0 DIREITO E OS DIREITOS - Repositório Institucional da UFSC

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0 DIREITO E OS DIREITOS

UMA m n O V U Ç A û â ANÄLISE v o VJREJTÛ CÖWTEMPÖRÄWEO )

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

0 DIREITO E OS DIREITOS

C UMA INTRDDUÇSO A ANSLISE DO DIREITO CONTEMPORÂNEO )

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA A UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM CIÊNCIAS HUMANAS, ESPECIALIDADE DIREITO.

CLEMERSON MERLIN CLÈVE

NOVEMBRO DE 1.983

Esta dissertação foi julgada adequada pa ra a obtenção do títxilo de

M E S T R E EM CIENGIAS HUMANAS - Espe ciai idade Direito e aprovada em sua forma final pelo Programa dePos-Graduação.

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LUIZ FERNANDO COELHO - Orientador

PAULO HENRIQUE BLASI - Coordenadordo Curso

Apresentada perante a banca examinadoracomposta dos Professores:

LUIZ FERNANDO COELHO

ROBERTO LYRA FILHO

LEONEL SEVERO ROCHA

IV

PoAM. LüxUane.: icUo dz ía z de. luan. num moA de &'t(in.na pfieAençxi.

Tambm pa/ia VayUel. C-£eue, RogÕ/Uo CleXo e Edmundo AMAuda. M . , m n£ me dcL moÃÁ veAdadeÁAa amizade..

Õ4> 6Ígno4) mp^z&60& ncu pãgZnaà que òzgum m nÁ^&htm um te&temunho de dZvZda. e g^uitidao eXeAnu peZo apoio amlQO dz muita g en tz. Eòpz (UcLànente devo ZmbAoA a cmpfLemòao 2. Incen­tiv o doá doivtone^ deiímbanQadon. JoAgz And/U - g u etto , Jvan GfuidomkÃ. e Jo&e Luíò Caminha do TRBjPfL.i doò pKo{^. WUtton Gíovannonl e Son- óão Jo^é LouAeÃAo da UFPa. Tambem do& pfw^. Pojojío Hen/iÁque BZa&l e Luiz TeAnando Coelho , 0 pnmdÁJio eoondenadofL e aàna do C auo de tÀado m VÁJvelto da UFSC, e 0 segundo meu eò- timado onlentadoA e pAoleÁòoK da meòma UnlveA ild a d e . Agmdeço Igualmente 0 eátZmuío pAe CÁ.0&0 doò "companhelnoò de mnÁma vZagm” :aque te& novoò que bu&aam Incanòavelmente um novo caminho teoAÃco e p o lZ tico paAa 0 òaben. JuaZ- d lco . CÁXo: Edmundo Lima de AfiAuda JimXjon. , 3oòé AjJoKiòo do Naiclmento, EAlnaZva lÁedeOioò TenAeÁJux. e Vupuy Antonlo Cônteò. Não podeAla eòquecen. a amizade In esg otá vel do pe&ioai. da comunidade de Santo Antonlo de Ll&boa {SAL) ; aqal não enumeno nomeó: ”£omo4 um” . Meuò agm decÁmentoò eòpecÀalÁ a meuÁ p a li . E ã CA PÊS" que pAopoAcíonou a Aeallzação deòte tex to . Vevo exp^eéòa/L, ainda, o mea debito teÕAico , maò notadamente monat, pana. com Lulò Atbefito Wanat Roòa Maãla Ca/ido&o da Cunha, Joòé Ma- fUa GÕmez e Robento Lyna F líh o . E^cíaneço , todavia, que 04 *'de&vloò" teÕAlcoò cometldoò pelo auton.g bem como^aò Idélaò p o lZ tlca i manl ^eòtada6:,6ão de -òua única e In teiA a Aeóponòa- blCldade.

VI

S U M A R I 0

PRÕLOGO ................................................... p. 01

PRIMEIRA PARTE - 0 DIREITO COMO SABER

CAPÍTULO I

CAPTTULO II

0 SABER JURlDICO1. Ciência ................................... . p. 102. Ciência e Modernidade .......................p. 143. 0 Solo Epistemológico das Ciências do

Homem .......................................p. 164. 0 Solo Epistemologico do Direito ............p. 19

4.1. 0 Não e o Sim ..........................p. 214.2. 0 Sim e o Não ......................... .p. 2 7

»

0 PAPEL DA DOGMÁTICA JURÍDICA E A NOVA JUSFILOSOFIA1. Sentido atual da Dogmática Jurídica ........................... p . 402. A Nova Crítica do Direito .................. p. 46

2.1. A Crítica Duplicada ................... p. 472.2. A Crítica Reduplicada ................. p. 52

3. 0 Jurídico e o Social enquanto saberes ..... p. 55

SEGUNDA PARTE - 0 DIREITO COMO POLÍTICA

CAPÍTULO IIIDA LEI QUE FALA 0 DIREITO ...1. 0 Direito reduzido ......................... p. 702. 0 Imaginário Jurídico ...................... p. 74

Vll

CAPÍTULO IV

2.1. Para compreender o Imaginário:o positivismo ............... ......p. 83

2.2. 0 Elogio da Lei ........................p. 872.3. Rede de Poder e razão legal ............P*

... AO DIREITO QUE FAZ A LEI1. 0 Nível Jurídico-estatal .................. p. 1132. A Luta pelo Direito ...................... p. 129

CAPÍTULO V , '0 SINGULAR E 0 PLURAL ^1. Redefinir o Direito ...................... .p. 141

1.1. Virar o Direito do Avesso .............p. 1432. Direito e Direitos .........................p. 148

2.1. Para Concluir .........................p. 152

BIBLIOGRAFIA___....................... ................. .p. 159

V I 11

R E S U M O

Pretende-se, com este trabalho, pesquisar alguns elementos para pensar o direito contemporâneo. Com tal obje tivo, questiona-se a produção teorico-jurídica atual, tanto em seu alcance epistemologico, quanto em sua dimensão teorico-política , tratando de estabelecer as bases para a constituição de um ;saber apto ãquele pensar, que deve ser entendido como uma interpretação, ou um ensaio de interpretação das formas atuais do direito..

Questiona-se inicialmente a busca, pelo direito, do acesso ao monopolio da verdade. Nesse sentido, verifj. car-se-á a impossibilidade epistêmica de o saber jurídico, enquan­to ciência humana, assumir a condição de cientificidade.

Dada a dificuldade da "ciência do direi - to" explicar, convenientemente, o seu objeto — seu terreno episte mologico a direciona para outro caminho: dizer o que ê de direito Cjuris dicere) conforme o direito posto — , propõe-se, para esse fim, um saber direcionado ã solução, não de problemas jurisdicio - nais ou instrumentais, mas da questão o que e direito.

Tendo era vista o compromisso êtico com a libertação do homem, fixam-se alguns fundamentos para a emergên - cia de tmi discurso que, explicando o seu objeto, dele participa , não o instrumentalizando, como o faz a dogmática, mas questionan - do-o, criticando-o e experimentando-o teórica e politicamente, em nome da instituição do novo e da promoção dos direitos fundamen - tais a dignidade hxjmana.

IX

Conclui-se com a defesa de m a produção teórica que, conhecendo e interpretando o dixeito-singular, promo­va e exija o plural jurídico instituinte.

Xll

" P e a 4 move. o jogador, e. zòtz, a p e ç a .

Q. tie Ve.aé at^ãò de P e u 4 comcça a tfia.-

ma dz pÕ e tzmpo e Aonho e agon-Lai? ”

iJoAgz Laiò Bo^g&é. Xadfie.z]

" Efia, em -6uma, mc.e.66an.io apKzndzK dz

novo a vlvzK e z&G.n.zvzfi; zfiKafi d e ma.

nova mam-ÍAa

{¥zn.^z-ÍA.a Gutlan.. Uma tuz no chão]

p R Ú L 0 G 0

Procuramos encontrair novos caminhos para, utilizando a expressão de Ferreira Gullar, acender uma luz no chão; uma pequena chama para iluminar o espaço envolto em dúvidas e per­plexidades.

Se queremos pensar o direito contemporâ - neo, ê necessário ultrapassemos as varias teorias jurídicas ocupa das em definir, apenas, o que é de direito, procurando resgatar a materialidade de xrni saber destinado a estudar, interpretar e eluci dar o fenômeno jurídico. 0 primeiro passo, para tanto, ê questip- nar as disciplinas que se querem, a um tempo, como conhecimento e ação (instrumentalização). É o caso de boa parte das Teorias e Es­colas Jurídicas. Nosso propósito, ao cOntrârio, ë verificar a po^ sibilidade de um saber que, negando-se a assumir uma hipotética cientificidade, procure demonstrar historicamente, o fenômeno jurí|Cdico como ele aparece após a consolidação ^a dominação burguesa.

Nosso estudo não pretende se manifestar como discurso filosófico ou jurídico-científico ou sociológico do direito. 0 que propomos ë um trabalho de investigação interprétât^ va e elucidativa do direito. Por interpretação entendemos não a hermenêutica convencional dos juristas em busca de um certo senti­do oculto sob os grafismos normativos, mas a procura de uma visão compreensiva do jurídico atual. Por elucidação, chamaremos "o tra­balho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam"

Se nos propomos a discutir o saber juríd^ co, fazemo-lo em decorrência de um interesse manifesto: a liberta­ção . Pensamos que a realidade jurídica não serâ modificada por novas Escolas que proponham, eventualmente, novas ontologias ou teorias jurídicas. A realidade não se modifica através de concei - tos, senão que através dela mesma. Pretendemos, portanto, discutir a possibilidade de um saber que, desejando evitar as preocupações instrumentais e pragmâtico-forenses, elucide o direito em suas múl

tiplas facetas, mas todavia, procurando bases teóricas para sua transformação prática. Não fugiremos, pois, da articulação teoria/ prâxis, muito embora nossa pesquisa assuma um caráter eminentemen­te teorico. Quanto ao aspecto da libertação, coincidimos politica­mente (e parte, tambem, em teoria), com os novos jusfilosofos bra­sileiros, os quais têm trabalhado pela descoberta de novos rumos para o discurso jurídico, tendo em vista a sua mudança em face de certo compromisso etico com os interesses das classes oprimidas.

Nossa opção política exigiu a procura de uma teoria do direito mais abrangente, aberta â possibilidade de captar a transformação histórica e política de seu objeto, e com - promissada com a libertação e dignidade humanas. Com isso, nos x i mos forçados a impor algumas traições ã epistemologia jurídica convencional. 0 presente texto não separará as esferas de análise da sociologia do direito e da filosofia. Cremos que o direito deve reincorporar a problemática da justiça, do direito justo, esqueci­da apos o advento do positivismo. Mas, para tanto, não supllcare -

- 2mos a Zeus para que envie sua esposa Themi s e sua filha Dike pa ra junto de nos. Antes, afugentaremos os deuses para que os homens façam sua historia e seu direito com as próprias mãos, ainda que isso pareça impossível.

Uma segunda traição refere-se ã linguagem que utilizamos. Tendo em vista a complexidade da matéria, neste tex to, ao invés de delimitarmos rigorosamente o terreno de problemat^ zação teõrica de cada capítulo, formulando uma tese abrangente que ao final restaria demonstrada, optamos pela fluência discursiva , a qual acompanha o desenrolar de nossa pesquisa. Este discurso, en tão, é marcado pelo aspecto da fala e não da construção escrita. Concretiza, graficamente, o desenvolvimento de um pensar em voz ajL ta. Valendo-nos de uma metáfora de Castoriádis, diríamos que este é o prõlogo não de uma construção impecável, esteticamente harmôni^ ca e estruturalmente perfeita, tal como um edifício pronto de boa arquitetura, mas, ao contrário, é a apresentação de um edifício em andamento construtivo, cujos andaimes, escadas e estacas não foram removidos porque serão ainda üteis, e o qual sõ pode ser julgado pela solidez de seus alicerces fundantes e pelas boas intenções do arquiteto ou engenheiro responsável. 0 que não impede que, até o final da construção, várias modificações possam ser efetuadas.

Algo deve ser dito quanto a justificação da verdade era nosso discurso.

Devemos fugir das meras opiniões, e para tanto, a busca de iim rigor de pensamento ê inevitável. Mas pare - mos aí 1 — não falaremos era nome da ciência, ou em nome desta ou daquela theoria. E, antes de ouvirem a theoria, ou o logos, ou çam este alguém - na verdade um nõs — através do qual flüem estas linhas marcadas tanto pela episteme de nosso tempo, como pe la traição que a ela tentamos impor. Não hã saber neutro, àinda que ajustemo-lo ãs exigências da epistemologia mais rigorosa; me^ mo que discursemos não nossa fala, mas o logos; ainda assim sere­mos nõs a dizer^. E nada é dito gratuitamente.

Na primeira parte procederemos algumas anotações a margem da epistemologia jurídica. 0 "â margem", do período acima, tem o desejo de manifestar, antes de qualquer colo ração retórica, uma função operacional: é um recorte. Ou, antes , uma relativa delimitação do nosso solo de teorização. Lembremos de Lacan, para quem o intérprete, ou decodificador, ou melhor, o homem, antes de ler o que a linguagem fala, deve revelar o que ela deixa de dizer; deve procurar os sentidos silenciados pelo discurso^. Esta ^déia tem uma importância justificada no momento. Ela poderá, de algum modo, clarificar o objeto de nossas preocupa ções em relação ao nível epistemologico da ciência do direito.

Antes de elaborarmos umdiscurso sobre a epistemologia do direito, procuramos percorrer caminho singular não antitético, que chamaríamos de regressivo, o qual . procurara revelar o que o pensamento dominante sobre o saber jurídico não fala. Com isto, nossa trajetória regressiva ã raargera da episterao- logia juridica tenta marcar a especificidade do universo dos capí tulos iniciais. Neles não tentaremos justificar a tão propalada cientificidade do direito; antes, questionaremos acerca da neces­sidade dessa justificativa.

Cabe neste ponto um rápido parênteses Com alguma freqüência o termo epistemologia é identificado com o referente â gnoseologia, ou seja, à parte da filosofia ligada a teoria do conhecimento que "estuda o alcance, os limites e o va­lor do conhecimento humano e os critérios de validade destes co nhecimentos" . Miguel Reale, por exemplo, encara a epistemologia jurídica como desdobramento da Ontogrioseologia jurídica, esta ten

do por fira "deterrainar a fundação cognoscitiva do Direito, em sua integralidadei indaga de sua consistência 'ôntica', e da correlata estrutura 'logica', isto ê, dos pressupostos universais, ao mesmo ytempo subjetivos e objetivos da realidade jurídica" . Neste senti­do, para Reale, a episteraologia nada raais ê do que uraa parte espe- ciai (ao lado das deraais : Deontologia e Culturologia ) de tiraa filo sofia raaior, a Ontognoseologia jurídica.

Segundo Coelho o terrao epistemologia de­signa a filosofia das ciências, "uraa teoria da ciência, um estudo sisteraâtico dos pressupostos, natureza e valor do conhecimento cien tífico; ê tarabêm, o estudo de cada ciência era particular, a defini^ ção de seu objeto, método, natureza, importância e relações com as demais ciências (...)"^. Nesse sentido, a epistemologia jurídica seria uma filosofia da ciência do direito, preocupada com os seus pressupostos de cientificidade, de coerência conceituai e de norma tividade discursiva, bem como com os padrões de regularidade cria­dos e impostos espãcio-temporalmente, pela comunidade científica . Em face dessas colocações, as notas dos capítulos I e II jâ não. mais seriam a margem da epistemologia jurídica. mas tomariam, nit^ damente, o caráter de epistêmico-jurídicas. Entretanto, quase sem­pre alertando sobre o caráter praxeolõgico do saber jurídico, como

^ 10 o faz, por exemplo, Alejandro Bugallo Alvarez , os juristas tendem a conformar a epistemologia jurídica a partir de uma visão si£temática do direito positivo, entendida corao ura raerguio na práticajurídico-doutrinária. Aqui radica a distir^ção entre a análise queproporaos e aquela a que está ligada a maioria dos juristas.

As notas dos dois primeiros capítulos são, portanto, aparentemente epistemolõgicas por um lado, e marginais à epistemologia, por outro. Epistemolõgicas enquanto notas signifi - cantes que tentam se identificar cora certo tipo de filosofia que problematiza os pressupostos de cientificidade do conhecimento ju­rídico. Â margem da episteraologia do direito porque não se fundam sobre uma tentativa de justificação da atividade do jurista como científica. Ao contrário, seguem outro caminho, embora não antitê- tico. Marginais à epistemologia, tarabêm, porque a partir de Bache­lard e Canguilhem a epistemologia vem se mostrando cada vez mais corao historia conceituai das ciências; ou seja, corao uma his­tória da descontinuidade do progresso da razão. E, nestas condi­ções, não nos aprofundaremos na historicidade epistemologica da

ciência do direito. Com isso, parecer ficar claro que não faremos, e duplamente, epistemologia do direito mas, antes, algumas anota - ções a margem da epistemologia jurídica.

Na segunda parte o direito serâ enfocado enquanto problema teõrico-político. Estudado nos capítulos prece­dentes a impossibilidade do acesso do saber jurídico ao estauto de cientificidade, cumpre-nos procurar um tipo de discurso apto a in terpretar/elucidar o direito contemporâneo. Para tanto, estudare - mos as analises convencionais tentando desvendar a relação intest^ nal entre o direito positivo e o real imaginário. Partimos da hipo tese de que o positivismo não é apenas uma oclusão ideologica a im pedir aos juristas o conhecimento da verdade jurídica; pesquisare­mos as bases históricas e políticas que exigiram-no, procurando en contrar os fundamentos de sua materialidade. 0 positivismo não e— em nossa hipótese inicial — apenas uma doutrina deturpadora da realidade fenomênica do direito, mas ê a face aparente e textual do direito, modernamente. Reside neste ponto a possibilidade, e tentaremos fazê-lo, d.e resgatar o universo do político para as ana . lises jurídicas. Sem este resgate não hâ possibilidade de um dis - curso capaz de interpretar o direito capitalista. Alias, serão as relações de poder, que obrigarão o direito a assumir sua atual for­ma: ura direito legislado e abstrato. Um direito intimamente vincu­lado ã espessura estatal e política, embora mantendo certa autono­mia relativa. ....

A ossatura do direito capitalista comuni­ca-se com a ossatura do estado e, quanto a isto, o positivismo ex pressa essa condição. 0 elogio da lei que este proraove não passa de manifestação histórica de uma realidade recente, da qual, em sub-ítem específico, tentaremos esboçar a gênese.

Caracterizando o direito contemporâneo co mo um di reito estatal materializado, procuramos justificar duas teses. Primeira: o jurídico não ê mero apí rte superestrutural, um corpo-objeto, ideológico e de consistência fantasmagórica, fruto do delírio dos juristas. É, antes, algo historicamente concreto (erabora não físico); tentareraos deraonstrâ-lo a partir de uraa con­cepção de imaginário raarcada profundaraente pela existência mate - rial. Por outro lado, se o direito ê algo concreto, ele não possui a consistência de uma coisa-sujeito, cora capacidade para, de hora, disciplinar, regular ou ordenar o mundo. Esta é a segunda tese. 0

direito estâ imerso na historicidade e, assim como ele influencia o curso dos acontecimentos, ê também determinado. Ora, para eluoi darmos as múltiplas facetas de nosso objeto, vendo-o articulado con os demais ingredientes que espãcio-temporalmente influenciam-no, o acesso ã categoria marxista da instância jurídica é inevitável. Acompanhando Poulantzas, proporemos uma ai^âlise que absorva tanto a dimensão política e material do direito, como sua relativa auto­nomia. Se a instância jurídica estâ situada num todo único e arti­culado, o modo de produção, ela estâ de tal modo a se comunicar com as demais instâncias; com o econômico, com o político, etc. É, ne£ te caso, não apenas efeito do econômico, mas condição para a exis­tência dele. Esta autonomia encontra suas raízes nos fundamentos do modo de produção capitalista, como veremos adiante.

Compreendido o jurídico era suas dimensões históricas e políticas, cabe caracterizâ-lo como ura espaço de lu­ta. É este o momento em que defenderemos a necessidade de um saberque procurando elucidar seu objeto, mantenha um compromisso ético

1 2 com a busca da dignidade humana . Um saber jurídico aberto' aps direitos politicamente conquistados. Na verdade, um pensamento conhecedor do instituído, mas voltado para o novo, para o vir-a-ser fundante e instituinte.

Diante do exposto resta justificado,e du­plamente, o título de nosso estudo: o direito e os direitos. Do ponto de vista metodológico, outra expressão dificilmente poderia favorecer a imagem de um discurso que, questionando a cientificida de das disciplinas jurídicas, se distancia do propósito de encon - trar paradigmas epistêmicos próprios para a ciência do direito, e preocupado em compreender seu objeto, convive, coraunicando-se con­tinuamente, com outras interpretações possíveis. Abandona-se,pois, a busca do monopólio da expressão da verdade jurídica, o que não significa abdicar dessa responsabilidade. Por outro lado, e nessa mesma perspectiva, o título pretende sintetizar, ainda, a condição de ura texto que, consciente da não gratuidade dos discursos, cami­nha em busca de certo rigor para suas análises, reconhecendo, toda via, tanto os condicionamentos político-ideológicos que maculara os saberes quanto a impossibilidade prática e teórica da fala resul - tante de um processo cognoscitivo solitário (fruto do eu-só). Eis porque nossa dissertação opta pela linguagem articulada na primei­ra pessoa do plural: — o eu-nós.

Do ponto de vista teorico-político, a ex­pressão que serve de título, tem o sentido de, denunciando a mono­polização da produção jurídica pelo estado moderno, abrir caminho ã absorção, pela análise jurídica, das esferas política e históri­ca, possibilitando a emergência de um saber instituinte pronto a promover a floração dos direitos (no plural) capacitados a devol - ver aos homens sua condição de humanidade roubada e a sua liberta­ção rumo ã verdadeira igualdade.

N O T A S

(1) - Castoriadis, Cornélius. "A Instituição Imaginária da Sociedade". Trad.Rio, Paz e Terra, 1982.

(2) - Coelho, Luiz Fernando. "Introdução Histórica ã Filosofia do Direito".Rio, Forense, 1977. Cf. cap. II.

(3) - Sobre o eu-nós , Caetano disse: "Sou um homem comum/Qualquer um"Enganadoentre a dor/E o prazer/Hei de viver e morrer/Como um homem comum/Mas meu coração de poeta projeta-me em tal solidão/Que ãs vezes assisto/ A guerras imensas/Sei voar e tenho as fibras tensas/E sou um. Nin­guém é comum/E eu sou ninguém (...) Escuto a música silenciosa de Peter Gast. Sou um homem comum". Cf. Peter Gast., de Caetano, em Uns.

(4) - Castoriadis, Cornélius, op.cit. p.14.(5) - M.D. Magno. "Senso contra censo da obra-de-arte, etc.". Rev. Lugar n9 6.

Ed. Tempo Brasileiro, Rio, 1977.(6) - Coelho, L.Fernando. Teoria da Ciência do Direito. S.P. Saraiva, 1974 .

p.6.(7) - Reale, Miguel. "Lições Preliminares do Direito". S.P. Saraiva, 1980.

p.84.(8) - A Deontologia Jurídica estudaria os valores éticos do direito (problema

do fundamento do direito). Aculturologia cuidaria do "sentido da hij tória do direito (problema da eficácia do direito). Cf. Reale, Mi­guel. "0 Direito como Experiência". S.P. Saraiva, 1968. p. 87.

(9) - Coelho, L.Fernando. "Teoria da Ciência do..." op.cit. p.07.(10) - Bugallo Alvarez, Alejandro. "Pressupostos Epistemológicos para o Estudo

Científico do Direito". S,P. Resenha Universitária/PUC-RJ., 1976, p. 11. Tb. Reale, Miguel. "0 Direito como Experiência", op.cit. e Coe -

lho, L.Fernando. "Teoria da..." op.cit., este último em sua primeira fase apegada a um normativismo denominado de dialético.

(11) - Coelho, Luiz Fernando. "Logica Jurídica e Interpretação das Leis", 2a.Ed., Rio, Forense, 1980. V.especialmente o Cap. XI, "Para uma herme­nêutica jurídica critica". Tambem, Machado, Roberto. "Ciência e Sa - ber. A trajetória da arqueologia de Foucault". Rio, Graal, 1982.

(12) - Sobre isso V.Bloch, Ernst. "Derecho Natural y Dignidad Humana". Madrid,Aguilar, 1980.

(13) - Sobre o conceito de instituído e instituinte, consultor Castoriadis ,Cornélius. op.cit. pp. 414-418. Tb. Chauí, Marilena de Souza. "Cultju ra e Democracia: 0 Discurso Competente e outras falas". São Paulo , Editora Moderna, 1980, pp. 03-15.

