadas pelo homem. São museus de caráter essencialmente pedagógico. Os modelos

mais perfeitos geralmente citados são o Museu Técnico de Munich e o Museu de Ciência e

Indústria de Chicago. Imagine-se a Sala do Café ( ... )".

E etecetera, as marcas canibais do patrimônio antropofágico. Ou, ''Roteiros.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros" Frase do Manifesto Antropófago

de Oswald de Andrade (Manifesto Antropófogo, 1928) que orientou os trabalhos da XXIV

Bienal ( ... ). Sete vezes Roteiro que se amplia mais a frente no Manifesto Antropófago

quando se lê: "Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos

concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas.

Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar

nos instrumentos e nas estrelas". O ante-projeto de Mário também é concretista e suas "etc.

e etc." sinônimos dos sete roteiros de Oswaldo São Andrades, são antropófagos. O melhor

exemplo disso, em seu ante-projeto, é a definição de erudito, normatizada por regras

concretas, critérios específicos, honrarias definidas burocraticamente - seja nacional ou

estrangeiro. Estamos diante do patrimônio antropofágico de Mário, que tudo devora,

regurgita, e vomita novo, irreconhecível. A ironia é que é justamente a ciência criada para

estudar as tribos, os índios - antropófagos ou não -, que acaba por instrumentalizar essa

antropofagia do patrimônio. São os conceitos advindos da antropologia que permitem a

40

Mário, transformar todas as manifestações sócio-culturais em patrimônio artístico, como

objetivamente o faz ao formular e responder à quarta objeção sobre os Museus de Artes

Aplicadas e Técnica Industrial. Realiza, assim, um puro ato antropofágico, que pode ser

definido pela explicação de Weffort em seu texto de abertura para a XXIV Bienal de São

Paulo (1998): "Ao reelaborar a noção de antropofagia, que, do ponto de vista europeu, era

uma prática primitiva, bárbara, e contrária aos mais elementares princípios de humanidade,

Oswald de Andrade propôs uma interpretação irônica e irreverente de como, no Brasil, as

influências vindas de fora são incorporadas a um "corpo" nativo, transformadas em alimento

que o fortalece sem descaracterizá-lo". Ainda com relação à utilização da etnologia como

arma antropofágica podemos citar Miceli ao explicar o que acontece na França cultural de

Miterrand-Lang: "O conceito de patrimônio foi se antropologizando em tal proporção que

passou a se mostrar sensível a toda e qualquer experiência social". Neste ponto, o interesse

aumenta para o destaque de Miceli sobre a França das décadas de 70 e 80 porque, em 1936,

no Brasil, estas antropofagias antropológicas já eram, pelo menos, uma realidade teórica no

ante-projeto de Mário de Andrade.

Cultura larga, de boca larga, capaz de engolir o mundo inteiro. ''Perguntei a um

homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da

possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o". Até diante do

incompreensível, "comi-o" diria Oswald de Andrade. E etcetera e etcetera. O patrimônio

antropofágico de Mário se assemelha a idéias amplas como a de cidadania para o

pensamento moderno urbanístico 4, ou a de desenvolvimento sustentável para os movimentos

4 A associação da cultura com a valorização de espaço urbanos é até bem comum e de vasto sucesso, para não citar Paris e Nova York, citamos Barcelona, onde a cultura hoje passou a ser o item estratégico estruturador de toda a cidade catalã (Ajuntament de Barcelona, 1992).

41

ambientalistas da década de 905 ou a do conceito ampliado de saúde para os sanitaristas

passam a discutir o tema da promoção da saúde, nos anos 806 E que, por isso, nada há de

retórico nas suas afirmações do tipo: "defender o nosso patrimônio é alfabetização".

A potência desta perspectiva institucional, relida a partir de 1973, reorienta as

discussões de Aloísio: "Até que um dia, eu conversava com o Mário Pedrosa em uma

barraca de praia, na ilha de Itamaracá, defronte ao Forte Orange, quando ele, deslumbrado

por aquele espaço, disse que, na crise brasileira, os problemas tinham que ser compreendidos

como um todo e não através de segmentos isolados. Isto soou imediatamente como uma

resposta à minha inquietação. Ou a gente conscientiza o bem cultural como um todo ou não

iremos resolver nunca o problema do patrimônio arquitetônico. O aumento da complexidade

diminui a tensão" (Magalhães, 1985 - p.186). Contudo, alerta Miceli: "Seja como for, a

'generosidade etnográfica' da proposta andradina revelou-se descompassada das

circunstâncias daquele momento, ao passo que a entronização do barroco firmou-se com a

pedra de toque da política preservacionista.

5 Ver Dansereau na Parte III desta monografia. 6 Tal conceito ampliado de saúde correlato da qualidade de vida já está absorvido Pela Organização Mundial de Saúde. Ver também a Parte III desta monografia.

42

Cumpre frisar esses aspectos na medida em que os conteúdos substantivos dessa

política tem muito a ver com a conjuntura de sua criação. Nesse sentido, o SPHAN é um

capítulo da história intelectual e institucional da geração modernista, um passo decisivo da

intervenção governamental no campo da cultura e o lance acertado de um regime autoritário

empenhado em construir uma 'identidade nacional' iluminista no trópico dependente"

(Miceli, 1987).

Aqui, Miceli trata de outro Andrade - Rodrigo Melo Franco de Andrade - que era o

ponto de contato entre o Governo Getulista e o ante-projeto de Mário. Ele por indicação de

Mário e escolha do Ministro Capanema é quem vai conduzir por dentro do Estado Getulista

a criação do SPHAN: a valorização do que é, do que poderia ser brasileiro. Um forte apelo

para o governo autoritário de Vargas. Mas que se por um lado favorece as construções de

Mário, também a limita. A questão do nacionalismo em Vargas favorece a questão

patrimonial, "mas isso não tomaria a proposta andradina politicamente viável na época de

sua formulação" (Miceli, 1987).

A tramitação da proposta de criação do Serviço na máquina governamental é o

melhor exemplo dessa dialética de estimular/limitar. Quando Capanema recebeu a proposta

de Mário, solicitou imediatamente à Câmara dos Deputados que aprovasse emenda ao

projeto de reorganização geral do Ministério da Educação, incluindo o SPHAN em sua

estrutura ministerial. Ao mesmo tempo, pede ao Presidente da República autorização para

fazer funcionar, em caráter experimental e desde logo, esse novo serviço. Seu pedido foi

feito em 13 de abril de 1936 e aprovada por Getúlio Vargas, em 19 do mesmo mês. Nesse

ponto, escolhe o diretor do Serviço, Rodrigo Melo Franco de Andrade, que teve como

principal tarefa esboçar o anteprojeto de lei federal, pronto em 23 de julho de 1936. Nesse

43

ínterim, a 13 de janeiro de 1937, o Serviço experimental já é oficializado pela lei n°. 378 que

reorganiza o Ministério da Educação e Saúde Pública. Quanto à lei federal, no momento de

sua apreciação na Câmara e posteriormente no Senado, com nova votação de emendas na

Câmara prevista para 10 de novembro, neste mesmo dia, há o golpe de estado dissolvendo o

Congresso Nacional. Então, a Constituição outorgada traz em si a disposição, até então,

mais vigorosa de defesa do patrimônio, descrita em seu artigo 134: "Os monumentos

históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados

pela natureza, gozam de proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos

Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o

patrimônio nacional". E Capanema não se atrasa. Dias depois do golpe, apresenta nova

exposição de motivos pedindo nova reconsideração para o projeto quase aprovado pelo

Congresso dissolvido. O então Presidente Getúlio Vargas acata e assim temos na publicação

de 30 de novembro de 1937, do decreto-lei n°. 25, a seguinte definição do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional: "Artigo 1°. Constitui o patrimônio histórico e artístico

nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de

interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por

seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. ( ... )

Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a

tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe

conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou

agenciados pela indústria humana".

Esta definição, mesmo que mais acanhada do que a de Mário, é considerada

avançada para a época. No entanto, nem mesmo ela pode ser seguida por Rodrigo Melo

44

Franco. Em entrevista ao Jornal do Brasil- maio de 1979 - (JB, caderno B, p.l), já como o

novo diretor do IPHAN, Aloísio esclarece a sua posse analisando o trabalho possível de

Rodrigo: "Sei que muitas pessoas estranharam minha ida, porque achavam que para lá

deveria ir um arquiteto. Essas pessoas não compreenderam que o verdadeiro patrimônio,

como foi concebido por Rodrigo Mello Franco de Andrade e por Mário de Andrade, já

incluía a dimensão abrangente de bem cultural 7. Acho que pensam isso porque Rodrigo nos

primeiros tempos do patrimônio viu, de maneira extremamente inteligente, que tinha que

atacar em uma só linha, a mais dramaticamente atingida. Eram os prédios. Derrubavam-se

prédios históricos. O grande trabalho foi conscientizar as elites: Governo, Clero, Poder

Judiciário. Esta função que era prioritária, acabou se confundindo com o IPHAN. O próprio

Rodrigo tinha perfeita consciência disso. No primeiro número da Revista do Patrimônio,

publicada em 1937, ele escreveu: 'O presente número, desde logo se ressente de grandes

falhas, versando quase todo sobre monumentos arquítetônicos, como se o patrimônio

histórico e artístico nacional consistisse principalmente nestes' - e Aloísio complementa -

"( ... ) o que estamos fazendo não é novidade nenhuma" (Magalhães, 1985 - p.218).

7 Ou seja: o bem cultural móvel. as atividades do povo, as atividades artesanais. os hábitos culturais da comunidade (Magalhães. 1985 - p.217).

45

Deixar de lado, a totalidade da questão, parece ter sido uma estratégia acertada.

Durante 30 anos, Rodrigo Mello Franco dirigiu o SPHAN - aliás DPHAN, já que em 1946

foi elevado à categoria de Diretoria -, cercado por grandes nomes (Lúcio Costa, Prudente de

Morais Filho, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Luís Jardim, Mário de

Andrade) e uma pequena mais qualitativa equipe de arquitetos, artistas plásticos,

pesquisadores, fotógrafos, engenheiros, capaz de seguir as suas três orientações básicas:

inventariar o que existia de amostragem mais significativa da formação brasileira; socorrer

urgente, e salvar alguns monumentos que estavam profundamente atingidos pela ruína e

ameaçavam perecimento completo; introduzir na normalidade nacional, inclusive e

principalmente no campo jurídico, não apenas a figura do tombamento e suas conseqüências,

especialmente aquelas que representavam um gravame caindo sobre a propriedade privada.

Luis Saia - que substituiu Mário de Andrade na Direção da Regional do Patrimônio em São

Paulo - complementa em artigo do n°. 17 da Revista Arquitetura este quadro: "A fim de

enfrentar tamanha tarefa era indispensável ao SPHAN municiar-se de estudos e colocar

corajosamente em segundo plano tudo o que pudesse ser feito mais tarde, com mais

experiência e mais gente: controle do comércio de arte, tombamento paisagístico, inventário

de artes menores, aproveitamento e revalorização de monumentos cuja função se tomara

obsoleta, tombamento de conjuntos urbanos, etc."

A segunda fase da instituição vai de 1967 a 1979 e se caracteriza principalmente pelo

tombamento de conjuntos urbanos, assessorados por grandes técnicos do patrimônio

internacionais. A primeira ação desse tipo foi a conversão de Paraty em monumento nacional

(24 de março de 1966). Seguiram-se planos para as cidades históricas de Minas Gerais,

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Nordeste e Centro-Oeste. Na Bahia, Cachoeira e Porto Seguro foram erigidos monumentos

nacionais em 18 de janeiro de 1971 e 18 de abril de 1973, respectivamente. Nesta gestão, a

de Renato Soeiro, o Patrimônio também trocou de nome passando, em 27 de julho de 1970,

de Diretoria para Instituto, o famoso IPHAN, que Aloísio Magalhães iria assumir em 1979.

Aloísio, fortalecido pela experiência inovadora do Centro Nacional de Referência

Cultural (CNRC), assume o IPHAN com a decisão de que era hora de não mais deixar em

segundo plano nenhum dos pontos indicados por Luis Saia. Na verdade, "sua noção de bens

culturais", descreve Joaquim Falcão em sua introdução à coletânea de textos e entrevistas de

Aloísio, "se opôs à noção de patrimônio histórico e, ao mesmo tempo, a incorporou. Opôs­

se na medida em que a noção de patrimônio foi, historicamente, apropriada e reduzida à

noção de preservação do patrimônio de pedra e cal. De preservação arquitetônica dos

monumentos da etnia branca e sua elite civil, militar ou eclesiástica. Incorporou-o na medida

em que patrimônio histórico passou a ser espécie, e bens culturais, o gênero. Trata-se,

portanto, de conceito mais abrangente, que incorpora o bem ecológico, a tecnologia, a arte,

o fazer e o saber. Das elites e do povo também. Da etnia branca e também da negra e da

indígena. Pois, como gostava de dizer: 'a cultura brasileira não é eliminatória, é somatória'.

Registre-se que para esta noção de bem cultural Aloísio Magalhães buscou apoio em Mário

de Andrade" (Magalhães, 1985 - p.18). Isto é, o bem cultural- podemos apelidar - abaporu

de Aloísio forjado na reflexão sobre os anos 30 e em seus trabalhos no CNRC é um bom

disfarce para o patrimônio antropofágico de Mário.

47

Capítulo 11: O Bem Cultural Abaporu

Quando Aloísio assume o IPHAN, em 1979, ele não podia utilizar simplesmente a

idéia de patrimônio artístico de Mário - o patrimônio antropofágico. Pela sua intensa

utilização e sucesso de trabalho durante a imensa e extraordinária gestão de Rodrigo Melo

Franco e, posteriormente, continuada por Renato Soeiro, a expressão patrimônio passou a

ser praticamente sinônimo de patrimônio arquitetônico. Era preciso diferenciar, para poder

se fazer compreender. É aí que Aloísio passa a desenvolver o conceito de bem cultural- uma

espécie de patrimônio antropofágico, um bem cultural abaporu.

"Tarsila descreve o Abaporu como "uma figura solitária monstruosa, pés imensos,

sentada numa planície verde, o braço dobrado repousando num joelho, a mão sustentando o

peso-pena da cabecinha minúscula. Em frente, um cacto explodindo numa flor absurda". A

partir de comentários de uma amiga, que dizia que suas pinturas "antropofágicas"

(1928/1930) lembravam-lhe seus pesadelos, Tarsila identifica a origem de sua pintura desta

fase: "Só então compreendi que eu mesma havia realizado imagens subconscientes,

sugeridas por histórias que ouvira em criança", contadas na hora de dormir pelas velhas

negras da fazenda. "Segui apenas uma inspiração sem nunca prever os seus resultados.

Aquela figura monstruosa, de pés enormes, plantados no chão brasileiro ao lado de um

cacto, sugeriu a Oswald de Andrade a idéia da terra, do homem nativo, selvagem,

antropófago "(Amaral, 1992).

"Ao receber, em 11 de janeiro de 1928, este quadro de Tarsila como presente de

aniversário, Oswald de Andrade comentou, impressionado: "É o homem, plantado na terra".

Conversando com ela e com o colega Raul Bopp, propuseram-se a fazer um movimento em

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torno deste quadro, dando origem ao movimento antropofágico. Seu título foi composto

consultando um dicionário da língua dos índios tupi-guarani. Abaporu vem de aba (homem)

e poru (comer) e significa o mesmo que Antropofagia, que vem do grego antropos (homem)

e fagia (comer). Segundo Paulo Herkenhoff, curador-geral da XXIV Bienal "A

Antropofagia é o momento histórico de grande densidade no modernismo brasileiro ( ... ), um

momento de busca por emancipação e atualização destes artistas". Emancipação da tradição

acadêmica, da importação atrasada de modismos europeus. Atualização em relação às

questões relevantes no local e momento em que vivem e às discussões contemporâneas de

artistas de todo o mundo sobre os rumos da arte moderna." (Núcleo educação da XXIV

Bienal de São Paulo recuperado no si/e www.XXIVBienal.com.br).

Esta definição é a tarefa que também se impõe Aloísio Magalhães, o mais tardio dos

antropófagos. E, nesse sentido, suas reflexões se concretizaram pela primeira vez, na criação

do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC). A citação que se segue não foi

realizada de algum debate sobre os efeitos da globalização em nossos anos 90, mas

provavelmente de um encontro acontecido nos idos da década de 70, por Aloísio em

entrevista a Álvaro Rodrigues (texto datilografado /s.d./ laudas 10 e 11, sob o título "Por

que o produto brasileiro não tem estilo?" - Magalhães, 1985) e trata das razões para a

criação do CNRC. Aloísio argumenta: ''Uma das conseqüências mais flagrantes do

achatamento do mundo é a perda ou diminuição de caracteres próprios das culturas. Mesmo

em contextos muito estratificados como a cultura japonesa, em que os elementos da cultura

nacional são profundamente diferenciados, a diminuição e perda de valores próprios pela

aceitação de valores mais universais é enorme. Se isso é válido em culturas já mais

assentadas, imagine então o que acontece em países como o nosso. Mas todo fenômeno tem

49

seu lado positivo e negativo. Nesse sentido a posição brasileira é bastante peculiar.

( ... )Estamos num ponto em que ainda é possível fazer determinadas opções e já é possível

uma série de outras, pela infra-estrutura de base."

Aloísio continua descrevendo essas constatações, que segundo ele foram resultantes

de discussões realizadas em Brasília por um pequeno grupo de pessoas "com

responsabilidades diversas". E desses debates em petit comiteé, destaca um que

simbolicamente representa a deflagração da criação do CNRC: ''F oi uma pergunta que o

Ministro Severo Gomes me fez a respeito do produto brasileiro. 'Por que não se reconhece

o produto brasileiro? Por que ele não tem uma fisionomia própria?' Minha resposta mais

imediata foi que, para se criar uma fisionomia própria de uma cultura é preciso antes

conhecer a realidade desta cultura em seus diversos momentos. Existem enormes inversões

de conhecimento sobre uma coisa precisa, sobre uma certa tecnologia, mas compreensão de

universos mais amplos está carecendo de ser feita. Uma de nossas tarefas é fazê-la. Não

somos ainda uma instituição e evitamos sê-lo. Somos um projeto elástico, mas espalhando­

se pelo Brasil inteiro, documentando e elocubrando sobre as nossas realidades."

Tamanha tarefa só poderia ser realizada por um bem cultural abaporu, um

patrimônio antropofágico, capaz de identificar os indicadores culturais de um povo que teria

como principal marca a própria criatividade: "Bom, a capacidade de invenção, para mim,

toma-se cada vez mais clara ser o grande atributo do homem brasileiro (Magalhães, 1985 -

p.171)".

E, em 1 0. de julho de 1975, após uma série de discussões semanais entre o Ministro

da Indústria e Comércio Severo Gomes, o designer Aloísio Magalhães e o Embaixador

50

Wladimir Murtinho, Secretário da Educação do Distrito Federals, o MIC e o Governo do

Distrito Federal firmam um convênio que assegura recursos para estudo de viabilidade do

projeto 0l.0l.15. Com o apoio da Fundação Universidade de Brasília, o grupo de trabalho

denominado Centro Nacional de Referência Cultural, ganha espaço no campus da

universidade, sob coordenação de Aloísio Magalhães. O resultado do estudo de viabilidade

produz a assinatura de um convênio de cooperação técnica e financeira para a consolidação

do próprio CNRC. A data é 2 de agosto de 1976 e assinam o convênio a Secretaria de

Planejamento da Presidência da República, o Ministério da Educação e Cultura, o Ministério

da Indústria e do Comércio, a Caixa Econômica Federal, a Fundação Universidade de

Brasília e a Fundação Cultural do Distrito Federal. Nele, cabe ao CNRC estabelecer um

sistema referencial básico para descrição e análise da dinâmica cultural brasileira, limitado

pela: "a) adequação às condições específicas do contexto cultural do país; b) abrangência e

flexibilidade nas descrição dos fenômenos que se processam em tal contexto e na vinculação

dos mesmos às raízes culturais do Brasil; c) explicitação do vínculo entre o embasamento

cultural brasileiro e a prática das diferentes artes, ciências e tecnologias, objetivando a

p ... : cepção e o estímulo, nessas áreas, de adequadas alternativas regionais".

8 O Embaixador W1adimir Murtinho se encontra hoje no Ministério da Cultura como assessor especial do Gabinete do Ministro.

51

Esse sistema referencial básico sena composto por uma rede de indicadores

culturais, que emergiriam de situações peculiares à nossa cultura. Tais situações, ao serem

encontradas eram, primeiro, e obviamente, identificadas - captadas - como relevantes.

Depois, indexadas - memorizadas e referenciadas - por sua relevância. E, por fim, na forma

mais adequada, devolvidas à comunidade pela razão mesma dessa relevância. Identificação,

indexação, devolução faziam parte de uma metodologia de ação do CNRC, onde, por um

processo de reflexão, os três momentos se intercomunicavam e interagiam continuamente.

Os resultados expressivos conseguidos pelo Centro acabam por viabilizar um termo

aditivo ao convênio anterior, em 16 de outubro de 1978, que incluem mais dois parceiros: o

Banco do Brasil e o Conselho Nacional de Desenvolvimento e Tecnológico (CNPq).

A partir do estudo e compreensão das circunstâncias da produção cultural brasileira,

baseada em sua própria realidade - assim se auto-objetivava o CNRC -, o Centro Nacional

de Referência Cultural pôde pelo conjunto de seus projetos fornecer - segundo Aloísio

mesmo - ''um quadro de amostragem altamente representativo da realidade cultural brasileira

e '. sua dinâmica" (Magalhães, 1985 - p. 57). Em seus quatro programas trata: 1) do

artesanato como referência cultural, isto é, traçado de uma sistemática ampla para o

mapeamento da atividade artesanal no Brasil, consideradas suas múltiplas vinculações com

as circunstâncias históricas, sócio-culturais e econômicas do país; 2) de levantamentos

sócio-culturais, definidos como o conhecimento dos processos de transformação sócio­

cultural, especialmente com vistas ao estudo de modelos alternativos de desenvolvimento; 3)

da história da tecnologia e da ciência no Brasil, com os objetivos de conhecer as técnicas e o

saber tradicional artesanais, de compreender as economias de pré-mercado e de estimular a

52

descoberta de tecnologias alternativas nas atividades de transformação do país; 4) de

levantamentos de documentação sobre o Brasil: levantamentos, referenciação, preservação e

difusão desses documentos.

O texto acima que pode ser consultado em anexo (anexo lI), na sua íntegra, na

verdade faz parte, de uma primeira argumentação de Aloísio sobre a necessidade de

integração do CNRC ao quadro geral do sistema administrativo, mesmo que uns anos antes

defendesse o contrário. A partir deste momento, tal integração seria para ele o único meio

de viabilizar o retorno à comunidade dos trabalhos realizados: "Quanto ao terceiro [a

devolução], o mais importante e o que configura a finalidade principal do projeto, é que

representa a razão de ser deste documento. De fato, é chegado o momento de constatar que

uma ação efetiva dos resultados obtidos através dos indicadores que se tornam conhecidos

só pode ser realizada tendo o CNRC uma posição claramente definida dentro do quadro

geral do sistema administrativo e dele fazendo parte como instrumento auxiliar válido"

(Magalhães, 1985 - p. 57).

Mas, afinal, o que poderíamos dizer que Aloísio havia acumulado? Um conjunto de

indicadores culturais, que lhe garantem através do seu mapeamento sinalizar os caminhos da

cultura brasileira? Não, muito mais do que isso! Ele com a experiência do CNRC e suas

reflexões, Aloísio acumulou antropofagia! "Tupy or not tupy that is the question" (Oswald

Andrade - Manifesto Antropófago, 1928 - texto integral no anexo I). Desenvolveu a sua

capacidade de engolir, regurgitar e vomitar completamente novo! Ele desenvolveu uma

máquina de leitura, uma máquina de ler brasilis. Ele desenvolveu um processo de trabalho:

aquele de olhar a realidade e dizer ali propriamente o que seria brasileiro e qual o seu

possível trajeto. Tão preciso, que poderia dizer o que é ser universal: ''Universal, meus

53

senhores, não é igual" (Magalhães, 1985 - p.84) . Isso fica muito claro quando Aloísio trata

da questão do artesanato, ou quando comenta - novamente e novamente - sobre a

capacidade de invenção do povo brasileiro: "Uma coisa parece evidente: a certeza de que a

realidade brasileira contém riquezas que ainda permanecem desconhecidas e como que

protegidas por um imenso tapete que as encobre e abafa. Para descobri-las e conhecê-las

dispomos de um admirável potencial humano, rico de invenção e tolerância. Resta-nos

trabalhar, mantendo-nos conscientes de nossa responsabilidade social" (Magalhães, 1985 -

p.57). Oswald concorda, sendo sempre mais direto: "Contra todos os importadores de

consciência enlatada. A existência palpável da vida" (Manifesto Antropófago, 1928).