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PRIMEIRA PARTE

0 DIREITO COMO SABER

CAPÍTULO I

SABER JURÍDICO E MODERNIDADE

I. CIENCIA

Que e ciência, alem de iim saber que confe re poder? A resposta não.ê fâcil. Parece ser mais dificultosa quan do se leva em conta a multivocidade desse significante. Qualidade que confere à racionalidade científica o paroxismo do enigma con trastante com sua inesgotável busca do objetivado e do verdadei - ro. Se os juristas, como ironicamente lembrou Kant "ainda procuram uma denifição para seu conceito de direito"^, o mesmo se pode d^ zer dos epistemologos em relação ã ciência.

Colocação como esta, de certo modo, não escapa a Tercio, o qual reafirma a não univocidade do significante ciência, principalmente porque "se ê verdade que com ele designa - mos um tipo específico de conhecimento, não hâ, entretanto, um cr^ têrio único que determine a extensão, a natureza e os caracteres desse conhecimento

Mas, se ê certo qi|e estas constatares guardam um sentido pouco refutável, ainda assim encontramos alguns pressupostos básicos e certas coordenadas epistêmico-normativas qie autorizam uma prática teórica assumir tipicidade à qual denominare

mos de científica. Dizer que a ciência ê constituída de mn conjun­to coerente, organizado, sistemático e conceituai de enunciados "que visa transmitir de modo altamente adequado informações verda­deiras ..."^ não ê o suficiente para evidenciar a particularidade desse tipo de saber.

Para a filosofia das ciências contemporâ-4 ~neas a radicalidade da questão reside na oposição relacionai en

tre o senso comum e a atividade científica. Em que reside essa regação recíproca entre os termos referidos? Negação que parece seruma constante na produção científica do momento, tantas vezes ê ratificada, por cientistas, filosofos e juristas^, notadamente apõsa introdução da categoria de corte epistemologico, desenvolvida porBachelard. Em que consiste a categoria bachelardiana do corte? —e qual o significado daquela relação antitética entre os conheci -mentos científico e comum ?

Se tomarmos a ciência com um conjunto or­ganizado, sistemático, coerente e conceituai de enunciados verda - deiros; conjunto dirigido por coordenadas metodológicas impostas espãcio-temporalmente, infere-se daí que o senso comum não pode as. siomir estas mesmas qualidades.

. Estudando os caracteres do conhecimentocomum, Agostinho Marques Neto lembra que este tipo de saber " se constitui sobre a base da Opinião, sem uma elaboração inteleetual solida". 0 conhecimento comum ê "assistemático", sem nexo com ou­tros conhecimentos, aos quais não se integra para com eles consti­tuir um corpo de explicações lõgicas e coerentes. E tambem ambí­guo no sentido de reunir freqüentemente, sob um mesmo nome e numa mesma explicação,. conceitos na realidade diferentes. H ainda essen cialmente empírico, tomado o termo no sentido de que, em virtude de seu caráter eminentemente prático, o senso comum permanece, por assim dizer, colado aos dados perceptivos, não fazendo abstrações, não generalizando, ou generalizando indevidamente, e sobretudo não decorrendo da aplicação de métodos rigorosos, o conhecimento é casual ..."

Isto não quer sugerir a falsidade deste tipo de conhecimento. Sugere apenas que, por não se conformar a uma racionalidade crítica e rigorosa, pode mais facilmente cair em erros. Por este motivo, desde o século XIX, mas cora efetividade qm se absoluta agora, a ciência é considerada o lugar privilegiado da

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verdade. Isto jâ implica uma ideologia, o cientificismo, peculiar ãs sociedades industrializadas mais avançadas. Entretanto, se o sendo comum, para a epistemologia contemporânea não ë sinônimo de falsidade, de mentira ou erro, isso não quer dizer que seja possí­vel 0 desenvolvimento de uma ciência a partir dele, segundo, uma continuidade linear e sem, antes, certa rutura.

Na verdade teses que sustentam não haver nenhuma distinção qualitativa entre o senso comum e o conhecimento científico, a não ser a evidência da maior elaboração e do maior rigor do segundo, cora Bachelard, e a partir dele, sofreram toda se rie de restrições. Esse tipo de posicionamento, segundo Agostinho Marques Neto ë peculiar ao "empirismo - para o qual o conhecimento flui do objeto", saber que "pretende produzir conhecimentos em con tinuidade cora o senso comum, acrescentando-lhe sistematicidade ,7controle e rigor" . Este e o entendimento de Durkheim, por exem -pio, para quem o ponto de partida do conhecimento especulativo ë o

- • 8saber vulgar, ou prático . Posição idêntica ocupa Tercio. Comefeito, para este, coerente cora sua preocupação com a linguagem ,"a ciência é constituída de enunciados que completam e refinam as

9constataçoes da linguagem coraiM" ., Uraa das mais expressivas elaborações da

atual filosofia das ciências ë a noção bachalardiana do corte epi_s temologico. Segundo Bachelard, essa categoria, reflete uraa rutu­ra que separa de modo irrecuperável o conhecimento científico do conhecimento coramn. Corte que iraplica "uraa nova forraa de falar das ciências e das ideologias"^®, estabelecendo duas probleraâticas dis tintas — uma problemática ideologica e outra problemática cientí­fica; uraa que sera abandonada, outra que serâ assuraida. Portanto , o corte determina uma mudança de probleraâtica, abrindo espaço para as determinações da ciência, é o moraento da fundação da ciência , onde serão ultrapassadas noções que impedem sua constituição. Por isso se diz que a ciência não nasce a partir do senso comum, mas contra ele e apesar dele. Hâ, nesse caso, uma descontinuidade^^ en tre a razão e a percepção. Aquela se insurge contra esta, definin­do um ponto de não-retorno, ou seja, "um ponto a partir do qual uraa ciência começa; como o ponto a partir do qual uma ciência assu me sua historia, sua auto-deterrainação episteraolõgica, jâ não sendo mais possível uraa retomada de noções pertencentes a momentos an

1 2 ~ teriores" . »

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Portanto, hâ uma descontinuidade, em qualquer momento da historia da ciência, entre esta e o tipo de saber que, imediatamente, a precede. Esta tese se insurge contra a concepção continuista da historia das ciências referida li­nhas atrâs. Hâ que se reafirmar, pois, a nâo identidade entre asdémarches do saber perceptivo ou cotidiano e as do saber científi— T 3------CO

Mas a descontinuidade da historia do pro gresso da razão não finaliza nesse corte criador do binômio anta­gônico razão-percepção, pois é imanente â prôpiria atividade cien­tífica. A questão da rutura não se esgota no momento da fundação

14da ciência . Mesmo depois de seu nascimento, o progresso se rea liza através de fraturas sucessiVas. Eis, a partir de Bachelard , a face dialética da história das ciências. Estas fraturas, intra- científicas, são efetivadas através de retificações conceituais. Donde, ’’todo conhecimento, por ser retificâvel, é essencialmente provisória”^^; porque ’’sendo sempre limitado, parcial, o conheci­mento é necessariamente menos rico e complexo do que a realidade a que se refere. . . . Esta tese, manifesta, ainda que implicita­mente, uma crítica ao positivismo, notadamente comteano, defensor da possibilidade de um estágio definitivo do saber. Para as epis-í temologias históricas, e as dialéticas, isto é inimaginável. Até porque, se o conhecimento, nas correntes causais-explicativas do século passado o vetor epistêmico caminha do objeto para o racio­nal, (jâ que o objeto estudado é transparente) com a epistemolo - gia contemporânea revoluciona-se este tipo de entendimento. A par tir daqui o conhecimento nasce como uma relação dialética entre o sujeito cognoscente e o objeto referido. 0 vetor epistemológico corre, pois, siraultâneamente, em ambas as direções: — do sujeito ao objeto; do objeto ao sujeito. Hã uma espécie de reciprocidade entre os termos do binômio referido, os quais se complementam re lacionalmente. Entretanto o real não é cognoscível, senão pelo in termédio de uma teoria. E porque o real (objeto) não é transparente, a ciência não poderã desempenhar o papel de loma câmara foto -

■ ^ 1 7 ^grafica ; antes, seu ofício é o de construir o real, ou seja, oseu objeto particularizado de estudo. Para esta epistemologia o

1 8imediato deve ceder lugar ao construídoImportante a colocação de Japiassu, se

gundo a qual o papel da ciência "é o contrário de uma leitura ou

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de uma tradução imediata da experiência vivida. 0 objeto das ciên cias ê um objeto teorico construído, um objeto de pensamento, e não concreto"^®. Cora ela fica límpida a distinção estabelecida entre o objeto real e o objeto de pensamento. 0 primeiro desigü^ do o concreto inatingível em sua totalidade, e o.segundo o inter­mediário, construído pela racionalidade através de procedimentos crítico-reflexivos, para conhecer o primeiro. Eis, porque no di­zer de Bachelard, o cientista ê antes de mais nada, ura inventor , um construtor. Sua prática é a ação teórica e construtiva. ,

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2. CIÊNCIA E MODERNIDADE

0 pensamento de Bachelard relativo ãciência insere-se no contexto de uma ciência especial. Referimo -nos ã ciência moderna, ou seja, aquela nascida no século XVII com

20a revolução galileana e com os postulados cartersianos ; ciênciafundada a partir de uma fissura sofrida pela epistemologia, coma qual se concluiu o processo de transição da era científica da

_ 21representaçao (a qual, segundo Foucault, designa o conhecimento clássico dos séculos XVII e XVIII), para inaugurar a era da posi­tividade, ou seja, uma nova concepção de ciência correspondente ã

-V 22ciência contemporaneaA afirmação do período precedente quer

chamar atenção para a mudança histérica dos pressuposto científi­cos da racionalidade ocidental, ou seja, para a mudança qualitatif

episteme que orienta as ciências. Para entendermos isto de vemos explicitar a significação da noção de episteme. categoria formulada por Foucault e largamente utilizada por ele em Les motse les choses para constituir uma arqueologia das ciências humanas.

23Em Palavras e as Coisas'* , estudan­do a constituição do que se convencionou chamar de ciências do ho raem na modernidade, Foucault descobre em épocas distintas, distin tas ordens internas constitutivas dos saberes. Algo que conforma a existência necessária, em cada período, de uma ordem, de "lun princípio de ordenação histórica dos saberes, anterior ã ordena -

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çao do discurso estabelecida pelos critérios de cientificidade e24 -dela independente . Este algo e a episteme — ou episteme pa

ra o autor referido — , uma "ordem especifica de saber, uma configuração, a disposição que o saber assume em determinada êpoca e

25que lhe confere uma positividade enquanto saber" . Positividade diferente da positividade entendida corao característica do discur so cientifico, porque anterior a esta. Trata-se, antes, corao lém bra Roberto Machado, de uraa homogeneidade descoberta na generali­dade dos saberes e resgatada na profundidade dessa multiplicidade e heterogeneidade, é uma homogeneidade dentro da heterogeneidade.0 gênio de Foucault conseguiu, analisando domínios diferentes e- diferentes saberes, assinalar certas continuidades sincrônicas ao lado de descontinuidades diacrônicas as quais autorizara falar de epistemes distintas, impondo certas redes de necessidades di^ tintas para os saberes conforme a êpoca: — "em uraa cultura eem dado moraento so existe uma episteme, que define as condições

27de possibilidade de todo saber"A episteme, portanto, constitui um' campo,

uraa estrutura ou ura sistema coerente que, eraerso de processosepi£teraolõgicos realizados no terapo, determina os a priori histõri

2 g ^ ------------—cos , favorecendo configurações específicas para a racionalidadesegundo "princípios de ordenação do saber". Os a priori histéri­cos (que não se confundem cora os a priori forraais kantianos, nem cora os materiais fenomenolõgicos) nos autorizam a falar era esta - gios ou em eras do saber, e a partir destas, em estágios ou eras da ciência. Ou seja, em solos epistemologicos únicos para cada êpoca e cultura.

Era "Les Mots e le^ Choses", Foucault de£ cortina três raoraentos da episteme ocidental. Ura estágio antigo medieval dominado pela ciência grega, o qual pode ser chamado de estágio da intuição; o estágio da ciência moderna clássica que pode ser chamado de era da representação e, finalmente, a partir do sêculo XIX, atê agora, o terceiro estágio, ou era da positivi­dade . As ciências destes dois últimos estágios apresentam configu ração marcante; a primeira delas sendo designada pela razão, enquanto que cora a últiraa "tera início a era do entendimento, a assi

~ - — 29— ------ “railaçao cientifica dos valores de positividade" .A representação, como forma da episteme

clássica, a partir de Descartes, designa um conjunto de procedi -

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mentos metodológicos e de princípios fundadores de uma ciência e^ truturada no privilegio de esquemas de ordem e medida. gerando "um sistema de organização binaria igual ao da representação por um quadro; de um lado, o que ê representado, do outro, o quadro repre sentante". Aí "as constatações se deixam facilmente assinalar na forma lisa da teoria"^^.

Entretanto, esse tipo de entendimento,cia ro e cristalino como a geometria, não permanecerá por muito tempo. A partir dele aparecerá um processo antitético que inaugura um no­vo modo de conhecer. Onde a importância do encadeamento conceituai e do manejamento eficaz das proposições passará a substituir a transparência ilusória das significações da linguagem representan­te. A partir desse momento a "cultura intelectual da positividade" difundirá uma concepção de ciência segundo a qual " é na experiên­cia do engano da idéia e daquilo que se deve fazer para não se cair nele" que se funda a atividade cientifica"^^. Daí, até ago - ra, a teoria não mais corresponderá, de modo imediato, a verdade das coisas. 0 império da noção (idéia clara que se identifica com a natureza das coisas) cede lugar ao império da proposição (sínte­se de éncadeamentos conceituais coerentes que diz a verdade aprox^ mada e provisória sobre o real — objeto real — , porém, sempre, mediada por vim objeto de conhecimento, previamente construído, e portanto refutável). Com isso, pode-se dizer, como Foucault; hou­ve tempo em que as palavras diziam as coisas. -

3. 0 SOLO EPISTEMOLÓGICO DAS CIBNCIAS HUMANAS

Trataremos a seguir da filiação epistemo- lógica que condiciona o desenvolvimento das ciências do homem; dos horizontes "sobre os quais elas se constituíram e nos quais preten dem instalar-se, explicando seus fenômenos a partir de um i lugar não filosófico e não ideológico, como se pudessem reivindicar, de modo peremptório, a categoria de corte epistemológico para expres­sar suas distâncias relativamente a toda filosofia e a todo siste-

- 32ma de representaçao ideologica"Nesse sentido, bom lembrar que as ciên­

cias da especificidade de seu objeto (o homem), de sua problemáti­ca (os homens) e do espaço que ocupam entre os saberes — espaço que se caracteriza pela singularidade de algumas disciplinas que tendo o homem como sujeito de uraa prática cognoscitiva, tê-no tam­bém como objeto dessa mesma prática — , lançam mão, regularmente , dos pressupostos epistêmicos das ciências naturais para se justifi^ carem como ciências por ura lado, e para legitimarem suas dêmarches como as dêmarches de uraa racionalidade dotada de rigor e competên­cia, por outro. Eis porque, libertando-se da tutela da filosofia , as ciências do homem viram-se jogadas no mundo sem um terreno epi£ temologico definido, sofrendo a condição de õrfãs de pressupostos e critérios de cientificidade. Donde decorre a prática reiterada da importação dos cânones de ordem normativo-epistêmica de que se valem as demais ciências. Como lembra certo autor, "o problema me todologico central das ciências humanas, desde a época de sua con£ tituição até nossos dias, consiste em saber se elas podem ser con£ truídas — ou não — sobre o modelo das ciências naturais"^^.

Problema aparentemente insolúvel. Afinal, o discurso que caracteriza a cientificidade ê o discurso crítico , auto-controlado, organizador de seus prõprios procedimentos, tanto em busca de um rigor conceituai, corao em busca de um fundamento de validade para esses conceitos. E, como "não há um fundamento últi­mo e absoluto para as ciências, capaz de fornecer-lhes uma justifi

- 34 ~cação cabal" ; as disciplinas humanas permanecem num clima de in­segurança, validando suas dêmarches, ora em função desta epistemo­logia, ora em .função daquela outra. Neste sentido, o lugar das ciências do homera constituiu-se, por muito tempo, a partir dos mo­delos explicativos de ciência conformados ou pelo eixo da ciência rigorosa (prioridade dos métodos quantitativos sobre os qualitati­vos; rigor discursivo em busca de vonà univocidade, como a lingua - gera matemática e da física matematizada; formalismo segundo regras determinadas a priori) ou pelo’eixo da biologia (modelo que forne­ce verdades enraizadas no conjunto de exigências criadas pela vi da; evolucionismo por exemplo). Essa colocação talvez seja por de mais esquemática. Mas nos servirá por ora. As ciências hmnanas co­meçaram reclamando, como as demais ciências, uma postura do sujei

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to em relação ao objeto cognoscitivo que o encarasse como coisa. Nas ciências sociais, v.g., "essa posição se traduz no naturalis - mo, que, em síntese, sustenta que os fatos sociais, embora autôno­mos, são também naturais e, portanto, passíveis de observação tao rigorosa e neutra como os próprios fatos da natureza"^^. Este é o caso de Corate, Durkheim e, no Brasil, de Pontes de Miranda entre tantos outros.

Eis a situação das ciências do homem , preocupadas em apreender o "método científico", como se este.aprio risticamente existisse, o qual seria, ou o fornecido pelo eixo da ciência rigorosa (a física, as matemáticas) ou o fornecido pelo ei xo da biologia. Disciplinas que tentaram se fixar arrimadas pelo mito do método único, aceitando o postulado que as impelia a prâ tica teórica dominada por uma atitude cognoscitiva baseada na ex - plicação causal

Como reação a esse tipo de posicionamento epistemologico — o qual não serã completamente superado, pois no início deste século presenciamos a volta de tendências defensoras da fisicalização de todas as ciências, firmando-se no empirismo e afirmando a possibilidade de uma unificação dos saberes através de metodologia comum — , aparecera uma terceira variante epistêmi^ ca, ou seja, um terceiro eixo epistemológico: — O'eixo da cultura e ^ história.

Impõe-se uma concepção...segundo a qual os fenômenos sociais e humanos só são inteligíveis sob o ângulo da visão histórica^^. A "inteligibilidade matemática e a biológica não explicam completamente a realidade humana". Se a condição do homem é uma condição biológica ou natural, ela o é também, antes e em maior grau, histórica ou cultural. 0 mundo da cultura condicio­na a experiência humana, suas manifestações, sua linguagem, razão pela qual, somente lama ciência histórica, ou seja, histórico-cultu ral, poderá captar a complexidade dessa historicidade. Daí porque as ciências sociais são devem explicar, mas compreender captando o sentid-Q implícito ãs manifestações exteriorizadas ou interioriza - das pelo homem. Neste caso, a problemática do valor, repudiada pe las ciências naturais, pela coloração ideológica imanente, seráabsorvida, radicalmente, pelo patamar da nova cientificidade.

38Dilthey se preocupou em inaugurar um tipo de positividade para as ciências do homem repudiando a busca

de cânones fornecidos pelas ciências naturais e separando os obje­tos passíveis de conhecimento causal-explicativo dos intelectíveis através de métodos historico-compreensivos. Este autor chega a afirmar que a busca de métodos nao culturais aos invés de contri - buir para a definição da cientificidade das disciplinas humanas , funciona como um obstáculo ã sua autodeterminação epistemologica . Estes saberes devem, segundo. Dilthey, se promover sobre um tipo de inteligibilidade proprio.

Tais colocações, mais tarde, foram retoma39das por Mannheim e Weber, alem de outros , influenciando de gran

de modo o pensamento contemporâneo, desde a fenomenologia até o existencialismo e, de modo fundamental, a filosofia do direito,con tribuindo para o nascimento do que se con\»encionou chamar, mais tarde, de culturalismo, corrente que congregou nomes como os de Cõssio, Siches, Reale, Radbruch e, de algum modo, Kelsen.

Este carainho, entretanto, não foi : süfi- ciente para deterrainar uraa fratura fundadora de novas ciências hu- raanas. Pelo contrario, ainda que, relativamente, estas disciplinas tenham se libertado do jugo imperialista das concepções das ciên - ciais naturais, ainda assim fazem remissão a elas. é p caso, por exemplo, no momento, da influência marcante dos postulados bache - lardianos, canguilheraianos e popperrianos sobre as ciências huraa - nas. Estas jaraais se libertarão definitivamente da tutela dos ei­xos científicos já consumados. Pode-se dizer, então, que as ciên - cias humanas sonham com a possibilidade de, ura dia alcançarera a mesraa "objetividade das análises causal-explicativas". Isto contri bui para que continuem sendo vistas como discursos em débito com dois eixos episteraolõgicos distintos: o eixo da ciência rigorosa e o eixo da biologia.

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4. 0 SOLO EPISTEMOLÓGICO DO DIREITO

Uraa pergunta; — É possível o direito en quanto objeto de ura discurso científico? Questão ã qual acrescenta reraos, paralelaraente, outra. É científica a ciência do direito? Ao

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que seremos tentados a responder sim e não; por mais paradoxal que possa parecer, somente tuna resposta que guarde um binômio de afir­mações reciprocamente excludentes sera verdadeira. Porque, para definirmos a cientificidade de uraa disciplina posta, ou a possibi­lidade científica de um saber fundante, atitudes que ficariam sob a responsabilidade de nossa hipotética resposta, deveraos antes con siderar o solo epistemologico sobre o qual se formara essas prâti - cas teóricas; a forma da episteme (diluída entre a diversidade dos saberes) que os informa. t

Não basta, portanto, corao fazem alguns juristas, enumerar, nesse sentido, opiniões divergentes, quase sem-

40pre fazendo remissão a Kirchmann para, finalmente, concluir pela possibilidade científica, ou não, do estudo do direito. A operação que sugerimos deve ser diferente, isto é, regressiva, entre outros motivos, por questionar não apenas a justificação de cientificida­de ou a denúncia como ideológica que recai sobre a prática teórica dos juristas, corao tarabéra os fundaraentos sobre os quais esses po- sicionaraentos teoricamente se justificara. Nesse sentido . /devemos procurar situar o terreno que permite aos juristas afirmarem ou negarem a ciência do direito. Porque, a despeito de que "o juris - ta, ao contrario dos demais especialistas das chamadas ciências hu manas, tera a vantagera aparente de ter recebido, era sua cultura,por herança, um doraínio ate certo ponto jâ delineado"^^, somente no se culo XIX, com o surgiraento das ciências do homem, e juntamente com elas, o direito, através, principalmente, do historicismo :;.de \„Gm£tav Hugo antes, e Savigny depois, se colocou perante a questão

42transcendental de sua propria cientificidade . Até então o jusnaturalisrao irapera:ra soberano, disseminando o que se pode chamar deconhecimento racional do direito o qual, ainda se identificava como espírito da mathesis universalis, onde "o campo do saber era perfeitamente homogêneo, procedendo todo conhecimento por ordenaçãomediante o estabelecimento de diferenças e definindo as diferenças

43pela introdução de uma ordem” .Portanto, como as ciências humanas, a

ciência do direito nasce no século XIX, jâ no início da era que u] trapassou o período da representação.

Apesar de todas as diferenças decorrentes de princípios e pressupostos fundamentadores dos saberes divergen­tes, quando se trata de analisar o saber jurídico percebe-se um

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fato, aparentemente, incoraiira na historia das ciências. Da leitura de textos jurídicos e jusfilosoficos se depreende uma preocupação, atê certo ponto singular,no sentido de justificâ-los como analises sistemáticas conformadas numa linguagem de tipo rigorosa. Por que?— A resposta não ê fácil, principalmente por sugerir uma multipl^ cidade de fatores diretos e intermediários merecedores de um estu­do particularizado que não cabe aqui. Entretanto algo pode ser di­to a esse respeito. Algo que demonstra existir nos limites mais longínquos das divergências jurídico-epistemologicas uma identida­de oculta. Nessas distâncias encontra-se uma especie de similarida de silenciosa que desenha uma unidade entre todas as concepções jusfilosõficas. Essa identidade pode ser designada pela • seguinte evidência: — se os juristas e jusfilosofos discutem, segundo parâ metros excludentes, a cientificidade da ciência do direito, eles não 0 fazem em relação ã possibilidade do Ibstudo científico do di reito. 0 que pode ser resumido da seguinte forma: — se ê ou não científica a ciência do direito, isto ê um problema sujeito a di vergências inesgotáveis; entretanto, que o direito pode ser;objeto de análise científica, isto não se pode discutir. Parte-se, aprio- risticamente, do princípio de que ê possível uma ciência jurídica.

Do "pode não ser científica a ciência do direito", ao "mas pode ser científico o estudo do direito" trans­parece uma distância epistemologica considerável que deve ser .de­tectada pela análise das relações entre a ciência do direito e a dogmática jurídica. Essas relações serão estudadas mais adiante Por enquanto não nos preocupamos em dar prioridade a essa questão. Façamos com que ela, apenas, apareça diluída na análise de outras,- segundo nossos critérios, mais urgentes.