Aloísio, então, passa a testar a sua máquina devoradora - seu bem cultural abaporu -

em várias direções. No ato de registrar atos de inventividade do povo brasileiro como uma

característica que lhe é própria, Aloísio se lança, corajosamente, em reflexões sobre

situações pontuais de tempo, espaço, individuais - no caso de peças específicas de artesanato

ou de algum artista em particular -, como em situações mais amplas envolvendo grandes

linhas temporais - históricas até -, espaciais e coletivas - onde a cidade de Brasília seria o

melhor espécime. Assim o faz quando em entrevista de abril de 1979 (Magalhães, 1985 - pp.

171, 172 e173) lhe perguntam:

''Existe algum exemplo para mostrar, provar isso?

''Bom, deve haver muitos. Alguns pequenos a gente tem identificado, tem inclusive

falado sobre eles. Há um que particulannente me encanta pelo seu sentido poético e, até

mesmo, de amor, que são aquelas lâmpadas de querosene que são usadas pelo homem

brasileiro na região que ainda hoje não chega a eletricidade, e eles usam o bulbo da lâmpada

elétrica como depósito de querosene. A meu ver, o conteúdo de invenção e graça desse

54

objeto é extraordinária. E de humor, quer dizer, já que eu não tenho luz elétrica, fisicamente,

transformo, altero ele para uma lâmpada com outro tipo de tecnologia. Ela recua no tempo,

ela mesma, e serve como lâmpada. ( ... )Santos Dumont, por outro lado, com enorme

disponibilidade do sentido de ser brasileiro diante de certas coisas, por não ter muito apego

a amarras antigas, se volta para a frente."

Vai do bulbo esvaziado de sua eletricidade que mesmo assim produz a luz pelo

querosene ao mais pesado do que o ar de Santos Dumont capaz de voar, num movimento

balanceado que dá a Aloísio a possibilidade de generalizar: "( ... ) artesanato é a tecnologia de

ponta de um contexto em determinado processo histórico. ( ... ) artesanato é o momento da

trajetória, e não uma coisa estática". Portanto, quando se quer oferecer aumento de renda ao

artesão, dando-lhe a possibilidade de repetir um detenninado produto, quando se faz mais

pedidos do que a sua produção normal: "O remédio que se oferece é a idéia de que ele repita

mais. Que passe a ter mais beneficio através da repetição reiterada e monótona daquele

momento da trajetória. E isso é inadequado porque corta o fio da trajetória, o fio da

invenção, da evolução da invenção" (Magalhães, 1985 - p.172). A generalização de Aloísio

vai mais longe embalado pelo seu movimento de pendular: "Na realidade eu penso que,

dentro do conceito clássico e ortodoxo, não existe propriamente artesanato no Brasil. O que

parece existir é uma disponibilidade imensa para o fazer, para a criação de objetos. ( ... ) são

formas iniciais de uma atividade que quer entrar na trajetória do tempo. Quer evoluir na

direção de maior complexidade e de resultados mais efetivos. ( ... ) nós temos é que observar

essa disposição, essa presença muito alta do índice de invenção. (. .. ) um alto índice de

invenção, como sendo uma atitude pré-design. Em outras palavras, o artesão brasileiro é

basicamente um designer em potencial, muito mais do que um artesão clássico. ( ... )0 que

55

esta tese procura demonstrar é que o grande potencial está no homem. A atitude certa é

aceitar esse homem, na sua dinâmica e ajudá-lo, a partir de indicadores do seu passado,

ajudá-lo a dar o passo adiante necessário à contemplação de sua trajetória" (Magalhães,

1985 - p.175).

A fortaleza da tese aCIma faz os casos se multiplicarem e se multiplicarem. E

etecetera e etecetera. Da mesma forma que o sofista, diante da pergunta socrática do que é

o belo, só consegue apontar exemplos de belo (Diálogos de Platão: Hipías Maior, 1980).

Aloísio acumula uma quantidade impressionante de casos, onde não mencionar alguns seria

perder não só a profundidade do seu método como a sua graça. Típico quando trata do

reaproveitamento de pneus no Nordeste brasileiro: ''Isso denota o quê? Denota que o

homem do interior de uma região do Nordeste encontrou intuitivamente - eu chamo isso de

tecnologia da sobrevivência - uma forma de fazer riquíssima. Como invenção, pelo que

contém de criativo esse processo. Você já imaginou o que é, do lixo, de uma coisa que não

tem mais uso, você retirar uma nova matéria-prima? E essa matéria-prima ser transformada

em outro produto, e esse produto ter encaixe e ter conveniência para o uso coletivo? Você

vê o grau de elaboração a que já chegou. O bujão do lixo que não machuca, que

corresponde ao tamanho de uma casa média de família do Nordeste. Um utensílio que

corresponde a uma necessidade básica da comunidade. Que ele elabora ao nível da maneira

de se carregar melhor, de se tampar, até ao nível de se decorar o objeto (Magalhães, 1985 -

p.228). ( ... ) Ele chegou a um nível de elaboração tal que já tem duas fases: a do sujeito que

recupera do pneu uma nova matéria-prima e a do sujeito que compra essa matéria-prima e

faz os seus produtos, os seus artefatos. Equipamentos feitos por eles, entendem? O distensor

é maravilhoso para abrir as lonas, os instrumentais são todos criados pela prática. E

56

representa uma economia curiosíssima. O principal produto desse fazer é um depósito, em

três tamanhos" (Magalhães, 1985 - p.228).

Outros casos, como o do caju ou do Museu de Tecnologia Patrimonial, seguem a

linha de Mário e de sua quarta objeção, que ele - Mário - batizara, em seu ante-projeto,

como sendo um tipo de arte aplicada. "Porque o caju, em primeiro lugar, sendo um produto

natural do Brasil, tem três grandes predicados para ser uma análise exemplar. Primeiro, o

predicado de consciência histórica, ou seja, ele é conhecido desde o descobrimento e usado

até hoje. ( ... ) O segundo predicado é o do espaço. Quer dizer, o caju cobre um contexto

brasileiro de uma imensa abrangência. E o terceiro é a diversidade de usos e produtos que

derivam daquele produto natural. Bom, em segundo lugar, o interesse do produto do caju é

que, pela reiteração, a presença dele é tão intensa que já transcende o próprio uso no sentido

de fruto alimentício. ( ... ) A diversidade de usos é tal que ele já saltou para fora do uso direto

e já tem os usos simbólicos, né? Medidor de tempo, divisor de espaço temporal: antes e

depois da chuva do caju. Você tem objetos de arte usando o caju; mobiliário com trabalho

de talhas feitos com caju; pintura feita com uso de caju, poesia citando caju; literatura em

torno do caju". (Magalhães, 1985 - p.223) E já destacando os pontos positivos e negativos,

apontando para um possível tombamento da fábrica de vinho de caju na Paraiba, que seria

um típico exemplo do Museu de Artes Aplicadas e Técnicas Industriais de Mário, acrescenta

em outra ocasião: "Uma fruta que um dia foi brasileira, cantada em poemas, pintada em

óleos e aquarelas, rezadas por curandeiros, bebida por foliões, o caju hoje é produzido em

maior quantidade em Moçambique. As propriedades químicas do caju - entre elas, o

componente LCC, usado em quase todos os adesivos, resinas, inseticidas naturais, etc. - lhe

valeram 243 patentes no Instituto Nacional do Caju, na Índia, 111 americanas, 75 inglesas e

57

as demais divididas entre Índia e Japão. O Brasil só pegou mesmo resfriado, com a

diminuição dos cajueiros e suas fontes riquíssimas de vitamina C. Temos de evitar, em

outros setores, a repetição do que ocorreu com o caju. Temos de evitar que, por falta de

compreensão, desperdicemos o que temos na busca de algo que nem sempre nos

desenvolve, nem nos interessa. ( ... ) O caju é como boi. Tudo se aproveita. No século XIX

havia vários pequenos fabricantes de vinho de caju. Hoje só há uma fábrica, na Paraíba. ( ... )

Hoje, nós, brasileiros, compramos de volta os derivados de caju, já manufaturados pelos

americanos, ingleses, japoneses" (Magalhães, 1985 - p. 225).

E como se Aloísio estivesse ouvindo-nos, ele diz mais a frente: "Já que se está

tratando de situações exemplares, vêm à tona duas outras. A primeira é a da Estrada de

Ferro Madeira-Mamoré. ( ... ) A partir do passado daquela estrada de ferro fomo-nos

aproximando do presente da região. Verificamos que o grande anseio da comunidade era no

sentido de que ela voltasse a funcionar, corrigindo um ato tecnocrático e centralizado r de

desativação. Ao se aplicar o decreto de que todas as ferrovias com menos de 600

quilômetros são economicamente inviáveis, não se levou em conta a peculiaridade de que

em muitos casos o fator econômico não é o predominante. E o fator básico na Madeira­

Mamoré era o da integração social, portanto, cultural. Ela funcionava como um sistema

vascular, alimentando também culturalmente aquela área da região amazônica" ( ... )"0

Museu de Orleans representa uma segunda situação de exemplaridade" (Magalhães, 1985 -

p.226). "( ... )Uma pequena cidade do sul de Santa Catarina, uma curiosa experiência: o

Museu de Tecnologia Patrimonial. Nessa região os imigrantes europeus trouxeram uma série

de equipamentos de produção de farinha de mandioca, de beneficiamento de milho, serraria,

carpintaria, tudo movido a roda d'água. Todas as peças, todas as engrenagens são de

58

madeira. E elas existem ainda, perfeitamente úteis e suficientes nesta área de Santa Catarina.

(. .. ) Lá elas estão todas reunidas e em funcionamento. A própria comunidade é quem toma

conta. ( ... ) De forma que está lá em Orleans este exemplo curioso, maravilhoso, de uma

espécie de Disneylândia da verdade, onde as coisas funcionam para o uso da comunidade,

um grande, maravilhoso brinquedo, cujo resultado é a própria substância de vida da

comunidade" (Magalhães, 1985 - p. 227).

Então, Aloísio aponta sua máquina abaporu para a história das artes e para a história

política do Brasil, em busca de seus casos exemplares. De cara, enquadra o próprio Mário

de Andrade quando ele se encontra com Chico Antônio, no sertão do Rio Grande do Norte:

''É uma coisa admirável essa peça, esse encontro de dois gigantes. O erudito, o homem de

formação, de todos aqueles valores, que se defronta com um sujeito simpático e tal, e ambos

se consideram verídicos, atuais, entende? Essa idéia de dois pólos, a gente tentar ver dentro

desse contexto heterogêneo, é que vai nos ajudar a entender o caminho. O próprio Mário é

que mostra como Chico Antônio era igual a ele. E o Chico Antônio sabia disso, porque diz a

ele - diz cantando: ( ... ) O senhor quando voltar pra sua terra vai sentir falta de mim por isso,

por isso, mas quando voltar aqui pode me chamar que eu venho" (Magalhães, 1985 - p. 64).

E Aloísio segue por dentro da história colecionando e colecionando, pois "os exemplos são

inúmeros: o confronto entre a Escola de Recife, assentada no pensamento cientificista de

Tobias Barreto e a mentalidade romântica~ ambas, em certo sentido, encontraram o ponto de

equilíbrio no humanismo de Joaquim Nabuco; a figura de D. Pedro 11 que, mediando entre

forças contrapostas, presidiu por mais de quarenta anos - fato notável para a história de

qualquer povo - o processo de consolidação da unidade nacional; a grande ênfase no

pensamento positivista tomou-se indispensável para o equilíbrio de forças contrárias na

59

criação da República; ( ... ) o Marechal Rondon, homem de formação militar ligada à tradição

positivista, foi o interlocutor mais sensível e compreensivo do espírito mágico e mítico de

nossas comunidades indígenas. Constata-se, assim, que situações paradoxais, permeadas de

ambigüidades, são indispensáveis e imanentes a todo processo social criativo" (Magalhães,

1985 - P 50). E no interior do processo criativo puro, Aloísio pode arriscar que Aleijadinho

"passa a ser muito mais forte, a sua expressão adquire maturidade, quando ele abandona o

mármore e encontra a pedra-sabão. Em outras palavras, quando o artista, dentro do seu

contexto, se desvencilha de uma matéria-prima que era importada ideologicamente em certo

sentido, que era modelo de um comportamento europeu. ( ... ) Então, o sentido é muito

amplo, não é a utilidade só no sentido do consumo, mas a utilidade da verdade de se usar a

matéria-prima que você tem à mão. E o exemplo do Aleijadinho me parece muito

pertinente" (Magalhães, 1985 - p.l01). Também parece ser pertinente o exemplo de A

Pedra do Reino de Ariano Suassuna, pois ela "pode ser lida em qualquer página, qualquer

página contém o todo do livro. Certa crítica literária superficial acusa o livro de repetitivo,

esquece que ele é reiterativo e que cada página contém o todo do universo do próprio

livro". (Magalhães, 1985 - p.l0l)

O caso de A pedra do Reino mais a obra do artista-plástico Francisco Brennand são

mais exemplares do que outros exemplos, porque para Aloísio estes dois casos trazem a

marca da passagem das fases da intuição e da conceituação na cultura brasileira para a fase

da ação: ''Parece-me claro que, em relação ao processo cultural brasileiro, o primeiro passo

que se deu, no sentido da percepção desse valores autônomos e de seu possível

aproveitamento no sentido da formação de uma cultura brasileira própria, foi o da sua

intuição por alguns grandes homens brasileiros. A essa intuição segue-se naturalmente uma

60

conceituação. E, em terceiro lugar, a conseqüência lógica disso tudo é a ação. Não seria da

minha competência analisar detalhadamente esses grandes homens, mas citaria apenas dois:

Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Em ambos os casos, as duas primeiras etapas desse

processo civilizatório - intuição e conceituação - apresentam-se de maneira clara".

Neste ponto, quando Aloísio aplica seu método, sua maquinaria antropofágica, à

história recente brasileira, na busca de indicar o exemplo exemplar da etapa ação do

processo civilizatório brasileiro, é que acaba por praticar a sua maior ousadia estabelecendo

um exemplo espetacular do que seria uma marca essencial da cultura brasileira: "( ... ) a

construção de Brasília. Por mais que se queira negar, por mais que se queira, com pequenos

argumentos, diminuir a importância desse gesto, acredito firmemente que significou o

momento decisivo da ação cultural brasileira. Dentro da concepção de que nos trópicos

convivem pólos opostos, podemos dizer que Brasília tenta unificar o cartesiano e o barroco,

isto é, o espontâneo ou natural. E por que o aspecto cartesiano na construção de Brasília?

Por causa da necessidade de, através de um certo formalismo, de uma certa hierarquização,

de uma forma simétrica, realmente propiciar um sistema adequado ao desenvolvimento do

pensamento globalizante de todo brasileiro. E tudo que possa haver de excessivamente

cartesiano na concepção de Brasília foi rapidamente compensado, em termos de

espontaneidade, pelo surgimento de uma constelação de cidades satélites, trazendo pó, a

presença dos valores naturais, oriundos de todas as áreas brasileiras, balanceando os excesso

de racionalismo porventura existentes na cidade" (Magalhães, 1985 - p.99). "É uma cidade

construída pela razão, que abriga uma representatividade alta de brasileiros de um nível

cultural alto que são os homens que vêm com a preocupação de metodologia e de comando,

que poderia se tomar demasiadamente racional nessa relação e que é contrabalançada, nessa

61

situação, de imediato pela presença de uma representatividade em alto nível de

diversificação de tudo que é realmente peculiar ao fenômeno brasileiro". (Magalhães, 1985 -

p. 252 e 253)

Vale a pena um último exemplo, daquele que Aloísio cita durante a sua saudação ao

Presidente João Figueiredo, em 12 de novembro de 1979, na sede do IPHAN em Brasília.

Neste dia, o Presidente assinou três documentos que reformularam a estrutura do órgão

federal de proteção dos bens culturais brasileiros: instituindo a Fundação Nacional Pró­

Memória; transferindo o Programa de Cidades Históricas para o IPHAN; e transformando o

IPHAN em SPHAN, de Instituto para Secretaria no MEC:

''Finalmente, Presidente, não querendo mais me alongar, gostaria de lhe entregar um

objeto. É que, Presidente, nas minhas andanças pelo Brasil tenho encontrado muita coisa de

grande significado, de grande simbolismo, muita coisa que representa a invenção e a

capacidade de criação do homem brasileiro. Da Amazônia vem este bastão de comando

ritual dos nossos índios. A feitura, a feição fisica do instrumento, mostra bem que é um

bastão de comando. Entretanto, Presidente, no interior deste instrumento se esconde e está

guardado o oposto quase da idéia de comando, no sentido de presença fisica, que é o

sentimento musical, sentimento próprio do brasileiro. Este bastão, a qualquer movimento

que se faça com ele, produz o barulho da chuva, sinal de fertilidade, de criação. E ele, ao

mesmo tempo que é, na sua expressão de bastão de comando e de ordem, um objeto de

razão, esconde no seu interior o sentimento do homem brasileiro. Essa síntese me parece

muito própria do temperamento e do tipo de qualidade do homem brasileiro" (Magalhães,

1985 - p.72).

62

Aqui, mais do que o exemplo do artefato indígena do pau-de-chuva, mais uma marca

da cultura brasileira, é a própria situação um exemplo da ação da maquinaria antropófoga de

Aloísio Magalhães. Depois, de apontar em todas as direções, ela se volta para si mesma, e

passa a engolir todas as estruturas administrativas da área federal de cultura. Esta situação é

exemplar, porque simbolicamente marca - com a citação do bastão de comando ritual dos

índios - o início dessa ação abaporu para além dos exemplos culturais, artísticos ou

históricos. Em direção de si mesma.

Capítulo li: Lembranças do futuro: "Tupy or not Tupy"

Seria possível descrever a forma abstrata da maquinaria antropófaga de AM, do bem

cultural abaporu? Seria possível responder à pergunta como funciona e traçar seus manuais

de uso e manutenção? Poderíamos listar os dez pontos mais comuns de mau funcionamento

e orientar usuários?

Duas abstrações de AM poderiam cobrir essas questões. A primeira relacionada ao

que chama de memória biológica, em contraponto à idéia do senso comum de que um

indivíduo tem boa memória. E a segunda, a um aparato tecnológico relativamente antigo,

encontrado em várias culturas, com facetas de universalidade e que na brasileira tem o nome

especial de bodoque.

Se à palavra patrimônio está associado o sinônimo patrimônio arquitetônico, de

pedra e cal - o que faz Aloísio opor a ela a idéia de bem cultural, que incorpora patrimônio

de pedra e cal e vai muito mais além -, o mesmo acontece com a idéia de memória nacional

associada apenas ao ato de guardar o passado - que o faz opor a ela a idéia de memória

biológica: ''É preciso refletir um pouco sobre o conceito de memória nacional, que para mim

63

está a~ guardada nos grandes depósitos do saber que são o Museu Nacional, a Biblioteca

Nacional, o Arquivo Público, os órgãos regionais. A memória nacional está nos livros, no

trabalho do Instituto do Patrimônio Histórico, enfim, em todas as entidades que, ao longo

do tempo, se ocupam do problema da trajetória histórica da nação. A memória nacional,

portanto, não precisa ser procurada. O que precisa ser feito é a dinamização da memória

nacional, é a mobilização dessas informações guardadas para que participem da vida

nacional. E aí faço, de novo, o uso de uma imagem comparativa com o organismo humano.

Quando se fala em memória num sentido figurado, quando se empresta a idéia de memória a

um fato qualquer, em geral há uma tendência a se tomar isso como 'juntar' ou 'guardar'

alguma coisa, 'reter'. E isso me parece insatisfatório, eu prefiro o conceito biológico de

memória: guardar, reter, para em seguida mobilizar e devolver"(Magalhães, 1985 - p.67). A

definição é eminentemente antropófaga: reter - engolir -; mobilizar - regurgitar -; e devolver

- vomitar.

''Bom, em primeiro lugar eu acho o seguinte: essa palavra 'memória' eu nunca uso.

Porque para mim, pelo menos, ela conota uma coisa que é muito estática, como se fosse o

repositório parado onde se juntam, se guardam coisas, se guardam por guardar. Eu acho que

se você fosse tomar a palavra 'memória', teria que tomar num sentido mais fisiológico, ou

seja: guardar para poder trabalhar como elemento na direção de uma expressão. Eu acho

que o problema é que a dinâmica de uma cultura está sempre num tal movimento - numa

evolução, senão ela seria uma cultura morta -, que você tem que tratar esses elementos

dinamicamente" (Magalhães, 1985 - p. 220).

Para o sujeito que tem boa memória, as conseqüências dessa maquinaria são dificeis

de entender. Aloísio aponta uma delas: "Essa relação de tempo é curiosa porque é preciso

64

entender o bem cultural num tempo multi dimensional. A relação entre a anterioridade do

passado, a vivência do momento e a projeção que se deve introduzir é uma coisa só. É

necessário transitar o tempo todo nessas três faixas, porque o bem cultural não se mede pelo

tempo cronológico" (Magalhães, 1985 - p. 66). Dessa forma, "o tempo cultural não é

cronológico. Coisas do passado podem, de repente, tornar-se altamente significativas para o

presente e estimulantes do futuro" (Magalhães, 1985 - p. 67). O bem cultural abaporu é

especialmente extemporâneo, nos mesmos termos de Niesztche: era demais para a sua época

(Deleuze, 1974). ''E é nesse sentido que a tarefa da preservação do patrimônio cultural

brasileiro, ao invés de ser uma tarefa de cuidar do passado, é essencialmente uma tarefa de

refletir sobre o futuro". Em outras palavras, o bem cultural abaporu, realizado no presente,

são sempre lembranças do futuro.

De que tecnologia temporal estamos falando especificamente? Daquela associada à

maquinaria do bodoque: "Pode-se mesmo dizer que a previsão ou a antevisão da trajetória

de uma cultura é diretamente proporcional à amplitude e profundidade de recuo no tempo,

do conhecimento e da consciência do passado histórico. Da mesma maneira como,

analogicamente, uma pedra vai mais longe na medida em que a borracha do bodoque é

suficientemente forte e flexível para suportar uma grande tensão, diametralmente oposta ao

objetivo de sua direção" (Magalhães, 1985 - p.44).

Em outras palavras, essa ação da memória biológica, essência de um bem cultural

abaporu, pode ser descrita dentro de seu ambiente extemporâneo pela fisica de lançamento

de projétil desenvolvida pela ação do chamado bodoque. Portanto, se estamos nós no

ambiente extemporâneo de um bem cultural abaporu qualquer, o plano onde se encontra a

forquilha do bodoque é o tempo presente. A sua superficie, encrostada no plano presente e

65

única com ele, determina para frente o espaço infinito do futuro e para traz o espaço infinito

do passado. A globalidade do fenômeno - futuro/forquilha/passado - é extemporânea como

um todo, mas também em um ponto específico: no projétil, como se poderá ver mais

adiante.

Dessa forma, a borracha da forquilha pende preguiçosamente num tempo passado

recente, presa na atualidade da madeira. E o projétil um composto rochoso - ou não -,

resultado do amálgama de várias gerações geológicas definidas culturalmente, e

especialmente selecionado pela sua adequação ao abstrato espaço para projétil da borracha

presa na forquilha, é pressionado por uma força exterior consciente contra a borracha que o

envolve. Nesse momento, devemos considerar que a escolha do projétil e a pressão que

sofre na borracha (e a própria tensão da borracha) ao ser puxada na direção diametralmente

oposta a que será lançado correspondem ao que Aloísio chama identificação. Ela é

representada pelo sentido presente/passado.

Claro que podemos entender que se o projétil não for suficientemente resistente para

agüentar a pressão dos dedos sobre a borracha que o pressiona, ele - o projétil - irá

esfarelar. Situação que deve ser encarada como um momento positivo da identificação.

Esfarelar ou não, e uma borracha que suporte grande tensão são momentos importantes para

identificação de indicadores culturais. A borracha, flexível e ao mesmo tempo resistente,

pode ser analogamente, por exemplo, identificada com o Centro Nacional de Referência

Cultural: "Somos um projeto elástico" (Magalhães, 1985 - p.19). Aloísio não esconde.

Então, diz-se que a força exterior é consciente porque tensiona o máximo necessário

para atingir o alvo e não o máximo suportável pelo conjunto borracha/projétil. É também

consciente porque ajusta a forquilha na direção do alvo. Há aqui, naturalmente, uma ação

66

conscientemente balística e o alvo é o conteúdo - ou o produto - cultural que se quer atingir.

E o projétil é lançado. Mas antes, é preciso que se diga, que essa consciência balística

composta pelo ajuste da direção ao alvo, pelo ajuste da força de tensão ao alvo e pelo

conhecimento propriamente gravitacional da trajetória de um projétil indica o início da

segunda fase, que Aloísio chama de indexação. O conhecimento balístico é, simplesmente, a

lógica da indexação e esta fase é propriamente representada pelo momento especial do

ajuste para o alvo (direção/tensão/gerenciados pelo conhecimento balístico) até o momento

especial em que o projétil já lançado passa pelo espaço vazio entre as hastes da forquilha. A

indexação é, portanto, representada pelo sentido passado/presente.

Por fim, o momento especial da passagem do projétil pelas hastes da forquilha é

temporalmente complexo, pois ali residem todos os sentidos temporais. Ali também se

realiza, além dos sentidos indicados mais acima, o sentido presente/futuro. Mas

principalmente se realiza, por anterioridade lógico-temporal, o sentido presente/presente.

Este sentido representa a fase considerada por Aloísio como a mais importante de toda a

trajetória, e ao mesmo tempo, o diferencial das idéias comuns de (ter boa) memória e

patrimônio (de pedra e cal). O sentido presente/presente é o momento da devolução à

comunidade dos resultados da identificação e da indexação.

No momento especial da devolução, o projétil ganha o ar e - já que o sistema

forquilhalborracha/força consciente foi desmobilizado - passa a realizar em si todo o

sistema. O projétil e sua trajetória passam a conter todas as forças de realização do seu vôo,

isto é, todo o sistema anteriormente ativado, todos os sentidos temporais. O projétil, de

determinada perspectiva, contém a semente de outro bodoque/projétiVforça consciente; de

outro bem cultural abaporu. Pode-se ver como é importante que a analítica da trajetória seja

67

explicitada no momento da devolução, onde a sua precisão é o parcial rebatimento da

trajetória, registrada pelo sentido da indexação no eixo de reflexão presente/presente

oferecido pelo momento da devolução. Assim, Aloísio o expressa: "Os três momentos se

intercomunicam e interagem continuamente num processo de reflexão" (Magalhães, 1985 -

p. 56). Isto é, quando a fase de identificação se inicia já traz em si fragmentos de indexação,

projetando a devolução; o mesmo podemos dizer da indexação, onde a sua própria

realização são momentos tímidos mas já evidentes de devolução e momentos finais da

consolidação da identificação; e a devolução - que necessariamente é composta por uma

analítica da trajetória balística - identifica a identificação e indexa a indexação ao devolver

também a devolução.

Ainda por fim, deve-se destacar que o projétil, em qualquer momento de que

participe, traz em si o presente absoluto, como se ele esticasse o plano presente nos vários

sentidos que realiza, para frente ou para trás. Dito de outra forma: o projétil traz em si a

extemporaneidade de todo o conjunto abaporu. Ele nasce no presente, pela reação à força

consciente realizada pela borracha ancorada na forquilha. Carrega o presente até o máximo

passado da tensão e o atualiza (o toma novamente presente) ao refazer a trajetória inversa -

note-se bem: somente por causa da flexibilidade tensionada da borracha. E leva o presente

ao futuro ao passar pelas hastes da forquilha e o realiza (toma o futuro, presente) pela

analítica da trajetória e por sua pontencialidade de tomar-se um novo bodoque.

Assim, é o mundo de Aloísio: vários bodoques/projétis/forças conscientes

acontecendo extemporaneamente e se multiplicando em novos bodoques e muitas vezes

chocando-se em pleno vôo e se auto-germinando e se auto-determinando bodoques

voadores, até que a balística se tome o estudo da força gravitacional planetária, cósmica,

68

astronáutica. Por isso, ele diz que a cultura é altamente dinâmica. E assim é o mundo de

Aloísio: antropofágico. "Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.

Filosoficamente. Única lei do mundo" concorda Oswald (Manifesto Antropófago, 1928).

Nesse mundo de estilingues e refeições canibais, tudo muda, sempre. O que seria por

exemplo o ato de tombar um monumento? Na Revista do Patrimônio 22 (coincidência com

Semana de 22?), comemorando 50 anos de SPHAN, no artigo "Documentos Históricos,

documentos de cultura", Antonio Augusto Arantes aborda o que poderia ser dessa

perspectiva balística o ato de tombar: "( ... ) Os bens do patrimônio cultural não são apenas

signos que constituem discursos do presente sobre o passado. A meu ver, seja respondendo

às exigências e restrições ditadas pelos paradigmas técnico-conceituais adotados pelos

especialistas, seja atendendo ou não aos gostos, desejos, necessidades e ambições de

proprietários e usuários, a ação preservacionista coloca freqüentemente esses bens em

contraste critico com os seus equivalentes contemporâneos (sobretudo na questão

ambiental). E, em conseqüência disso, ainda que pertencendo ambivalentemente ao presente

e ao passado, eles devem ser interpretados como signos novos, articulados em linguagem de

hoje e constitutivos de práticas sociais atuais" (Magalhães, 1985 - p.53).

Melhor exemplo para a utilização acadêmica do bodoque não há: Engolir - regurgitar

- vomitar. O que se vomita? Sempre algo novo, irreconhecível para quem se assenta no

passado ... ou melhor: que pensa ser possível fazer este tipo de reflexão de purificação sobre

o passado. Tombar como um ato de preservação do passado não existe: "Se Versalhes

falasse é uma utopia reacionária e saudosista e não uma façanha para o bico de técnicos em

restauração", diria Miceli (SPHAN, 1987). E por quê? Porque a cada projétil lançado pelo

bodoque, nova é a força consciente - sócio-cultural - que o impulsiona, em outra missão,

69

para além daquela anterior para qual o material rochoso do qual o projétil fazia parte exigia.

Nas palavras de Antonio Augusto Arantes (SPHAN, 1987), "pode-se argumentar que os

registros que se produzem sobre os acontecimentos passados são, também, interpretações

culturais desses acontecimentos. Os chamados documentos históricos são, também, nesse

sentido, documentos de cultura e para que se possa interpretá-los adequadamente, sem

simplificações ou reducionismo, passa a ser de extrema relevância colocarmos a nós mesmos

e a nossa atividade na condição de objeto e formularmos, com a isenção possível, questões

do tipo quem, quando, onde, como, por que, e com que conseqüências,,9.

9 É a analítica da trajetória. Talvez não haja definição melhor do que esta oferecida por Arantes. 70

Ou seja, passa a ser relevante todo o contexto da prática preservacionista e, mais

uma vez, não apenas o seu resultado" (Magalhães, 1985 - p.54). Em Oswald (Manifesto

Antropófago, 1928) pode-se encontrar que "o espírito recusa-se a conceber o espírito sem

corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as

religiões de meridiano. E as inquisições exteriores".

Capítulo IV: O bodoque bem manejado ou "contra a memória fonte do

costume".

Pode-se então agora considerar com toda a profundidade necessária porque, por

onde passa, Aloísio busca convencer da inventividade do povo brasileiro. Trata-se de uma

única questão que pode ser valorizada a partir de duas diferentes perspectivas: uma relativa

ao manejo do bodoque; outra relativa à conservação de nossa identidade. Questão única de

vários formatos que pode ser retirada de uma entrevista datilografada pertencente ao acervo

da antiga Rio Gráfica e Editora: "( ... ) de onde viria a grande capacidade de invenção do

brasileiro?" Questão que ganha importância, pela comentário de Aloísio - já citado

anteriormente: ''Bom, a capacidade de invenção, para mim, cada vez se toma mais clara ser

o grande atributo do homem brasileiro". (Magalhães, 1985 - p.171 e pp.47 e 48).

Em síntese, para Aloísio, a partir da primeira perspectiva, a capacidade de invenção é

o grande atributo do homem brasileiro porque o bodoque aloisiano é bem manejado por ele.

Aqui, precisamos dar um passo atrás e lembrar que o bodoque de Aloísio é resultado

de suas reflexões sobre a dicotomia entre a idéia de ter boa memória versus memória

biológica. E que, portanto, o movimento extemporâneo do bodoque é, na verdade, o jeito

natural de ação da memória biológica. Isto é, todas as ações-reflexões-vontades humanas do

71

nosso universo só se realizam pelo mecanismo naturalmente acionado da memória biológica,

isto é, do bodoque aloisiano. Ora se o mecanismo de ação humano-universal é o do

bodoque, do quê que aqui se trata afinal? Se as coisas naturalmente se passam assim, qual é

a questão afinal? Bem, trata-se do bom ou do mau manejo do bodoque.

Dentro dessa perspectiva, ter capacidade de invenção é então manejar

antropofagicamente bem o bodoque da memória biológica. Os exemplos desse bom manejo

pelo povo brasileiro são imensos, e muitos já foram citados acima, mas cabe dizer que

elencá-Ios, aqui, neste momento, é porque todo o elenco está a serviço de um lançamento de

projétil específico em Aloísio, aquele da máquina cultural pública.

''Única lei do mundo. ( ... ) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do

antropófago". Em Oswald (Manifesto Antropófago, 1928), é claro, pois nada é meu, nem

mesmo o meu passado, pois tudo muda, tudo se transforma. Heráclito e o rio renovado a

cada dia, citação tão comum para nós do Ocidente e tão subestimada. Também em Aloísio.

Nesse aparente caos, cabe reconhecermos os marcos, as referências. É a questão da

perspectiva da conservação da identidade de um povo.

Portanto, a segunda perspectiva da questão única sobre a inventividade do povo

brasileiro, a da conservação da identidade, ganha um dinamismo completamente

improposital ao que normalmente se chama de identidade de um povo. A sua identidade é

reconstruída diariamente, principalmente por aquele povo que maneja bem o bodoque.

O que é propriamente manejar mau o bodoque? Escolher mau o projétil e ele

esfarelar no momento da forte pressão na borracha. Escolher um projétil maior do a abertura

da forquilha. Tensionar a borracha a ponto de perder a sua elasticidade ou arrebentá-la.

Desmerecer a relação entre força e mira, pressão e elasticidade da forquilha, alvo e

72

consciência balística. Em todos esses, pelo menos a última fase do bem cultural abaporu -

por isso a mais importante pois completa o processo da memória biológica - fica

comprometida. A devolução, conseqüência lógico-natural da identificação e da indexação, e

seu natural feedback não acontecem. A participação do povo é perdida. Se a esta

participação não se chega e dela portanto não se pode também participar, fases de

identificação e conservação da memória são momentos paradoxais de um movimento não

realizado. Portanto, na máquina pública cultural, o bom manejo do bodoque trata de romper

ilusões como a de conservar a memória, isto é, de que para um povo se desenvolver é

preciso ter ''boa memória" do seu passado. Ou de que é possível fazer uma ação de

preservação histórica sem que isso seja uma atualização de um passado e, portanto, sua

transmutação em peça do presente e, por fim, a sua transfiguração em "signo novo"

(SPHAN, 1987), de futuro, irreconhecível do ponto-de-vista memorialista. A não ser é claro

que se faça uma analítica da trajetória, antropofágica, que é obviamente o lançamento de

mais um projétil.

A radicalidade da questão em Aloísio pode ser vista quando ele fala do turismo.

Opinião que facilmente chegou a ser mal interpretada. Diz Aloísio, diante da pergunta sobre

as pressões para se desenvolver aceleradamente, quando a política do patrimônio está

voltada para o uso e a exploração turística dos bens, fazendo-os sofrer alterações para pior:

''Uso é uma coisa muito mais ampla. Se no caso preciso da restauração de um conjunto em

Salvador, ele vai ter um beneficio em relação ao melhor ritmo do turismo, ele tem muito

mais quando você verifica o revocacionamento de comunidade em tomo daquela área. Você

tem outros fatores que são muito mais poderosos, muito mais importantes na definição de

uma consciência brasileira sobre bens culturais do que o turismo. Eu daria um 0,0 (zero

73

vírgula zero), não sei, à dinamização para o turismo. Não é um demérito em relação ao

turismo. É apenas mostrando que a coisa é muito mais profunda do que simplesmente o

fator turismo" (Magalhães, 1985 - p.183). O bom manejo do bodoque é muito mais

importante e o "revocacionamento" para o uso comunitário de um bem tombado é atingir o

ponto de mira e estímulo da criatividade de uma comunidade. O turismo cultural francês foi

potencializado pelas políticas culturais daquele país em função da alta densidade de

patrimônio cultural acumulado - e não o contrário (nota: sobre cidades culturais mundiais)!

E é essa compreensão profunda de Aloísio que produz sedução nos governos

militares que o apóiam. A crença no tema da inventividade do povo brasileiro é tão grande

em AM que - como no caso de MA com Vargas - AM também é favorecido pela ideologia

nacionalista dos governos militares. À época dos militares, deve-se considerar que é um

discurso muito sedutor para estes. A busca do desenvolvimento empreendida pela últíma

geração dos militares do golpe leva a crer na busca de uma terceira via, na busca do que é

nacional, na busca de soluções brasileiras - nem capitalismo selvagem, nem comunismo ateu.

Do ponto de vista de muitos historiadores, a questão de soluções brasileiras pode ter

um embasamento frágil dentro do imaginário militar, já que desconectada da sociedade que

suporta o seu poder. Mas de nenhuma maneira o mesmo pode ser dito da questão das

soluções brasileiras em Aloísio. Como não se pode, em Mário de Andrade, na sua relação

com o governo getulista.

Não há dúvida de que o discurso de Aloísio o aproximou dos discursos - sentimentos

talvez - dos militares. A possibilidade de não ter que se entregar aos ímperialistas,

capitalistas ou socialistas. O discurso era um bálsamo para os ouvidos militares. Mas em

Aloísio, o bom manejo da criatividade por um povo indica não só a sua inclinação e

74

flexibilidade para fazer surgir o novo como uma comunhão rica e profunda com o seu

passado. Tão rica que ele pode afirmar que nada há de novo, por mais novo que possa

parecer (Magalhães, 1985 - p.37 e seguintes). E isso vai muito além do que se podia esperar

dos governos militares.

No entanto, em função da parte que tocava os militares, agradecidos, estes

favorecem o bom trânsito da máquina de Aloísio 10. E o bem cultural abaporu, o novo design

do patrimônio antropofágico, passa, então, a devorar tudo com cada vez mais desenvoltura,

com cada vez mais vontade. Os poucos meses que se seguem a 27 de março de 1979

quando Aloísio é empossado no cargo de Diretor-Geral do IPHAN pelo então ministro

Eduardo Portella até 13 de junho de 1982, quando vem a falecer, são especialmente

degustáveis para a história antropofágica dos organismos culturais governamentais.

Segundo a cronologia de José Laurênio de Melo (Magalhães, 1985 - p.28 a 36), já

logo após de sua posse, em abril de 79, sob o impacto das chuvas, Ouro Preto, que sofre

com deslizamentos de terra, leva Aloísio a iniciar seus trabalhos como Diretor do IPHAN

promovendo um seminário que leva não só à mobilização de recursos técnicos e financeiros

para a estabilização do solo e recuperação da área urbana como promove o surgimento de

várias iniciativas de ação comunitária. O seminário de Ouro Preto ficou conhecido como o

início de uma nova prática do IPHAN: o diálogo com as populações dos centros históricos

protegidos, principal instrumento de abordagem dos problemas de preservação de tais sítios

a partir de então. Neste mesmo ano, acontecem o Seminário de Paraty, a Convenção sobre a

Renovação Urbana de Praia Grande (São Luís do Maranhão), o Encontro em Defesa do

Patrimônio Cultural de Olinda e outros.

75

Em maio, Aloísio cumpre o Regimento Interno do IPHAN instalando a Primeira

Diretoria Regional do órgão. Previstas em nove, desde 1976, a primeira e a segunda não

haviam sido implantadas. A segunda ficaria para o próximo ano. Ala. Diretoria Regional

compreendia os Estados do Amazonas, Pará, Acre e os Territórios do Amapá e de Roraima.

Sua sede ficou localizada na cidade de Belém.

No meio do ano de 1979, iniciam-se os estudos para a incorporação ao IPHAN do

Centro Nacional de Referências Cultural (CNRC) e do Programa de Cidades Históricas

(PCH). Este último, havia sido criado em 1973, tendo característica interrninisterial e

atuando intimamente ligado ao IPHAN. Tinha como finalidade revitalizar os núcleos

históricos e fomentar a integração comunitária, através da formação de recursos humanos e

geração de empregos em núcleos históricos, inicialmente do Nordeste e posteriormente do

A fusão ia de encontro às idéias de Aloísio de que, não era possível cumprir todo o

ciclo do bem cultural, se não fosse garantida de forma regular, e portanto institucional, a

fase da devolução à população dos trabalhos de identificação e indexação desses bens. Por

outro lado, se o IPHAN representava essa âncora institucional, o CNRC e o PCH traziam o

dinamismo perdido aos centro de reflexão deste Instituto, lacrado em suas ações de pedra e

10 Miceli (1981) destaca o que ele chama de Tríplice Aliança: o ministro General Golbery, Afonso Arinos e Lúcio Costa 11 Em janeiro de 1973, por solicitação dos ministros do Planejamento e da Educação, foi nomeado um grupo interministerial, constituído de representantes do MEC, do Ministério do Planejamento. do Ministério do Interior (Sudene) e do Ministério da Indústria e Comércio (Embratur). Sua finalidade era efetivar estudos sobre a situação do patrimônio histórico do Nordeste, possibilitando uma restauração e aproveitamento integrados, baseando-se no surgimento econômico, social e fisico dos núcleos históricos, proporcionando a sua ocuupação e, em consequência, a salvaguarda dos valores culturais. Em 21 de maio de 1973, foi criado o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste. com sua utilização para fins turisticos, abrangendo Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco. Paraiba. Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. A dotação orçamentária específica do Fundo de Desenvolvimento de Projetos Integrados. Em junho de 1975 foi criado grupo de trabalho encarregado de executar proposta do programa para o Espírito

76

cal. Dessa forma, pelo Decreto 84.198 de 13 de novembro de 1979, o presidente João

Figueiredo transforma o Instituto em Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, a SPHAN. No dia 26 do mesmo mês, o Congresso Nacional vota a Lei 6.757 que

autoriza o poder executivo a instituir a Fundação Nacional Pró-Memória. Em 30 de

novembro, portaria do Ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portella, atribui à Aloísio

os encargos referentes à implantação e ao funcionamento da SPHAN, órgão normativo, e da

Pró-memória, órgão operacional, responsáveis em nível federal pela preservação do acervo

cultural e natural do país.

O ano de 1980, não seria menos animado do que o anterior, iniciando-se com dois

decretos do Presidente da República que, em 16 de janeiro, aprova o estatuto da Fundação

Nacional Pró-Memória e nomeia Aloísio Magalhães presidente da Fundação. Já como

Secretário da SPHAN e Presidente da Pró-Memória, em fevereiro, Aloísio participa de

reuniões de trabalho em São Luís, que tratam do projeto de revitalização do centro histórico

da capital maranhense.

Faz parte do projeto a restauração do prédio e a reativação econômica do

Laboratório-Farmácia Vital de Mattos, por seu caráter exemplar de atividade produtiva

voltada para a utilização de matérias-primas da região, em fins do séc. XIX. Durante o

encontro, foi instalada a 2a. Diretoria Regional da SPHAN, sediada em São Luís e

abrangendo os estados do Maranhão, Piauí e Ceará.

Em fevereiro, Aloísio também participou de reunião do Comitê do Patrimônio

Mundial da Unesco, em Paris, para pleitear a inscrição de Ouro Preto na lista dos

monumentos reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade.

Sant, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A consolidação dos objetivos do PeR foi finalmente obtida com a

77

Em abril, foi a Londres, e com o apoio do Banco do Brasil e do Ministério das

Relações Exteriores arrematou em leilão cinco lotes de documentos originariamente

integrantes dos autos da devassa da Inconfidência Mineira. E os devolveu à população de

Minas Gerais.

Em agosto, Aloísio inaugura o Museu ao Ar Livre de Orleans, resultado de proposta

da comunidade local com apoio da Pró-Memória, destinado a preservar - em funcionamento

e a disposição da comunidade - a tecnologia dos imigrantes que colonizaram o sudeste de

Santa Catarina.

Em dezembro, o novo Ministro da Educação e Cultura, General Rubem Ludwig,

designa Aloísio Magalhães como responsável também pela Secretaria de Assuntos Culturais

(SEAC) e pelos estudos da fusão da SEAC com a SPHAN.

E, aqui, então, é preciso contar outra história, aquela sobre o outro braço dessa

forquilha, que faria par com o braço SPHAN+CNRC+PCH, unidos ao tronco da criação da

Secretaria de Cultura do MEC e que completa figura do bodoque de Aloísio.

Capítulo V: A degustação do que é propriamente cultural ou "Só me interessa

o que não é meu".

Enquanto a vertente patrimonial se desenvolvia desde 1936 - mais efetivamente a

partir do ante-projeto de Mário de Andrade -, onde estavam aportadas no governo federal as

áreas propriamente culturais, suas companheiras?

Assim como a vertente patrimonial, sempre estiveram ligadas ao Ministério da

Educação, que também nem sempre foi propriamente educacional. Sua primeira versão

integração deste ao IPHAN e posteriormente ao sistema SPHANlPró-Memória. 78

chamava-se Ministério da Educação e Saúde Pública, criada em 14 de novembro de 1930. O

Ministério da Educação e Cultura surgiu somente em 25 de julho de 1953, quando também

foi criado o Ministério da Saúde.

Durante este primeiro período, de 1930 a 1953, as instituições de educação extra­

escolar do Ministério da Educação e Saúde Pública incluíam o Instituto Nacional do Livro,

o Serviço Nacional do Teatro, o Serviço de Radiodifusão Educativa, a Casa de Ruy

Barbosa, a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico Nacional, o Museu de Belas-Artes. Junto

às instituições de educação escolar, isto é, universidades, colégios e liceus federais, estava

ainda o Instituto Nacional de Cinema Educativo.

Com a criação do Ministério da Educação e Cultura, no entanto, a área cultural

começa a ter formato institucional muito mais tarde do que a educacional. Os primeiros

movimentos se iniciam em 1969, durante gestão do ministro Jarbas Passarinho com a

criação da Embrafi1me (extinguindo o Instituto Nacional do Cinema), a já mencionada

transformação do IPHAN em Diretoria (1970) e a criação do Departamento de Assuntos

Culturais (DAC). Este último ainda com um formato institucional amebóide - nada mais

informe do que a palavra assuntos -, mas mesmo assim um avanço ao definir-se seus limites.

Destaque ainda nessa gestão para o Programa de Reconstrução de Cidades Históricas - o

PCH - da Seplan e o lançamento do Programa de Ação Cultural (P AC) - todos os três de

1973.

Quanto ao último, o PAC, deve-se uma especial atenção. Ele é um dos embriões do

que costumou-se chamar de vertente executiva da área cultural do MEC, em contraposição

à vertente patrimonial. Segundo Miceli (1981 - p.55), além de oferecer abertura de crédito -

financeiro e político - a áreas desassistidas pelos demais órgãos federais, representou uma

79

tentativa oficial de melhoria do relacionamento do governo para com meios artísticos e

intelectuais.

As funções de formulação de políticas e coordenação a cargo do Departamento de

Assuntos Culturais - DAC, não impediram que o P AC firma-se um novo estilo e uma

doutrina própria de prática cultural, operando com núcleos e grupos tarefas voltados para o

atendimento de várias áreas de produção (teatro, dança, literatura, patrimônio e artes-

plásticas). Para Miceli, a sua flexibilidade vinha do vultoso montante de recursos a sua

disposição além da possibilidade de contratar pessoas fora da estrutura funcional de carreira

Portanto, pela rigidez das pautas de atuação de outros órgãos especializados do

MEC (tipo INL, INC e SNT) e exiguidade de recursos, a flexibilidade financeira e

operacional do P AC permitiu a sua atuação como agenciador de repasse de recursos.

Somando-se a isso, o apoio a grupos de produtores atuantes mais sem representação

adequada no governo, levou ao P AC à construção de uma legitimidade considerável dentro

do espaço institucional do MEC, constituindo-o num poderoso e moderno empresário de

espetáculos, abrindo novas frentes no mercado de trabalho cultural.

Para se evitar os conflitos internos, essa vertente executiva foi sendo cada vez mais

acentuada pelo P AC, principalmente para evitar resistências por parte da equipe que

conduzia a vertente patrimonial do MEC. "O evento - conclui Miceli (1987) - passou a ser a

antítese do tombamento ", num esforço que, mesmo assim, não conseguiu contornar as rotas

de colisão com os outros órgãos.