4.1. o não e o sim

Neste sub-ítem faremos menção a uma nega ção que, implicitamente, carrega consigo a afirmação da possibili­dade de uma ciência do direito. Pode-se dizer, neste particular , que o não converge para o sim, na medida era que, paradoxalmente ,

estes terraos se confundem como o amalgama das cores numa tela de Picasso. Falaremos, aqui, ^ nao e ^ sim, enquanto ocupando único espaço, embora não reduzidos a idênticas qualidade e significação. 0 paroxismo destas colocações ê apenas aparente.

Preocupação persistente nas obras dos ju_s filosofos no último sêculo tem sido o de encontrar um meio de posi tivação para a ciência do direito. Isto tem determinado a floração desmedida de aprioris epistemologicos sobre os quais se formam di£ cursos com pretensão de cientificidade. Ao lado deste tipo de pro­cedimento, outros mais se fazem notár, com características antagô­nicas ou coincidentes entre si; entretantdí, com o fim último — e neste ponto jamais hâ divergência entre os juristas de quaisquer escolas ou movimentos — de justificar como científico,ou o metier do jurista, ou o estudo do direito.

Isto se deve a fatores tão prolixos quan to inacessíveis, senão através de busca metódica da sua gênese hi^ tõrica, procedimento sobre o qual não nos debruçaremos. Porem, ê possível constatar sua emergência num período determinado que coin cide, relativamente, com o momento da eclosão da era da ciência mo derna p5s-galilaica, denominada por Foucault como era da positiva­ção . Este ê o momento iniciado com a consolidação da ascensão bur guesa e posterior ã revolução francesa de 1789 o qual, criticando o racionalismo liberal precedente, começa a rever, recheando com novos conteúdos, os princípios básicos do individualismo burguês . Estes se conformarão num sistema racional que, seduzido pelo sent^ do de um contínuo progresso da razão, abandona a metafísica inaugu rando o positivismo onde os fatos somente são conhecidos pela exp£riência (decorrência do privilegio dado aos sentidos para a percep— 4 4çao do real) . Desde então, o olhar atento dos sentidos observa o

mecanismo das coisas.Quanto ao direito isto sô foi possível ,

em parte, em face do historicismo anterior, também empirista, tam bêm causal-explicativo e determinista, entretanto irracionalista"^^ contra o qual o positivismo naturalista do século XIX se insurgiu. 0 que fez utilizando-se da epistemologia das ciências naturais , vertida para as ciências sociais, primeiro por Comte e, depois por Durkheim. Este trabalho foi retomado por juristas-sociologos"^^ em busca de justificação de ordem científica para seu métier. Ne^ tes termos, o que pensadores como Miguel Reale chamam de sociolo -

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gisrao , utilizando-se desse significante para expressar lun supos­to imperialismo da sociologia segundo a qual o direito não passa de mero capítulo dela, permanece como um mal-entendido. Não foi a sociologia spenceriana, comteana ou durkheimiana que diminuiu o d^ reito reduzindo-o a mero departamento de uraa disciplina maior, a sociologia, senão que, antes, foram os juristas preocupados com a dimensão científica de seu saber que procuraram nas dêmarches da quela disciplina, a configuração de competência para seus discur - sos. Isto fica tanto mais claro quando se percebe que Comte eSaint-Simon, os fundadores da sociologia, repugnavam o direito ,

^ 48considerando-o "mesquinho fruto legal-metafísico"Que tipo de saber propunha o naturàlis-

mo jurldico-sociologico do sêculo XIX ? — Cremos que Pontes deMiranda, ligado a esse tipo de filosofia pode responder a questão.De fato, esse autor sugere um saber jurídico que se apresenta comocientífico porque segue o método único (causal-explicativo) dasciências, distinguindo-se das demais, ou seja, da química, da física, etc., em face, apenas, do objeto (neste caso, o direito) queestudá: — o direito corao objeto das ciências empíricas ê natu-

49ral . Esse tipo de concepção teve muita repercussão no Brasil sendo difundida pela Escola do Recife através de Tobias Barreto , Sílvio Romero e Ólévis Bevilãcqua além de o u t r o s c o m o também por Pedro Lessa, Djacir Menezes, João Arruda e o proprio Pontes de Miranda^^, estes no ambiente acadêmico do sul do„ país 1

Entre os pensadores referidos algo os identifica, como decorrência de base comum além das divergências menores que podem separa-las. Trata-se do entendimento de que o di reito, como realidade humana, faz parte da unidade indissolúvel do mundo físico. Idéia conformada ã epistemologia naturalista a qual, seguindo o eixo ou da ciência rigorosa ou da biologia, tenta expli. car o direito através de discursos específicos com pretensão de cientificidade. Este é o caso, por exemplo, de Duguit, um dos ex poentes máximos dessa corrente teórica, o qual, retomando as colo­cações durkheimianas, tenta analisar a dinâmica jurídica segundo a categoria da solidariedade social. Segundo este autor, é a partir

^ C 2desta que, via adesão espontânea da massa dos espíritos ou por que se aceita genérica e socialmente a idéia de que o grupo ou os detentores da maior força podem intervir•para reprimir eventuais violações, uma regra econômica ou moral torna-se norma jurídica

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Esta não se confunde com as normas técnicas. Aquela "foriua-se no53seio da sociedade e impõe-se a todos indistintaTnente" . Sao as

normas fundamentais segundo as quais "são elaboradas normas técni­cas, as quais representam a maior parte das regras contidas nos cõ digos"^^. Essa divisão sõ foi possível com o auxílio do binômio criado por François Gény, composto pelo dado e pelo construído. 0 dado seriara as normas jurídicas que, mediante observação, deveriam ser captadas cientificamente. Jã o universo do construído corres - ponde ao reino das normas técnicas, as quais são construídas para assegurarem a possibilidade ou a aplicabilidade das regrás jurídi­cas .

As normas correspondem a dois tipos de sa ber. Uma ciência do direito, segundo os canônes naturalistas, que se preocuparia em captar a realidade das nbrmas jurídicas, e uma técnica do direito, preocupada com a instrumentalização das primei^ ras, através das normas técnicas.

Esse dualismo ciência do direito/técnica jurídica acompanha parte dos autores que negam a possibilidade de uma ciência do direito. Para estes juristas, como dissemos ante­riormente, o não, sõ pronunciam-no em razão de xira sim simultâneo . 0 que isto quer significar? — Os pensadores vinculados ao positi^ vismo sociológico e mesmo outros, como veremos adiante, negam per­tinência científica ã ciência do direito, ou seja, a jurisprudên - cia, ou melhor, ã dogmática jurídica; entretanto,, não o fazem em relação a uma ciência do direito. A dogmática é técnica ou tecnolo gia e não ciência; mas uma ciência do direito não é impossível.

Nesta linha, resguardadas as especificidades que teoricamente os separam, encontramos Tércio^^, Aloysio Fer

57 58 - - ' 59 “raz Pereira , Viehweg , alem de alguns filosofos marxistas edos novos jusfilósofos brasileiros

Os autores citados não mais aceitam como o sociologismo a dicotomia ciência/técnica jurídicas era nome de um critério de cientificidade ligado aos eixos da ciência rigorosa ou da biologia, mas aceitam-na em nome de novos postulados epistemoló gicos. Viehweg, por exemplo, retomando a polêmica epistêmico-jurí­dica fê-lo enriquecendo suas contribuições com a experiência grega e romana, com as descobertas de Vico e atualizando-as com instru - mentos contemporâneos^^. E, identificando ciência com teorias, i£ to é, com sistemas de enunciados capazes de explicar e descrever

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rigorosamente o comportamento dos seus objetos possibilitando a6 2sua previsão , Viehweg nega cientificidade ã ciência do direito .

Neste sentido, esta disciplina não seria uma ciência, mas uma pru-Idência. Um saber que, "sopesando argumentos e confrontando opi -

niões", decide com equilíbrio. Para tanto, utiliza-se da dialêti - ca, ou seja, da arte de trabalhar com opiniões divergentes, um t^ po de argumentação que conclui a partir de premissas tidas e acei­tas como verdadeiras, de topoi de argumentação, de lugares comuns como, por exemplo, "bem comum", "in dubio pro reu", etc. Isto evi­dencia o contraste entre as argumentações dialéticas do direito , em oposição ãs argumentações da ciência que são apodíticas^^.

Aceitando um conceito de cientificidade identificado com um sistema de enunciados axiomáticos, e opondo o raciocínio sistemático da ciência ao raciocínio problemático ou aporético dos juristas, Viehweg não vê cientificidade na jurispru­dência. Também porque apenas remotamente essa disciplina tem fun­ção cognoscitiva e s5 secundariamente desempenha papel de sistema­tização. Neste caso, a jurisprudência não é dotada de unidade sis­temática, mas ao contrário, procedendo de um problema pode chegar a uma pluralidade de sistemas, sempre provisõrios e fragmentá rios^^. Ainda em Viehweg, ao lado da jurisprudência há uma espé - cie de jurisciência. Esta seria a Zetética que se opõe ã dogmáti - ca, pois enquanto a última parte de pontos postos fora de questio­namento a fim de, problematicamente, sugerir uma...resposta, a Zeté- tica^^ desintegra e põe em dúvida os pontos de partida da dogmáti­ca. 0 que pode se dar dentro dos limites de disciplinas como a so­ciologia, a antropologia, ou ultrapassando-as, para se situar já

66no âmbito da filosofia do direito . Ao jurista cabe conhecer tan67 —to a Zetética como a dogmática

Tércio não se distancia demasiadamente dos postulados firmados por Viehweg. Assim é que, também, aceitando o binômio dogmática/Zetética jurídicas, e resgatando os pressupostos epistemologicos sugeridos por Popper, nega cientificidade ã .'ciên cia do direito, encarando-a antes, como t e c n o l o g i a ^ S . Lembrando que "os enunciados científicos são, ... refutáveis : verificáveis e sempre sujeitos a xmia falsificação. Sua validade é universal mas não absoluta. Suas proposições basicamente descritivas e signi ficantemente denotativas, isto é, dão uma informação limitada, po rém precisa, impondo-se em certos contextos; estão sempre sujeitas

ã verificação, embora sejam aceitas universalmente”^^, Tercio con clui que a ciência do direito não trabalha com esse tipo de enun ciado. Os enunciados da jurisprudência são qualitativamente dife­rentes, eis que têm sua validade dependente de sua relevância pra­tica. Seu ponto de apoio não ë a questão da verdade, como aconte­ce com as ciências, mas uma questão de decidibilidade de conflitos possíveis.

Estes enunciados guardam, então, "nature­za criptonormativa, deles decorrendo conseqüências programáticas de decisões, pois devem prever, em todo caso, que, com sua ajuda , uma problemática social determinável seja solucionâvel sem conse qUências perturbadoras"^^.

Tendo relevância prática imediata, e refe rindo-se a questões de decidibilidade, a ciência jurídica se mani­festa como um saber tecnologico, diferente dos tipos de abordagens teóricas tomadas corao científicas, por interromper o processo de indagação que a levaria a conhecer a realidade do direito. Pois , tomando por direito, apenas, os pontos de partida possíveis, ;esse saber, compromete-se com um tipo de visão que não consegue ir alem da mera reprodução do direito dominante.

Com algumas particularidades que o singu­lariza, esse discurso diz presente na obra de Aloysio Ferraz Pere^ ra. Com efeito, este autor, verificando diferenças entre a instân­cia científica do pensamento jurídico e a tecnplogica, desenha umaterceira hipótese, com a qual esboça o trinômio ciência-tecnologia

-• 7 X-têcnica jurídicas . Entende a jurisprudência como tecnologia ,ou seja, como "uma reflexão sobre as atividades técnicas, visando . 7 2 - * 73a sua racionalização" ; ë pois uma teoria da têcnica . Quantoa esta, o autor a identifica em dois momentos: — o da constitui­ção das normas jurídicas, tarefa dos legisladores, e o da aplica­ção dessas normas, mister dos juristas militantes. Neste sentido , o saber jurídico somente sé converterá em ciência quando souber distinguir claramente a teoria da práxis, ou seja, o momento co^ noscitivo do momento têcnico da aplicação. E, quando tomar as nor mas jurídicas, não tecnologicamente, mas "como manifestações histõ ricas, fenôraenos a explicar, notadamente ligando-as a outros fenô menos"

Tratamos, neste sub-ítem, do não e, imbri cadamente, do sim; falamos sobre a negação»da cientificidade da

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ciência do direito em relação ã possibilidade de tona certa ciência do direito. 0 que suscitou o aparecimento de uma importante que^ tão — se esse saber não ê ciência, pelo menos as portas da cien tif icidade estão abertas para ele. Questão que permite aos juri_s tas se acomodarem, esperançosamente, sobre essa virtualidade aguar dando o supremo momento em que alcançarão sobranceiros as delícias da competência discursiva. E isso os autoriza, por quanto, a conti nuarem chamando, abusivamente, de ciência o que — e aqui não vai nenhum demérito em relação a esse tipo de teorização — pode não passar de um saber praxeologico.

Existe, por outro lado, outro tipo de po sicionamento filosofico que tenta a partir do direito, como nunca, constituir guardadas suas particularidades, vuna ciência como as de mais, ou seja, como a química, a física ou a biologia, e liberta , para sempre, do imperialismo epistemológico da sociologia positi­vista. Vejamos a fala deste lugar epistêmito.

4.2. o sim e o não

Que a jurisprudência é. uma ciência como as outras, com a particularidade de ser uma disciplina dogmática de caráter compreensivo-normativo, este é o axioma básico presente em quase toda a filosofia do direito contemporâneo, notadamente- culturalista. A relação epistêmico-jurídica não/sim da qual cuida mos até o momento cedera lugar ao seu inverso. Trata-se de estu­dar o negativo do referido binômio, o qual pode se traduzir pela seguinte expressão: — dado que a jurisprudência é uma ciência normativa, ligada em conseqüência ao estudo das normas, tudo que não se vincular ã analise das regras jurídicas não serâ ciência do direito, mas outro saber qualquer, ou seja, sociologia, antropolo­gia, história ou filosofia.

Este pensamento resulta de processo in^ ciado jâ neste século,, de crítica as epistemologias aplicadas ante riormente ã ciência do direito. Um processo que, embora endereçan­do críticas veementes contra o que chamam de "sociologismo juridi-

co", coloca-se no mesmo plano deste, de certa forma complementando-o, pois, seguindo a linha iniciada pelo historicismo, procura meiode salvaguardar como científica a atividade do jurista, tomando- esta como aquela atividade desenvolvida por certo especialista desde

75 -os romanos . Aqui não hã preocupação no sentido de se fundar, umaciência do direito que se relacionaria, em ultima instância, comuma tecnologia a ela subordinada; ao contrario, trata-se agora- dejustificar a própria doutrina da pratica dos juristas. Retoma-se;,como antecedentes e precursores, algumas noções, como a de sistema

7 6criadas pelo jusnaturalismo racionalista que precedeu a era da positivação. Isto, aliado ã epistemologia da cultura ou historia desenvolvida com Dilthey e Weber, proporcionou ao saber jurídico o caráter de disciplina compreensiva. Ä compreensão os juristas soma ram a noção de dever ser (sollen), tirada da dicotomia kantiana en tre o ser (sein)' e o dever ser. Assim, a jusfilosofia contemporâ - nea retratou a ciência do direito como uma disciplina compreensivo-normativa, distinguindo-a, em conseqüência, da sociologia, mesmo

-• 77daquela nascida sobre o eixo da historia ou culturaAs diversas teorias culturalistas — o

tridimensionalismo realeano; o egologismo de Cossio ou o raciovitalismo de Siches — têm em comum a preocupação de, a partir de certos cânones bâsicós, justificar a dignidade científica da prâxisjurídica e de sua racionalização. Nesta otica, por mais insolitoque possa parecer, a ciência do direito não teria tanto a funçãode conhecer o direito, ou seja, ^ saber o que ele e, mas a deaplicâ-lo, normativãmente, dizendo o que é ^ direito. A partirdaí institucionalizou-se a pratica de identificar ciência do direi .to com a dogmática jurídica. Desde então os tratadistas, ou seja ,os constitucionalistas, civilistas, penalistas, e atê os processualistas tomaram por ciência um ofício que, embora sua pertinência eutilidade, não passa de sistematização, ainda que tràbalhosa e di

78fícil, dos dados normativos' positivadosAs proposições referidas são compreensí -

veis a partir de noções singulares de cientificidade. É o caso de Bobbio para quem o saber jurídico será científico se sua linguagem guardar padrões coerentes de sistematicidade conforme uma logica interna, esta "baseada nos dados ou pressupostos contidos nas nor­mas de direito emanadas do legislador competente”^^. Neste sentido, interpretar as proposições normativas e construir um sistema se­

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gundo uma linguagem rigorosa, eis a função da ciência jurídica, a qual, para o autor em relevo, é uma ciência cultural e natural ao mesmo tempo. Cultural porque se vincula ã interpretação, método tí pico das ciências culturais, as quais seguem o estatuto epistêmicoda historia; e, natural por propor um sistema a partir de general^

. . 80zaçoes conceituais sempre maioresOra, colocações como estas evidenciara uma

— segundo a expressão de A.L. Machado Neto — "babel epistemologiaca" que confere legitimidade para o jurista do foro, sem rigor conceitual, invocar a cientificidade de seu saber instrumental, fí que 81o culturalismo, inserindo-se no contexto do positivismo jurídico e mantendo, de algum modo, as características básicas do normati - vismo exegêtico desvinculou-se do estatuto epistemologico causal - explicativo das ciências naturais, para, aproximando-se das coloca ções comuns ao eixo da cultura, não raais se preocupar em explicar, ou em compreender o fenômeno jurídico., Apenas interpreta-o, apli­ca-o e sistematiza-o, encarando-o, em última análise, como norma sem mais.

0 que Machado Neto, referindo-se ã filoso fia contemporânea, chama de "o renascimento da filosofia do direi­to" pode não passar de um processo rico e erudito de trabalhar opositivismo, desta vez não sociologicamente, mas maneira dogmática.

82Warat em trabalho recente , referindo-se ãs formulações teóricaskelsenianas, "reafirma que a teoria pura do direito deve ser vista

-- 83como uraa dogmática jurídica" . Esta observação, neste contexto, éválida se acompanhada da seguinte colocação: — muito embora, paraKelsen, o direito enquanto objeto de um discurso seja um objeto ideal (como os números, ou as expressões geométricas, não podendosofrer valorações) e não cultural (os que são valorados), costuma--se incluí-lo entre os culturalistas, notadamente pelas suas liga-- 84çoes com o grupo neo-kantiano de Marburgo , o qual, cora Staramler

foi um dos iniciadores do movimento que culminou no cültutalismojurídico. E, Kelsen se identifica tanto mais com o culturalismoquando, além de encarar a ciência do direito como uma ciência nor-

— ' 85mativa, isto é, como uma ciência que estuda normas , atribui-lhe,corao fazem os jusfilosofos culturalistas, uma tarefa logico-siste-mática. 0 que significa dizer que, como Reale e Cõssio, admite 'íjueum dos momentos da p'esquisa jurídico científica é o da sistematiza

86ção das normas de direito positivo" , papel este, segundo uma vi

são sociologista, desempenhado pela tecnologia do direito.Ja dissemos, o culturalismo emerge como

reação ãs inúmeras formulações jurídicas desenvolvidas no século XIX. Buscando uraa metodologia específica para a ciência do direi - to, e tentando fugir das formulas anteriores, de cunho sociolõgico e naturalista, a encontra delineada no pensamento kantiano. De fa­to, a escola de Marburgo, da qual faziam parte Stammler e Kelsen , além de outros, encontrou a base para a nova orientação metodolõg^ ca na divisão entre o ser e o dever ser ; entre o mundo da natureza c o d;j liberdade, liste últirao e o mundo normativo da ética, iumorol e direito. Nestes termos, a ciência jurídica não estudaria o ser do direito (isto compete ã sociologia ou antropologia jurídicas) , mas o seu dever ser. Manifesta-se como uraa logicização, a qual prescindindo da intuição sensível, conhece "exclusivaraente median­te conceitos puramente lõgicos (...), ou seja, sem qualquer elemen

87to representativo" , pois, "o dever ser é entendido como forma lõgica, como conceito lõgico que integra a multiplicidade das rela -ções sociais possíveis, sem representação de dado algum da , expè-

8 8riencia"Em Kelsen a ciência jurídica deve passar,

rigorosamente, por ura processo de depuração metódica que a livrará tanto dos objetos de conhecimento prõprios de outras áreas de sa - ber, quanto das interferências ideológicas. Nesse sentido, o obje­to da ciência do direito é a norma jurídica, e apenas ela, entendi^ da como produto do reino do dever ser e, ainda, como pura idealida de, sem qualquer correspondência com o império sensitivo da expe - riência humana. Eis porque seu direito é um direito puro, e sua' ciência, uma ciência normativa. Esta teoria serâ gravemente criti­cada, mais tarde, quando os novos jusfilósofos, baseados em novosparadigmas de cientificidades, em novas posturas frente ás "ideolo

89 “gias", proporão uma teoria impura do direito , no sentido de uraa ciência voltada para o direito integral, não apenas circunscrito â análise, interpretação e sistematização dos dados normativos. En­tretanto, não podemos nos esquecer que a Filosofia do Qrupo de Marburgo, e especialmente kelseniana, se mostrou como uma divisora de-- 90águas , influenciando, de algxim modo, todo o pensamento jurídico contemporâneo, tendo dialogado com marxistas, egologistas, tiíidi mensionalistas e com outras correntes do pensamento jurídico.

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Se os juristas ligados â escola de Marbur go mantinham interação importante com o criticismo kantiano da "Crítica da Razão Pura", outro movimento, denominado Escola de Ba­den, ou Escola Sudocidental Alemã, através das obras de pensadores

91como Wildelband, Rickert, Lask e Radbruch é inaugurado, apoiando -se mais no Kant da "Crítica da Razão Prática". Com isso, se, co­mo os juristas marburguianos, estes partem do binômio ..kantiano ser/dever-ser (sein/sollen), fazem-no tentando superar esta antíte se através das noçÕes de valor e cultura, incorporando as preocupa ções levantadas por Dilthey. Assim, o dever-ser não passará por ne nhum processo de logicização que o imunize da experiência sensível e da correspondência das imagens fáticas; antes, ele é valorado , porque, ao contrário do mundo da natureza, o mundo da liberdade tan um sentido — sinn — complexo, rico e muitifacetado, ligado i in dissoluvelmente ã criação humana, o qual necessita ser compreendi­do.

A ciência do direito fugirá do eixo epis- temolôgico das ciências naturais, afastando-se, igualmente, da so­ciologia compreensiva. Enquanto esta conhece o ser do direito, a ciência jurídica, partindo de cânones epistêmicos similares, conhe cerá o dever ser puridico. A ciência do direito, para o culturali^ mo, é pois, uma ciência compreensivo-normativa do mundo do dever ser: é iima dogmática jurídica.

Como veremos adiante, com algumas especi- ficidades que os distinguem, o egologismo de Cossio e o tridimen - sionalismo de Reale se solidarizam no sentido de entender a ciên - cia do direito conforme a conceptualização referida no parágrafo anterior. Estas duas teorizações, ao lado das formuladas por Kel - sen, talvez sejam as maiores expressões do pensamento jurídico con temporâneo. Reale, por exemplo, chega a dizer claramente que " a jurisprudência ou ciência dogmática do direito é, assim, a ciência histôrico-cultural que tem como objeto a experiência social na me­dida e enquanto esta normativamente se desenvolve em função de fa­tos e valores, para assegurar,,de maneira bilateral-atributiva, a

92realização ordenada da convivência humana" . Isto evidencia uma identidade entre as concepções culturalistas relativas â ciência do direito. Entretanto, Reale tentou estabelecer um muro espitemo- logico capaz de separar o seu pensamento do dos demais inscritos

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no mesmo codigo teorico. Fê-lo utilizando-se da ejcpressão "tridi -mensionalismo específico" para designar sua teoria, a qual tenta

93superar o tridimensionalismo de tipo abstrato ou generico . Nesse sentido, as diferentes ciências que tratam do jurídico não se dif£ renciam em função de sua preocupação com o fato jurídico, com o va lor, ou cora a norma jurídica, porque o direito possui estas três dimensões, e as diversas ciências somente podem conhecer o direito captando-o em sua tridimensionalidade. 0 que distinguira a ciência do direito das ciências que tratam do fenômeno jurídico, ê que emseu discurso predominara o momento normativo, ainda que em função

94 ^dos demais momentos . Eis porque, para Rèale, a ciência jurxdicasõ pode ser entendida como "uma ciência normativa (mais precisamente compreensivo-normativa) devendo-se, porém, entender por normajurídica bem mais que uma simples proposição logica de natureza ideal; — é antes uma realidade cultural e não mero instrumento téc

95 ~nico de medida no plano etico da conduta ..." . Reale não foge do positivismo que impera desde a escola da exegese, apenas que, com apoio em Kelsen^^, superou o legalismo típico do sêculo XIX, insi­nuando um renovado normativismo. E, antes de criar uma teoria cien tífica do direito, como propunha o historicismo, tentou, como bom culturalista, consolidar a cientificidade de um saber anterior ã ciência, e arredio, portanto, ãs suas amarras. Estabelecer a cien­tificidade do saber racionalizador da prâxis jurídica, eis a ambi­ção da filosofia jurídica dominante, a qual mos.tra suas facetas tm to era Kelsen, corao em Reale e Cõssio. Não queremos, como estas re­flexões, desmerecer o valor dessas contribuições teóricas. Antes , queremos iniciar uma correspondência epistemologica que permita su perâ-las era suas faces vulneráveis. 0 que não é possível sem a existência prévia delas.