11 A dotação orçamentária do PAC. proveniente do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, só foi suprimida em 1979. pela gestão Eduardo Portella.

80

Miceli realça que, à medida que as "rotas de colisão" foram se acentuando, o PAC

foi sendo enxugado. Em seu auge, o PAC chegou a ter aproximadamente 130 funcionários,

70 envolvidos diretamente no Programa e 60 cedidos por outros órgãos do MEC. Mas seus

próprios dirigentes resolveram recuar e extinguir núcleos que pudessem indicar avanços

sobre áreas institucionalizadas. O P AC passou a repassar recursos para áreas afins a projetos

aprovados: teatro, SNT, folclore; Campanha Nacional do Folclore Brasileiro e assim por

diante. Esta retração acarretou a diminuição de funcionários e acirrou os debates em tomo

da institucionalização de seus trabalhos, numa fórmula que preservasse a autonomia de

contratações e os recursos do FNDE. Um banco de cultura era o formato que se acreditava

ser capaz de financiar pedidos de empresários teatrais, produtores cinematográficos, artistas­

plásticos, músicos e orquestras.

Tais demandas culminaram com a criação da Fundação Nacional de Arte (Funarte)

em 1975, muito aquém dos desejos acima explicitados e incluindo inicialmente apenas as

artes-plásticas, a música erudita e as atividades desenvolvidas pela Campanha de Defesa do

Folclore Brasileiro13. Mas, as razões substanciais não se limitaram a uma tentativa de melhor

relacionamento com os intelectuais e artistas, nem tampouco aos trabalhos bem sucedidos

dos administradores do P AC e DAC. A criação da Funarte estava estreitamente ligada -

como ficou expresso em seu primeiro formato institucional - às crises nas áreas da música

erudita (Orquestra SinfOnica Nacional) e das artes-plásticas (Museu de Arte Moderna) na

cidade do Rio de Janeiro. A Funarte trouxe para essas áreas principalmente a garantia de

galerias, exposições itinerantes, monografias e abertura de espaço para os artistas e

produtores dos mercados regionais. Estamos precisamente na gestão Ney BragaJEuro

81

Brandão (74 a 78), que em seu último ano cria a SEAC (Secretaria de Assuntos Culturais do

MEC).

Segue-se a rápida gestão de Eduardo Portella no ano de 1979, com suas principais

transformações conduzidas na vertente patrimonial do MEC, com a extinção da dotação

orçamentária do FNDE para o P AC.

E voltamos onde estávamos, em 1980, com o início da gestão de Rubem Ludwig no

MEC que ao entregar a direção da SEAC a Aloísio - que já presidia a Pró-Memória e dirigia

a SPHAN - solicita o desenvolvimento de estudos para criar a Secretaria de Cultura do

MEC, fundindo todos os organismos culturais abaixo de uma mesma coordenação.

o texto de Aloísio publicado na revista Cultura - número 36 com o título "As duas

vertentes do bem cultural" é extremamente esclarecedor daquele momento institucional, bem

como de suas principais tendências e questões:

"Agora, ao assinar a Portaria 274, de 10 de abril de 1981, criando a Secretaria de

Cultura (SEC), 'por transformação das Secretarias do Patrimônio e Artístico Nacional

(SPHAN) e de Assuntos Culturais (SEAC)', o ministro Rubem Ludwig fornece o necessário

respaldo institucional para que se tenha, no MEC, um único órgão central, de direção

superior, na área da cultura.

"A fim de viabilizar a idéia das duas vertentes, a Secretaria de Cultura conta com

duas subsecretarias. A Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e a ela

compete aprovar, dirigir e coordenar os programas, projetos e atividades referentes ao

inventário, classificação, tombamento, cadastramento, conservação e restauração dos bens

de interesse natural e cultural.

13 Quando foi criada a Campanha de Defesa do Folclore. em 1975. ela estava subordinada ao Departamento

82

''Por seu lado, à Subsecretaria de Assuntos Culturais (SEAC) compete planejar,

coordenar e supervisionar a execução de atividades de estímulo às manifestações culturais,

dando apoio às entidades federais, estaduais, municipais e privadas, evitando duplicidade de

atuação. Ela poderá, ainda, executar, supletivamente, projetos culturais cuja exemplaridade

ou necessidade de coordenação assim o recomende.

"A fim de descentralizar suas atividades e agilizar suas atuação, a Secretaria de

Cultura conta ainda com duas fundações, correspondentes às duas subsecretarias, às quais

fica reservado o papel de articular e dinamizar seus respectivos sistemas. São elas a

Fundação Nacional de Arte (Funarte) e a Fundação Nacional Pró-Memória (Pró- Memória),

que se reportam, respectivamente, à SEAC e à SPHAN.

"A Pró-Memória tem ainda os Museus da Inconfidência, do Ouro, de São João del­

Rei, do Diamante, de Caeté, das Bandeiras, das Missões, da Imigração, de Arqueologia e

Artes Populares de Paranaguá, de Arte Sacra de Santa Rita e mais quatorze casas históricas

em diversos estados. Por seu lado, a Funarte abriga os Institutos Nacionais de Música, de

Artes Plásticas e do Folclore.

"Além disso, fazem ainda parte do sistema a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico

Nacional, o Museu Imperial, o Instituto Nacional do Livro, a Fundação Joaquim Nabuco, a

Fundação Casa de Rui Barbosa, a Empresa Brasileira de Filmes SI A, o Serviço Nacional de

Teatro, o Museu Nacional de Belas-Artes e o Museu Villa-Lobos.

"Especialmente, pelo território nacional, a Secretaria da Cultura contará com

diretorias regionais e representações, às quais competirá executar as atividades das

subsecretarias em suas respectivas jurisdições.

de assuntos Culturais. É incorporada à Funarte em 1978.

83

"Não se trata, como já foi dito diversas vezes, de criar um ministério da cultura,

embora não se possa descartar esta idéia para um futuro ainda distante, quando o avanço do

processo brasileiro vier a exigir a separação entre educação e cultura. Mas, por enquanto,

isto é prematuro e indevido, pois um ministério da cultura seria fatalmente um órgão fraco,

tanto do ponto de vista financeiro quanto do conceitual.

''Por enquanto, em nosso pais, não se pode divorciar cultura e educação, mas, muito

ao contrário, é necessário incentivar o estreitamento das relações entre as duas áreas, em

virtude do papel primordial que o processo cultural desempenha no educacional, na medida

em que uma educação desprovida do seu contexto sócio-cultural não passa de mera técnica

sem grande utilidade ou a serviço da progressiva perda de identidade nacional. Não há

desenvolvimento harmonioso e nem se faz uma nação forte se, na elaboração das políticas

econômicas do país, não são levadas em consideração as variáveis culturais e o papel que aí

desempenha o sistema educacional" (Magalhães, 1985 - pp. 136 a 139).

Neste momento, tudo foi devorado. Há um ritual antropofágico: o bodoque

aloisiano.

Fincada na realidade brasileira está a SEC, que se divide, criando uma forquilha. Na

pnrnelra haste da forquilha: SPHAN+CNRC+PCH; na segunda haste,

SEAC+PAC+lnstitutos de Cultura e outros órgãos como a EMBRAFILME. A borracha

pendendo: Pró-Memória e Funarte. Certo, faltam muitos ajustes que nunca irão acontecer14,

nem mesmo com a gestão de Celso Furtado15, já como Ministro da Cultura. Mas a estrutura

essencial foi realizada por Aloísio justamente neste momento, através da Portaria 274, de 10

de abril de 1981, do ministro Ludwig, que a materializou.

14 O artesanato nunca conseguiu se transforma em IPHAN.

84

o bodoque aloisiano existiu por apenas dois anos - mas existiu como uma

concretização das melhores concepções de Mário de Andrade: Uma utopia antropofágica:

macunaíma. Então, do que se trata mais uma vez?! Da "única lei do mundo". Pelo texto de

Aloísio citado acima, podemos divisar um conjunto de questões, das mais específicas para a

mais geral, seguindo-se o mesmo caminho de AM. E, sem o menor tropeço ou dúvida,

pode-se ir dos objetivos à missão de um sistema governamental de cultura. Deve-se repetir:

sem o menor tropeço ou dúvida.

Pois então a primeira questão: a diferença entre a vertente do bem patrimonial e a da

produção, circulação e consumo da cultura. A vertente patrimonial está "preocupada em

saber guardar o já cristalizado em nossa cultura, buscando identificar esse patrimônio,

recuperá-lo, revitalizá-Io, referenciá-Io e devolvê-lo à comunidade a que pertença". Já a

outra vertente está ''voltada para a dinâmica da produção artística nos vários setores, como

literatura, teatro, música, cinema, artes plásticas, etc., na qual se está atento para captar o

que ocorre na realidade brasileira e estimular onde for necessário, para, mais tarde,

eventualmente, verificar o que, do material obtido, cristalizou-se e incorporou-se à dimensão

patrimonial" (Magalhães, 1985 - p.135).

Neste ponto deve-se destacar a expressão saber guardar. Aloísio não diz,

simplesmente, guardar o já cristalizado, mas saber guardar. Trata-se de uma sabedoria, pois

a primeira pergunta, simples e complexa, que deve ser respondida, segundo ° prof. Irapoan

Cavalcanti16, é: O que deve ser preservado, na linha do tempo?

Isto é: fosse possível a partir do presente, abrir uma janela temporal para o passado,

com o intuito de responder à pergunta ist%u/aquilo deve ser preservado, teríamos três

15 Reconhecida gestão estruturadora do Ministério da Cultura atual.

85

respostas possíveis: sim, não, talvez. Sim quando, no presente, o objeto é completamente

visível pelos seus registros e seus contornos materiais. Não, quando no presente, apenas

poucos registros são visíveis e o objeto é invisível. Talvez, quando no presente, temos

registros visíveis e partes de contornos materiais (Ver esquema Irapoan).

A complexidade das respostas sim/não/talvez está na definição de quem, quem

determina os contornos visíveis. Quem? Diante da janela do presente para o passado, quem

olha, quem pode olhar? Dependendo de quem vê, todos os contornos são influenciados, a

própria faculdade da visão é redefinida, é qualificada: míope, estrábica, parcialmente

danificada, cega. Ou sempre normal. Para quem vê, para quem pode ver, sua visão sempre

pode ser - é - qualificada de padrão normal. Nesse ponto nunca foi demais apoiarmos

Deleuze (1988), ou para os mais conservadores, Pierre Bordieu (1992). Não estamos em

uma posição divina onipresente. Sempre se olha de algum lugar. Deve-se buscar dessa forma

sempre se aumentar o número daqueles que olham e do seu consenso sobre o que é visível e

também explicitar sempre os critérios, isto é, de onde se olha. Isso, simplesmente porque em

algum momento - em algum rápido momento -, o lugar do qual se olha, e todos que neles

estão, passará inevitavelmente à posição de "objeto observável".

Portanto, é simples: o que deve ser preservado? Tudo que resiste, do ponto-de-vista

do qual se olha, à linha do tempo. O ponto-de-vista é o complexo. E é, quanto a isto, na

área cinza, que reside o maior problema. Com a sabedoria do saber guardar, devemos

considerar como uma espécie de dogma ético da preservação que, na área cinza, se esconde

muito mais a nossa dificuldade visual do que experiências humanas desprezíveis do ponto­

de-vista da sua preservação e da sua memória. Como advoga o próprio prof. Irapoan, "na

16 O prof. Irapoan Cavalcanti hoje faz parte da FGVIRJ. 86

dúvida, preserve". Em 1987, parece que este era o caso da novissima Brasília - hoje,

corretamente patrimônio da humanidade.

Esquema Irapoan - O que deve ser preservado, na linha do tempo?

Não +/- Área cinza Sim

Quanto a vertente "voltada para a dinâmica da produção artística do presente" -

típica área cinza -, as normas de operação da administração federal aloisiana, segundo o

prof Irapoan, eram: primeiro, nunca produzir; segundo, evitar o direcionamento na

produção - apenas incentivar; terceiro, caso fosse inevitável direcionar ou fosse necessário

dar uma direção aos incentivos, que esta sempre fosse determinada por conselhos

compostos por representação a mais ampla possível - isto é, sem comprometer a

operacionalidade do próprio conselho - de interessados, autoridades e sociedade em geral.

Trata-se da pergunta básica da vertente da produção/circulação/consumo da cultura: O que

deve ser incentivado? Com estas normas de operação acima, Aloísio e sua equipe demarcam

os limites essenciais à questão. De onde se originam esses limites? Da consciência de que

esta é a mesma questão básica da vertente anterior.

O que deve ser preservado? O que deve ser incentivado? Para Aloísio e sua equipe é

a mesma pergunta que muda de tonalidade ao se percorrer a linha do tempo. Travestida de

87

extrema cristalização do passado: o que deve ser preservado? Travestida da extrema

instabilidade do presente: o que deve ser incentivado? O que é preservado passa a ser

parâmetros de incentivo. O incentivado é o que tem mais chances de se tornar preservado.

E o experimental? O experimental é normalmente instabilidade atual de qualidade,

aplicada, refletida, sobre o preservado. Isto é: o experimental é a exceção que confirma a

regra.

Na verdade, a objeção acima, do ponto de vista antropofágico, não faz o menor

sentido e, neste ponto da reflexão, a surpresa vem mais uma vez do próprio Aloísio. Sendo a

questão da preservação/incentivo a mesma, tudo passa a ser área cinza. Tudo é experimental

- degustável - se falamos como um antropófago, pois nada é preservável, até o momento

que o tomamos, e o comemos: destruindo-o, ao triturá-lo pelos dentes e ao besuntá-lo pela

saliva, na busca da boa digestão de nossa visão presente. Essa interpretação exige de Aloísio

um redimensionamento da sua reflexão. Ele a refaz, definindo de que lugar ele fala - ou de

qual lugar ele gostaria de falar. Aplicando o mesmo esquema anterior: área cinza/área

cristalizada, ele divide a ação político-econômica do processo desenvolvimentista - é deste

lugar que ele fala - "em dois planos: o do metadesenvolvimento, em nível macro, que

compreende as grandes infra-estruturas de apoio, e do paradesenvolvimento, em nível, micro

associado à identificação de necessidades ligadas ao comportamento e hábitos, usos e

costumes da comunidade" (Magalhães, 1985 - p. 241).

Enquanto o metadesenvolvimento se realiza a partir do centro na direção da periferia

da sociedade, o paradesenvolvimento surge pulverizadamente na periferia e em seu

movimento de consolidação "existencial" - fenomenológico, diria Aloísio - segue em

direção ao centro. Nessa dialética do movimento meta/para, surgem - como no esquema

88

anterior, zonas cinzas, de transição - eventos mistos "tanto dominados ou determinados

pelo nível meta quanto pelo nível para".

Bom, para relembrar: as ações ditas culturais das quais tratam as ações político­

econômica dos órgãos de Aloísio são, portanto, paradesenvolvimento - sejam grandes

complexos urbanos - Brasília - sejam manífestações populares - Bumba-meu-boi -, onde a

área cinza predomina. O paradesenvolvimento asseguraria a identidade cultural do país num

processo de desenvolvimento determinado conjuntamente ao nível meta. A identidade - a

personalidade - de um povo é fluida, dinâmica (ver discussão sobre memória no início da

Parte 111), principalmente se é um país jovem como o Brasil. E o percurso do para em

direção ao meta, é o percurso da criatividade de um povo: a sua evolução. A reconstrução

do passado e da referência cultural de um povo é na verdade um instrumento de

autoreconhecimento do presente - um espelho para que aquele que olha possa se olhar e

refletir, literalmente e abstratamente.

Essa é a tarefa que Aloísio propõe a si mesmo e também à recém criada Secretaria

de Cultura do MEC. A capacidade de oferecer um sistema de identidade que aponte

caminhos, preserve experiências, estoque iniciativas e facilite a criatividade do povo

brasileiro em seu esforço de desenvolvimento para uma sociedade democrática, onde os

cidadãos estejam dotados dos requisitos indispensáveis a uma ação de homem integrado ao

seu contexto, à sua cultura (Magalhães, 1985 - p244).

Sistema porque a imagem do espelho não é estática, é algo indefinível na relação

entre espelho, luz e aquele que se olha e vê que se reflete. Aqui a segunda questão muito

objetiva - derivativa da primeira: que tipo de estrutura pode suportar o dinamismo da ação

cultural? Que tipo de organízação pode ser versátil o suficiente para manter em dinamismo a

89

identidade de um povo, que não a desfigure regularmente, nem transforme os registros em

cristalizações?

Tais respostas não chegaram a se configurar plenamente, pois Aloísio unificando as

duas áreas, a patrimonial e a de eventos, realizava a unificação de nomes em torno da

questão cultural, mas estava longe de unificar os conceitos e as ações. A Secretaria de

Cultura do MEC era híbrida. Enquanto a área de patrimônio possuía um projeto - mesmo

que cristalizado em torno da "pedra e cal" -, a área de apoio às produções artísticas havia

surgido a partir de dois tipos de pressão: a dos artistas (e produtores) que tinham acesso ao

poder e a dos artistas (e produtores) sem acesso ao poder. Os primeiros eram os de perfil

mais tradicional. Os do segundo grupo, mais populares, eram considerados mais a esquerda,

por si mesmo ou pelos militares. De qualquer maneira, o resultados das pressões se davam

na mesma direção. Na busca de soluções, de ordem financeira para os tradicionais, e na

demonstração de não necessidade da arte dos segundos, os militares e políticos no poder

tenderam a criar mecanismos de incentivo em seus governos que se concretizavam na

criação de instituições culturais federais, para que pudessem reconduzir mais verbas para o

setor - acalmando o primeiro grupo - e manter sob controle com direcionamento das ações

- contornando ou tentando contornar a pressão do segundo grupo mais ligado às aspirações

de retorno democrático da população. Essa é a história da Funarte: resultado da conjugação

das pressões no final da década de 70. Essa é a história também do Ministério da Cultura,

em 1985, durante a formação da Nova República. A necessidade de criar espaço para os

artistas, excluídos durante a ditadura ou não, nas áreas do poder, e também estancar os

pedidos de verbas, sempre gerou em nossa história recente a criação de órgãos ditos

culturais ou de mecanismos de incentivo, já que o espaço na agenda pública para as questões

90

culturais sempre careceu de densidade política, colocando-as sempre em plano secundário.

A única vez que essa posição na agenda pública não acontece, resultado da desastrosa

atuação do Governo Collor na área, gerou uma ação semelhante as anteriores, com a

recriação de nomes de várias instituições, culminando com a criação da Lei Rouanet.

Política cultural para a área realmente nunca existiu. A sua possível construção foi

interrompida em junho de 1982 com a morte de Aloísio.

Portanto, à questão: Que organização poderia ser tão versátil, suportando essa

concepção sistêmica da cultura? Não há resposta. O que se tem é a herança da Funarte e a

criação da Pró-Memória. No caso da Funarte, o projeto era aproximá-la das concepções

ligadas à área patrimonial, isto é, às de bem cultural. Não havia naquele momento muito a

fazer além disso. Mas o caso da Fundação Nacional Pró-Memória era outro. A entrevista do

prof. Irapoan publicada em maio de 1980 é muito importante para se compreender o que

acontecia na época. Nesta entrevista, publicada em publicações SPHANlPró-Memória n°. 6,

o prof. Irapoan descreve muitos aspectos da estrutura e de como a sua deficiência aqui é

usada como vantagem. Com poucos recursos e um quadro extremamente reduzido para as

necessidades do país, mas contando com funcionários altamente qualificados, a Fundação

Nacional Pró-Memória se estrutura no formato de matriz. Isto é, sem um organograma pré­

definido a Pró-Memória passa a ter seus recursos humanos, financeiros e materiais alocados

por projetos e prioridades no mesmo padrão dos estúdios de cinema de Hollywood, onde se

fez essa primeira experiência administrativa. Para os padrões do governo brasileiro, é uma

proposta muito inovadora, que só vai encontrar paralelos conceituais na hodierna discussão

sobre flexibilização do estado, tão comum e necessária nos staffes públicos de qualquer país

do mundo moderno. Na verdade, a Pró-Memória ao absorver os resultados do CNRC,

91

também absorve a sua estrutura flexibilizada de funcionamento por projetos. Em sua

entrevista, o prof Irapoan esclarece: ''Nós vamos atuar através da elaboração de projetos. A

cada coisa que demande fazer, nós definiremos um projeto. Então, averiguaremos as

necessidades de material, pessoal, serviços e, no momento em que terminar o projeto, esse

conjunto de pessoal, material etc., será deslocado para outro projeto". Pretende-se da

mesma forma que o núcleo da Secretaria de Cultura funcione quase sem organograma,

tendo-se ligações praticamente diretas dos diretores de museus e afins e de outras estruturas,

como a Funarte e Pró-Memória, com o Gabinete do Secretário, Sr. Aloísio Magalhães. Uma

espécie de assembléia permanente.

Esta concepção abrangente de cultura e sua conseqüente estrutura flexibilizada em

suas instituições, nos levam naturalmente à terceira questão: Por que não um Ministério da

Cultura? Justamente, responde Aloísio, porque falta conteúdo. E na falta de conteúdo,

faltará recursos. Não que não houvesse clareza da missão: Aloísio tinha chegado lá por

causa disso. Não que não houvesse a tradução da missão em objetivos realizáveis: a própria

ação de que se trata é um resultado disso. O que temos é ainda um estágio primário do

desenvolvimento dessas concepções, dentro de uma estrutura ainda híbrida, isto é, não

adequada à missão. Se a haste patrimonial estava alinhada com o propósito. A haste da

produção, distribuição e consumo da cultura, recém incorporada e unificada aos projetos de

Aloísio, estava muito longe disso. Como dizer a uma haste que surgiu para produzir,

interferir e dirigir através da doação de recursos - por pedido, por lobby dos artistas e

produtores mesmos - que ela não deve produzir, interferir ou dirigir - pelo menos dessa

forma tão direta e sem controle social. É a essa falta de conteúdo que Aloísio se refere.

92

De maneira esquemática, é o que se tem abaixo. Desenho original em papel feito por

Aloísio guardado pelo prof. Irapoan.

No futuro, Aloísio vê uma migração em três fases de acontecimentos:

Ação baseada em critérios patrimoniais,

na intersecção do patrimônio com ação

cultural

da Cultura (só quando todas as ações forem patrimoniais)

A primeira fase é a que se vivia naquele momento. A busca da aproximação da área

patrimonial com a área das ações. A segunda fase seria a criação de uma área de intersecção

a partir dos resultados da primeira fase. Nela, as ações se realizariam somente a partir de

critérios patrimoniais. Quando todas as ações da estrutura fossem realizadas a partir de

critérios patrimoniais teríamos a terceira fase, isto é, a possibilidade da criação do Ministério

da Cultura. Antes desse momento seria criar um ministério fraco. Sem conteúdo pois o perfil

institucional das áreas da Secretaria não estava unificado. E pelo trabalho de Aloísio, sem

conteúdo, sem projeto, não há como justificar as verbas para qualquer órgão que pudesse

ser criado. Famosa a paráfrase atribuída a Aloísio por seus conhecidos: ''Mais vale ser o

93

rabo de um leão do que a cabeça de uma rato". Bem o rato seria um possível ministério da

cultura. O leão, o existente Ministério da Educação.

Aqui, passamos à quarta questão: Educação e Cultura. Um projeto mais amplo para

a área de Cultura Federal. E vale repetir: ''Por enquanto, em nosso país, não se pode

divorciar cultura e educação, mas, muito ao contrário, é necessário incentivar o

estreitamento das relações entre as duas áreas, em virtude do papel primordial que o

processo cultural desempenha no educacional, na medida em que uma educação desprovida

do seu contexto sócio-cultural não passa de mera técnica sem grande utilidade ou a serviço

da progressiva perda de identidade nacional. Não há desenvolvimento hannonioso e nem se

faz uma nação forte se, na elaboração das políticas econômicas do país, não são levadas em

consideração as variáveis culturais e o papel que aí desempenha o sistema educacional."

(Magalhães, 1985 - P 237 e seguintes)

A defesa do tema feita por Aloísio é mais uma peça da sua genialidade. Ele distingue

dois tipos de processos educacionais: a educação do príncipe e a educação para a liberdade.

O primeiro tipo está ligado a um determinado episódio. Em Tiradentes, Minas Gerais,

Aloísio conta que depois de insistentes pedidos, ele resolveu examinar uma pasta de velhos

documentos pertencentes a uma senhora. ''Era uma série de autógrafos, havia cartas,

documentos de uma certa importância, ligados ao Segundo Reinado. Mas, no final dessa

pasta, eu me deparei com alguns documentos que me chamaram e me tocaram

profundamente. Tratava-se de uma série de exercícios, de exercícios escolares de caligrafia

do principe D. Pedro menino. Retive esses documentos que me flagraram de uma maneira

muito especial, até que pude entender do que se tratava. É que debaixo, por detrás,

escondido no estudo simplesmente formal da caligrafia, e de como a letra devia ser um

94

elemento e um indicador simbólico legível, por detrás dessa pura e formal aplicação

metodológica do aprendizado do escrever, por detrás de tudo isso se escondiam conceitos.

E o príncipe tinha que escrever e repetir dezenas de vezes, centenas de vezes aquelas frases

para que aprendesse a escrever corretamente. Mas provavelmente era muito mais importante

que ele aprendesse do ponto de vista conceitual. O príncipe deve fazer tal coisa, o príncipe

não deve fazer tal coisa. É próprío ao príncipe comportar-se dessa maneira, é próprio ao

príncipe não se comportar dessa maneira. E o que se deduzia disso é que se tentava fazer a

cabeça do principe. Tentava-se impingir na cabeça da criança indefesa, aberta, sensível,

plasmável a qualquer pensamento, idéias preconcebida.

"Isso me deixou perplexo. Perplexo por constatar que existe uma educação do

príncipe e que essa educação do príncipe é, de certo modo, aquela a que todos nós fomos

submetidos, ou seja, as idéias, os conceitos, as frases, os textos, os livros são, em grande

parte, impostos ao aprendizado sem maior verificação, sem uma mais profunda análise da

adequação desse texto, da propriedade dessa informação, da adequação desse conceito à

educação do homem. E, por contraponto, imaginei a situação contrária, numa forma

dialética entre a educação do príncipe e o que chamei a educação para a liberdade".

(Magalhães, 1985 - p.245)

Dessa forma, para Aloísio, a educação do pfoÍncipe é de cima para baixo e obedece a

todo um programa impositivo, compulsório, do conhecimento e da criança. Esta educação

ao pretender a continuidade do processo civilizatório, mascara a idéia de permanência, do

controle, da inevitabilidade de uma continuidade formal do aprendizado do homem. Ela

impõe conceitos.

95

Já a educação para a liberdade é de baixo para cima, livre, espontânea, feita à base de

um aprendizado direto com a realidade. Essa educação, em tudo oposta a anterior, faz que o

homem experimente realidades, entre em contato com formas reais e próximas a ele e só a

posteriore leve a conceituações.

Por fim, Aloísio dá um destaque especial ao fato de que o aprendizado para a

liberdade é "geralmente feito através dos oficios. Do exercício direto do aprendizado, do

fazer, desse aprendizado acumulativo, do aprendizado do oficio é que emerge

posteriormente a capacitação de uma consciência nítida daquele fazer ou daquele

conhecimento, e conseqüentemente, conceitos podem ser emitidos" (Magalhães, 1985 -

p.247). O melhor exemplo do que fala Aloísio é dado por ele mesmo. O próprio conceito de

educação para a liberdade é um exemplo desse processo que ele descreve, pois foi assim que

ele também construiu tal conceito: através do exercício de seu oficio de secretário de cultura

do MEC, examinando documentos, capacitando a sua consciência e a partir daí podendo

emitir conceitos.

Ora, falta - aqui - o essencial: Não é possível educar para a liberdade sem considerar

as variáveis culturais daquele que aprende. Isto é, "A Educação é a codificação adequada de

uma cultura, é o processo de transmissão e de continuidade de uma cultura. Então, é

impossível- sobretudo num país em movimento, não feito ainda, não explicitado - separar­

se uma coisa da outra, sob pena de você quebrar esse tipo de compromisso da Educação, a

que me referi. Por isso eu me posicionei publicamente contrário à criação de um Ministério

da Cultura" (Magalhães, 1985 - p.237).

Temos então duas torções importantes. Primeira torção, a melhor maneira de educar

- para a liberdade - é através da cultura na qual aquela educação é praticada. No MEC, o

96

"C" de cultura passa a ser tão importante quanto o ''E'' de educação. Juntos passam a criar

um dinamismo institucional único para o desenvolvimento do país. Por outro lado, a

segunda torção, a idéia de que a cultura, se isolada, perde toda a força. Naquele momento

institucional, o eixo educacional está muito maís bem assentado do que o cultural. Isto é,

naquele momento, mais valia ser a cauda do leão do que parir um rato.

Capítulo VI: Em respeito à memória de Aloísio: ~'Comi-o". A Morte como

sempre inesperada.

A menos de um mês de sua morte, Aloísio declarava: "A primeira coisa que eu

gostaria de lembrar a vocês, e para a qual eu gostaria que vocês atentassem, é que a nova

Secretaria da Cultura do Ministério da Educação e da Cultura está sendo estruturada a partir

do filão patrimonial. Em outras palavras, ao contrário do que em muitos casos tem

acontecido, ao contrário mesmo do que muitas pessoas desejariam, a formação de uma

unidade conceitual do bem cultural no Brasil, em termos de maior presença e maior

configuração sistêmica, está sendo organizada à base inicial do bem patrimonial. É do velho

IPHAN, é da concepção de Mário de Andrade e da luta admirável, persistente de Rodrigo, é

da extraordinária presença desse grupo inicial a partir da década de 30, mais precisamente a

partir de 37, é dessa filosofia, é dessa conceituação que hoje emerge toda uma visão

projetiva do bem cultural do Brasil".

Nesse discurso ele saudava os participantes do VII Congresso Nacional de Museus,

em 18 de maio de 1982 e marcava mais um momento especial de sua gestão. Em outubro de

81, através de portaria baixada pelo ministro da Educação e Cultura se incorporara à

Fundação Pró-Memória os seguintes órgãos do MEC: Biblioteca Nacional, Instituto

97

Nacional do Livro, Museu Imperial, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico

Nacional, Museu da República e Museu Villa-Lobos, consolidando a estrutura da Secretaria

de Cultura do MEC criada em 10 de abril. A Secretaria foi composta pelas subsecretarias do

SPHAN e de Assuntos Culturais (e respectivas fundações Pró-Memória e Funarte), a

Embrafilme, a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Fundação Joaquim Nabuco.

Ainda no ano de 1981, algumas ações emblemáticas. Em janeiro, no contexto das

tecnologias patrimoniais, inicia-se com equipe da Pró-Memória o registro da fabricação do

vinho de caju na Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva e Cia em João Pessoa. Em março

instala-se Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Câmara de Deputados para

investigar a situação do patrimônio histórico e cultural nacional, que é magistralmente

utilizada por Aloísio para divulgar seus trabalhos e suas novas concepções para a área. Em 5

de maio chega à estação de Porto Velho uma locomotiva procedente de Santo Antônio de

Madeira, reinaugurando os primeiros oito quilômetros reconstruídos da estrada de Ferro

Madeira-Mamoré. Na última semana de junho a Pró-Memória realiza o ato de devolução à

Sala dos Milagres do Santuário do Bom Jesus do Matosinho, em Congonhas, de uma

coleção de 89 ex-votos, agora tombados pelo SPHAN e restaurados. Aprovado por todos

os representantes dos órgãos da Secretaria de Cultura do MEC, em setembro, Brasília, o

Documento Diretrizes para a operacionalização da Política Cultural do MEC. Chegando

novamente em outubro de 81, Aloísio ainda é eleito vice-presidente do Comitê do

Patrimônio Mundial da Unesco. Em novembro, a Secretaria de Cultura do MEC propõe à

Unesco a inclusão de Olinda na Lista do Patrimônio Mundial.

No começo de 1982, Aloísio tem plena consciência do que fazer. Utilizando o nicho

da educação - o conceito mais amplo e capaz na época para proteger o seu bem cultural -

98

vai abrindo espaço, através da lateralidade de suas ações, sempre localizando nas outras

estruturas do estado o que ali poderia haver de apoio ao bem cultural, através da busca da

participação comunitária, sempre fechando o ciclo da identificação, indexação e devolução

do bem cultural, e através da busca do reconhecimento internacional para os seus trabalhos e

para a cultura brasileira.

Em março de 82, o Paço Imperial é entregue pelos Correios à Fundação Pró­

Memória. Imediatamente, o secretário de Cultura do MEC autoriza a elaboração do projeto

definitivo de restauro e o início das obras. Em abril instala-se a 3a. DR da SPHANlPró­

Memória, elevando-se a dez o número de diretorias regionais. E em 9 de junho embarca

para a Europa para defender a candidatura de Olinda a Patrimônio da Humanidade. Nas

questões de tombamento mundial, Aloísio apreende rapidamente o que é essencial para a

aprovação do monumento: a imagem. Se em Ouro Preto, é utilizada a paisagem, em Olinda,

Aloísio utiliza a imagem do recorte irregular de seus telhados coloniais, ladeira abaixo, a

partir do alto, da vista da Igreja de Olinda, já que as casas em si haviam sofrido muitas

interferências. Para isso, Aloísio produz, ele mesmo, onze litografias dos telhados de Olinda.

A sua intenção - que nunca se concretiza - era apresentá-las na reunião do Comitê da

Unesco como parte da argumentação da defesa de Olinda. No dia 11 de junho, vai a Veneza

e participa do início dos trabalhos da reunião de Ministros da Cultura dos Países Latinos.

Sente-se mal e é internado. Sofre duas hemorragias cerebrais e falece em 13 de junho.

O contato restabelecido com a Semana de 22. Foi isso que foi se perdendo, após a

morte de Aloísio. AM reflete MA mais uma vez. O que parece ser um movimento histórico

natural. A Mário de Andrade, segue-se Rodrigo Mello Franco e Renato Soeiro - a

consolidação dos movimentos ultracriativos da Semana de 22 promove apenas um pedaço

99

daquele pensamento poderoso. E é - guardadas as proporções do trajeto interrompido pela

morte de Aloísio - o que se vê com as gestões de Marcos Villaça e outros. Diante dos

ventos democráticos da Nova República, a inércia institucional - de sucesso - do SPHAN se

protege. E novamente, temos o Patrimônio de pedra e cal. O que é ainda novo, com a morte

de Aloísio, não resiste às mudanças institucionais do país.

Nesse contexto surge, em 1985, o Ministério da Cultura.

Por que um Ministério da Cultura? Nenhuma discussão se compara a que tínhamos

no tempo de Aloísio, quando até os seus entrevistadores brincavam de chamá-lo de ministro,

pois era visível a obra em construção, do espaço institucional próprio brotando. O que força

a criação do ministério é, diante de uma organização frugal do fórum, um conjunto de

variáveis. Dentre elas os próprios restos do projeto institucional de Aloísio nas mãos de seus

sucessores. Depois, o esforço dos representantes da Nova República em redemocratizar os

espaços dos governos permitindo acesso de muitos excluídos à máquina governamental.

Aqui muitos artistas, que ficaram à margem por resistirem à hegemonia militar. Por fim, na

reconstrução dos espaços institucionais, por que não incluir o espaço cultural com mais

precisão, já que novo poderia ser o contorno da Nova República. O movimento em tomo do

Fórum de Secretários de Cultura, liderados por José Aparecido é fundamental. O

reconhecimento ao seu trabalho lhe dá o primeiro título de ministro da Cultura da história

republicana brasileira. Mas nada aqui se aproxima da problemática cultural apontada por

Aloísio e Mário de Andrade. Na verdade dificil é dizer que no nascimento do Ministério da

Cultura houvesse alguma problemática cultural. A não ser aquela propriamente política e

completamente justificável pelo momento em que se vivia. Três citações para corroborar

essa hipótese. A primeira do próprio Ministro José Aparecido sobre os planos da nova pasta

100

que "vão mesmo emergir dos que criam, produzem ou consomem cultura - sem nenhuma

índole autoritária. É preciso dizer que nós voltamos ao tempo de respeitar e reconhecer que

o povo é o protagonista da história" (SPHAN, 1987). A segunda é um trecho do documento

resultado de amplo seminário promovido pelo Ministério da Cultura em agosto de 1985. No

documento, o ministério da cultura aparece como uma espécie de "lobby pela

democratização geral do país, buscando influir sobre outros ministérios - tendo em vista que

seu papel, por definição, é o de gerador e sustentador da nova perspectiva política

inaugurada com a Nova República" (SPHAN, 1987). A terceira citação é uma reflexão

sobre as duas primeiras feita pelo prof Gabriel Cohn em seu artigo "Concepção Oficial de

Cultura e Processo Cultural", publicado na Revista do Patrimônio e Artístico Nacional n°·

22. Diz o professor: "A tendência geral dessas concepções é nitida. Propostas importantes

do ponto de vista político e social são feitas em nome da política cultural, mas a cultura

mesma vai-se tomando evanescente ao longo da argumentação, ao oscilar entre concepções

tão amplas, ao ponto de a privarem de todo conteúdo, ou tão restritivas que a fixam como

elemento subordinado a instâncias sociais particulares" (SPHAN, 1987).

O artigo do professor é de 1987, durante a gestão do então ministro da Cultura

Celso Furtado. Antes dele, havíamos tido José Aparecido de Oliveira 18/03/85 a 30/05/85

(três meses), que deixou o ministério para assumir o governo do Distrito Federal. Nesse

momento, a pasta da cultura não tem nem mesmo orçamento por não haver sido prevista na

estrutura financeira do governo federal. Isso só acontecerá um ano depois.

O sucessor de José Aparecido é Aluísio Pimenta, de 30/05/85 a 14/02/86

(totalizando nove meses). Em sua gestão, famosa é a discussão em tomo da importância da

101

resistência cultural diante da sua descaracterização pela invasão de valores internacionais. É

a broa de milho versus o croissantl7

Segue-se a gestão de Celso Furtado, de 14/02/86 a 29/07/88 (totalizando 29 meses).

Esperava-se que o prof. Celso Furtado fizesse uma parada rápida na Cultura antes de

assumir a economia do pais, mas não é o que acontece. O novo ministro se lança num

esforço de estruturação administrativa que ainda não havia ocorrido desde a criação da pasta

da cultura. Busca a conexão com a antiga estrutura que tem em Aloísio o seu último

formato. Chega mesmo a se ligar conceitualmente à experiência do final da década de 70, ao

associar a questão da cultura à questão do desenvolvimento. E nessa reflexão caracteriza a

cultura como "o fruto dos esforços que realizam os homens para melhorar sua qualidade de

vida". O movimento de abrigar a questão cultural debaixo de um conceito mais amplo e

elástico, já havia ocorrido em Aloísio, ligando-a a educação. Resultado das discussões da

Assembléia Constituinte, a questão cultural se interliga aqui à definição ampla de qualidade

de vida. Passa a ser o reflexo dessa busca. Como aponta o prof. Gabriel Cohn: "Nessas

condições abre-se o caminho para associar a cultura ao desenvolvimento e para conceber as

reivindicações democráticas da perspectiva do progresso e da modernização capitalista".

Dentro desse espírito, surge a primeira experiência de Lei de Incentivo à Cultura federal

baseada na renúncia em prol de instituições culturais cumpridoras dos critérios indicados na

legislação, a então conhecida Lei Sarney 18 . A afirmação do Ministro Furtado de que a

17 Para um antropófago a questão não tem o menor sentido. pois tudo pode ser engolido: O que importa é o que se vomita. 18 A Lei Sarney, Lei 7505 de 2 de julho de 1986, exigia o cadastramento de pessoas e firmas interessadas em captar recursos via renúncia fiscal se qualificando como entidade cultural junto ao Ministério da Cultura. No período de suas existência se calcula uma captação total em torno de R$ 150.000.000,00. Mas as denúncias em torno de sua utilização facilitaram o seu fim com a chegada do Governo Collor. Qualquer nota fiscal emitida por uma entidade cultural cadastrada poderia ser utilizada para se conseguir créditos fiscais, fosse ela relativa a um projeto cultural ou não.

102

principal tarefa da política cultural era abrir espaço para criatividade, escondia ainda as

pressões em busca de recursos por parte dos produtores de cultura. A criatividade é por

definição uma experiência humana que dispensa espaço. Ela mesma o cria, nas condições

mais adversas. Não é preciso citar a quantidade impressionante de obras-primas produzidas

em situações completamente antagônicas. Se não é de abrir espaço para a criatividade, do

que se trata então? Trata-se de abrir espaço para a própria pasta da cultura, carente de

legitimidade pela sua falta de projeto institucional explícito. Nesse sentido a Lei Sarney é

uma forma engenhosa de responder às pressões constantes de maiores verbas para a cultura,

sem que a indicação de quem receberia esses recursos significasse dirigismo por parte do

governo central. As pressões acabam por vencer e para o último ano do Governo Sarney,

ganho durante a constituinte, volta José Aparecido, de 20/09/88 a 15/03/90 (19 meses). Sem

projeto para a área da cultura porém com grande legitimidade junto à elite cultural e artística

brasileira, o ministro faz o que sabe, busca dar à cultura brasileira projeção internacional,

com relativo sucesso. No entanto, o ministério continua vivendo o que Aloísio temia: era um

ministério fraco, sempre oferecido como lambuja nas negociações do poder, sem conteúdo,

ao sabor das pressões dos grupos produtores de cultura, e portanto sem recursos. Um

ministério "tanto faz".

Depois vem o pior. Na sua fraqueza, a cultura - como todo o governo - é atacada

pelo bólido da reforma administrativa do Governo Collor. Daí sobra pouco e o estrago

comandado pelo senhor Ipojuca Pontes, de 15/03/90 a 11/03/91 (exato um ano), só tem um

bem: reúne em torno da questão cultural todos os intelectuais, artistas, produtores e

cientistas que faz o Governo Collor girar sobre si mesmo e entronizar o embaixador

Rouanet como novo ministro. De 11103/91 a 02/10/92 (20 meses), o ministro Rouanet

103

basicamente apagou, ou tentou apagar, o enorme incêndio em que havia se transformado a

área cultural - internamente à estrutura e na própria sociedade. Nesse ato de bombeiro, o

ministro basicamente conduziu longas negociações com funcionários, artistas, produtores e,

por fim, com própria área central do Governo Collor e com a Assembléia Legislativa,

gerando a Lei de Incentivo substituta da Lei Sarney - extinta pelo próprio Governo Collor -

e ainda hoje a mais conhecida do pais. A Lei Rouanet 19, que ironicamente nunca chegou a

funcionar plenamente na gestão do seu progenitor.

Bem, como sabemos, o incêndio provocado pelas ações do Governo Collor, que

acabou atingindo todo o pais e todas as suas áreas, tem como maior vitima o próprio Nero.

Do impeachment surge o Governo Itamar Franco e o primeiro ministro da Cultura dessa

nova série de rápidas gestões. O famoso intelectual e filólogo Antônio Houaiss assume o

ministério de 20/10/92 a 02/09/93, por onze meses. Ele, que fora com Betinho um dos mais

tenazes defensores da área cultural contra a devastação colorida, não resiste às pressões do

seu próprio objeto de defesa. Sem muito a fazer, com a estrutura toda aos pedaços, Houaiss

consegue basicamente iniciar as discussões para a criação da lei de audiovisual - versão

19 A Lei 8.313, de 23 de dezembro de 1991. ficou conhecida como Lei Rouanet e somente agora, em 2000, passa a trocar de nome naturalmente ficando mais conhecida como Lei de Incentivo à Cultura. A possibilidade de descontar 3% do imposto renda devido para as empresas e 6%, para pessoas fisicas ainda esta longe de atingir suas melhores potencialidades, mas mesmo assim possibilitou uma retomada de discussões e financiamentos como esta defendido por esta monografia. No texto da Lei 8.313 que institui o Pronac - Programa Nacional de Apoio à Cultura há algo de especial. Nele, é possível encontrar o esboço do que poderíamos chamar de diretrizes para uma política cultural do Ministério da Cultura, pois o Pronac deve: I. Contribuir para facilitar a todos , os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercicio dos direitos culturais; 2. promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com valorização de recursos humanos e conteúdos locais; 3. apoiar e valorizar e difundir o conjunto de manifestações culturais e seus respectivos criadores: 4. proteger as expressões culturais dos grupos formados da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional; 5. salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar. de lazer e ,;ver da sociedade brasileira: 6. preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro; 7. desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos e nações: 8. estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal. formadores e informadores de conhecimento. cultura e memória; 9. priorizar o produto cultural originário do pais".

104

apurada da Lei Rouanet para a área de cinema, essa sim transformada em terra arrasada pelo

Governo Collor20 O novo ministro José Jerônimo Moscardo de Souza fica somente quatro

meses (de 02/09/93 a 09/12/93) pois faz um desabafo público solicitando mais atenção por

parte do então ministro da Fazenda. Atitude inconcebível já naquela época. Segue Luiz

Roberto do Nascimento e Silva, de 15/12/93 a 31/12/94, que se concentra na Lei Rouanet e

faz os primeiros esforços em torno da operacionalização da lei. Com as eleições de

Fernando Henrique Cardoso, assume então o atual ministro Franscico Weffort, que vem

fazendo a mais longa gestão na área cultural federal de que se tem notícia. No posto, desde

janeiro de 1995.

Nesse período de existência do Ministério da Cultura, é bom que se distinga. Se

pudéssemos ligar os primeiros textos de Mário de Andrade às atuais ações do Ministério da

Cultura, o que se vê em Collor é uma inflexão muito profunda desta trajetória - a destruição,

a mutilação, desse pensamento antropófago patrimonial poderoso, uma espécie de invasão

branca: os europeus economistas matam os antropófagos culturais. Não há aceleração, nem

atraso, mas sim uma fratura - exposta, do ponto-de-vista propriamente fisioterapêutico.

A retomada com Rouanet e sua Lei é a necessária fisioterapia do doente que saiu de

acidente em choque profundo. A Lei de incentivos foi a negociação possível conduzída por

um embaixador e tinha dois viés. Primeiro, para o governo de Collor: você podia dizer, é um

meio de fazer a cultura entrar definitivamente no mercado, pois no I Mundo - EUA -

também é assim. Segundo, para a cultura: você podia argumentar, vamos reconstruir e só se

reconstrói com dinheiro, esse governo não dará dinheiro, já os seus amigos mecenas

poderão dar. O primeiro momento da Lei é a sua passagem pelo Congresso, a sua

20 A produção cinematográfica no período desceu a zero. 105

construção. Depois, o impecheament. E, com ele uma ilusão. A de que poderia se ter um

ministério funcionando basicamente em torno da lei, sem uma missão institucional e

operacional precisa. Portanto, na ilusão, a segunda fase da Lei e de seu ministério foi como

torná-la operacional: Houaiss, Moscardo, Luiz Nascimento. Mas só quem vai conseguir

torná-la realmente operacional é Weffort. Este esforço vai até % do governo de Weffort. E

aí, a fase da desilusão. Depois de todos os esforços, não temos uma área de cultura

financiada e além disso o MinC se torna refém da lei. A brincadeira corrente é que a sigla

MinC significa Ministério do Incentivo à Cultura. A ação dos produtores e diretores de

cinema tem sido magistral nesse esforço.

Dessa forma e infelizmente, não há como escapar do mito da gestão de Aloísio. E

também nada de estranho seria defender-se a restauração daquele pensamento antropófago

patrimonial poderoso. No entanto, o que aqui cabe destacar é que:

1. Em um determinado momento esse pensamento, antropofágico, abaporu, ou o

que seja, foi hegemônico dentro da estrutura de poder dos órgãos federais de

cultura;

2. Este pensamento segue uma linha histórica que vem desde os modernistas;

3. Na fase em que foi interrompido ainda estava no estágio artesanal, de pré-designo

Não esqueçamos que, para Aloísio, o artesanato sempre foi tecnologia de ponta;

4. E que, portanto, se aplicássemos a ele uma outra tecnologia - aquela das de

política pública - não poderíamos lhe arrancar possibilidades impressionantes,

transformando-o em bodoque de uma missão para a área cultural - organizada -

em todo o país? Talvez, sim.

106

PARTE ill: Del991 até hoje

Introdução: O julgamento antropofágico.

A posição da cultura na agenda dos governos sempre foi uma questão menor.

Colocada sempre como fundamental para o desenvolvimento do espírito humano, nunca a

importância para o espírito humano, do ponto de vista das prioridades de governo e suas

agendas de ação, foi bem definida e por isso nunca gerou programas concretos de

valorização da administração cultural dentro das máquinas burocráticas das gestões públicas.

o primeiro Governo FHC tinha, como um todo, a missão de recuperar o tempo

perdido de uma maneira bem objetiva: arrumando a casa. Esperava-se principalmente que o

Governo de FHC trouxesse estabilidade político-institucional e econômica. Tal missão se

refletia por todas as áreas do governo, inclusive - e porque não - também na área da

cultura, tão bem desmantelada pelo Governo Collor.