Fizemos menção ã dogmática jurídica. Fizemo-lo, muitas vezes, identificando-a ã ciência do direito; em ou-.tros momentos tentamos designar por aquela expressão a atividadetécnica de sistematização dps juristas. Trata-se de uma estratégiametodológica que identificando, num priraeiro momento, realidades

97distintas por um mesmo nome ‘ — quando tomamos por dogmatica tan to a ciência quanto a técnica jurídicas — , mais tarde discute a questão, esclarecendo as múltiplas relações formadas entre esses significantes, ou melhor, entre a ciência do direito e a dogmática jurídica, é o que tentaremos fazer no proximo capítulo.

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N O T A S

(1) - V. Pereira, Aloysio Ferraz. " 0 Direito como Ciência ". S.P. Revista dosTribunais, 1980. p. 47.

(2) - Ferraz Jr., Tercio Sampaio. " A Ciência do Direito ". S.P., Atlas, /80p. 09.

(3) - Idem, p. 10.(4) - Por filosofia das ciências contemporânea entendemos as epistemologias cr_í

trica, dialética e histórica de epistemologos como Bachelard, Canguilhem, Piaget e de alguns marxistas que se inserem nessa linha, como Althusser, Miaille e Poulantzas, os dois últimos não enquanto juristas, mas enquan­to epistemologos.

(5) - Sobre isso consultar Coelho, L.Fernando. "Logica Jurídica e Interpreta -ção das Leis", op.cit. Tb. Warat, L.Alberto. "Mitos e Teorias Na In - terpretação da Lei". P. Alegre. Síntese. 1979. Ainda, Marques Neto , Agostinho Ramalho. "A Ciência do Direito: Conceito, Objeto e Método". Rio, Forense, 1982.

(6) - Marques Neto, Agostinho Ramalho, op.cit. p. 35(7) - Idem, p. 34(8) - Durkheim, Émile. "As Regras do Método Sociolõgico". Trad. São Paulo

1963, p. 83.(9) - Ferraz Jr., Tercio Sampaio. "A Ciência do ..." op. cit. p. 10.(10) - Japiassu, Hilton. "Nascimento e Morte das Ciências Hiimanas". Rio. Fr an -

cisco Alves, 2a. ed., 1982, p. 144.(11) - Sobre o conceito de des continuidade epistemológica em Canguilhem V. Ma­

chado, Roberto. "Ciência e Saber..." op.cit. p. 31.(12) - Japiassu, Hilton, op.cit. p.144.(13) - Maclmdu, RoberCü. op. cit. p. 36.

(14) - Idem, p. 37.(15) - Marques Neto. Agostinho Ramalho. op. cit. p. 12.(16) - Cardoso, Miriam Limoeiro. "0 Mito do metodo". Rio, PUC-Mimeo, 1971, p.04

Cf. Marques Neto. Agostinho Ramalho. Op. cit. p. 12.(17) - Idem, p. 02(18) -Machado, Roberto, op. cit. p. 36(19) - Idem, p. 47.

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(20) - "Foi Galileu quem introdxiziia um corte epistemologico na historia do pensarnento ocidental. Toi elé q-ue rompen com todo o" sistema de repre - sentação do ■mundo antigo e do "mundo "medieval. Com ele, o pensamento rompeu com a Renascença. Ele e o antimagico por excelencia. De forma alguma se mostra interessado pela variedade das coisas. Aquilo que o fascina é a idêia da física Tnatemitica, da redução do real ao geomé­trico. Ê o primeiro espirito verdadeiramente moderno. Encarna, nos últimos anos do século XVI e nas primeiras décadas do XVII, a conce^ ção inecanicista do saber que, vendendo pouco a pouco os obstáculos a parentemente insuperáveis, definirá, doravante, o ideal científico e o codigo de procedimento de todo e qualquer conhecimento com preten­sões de rigor". Com isto, percebe-se que "foi Galileu, e não Copérn^ co, quem inaugurou a revolução científica moderna. A chamada revolu­ção coperniciana foi criada por Kant no prefácio ã segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787) para designar a inversão de perspectiva introduzida, na concepção da astronomia, pelo De revolutionibus or bium coelestixxm (1543)..." de Copérnico. Entretanto, se com este fj. losofo a terra deixou de ser o centro do mundo físico, continuou a ser o centro do mundo metafísico. "Donde se poder duvidar que Copér­nico tenha sido o iniciador da revolução astronômica. Ademais, suas teses não aostituiram nenhuma subversão para as consciências. Não eram perigosas. A Inquisição praticamente as ignorou. So veio a con denar o heliocentrismo em 1616, quase oitenta anos depois da morte de Copérnico. Mas a presteza com que condenou as teses de Galileu ^ testa que foi ele quem introduziu realmente a subversão, a confusão e o escândalo nas consciências. As teses do "De revolutionibus" pr^ põem um esquema explicativo seguindo a mesma linha do pensamento de Ptolomeu. Nao propõem uma teoria fundada na conjunção da observação e das matemáticas" como o faz Galileu. As concepções galileanas esta rao presentes também em Descartes. Cf. Japiassu, Hilton. "Nascimento e Morte das Ciências Humanas", op. cit. pp 26, 27 e 42.

(21) - "... a representação se caracteriza antes de tudo de modo bastante clá^sico, tal como é proposta por Descartes na "Regulae ad Directionem Ingenii" e como intervém nas formas clássicas de constituição da ma temática e da física matematizada do século XVII, cuja primeira gran de obra sintética aparece com Newton: "Philosophia naturalis Princi- pa Mathematica". Desse ponto de vista, o sistema newtoniano e cons­tituído pela doutrina das idéias claras e distintas de Descartes , que substitui o jogo das identidades e das diferenças pelo jogo das

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similitiades, no TOcanento eaa que se trata de compreender as noções e de constituí-las. Ao se tentar estruturar a compreensão das noções privilegia-se os esquemas da ordem e da mêdida coao princípios orga­nizadores do conhecimento científico. Este vai buscar seu estímulo , sua animação, seu princípio estruturante e organizador na ideia de uma mathesis universalis...” Cf. Japiassu, Hilton, ."Introdução ao Pensamento Episteonologico", ílio, Francisco Alves, 3a. ed. , 1979 , p. 119...

(22) - Japiassu, Hilton . "Nascimento e ..." op.cit.(23) - Temos em maos a edição portuguesa de "As Palavras e As Coisas", traduz^

da do francês. Lisboa, Portugãlia, 1967.(24) - Machado, Roberto, op. cit. p. 148(25) - Idem, p. 149(26) - Ib.Id. p. 149(27) - Foucault, Michel. "As Palavras e As Coisas", op. cit. p. 179(28) - "Este j priori e o que, em dada êpoca, recorta na experiência um campo

de saber possível, define o modo de ser dos objetos que nele aparecan arma o olhar cotidiano de poderes teoricos e define as condições em que se pode anunciar sobre as coisas um áiscurso reconhecido como verdadeiro". V. Machado, Roberto, op. cit. p. 150.

(29) - Japiassu, Hilton. "Nascimento e ..." op. cit. p. 17(30) - Ib.id. p. 67.(31) - Ib.id.(32) - Ib.id. p. 95. ....(33) - Ib.id. p. 99(34) - Ib.id. p. 98(35) - Marques Neto. Agostinho Ramalho, op. cit. p. 90(36) - Idem, p. 85.(37) - Japiassu, Hilton. "Nascimento e ..." op. cit. p. 103.(38) - Sobre Dilthey V. dele "Introduciõn a Ias ciências dei espiritu". Buenos

Aires, Esposa Calpe Argentina S.A., 1948. Tb. Imaz. Eugênio. "El Pen samiento de Dilthey", El Colégio de México, 1946.

(39) - Cf. Weber, Max. "Sobre a Teoria das Ciências Sociais". Trad. Lisboa ,Presença, 1969. Tb. Freuiid, Julien. "Sociologia de Max Weber". Trad. Rio, Forense, 1970. Ainda; Machado Neto, A.L. "Teoria da Ciência do Direito", op. cit. p. 54. Este autor assira se expressa: "os nomes de Wilhelm Dilthey, Wildelband, Rickert, Georg Simmel, Max Weber, Bene­dito Croce, Hans Freyer, Collingwood, Cassirer, Huizinga, Ortega , Raymond Aron, Recaséns Siches, Ernesto Grassi e Von Uexkull, Eduardo

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Nicol, Kaxl Jaspers, Prancisco Ayala, Julian Marias, Gilberto Freyre, dentre outros tantos, sao marcos indeléveis desse progresso do espí­rito ocidental, disparado no sentido da "compreensão" do hianano em sua radicação histórica".

(40) - Julius Hermann Von Kirchmann negou carater científico ao direito em Cojiferência pronunciada na Universidade de Berlin, em 1847. Sobre isso V . Coelho, L. Ternando. Teoria da . . . op. cit. p. 55.

(41) - Ferraz Jr., Tercio. "A Ciência do Direito". S.P. Atlas, 1980, p. 40.(42) - Sobre isso V. Machado Neto., A.L. "Compêndio de Introdução à Ciência do

Direito". 2a. ed., S.P. Saraiva,1973. p. 27. Tb. Reale, Miguel. "Fun damentos do Direito". 2a. Ed., S.P., Rev. dos Tribunais, 1972, p. 27

(43) - Ferraz Jr., Tercio. "A Ciência do ..." op.cit. p. 40.(44) - Ribeiro Jr., João. "0 que é Positivismo". S.P. Brasiliense. 1982. p.12(45) - Gil, Antonio Hernandes. "Metodologia dei Derecho". Madrid. Ed. Rev. de

Derecho Privado. 1945. p. 71. Cf. Machado Neto, A.L. "Compêndio de ... " op. cit. p. 27.

(46) - Interessante a distinção que Cláudio Souto ("Introdução ao Direito comoCiência Social \ Brasília, Ed. UnB; Rio, Tempo Brasileiro, 1971) faz entre o sociSlogo-jurista e o jurista-sociõlogo.

(47) - Reale, Miguel. "Filosofia do Direito". S.P.Saraiva, 1978. p. 431.(48) - Souto, Clãudiç. op. cit. p. 31.(49) - V.Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. "Sistema de Ciência Positiva

do Direito". Rio, Borsõi, 1972. Cf. Marques Neto, A. Ramalho. op.cit(50) - V. Paim, Antonio. "A Filosofia da Es:cola do| Recife". S.P. Ed. Saga,1966

Tb. Machado Neto. A.L. Teoria da ... op.cit. p. 139(51) - Cavalcanti Filho, Theophilo. "Papel desempenhado por "Fundamentos do Dj.

reito" na filosofia jurídica nacional". In "Fundamentos do Direito", op. cit. p. xix. Esse autor faz um interessante apanhado, sob o pon­to de vista historico, dos jusfilosofos brasileiros a êpoca do sur­gimento da obra realeana (1940). Analisa a influência do positivismo comteano, bem como do pensamento de Spencer e Haeckel na filosofia jurídica nacional.

(52) - Criticando o conceito de massa dos espíritos Reale ("Filosofia do DireitoV op. cit. p. 443) assim se pronuncia; "Ora, isto eqüivale a revi­ver a idêia de "espírito do povo" de Savigny; é volver ao "eu colet^ vo", de Rousseau; e dar roupagem nova a uma idêia jã antiga na trad^ ção histõrica,^ no que tange ao fundamento da obrigatoriedade jurídi­ca, contra o qual Duguit reagia em nome da ciência positiva... "

(53) - Reale, Miguel. "Fundamentos do ..." op. cit. p. 88(54) - Reale, Miguel, 'filosofia do ..." op. cit. p. 446(55) - Interessante, a esse respeito, o pensamento de Roberto Lyra, ligado ao

da Escola do Recife. Em suas palavras. "Divido o Direito Penal em D^ reito Penal Científico e Direito Penal Normativo para o estudo, re^ pectivamente, do Direito Penal como integrante da ciência social - o Direito - e do Direito Penal como disciplina jurídica componente do Direito Público. 0 Direito Penal Científico estudara, verticalmente, a criminalidade (conceito sociologico) ; o Direito Penal Normativo e_s tudarã, horizontalmente, o crime (conceito jurídico)". "Direito Pe ~ nal Científico; Criminologia". Rio, J. Konfino, 1974 p. 07.

(56) - Cf. "A Ciência do ..." Tb. A Função Social da Dogmatica Jurídica. S.P.,Rev. dos Tribunais. 1980.

(57) - V. "0 Direito como Ciência", op. cit. p. 46.(58) - "Topica e Jurisprudência". Trad. Brasília. D.I.N.,, 1979.(59) - Quanto a isso V. Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y dominacion en el Esta­

do Moderno". Córdoba-Argentina, Cuadernos de Pasado y Presente, 1973 Tb. Miaille, Michel. "Uma introdução crítica ao Direito". Lisboa, M_o raes, 1979.

(60) - Como veremos adiante, com essa expressão designaremos os trabalhos teo­ricos de pensadores que procuram elaborar uma crítica do direito, no Brasil.

(61) - Ferraz Jr., Prefacio do Tradutor. In "Topica e Jurisprudência" op. cit.p. 1.

(62) - Idem, p. 02(63) - Ib.id. p. 03(64) - Reale, Miguel. "0 Direito como Experiência". S.P.Saraiva, 1968. p. 136(65) - Quanto à Zetética V. ainda, embora em outra perspectiva. Coelho, L. Fe£

nando. "Logica Jurídica e ..." op. cit. pp 52 e 241. Também Warat , L. Alberto. "Sobre la dogmatica jurídica". Fpolis, Sequência n? 2 , 1980, p. 33 tece algumas considerações sobre a dicotomia de Viehweg.

(66) - Ferraz Jr. Tercio. "A Ciência do ..." op. cit. p. 46(67) - Idem. Tb. "Função Social da ..." op. cit. p. 92. .(68) - José Eduardo Faria e Claudia Lima Menge em "A Função Social da Dogmáti­

ca e a Crise do Ensino e da Cultura Jurídica Brasileira" participam dessa opinião. "V. Rio, Dados n? 21, pp. 87-113, 1979.

(69) -Ferraz Jr., Tércio. "Função Social da ..." op. cit. p. 86.(70) - Idem, p. 88

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(71) ~ Â distinção entre tecnologia e técnica, ainda que de modo sumario, tam­bem a encontramos em Tercio. V. "A Ciencia do ..." op. cit. p. 55

(72) - Pereira, Aloysio Terraz. op. cit. p. 53 (7;3) - Idem, p. 52(74) - Ib.Id. p. 54. 0 autor faz remissão ao pensamento de Paul Amlek.(75) - Esta afirmaçao, evidentemente, não tem sentido para outros sistemas ju­

rídicos que não o germano-romanista, comum aos países da europa cen- tual, península ibérica e amêrica latina. Cf. David, Retié. "Os Gran­des Sistemas do Direito Contemporâneo". 2a. Ed. Lisboa, Meridiano , 1978.

(76) - Coelho, L. Fernando "Teoria da ..." op. cit. p. 53(77) - Reale, Miguel. "0 Direito como Experiência", op. cit. p. 117.(78) - Marques, Josê Frederico. "Manual de Direito Processual Civil".S.P. Sa­

raiva, 1978, discorrendo sobre "a ãrea normativa e científica do Di reito Processual Civil" afirma que o D.P.C. "ê grosso ,modo, o ramo da ciência jurídica que tem por objeto a regulamentação do processo pertinente a jurisdição civil. Assim sendo, cabe-lhe sistematizar os princípios e regras sobre processos de jurisdição ordinária em que se procura a composição de litígios não-penais" (grifo nosso).

(79) - Reale, Miguel. "0 Direito como ..." op. cit. p. 98.(80) - Idem, p. 117.^0 autor faz remissão ao pensamento de Bobbio.(81) - Sobre o Positivismo Jurídico v. adiante Cap. III, 2.1.(82) - Warat, L. Alberto. "Reencontro com Kelsen". Fpolis, Ed. Ufsc., 1982.(83) - Bessa Filho, Manoel. "Resenha de "Reencontro com Kelsen". Fpolis, Ufsc.

Seqüência n9 5, p. 159. Afirmação nesse sentido tambem em Warat, L. Alberto, e Cardoso da Cunha, Rosa Maria. "Ensino e Saber Jurídico" . Rio, Eldorado, 1977. p. 29.

(84) - Esse tipo de observação esta presente em boa parte da obra de MiguelReale, a partir de 1940. Esse autor refere-se ao culturalismo neok^ tiano como sendo limitado.

(85) - Segundo Diniz, Maria Helena ("A Ciência Jurídica". S.P. Resenha Univer­sitária , 19) e Machado Neto, A.L. ("Teoria da ..." op. cit. p. 46) Cossio entende a ciência do direito como normativa porque conhece me diante normas. Jã Reale (Cf. Coelho, L.F. "Teoria da ..." op. cit. p. 61) usa essa expressão para designar a ciência que "compreende o com plexo de normas em função das situações nprmadas".

(86) - Diniz, Maria Helena. "A Ciência Jurídica", op. cit. p. 143.(87) - Reale, Miguel. "Fundamentos do Direito", op. cit. p. 140

(88) - Idem, p. 143(89) - Coelho, L. Texhando.. "Introdução a Cxitica do Direito”.Cuxitiba. HDV,

1983,(90) - Essa expressão foi emprestada de Tercio Sampaio Terraz Junior. Conferii:

"Hans Kelsen, um divisor de ãguas". Florianópolis. Ed. Ufsc., SeqUên cia n9 04. 1981, p. 133.

(91) - Reale, Miguel. "Fundamentos do Direito", op. cit. p. 173, oferece umainteressante síntese do pensamento dessa escola.

(92) - Idem. "0 Direito como Experiência", op. cit. p. 120.(93) - Ib.Id. p. 120.(94) - Ib.Id. "Teoria Tridimensional do Direito". S.P. 3a. Ed. Saraiva, 1980 ,

p .61(95) - Ib.Id.(96) - 0 conceito de norma jurídica em Kelsen, não se confundindo com a Lei ,

vai muito além dela, englobando todas as regras de direito válidas , do geral até as particulares ou específicas.

(97) - Essa prática é comum nos trabalhos jurídicos. É o caso de Tércio o qual,embora entendendo a dogmática como tecnologia, costuma chamá-la pela expressão ciência do direito. Quando esse autor identifica o pensa - mento jurídico com o tecnológico, assim se expressa: "Nestes termos, a ciência do direito não diz o que é direito em tal e tal circunstân cia, época, pais, situação, mas que, assumindo-se que o direito em tais e tais circunstâncias se proponha a resolver tais e tais con - flitos, então deve ser compreendido desta e não daquela maneira. E^ ta forma dever ser dá a analítica jurídica o seu caráter peculiar". V. "A Ciência do Direito", op. cit. p. 55. Tb.Coelho numa fase ante­rior identificava dogmática jurídica com ciência do direito, atitude aliás, peculiar aos jusfilósofos culturalistas. V. "Teoria da Ciên - cia do ..." op. cit. p. 51.

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CAPÍTULO II

0 PAPEL DA D0(MTICA JURTDICA E A NOVA JUSFILOSOFIA

1. SENTIDO ATUAL DA DOGMÁTICA JURlDICA

Que absorção, identidade e subordinação podem ser utilizados como adjetivações capazes de sintetizar al­guns tipos de relações possíveis entre a ciência e a dogmática ju­rídicas, eis uma hipótese sobre a qual devemos discutir. Para tan­to, antes, responderemos a questão: — o que ê dogmática jurídi - ca ?

Identificamos esse termo, várias vezes , com os significantes normativismo e positivismo jurídicos. Não ba^ ta, pois, apenas conceituar, em abstrato, a dogmática jurídica; de ve-se verificar seu conteúdo em relação a outro conteúdo, qual se ja, o relativo a ciência do direito. Em verdade, não há uma dogmá­tica, mas várias, segundo concepções diferentes e conforme postu - ras frente ã conceptualização da ciência jurídica.

Não querendo adiantar questões que devem aparecer mais tarde, devemos dizer que uma teoria dogmãtica, isto é, aquela teorização que leva ãs últimas conseqüências a prâxis do raciocínio dogmático^ s5 foi possível em face da gênese de um fenô meno designado por positivismo. Posteriormente tentaremos relacio nar este tipo de imaginário (o positivismo) com os fatores exter - nos que exigiram sua constituição. Por enquanto basta dizer, o que fazemos ressaltando a provisoriedade da colocação, que por positi­vismo jurídico se costuma denominar aquele feixe de atitudes teõr^ cas ou praxeolõgicas em relação ao direito que o identificam com sua manifestação fãtica, ou normativa, ou axiolõgica — mais fre -. qüentemente, apenas, normativa — subordinada, em última analise , ã vontade e aos aparelhos do estado. Este feixe de atitudes resul­ta de um processo através do qual, por incessantes fraturas, o di reito foi laicizado; criou-se uma noção de sistema que ordena uni- tariamente o conjunto normativo, e privilegiou-se a lei, identifi^ cando-a, sem mais, com o direito. Este processo consolidou-se jã no seio do moderno estado burguês, evidenciando uma trajetória ã qual chamaremos de via de positivação do direito. Positivàção que não se confunde, ê bom lembrar, com a positivação dos saberes e das disciplinas científicas, conforme uma episteme histórica , ã qual nos referimos fazendo remissão ao pensamento de Foucault. Se estas "positivações" são, relativamente, coincidentes historicamen te, elas divergem conceptualmente. A positivação,do direito cria nova realidade jurídica reduzindo-o, em última análise, a um ins - trumental controlado de mediação de conflitos; a positivação dos saberes inaugura nova era para as ciências, separando a era da re presentação (anterior) da nova era constituída por uma episteme que se traduz pela positivação.

A trajetória de positivação do direito chegará ao auge no sêculo XX, com o normativismo lógico formal kel seniano, com o egologismo de Cóssio e, no Brasil, com o tridimen.- sionalismo realeano, os quais institucionalizarão epistemologica - mente a práxis doutrinária dos juristas.

Warat, discorrendo sobre a dogmática jurí dica^, encontra no histórico de sua constituição três etapas dis - tintas que favorecerão a reclamação de um lugar próprio junto ao quadro epistemológico dos saberes jurídicos competentes. São os se

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guintes: (i) o momento exegetico ou da conceitualização, (ii) o momento da dogmatização propriamente dita ou das construções jurí­dicas e, (iii) o momento da sistematização.

No primeiro momento se inicia a fixação da noção de que o direito se identifica com a lei e que, portanto,"no hay más derecho, que el ordenamiento jurídico establecido a

- - 4traves de las leys validamente dictadas y vigentes" . Neste caso ,a função do saber jurídico se limita a interpretar a lei, segundoo método exegetico decifrando-se, através de operação logica, seusconteúdos relacionando-os cora os conceitos que os informam. Nestaetapa a dogmática jurídica não necessita de nenhum princípio dejustificação, quer de ordem política, quer de ordem epistemologi -ca, porque não sofre nenhuma espécie de questionamento. Já na etapa seguinte, o direito será justificado segundo critérios formaisde validez, iniciando-se o período de constituição de categorias ,conceitos e princípios, a partir do ordenamento jurídico positivo,os quais funcionarão como verdadeiros dogmas, pontos de partida seguros e não criticáveis, tão significativos para a dogmática, comoa própria lei. Finalmente, o terceiro período, o da sistematizaçãojurídica se constitui pela unificação das construções conceituaisda dogmática, segjjndo as colocações estabelecidas pelo ordenamentojurídico estatal, e fundando certos princípios que guardam características de invariabilidade e universabilidade. Resulta daí segundo Warat uma dogmática geral, ou seja, uma teoria geral do dire^to, a qual terá, mais tarde, era Kelsen seu raaior expoente em razãode sua "Teoria Pura do Direito".

A dogmática jurídica ê uma manifestação discursiva que almejando a condição de cientificidade e, falando era nome dela, o faz, não através de enunciados informativos e im­buídos da necessidade de encontrar a verdade (sujeitando-se ã refu tação e falsificação conforme Popper), mas atráves de ura discurso persuasivo^, dirigido á decidibilidade de conflitos, .assegurando certeza e segurança jurídicas, exigências do direito positivado do moderno estado capitalista. Ora, isso denuncia a dogmática icomo atividade classificatõria e sistematizadora das normas jurídicase£ tatais. Sua realidade está limitada pela institucionalização do câmbio do direito operacionalizada pela sua positivação, o que con forma o saber jurídico âs dimensões da atividade jurisdicional. A

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tarefa do jurista, como homem de ciência, "se torna dogmatica na medida em que ele se circunscreve a teorização e sistematização da experiência jurídica, era termos de xama unificação construtiva dos juízos normativos e do esclarecimento de seus fundamentos..."^.

0 grande mérito de autores corao Warat.Coe lho, Tércio, J. Eduardo Faria e C. Lima Menge é compreender a do£ raãtica pelo que ela ê, e não pelo que ela deseja ser, ou seja, pelo que ela não é. É um saber com lugar proprio no quadro das disci plinas jurídicas. Sua especificidade esta no fato de, também, ser dotada de positividade política ou ideologica a qual, condenando - -a a ura papel específico, desenha sua configuração de saber norma­tivo destinado a interpretar normas, fixar conceitos, categorias e princípios, além de ordenar, através de sistematização única, cora pleta e geral, a instância norraativa estatal. A dograâtica não é , portanto, mera atividade prática, fragmentária e cega. Se o fosse, não teria construído toda gama de conceptualizações e . princípios que infestam e obstaculizara a constituição de um èaber jurídico to talizador e integral; nem teria conseguido cumprir sua função de disciplina fornecedora de construções jurídicas aptas a assegurar o controle social por parte do estado. Portanto, a dogmática, en­quanto saber, não^pode ser desdenhada como reles atividade ideoló­gica, prê-científica ou míope; ao contrario, deve ser compreendi­da tanto em sua funcionalidade corao em sua materialidade histõri - ca.

É, pois, chegado o raomento de buscarmos , ainda que de modo sumário e esquemático, uraa classificação sinteti^ zadora das varias posturas teóricas relativas ã dogmática jurídi - ca. As posições que seguem são as mais significativas: — (i) a dogmática é simples técnica, ou tecnologia, não se confundindo com a ciência do direito; (ii) a dogmática ou ciência do direito é um saber tecnológico e, portanto, não científico; (iii) a jurídica é a ciência dogmático-normativo do direito.

A priraeira postura teórica, ou seja, aque la que reduz o saber jurídico ã esfera técnica ou tecnológica, é a posição dos jusfilósofos que, embasados nos eixos epistemológicos das ciências rigorosas ou naturais, quiserara constituir uma ciên­cia do direito segundo os cânones estabelecidos por aquelas episte^ mologias. É o caso, jâ salientado, de Duguit, o qual baseando - se

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no binômio criado por Geny entre o dado e o construído, distingue a técnica do direito da ciência jurídica. A esta caberia descobrir, cientificamente o dado, ou seja, as normas jurídicas que regulam a sociedade. Jâ aquela, identificando-se com a dogmática, cuidaria de organizar sistematicamente as normas técnicas, derivadas das normas jurídicas, que constituem a matéria por excelência dos côdi gos e legislações. Sabemos que esse raciocínio influenciou, e mui to, o pensamento jusfilosõfico brasileiro, a tal ponto que, o rom pimento com seus paradigmas em 1940, com a obra culturalista de Reale — "Fundamentos do Direito" — representou verdadeiro marco na cultura jurídica nacional. Naquele tempo, o meio intelectual bra sileiro estava tomado pelos estatutos epistemologicos naturalis tas; estes eram modelo, por exemplo, dos membros da Escola do Reci7 ~fe , bem como de pensadores como Pedro Lessa. Este, chega a afir -mar, incisivamente que "as leis devem ser formuladas de acordo com

•** 8a teoria científica" , o que demonstra sua vinculação extremada com o pensamento europeu típico do sêculo XIX.

Quando o ofício do jurista, com uma fun ção teõrica e cognoscitiva limitadas ã aplicação pratica imediata e a partir de pontos de partida irrecusáveis não se enquadrava en tre os saberes dojtados de cientificidade de acordo com a epistemo­logia oitocentista, então, para salvaguardar o métier do jurista , cria-se uma ciência ã qual se subordinara, em ultima analise, a técnica jurídica. A ciência do direito, como vimos, toma o aspecto de uma sociologia causal-explicativa tão positivista quanto a téc­nica tida como a-científica. Esta concepção, mesmo mais tarde, já sob o influxo da filosofia histõrico-compreensiva, continuará a se manifestar.

A segunda formulação (a qual identifica a ciência do direito como uma tecnologia jurídica) continua, todavia, a utilizar a expressão ciência do direito. Parece não aceitar a hipótese de uma verdadeira ciência jurídica — neste caso não tec­nológica, mas eminentemente cognoscitiva — não incluída entre a sociologia, a psicologia ou a antropologia e etnologia jurídicas . Neste caso, a única ciência dò direito possível não pode assumir iam estatuto de cientif icidade, pois o tipo de enunciado com o qual trabalha não se preocupa com a verdade, mas com a decidibilidade de conflitos. É, pois, um discurso persuasivo e tecnológico, orien

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tador do agir do homem em face de conflitos instalados ou hipotéti^ cos; ê uma praxis doutrinária e não uma ciência. Esta colocação e£ tã presente nos textos de Tercio, Josê Eduardo Faria e Cláudia Li ma Menge, neste particular influenciados pelo pensamento de /Vieh- weg.

Finalmente, a formulação que expressa uma sinonimia entre a ciência do direito e a práxis teorêtica dos juristas ê a que predomina, atualmente, no ocidente. Esta linha f^ losofica, como visto, chega a um grau elevado de complexidade teó­rica a partir da retomada do criticismo kantiano operado pela esco la de Marburgo (notadamente com Kelsen), tendo mais tarde desviado este caminho, fugindo do formalismo logico para incorporar ãs suas análises a problemática dos valores, principalmente com o advento da Escola de Baden. Fundando-se na concepção historico-cultural de Dilthey, foi possível qualificar a produção doutrinária dos juris­tas como científica; uma disciplina compreensiva do reino do dever ser que deve abandonar, por serem meta-jurídicas, questões levanta das pelos vários ’’sociologismos". Esta teorização foi suficiente para resgatar lim paradigma metodológico capaz de sinonimizar a ciência do direito com a teoria dogmática jurídica. Identificação que está presente, em boa parte dos tratadistas do direito, os;quais, ainda que apenas de modo relativo, reproduzem a jusfilosofia dograá tica de pensadores como Kelsen, Cossio e Reale.

Entretanto, bom ressaltar, a sinonimia pro posta por Reale carrega uma diferenciação menor, mas, em todo ca - so, subordinada aquela identidade anterior. Segundo este autor " a dogmática jurídica deve, em suma, ser compreendida como o momento culminante da jurisprudência, ou seja, da ciência do Direito nagplenitude da existência" . A dogmática ê, portanto, em Reale, o momento máximo da compreensão normativa da ciência do direito, e efetiva-se quanto, através, de deslocamentos cognoscitivos tipica - mente jurídicos, ou seja, derivados de uma constatação ontolotica do jurídico que o descobrindo no mundo da cultura o vê, ainda, re duzido a südito do império específico do dever ser, estabelece, ba seando-se no ordenamento jurídico positivo,ou sistema jurídico , certas estruturas normativas, as quais culminarão na construção de modelos jurídicos^®.

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Ao lado das posturas citadas devemos pro nunciar uma ultima: (iv) a dogmática e m saber náo científico que precisa ser repensado a partir de uma ciência crítica do direito.

Esta se caracteriza como assertiva básica entre os novos jusfilosofos brasileiros, a despeito das inúmeras direções que estes pesquisadores têm tomado. De fato, a preocupa - ção unificadora dos vários caminhos que as teorias críticas percor rera parecer ser o de constituir tanto uma instância crítica de re­flexão do saber jurídico dominante, como, também, o de fundar ou tro saber que possa superá-lo. Para tanto utilizam todo referen - ciai epistemologico possível, notadamente os legados pelas filoso­fias dialéticas - epistemologia genética de Piaget; histórica de Bachelard e Canguilhem; racionalista crítica de Popper - aos quais somam novas colocações no sentido de efetivar im pensamento críti­co. Este, não se preocupando apenas com os estatutos de cientific_i dade de seus discursos, ultrapassa-os refletindo, igualmente, so bre os efeitos que esses textos descarregam sobre o meio social , defendendo a necessidade da assunção, por parte do cientista do dj reito, de uma responsabilidade social em relação ao saber que pr£ duz. Questinam as disciplinas jurídico-dogmáticas porque estas mu­tilara o saber jurídico, reduzindo-o a mero reprodutor da normative dade institucionalizada, quando o direito passa a constituir arse nal de recurso úteis para os aparelhos de estado assegurarem o con trole social. E, referendados por novos paradigmas de cientificida de, negam caráter científico à ciência do direito, ou seja, ã ju­risprudência, propondo, por assim dizer, ui| saber instituinte para rebater os discursos competentes. Vejamos no proximo item a subs - tância e o alcance desse tipo de teorização.

2. A NOVA CRÍTICA DO DIREITO

Como uma instância teorico-judicativa do saber jurídico predominante, ou seja, da "ciência dograâtica do di reito", aparece uraa crítica que, além de ser uma crítica ao direi

to ê uma crítica a determinado modo de cohhecê-lo. Este pensaraen - to, esboçando um so horizonte — refletir sobre o direito e o sa ber jurídico instituídos — procura vários caminhos interdiscipli- nariamente, valendo-se de elementos conceituais auxiliares das de mais ciências do homem. 0 marxismo, enquanto mundividência especí­fica dotada de filosofia singular construtora de categorias teori­camente úteis, ê tambem objeto de incorporação por aquele pensamen to. Sendo assim, podemos esboçar duas vertentes as quais, embora seguindo fins próximos, fazem-no segundo trajetórias não idênti­cas. Referimo-nos a uma crítica duplicada — que revê tanto o mar xismo ortodoxo como os discursos jurídicos tradicionais — , ao la do da qual encontramos uma crítica não marxista do direito, Esta, caracterizamo-la como crítica reduplicada; não bastando o desloca­mento duplo operado pela crítica marxista, a crítica reduplicada , tambem, questiona a possibilidade de uma teoria marxista do direi­to, bem como a suficiência do marxismo para dar conta de ura objeto como o direito.

A retomada de epistemologias . dialéticas com um sentido de engajamento histórico muito pronunciado, propon­do um jusfilósofo, alem de observador, tambem ator relevante da ce na social, delineara um movimento constituído por pesquisadores aos quais chamaremos de os novos jusfilósofos brasileiros^^. Novos ju£ filósofos não porque são jovens cronologicamente,, senão porque , tambem o sendo, muitas vezes, assumem outra relação entre o saber e o fenômeno jurídico. Em que consiste essa relação ? — é o que tentaremos descobrir a seguir, após dialogarmos um pouco com as colocações da crítica marx:ista do direito, aquela por nós caracte­rizada como crítica duplicada.

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2 ' 1 • â crítica duplicada do direito

0 que nos interessa ver neste momento,não ê a crítica que o marócismo formula ao direito, ou seja, ãs rela ções jurídicas que ao nível das praticas sociais concretas se esta belecem heteronomamente entre sujeitos de direito, mas sim a crítj ca que essa filosofia formula ao saber jurídico dominante (que mo^ tra as relações jurídicas deste modo e não de outro, tentando des­vendar as razões pelas.quais isso ocorre). Ficamos, pois, na esfe­

ra episteraologica; antes de mais nada, tentaremos localizar o lu­gar a partir do qual o marxismo mais recente critica o direito com petente.

Referimo-nos a um marxismo crítico que sedistingue, por suas colocações teóricas bem como ao nível de suapráxis, tanto do marxisino dos fundadores Marx e Engels, como domarxismo soviético, este desenvolvido na esteira das contribuiçõesteóricas de Lênin e Trotski mais fundamentalmente, alem de Stálin,

1 2Kruschcv e outros . 0 materialisnio renovado seria, neste caso , aquela filosofia que soma ãs contribuições marxianas e leninistas, os deslocamentos propostos por Mao, Gramsci ou Althusser. Destes, faremos menção apenas ã vertente Althusseriana, por pensarmos, e esta e nossa hipótese, que este autor sintetiza uma epistemologia que, coincidindo, de modo geral, com o estatuto epistêmico das ciências contemporâneas, estará presente, mais tarde, nas obras de Miaille e Poulantzas, estes mais ligados ã problemática jurídica , pois, objetivam construir uma ciência crítica e marxista do direi­to; autores com trânsito regular nos textos filosófico - jurídicos mais recentes no Brasil.

0 projeto althusseriano ê um projeto poli tico e histórico e teórico e, nesta linha, notada e inevitavelmen­te, epistemológico. Em síntese, "trata-se de dar ao marxismo a fi­losofia que ele merece", ou seja, a fundamentação epistêmica de que ele necessita. 0 que implica rever a ciência criada por Marx . 0 projeto ê ambicioso e, tanto política como epistemològicamente , compreensível em face do momento em que se delineia; — a passagem de um tempo obscuro e negro para outro mais límpido e libertário . Ou seja, os primeiros escritos de Althusser, datados de 1965 — "Pour Marx" e "Lire le Capital" — se inserem num momento de sur - preendente criatividade e indefinição para o marxismo. São textos que testemunham, depois do XX Congresso do Partido Comunista da Uniâo Soviética — P.C.U.S. — em fevereiro de 1956, a passagem de uma teorização ortodoxamente pauperizada para uma multiplicida­de de retomadas teóricas, como o humanismo sartreano e as contri - buições do próprio Althusser.

0 momento, portanto, não era propício pa ra, apenas, repensar e criticar "aquele" marxismo soviético e sta-

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linista, senão que tarefa mais extenuante se impunha, qual seja a reconstrução, desta vez a nível teorico, do materialismo. 0 econo- micismo e o determinismo mecânicos da era stalinista deveriam ce der passagem para instância cognoscitiva que, antes de mais nada , estabelecesse condições de possibilidade para as explicações mar - xistas. Nesse sentido, tentando fugir do dogmatismo típico da fase precedente, Althusser trabalhara no sentido de reconquistar a cien tificidade do marxismo, labor que se converte "numa preocupação qua se obsessiva"^^. Para tanto, dialogara com a filosofia das ciên cias contemporânea, o que lhe possibilita tomar de empréstimo a] guns conceitos de suma importância , tanto para suas teorizações como para o marxismo em geral. Isto o aproximara, de alguma manei­ra, e longe das concepções de mundo que os apartam, das epistemolo gias das ciências humanas atuais. Isso será suficiente para marcá- lo, como teoricista (exagerado apego ãs construções teóricas em d£ trimento da práxis, e subordinando esta, em última instância, aque la) .

Para Althusser o marxismo é uma ciência re volucionária, não porque se mostre como um dos põlos antítéticos da dicotomia ciência proletária/ciência burguesa mas, ao contrário, porque tendo o meçmo estatuto de cientificidade das demais ciên­cias , coloca seu dispositivo conceptual a serviço da revolução ( o que faz estando em relação prática cora ela) * . Eis porque podemos sugerir, hipoteticamente, que a diferença primeira entre as teo - rias críticas marxistas e as não marxistas reside no fato de que enquanto as primeiras falam em nome da ciência, da verdade e da re volução, as segundas fazem-no apenas em nome da ciência, da verda­de e, eventualmente, da justiça social: — "a revolução ê privile­gio marxista, mas a ciência não Por ciência Althusser enten­de "uma prática específica que leva ã apropriação cognoscitiva do real ou ã produção de conhecimentos. Como em toda prática, há nela um trabalho de transformação que se exerce sobre uma matêria-prima teórica (conceitos, representações, instituições, etc.) que, de­pois de trabalhada com os meios de produção teoricos corresponden­tes , produz um objeto teõrico ou 'objeto de conhecimento'"^^.

Vejamos o que o pensamento althusseriano considera importante para a constituição de uma prática teórica científica. Para tanto, sintetizemos esse pensamento (em relação a

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constituição do materialismo) em alguns itens: (i) oposição ciên - cia/ideologia, denunciando preocupação com o corte epistemológico;(ii) autonomia da teoria, ainda que relativa, em relação ã prãxis;(iii) descontinuidade histórica dos saberes, e, (iv) construção do objeto, evidenciando a aceitação da divisão objeto real/objeto de conhecimento.

Antes de procurarmos o sentido dos itens, evidenciemos a vinculação desses conceitos com a ciência sem mais. listus colocuçõos, profundamento influunciadas p«ltt opistemologia contemporânea, notadamente a de Bachelard, estarão presentes em boa parte das formulações das ciências humanas. Portanto, o marxi£ mo se distinguira das ciências comuns mais pelo adjetivo "revolu - cionãria" que acompanha o substantivo ciência, do que por uma colo ração ideológica peculiar e definida, como entendia o stalinismo . A preocupação althusseriana, presente mais tarde, embora não subs­tancialmente, no Poulantzas de "Marx y el Derecho Moderno" e no Miaille de "Uma Introdução Crítica ao Direito", exceptualizando-se o desvio teoricista do qual falaremos mais tarde, parece jã estar presente no velho Marx. De fato, tendo Marx vivido num sêculo con­taminado pela preocupação cientificista, e tendo sido contemporã - neo tanto do naturalismo quanto do historicismo epistemológicos , vertentes preeminentes nas construções discursivas de então, fez - se um dos construtores das ciências do homem. Tentado a fundamen - tar o materialismo como ciência, critica as ciências meramente e£ peculativas, compreensivas ou explicativas, típicas do idealismo e empirismo de então, favorecendo a constituirão de um saber maiá: preocupado em transformar o mundo do que, propriamente, em conhe - cê-lo ou interpretâ-lo^^. Uma ciência aplicada aos homens, ciên - cia do diagnóstico da condição humana, da qual a prâxis necessi­ta para se corrigir permanentemente em busca dos "processos revolu

17 ~cionarios de libertação do homem" .

Talvez pelas características culturais da êpoca e lugares onde Marx viveu, percebe-se em sua obra uma luta no sentido de consolidar a legitimidade e a dignidade do matéria - lismo enquanto ciência. E nele, porque a unidade teoria/prãxis e - indissolúvel e aquela ê, em última instância, lima auto-teorização desta, 0 pensamento, enquanto trabalho teórico, deve auto-superar- se permanentemente, captando a historicidade do movimento revolu -

cionârio, através da retificação incessante de seus termos e ex” pressões conceptuais. As retificações não se dão enquanto démarches puramente teóricas mas, relativamente ao movimento concreto da hi^ tõria, aparecem como ruturas e deslocamentos teoricos necessários para seu acompanhamento. Estes pontos são, não esquecidos, mas de£1 Qprivilegiados pelo Althusser teoricista , desvio corrigido, mais tarde, numa segunda fase de sua filosofia, onde tenta rever posi - ções ratificando a unidade teoria/prâxis como essencial ao marxis­mo .

A preocupação em demonstrar o rigor e a dignidade do pensamento é comum a todas as ciências; entretanto Al thusser radicalizará essa tendência no mamento em que instrumenta­lizar o materialismo com um codigo justificador mais ou menos co­mum ãs demais ciências do homem contemporâneas. Disso decorrerá a postulação da autonomia da teoria, ou seja, da prática teórica em relação ã prática política, aparecendo uma linguagem eminentemente teórica e racionalista. Segundo esta, o muro que separa o conheci­mento científico do pré-científico ou ideolõgico será, como em Ba­chelard, o corte epistemologico. A partir deste conceito uma série de outros emergirão. 0 corte, como o proprio nome indica, é uma ru tura substancialmente teórica. Demarca o terreno de duas problemá­ticas relativamente homogêneas (porque são teóricas) por um lado , e radicalmente opostas por outro, já que são zonas tomadas por es­truturas discursivas diferentes. A problemática ideológica, se opõe outra, científica.

0 marxismo althusseriano desautoriza in­terpretação que caracterize o desenvolvimento do saber segundo um progresso contínuo da razão. 0 que precisa ficar claro é a descon- tinuidade histórica, a qual mostra que o progresso científico se dá de modo diferente, segundo cortes conceituais. Isso evidencia outra face do conhecimento em Althusser, qual seja a provisorieda­de do pensamento, dado a impossibilidade de o objeto real sofrer apreensão integral. 0 conhecimento do objeto somente é possível por intermédio — pela mediação — r do pensamento que constitui, para tanto, um objeto de conhecimento. Este difere do objeto real pois é a face teórica que tenta apreender aquele. Outra característica da filosofia althusseriana é a definição do objeto da ciência como objeto construído.

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Como dissemos, estes pontos, mais tarde , passaram por revisões; ao primado da teoria sobre a prâxis Althus­ser tentou restabelecer a correlação entre ambas, redefinindo a teoria como auto-teorização da prâxis. Impõe-se portanto a revisão dos conceitos atinentes ã pratica teórica, notadamente do conceito fundamental, qual seja, o relativo ao corte epistemologico. Entre­tanto, se esse pensador renuncia ao projeto de autonomização da ciência, captando o corte como, tambem, um acontecimento historico -social, jamais deixara de chamâ-lo de epistemologico. Isso suge - re, como denuncia Sanchez Vãsquez, algum resquício de . teoricismo permaneceu em seu discurso.

De uma maneira ou de outra, e mesmo pas -sando pelo crivo de algumas elaborações críticas, a teoria althus-

19seriana estara presente nos trabalhos de Poulantzas e Miaille.0 universo de Poulantzas ê o das teoriza­

ções marxistas sobre o direito, e sua análise, nos textos estuda -dos por nos, se caracteriza por este aspecto. Diferente portanto

■ 2 0do universo de Miaille o qual se caracteriza pelo espaço das for mulações dos próprios juristas contrastadas com o pensamento mar -xista. Universos onde, como dissemos, estarão presentes as concep^

21 - - tualizaçoes althuáserianas , que aceitam a pratica teórica comodotada de certa autonomia relativa.

0 tipo de relacionamento, referido entre o marxismo e a ciência do direito identifica, grosso modo, um código de cientificidade aceito tambem pelos novos juristas brasileiros . Há neste caso, entre estas duas correntes,,certa coincidência a n^ vel epistemológico.

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2.2. a crítica reduplicada do direito

Importante deixar claro, mais uma vez,que pela expressão novos jusfilósofos não queremos designar um movimen to orgânico de redefinição do jurídico. Porque se o é, isto ocor­re apenas acidentalmente. Em verdade não há uma escola teórica ho mogênea e organizada para revisar o direito. 0 que existe ê certa confluência de preocupações que se fazem notar a partir da análi-í se de uma produção discursiva heterogênea, a qual, de modo geral ,

guarda alguns pontos nodais constantes ; estes pontos sugerem a existência de renovado tipo de olhar perceptivo: — eis o frágil toque qualitativo que nos autoriza falar em nova jusfilosofia. Es­sa busca embrionária, mas todavia corajosa, de reconstrução teóri­ca evidencia outro momento para o direito, a partir do qual a dog­mática jurídica passa pelo crivo de elaborações mais rigorosas. E^ tas elaborações, em geral, tendem a encará-la como manifestação ju rídico-analítica ideologicamente comprometida; disciplina que não passando de construção a-científica, necessita de üm corte favore­cedor da formação do saber jurídico crítico este sim dotado de cientificidade.

Os caminhos percorridos para concluir pela insuficiência teórica dos discursos jurídicos tradicionais, são

2 2os mais diversos. Elementos conceituais das disciplinas do homemsão chamados e absorvidos; essa assunção consciente e necessária

23da interdisciplinariedade pretende quebrar dois mitos que con sistem em verdadeiros obstáculos ã retomada progressista do direi­to. Referimo-nos ao mito da separação dos saberes, notadamente da autonomia da ciência jurídica, o qual conduz ã proclamação do esp£ cialista como único conhecedor competente do jurídico^^. Este mi­to acaba por defender a utilização, pelo processo cognoscitivo, de métodos particularizados era face de presuraível especificidade do fenômeno jurídico; formulação insubsistente quando confrontada com a demonstração de que a ciência deve ser analisada não era função do método que o pesquisador utiliza — e este já é o segundo dos mitos referidos — senão que em face dos resultados teóricos que apresenta, das questões que inventaria e inaugura, e da articula - ção conceituai desenvolvida. Para o seu trabalho, pode o cientistase utilizar dos mais variados métodos; o que conta é o resultado

- 25final, ou seja a solidez teórica de sua construção conceituai . Acientificidade da teoria jurídica não deve ser julgada antecipada­mente em face do método do qual se vale o jurista, como se existis^ se um método — este ou aquele — único para fazer ciência; deve ser avaliada relativamente ao que ela de modo sólido apresenta co­mo resultado de investigação. Isto evidencia a insuficiência daque la segunda manifestação mitológica.