Quando Weffort assume, ele encontra uma área de cultura vivendo uma longa

ressaca institucional. Sem projeto político, mas cheia de esperanças em torno de uma lei

recheada de problemas para se tornar operante. E nisso a sua gestão se concentra, na

operacionalidade das leis de incentivo. Diante das ruínas, o que se tinha com mais cara de

casa para ser arrumada era justamente a Lei Rouanet. Em seu discurso de posse, Fernando

Henrique menciona um termo que poucas vezes - ou que nenhuma vez - freqüentou as

mensagens presidenciais: produtor cultural. Expressão que somente os afins ao mercado de

cultura costumam utilizar com normalidade. Em um de seus primeiros atos, o presidente - e

107

seu ministro da cultura - aumenta o percentual de dois para 5% do imposto de renda devido

a ser utilizado pelas empresas para o incentivo a projetos culturais. E, então, o Secretário de

Apoio à Cultura do MinC, Álvaro Moisés, se lança numa cruzada para tornar a Lei de

Incentivo uma realidade. Perante esta missão quase divina, todo o ministério se curva.

Na busca de operacionalização da lei, por Weffort, tudo foi feito. A continuidade da

sua equipe o permitiu. Era como se houvesse tempo. Como se fosse possível dizer: "vamos

devagar e fazer certo, nunca foi feito certo, pela primeira vez vamos fazer certo, passo-a­

passo". Fazer certo, o quê? Fazer a construção da máquina ministerial da cultura, que nunca

havia sido terminada. Aproveitando o consenso em torno da lei de incentivo, se trabalhou

essa construção. E em um movimento louvável de diálogo com a sociedade, foi sendo

atacado cada ponto que se considerava o próximo estrangulamento, o próximo gargalo da

lei.

Nesse momento, a centralidade dessa idéia era expressa na própria estrutura

administrativa do Mine. Tínhamos ligadas ao Gabinete do ministro, a Secretaria Executiva

(Sra. Maria Delith Balaban), a Secretaria de Intercâmbio Internacional e Projetos Especiais

(Sr. Eric Nepomuceno), a Secretaria de Política Cultural (Sr. Octaviano Del Fiori), a

Secretaria de Apoio à Cultura (Sr. Álvaro Moisés) e, posteriormente, já demonstrando o seu

poder de pressão, a Secretaria de Audiovisual (Sr. Moacir de Oliveira). E se o MinC gira em

torno da Lei. Todas as secretarias giram em torno da famosa SAC - Secretaria de Apoio à

Cultura, pois ela conduz todos os trabalhos burocráticos em torno da Lei, com o apoio da

Secretaria Executiva que então, praticamente, era responsável por todas as verbas do Fundo

. Nacional de Cultura - a versão estatal da figura do mecenato da Lei Rouanet. Todo o resto

108

da base do ministério, as conhecidas coligadas - IPHAN, museus, Biblioteca Nacional,

Funarte, Fundação Palmares - ficam atreladas ao esforço da SAC, a espera do que pode

acontecer. Isto é, tais estruturas coligadas observam e, ao mesmo tempo, mantêm a

independência de suas ações, como se a conexão MinC e coligadas fosse apenas ocasional.

Não havia ainda acontecido a CrIse da Ásia, e a paridade dólar/real mantinha a

euforia da arrumação da casa. E, como era de se esperar, temos como resultado, na área da

cultura, indicadores importantes 1.

Até que somos vítimas da globalização da econorma. E dentro do pacote de

contenção do ministro Malan, temos o que o Presidente Fernando Henrique qualificou de

"maldades desnecessárias": o incentivo à cultura também é atingido, sendo reduzido de seus

cinco para 3 %.

Foi uma espécie de contra-senha: seria possível se chegar ao desenvolvimento da

área cultural baseando-se somente em leis de incentivo e nos esforços da área federal? A

partir daí, nada mais foi o que era antes. Mesmo com os avanços propostos pela equipe

ministerial, algo havia se quebrado. Se havia crise no mercado, pior era para quem dependia

1 Segundo o Secretário Álvaro Moisés. comentando a pesquisa .. A Economia da Cultura". especialmente no caso dos investimentos federais, diz: "Quanto ao Governo Federal. verificou-se um padrão claramente estável de gastos com cultura entre 1985 e 1990, durante o governo Sarney, quando as taxas de gastos oscilaram de 208 a 197 milhões de reais. Mas, a partir de 1990 e. particularmente, entre 1991 e 1992, no auge do governo Collor, ocorreu uma queda drástica de recursos alocados para a cultura, ou seja, 131 e 108 milhões de reais, respectivamente, para cada ano. Isso explica-se pela orientação daquele governo de, praticamente, desobrigar o Estado de suas responsabilidades com a cultura. Os gastos com cultura voltaram a registrar algum crescimento, no entanto, em 1993, já no governo Itamar Franco e. depois, começaram a crescer significativamente a partir do início do governo Fernando Henrique Cardoso. De fato, em 1995 chegaram a 245 milhões e em 1996 a 336 milhões de reais: além disso, quando a análise comparativa de todo o período estudado concentra-se exclusivamente nos dados relativos aos gastos do Ministério da Cultura. isto é, somente de sua administração direta. sem levar elO conta fundações e outros órgãos públicos, inclusive de administração indireta, o maior volume de gastos públicos com cultura é alcançado em 1996, no governo FHC. atingindo nesse ano cerca de R$ 157 milhões de reais. enquanto em 1988, por exemplo. esse

109

ainda da boa vontade dele e de seu bom humor. A cultura estava definitivamente na mão de

quem nunca havia prezado a cultura? A ilusão se transformava gradativamente em desilusão.

Movimento liderado principalmente pelos cineastas - ironicamente, os que mais bem foram

tratados pelo MinC nesse trabalho de construção das leis. ganhando uma lei especial só para

eles. Aliás, aqui cabe uma discussão exemplar, a cinematográfica.

A título de terem sido a área mais sofrida. Como já havia dito - a produção de filmes

é zerada pelo Governo Collor. De terem sido responsáveis por importantes obras de

resistência durante a ditadura. Por se considerarem o instrumento mais moderno e essencial

para a compreensão da realidade brasileira (Painel VI: Cultura e Cinema como Afirmação de

Identidade Nacional - Notas para Discussão, XI Fórum Nacional INAE, 2000). E, por

possuírem um "casf' ligado à televisão capaz de assustar ou cativar qualquer autoridade em

Brasília, os afins do cinema brasileiro - liderados principalmente por antigos diretores da

sétima arte, muitos advindos do movimento do Cinema Novo - desenvolvem a idéia de que

eles são diferentes. São diferentes por tudo que foi dito acima e, além disso, e

principalmente, porque suas atividades são de uma magnitude ímpar: eles são uma indústria.

Como o turismo, eles são - dizem eles - uma indústria sem chaminés. E como o turismo é

ligado, buscam em seu movimento se ligar ao Ministério da Indústria e do Comércio. Os

afins ao cinema sabem que o MinC é muito pobre para dar a alavancagem que eles acreditam

ser necessária para que o sistema industrial cinematográfico possa se tomar uma realidade.

No entanto, nem mesmo o seu lobby consegue mantê-los ligados permanentemente a

Indústria e Comércio. Inicialmente devem se contentar com o cantinho de todos os outros

índice não havia ultrapassado a cifra de 95 milhões. em 1990 não havia chegado a 17,5 milhões e em 1994

110

artistas: a cultura. E no MinC eles acabam dando trabalho à equipe de Weffort. Inclusive

todos os boatos de troca de ministro surgem sistematicamente lá - no "cast". A quantidade

de ajustes solicitados na lei de audiovisual é impressionante e a quantidade dos ajustes

executados, não menos2. As crises lideradas pelos diretores de cinema se seguem como uma

rotina e mantendo a sua disposição ao diálogo, o ministério segue sua rotina de mudanças

burocráticas na mesma velocidade.

Muito esclarecedor é o artigo de opinião de Arnaldo labor "Cinema sai do ovo

cultural para a vida real", que tem como chamada o subtítulo "Parece que o Governo

entendeu a importância do audiovisual", publicado em "O Globo" de 10 de outubro de

2000. Diz labor: "Ficamos mortos durante vários anos, com produção zero, até o advento

da Lei de Audiovisual, que criou uma Renascença meio torta, pois estimulava a produção e

deixava o mercado intocado. Com a globalização da economia, com fronteiras abertas, com

o fim da lei da obrigatoriedade, conseguimos fazer filmes ótimos e caros, pelo financiamento

subsidiado, mas o mercado continuou longe de nossos filmes. E nada existe fora do

mercado, como diz o sábio slogan da Arnerican Express. Por isso, vivemos uma Renascença

ilusória, há alguns anos. Continuamos nos reunindo em desespero na casa do Barretão, na

do Zelito, varamos noites tentando nos salvar deste grande erro: não éramos indústria nem

comércio, éramos apenas cultura. E cinema não é só isso. Agora, estamos diante das

últimas reuniões do século. O Governo criou o Grupo Executivo da Indústria

Cinematográfica. E há uma grande novidade nisso. O GEIC tem como presidente o Pedro

Parente, chefe da Casa Civil. E ali estão os ministros Pedro Malan, Alcides Tápias, Pimenta

alcançara somente 40 milhões". 2 Ver site do Ministério da Cultura: www.minc.gov.br/legislação

IH

da Veiga, Aloísio Nunes Ferreira e Weffort e, pela primeira vez, depois de 5.329 horas de

reunião que me consumiram em 25 anos, o Governo considera o cinema mais que um fato

apenas cultural. Agora, o cinema vai ser uma prioridade nacional, que passa pelo comércio,

pela indústria, pela importância do audiovisual no mundo dos satélites e da internet".

Realmente, muito esclarecedor.

Como se fosse possível errar pessoalmente em situações de corte sociológico como

esta, onde os cineastas do Cinema Novo remanescente erraram? O que o cinema pode

oferecer que a televisão já não o fez, para ser tratado como prioridade nacional?

Infelizmente se ele tem algum valor é como cultura e pelo tamanho que ele tem:

cinema no Brasil é uma espécie de artesanato, uma espécie de tecnologia de ponta, diria

AM, que atinge a sua maturidade industrial - já atinge e muito bem e com qualidade de

Primeiro Mundo - na televisão brasileira. O equívoco - se é que existe algum erro na

perspectiva do galinheiro (como o próprio labor autodefine o seu grupo, pois ela é apenas a

perspectiva de um determinado galinheiro) - é achar que o Brasil pode repetir o que o EUA

fez com a sua indústria - aí sim indústria - cinematográfica. O fenômeno americano é único

no mundo. E certamente de dificil repetição. A tentativa do caso francês é típica pois se

esforçou com todas as possibilidades da sociedade francesa e nunca conseguiu a escala

americana, nem mesmo para seu mercado interno.

No entanto, nós, brasileiros, temos exemplos na área de audiovisual tão competitivos

quanto os de qualquer país do mundo. Até com relação aos Estados Unidos. A Música

Popular Brasileira, associada aos seus clipes, é um. A área de publicidade, e seus filmetes, é

outro. As telenovelas, um inquestionável. E os programas infantis que são produzidos 112

inclusive em outros países, como os tênis nike, outro indiscutível. Claro que, além desses e

responsável por estes, deve-se repetir o maíor exemplo: a TV aberta brasileira. Porque o

exemplo da TV nunca é considerado quando se fala de imagem? Há algo de falacioso no

país dos cineastas. Esta aí o artigo do labor para apoiar essa tese. A questão do cinema

nacional - a partir da história montada pelos pares - é completamente incompleta. Contar a

história do cinema nacional a partir apenas de sua cinematografia é omitir praticamente toda

a sua história. Falar de imagem ou do audiovisual no Brasil sem considerar a história da TV

e especialmente da TV Glob03. é não ir fundo na questão e transformar o GEIC numa ação

entre amigos, mais uma como era a Embrafilme um pouco antes de ser extinta. Ação entre

quais amigos? Estão ali listados no artigo do labor. Eles usam como lobby de pressão dos

artistas de cinema? Não, não teria precisão falar dessa forma. Usam como lobby de pressão

os artistas de televisão! Bastaria uma lei de incentivo baseada no faturamento publicitário

das televisões para resolver o problema artesanal do cinema brasileiro - pelo menos por

enquant04. Não é que o governo brasileiro não entenda a importância do audiovisual como

diz labor. Na verdade o Governo não consegue nem tocar no assunto como deveria, isto é,

nas televisões. Podemos dizer que a mesa de discussões sobre as questões audiovisuaís

relevantes para o país nunca foi montada. Mas será que essa é possível de ser montada e

interessante ao poder silencioso dominante? Infelizmente, brinca-se quando se diz que o

Brasil tem que equilibrar sua balança comercial cinematográfica - tão negativa, sem se

3 A TV Globo fundada em 1965. 91 emissoras. 8.500 funcionários. Média de 59% de participação de audiência em 1996. Cobertura em 33,7 milhões de domicílios com TV equivalente a 99% de cobertura em todo o país. Maior produtora de programas de TV do mundo. Cria e produz em seus próprios estúdios 78% de toda a programação exibida durante 20 horas diárias. Programas exportados para 128 países nos cinco continentes (Globo TV Network: TV Fact Book. 1996). 4 O bolo publicitário. definido como investimento bruto em mídia mais produção, segundo dados da TV Globo, variou de 1992 a 1995, de US$ 2,275 bilhões para US$ 5.8-'1 bilhões (Globo TV Network: TV Fact Book. 1996).

113

considerar por exemplo a exportação de telenovelas (Globo TV Network: TV Fact Book,

1996). Brinca-se quando se diz que o cinema é fundamental para revelar o Brasil que nós

brasileiros não conhecemos sem considerarmos as justas produções de telenovelas. Brinca­

se quando se mede a participação internacional brasileira a partir das indicações e perdas do

cinema no Oscar não se ponderando a quantidade de premiações ganhas por comerciais

brasileiros no exterior. Não se considera a especificidade da relação cinema brasileiro e sua

TV, ou da TV e seu cinema, quando na mesma noite em se comemora a possibilidade do

filme "Central do Brasil" ganhar o Oscar holywoodiano de melhor filme estrangeiro, ele - o

filme - ser exibido na grade normal da TV Globo. Há algo de racionalmente podre nessa

argumentação jaborianesa, infelizmente. Ele mesmo - um dos principais porta-vozes do

cinema nacional - trocou a profissão de cineasta pela de comentarista de assuntos gerais na ...

TV Globo.

114

Portanto, no final do primeiro mandato do Governo FHC, em função do audiovisual

o MinC se modificou completamente. E Álvaro Moisés em mais uma cruzada santa largou

toda a cultura para se dedicar exclusivamente à Lei de audiovisual. Um estudo sobre a

importância da cultura para a economia foi o último esforço geral deste cruzado tentando

demonstrar como economicamente a cultura é importante para a economia. A frase

redundante é proposital, pois a tarefa é inglória e fadada ao fracasso - caminho percorrido

pelos ecólogos e há muito abandonado (APED, 1999) - mesmo que o marketing seja outro

e se diga que "cultura é um bom negócio"s.

o cinema é o melhor exemplo de como o MinC ficou refém das necessidades de

financiamento dos artistas no final do primeiro governo de FHC. A sua estrutura

administrativa acabou se modificando em função dessas necessidades. A Secretaria

Executiva passou a ser uma espécie de Chefia de Gabinete robusta, destituída do poder de

5 A análise do Secretário Álvaro Moisés para os dados conseguidos pela sua pesquisa destaca ainda que: "A pesquisa do Ministério da Cultura também analisou os investimentos em cultura realizados por empresas privadas e públicas. Nesse caso. partindo do pressuposto de que as 500 maiores empresas privadas. 99 maiores empresas públicas. 50 maiores bancos e 2 mais importantes holdings estatais constituem o universo mais significativo de empresas que investem em cultura, no país. os pesquisadores da Fundação João Pinheiro basearam-se em uma amostra do mesmo universo. composta por 111 empresas dos ramos financeiro e não-financeiro, para aplicar um questionário especialmente desenhado para os fins da pesquisa.Os resultados mostram. em primeiro lugar, que 53% das empresas consultadas escolhem o marketing cultural como meio preferencial de ação de comunicação com o mercado consumidor. De outra parte, as empresas que investem em cultura - segundo a amostra de 111 firmas consultadas - dão prioridade às seguintes áreas culturais em suas ações de comunicação: música. audiovisual. patrimônio histórico. artes cênicas e produção editorial. ( ... ) Finalmente, duas outras informações mostram. ainda, a importância das descobertas dessa pesquisa: de um lado. as respostas das empresas mostraram.. claramente, a relação entre o aumento do patrocínio a projetos culturais e a existência e funcionamento das leis de incentivo fiscal ao setor. A pesquisa mostrou que as leis federais foram as mais utilizadas. particularmente. a Lei Rouanet (8.313). que viabilizou cerca de 84% dos projetos patrocinados no periodo em análise. enquanto 16% dos mesmos foram apoiados pelas 12 leis estaduais e/ou pelas 17 leis de Municípios de capital em vigência. A outra revelação interessante refere-se aos principais motivos invocados pelas empresas para tomarem a decisão de investir em projetos culturais: 65% delas considera que esse investimento representa ganho de imagem institucional. enquanto 28% acham que o investimento agrega valor à marca da empresa".

115

cuidar de toda a verba do Fundo Nacional de Cultura, passando a ser um núcleo de projetos

especiais e de política cultural. A Secretaria de Política Cultural junto com a de Intercâmbio

Internacional desaparecem. E o que indicava a criação de uma Secretaria de Audiovisual,

orientou as modificações: a segmentação da operação administrativo-financeira do MinC

por áreas artísticas. Foram criadas as secretarias de Música e Artes Cênicas; de Patrimônio e

Museus; e de Livro e Leitura. E seguindo ainda o exemplo da Secretaria de Audiovisual, tais

secretários passam a cuidar de tudo que é relativo a seus temas culturais e artísticos, mesmo

que seja Fundo Nacional de Cultura, Mecenato, assuntos internacionais ou emendas

parlamentares no orçamento da União. Pela sua complexidade o Projeto Monumenta, com

parte das verbas garantida pelo BID, apesar de sua vinculação temática ao Patrimônio, passa

a ter uma secretaria executiva em separado, respondendo diretamente e ao mesmo tempo à

Secretaria de Patrimônio e ao Gabinete do ministro. Uma pequena mudança nos

organogramas, já que os grupos administrativos de funcionários continuaram nas secretarias

herdadas mas, que foi fundamental para as decisões: todo o poder aos secretários do

ministro, em detrimento inclusive da famosa CNIC - Comissão Nacional de Incentivo à

Cultura. A então poderosa comissão sofre ainda dois enfraquecimentos oriundos de duas

outras modificações. Uma, de caráter geral tanto para a Lei Rouanet como para a Lei de

Audiovisual: o aceite em regime de urgência e de imediata aprovação para projetos com

patrocinadores já acertados. E outra, específica para a Lei de Audiovisual: a criação da

Comissão de Notáveis para a Política de Audiovisual. Mesmo jogando a pá-de-cal na CNIC,

a Comissão de Notáveis mal consegue funcionar em função de suas decisões autocráticas,

gerando mais um movimento de descontentamento entre os cineastas, que levou à criação

do GEIC de que fala Jabor em seu esclarecedor artigo.

116

Dessa forma, as crises encabeçadas pelo cinema acabam por modificar a Lei de

Incentivo e hoje ela é outra. As projeções demonstram uma certa acomodação de terreno

por parte do mercado, com relação aos limites de utilização do teto de renúncia fiscal, e as

novidades poderão ser - ainda não as são - as leis estaduais e municipais pelo país a fora

(nota: há um número crescente de leis de incentivos estaduais e municipais, com destaque

para as da Bahia e Minas Gerais que ainda não se tornaram plenamente operacionais ou com

impacto definitivo para as suas áreas de influência).

No entanto, o número de projetos em busca da aprovação nas leis de incentivo

federais aumenta a cada ano em função de um fenômeno muito interessante: a aprovação

passa a ser considerada pelo mercado uma espécie de selo mínimo de qualidade. O que não

garante, de maneira nenhuma, que a captação irá se concretizar. Em sua ampla maioria,

70% de tais projetos aprovados não conseguem captar os recursos necessários para a sua

realização e são definidos como projetos-palha por alguns integrantes da CNIC. Os outros

30%, capazes de realizarem a sua captação, são compostos em sua maioria por projetos

ligados de alguma forma a instituições reconhecidas ou a grupos lobistas como o dos

cineastas consagrados ou então, pertencem ao grupo de uma das principais mutações da lei

rouanet: a das instituições culturais criadas por empresas que podem assim descarregar seus

créditos fiscais culturais quase que em si mesmas. Centro Cultural Banco do Brasil, Instituto

Moreira Salles, Instituto Itaú são exemplos de um fenômeno que se multiplica a cada dia

pelas telefônicas, empresas de eletricidade, bancos e muitos outros ramos. Uma espécie de

sarneyzação da Lei Rouanet6. Os problemas de congestionamento burocrático e

6 Um estudo encomendado pelo próprio Mine e entregue pela consultora Marta Porto/Unesco-RJ. em junho de 2.000. busca estancar esse problema. obrigando a tais empresas a financiarem cultura fora de seus institutos numa escala exponencial para cada real colocado em seu instituto ou afim.

117

desenvolvimento da autonomia burocrática, que gera a tentação de definir o que é cultura

por parte dos anéis burocráticos que se formaram em torno das leis de incentivo federais,

ainda é um problema menor perto dos indicados anteriormente mas que certamente tende a

dominar as problemáticas futuras. Se é possível falar de medo e sobrevivência, tais anéis

burocráticos desenvolvem o medo de nada mais se ter sem a lei, o que resultou na crítica

jocosa de que a sigla MinC deveria significar Ministério do Incentivo à Cultura.

Sem dúvida é a falta de projeto institucional que gera todas essas distorções e que

tornam o MinC refém das necessidades financeiras dos diversos grupos artísticos do país.

Apesar dos problemas aqui destacados, dentro dos limites que o modelo da lei oferece, o

trabalho possível foi realizado e ele, seguindo a linha de coerência que o produziu - isto é,

baseado no diálogo com a sociedade - deve ser finalizado. O último passo lógico do esforço

empreendido pelo ministro Weffort e sua equipe deve ser dado: A lei deve ser entregue

definitivamente para a sociedade. Os mecanismos devem ser simplificados ao máximo: como

o que reconhece o direito ao crédito de projetos com patrocinadores. E a regularização,

acompanhamento e reconhecimento de créditos culturais para a realização dos projetos

devem ser provisonados por institutos de cultura e pesquisa especialmente destinados a isso,

descolados completamente do funcionamento dos ministérios e de suas coligadas. Ao MinC

caberia a coordenação de tal sistema, podendo dessa forma se dedicar plenamente à busca

de sua missão institucional.

No entanto, a dubiedade institucional perpassa todo o segundo Governo FHC e as

dificuldades em seu início - 1999 - são grandes. Existe uma certa apatia. E no jogo da

divisão de poderes, a cultura sem posicionamento passa a ser mais uma vez moeda de troca -

ou troco - já que no final ninguém a quis. Enquanto o ministro Weffort viajava, a pasta foi

118

oferecida publicamente, através da mídia, a vários parceiros menores da base de sustentação

do Governo FHC. Nenhum oferecimento se concretizou. Só ficou o sentimento de que a

Cultura não era tão especial como parecia ser para a estrutura de Governo. E o MinC

parecia continuar em tomo de uma lei. Perdido. Sem projeto institucional. Acreditando que

a melhor tarefa é conseguir mais e mais dinheiro para a área.

Mesmo que o MinC tenha tido um relativo sucesso nessa questão do financiamento

- em 12 de setembro de 2000, conseguiu aprovar a lei que eleva para três por cento, o valor

dos recursos destinados ao Fundo Nacional de Cultura, de todos os prêmios das loterias

federais -, ele continua sem um projeto institucional, capaz de ser expresso em lei e por uma

política nacional de cultura.

Em suma, a situação inicial do segundo governo FHC parece ser a mesma do inicio

do primeiro governo, a não ser por um acontecimento raro: A Carta de Fortaleza e,

posteriormente, o decreto de 4 de agosto de 2000. Uma regurgitação antropofágica na

figura do patrimônio imaterial.