A crítica reduplicada do direito, mostran do-se ora como teoria crítico-dialética do fenômeno jurídico, ora

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como teoria crítica do discurso jurídico, mani£esta-se como conjun to de enunciados que, retomando o direito quer enquanto ^fenômeno real e observável, quer enquanto formação discursiva particulariza da, se propõe a constituir uma verdadeira ciência do direito, ou seja, uma ciência crítica desse objeto. Esta não satisfeita em re visar criticamente as teorizações normativistas ou sociologistas tentará compreender o direito integralmente. Não se satisfaz com elaborações teóricas setoriais, senão quando, entendidas como pas­so preliminar para a compreensão totalizadora.

Entretanto, nem todos os novos jusfilõso-fos pensam do mesmo modo; outras linhas teóricas vão-se Ijabrindo .Afinal, a nova crítica do direito, reafirmamos, não constitui mov^mento homogêneo e integrado; antes ê "um conjunto de vozes disso -nantes que, sem constituir-se, ainda, em sistema de categorias ,propõe um conglomerado de enunciações apto a produzir um conheci -mento do direito, capaz de fornecer as bases para um questionamen-

2 5 -to social radical" . Não ê um coro a cantar em vozes tonais e era uníssono a renovação do direito; antes deve-se entendê-la como um corpo de canções nascidas a partir de lugares e pólos nimoleculares pouco próximos, mas como um mesmo objetivo. Eis porque alguns reto mam a história, oy a sociologia, e outros a semiologia e mesmo a epistemologia, a história das ciências e arqueologia ou genealogia foucaultianas como fornecedores de elementos conceituais para a re visão crítica do direito institucionalizado. Uma preocupação comum os anima, aproximando-os epistemologicamente: — estabelecer, con­creta e positivamente, a cientificidade de um saber interrogante , crítico e questionador. E isso somente será possível através da de núncia, como ideológica, da ciência do direito, o que, em contra - partida, exige uma decidida recusa de dogmas. Só então restará ábff to caminho para uma teoria crítica do direito. Esta retomará — co mo Althusser no marxismo; e este ê um ponto que, em termos gerais, une os novos jusfilósofos tanto com o marxismo crítico como com a filosofia das ciências do homem contemporânea — a epistemolo - gia legada por Bachelard, Canguilhem e Popper, como também a fou - caultiana, além de outras.

Para além das dissidências interiores ao pensamento crítico, se descortina uma relativa identidade que se traduzindo pelos seguintes propósitos comuns: (i) denúncia ideoló-

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gica, (ii) recusa do dogma e (iii) reconstrução da ciência jurídi­ca, demonstra a utilização de signos paradigmáticos de cientifici- dade semelhantes.

Persiste a antinomia ciência/ideologia :— a ciência se constitui com uma fratura inauguradora de problema tica científica distanciada qualitativamente da própria do discur­so ideológico. Uma fratura que se manifesta como um salto qualita­tivo sobre os obstãculos epistêmicos que impediam o avanço do co nhccimento crítico.

Essa filosofia faz-se presente em textos27 28 29 -de autores como Coelho , Warat e Agostinho Marques Neto , alêm

de outros. Parece ficar evidenciado o propósito de questionar a ciência jurídica dogmática, esboçado com a procura de outra ciên - cia do direito. Dã-se continuidade a uma tradição que vem desde o historicismo, qual seja a de justificar a dignidade teórica da ati vidade do pesquisador do direito. Parece que a possibilidade de uma ciência jurídica ê fato posto e necessário e que, para concre- tizã-la, impõe-se antes denunciar o caráter ideológico das formula ções dogmâtico-jurídicas. Cremos que aqui cabe um senão: — em nenhum momento o pensamento crítico : questionou a possibilidade cer ta do acesso da ciência do direito ao estatuto científico. Ou se­ja, era nenhum momento da racionalidade crítica colocou em diávida o caráter científico da disciplina jurídica, enquanto ciência huma na; ao contrário, essa qualificação sempre se mostrou como fora de questionamento.

Sobre isso discutiremos no item subseqüên te, para o que convocaremos, desde já, a presença do pensamento de Foucault para nos auxiliar nas reflexões ali provocadas^®.

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3. 0 JURÍDICO E 0 SOCIAL ENQUANTO SABERES

, Como pode ser científico um saber ante rior ã própria ciência ? — E, ainda, qual a necessidade dessa pretensa cientificidade ? — São questões que não podem ser re£

pondidas com facilidade; entretanto, formularemos algumas hipote - ses as quais, somente, aparecerão apos inserirmos no texto uma úl­tima indagação: — se as disciplinas do homem se constituiram , deslig^ndoHse da filosofia, somente apos o nascimento do homem enquanto conceito e a priori histórico necessário (a priori que se situa '*ao mesmo tempo no fundamento de todas as positividades e e£'tá presente, de uma maneira que não se pode sequer dizer privile -

3 2giada, no elemento das coisas empíricas*' ), de que modo poderemos explicar a emergência de uma teorização que, anterior ao próprio nascimento do homem e, portanto, anterior ao próprio nascimento das ciências humanas, se define como ciência humana ? Não possuímos a chave mágica para o desvendar desse enigma. Mas pensemos um pouco nessas questões as quais, alêm de fascinantes, podem descortinari» vo campo de pesquisa para a filosofia do direito.

Negando-se a admitir a cientificidade dé teorias como as nascidas sob o colorido dogmático culturalista, ou outras nessa linha, o pensamento crítico busca construir saber de modo análogo ãs ciências do homem, abandonando, portanto, as formu lações jurídica dominantes. Isto evidencia concepção segundo a qual a possibilidade do acesso das disciplinas humanas ao código científico ê inquestionável. Entretanto , segundo Foucault, e£ tas não são ciências, mas "outras configurações do saber"^^. Vèja mos o que isto pode significar.

Talvez se possa afirmar que a ciência mo derna, com Descartes, nasceu pela rejeição do seu sujeito. Ou se ja, o homem, fundamento e condição do saber, precisou destituir-se de sua humanidade, para conhecer. 0 homem somente existiria porque pensava, e somente pensava porque não existia ; referimo-nos ãquele homem que, como sujeito cognoscente, para pensar, deveria antes , cartesianamente, despojar-se das representações que tinha de si e do mundo. Somente assim conseguiria organizar ura quadro de saberes constituidores de uma configuração de disciplinas aptas, como as figura geométricas, a representar o mundo. Entretanto nesse tempo o homem — não o homem real e fisiologicamente dotado de certa for ma e significado biológicos, mas o que se constituirá como objeto das ciências humanas — ainda não havia nascido. De fato, este so mente apareceu, não a partir ou em decorrência de, mas justamente com a era da positividade. E com ele surgirá no quadro epistemoló-

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gico da nova era uma outra configuração de saber, a qual se conven cionou chamar de ciência daquele objeto, ou seja, do homem. 0 que não ocorreria não tivesse havido, antes, uma certa fratura episte- mologica que segmentou em direções não idênticas a episteme contem porânea, condicionando os discursos formalizados e rigorosos, não necessariamente matematizados, e definindo condições próprias para o aparecimento das ciências da vida, da produção e da linguagem Isso, segundo um paradigma de cientificidade que, conforme ROúcault, constitui eixo epistemologico único, distinto do eixo das matemâtj^ cas e da física matematizada bem como do eixo dos saberes filosÕf^ COS que estudam o homem em sua finitude.

A partir das ciências empíricas da vida , da produção e da linguagem em contacto com a filosofia moderna e com a ciência da matemática (esta, em última análise, desenha a formalização dos discursos), nascerão as disciplinas humanas. Don­de tanto a nível dos discursos, como a nível do objeto cognoscente, terem estas ciências relação com as ciências empíricas, tanto de aproximação — de onde decorre a absorção de elementos . concei­tuais — como de distância (com o que parece ficar explicada a es­pecificidade de suas démarches caraceterizadas como intermediárias entre as démarche? filosoficas e as empírico-científicas).

É possível dizer que "as ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constituiu na-cultura ociden -tal ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que há a sa

34 ”ber" . Acontecimento que se produziu, como dissemos, "numa redi_stribuição geral da episteme: quando, abandonando o espaço da representação, os seres vivos se alojaram na profundidade específica davida, as riquezas num surto progressivo de formas de produção, as

35palavras no devir das linguagens" . Entretanto, se com isso as ciências humanas viram-se na possibilidade de se constituirem, foi necessário outro deslocamento teõrico, a nível dos objetos dessas disciplinas, para elas poderem definitivamente esboçar configura - ção específica. Tal deslocamento ocorreu quando se definiu o espa­ço dessas ciências como aquele■designado pelo homem, este não en quanto realidade empírica, mas enquanto representação de si. Daí a pergunta: — se a economia tratando do trabalho e da produção; e a linguagem da fala, sua gênese, constituição e fraturas, mostram-se como ciências do homem, porque não se situam entre as disciplinas

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humans? Ao que a arqueologia responderia que, definindo suas anã - lises sobre o homem como ser concreto e natural, como vida, como linguagem e produção, e não sobre a representação que os homens em vida fazem dessa realidade, elas não poderiam, em verdade, definir -se como ciências humanas. Estas trabalhara sobre o homem enquan­to "reduplicação empírico-transcendental"^^, qualidade que se man^ festa no proprio objeto desses saberes, pois estes não o vendo en quanto empiricidade, localizamo-no ao nível da sua representação , repetindo, em outra esfera, o discurso filosófico da finitude huma na.

Transparece a dificuldade de se confirmar a cientificidade desses saberes. Tomemos apenas ura exemplo. Quere mos nos referir ã possibilidade dessas disciplinas sofrerem um cor te epistemológico que, inaugurando problemática definida, proclame a cientificidade do discurso sobre o homem, impedindo, absolutamen te, qualquer retorno, dialogo ou comunicação com a problemática su perada. Isso, em relação ãs ciências humanas ê praticamente irapo sível^^. 0 que afirmamos de certo modo contrariados, principalmen­te quando nos deparamos com as tentativas de pensadores como Bor -

38dieu, Passeron e Chamboredon , Miaille, Poulantzas, Althusser e dos novos jusfilósofos brasileiros, os «quais se dedicam radicalmen te a demonstrar essa possibilidade. Em verdade a problemática das ciências humanas, ainda que dotada de dignidade teórica que a auto riza falar de lugar não ideológico e não filoisófico, parece se dar sempre em continuidade a uma problemática anterior, identificáda com a representação que os homens, em sociedade, produzem de si mesmos, de sua vida, de seu trabalho, de sua linguagem. Alêm do mais, como o objeto desses saberes não ê o homem concreto, fisioló gico e animal, a despeito de produtivo e falante, mas o homem re - presentado por si e pelos seus, fica tambêra dificultado o acesso a objetividade própria ãs demais ciências. Mas isso, de qualquer mo-' do, se e ura fator a ser considerado, não impediria, definitivamen­te, o acesso das "humanidades" ã condição de cientificidade. Por - que, segundo Foucault, o que não permite este acesso, não ê a par­ticularidade quase inacessível de seu objeto, mas .a própria confi­guração desses saberes enquanto enraizados na episteme contemporâ­nea. Então, jamais poderemos acusá-los de falsas ciências, porque absolutamente não são ciências, e não se pode ser falso de algo

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que não existe, ou do que não ê dado ser o verdadeiro.Lutando para definir seus estatutos epis-

temolôgicos, as disciplinas humanas elaborara novos discursos, fo gem de situações pardigmâticas postas para elaborar outras, tentan do se adaptar ao modelo das ciências naturais ou procurando cons - truir espaço proprio; tudo para justificar a diferença ou a seme­lhança desses saberes em relação aos conceitos e objetividade,mais exatos, de outros. Eis porque as ciências humanas vivem em crise epistemologica permanente, denunciando formulações, as quais de acordo com seus padrões ou modelos, poder sofrer a pecha de "ideo- logicas", "ultrapassadas", "juridicistas" ou "psicologistas", etc. A cada novo deslocamento teõrico, um novo número de adjetivos qua lificarâ as démarches anteriores, e o que não passa, muitas vezes, de mudança de padrão discursivo é tratado como se fora um corte epistemologico. Ora, as ciências humanas, e entre elas a do direi to, estão buscando lugar onde, paradoxalmente, jamais chegarão. Ou sim ? — Eis uma pergunta que, além de nos remeter a outras mais, instaura certo ar de relativisme em nosso texto. É que não quere - mos falar como Gabriel Garcia Marquez o qual em "Cem Anos de Soli­dão", insolitamente define coisas "pára sempre". Não negaremos a possibilidade de,>um dia, as disciplinas humanas constituírem ciên cias. Mas nesse dia, certamente a era da positividade terâ passado, porque na episteme atual, isso não será possível. Esta impõe uma positividade singular para as disciplinas humanas, separando-as dos discursos científicos propriamente ditos ou dos discursos filosõfi^ COS. Isto não quer significar que aqueles saberes ficaram a mercê das opiniões, reduzindo-se a mera doxologia tão incerta quanto inexoravelmente, curta e sectária. Ao contrário, o discurso sobre o homem, enquanto saber, é dotado de lugar prõprio no quadro gené­rico das epistemologias, possuindo características definidas pela prõpria episteme.

0 lugar epistemologico das disciplinas hu manas. Foucault o situa a partir do desenvolvimento do domínio epi^ temologico contemporâneo como um espaço tridimensional. Este trie- dro dos saberes, analisado exaustivamente no capítulo X de "As Pa­lavras e as Coisas", é constituído por trâs eixos os quais partin­do de mesmo ponto, se distanciam formando o quadro em três dimen­sões que fixa os espaços volumosos relativos aos saberes. 0 primei^

• 59

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ro domínio seria o das ciências raatematicas e físicas; "prototipo39" . No segundo se situariam as ciencias emde toda cientificidade

píricas da vida, da produção e da linguagem. 0 terceiro constituiria o eixo da reflexão filosófica.

domínio

Estas dimensões entre si formam planos , em número de três; — "1’ o das matemáticas aplicadas, comum ao eixo da matemática e ao das três ciências da vida, da produção e da linguagem; 2* o da formalização do pensamento, comum ao eixo da mutcmática c ao da reflexão filosófica; 3’ o das ontologias regio­nais, comum ao eixo das ciências da vida, da produção e da lingua-

40 -gem" . Este triedro aparentemente exclui as ciências humanas, jaque não são encontrados em nenhum dos planos definidos pelos eixosreferidos entre si. Entretanto elas estão presentes, pois "ê noexercício destes saberes, mais exatamente no volume definido pelassuas três dimensões, que elas encontram o seu lugar. Esta situação(num sentido menor, mas, por outro lado, privilegiado) põe-as era

41relaçao com todas as outras formas de saber..."Uma representação gráfica facilitaria a

compreensão do triedro foucaultiano. Não a encontramos na obra do filósofo. Quem esboçou este desenho foi Japiassu, em quem nos so­corremos no momento. Ei-lo:

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As ciências humanas situam-se naquela es- pêcie de "nuvem de disciplinas representáveis" no interior do triedro. Elas não possuem, como a filosofia, a matemática e a físõ ca, ou as ciências da vida, da produção e da linguagem, um eixo epistêmico particular. Ao contrario, tomam, de empréstimo, modelos dos eixos constituídos. Neste sentido veremos que, grosso modo, a psicologia se desenvolve a partir dos conceitos elementares de fun ção e de norma, tomados a biologia; a sociologia nasce a partir dos conccitos de conflito e regras tomados de empréstimo ã economia ; e as ciências da literatura e cultura linguística constituem-se em função dos conceitos de sentido e sistema emprestados ã ciência da linguagem. E todas, ainda que mediatamente, comunicam-se com o ei­xo das ciências rigorosas, o qual, representando as ciências por excelência, manifesta certa influência em relação a formalização do pensamento^^.

E o saber jurídico ? — Assim como a hi_storia, a colocação da ciência do direito no triedro dos saberes é/dificultosa; deveria ocupar o mesmo espaço das demais ciências do homem. Ocorre que à historia, assim como o direito, pré- existiram a época da consolidação das disciplinas humanas. Não discutiremos a questão do saber historico, pois ultrapassa nossos propositos Quanto ã ciência do direito, ela não ocupa lugar único, imerso na nuvem epistemologica das ciências humanas (enquanto situadas no triedro retro-desenhado). Encontramo-la diluída, espalhada pelo campo do saber sobre o homem, tantas foram as formulações que qui­seram "fundâ-la" epistemologicamente. A sua problemática é ainda mais complexa quando sabemos que esse saber se relaciona com > uma pratica teórica anterior que condiciona sua possível vocação cien­tífica. Porque, se toda ciência, antes de mais nadá, deve concei - tuar seus objeto (leia-se construir), elaborando-o teoricamente — o que significa responder a questão o que é ? tal ou qual fenôme­no — , isto não acontece com o direito. Este vem assumindo particu laridade que pode condená-lo a morrer como mero saber instrumen - tal: — o direito, ao contrário da história, da sociologia e da psicologia, ê saber ao mesmo tempo que é prática social, e, a par­tir de sua positivação, prática social e discursiva institucional^ zada. Desde Kant a ciência do direito vem se situando num plano me ramente técnico. Segundo este autor, a investigação jurídica é di

vidida, quinhões distintos para a filosofia e a ciência jxarídicas. Àquela cabe estudar o quid iuris, ou seja, o que e o direito; ã esta cabe apontar o quid ius, o que ê de direito conforme a ordem vigente. A historia da ciência jurídica tem sido a historia da re­tomada dessa questão. Retomemo-la mais uma vez, ligando-a a polêmi^ ca traduzida pelo antagonismo entre modelos que tentam justificar a pratica teõrico-jurídica tradicional como científica em relação a outros que tentam fundar uma "verdadeira” ciência do direito. 0 primeiro caso transparece como discursos filosóficos reproduto - res e instrumentalizadores do raciocínio dogmático do jurista. tas formulações devem ser enquadradas no eixo próprio da reflexão filosófica, enquanto se mostram como discurso filosófico; no caso de se apresentarem como discurso tecnológico seu lugar se limitara ao espaço ocupado pela nuvem que representa a localização das ciên cias humanas; este ê o caso do pensamento chamado de "juridicista" ou seja, da dogmática. Quanto ã segunda hipótese, esta ê mais pre­cisamente a dos vários "sociologismos" jurídicos, do marxismo crí­tico e da crítica do direito elaborada pelos novos jusfilósofos bra sileiros.

Afirmamos que as*ciências humanas forma - ram-se a partir 4a importação de cânones e conceitos, em geral , próprios ao eixo das ciências da vida, da produção e da linguagem. Assim, se estes três pares: função e norma ; conflito e regra; e significação e sistema se referem ãs relações entre biologia/psico logia, economia/sociologia e linguística/analise das literaturas , eles não se esgotam aí. Porque, "todos os conceitos são retomados no voliome comum das ciências humanas, valem em cada uma das regiões que esse volume envolve: daí se segue que ê difícil muitas vezes fixar os limites, não só entre os objetos, mas tambem entre os mé­todos específicos da psicologia, da sociologia, da analise das li-

44 -•teraruas e mitos" . Dado a possibilidade de múltiplas retomadasconceituais, a ciência do direito não possui localização unica; ao contrario, encontra-se pulverizada, distribuída, diluída, pela nu vem epistemológica do triedro dos sabers. As formulações "sociolo- gistas" se constituem a partir do empréstimo de conceitos forneci­dos pela biologia (função, órgão) e pela linguística (sentido, si£ tema) e, as marxistas e as críticas dos novos jusfilósofos fica - rão devendo aos padrões oferecidos pela econsania (conflitos, re-*

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gras). Evidente que tomam, ainda, outros conceitos, de outras dis­ciplinas conciliando-os corn a filosofia das ciências contemporânea (no caso dos últimos). As importações conceptuais são não apenas comuns, mas condição de possibilidade das ciências htunanas, bem co mo da ciência jurídica.

Resta irrelevante provar a cientificidade do discurso jurídico. Seu terreno epistemologico o situa como disci­plina não científica, embora dotada de positividade. Não ê mera ideologia, ou opinião. É um saber, formalizado segundo configura - ção prõpria.

Nas disciplinas jurídicas ê difícil afirmar uma historia que se identifique com certa historia do progresso da razão. Tendo se constituído em função de eixos diversos, os deslo­camentos teoricos que efetivam, antes de configurarem saltos quali tativos, podem manifestar acesso a conceitos e modelos de outros eixos epistemolõgicos; uma passagem, por exemplo, de um contato aproximativo com a biologia; para um contato mais chegado à econo­mia, ou ã linguística. Como se vê, esses deslocamentos podem não passar de mera mudança de terreno teõrico; o que não significa , absolutamente, a ocorrência de ruturas que facilitem o acesso a uma racionalidade'sempre maior.

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N O T A S

(1) - V. Ferraz Jr., Tercio Sampaio. "Função Social ..." op. cit.(2) - Sobre a positivação do direito, Tercio ("Função Social da ..." op. cit.

p.83) assim se manifesta: o fenomeno da positivação "e caracterizado pela libertação que sofre o Direito de parâmetros imutáveis e dura - douros, de premissas materialmente invariáveis, apresentando uma ten dencia a um certo formalismo e institucionalização da mudança e da adaptação através de procedimentos cambiáveis, conforme as diferen - tes situações. A positivação, portanto, tanto ressalta a importância na constituição do direito do chamado direito posto, positivado por uma decisão, quanto nao pode esconder a presença do ser humano como

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responsável pela própria positivação do direito".(3) -Warat, L. Alberto. "Sobre la dogmática jxixidica". Tlorianopolis. lEd .

TJfsc. Seq-Uência n9 02, 1980, p. 33 e segs.(4) - Idem p. 34(5) -Warat, L. Alberto. "Mitos e Teorias da Interpretação da Lei". P.Alegre,

Síntese, 1979, Cap. IV, p. 93.(6) - Taria, Jose Eduardo e Menge, Claudia Lima, op. cit. Rio, Dados n9 21 ,

1979, p. 105.(7) - Segundo Miguel Reale ("V. "Fundamentos do Direito", op. cit. p. 1,82) a

concepção culturalista também repercutiu na Escola do Recife, notada mente apos Tobias Barreto.Entretanto, se manifestou ainda apegado aos dados empíricos, com o que a ciência jurídica identificava-se com uma aociologia ou etnologia jurídicas.

(8) - Idem. "0 Direito como Experiência", op. cit. p. 124. 0 autor faz remis­são a Lessa. "Estudos de Filosofia do Direito".S.P. 1911, p. 46 e segs.

(9) - Realey Miguel. "0 Direito como ..." op. cit. p. 145.(10) - "Os modelos jurídicos são (...) modelagens práticas da experiência, for

ma de viver concreto dos homens, podendo ser vistas como estruturas normativas de fatos segundo valores, instaurados em virtude de xan ato concomitante ^ escolha e prescrição" ("Lições Preliminares do DireJ^ to, op. cit. p. 165. Sobre isso ver ainda: Reale, Miguel. "0 Direito como ..." op. cit. cap. IV. Também Coelho, L. Fetnando. "Introdução ã Crítica do Direito", op. cit.

(11) - Como ficará claro no texto, os novos jusfilósofos brasileiros não com­põem algo como um movimento organizado e homogêneo. Essa expressão serve apenas para designar novo tipo de otica sobre o direito; esta a características que os aproxima. Sua identidade se manifesta não tanto pelo que dizem,maa porque-dizem, razão que se traduzo.pelo propõ sito único de repensar, criticamente, o direito. Citaremos alguns n^ mes que atualmente, no Brasil, se enquadram nessa linha. Antes res - saltemos o trabalho de algumas revista jurídicas nacionais nesse sen tido. E o caso da Revista Seqüência do curso de mestrado em direito da Ufsc; da revista Contradogmáticas da Almed; e da revista Direito £ Avesso (Boletim da nova Escola Jurídica Brasileira) criada por um grupo de jovens pesquisadores de Brasília, as quais muito têm contrj^ buído para o desenvolvimento da teorização crítica. Vejamos alguns nomes que se ligam, de -um modo ou de ou^ro, a esse movimento: — Luis Alberto Warat ("Mitos e teorias na Interpretação da Lei". "EnsJ.

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no e Saber Jurídico”. "Reencontro com Kelsen"); Luiz Fernando Coelho ("Logica Jurídica e Interpretação das Leis". "Introdução ã Crítica do Direito"); Roberto Lyra Filho ("Para xnn direito sem dogmas". "Pro blemas Atuais do Ensino Jurídico". "Razões de Defesa do Direito". "0 que ë Direito". "Direito do Capital e Direito do Trabalho"); Rosa liaria Cardoso da Cunha ("Carater Retórico do Princípio da Legalida­de". "Ensino e Saber Jurídico"), Roberto A.R. Aguiar ("Direito, Po der e Opressão'.' "0 que ê Justiça"); José Geraldo de Souza Jr. ("Para uma Crítica da Eficãcia do Direito"), Agostinho Ràmalho Marques Ne­to ("Ciência do Direito: conceito, objeto e método"). Tarso Fernan­do Genro ("Introdução Crítica ao Direito do Trabalho") e Juarez Cir^ no dos Santos ("A Criminologia Radical") estes dois últimos dialog^ do mais intensamente com o marxismo, e Jose Maria Gomez ("Elementos para uma Crítica ã Concepção Juridicista do Estado". "Estado e Dire^ to — Algumas observações".V. Revistas Seqüência e E«£onomia & Desen­volvimento) . Dentro desse movimento podemos citar ainda, as dissert^ ções de mestrado de Edmundo Lima de Arruda Junior ("A Função Social das Escolas de Direito; a (re) Produção do Saber em San:.Tiago Ban - tas"); Leonel Severo Rocha ("As Dimensões de Legitimação-Dominação do Discurso Jurídico sobre o Poder Soberano"); Gisele Guimarães Cit- tadino ("A Legitimação Ideológica da Regressão Estatal"); Jose Afon so do Nascimento ("Crítica da Concepção Juridicista de Estado"),além de outras, todas apresentadas no Curso de Mestrado em Direito 'da Ufsc. A enumeração é apenas exemplificativa....

(12) - Essa Classificação, tomamo-la de empréstimo a Schwartzenberg, Roger-Ge-rard. "Sociologia Política: Elementos de Ciência Política". Trad., s ã o Paulo, Difel, 1979, p. 71.

(13) - Vasquez, Adolfo Sánchez. "Ciência e Revolução". 0 marxismo de Althusser.Trad. Rio. Civilização Brasileira. 1980 p. 17.

(14) - Idem. pp. 158-159.(15) - Ib.Id. p. 21.(16) - Fazemos menção ã undécima tese marxiana sobre Fuerbach.(17) - Japiassu, Hilton. "Nascimento, e ..." op. cit. p. 78(18) - A fase teoricista de Althusser corresponde aos seus primeiros escritos,

notadamente "Pour Marx" e "Lire le Capital". A segunda fase, tomada por analises auto-crítica e auto-corretivas se di a partir de 1967 , com os trabalhos: "Curso de Filosofia para Cientistas" (1967), "Le - nin e a Filosofia" (1968), "Resposta a Lewis" (1973) e " Elementos - de Autocrítica" (1979). V.Vasquez, Adáólfo Sãnchez. op. cit. p. 05.

(19) - Nao nos referimos ao Poulantzas de "Nature des Choses et Droit", mas aode "Hegemonia y Dominacion em el Estado Modemo”, onde aparecem tex tos como "La Teoria Marxista dei Estado y dei Derecho y el Problema de la"Alternati-va" e **Marx y el Derecho Moderno".

(20) - Referimo-nos ao Miaille de "üma Introdução Crítica ao Direito", op.cit.(21) - Esses autores criticarão, a partir da renovação do marxismo ocorrida -

apos 1956, as. teorias jurídicas marxistas soviéticas elaboradas no período anterior ao início da desestalihização do marxismo. 0 perío­do referido congrega dois sub-períodos. 0 primeiro começa em , 1917 , com a revolução russa, e termina em 1938, ate a consolidação de Stalin no podex. Os principais jusfilósofos dessa época são STOUTCH KA, REISNER, PASHOUKANIS e KOROVINE. Ja, o segundo período, que se pròlonga até a morte de Stalin em 1953, resistindo até 1956 quando ocorre o XX Congresso do PCUS (período ainda não concluído na URSS , mas jã no ocidente), tem como autores principais VYCHINSKY, STROGO - VITCH e KOJEUNIKOV. As críticas de Poulantzas e, depois, de Miaille, recairão sobre o que elés chamam de economicismo (Stoutchka e Pashou kanis) e voluntarismo (Reisner e Vychisnky). Sobre isso ver adiante. Capítulo IV. Sobre a produção jurídica na URSS, consultar Motta, Be­nedicto. "0 homem, a sociedade, o direito, em Marx". São Paulo. Ed. Rev. dos Tribunais. 1978 p. 92.

(22) - Neste caso fazemos menção ãs ciências do homem latu sensu, englobando ,por essa locução, tanto as ciências do homem em sentido estrito, co mo as ciências empíricas que constituem o eixo da vida, da produção e da linguagem do triedro dos saberes de Foucault (V.adiante). Este é o eixo epistemologico da biologia, da economia e da ciência da lin guagem.

(23) - Usamos esse significante não no sentido antropolõgico-estruturalista ,mas como "uma forma específica do ideológico no plano do discurso" . V. Warat, L. Alberto. "Mitos e Teorias na ..." op. cit. p. 127.

(24) - Esse mito foi exaustivamente estudado por Miaille, op. cit. p. 52.(25) - Marques Neto, Agostinho Ramalho. op. cit. p. 49(26) - Warat, L.Alberto. ".Saber Crítico e Senso Ccmum Teórico dos Juristas".

Florianópolis, Ed. Ufsc. Seqüência n9 05 p. 48.(27) - "Lógica Jurídica e..." op. cit. V. Caps. II e XI. Tb. Introdução ã Cr^

tica do Direito, op. cit.(28) - "Mitos e Teorias na ..." Tb. Ensino e Saber Jurídico. Obras citadas.(29) - "Ciência do Direito: conceito, objeto e método", op. cit. V. Caps. II e

III.

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(30) - Ali daremos continuidade áo estudo do sàber jurídico conforme xima arxalise que tem se definido como a margem da épistémòlõgia do direito. Es tudo que embora se -mostre como, ate certo ponto, j-udicativo porque crítica, interroga e julga, não se utilizará desta prerrogativa para condenar a ciência do direito ã morte. Entretanto, se não o faz, e porque nao lhe cabe proferir qualquer sentença. Mas mesmo assim, po­derá considerar, e esta e mera hipótese, a possibilidade de tal deci sao. Neste caso, se a morte não fica estabelecida, de toda forma o seu fantasma há de se efetivar como questão necessária a qualquer f^ losofia da ciência jurídica. Ate porque, com a emergência da psican^ lise, um dos termos da relação cognoscitiva (sujeito, objeto, concej^ to) parece estar em estado agonico. Referimo-nos ao sujeito, o qual desde o cogito cartesiano tem reinado soberano sobre o saber ociden tal mas que, agora, sugere estar com seus dias contados. "Não meu , não meu £ quanto escrevo ..." diria Jernando Pessoa na linguagem po£ tica que sintetiza mil filosofias. Com o fim do eu consciente, com a descoberta alarmante da inconsciência pela psicanálise freudiana e das estruturas histõrico-epistêmicas por Foucault, o eu penso cede lugar para o pensa, ainda que este sy se efetive através de al - guêm. Ora, com a morte do com o fim do cogito, quem morre ê o s^ jeito, ou seja, o homem. Este ser, sujeito e objeto, ao um tempo , das ciências humanas. Com isso ê possível, profeticamente , vislum - brar-se no horizonte epistemológico a morte das ciências do homem , e a morte da ciência do direito. Não chegaremos a tanto.

(31) - Segundo Poucault. (cf. "As palavras e..." op. cit. p. 457), "De uma ma­neira mais geral, o homem, para as ciências humanas, não ê esse vivo que tem \nna forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase unica); ele ê esse vivo que, no interior da vida de que pertence inteiramente e pela qual ê atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais vive e a partir das quais possui essa estranha capacidade de poder ter da vida uma repr£ sentação justa".

(32) - Foucault, Michel. "As Palavras e as ..." op. cit. p. 447.(33) - Idem. p. 475(34) - Ib.Id. p. 445(35) - Ib.Id.(36) - Japiassu, Hilton. "Nascimento e ..." op. cit.(37) - Idem, p. 252.(38) - Cf. "Le Metier de sociologue". Paris. Mouton, Bordas, 1968.

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(39) - Japiassu, Hilton. "Nascimento e ..." op. cit. p. 209(40) - Idem. Tb. "Introdução ao Pensamento Epistemologico". op. cit. p. 114.(41) - ToucauIt, Michel. "As Palavras e..." op. cit. p. 451(42) - Japiassu, Hilton . "Introdução ..." op. cit. p. 115.(43) - Idem.(44) - ioucault, Michel. "As Palavras e ..." op. cit. p. 465.

SEGUNDA PARTE

0 DIREITO COMO POLÍTICA

CAPÍTULO III

DA LEI ^ FALA 0 DIREITO

1. 0 DIREITO REDUZIDO

A antinomia filosofia/ciência do direito tem sido ratificada permanentemente; uma aproximação entre seus ter mos parece ficar cada vez mais difícil. Eis a conseqüência desse tipo de separação: — não temos ainda um saber que possa explicar o direito em suas múltiplas determinações. Escrevemos estas linhas, então, a despeito ,de uma relativa orfandade teórica. Nesta esfera, abre-se espaço para as teorizações positivistas, as quais, em nome de um pretenso rigor, não se arriscam a considerar outros ângulos que não aqueles expressamente delineados pelo ordenamento juridi - co. Ainda que , eventualmente, façam menção a valores — sempre e£ táticos e inquestionáveis, como ordem, segurança e paz — ou ã hi£ tõria, em última analise, a norma ratificada pelo estado ê o que determina o campo de estudo do jurista. Sobre isso, e para desnu - dar o normativismo das teorias jurídicas dominantes, três exemplos bastam. Referimo-nos ao normativismo lõgico de Kelsen, ao egologi^ mo existencial de Cõssio e ao tridimensionalismo de Rèale, sobre os quais faremos breve digressão. Esta terã, apenas, o intuito de situâ-los, em traços largos, como autores vinculados a certo pensa mento jurídico dominante no mundo ocidental contemporâneo.

0 formalismo jurídico kelseniano assume importância inusitada quando percebemos o momento historico em que se manifesta. De fato, a "Teoria Pura do Direito" pode representar o ponto culminante da preocupação positivista no sentido de consti

tuir disciplina jurídica cientificamente depurada. Sabemos que de^ de o início da positivação do direito, com a ascenção burguesa ao poder, a tendência que o direito mostrava era a de fixar-se na ju­ridicidade imediatamente transparente: — os editos estatais. En tretanto, até então em razão da concepção monista de ciência ( fun dada numa epistemologia naturalista), o estudo do direito assumia, em busca de legitimidade metodológica, recurso na biologia, psico­logia, física, etc. Kelsen representa um corte; seu positivismo se rã normativista. Nesse sentido ele impõe uma metodologia rígida, a qual "constituirá a nova ciência do direito", apos a eliminação de elementos "estranhos". Neste caso, já o sabemos, postulando o prin cípio da pureza metódica, submeterá a temática do saber jurídico a uma dupla purificação. "A primeira ê uma purificação do aspecto f£ tico acaso ligado ao direito, entregando este aspecto ãs ciências causativas como a sociologia e a psicologia. A segunda expunge do direito o aspecto etico valorativo do ideal de justiça habitualmen te associado à idêia do direito. Este ultimo, pelo seu caráter emo cional e, pois, irracional e extracientífico, Kelsen o relega ã política, ã êtica e à filosofia da justiça"^.

0 objeto do saber jurídico era Kelsen ê , pois, o resíduo, o que resta da depuração metõdica. 0'direito fica reduzido á norma, ou seja, ao dever ser ; mas ao dever ser logico , porque o dever ser axiolõgico cabe ã filosofia da justiça (filoso­fia jurídica). Machado Neto lembra que, se Kelsen submete o domí - nio da jurisprudência ãs reduções metõdicas tirando daí o objeto de seu saber, em nenhum momento o autor demonstra a onticidade do jurídico. 0 que ë compreensível à medida em que não há nesse jusfi losofo uma ontologia, mas, antes, uma bem fundada epistemologia do direito. Mas, epistemologia segundo uma õtica formal, em decorrên­cia do que seu normativismo assume uma auto-suficiência e uraa auto

2nomia jamais alcançados pelo direito anteriormente .Não há porque se perguntar pelo conteúdo

da norma, ou pela relação desta com o momento sõcio-econômico; e£ tas questões extrapolam o domínio do campo jurídico. 0 que cabe ao jurista ê a análise da conexão entre as normas do ordenamento jur^ dico, remetendo umas ãs outras, conforme o nível de crescimento hie rárquico, onde as normas particulares são validadas em face de nor mas superiores, ate o ponto último representado pela norma funda -

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mental, esta configurando, apenas, uma hipótese logica de caráter3transcendental que valida todo o sistema normiativó .

A preocupação em conferir sistematicidaderigorosa segundo uma hierarquia entre as normas jurídicas estarápresente também em Cossio, o principal corifeu da Escola Egolôgicado direito. Neste caso, entretanto, a ontologização do direito s£râ construída apelando-se não ã redução purificadora kelseniana ,

4raas a teoria dos objetos de Heidegger .Para o egologismo, o direito ê ura objeto

cultural que tem existência (ê real), que está na experiência, e que, ao contrário dos objetos naturais, ê valioso positiva ou nega tivaraente^. Cossio formula entre os objetos culturais uma subdiv^ são: os objetos raundanais os quais têm como substrato o mundo da natureza constituindo o campo da arte e da técnica (estátua de már more por exemplo), diferindo dos objetos egologicos. Estes têm co mo elemento básico a própria vivência humana, traduzida na condu ta. É o campo da moral e do direito^. 0 fundamento do direito,por tanto, ê "a conduta que serve de substrato aos valores jurídicos ; não qualquer conduta, mas a conduta bilateral, aquela em que o fazer interfere com o proibir por parte de outrem; a conduta dita so

~ 7 “ciai ou em interferencia intersubjetiva" .Nota-se era Cossio um aparente distancia -

mento do forraalisrao normativista. Porem, por mais que tenha funda­mentado o direito na conduta humana intersubjetiva (quando a norma não assumindo, como era Kelsen, o caráter de essência jurídica, tem o sentido de mera condição para sua existência) , ainda assim sua escola não se liberta do positivismo. Entretanto ela ultrapassa o formalismo logico-normativista kelseniano. Já que o direito ê con duta humana, a norma jurídica será o meio pelo qual se o conhece . Esta, será estudada tanto em sua estrutura formal (o que acontecia em Kelsen) como em relação' ã conduta, determinando seu conteúdo. . Neste caso, a problemática do valor ê privilegiada, pois a conduta somente pode ser interpretada conceptualraente através de norma re­lacionada com um valor bilateral. Já se esboça aqui, ainda que de modo tênue, um tridimensionalisrao, o qual afirraando o caráter fáti co-axiologico-normativo do direito, não extrai as conseqüências que somente aparecerão com Reale.

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Miguel Reale ê o responsável pelo apareci^ mento de uma filosofia que encara o direito segundo a perspectiva oferecida por certa dimensionalidade triádica. A norma não mais a_s sume os contornos de um juízo logico, como em Kelsen, ou de uma me dida, uma condição para a medida do plano êtico da conduta, íc.omo em C5ssio. Em Reale, o saber jurídico continuara sendo um saber normativo, ligado ã normatividade do direito positivo. Entretanto, diferente do que acontecia em Kelsen, para quem o direito apenas estudava as normas (cabendo â sociologia os fatos e ã filosofia os valores), a dialética realeana (a qual ele chama de dialética de implicação-polaridade) não separa a realidade do direito em domí - nios estanques.

Assim, o direito é entendido segundo umamálgama onde, em unidade dinâmica, os aspectos fáticos, axiologi-cos e normativos se fundem complementando-se. Eis porque o aaberjurídico não deve apenas estudar a norma, mas esta em conexão comos momentos fáticos e axiologicos. Caberá â jurisprudência estudaro direito tridimensional, todavia, direcionando suas investigações

9"tendo era vista prevalentemente o momento normativo" . Para tanto, deve-se levar èm conta que "a elaboração de uma determinada e par ticular normaj de 'direito não ê mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão fático-axiolõgica operante em dada conjuntura social: é antes um dos momentos culmi­nantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere positi­vamente o poder (quer o poder individualizado em um õrgão de esta­do, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipõtese das normas consuetudinárias) mas sendo sempre o poder con dicionado por ura complexo de fatos e valores, era função dos quais é feita a opção por uraa das soluções regulativas possíveis, arman­do-se de garantia específica (institucionalização ou jurisfação do poder na nomogênse jurídica)^®.

0 tridimensionalismo realeano ultrapassou o formalismo positivista incorporando a esfera do saber njuitídico elementos dispensados pela depuração de Kelsen. A interpretação ju rídica, então, passou a integrar a cada momento, dialeticamente , as dimensões fática, axiolõgica e normativa, com predominância de_s ta. Ora, não esquecendo a enorme contribuição que esse tridimensio

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nalismo trouxe para a teoria do direito, não podemos olvidar que, todavia, não passa de mais uma variante do positivismo legalista de nosso século.

Os três exemplos referidos — Kelsen, Co_s sio e Reale — sintetizam uma tendência generalizada: os juristas têm acompanhado, nos dois últimos séculos, o desenrolar do proces­so de autonomização do direito. E se incrementam-no, não percebem a relatividade dessa autonomia (que é real), esquecendo que o di - reito enquanto parte constitutiva do estado que o sanciona, é po lítico também.

0 direito contemporâneo é uma ordem orga­nizada segundo critérios que o conformam a sistema único, autonomie zado relativamente, completo e coerente, de normas sancionadas ou autorizadas^^ por autoridade competente. Ora, enxerguemos: não est£ mos frente apenas ao direito, mas também ao estado moderno capita­lista (autonomizado, imparcial e impessoal). Note-se que o discur­so dominante do direito segue as mesmas coprdenadas do discurso doestado. Eis porque a linguagem jurídica é uma linguagem "competen-

12 - te" . Sob toda a aparente divergência das teorias jurídicas trad^cionais, oculta-se um saber que fala a partir de lugar proprio, d^ zendo certas coisas para assegurar outras, é a fala da ordem, da segurança, da lei... ; a razão "científica" que diz a lei para o caso concreto, reproduzindo um logos que é o logos da racionalida­de dominante.

Por outro lado, a pratica jurisdicional -— o lugar operacional da racionalidade dominante - fundamenta- se numa espécie de razão para a qual o pensamento jurídico é aquele que instrumentaliza a lei. É possível neste caso falar em imagina rio jurídico. Referimo-nos aquele imaginário que está por detrás , sendo condição necessária, de todo positivismo.

2. 0 IMAGINÁRIO JURÍDICO

No decorrer do texto referimo-nos algi mas vezes â ideologia, confrontando a idéia de ciência com aquela que designa o modo de conhecer imediato e prático da ação: — o senso comum. Lembremos que a ciência bachelardiana pretende operar uma

rutura, um corte que a distancie do conhecimento vulgar; lembremos que Althusser no intuito de refazer a filosofia marxista se valeu desse mesmo caminho; recordemos Kelsen procurando constituir uraa ciência purificada; evidenciemos os novos jusfilósofos brasileiros seguindo, de algum modo, itinerário similar quando denunciam a ideologia presente nas construções teóriconjurídicas dominantes . Estes discursos sugerem conceptualização de ideologia vinculando-a a certa imagem. A imagem do erro contraposto à verdade; do subjet^ vo viciado ao objetivo rigoroso; do falso ao concreto; da mentira ã prova.

Eis a ideologia rpduzida a espelho refle­tor da coloração enganosa do mundo; exprimindo um discurso lógico, lacunar e coerente, síntese da deturpação deformadora das virtually dades. Não ê desta ideologia que trataremos, nem daquela que apare ceu com Destutt de Tracy, em 1801 — na obra "Eléments d *Ideolo - gie" — preocupada com a gênese das idêias^^. Falaremos de uma ideo­logia mais ampla, identificada com o real imaginârio^^. Só então poderemos compreender o positivismo contemporâneo como imaginário jurídico; não algo que é falso, mas que ê verdadeiro; não uma fan­tasia, mas algo que ê terrivelmente real; e não uma visão deturpa- dora do direito, fruto de um delírio imagêtico, mas algo que, con ,cretamente, motivado por relações reais desenvolvidas no seio do social, fornece condições para que o erro e o delírio sejam possí­veis . ...

Em algum momento chegamos a pensar o ima ginârio como uma representação mediatizada do real, produto da vi são de mundo particular das classes dominantes em tensão permanen­te com a visão de mundo das classes dominadas^^. Assim admitíamos a existência de uma pluralidade de imaginários, contrapondo fatal­mente, em razão de uma opção ético-valorativa, um discurso imagina rio falso a outro verdadeiro, Na verdade os discursos que fluem hi£ toricamente, no tempo e no espaço, não são os vários iíçaginârios possíveis onde uns seriam mais falsos, outros mais lacunosos, alem dos demais muito próximos da verdade. Antes são manifestações de um imaginário que aparecem em função das condições que este possi­bilita. Porque, não serão "os imaginários" que determinarão suas próprias formas e conteúdos , senão que, ao contrário, sera o ima­ginário que determinara, através de múltiplas mediações, a emergên cia daqueles.

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Neste caso e possível dizer: — cada ima­ginário em dado espaço e em dado tempo I Ele não pode ficar defa­sado de sua espácio-temporalidade: não está na historia, ê histo - ria. Mas note-se: ê historia, entretanto — ah '. — não tem his­toria. Paradoxo ? Nem tanto; expliquemos. A colocação tem senti­do quando se percebe a materialidade do imaginário. De fato, ele ê real, e o real é movimento; processo em»devenir. Este não está no tempo, já que e o próprio tempo. Dito isto reaparece a questão ; mas se o imaginário, sendo real e o tempo, ë a história, por que ele não tem história ? Ou seja, porque ele não possui uma histó - ria sua ? Obteremos a resposta quando nos lembramos que o que d£ fine a história ë a busca, pelo homem, da produção e reprodução de suas condições materiais de existência. Neste sentido as relações de produção e as relações sociais definirão as próprias condições de sua reprodução. Embora o imaginário assuma certa autonomia r£ lativa em face da esfera produtiva, ainda assim só existe em fun ção daquela. Eis porque não tem uma história (sua), embora seja história; sua historicidade ultrapassa suas fronteiras.

Se num primeiro momento Althusser definiuideologia como "um sistema socialmente necessário de -, representações, cuja estrutura permanece inconsciente a seus protagonistas,e que exprime sob a forma do imaginário, a relação vivida entre os

17homens e o mundo" , mais tarde, alterou o rumo de suas considera ções. Entretanto, naquele momento fixou a idêia de que o homem v^ ve suas relações de existência não do modo como elas se fazem, mas do modo como elas se apresentam, ou seja, de modo imaginário. Os objetos culturais aparecem como se fossem naturais e inquestioná - veis; a consciência dos homens ê a própria inconsciência de sua história.

interessante nesta concepção, como lembra Rouanet, ê o fato dela, embora carregando muitos traços da refle - xão de Marx e Engels (d'"A Ideologia Alemã"), manter uma peculiar^ dade: — o imaginário ê um sistema socialmente necessário, que não existe (como em Marx) apenas numa sociedade de classes, apre­sentando-se onde houver homens. Se o imaginário ë uma exigência in trínseca ás sociedades, ele, onde há divisão de classe ë sobrede - terminado por esta: — eis o ponto nodal do pensamento althusseria no ninna primeira fase.

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Num segundo momento Althusser pensara aquestão da dominação articulada com os Aparelhos Ideologicos de

18 — tado , determinando nova visualização do universo ideologico. Aideologia continuará a ser pensada como "representação das relações imaginárias dos homens com suas condições reais de existên-

19cia" . Entretanto, alia-se a isto a percepção de que a represen­tação dos indivíduos sob a forma imaginária sõ tem razão de ser pa ra assegurar o domínio de uns homens sobre os outros. Sua necessi­dade está em assegurar a reprodução das relações de produção. Eis porque agora a ideologia somente tem sentido numa sociedade de classes; Althusser reaproxima-se, pois, de Marx.

Operando mudanças relativamente radicais em suas colocações iniciais, manterá o entendimento de que o imagi nário ê o outro da filosofia^®. Isto ê, a ideologia é a "deturpa­ção" do real, uma cortina a separar o real das massas pelo efeito da inculcação. A filosofia althusseriana, então, promoverá a crí­tica da ideologia burguesa; a ciência marxista assume o caráter de produto do corte que a promove separando-a da problemática ima ginária.

Não poderemos nos valer destas coloca­ções. Afinal, o positivismo jurídico, parcela real do real imagina rio não ê apenas deturpação ideológica promovida consciente ou in conscientemente pelos juristas. 0 normativismo, veremos adiante não ê um erro, ou um muro situado entre a realidade do direito e o modo como este ê "encenado". Ao contrário, o positivismo ê o mo­do como o ser jurídico aparece (e, sabemos, o modo de aparecer ê parte integrante do proprio ser). Ser e aparecer jurídicos formam uma unidade dialética indissociável a qual não pode ser negada emnome de um hipotético eidos, de uma verdadeira "essência" do direi

- 21 to oculta sob o manto das formulações ideologico-positivistasSe, para o nosso caso, não podemos utili­

zar a concepção althusseriana de ideologia, o mesmo ocorre com relação as colocações de Lukács, desenvolvidas principalmente em

22"Historia e Consciência de Classe" . Vejamos; para entendermos opensamento do filosofo húngaro é conveniente não esquecermos que

23ele se situa em um todo teorico coerente , onde alguns conceitos são básicos e fundantes. É o caso da afirmação de uma classe-suje^

I

to na historia, portadora da verdade; do proletariado como classe que aspira e tem a missão de chegar ã verdade; e do marxismo como crítica da "falsidade" ideologica e como prâxis histórica. Neste caso, o imaginário deve ser entendido como "falsa consciência" :— o homem tem construído seu mundo e sua história, mas incoscien- temente.