Mas para tratar dela são necessárias algumas digressões, pOIS este capítulo

conclusivo, como já destacado, visa ambientar as discussões culturais em tomo da questão

das agendas de governo, seja federal, estaduais ou municipais. Estas digressões se ligam a

três trabalhos científicos referenciais. Partimos da mesma perspectiva estudada por Kuhn

(1980) de que os modelos de reflexão das ciências sociais e humanas surgem primeiro em

campos consolidados do saber científico, como a fisica, a biologia e outros. Teorias de

administração que freqüentam a periferia desse sistema científico acadêmico estão dessa

forma sujeitas às marolas compreensivas que partem do centro do saber consolidado até

119

atingi-las das mais diversas formas, em suas bordas, com mais força ou muito fracas, com

poder elucidativo ou simplesmente com o poder organizador de práticas, instrumentalizadas

no modismo da armação do sistema descritivo de tais teorias. Se a um primeiro momento

parece desprezível tal influência, pois muitas vezes não passa de modismo, num segundo

momento, se depurada e esclarecida, deve-se considerar que é impossível se compreender

qualquer arcabouço teórico-prático sem se considerar o material acadêmico/científico em

que tais tijolos foram plasmados e, portanto, a sua definítiva influência.

Dito isto, a intenção é criar um espaço reflexivo capaz de destacar a discussão da

potencialidade estruturante da questão cultural, que poderá modificar a posição da

administração pública dos organismos culturais nas prioridades da agenda de governo. Daí,

a necessidade de três digressões, que na verdade atualizam as reflexões de AM.

A primeira digressão: Ética e Ecologia Humana

A primeira digressão trabalha os estudos do canadense de Pierre Dansereau sobre

Ética e Ecologia Humana (APED, 1999). O ingrediente trágico da discussão: a destruição

do planeta, uma coetânia hodierna da morte pessoal. Pierre Dansereau é um pesquísador

referencial no esforço das ciências ambientais em encontrar uma definitiva união entre os

estudos naturais e humanos. Esforço que pode ser resumido por suas próprias palavras: "As

ciências do meio ambiente estão à procura de uma nova síntese do saber de uma nova

prescrição cujo princípio será mais ecológico do que econômico e mais ético do que

científico". Ele também nos oferece um descritivo dessa nova síntese do saber ao destacar

os nove principais pontos da conhecida Declaração de Vancouver (1990):

120

"1. Os impactos do homem sobre seu meio ambiente alcançaram uma irreversibilidade

sem precedentes que nos conduz para além dos instrumentos utilizados na gestão

convencional.

"2. A ruptura macro-ambiental, uma repercussão das nossas intervenções, causa danos

que transcendem os poderes nacionais. O pensamento global deve constantemente se

reabastecer no nível da ação local.

"3. Somente uma nova gestão da solidariedade, através de consultas realizadas entre

gerações, classes e nações, nos permitirá formular de maneira válida os nossos

problemas.

"4. Necessitamos, antes de maIS nada, romper o ciclo da guerra e reorientar as

economias e os intercâmbios.

"5. Não se pode separar os efeitos deletérios da pobreza, da ignorância e da injustiça que

constituem ao mesmo tempo a causa e a conseqüência da crise. A ruptura deste círculo

vicioso é essencial a uma apreensão útil da miséria humana, e ao fortalecimento da

vontade de mudança.

"6. Toma-se necessário no mínimo inventar o futuro para favorecer a emergência de

novas estruturas de alocação e de gestão. Pelo fato de todos os nossos desastres serem

atribuíveis a fracassos de imaginação, o desafio reside numa capacidade criativa de

renovação.

"7. Devemos voltar-nos para uma austeridade feliz, o que implica o consentimento a

certas coações antes que elas passem a ser impostas pela emergência de catástrofes. As

121

inevitáveis reformas nas estruturas políticas e econômicas não se viabilizam sem

mudanças de percepção e de procedimento.

"8. Face à trilogia diversidade-continuidade-acordo, seremos conduzidos a aceitar as

diferenças, a respeitar as heranças e a organizar intercâmbios.

"9. A aptidão a destruir, a vontade de viver e a capacidade de construir constituem três

forças antagônicas que devemos equilibrar se ousarmos optar pela harmonia, pela paz e

pela justiça."

o esforço de Dansereau em desenvolver o conceito de ecossistema (APED. 1999 - p.

19 e seguintes) de forma que ele possa ser utilizado da maneira mais ampla possível, ao mesmo

tempo que especificamente, é impressionante. Um conceito capaz de comportar o estudo de

um andorinha, de uma árvore e de uma menina canadense ou brasileira é digno de nota.

Mas transitá-lo aqui, como queremos, para que ele possa encontrar o conceito de

cultura talvez possa parecer por demais global e pouco local. Por isso, acreditamos que

necessitamos de umfi/tro compreensivo. um transmutador a/químico. Ou de uma maneira

mais moderna: a navegação dos estudos biológicos/ambientais para a área da

cultura/antropologia, tendo como ambiente a administração pública, pode ser feita sem

traumas utilizando-se o filtro da área de promoção da saúde (Cadernos da Escola Nacional

de Saúde Pública/2000):

"Traçando a sua própria concepção de saúde de maneira ampla, considerando a

questão da qualidade de vida das populações como marco de reflexão, a promoção da saúde

propõe a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos

122

institucionais e comunitários, públicos e privados para o enfrentamento e resolução do

processo saúde-doença e seus determinantes.

"Nos paises em desenvolvimento, particularmente no Canadá, Estados Unidos e

países da Europa Ocidental, o conceito moderno de promoção da saúde surge e se

desenvolve de forma mais vigorosa nos últimos 20 anos, onde sua prática ganhou contornos

de movimento ideológico e social.

''De qualquer maneira, observa-se grande coincidência entre os conceitos de

promoção da saúde com o de desenvolvimento humano sustentável, Agenda 21, direito à

cidade e a moradia e outros, como o cooperativismo. Em todos eles trabalha-se com fatores

determinantes internos e externos aos respectivos campos a que centralmente se referem

(desenvolvimento, ambiente, saúde, aglomerações humanas e produção coletiva de bens e

serviços), o que evoca a ação inter -setorial para o enfrentamento dos problemas

identificados. Além disso, a valorização do conhecimento popular e da participação social e

sua articulação com outros movimentos sociais como o movimento ecológico/ambientalista

e o movimento feminista são a base da formulação conceitual e das práticas da promoção da

saúde como também desses outros conceitos.

''Dessa forma, ao mencionar-se a saúde como fator essencial do desenvolvimento

humano, um dos campos de ação da promoção da saúde passa a ser a criação de ambientes

favoráveis. O desenvolvimento sustentável coloca o ser humano como agente central do

processo de defesa do meio ambiente e tem no aumento da expectativa de vida saudável e

com qualidade um de seus principais objetivo. A "governance" implica na ampla

participação da comunidade na definição de questões culturais da vida coletiva. Em todos

123

estes conceitos preconiza-se a importância da equidade. seja na distribuição de renda, seja

no acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade.

"O que vem a caracterizar a promoção da saúde modemamente, é a constatação do

papel protagônico dos determinantes gerais sobre as condições de saúde. A saúde toma-se

um produto resultante de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de

vida, incluindo um padrão adequado alimentação e nutrição, de habitação e saneamento,

boas condições de trabalho, oportunidades de educação ao longo de toda a vida, ambiente

fisico limpo, apoio social para famílias e indivíduos, estilo de vida responsável e um espectro

adequado de cuidados de saúde. Suas atividades estariam, então mais voltadas ao coletivo

de indivíduos e ao ambiente, a Carta de Otawa (OMS, 1986) menciona, entre os cinco

campos de ação prioritários, a criação de ambientes favoráveis à saúde compreendido num

sentido amplo, de ambiente fisico, social, político, econômico e cultural, através de políticas

públicas e de ambientes favoráveis ao desenvolvimento da saúde e do reforço da capacidade

dos indivíduos e das comunidades.

"É nesta dimensão ampliada de ambiente que a promoção da saúde prescreve a

criação de ambientes favoráveis entre os seus cinco campos prioritários de ação. De fato,

um elenco muito importante de determinantes da saúde encontra-se situado nestas distintas

"dimensões ambientais" referidas.

"A criação de ambientes favoráveis à saúde implica no reconhecimento da

complexidade das nossa sociedades e das relações de inter-dependência entre diversos

setores. A proteção do meio ambiente e a conservação dos recursos naturais, o

acompanhamento sistemático do impacto que as mudanças no meio ambiente produzem

sobre a saúde, bem como a conquista de ambientes que facilitem e favoreçam a saúde, como

124

o trabalho, o lazer, o lar, a escola e a própria cidade passam a compor, centralmente a

agenda da saúde.

"A agenda 21, a carta para a ação resultante da grande Conferência das Nações

Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Cúpula da Terra de 1992, aponta

claramente que nossas perspectivas de saúde dependem do "desenvolvimento adequado de

nosso meio ambiente natural e social" (Agenda 21, 1992).

"( ... ) A perspectiva das políticas públicas saudáveis distingui-se e ultrapassa em

abrangência as ações ambientais da saúde pública tradicional, e mesmo as políticas urbanas

de expansão de serviços e bens de consumo coletivo. Implica numa abordagem mais

complexa, devendo ser compreendida como uma (re)formulação inovadora tanto do

conceito de saúde quanto do conceito de Estado e de seu papel perante a sociedade. Pode­

se dizer que a noção de políticas públicas saudáveis só pode ser compreendida e

desenvolvida a partir de uma nova concepção de saúde e de uma nova concepção de Estado

e de política pública.

"A nova concepção de saúde importa numa visão afirmativa, que a identifica com

bem-estar e qualidade de vida e não simplesmente com ausência de doença. A saúde deve

ser vista como resultado de um complexo de fatores e situações biológicas, sociais,

econômicas, culturais, cuja interação define a cada momento e em cada lugar o padrão de

saúde, inclusive o quadro de transição/polarização epidemiológica contemporâneo. A saúde

deixa de ser um estado estático, biologicamente definido, para ser compreendido como um

estado dinâmico, socialmente produzido.

"Nesse marco, a intervenção visa não apenas diminuir o fISCO de doenças, mas

aumentar as chances de saúde e de vida, implicando numa intervenção multi e intersetorial

125

sobre os chamados determinantes do processo saúde-enfermidade: eIS a essência das

políticas públicas saudáveis.

"Proporcionar saúde significa. além de evitar doenças e prolongar a vida, assegurar

meios e situações que ampliem a qualidade de vida "vivida", ou seja, ampliem a capacidade

de autonomia e o padrão de bem-estar, o que por sua vez são valores socialmente e

culturalmente definidos, importando em valores e escolhas. Assim, a intervenção sanitária

nessa perspectiva refere-se não apenas à dimensão objetiva dos agravos, mas aos aspectos

subjetivos, relativos portanto às representações sociais de saúde e doença. Mais do que

remover fatores de risco, trata-se de enfrentar situações de risco sanitário, onde o risco

sanitário pode ser impactado, diminuído ou ampliado, mediante intervenções que, malgrado

ou para além de sua base técnica, devem ser sempre socialmente construídas e legitimadas.

"Assim, as políticas saudáveis envolvem ou têm como objeto não apenas os riscos de

adoecer ou morrer, mas também os riscos ou obstáculos à vida com qualidade, com bem­

estar, com autonomia.

"A nova concepção de Estado, subjacente à proposta das políticas públicas

saudáveis, é aquela que (re)estabelece a centralidade de seu caráter público e de sua

responsabilidade social, ou seja, seu compromisso com o interesse público e com o bem

comum. Nesse contexto, é possível superar a idéia de políticas públicas como iniciativas

exclusivas ou monopolísticas do aparelho estatal. Elaboradas e pactuadas em fóruns

participativos, expressivos da diversidade de interesses e necessidades sociais, as políticas

públicas tendem a ser comprometidas com a saúde quanto têm sua implentação controlada

pela participação ativa da sociedade. Representam assim uma nova e mais adequada

redistribuição de direitos e responsabilidades entre o Estado e a sociedade" .

126

"( ... ) Segundo a OMS, uma cidade saudável deve ter as seguintes características:

• meio fisico limpo e seguro

• assegurar as necessidades básicas para todos

• comunidade forte, integrada, sem exploração e com apoio mútuo

• alto grau de participação pública na administração local

• acesso às diferentes experiências, à interação e comunicação

• promoção e celebração das tradições históricas e culturais" (OMS, 1992).

O patrimônio antropofágico hoje, Patrimônio em Mário e Aloísio pode ser defendido

da mesma maneira que biodiversidade definida por Dansereau (APED. 1999- pp. 447 e

seguintes) e que inclui as manifestações humanas. O tratamento da questão é bem conduzido

por Joaquim Falcão na introdução que realiza ao livro apócrifo de coletâneas de textos,

entrevistas e discursos de Aloísio Magalhães "E Triunfo?": "Os aspectos positivos da

cultura jovem decorrem por um lado da constatação de que a forma civilizatória dos países

ricos e velhos não trouxe felicidade a nenhum dos seus povos. Ao contrário, levou-os à

violência urbana, à militarização compulsiva, ao medo permanente da guerra, ao intermitente

desemprego e à crescente especulação financeira. Por outro lado decorrem do fato do país

detentor de uma cultura jovem ter maior potencialidade de invenção e criação. Não estão

ainda sedimentados os parâmetros culturais definitivos. A contrapartida positiva da maior

fragilidade é a maior flexibilidade diante da inovação. Daí a necessidade de se preservar

manifestações culturais espontâneas e populares, eventualmente portadoras de soluções não

percebidas pelos países ricos e velhos. Mesmo porque, como dizia, nos países jovens e

pobres, a mudança é uma necessidade" (Magalhães, 1985 - p. 21 ). É impressionante como

essa questão está definida em Aloísio, ela o leva a seguir um caminho que na maioria dos

127

países só atinge a maturidade reflexiva no final da década de 80 e anos 90, e que é a questão

do desenvolvimento sustentável, que Aloísio chama de desenvolvimento hannonioso, cujo o

instrumento para sua concretização é justamente o bem cultural. Em suas palavras durante o

discurso na instalação do I Encontro dos Conselhos Estaduaís de Cultura das Regiões

Centro-Oeste e Norte, em Goiânia, 26 de maío de 1982, temos: ''Eu vim a São Paulo para

uma reunião de tecnologia, uma reunião extremamente científica e tecnológica, de nivel

muito alto. Eu estava chegando do Nordeste e baixei de repente nessa reunião que já havia

começado e fiquei perplexo com o nível em que os problemas eram tratados. O nível, a

escala de valores, os milhões de cruzeiros para determinar o fluxo do metrô em relação a

determinado desenho. Enfim, era uma escala tão grande quando em outros contextos não se

poderia imaginar aquilo. E eu não sabia como intervir, como entrar na conversa. E de

repente me lembrei, não sei se intuitivamente, me virei, interrompi a reunião e disse bem

alto: E Triunfo? Aí a reunião parou, um sujeito olhou para outro e disse: Triunfo? Outro

disse: E o que é Triunfo? Que era o que eu queria. Aí eu disse: Quando você viaja pelo

sertão de Pernambuco, a partir de serra Talhada, você avista o primeiro grande maciço dos

chapadões do Araripe. É esse maciço que constitui verdadeiramente o nome daquele lugar,

que é o contraforte do chapadão do Araripe, e vai mudando a paisagem, vai mudando a

paisagem e começam a aparecer árvores, frutas, fruta-de-conde, uma série de pequenos

sítios, a construção muda, uma construção freqüente de pedras, pedra seca, muros e cerca

de pedra seca. Toda a paisagem vai mudando à proporção que você vai subindo a Serra do

Araripe. E quando você chega a mil metros de altura, numa curva de estrada, você avista a

cidade de Triunfo. Tem um açude parado, refletindo a cidade, uma pequena cidade no topo

da Serra do Araripe, harmoniosa, uma cidade antiga, com as ruas, as praças, os prédios de

128

dois andares. Uma escala humana perfeitamente mantida, uma densidade correta. (00') Enfim,

todo um processo de harmonia entre ecologia e necessidades técnicas, toda uma forma de

vida que a meu ver tem uma representatividade imensa que de nada tinha a ver com a escala

da discussão em que nós estávamos. Essa foi a única maneira que eu encontrei de intervir na

conversa e deixar uma cunha, deixar uma referência que não sei se atuou ou não nas cabeças

das pessoas daquele nivel de tecnologia, mas que era realmente a tentativa de dizer que

existe Triunfo. E quantos triunfos existem por aí? (Magalhães, 1985 - p.42 e 43). Nessa

lógica, Aloísio se aprofunda e pode discutir de uma maneira tão precisa e antecipada a

globalização atual. A comunicação que se segue data de 8 de novembro de 1977 em reunião

do Conselho Federal de Cultura. Diz Aloísio: "A conscientização e uso adequado de nossos

valores é a única maneira de nos contrapormos, oferecendo alternativas nossas, à inevitável

velocidade de transferência cultural entre nações no mundo de hoje. ( ... ) Relembrar a

importância da continuidade do processo cultural a partir de nossas raízes não representa

uma aceitação submissa e passiva dos valores do passado, mas a certeza de que estão ali os

elementos básicos com que contamos para a conservação de nossa identidade cultural"

(Magalhães, 1978).

A segunda digressão: Memória e Identidade

A segunda digressão trata da questão da memória e da identidade. Trata-se de

pesquisa na área de neurociências publicada pela Revista Nature de lO/ago/2000.

Correlaciona-se à definição de memória em Aloísio. Para os pesquisadores Karim Nader,

Glenn E. Schafe e Joseph E. Ledoux da Universidade de Nova Y ork o modelo mrus

129

conhecido de memória deve ser revisto a partir de suas pesquisas em laboratório. Para eles,

o novo modelo deve levar em conta que a memória de longo prazo é lábile, isto é, instável.

Dessa forma, as memórias - mesmo aquelas de experiências traumáticas e que por isso são

consideradas permanentes - são guardadas numa sopa química extremamente instável e,

portanto, podendo ser modificadas ou destruídas com muito maís facilidade do que se

pensava antes. Taís cientistas defendem que nenhuma lembrança pode ser recuperada da

mesma forma ou para sempre. Isso é impossível. Cada vez que uma coisa é relembrada, ela

não pode ser simplesmente devolvida para o arquivo de memórias. Ela precisa ser reescrita

no código químico usado pelo cérebro. Segundo os cientistas: "O modelo tradicional de

memória diz que fatos novos são transformados em pedaços de memória estável, de longo

prazo, num processo de geração de proteínas chamado consolidação. Nossas descobertas

desafiam esse modelo. Descobrimos que as memórias de longo prazo entram num estado

quimicamente instável toda vez que são relembradas. Além disso, demonstramos que cada

vez que alguma coisa é relembrada, precisa ser reconsolidada, com a produção de novas

proteínas". ("Lembranças podem ser alteradas no cérebro", Ciência e Vida, O Globo, 21 de

agosto de 2000).

A memória é naturalmente muito maís antropofágica do que se pensava e... tão

próxima do bodoque aloisiano cósmico. E portanto, não só toda biodiversidade natural é

humana, como todo o olhar sobre a biodiversidade é único e deve ser também registrado,

pois "a antropofagia é a única lei do mundo" (Manifesto Antropófago, 1928)7.

7 A síntese dos saberes que prega Dansereau - a lógica da solidariedade - só é possível em sua plena magnitude utilizando-se a técnica de registro de quem olha. Técnica tão comum nos estudos antropológicos, sociológicos e também no CNRC de Aloísio

l30

A Terceira Digressão: a Matéria Invisível

A terceira digressão liga-se a estudos já consolidados e aceitos pela comunidade

científica mais avançada, e tem a ver com a busca da unificação da teoria da relatividade e da

teoria quântica: a teoria da matéria escura. Liga-se a idéia de bem cultural e patrimônio

imaterial. Pelas contas cósmicas, para que o universo visível faça sentido, isto é, possa todos

os dias existir, é necessário que exista uma quantidade considerável de matéria invisível,

também conhecida como matéria escura. Algo em tomo de 70% de matéria invisível para o

total de matéria visível existente, uns poucos 30% da massa universal (Brockman, 1988 - p.

39). Isto é: para se ser materialista hoje é preciso acreditar no invisível, não paupável, não

perceptível "etc e etc" (Ante-projeto de Mário de Andrade, 1935) e "Roteiro, roteiro,

roteiro ... " (Manifesto Antropófago, 1928).

E se dessa forma temos aqui como rediscutir as grandes maquinarias de explicação

do mundo ocidental atual: o modelo do mundo como necessidade material que gera a

interpretação baseada na rigidez da necessidade: da qual trata a ciência econômica - quanto

falta, quanto vale, quanto é possível -, baseada na obviedade do materialismo, que gera a

consideração de que só podemos considerar o que é visível.

o pensamento da matéria escura rompe com o conceito da necessidade. Não porque

a necessidade ainda não possa ser a grande regente do universo. A questão é que não há

como saber se ela o é. É por esta principal razão que o universo concebido como o resultado

de uma composição de acaso e necessidade passou a ganhar espaço. Concepção coligada a

Nietzsche (Deleuze, 1974). Isto é não há como saber previamente qual a necessidade que

impele um acontecimento, pois não há dados visíveis suficientes para se fazer tais previsões.

131

Mas podemos afirmar que se aconteceu alguma coisa era porque era necessária. Estamos

então diante de uma ciência memorialista: só é possível prever o passado. E aqui temos uma

conseqüência importante, pois se a única ciência possível é a história, nenhuma teoria pode

apoiar a ação pois por princípio tudo pode acontecer. Em outras palavras, todas as teorias

são na verdade intervenções, ações de uma outra espécie - podemos dizer - mas são sempre

- desculpe o pleonasmo - ações executivas.

o bem cultural de Aloísio é, na verdade, um instrumento para indicar, possibilitar o

conhecimento mais total de um determinado universo, pois ele é composto de 70% de

imaterialidade e 30% de materialidade e seus 100% são propriamente o conjunto da

realidade. Por isso, não é possível pensar Aloísio preservando apenas prédios, pedra e cal.

Seria algo quase que grotesco. ''Há uma interrogação sutil: como preservar, quando, onde,

de que maneira? Não se pode deixar de incluir a vida. Não há cidade morta" (Magalhães,

1985 - p.86).

o Decreto e a Fortaleza da Carta

Podemos então voltar a Carta de Fortaleza que irá gerar o Decreto Presidencial de 4

de agosto de 2000, que institucionaliza a figura do patrimônio imaterial. É interessante que

nos escombros do que fora o aparato de cultura antes do governo Collor, a equipe de

Weffort tenha levado seis longos anos para reencontrar Aloísio.

Em sua reportagem tratando da figura do Patrimônio Imaterial, no site do MinC

(wwwminc.gov.br), o IPHAN assina o seguinte texto: "A partir dos anos 70, o conceito de

patrimônio cultural amplia-se e passa a incluir, além de obras arquitetônicas, urbanísticas e 132

artísticas de grande .valor, manifestações de natureza imaterial que constituem importantes

referências culturais e relacionam-se à identidade, à memória e à ação dos grupos sociais".

Eles estão objetivamente falando de Aloísio e prosseguem: "A Constituição promulgada em

1988 confirmou, em seu Artigo 216, esse conceito ao também incluir no rol do patrimônio

cultural brasileiro as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver. Em novembro

de 1997, em comemoração aos seus 60 anos, e retomando uma discussão que faz parte de

sua história, o IPHAN promoveu em F ortalezalCE um seminário internacional com o

objetivo de discutir estratégias e formas de proteção ao patrimônio imaterial. A Carta de

Fortaleza, documento final do evento, recomendou, entre outras indicações, o

desenvolvimento de estudos para a regulamentação do registro como principal modo de

preservação dos bens culturais de natureza imaterial".

Antes de continuarmos com o texto do IPHAN é essencial reproduzirmos a íntegra

do documento a Carta de Fortaleza: "Em comemoração aos seus 60 anos de criação, o

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN promoveu em Fortaleza, de

10 a 14 de novembro de 1997, o Seminário "Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de

Proteção", para o qual foram convidados, e estiveram presentes, representantes de diversas

instituições públicas e privadas, da UNESCO e da sociedade, todos signatários deste

documento. O objetivo do Seminário foi recolher subsídios que permitissem a elaboração de

diretrizes e a criação de instrumentos legais e administrativos visando a identificar, proteger,

promover e fomentar os processos e bens "portadores de referência à identidade, à ação e à

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira" (Artigo 216 da

Constituição), considerados em toda a sua complexidade, diversidade e dinâmica,

particularmente, "as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações

133

científicas, artística e tecnológicas". com especial atenção àquelas referentes à cultura

popular.

"O plenário, considerando:

"1. a crescente demanda pelo reconhecimento e preservação do amplo e diversificado

patrimônio cultural brasileiro, encaminhada pelos poderes públicos e pelos SOCIaIS

organizados;

"2. que, em nivel nacional, cabe ao IPHAN identificar, documentar, proteger, fiscalizar,

preservar e promover o patrimônio cultural brasileiro;

"3. que o patrimônio cultural brasileiro é constituído por bens de natureza material e

imaterial, conforme determina a Constituição Federal;

"4. que os bens de natureza imaterial devem ser objeto de proteção específica; e

"5. que os institutos de proteção legal em vigor no âmbito federal não se têm mostrado

adequados à proteção do patrimônio cultural de natureza imaterial;

propõe e recomenda

"1. que o IPHAN promova o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de bem cultural

de natureza imaterial, com a colaboração de consultores do meio universitário e instituições

de pesquisa;

''2. que o IPHAN, através de seu Departamento de Identificação e Documentação,

promova, juntamente com outras unidades vinculadas ao Ministério da Cultura, a realização

134

do inventário desses bens culturais em âmbito nacional, em parcena com instituições

estaduais e municipais de cultura, órgãos de pesquisa, meios de comunicação e outros;

"3. que o Ministério da Cultura viabilize a integração do referido inventário ao Sistema

Nacional de Informações Culturais;

"4. que seja criado um grupo de trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do

IPHAN, com a participação de suas entidades vinculadas e de eventuais colaboradores

externos, com o objetivo de desenvolver os estudos necessários para propor a edição de

instrumento legal, dispondo sobre a criação do instituto jurídico denominado registro,

voltado especificamente para a preservação dos bens culturais de natureza imaterial; e

"5. que o grupo de trabalho estabeleça as necessárias interfaces para que sejam estudadas

medidas voltadas para a promoção e o fomento dessas manifestações culturais, entendidas

como iniciativas complementares indispensáveis à proteção legal propiciada pelo instituto do

registro. Essas medidas serão formuladas tendo em vista as especificidades das diferentes

manifestações culturais, e com a participação de outros agentes do poder público e da

sociedade.

"O plenário ainda recomenda:

"6. que a preservação do patrimônio cultural seja abordada de maneira global, buscando

valorizar as formas de produção simbólica e cognitiva;

"7. que seja constituído um banco de dados acerca das manifestações culturais passíveis de

proteção, tomando a difusão e o intercâmbio das informações ágil e acessível;

135

"8. que sejam buscadas parcerias com entidades públicas e privadas com o objetivo de

conhecer as manifestações culturais de natureza imaterial sobre as quais já existam

informações disponíveis;

"9. que, relativamente aos Estudos de Impacto Ambiental (ElA) e Relatórios de Impacto

Ambiental (RIMA), o IPHAN encaminhe ao Conselho Nacional do Meio Ambiente

(CONAMA) proposta de regulamentação do item relativo ao patrimônio cultural, de modo a

contemplá-lo em toda a sua amplitude;

"10. que seja desenvolvido um Programa Nacional de Educação Patrimoníal, a partir da

experiência do IPHAN, considerando sua importância no processo de preservação do

patrimônío cultural brasileiro;

"11. que seja estabelecida uma Política Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural com

objetivos e metas claramente definidos; e

"12. que o Ministério da Cultura procure influir no processo de elaboração das políticas

públicas, no sentido de que sejam levados em consideração os valores culturais na sua

formulação e implementação.

"O plenário encaminhou as seguintes moções:

"1. Moção de defesa da legislação de preservação

"Em defesa do reconhecimento, eficácia, atualidade e excelência jurídica do Decreto-lei n.

25/37, em vigor, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, cujas

disposições foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988.

136

"Em defesa da criação de instrumentos legais complementares com o objetivo de

regulamentar as outras formas de acautelamento e preservação mencionadas no parágrafo

primeiro do Artigo 216 da Constituição Federal.

"2. Moção de apoio ao IPHAN

''Pelo repúdio a qualquer tipo de medida que venha a reduzir a capacidade operacional do

IPHAN, já bastante defasada em relação às suas atribuições legais e administrativas,

inclusive no que conceme a extinção de cargos efetivos, comissionados e funções, e o

conseqüente desligamento de servidores não estáveis.

''Pela garantia de sobrevivência do IPHAN e de todas as suas conquistas nas áreas de

identificação, documentação, proteção, preservação e promoção do patrimônio cultural

brasileiro.

''Pelo reconhecimento das atividades exercidas pelo IPHAN como função típica de Estado,

através da criação de uma carreira especial.

"3. Moção de apoio ao Ministério da Cultura

''Pelo repúdio a qualquer tipo de medida que venha a reduzir a capacidade operacional do

Ministério da Cultura e demais entidades vinculadas, de modo a não comprometer suas

atribuições institucionais, inclusive no que conceme á extinção de cargos efetivos e o

conseqüente desligamento de servidores não estáveis.

"4. Moção de defesa à Lei de Incentivo à Cultura

137

"Pela manutenção dos beneficios previstos na Lei de Incentivo à Cultura, que estimulam a

parceria entre Estado e sociedade na tarefa de preservar e promover o patrimônio cultural

brasileiro.

"5. Moção de apoio às expressões culturais dos povos ameríndios

''Pelo reconhecimento da cultura indígena como integrante do patrimônio nacional brasileiro,

devendo, a exemplo de outras etnias, ser objeto de atenção dos órgãos do Ministério da

Cultura.

"6. Moção de congratulações à 48 Coordenação Regional do IPHAN

"Pelo reconhecimento da importância de realização do Seminário "Patrimônio Imaterial:

estratégias e formas de proteção" e da excelência de sua organização.

''Fortaleza, 14 de novembro de 1997".

Podemos então seguIr o texto do DIDIIPHAN: "Considerando essas

recomendações, o Ministro da Cultura, instituiu, em março de 1998, uma comissão,

composta pelos conselheiros do Iphan Joaquim Falcão, Marcos Vilaça e Thomas Farkas, e

por Eduardo Portela, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, para desenvolvimento

dessa proposta": Aqui comentar é inevitável. Quem é Thomas Farkas? Fotógrafo, que nos

anos 60 , envolveu-se com cinema e organizou a caravana composta de jovens diretores, que

percorreu o interior do Brasil e registrou costumes e tradições do povo brasileiro. O

resultado foi dezenas de documentários, responsáveis pela formação de cineastas como

138

Geraldo Sarno, Sergio Muniz, Paulo Gil Soares e Guido Araújo. Quem é Joaquim Falcão?

Dispensa grandes apresentações. Acabou de deixar, depois de muitos anos, a direção da

Fundação Roberto Marinho para integrar a direção das Organizações Globo, que já deixou

para integrar os quadros da FGV -Rio. Mas na época era o sucessor esperado para substituir

Aloísio após a sua morte. Diz-se que Aloísio o havia treinado para isso. Quem é Marcus

Villaça? Atual integrante ministro do TCU, foi quem substituiu Aloísio - não Joaquim

Falcão -, que buscou continuar o trabalho iniciado por Aloísio, até 1985. Quem é Eduardo

Portella? Estava Ministro da Educação, quando possibilitou as mudanças fundamentais na

estrutura do ministério solicitadas por Aloísio. Em outras palavras, a Comissão montada por

Weffort é o propriamente AM.

Segue o texto do IPHAN: "Nesses 17 meses, o Grupo de Trabalho Patrimônio

Imaterial/GTPI realizou, por solicitação da comissão, ampla pesquisa sobre a experiência

brasileira no trato da matéria, bem como sobre as recomendações, experiências e legislações

internacionais que dispõem sobre o assunto. Essas informações permitiram caracterizar o

estágio atual da discussão sobre a proteção do patrimônio imaterial no Brasil e no exterior;

identificar as formas de apoio e valorização mais recomendadas ; e os principais problemas

que ocorrem nessa área de atuação. Paralelamente, o grupo desenvolveu, também, discussão

conceitual sobre o universo abarcado pelos bens culturais imateriais, o que possibilitou

reuní-Ios em quatro categorias básicas, de acordo com sua natureza, características e

demandas de registro, apoio e valorização.

"Os estudos e discussões prévias permitiram consolidar alguns princípios que

nortearam a confecção da proposta de instrumento legal, bem como a caracterização do

139

instituto do registro como um instrumento de reconhecimento e valorização do patrimônio

imaterial. Mais do que inscrição em Livro público ou ato de outorga de um título, o registro

significará identificação e produção de conhecimento sobre o bem cultural. Significará

conhecer e registrar pelos meios técnicos mais adequados, o passado e o presente da

manifestação e suas diferentes versões. Significará, ainda, tomar essas informações

amplamente acessíveis ao público, de modo eficiente e completo, mediante a utilização dos

recursos hoje proporcionados pelas novas tecnologias de informação. Enfim, o objetivo

principal é manter o registro da memória desses bens culturais, única maneira possível de

preservá-los.

"O registro assim proposto não se limita, contudo, a conferir ao Estado um papel de

mero observador. O conhecimento gerado sobre esses bens permitirá identificar

precisamente as formas mais adequadas de apoio à sua continuidade, como, por exemplo,

ajuda financeira a detentores de saberes específicos, divulgação, facilitação do acesso a

matérias-primas, concessão de incentivos fiscais, entre outras. Propõe-se que essas ações de

apoio sejam desenvolvidas no âmbito do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, a ser

criado juntamente com o instituto do registro. O programa terá como meta implementar, no

âmbito do Ministério da Cultura, política pública de identificação, inventário e valorização

desse patrimônio.

"O decreto presidencial foi considerado o instrumento legal mais adequado para

institucionalizar o registro do patrimônio imaterial. A tramitação do processo foi organizada

de maneira análoga à do processo de tombamento, mas com uma novidade : a parceria em

sai instrução. Embora coordenados pelo IPHAN, ao qual caberá também o pronunciamento

140

técnico sobre as propostas, os estudos para a instrução serão realizados em parceria com

outras instituições públicas e privadas, aproveitando-se o conhecimento já produzido e

acumulado sobre essas manifestações culturais".

o decreto presidencial 3.551, de 4 de agosto de 2000, realiza indicações apontadas

pelo anteprojeto de Mário de Andrade nos anos 30 e "Institui o Registro de Bens Culturais

de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa

Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências".

Abaixo a íntegra do decreto 3. 551 :

"O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,

inciso IV, e tendo em vista o disposto no art. 14 da Lei no 9.649, de 27 de maio de

1998,

"DECRETA:

"Art. lo Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que

constituem patrimônio cultural brasileiro.

"§ 1 o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:

"I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de

fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

"lI - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que

marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de

outras práticas da vida social;

141

"IH - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações

literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

"IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,

santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas

culturais coletivas.

"§ 20 A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a

continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade

e a formação da sociedade brasileira.

"§ 30 Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais

de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se

enquadrem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo.

"Art. 20 São partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro: I

- o Ministro de Estado da Cultura; H - instituições vinculadas ao Ministério da

Cultura; IH - Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; IV -

sociedades ou associações civis.

"Art. 30 As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica,

serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional - IPHAN, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio

Cultural.

"§ 10 A instrução dos processos de registro será supervisionada pelo IPHAN.

142

"§ 20 A instrução constará de descrição pormenorizada do bem a ser registrado,

acompanhada da documentação correspondente, e deverá mencionar todos os

elementos que lhe sejam culturalmente relevantes.

"§ 30 A instrução dos processos poderá ser feita por outros órgãos do Ministério da

Cultura, pelas unidades do IPHAN ou por entidade, pública ou privada, que detenha

conhecimentos específicos sobre a matéria, nos termos do regulamento a ser

expedido pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

"§ 40 Ultimada a instrução, o IPHAN emitirá parecer acerca da proposta de registro

e enviará o processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, para

deliberação.

"§ 50 O parecer de que trata o parágrafo anterior será publicado no Diário Oficial da

União, para eventuais manifestações sobre o registro, que deverão ser apresentadas

ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural no prazo de até trinta dias, contados

da data de publicação do parecer.

"Art. 40 O processo de registro, já instruído com as eventuais manifestações

apresentadas, será levado à decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

"Art. 50 Em caso de decisão favorável do Conselho Consultivo do Patrimônio

Cultural, o bem será inscrito no livro correspondente e receberá o título de

"Patrimônio Cultural do Brasil".

143

"Parágrafo único. Caberá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural determinar

a abertura, quando for o caso, de novo Livro de Registro. em atendimento ao

disposto nos termos do § 30 do art. 10 deste Decreto.

"Art. 60 Ao Ministério da Cultura cabe assegurar ao bem registrado:

"I - documentação por todos os meios técnicos admitidos. cabendo ao IPHAN

manter banco de dados com o material produzido durante a instrução do processo.

"11 - ampla divulgação e promoção.

"Art. 70 O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a

cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para

decidir sobre a revalidação do título de "Patrimônio Cultural do Brasil".

''Parágrafo único. Negada a revalidação, será mantido apenas o registro, como

referência cultural de seu tempo.

"Art. 8° Fica instituído, no âmbito do Ministério da Cultura, o "Programa Nacional

do Patrimônio Imaterial", visando à implementação de política específica de

inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio.

''Parágrafo único. O Ministério da Cultura estabelecerá, no prazo de noventa dias, as

bases para o desenvolvimento do Programa de que trata este artigo".

Portanto, segue o IPHAN, "o ato culminante do registro será a inscrição em um dos

quatro Livros estabelecidos na proposta de instrumento legal. F oram denominados,

respectivamente : Livro dos Saberes - para o registro de conhecimentos e modos de fazer

144

tradicionais; Livro das Celebrações - para festas, rituais e folguedos que marcam a vivência

coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e outras práticas da vida social;

Livro das Linguagens - para o registro das formas de expressões orais ou escritas de

natureza musical, poética, iconográfica ou cênica; e Livro dos Lugares - destinado à

inscrição de espaços comunitários, como mercados, feiras, praças e santuários, onde se

concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Optou-se, assim, por delimitar o

universo dos bens culturais imateriais por meio da indicação do conteúdo dos Livros de

Registro, rejeitando-se conceituações rígidas e aprisionadas. Espera-se que essa definição

abrangente estimule o processo de construção do conceito de patrimônio imaterial,

mantidos, naturalmente, os parâmetros estabelecidos pela Constituição"g.

O feliz encontro entre a administração de Weffort com AM deve ser estimulado e

preservado e apostando em um bom final podemos citar mais uma vez e derradeiramente o

próprio Aloísio: "Quais são os valores pennanentes de uma nação? Quais não podem ser

postos em dúvida? Só os bens culturais. Só o acervo do nosso processo criativo, aquilo que

construímos na área da cultura, na área da reflexão, que deve tomar aí o seu sentido mais

amplo - costumes, hábitos, maneiras de ser. Tudo aquilo que foi sendo cristalizado nesse

processo, que ao longo desse processo histórico se pode identificar como valor pennanente

da nação brasileira. Estes são os nossos bens, e é sobre eles que temos que construir um

processo projetivo. O mais são imensas e fantásticas variáveis que todos desconhecem como

resolver: a variável econômica e mesmo a variável política. Tentamos descobrir caminhos,

8 O artigo constitucional é de uma amplitude cosmogônica e, por isso. tudo pode ser incluído. E se tudo pode - nos lembra a expressão tudo é cultura - então. nada pode. Não fosse o trabalho acumulado em Aloísio. neste caso. nada teríamos mesmo. No bom sentido - aquele de Mário de Andrade - o decreto presidencial de 4 de agosto pode ser definido como o decreto do etecetera e etecetera.

145

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146

tentamos achar o deus, tentamos abrir a nação a uma reflexão mais nova. Estamos num

processo nítido de querer encontrar nossa identidade política.

"Como se encontrará? Onde se encontrará? Não há outro caminho a não ser o

conhecimento, a identificação, a consciência coletiva, a mais ampla possível, dos nossos

bens e nossos valores culturais. ( ... ) Nós emergimos como nação no momento em que as

grandes nações tecnológicas do Ocidente já reconhecem ou já sabem que em parte o modelo

desenhado por elas é insatisfatório, não resolveu, nem aumentou grau (desculpem essa

improposital imagem), não aumentou o grau de felicidade do homem" (Magalhães, 1985 -

p.41 - Discurso na instalação do I Encontro dos Conselhos Estaduais de Cultura das

Regiões Centro-Oeste e Norte. Goiânia, 26 de maio de 1982 - a menos de um mês de sua

morte.)

O Patrimônio Antropofágico, o Bem cultural Abaporu, é a nossa associação

responsável aos projetos de políticas públicas saudáveis e nosso esforço organizado pelo

desenvolvimento sustentável. Mas é também a possibilidade de nosso salto quântico

enquanto pais, para além das imensas e fantásticas variáveis da economia e da política.

146

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152

ANEXO I

Manifesto antropófago.

Oswald de Andrade

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos

os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupy or not tupy that is the questiono

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama.

Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e

o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a

hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra

grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca

soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa­

múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da

vida.

E a mentalidade prelógica para o Sr. Levi Bruhl estudar.

153

Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de

todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua

pobre declaração dos direitos do homem.

A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. OÚ Villegaignon print terre. Montaigne.

O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução

Bolchevísta, à Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. C amínhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos

Cristo

nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admítimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira.

Autor do

nosso primeiro empréstimo, para ganhar comíssão. O rei analfabeto dissera-lhe:

ponha isso

no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro.

Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo.

Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E

as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia.

Antropofagia.

A transformação permanente do Tabu em totem.

154

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do

pensamento que

é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das

injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos

parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do

Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos

portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipejú.

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens fisicos, dos bens

morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de

algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia

do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.

Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

155

Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não

datado.

Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a

maquinaria.

E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um

antropófago,

o Visconde de Cairu:-É a mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. F oram fugitivos de uma civilização que

estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é

a mãe

dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a

ciência

da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra

os

Conservatórios, e o tédio especulativo.

De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

156

o pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas +

falta de imaginação + sentimento de autoridade ante a pro-curiosa (sic).

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas o

caraíba

não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que

temos nós

e

com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis

genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças

públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais,

acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição

permanente do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista.

Antropofagia. Absorção do inimígo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana

157

aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites consegUiram realizar a

antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males

identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto

sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e

cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se.

Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados

do catecismo - a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados

povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema - o

patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI:-Meu

filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a

dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da

Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud-a realidade

sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de

Pindorama.

Oswald de Andrade

Em Piratininga

Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha.

Originalmente publicado em Revista de Antropofagia, n.1, ano I, maio de 1928, São Paulo.

ANDRADE, Oswaldo Manifesto Antropófago. "Revista de Antropofagia", n. 1,

ano 1, maio 1928.

158

ANEXO II Centro Nacional de Referência Cultural - CNRC

Estudo e compreensão das circunstâncias da presente produção cultural brasileira, a partir de sua própria realidade.

Programas/proveitos gerais

l. Artesanato

Conhecimento dos processo de produção, comercialização e consumo; das matérias-primas e técnicas artesanais. Experiências de indexação, de cinema e de fotografia como recursos documentais

Projetos/proveitos específicos

o Artesanato como Referência Cultural Traçado de uma sistemática ampla para o mapeamento da atividade no Brasil, consideradas suas múltiplas vinculações com as circunstâncias históricas, sócio-culturais e econômicas do país.

Tecelagem Popular no Triângulo Mineiro Levantamento e documentação das técnicas de fiação, tingimento e tecelagem; da fabricação de instrumentos e obtenção das matérias-primas. Classificações dos padrões de produtos; estudo de sua evolução.

Artesanato Indígena no Centro-Oeste Levantamento, documentação e análise das técnicas de produção do artesanato indígena, com seu entendimento pelo contexto sócio-econômico que as gera.

Cerâmica de Amaro de Tracunhaém Documentação fotográfica de trabalho de cerâmica utilitária e figurativa; gravações de depoimentos dos artesãos; análise e indexação do universo da atividade.

Brinquedos Populares do Nordeste Documentário cinematográfico sobre a fabricação e comercialização de brinquedos populares nas feiras de cidades do Nordeste.

Artesanato do Médio São Francisco Registro de aspectos da vida, tradições e costumes na região; coleta de peças artesanais e exposições representativas realizadas em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

Fabricação e Comercialização de Lixeiras - Um artesanato de Transfonnação Registro do processo de aproveitamento de pneumáticos usados como depósitos de lixo e sua análise econômica.

159

2. Levantamentos Sócio-Culturais

Conhecimento dos processo de transformação sócio-culturais, especialmente com vistas ao estudo de modelos alternativos de desenvolvimento.

Projetos/proveitos específicos

Programa Ecológico e Cultural do Complexo Industrial-Portuário de Suape Preservação e aproveitamento das caracteristicas ambientais e culturais da região, do seu patrimônio paisagistico e arquitetônico, num adequado planejamento da instalação do Complexo. Projeto de Levantamento Ecológico e Cultural das Lagoas de Mundaú e Manguaba Avaliação dos efeitos da instalação do pólo cloroquímico de Maceió sobre a ecologia, cultura e qualidade de vida das populações locais.

Etnomusicologia na Área Nordestina Coleta de música folclórica e religiosa, documentação fotográfica e cinematográfica dos ritos correspondentes, com subsídios para rever-se a classificação da música tradicional brasileira.

Cultura Paulistana e Renovação Urbana Conhecimento das dinâmicas culturais das diversas correntes migratórias na antiga e na a nova industrialização paulista, tomando-se um dos bairros da cidade (o Brás) como foco de estudo.

Tesouro Elaboração de um vocabulário controlado para a análise e processamento de informação sobre a cultura brasileira.

Estudo da Polêmica Relativa à Cultura Instaurada pelo Modernismo Reavaliação das pesquisas que se desenvolveram de 1922 a 1945 e como consequência do movimento modernista. interessando às artes, à história. à sociedade. à pedagogia, à linguística, ao folclore.

3. História da Tecnologia e da Ciência no Brasil

Conhecimento das técnicas e do saber tradicional artesanais; compreensão das economias pré-mercado e estímulo à descoberta de tecnologias alternativas nas atividades de transformação do país.

Projetos/proveitos específicos

Estudo Multidisciplinar do Caju Conhecimento do papel desempenhado pelo caju e de sua potencialidade como recurso, em diversos contextos, desde o da química e nutrição até o das ciências humanas e artes.

160

A Marca Estampada em Folha-de-flandres em Juiz de Fora Levantamento das marcas litográficas impressas principalmente em latas destinadas a produtos alimentícios; compreensão da interinfluência entre o desenho da marca e fatores econômicos, técnicos e estéticos.

Indústrias Familiares dos Imigrantes em Orleans, Santa Catarina Implantação de um museus ao ar livre, com preservação de maquinaria do século XIX; organização e preservação de arquivo (150.000 documentos) voltado para a história do imigrante europeu no estado.

4. Levantamentos de Documentação sobre o Brasil

Levantamento, referenciação, preservação e difusão de documentação sobre o Brasil. Experiências de adequação, ao usuário, de sistemas de arquivamento e informação.

Projetos/proveitos específicos

Levantamento Bibliográfico de Documentação Estrangeira sobre o Brasil Sistematização da bibliografia estrangeira relativa ao Brasil, que se encontra no exterior, com vistas a torná-la acessível aos estudiosos do Brasil.

Documentação do Patrimônio Cultural Brasileiro Levantamento e classíficação dos acervos dos museus brasileiros e dos organismos que cuidam do registro de bens; subsídios para a definição do bem cultural no Brasil.

Recuperação e Preservação de Filmes do Acervo da Fundação Cinemateca Brasileira Tratamento e indexação de filmes do período do estado (DIP), desenvolvendo-se técnicas de fichamento de documentários cinematográficos.

Indexação e Microfilmagem da Documentação em Depósito no Museu do Índio Organização e preservação do arquivo básico do Museu, essencial para o conhecimento da dinâmica do contato interétnico, assim como para planejamento no âmbito da FUNAI.

Condições de Vida do Rio Antigo Conhecimento do Rio de Janeiro da Primeira República (1889-1930), com levantamento, indexação e leitura de iconografia da época.

Análise e Publicação do Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendaju reexame e divulgação de uma obra esse ncial para o conhecimento das populações indígenas brasileiras.

Brasil Holandês

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Conhecimento da presença holandesa no Brasil Colonial. enfatizando-se suas vinculações com a influência holandesa na América Latina e Carihe.

Documentação sobre as Viagens de G.L Langsdorffno Brasil Tradução para o português e resumo do catálogo descritivo do material coletado para expedição. ora em depósito na URSS, e organização da bibliografia critica sobre o assunto.

D. Pedro 11 e seu tempo Levantamento e apresentação, numa exposição colante de 3.000 exemplares. de farta iconografia sobre o reinado de D. Pedro 11, acompanhada de textos informativos.

Documentação Cinematográfica sobre a Construção de Brasília Montagem de um documentário sobre a construção de Brasília. com recuperação de material audiovisual filmado e gravado na cidade. em 1959.

Levantamento e Microfilmagem da Documentação Brasileira no Exterior Sistematização das informações contidas nos documentos relativos ao Brasil que se encontram no exterior, com vistas a torná-los acessíveis aos estudiosos no país.

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