Para o pensador a história não deve ser compreendida conforme se apresente a consciência dos homens,porque não são os propósitos deles que a fazem. As "forças reais da his­tória são independentes da consciência (psicológica) que os homens

24 ‘tem dela" . Esta, a falsa consciência, ndcessita ser estudada pa­ra sofrer a superação da verdadeira, que outra não é que a cons ciência de classe, entendida como o conhecimento mais racional e apropriado que esta aberto a uma classe particular, ou seja, sob o capitalismo, ã classe proletária.

Nestes termos, a ideologia dominante é aideologia da classe dominante, como em Marx, com a peculiaridadede identificar-se com a essência ideológica da classe-sujeito dominante. Seria, portanto, o reflexo das coiidições de vida e das con-

25cepçoes de mundo da dita classe ; emanação da reificação (coisif^ cação) dos bens de consumo na sociedade capitalista. A "verdade" , portanto, somente se restabelecerá com a verdadeira consciência da classe-suj eito proletária, a qual libertando--se. da "falsa consciên cia" reificada superará a representação ideológica.

Está claro que buscamos subsídios para o entendimento do positivismo, não corao ideologia específica ( algo corao falso conhecimento do direito), mas como parte do real-imagi- nário. Neste caso, como poderíamos entendê-lo como falsa consciên­cia ? Se assim o fizéssemos já estaríamos, de antemão, reduzindo o direito dominante a mera expressão da consciência da burguesia, a mero reflexo da condição de existência das classes dominantes. Jâ afirmaraos que o imaginário é real, é parte dele, embora não possua a materialidade física das "coisas" em geral. Não pode, pois, ser mera emanação de uma classe-sujeito particular. Vêmo-lo, ao contra rio, como lun sistema real de representações reais autonomizadas que, objetiva e sistematicamente, se manifesta de acordo com as rela­ções sociais, materializando-se em práticas, idéias, ações, rituais, etc.

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0 domínio das idéias, simplesmente delas, ë o domínio ideológico que não nos interessa. Não podemos entender o imaginário apenas como consciência falsa. 0 positivismo, porexemplo, não ê algo que pousa hipostasiado, serenamente, sobre o domínio imaterial do "espírito" jurídico. Ao contrario, se consub^ tancia em praticas cotidianas, em ações automáticas, numa história concreta que só pode ser entendida se relacionada á práxis jurídi­ca centrada nas instituições judiciárias após o advento do moderno estado burguês.

Em Gramsci o imaginário assume um papel fundamental na luta de classes, desempenhando a função de unifica- dor/cimentador do bloco no poder bem como do bloco ascendente. A^ sim, a ideologia não ê julgada era função de sua verdade ou falsida de racionais, como em Althusser, mas em face de sua eficácia histó rica como aglutinadora das classes e frações em relações de domí - nio e subordinação. Portanto, a ideologia não ë apenas o reflexo da base econômica, pois opera como força material no sentido da mu tação histórica. É assim, também, resultado das relações de for­ças no interior do bloco dominante.

Para Gramsci "a dominação e a subordina -» iLção ideologicas não são compreendidas isoladamente, mas sempre co­

mo um aspecto, embora crucialmente importante, das relações declasses e das frações delas em todos os níveis: econômico e políti

- 7 6 —co, bem como ideológico/cultural" . Isso possibilita ao autor ca27 ~racterizar o iraaginario corao "relaçao vivida" . Eis porque não

pode ser falso, no sentido racionalista: "é uma verdade histórica:- 28 (...) confunde-se com a propria realidade" ; tem existência, e

atua na história. Confunde-se, pois, como real.Segundo Rouanet ,a ideologia "não ë a treva da ignorância, mas a luz insolente deura poder que proclama, meridianamente, sua própria perenidade"^^.

\

Nossa tese ë mais abrangente: a ideologia não se confunde com o real; ê ele mesrao enquanto sua face aparen - te. Não é, pois, "a luz insolente do poder"; seu eidos ê o eidos do próprio poder porque, como veremos adiante, ela se materializa no próprio locus condensado da relação de pOder.

Como Poulantzas reconhecerá mais tarde em "Poder Político e Classes Sociais"^®, a concepção gramsciniana de

ideologia carrega muitos aspectos positivos, como a juetafora do"cimento" e a negação de sua significação enquanto mero sistemaconceituai. Faz justiça a Gramsci, pois suas teorizações aprovei -

31tam muitos elementos do intelectual italianoTodavia, Poulantzas rejeita as concepções

historicistas baseadas no pensamento do jovem Marx, as quais acen­tuando a relação sujeito/real/alienação, acabam buscando o substra

32 ”to da ideologia na consciência dos sujeitos . A ligação da ideo­logia dominante com uma classe-sujeito ê abandonada: — "a ideolo­gia dominante não reflete simplesmente as condições de existência da classe dominante, o sujeito 'puro e simples', mas antes a rela ção política concreta entre as classes dominante e dominada numa formação social"^^. Abre-se caminho para a percepção do imagina - rio não como imagem refletida de "algo real", mas como unidade com plexa produzida sob condições históricas precisas e moldada a par tir de relações de produção e poder. Aproximando-se de Gramsci , Poulantzas afirma também a funcionalidade da ideologia como meca - nismo de aglutinação e coesão (cimentação) da formação social (in filtrado em todos os níveis do corpo societário).

É questionável a colocação poulantziana segundo a qual a ideologia dominante ê a ideologia de uma classe (no caso a dominante) em conexão genética com as ideologias ( ou subconjuntos ideologicos) de outras classes, como as da pequeno - burguesia, do campesinato, etc. Se este conceito' é válido por ex primir o caráter relacional da ideologia, não o é, todavia, na me dida em que aceita a possibilidade de. uma pluralidade ideologica , conforme a posição em que as classes sociais se encontrem. 0 que devemos observar aí, não é a existência de uma pluralidade ideolo­gica (entre imaginários que travam relações necessárias em -ubusca da hegemonial), mas a diversidade de formas segundo as quais emer­ge em dada sociedade um meSimo imaginário. Ao contrário daquela for mulação, nossa hipótese é de que o real-imaginário não é o resulta do final de múltiplas ideologias em relação, mas, antes, é a condi ção necessária para que apareçam aqueles subconjuntos ideologicos referidos por Poulantzas.

Ainda em Poulantzas, é interessante obser var a continuação da tradição marxista de tratar o ideolõgico co­mo um sistema que, apesar de carregar elementos de conhecimento ,

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oculta as contradições reais ao reconstituí-las ao nível do imagi­nário de modo coerente.

Esta visão está presente também em Mari - lena Chauí, a qual, em brilhante texto^^, analisa a concepção mate rialista de ideologia. Para esta pensadora "a ideologia resulta da prática social, nasce da atividade social dos homens no momento em que eles representam para si mesmos essa atividade (...). 0 que ocorre, (•••) é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como ê vido diretamente por elas, de sorte que as representações ou idéias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo as ex periências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de produção. No entanto, as idéias dominantes em uma sociedade nu­ma época determinada não são todas as idéias existentes nessa so ciedade, mas serão acenas as idéias da classe dominante dessa so ciedade nessa época"

Chauí colocou muito bem a problemática do ideologico fixando sua característica fundamental de inversão do real. A inversão se dá porque o imaginário, compreendido como cor po de representações das relações sociais e de produção, ao recon_s tituir estas, ao nível do imaginário, oculta os fracionamentos reais e a divisão social do trabalho e a diversidade de interesses e classes existentes no corpo societário. 0 que aparece é, apenas, o dado imediato, abstrato e imaginário, que inverte o concreto apre sentando-se como se’ fora este. Eis o mecanismo: o ser aparece de modo invertido, porque o imaginário faz com que o ser seja conhec^ do, apenas, sob a forma do aparecer, é possível compreender, então, o positivismo jurídico, como, além de outras coisas, parte inteít grante do prõprio direito. É a face abstrada e imediata do jurídi­co contemporâneo, a face real e cotidiana segundo a qual o direi­to aparece determinando/invertendo as relações concretas entre os homens. Mas note-se, o direito enquanto imaginário não oculta/ in­verte um "verdadeiro" direito. 0 modo de aparecer do direito é o seu proprio ser atual. 0 que o ,direito oculta/inverte é o fraciona mento social (que sob o jurídico aparece como uma unidade (a uni­dade da nação soberana) e as relações de poder que atravessam o corpo da sociedade (as quais aparecem não como relações ( entre ; classes antagônicas) de dominação/subordinação, mas como relações

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entre indivíduos/cidadãos/sujeitos iguais e livres).Quanto ã afirmação de Chauí, na esteira

de Marx, de que as idéias da classe dominante são, em cada época as idéias dominantes (ou seja, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante) so poderemos aceitá-la se confrontada com a ca racterização do imaginário como relação assimétrica de poder. Por que se o imaginário é o conjunto de representações autonomizadas , idéias e práticas "naturais", de dada êpoca e em tal sociedade ; discurso designador de "lugares", situações, símbolos e falas para os indivíduos, ele o é, não apenas porque, como "idéia universali­zada", orienta o agir das pessoas, mas igualmente porque, nas rela ções práticas do dia-a-dia os homens se percebem corao pertencentes a tal ou qual lugar, devendo formular este ou aquele discurso e agir desta ou daquela forma.

Percebe-se, então, que o imaginário é tão real quanto nossa prõpria existência. E, se ele comanda aos indiv^ duos (o imaginário cria indivíduos) certas atitudes, o faz de acor do com uma rede de poderes, prototipo de uraa relação assiraétrica de forças entre as classes, a qual, igualraente, fixa discursos, cria hierarquias e rituais, abrigando uma disposição de lugares certos para cada homem ihdividualizado.

0 imaginário assume uraa forma autonomiza- da em face das relações de produção. No entanto, as lutas entre as classes também o atravessajm, e se as idéias da classe dominante são as idéias dominantes era cada época, é porque a relação de poder entre as classes, dinãraica raas assimétrica, tem contribuído opara a manutenção dos interesses dessa classe (dos quais as idéias são apenas uraa face) . Conforrae se estabeleçam as lutas políticas no seio da sociedade, é possível afirmar a mutação das idéias dominan tes. Neste sentido, as idéias dorainantes são as da classe dominan te, concordamos cora Chauí; entretanto, isto não quer significar que sejam exteriores ãs classes populares. 0 imaginário é condensação de uma relação, ao nível do imaginário, e sua mutação se identifi­ca com a alteração do grau de assimetria dessa relação de poder que atravessa o corpo social.

Por enquanto quisemos, apenas, fixas al -guns subsídios necessários para a compreensão do universo jurídico

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entre indivíduos/cidadãos/sujeitos iguais e livres).Quanto â afirmação de Chauí, na esteira

de Marx, de que as ideias da classe dominante são, em cada êpoca as idéias dominantes (ou seja, a ideologia dominante ê a ideologia da classe dominante) so poderemos aceitâ-la se confrontada com a ca racterização do imaginário como relação assimétrica de poder. Por que se o imaginário é o conjunto de representações autonomizadas , idéias e práticas "naturais”, de dada época e em tal sociedade ; discurso designador de "lugares", situações, símbolos e falas para os indivíduos, ele o é, não apenas porque, como "idéia universali­zada", orienta o agir das pessoas, mas igualmente porque, nas rela ções práticas do dia-a-dia os homens se percebem como pertencentes a tal ou qual lugar, devendo formular este ou aquele discurso e agir desta ou daquela forma.

Percebe-se, então, que o imaginário é tão real quanto nossa propria existência. E, se ele comanda aos indiv^ duos (o imaginário cria indivíduos) certas atitudes, o faz de acor do cora uma rede de poderes, protõtipo de líma relação assimétrica de forças entre as classes, a qual, igualmente, fixa discursos, cria hierarquias e rituais, abrigando uma disposição de lugares certos para cada homem ihdividualizado.

0 imaginário assume uma forma autonomiza­da em face das relações de produção. No entanto.,., as lutas entre as classes também o atravessaim, e se as idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época, é porque a relação de poder entre as classes, dinâmica mas assimétrica, tem contribuído opara a manutenção dos interesses dessa classe (dos quais as idéias são apenas uma face) . Conforme se estabeleçam as lutas políticas no seio da sociedade, é possível afirmar a mutação das idéias dominan tes. Neste sentido, as idéias dominantes são as da classe dominan te, concordamos com Chauí; entretanto, isto não quer significar que sejam exteriores ãs classes populares. 0 imaginário é condensação de uma relação, ao nível do imaginário, e sua mutação se identifi­ca com a alteração do grau de assimetria dessa relação de poder que atravessa o corpo social.

Por enquanto quisemos, apenas, fixas al -guns subsídios necessários para a compreensão do universo jurídico

na sociedade contemporânea do modo como ele aparece, ou seja, do modo como ele se desenvolve e se reproduz. Tais subsídios possibir litarão interpretar o positivismo jurídico caracterizando-o em du pio sentido: primeiro corao pratica cotidiana favorecedora de ura olhar perceptivo que identifica o direito a lei; segundo, como mo- do de saber e de conhecer o jurídico. Em qualquer caso o direito é apenas o que se vê e o que se vive, reproduzindo-se a partir da in serção do homem no universo do real-imaginârio e no universo do di reiro positivo, entendido este como parte daquele cosmos. Não pod£ mos tomar o positivismo como mero resultado de uma produção inte - lectual reducionista, obliterada por "deturpações ideolígicas"Não ê apenas saber, e neste sentido, falso saber. Ao contrário , como veremos adiante, ê a face funcional de uma rede de poderes reais que promovera o forraalismo jurídico corao a realidade do direi to contemporâneo.

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2.1. Para corapreender o imaginário jurídi co: — o positivismo

j Não deveraos conf4ndir o positivismo coma dogmática. Esta ê apenas uma das faces daquele. Embora um dos lu gares privilegiados de sua reprodução, não basta, como propugnaim alguns autores, acabar com a dogmática para fugirmos do positivis­mo. 0 que ocorre ê uma certa confusão entre a dogmática e positi - vismo; entre ela e o dogmatismo. Ora, se ê possível captar o dogma tismo como "cegueira", ou "miopia" teóricas, o raesrao não ocorre com a dogmática. Estai ê a face corpõrea do positivismo, não se confun­dindo com as "trevas"; antes, corao imaginário, ê a forraa que perm^ te a permanência de certa relação de poder.

Três significantes utilizamos, os quais podem suscitar alguma duvida. Explicamo-nos: ■— falamos em positi­vismo , positivação e positividade. Esta última expressão serviu pa ra designarmos a era contemporânea da nova episteme que sucedeu a anterior, ligada a idade da representação. Por positivismo, quise mos fazer alusão ã filosofia de Saint Siraon e Corate, baseada no mé todo único (naturalista) da ciência, que propõe conhecer o Vtmundo mediante a apreensão dos sentidos. Já, por positivação devemos ca£

tar uraa certa via ou carainho — o caminho da positivação — em dit reção â positividade. Queremos fazer alusão a transição de "esta - do" ou de qualidade de algo Cde um objeto dado de conhecimento) que se modifica era sua substância: ê o caso do direito, que passou por ura processo de positivação que o deslocou de estados anteriores pa ra o atual. Por outro lado, muito embora não devamos confundir a positivação pela qual passa a ciência com a positivação pela qual passou o direito enquanto fenômeno jurídico, não convêm estudâ-las separadamente. As duas positividades, alêra de coincidentes historic caraente, respondem ã emergência de outra racionalidade: a raciona­lidade que se funda sobre a objetividade, impessoalidade, abstra - ção e neutralidade, específicas tanto da ciência moderna, quanto do estado e do direito contemporâneos.

Definíssemos o imkginãrio como um corpo sisteraâtico, lógico e relativamente coerente de representações da experiência imediata, e estas corao resultantes da inserção dos co£ pos individualizados em instituições que, materialmente, confirraam e afirraam o imaginário, então estaríamos criando as bases pàra a compreensão do direito enquanto universo de positividade. Ou seja, como discurso abstrato, universal e uniforme que prescreve deve- res, estabelece obrigações, confirma valores, obriga ou faculta proíbe, cria sujeitos e pessoas, disciplina relações e atividades, atoraiza os conflitos, de tal raaneira que sua coerência interna fa voreça uma explicação da sociedade que oculte os seus fracionaraen- tos reais e os seus conflitos (não, apenas, individuais — entre sujeitos dados de direito — raas de classe).

Rafael Bielsa separa o positivismo juríd^ co do positivismo sociológico do direito. Se o primeiro ê ura posi- tivisrao essencialmente do direito ditado por decisão de autoridade competente, o segundo seria o positivismo dos fatos, dos dados ju­rídicos fornecidos pela sociedade. A diferenciação não ê fundamen­tal. Os dois positivismos (enquanto dupla eraanação de ura mesmo iraa ginârio) são prisioneiros de um saber que se dirige a "fundar a ciência na realidade e na experiência, isenta (...) de todo eleraeia to teológico, histórico e metafísico — Assemelhara-se pelo fa to de estudarem, apenas, o universo do direito positivo (a lei pa ra os primeiros; o dado para os segundos) de tal maneira que cons^ derações sobre os fundamentos de produção política do direito dei

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xara de ser mencionadas.

0 positivismo jurídico resulta da confluên cia de dois aspectos interligados: — a busca da verdade pelo sa ber, garantindo certa imagem de controle de seus enunciados; e a necessidade de segurança e previsibilidade jurídicas do estado mo derno monopolizador do exercício legítimo da violência. Os dois aspectos, sintetizados no binômio lei/ordem, produzem ura novo di reito, não derivado de nenhura outro, não sendo pois o resultado nal de nenhuma "evolução" ou o ãpice de uma escalada do direito ru mo ao progresso, quando a lei fosse a sua mais lídima expressão Este serâ o direito moderno, tão ligado quanto incompreensível sem a remissão ao estado, quando a dominação, fugindo da relação pes - soai/territorial, assume outra especificidade, inaugurando renova­do modo de domínio; o consubstanciado na impessoalidade da autori­dade constituída.

0 "direito ê o sancionado pela autoridadepoliticamente constituída, ou seja, um coAjunto de normas òu re

*7gras jurídicas com força de lei (...) emanadas do estado" . 0que transparece nesta colocação? Enquanto ser/aparecer do direitomoderno,o positivismo exclui o estudo do direito histórico, do di

* 38 —reito natural, etc. , fixando-se, apenas, no direito autorizado .As expressões normativas valem formalmente, pouco importando osconteúdos expressos, podendo contraria valores históricos consagrados pela humanidade (exemplo disso, ê o direito do fascismo e deditaduras militares). 0 direito se manifesta como naturalizado ea-histórico: — ê a lei. Conhecê-lo, significa conhecer a lei; interpretâ-lo significa dizer a lei. Ora, a lei se situa no contextode um cosmo maior; o cosmo da autoridade estatal competente parapromulgá-la. Esta, optando entre várias possibilidades normativas,autorizará uma, facultando, proibindo ou incentivando espectativas'e comportamentos. 0 discurso da autoridade impessoalizada, ou se -ja, do órgão legiferante do estado, ê um discurso competente sinô-

39niino da "linguagem institucionalmente permitida ou autorizada"É a linguagem anônima do lugar hierarquicamente estabelecido e, aparentemente, neutro; criador de sujeitos de direito, transforman do os homens (enquanto portadores da história) em objetos sociais.

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Eis a nova juridicidade, o reino da vonta de da lei; o universo da dominação impessoal, neutra e legal: o império do direito positivo. Onde brilha a noção de ordem enquanto conjunto das emanações normativas. Ordem única (isto é, somente se admite uma ordem nacional), uniforme (ê igual em todo o espaço ter ritorial do estado) e universal (decorrência dos princípios de igualdade e liberdade formais) que incorpora um princípio de certe za/segurança jurídica, complemento do controle/legalização do câm bio do direito. Ou seja, o direito positivo é aquele que controla a sua prõpria gênese/mudança^^.

A lei é a fonte primeira do direito; fon te organizada conforme uma ordem hierárquica. Isto é, existe uma hierarquia entre as normas de acordo com a importância a elas atri. buída. Da hierarquização da ordem decorre o conceito de ordenamen­to jurídico. Neste, as normas não se encontram soltas, mas "mutua-

41mente entrelaçadas" . 0 modo de validade de uma norma se julga a partir de sua fundamentação em outra superior, até o ápice,, ou S£ ja a constituição; esta é a lei maior, de tal maneira que todas as normas ocupam certa posição conforme o degrau hierárquico competen te em que residam.

0 direito assume a forma de um conjun­to (ordem/ordenamento) de normas obrigatõrias emanadas do estado ou autorizadas por ele, enquanto o saber jurídico se corporifica como a doutrina desse conjunto que o organiza e o "aperfeiçoa",mas em todo caso, silenciando (não questionando) sobre sua produção , ou seja, não explicando sua gênese histórica. Eis porque o saber jurídico hegemônico não compreende seu objeto, mas apenas conhece as normas jurídicas dominantes.

A vinculação necessária direito/lei promo ve um tipo jurídico onde a aparência determina o ser. 0 direito situarse como o que, sob dada forma, emana de lugar legítimo que rje presenta o exercício do monopólio da juridicidade pelo estado. É a emanação do poder soberano. No entanto, se o estado, para dizer 0 direito, o faz através da lei, ele necessita, igualmente, de ura orgão constituído para dlzer o direito : — jüris dicere. Referimo- -nos ã atividade jurisdicional. A elucidação do direito positivo e do positivismo, depende de dois conceitos-chaves : soberania e ju

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risdição. Com eles, alêm de outros, talvez possamos compreender pouco mais o imaginário jurídico; para tanto, esboçaremos um rápi­do panorama da gênese do positivismo nas sociedades modernas.

2.2, 0 elogio da lei

Quando Goethe criou o personagem Olearius, ura legista do seculo XVI^^, talvez não tivesse o proposito de ca racterizar um modo de conhecer que dominaria, anos mais tarde, o saber jurídico. Na verdade, a lei ã qual o personagem se referia não queria designar o que hoje exprimimos pelo mesrao significante. Era a lei imutável e Goethe aí, certamente se colocava entre aque­les que, como Montesquieu, acreditavam na descoberta de leis con forme a própria (essência da) natureza das coisas. Entretanto, se as leis de hoje, e do personagem Olearius não são as mesmas, pelo raenos a peça literária que o situa desnudáu um tipo de relação en tre a concepção do direito e o homem como jurista que se concreti­zaria, mais tarde, ao cabo de longo processo.

Este processo ê a matriz de um direito for malizado e abstracto que comanda a sociedade através de uma totali­dade normativa, coincidindo seu espaço de aplicabilidade com o e_s paço geográfio do estado que o sanciona ou ratifica. Um direito previsível garantido por ura orgão judicial enca:rregado de aplicar a lei aos casos concretos. Esta, a atividade jurisdicional neutra­lizada politicamente para facilitar o desenvolvimento da autonomi­zação do universo jurídico, invertendo e dissimiúlando sua pertinên cia política, se'raostra corao iraparcial. 0 juiz ê a corpotificação dos desígnios jurídicos; ê a materialidade, o corpo que objetiva e concretiza a cada caso, o disposto na abstração das normas codifi­cadoras do monopolio da violência legítima do estado. É o horizon­te físico que ratifica toda uma percepção empírica do direito.

Podemos apreender o positivismo como re­sultante de um processo que pode ser subdividido em três momentos distintos: — o momento da recepção do direito romano; o momento da soberania nacional e o momerito da jurisdição e ciência.

E evidente que as culturas antigas tive - ram suas leis: ê o caso da lei das XII tábuas, da lei de Solon, do

codigo de Haraurabi, do codigo visigotico, etc. Entretanto, o culto da lei que nessas culturas ocorria, se dava concretamente era face de tal ou qual lei, desta ou daquela, por alguma razão, como pelo fato de realçar atitudes exemplares para a comunidade, ou em razão de estima, etc 0 direito escrito nãò ê apenas o direito bu£guês. Inclusive, antes do surgimento deste, os costumes podiam ser submetidos ã escritura. As Ordenações do Reino (de Portugal) , por exemplo, que por muito tempo vigoraram no Brasil, encontram suas raízes nos costumes reinois^^. Porém, o culto a lei na ida­de contemporânea ê um culto abstrato, "â lei como tal, ã legisla -

47ção como expresspra do direito" . A lei, neste caso, tem um sentido formal que encontra sua razão de ser ijo imaginário que a envolve. 0 fundamento mais remoto desse imaginário se encontra na recepção do direito romano, pelo príncipe, na renascença. Esta rece£ção corresponde â segunda expansão do direito romano. A puimeiradecorreu o militarismo do império romano; jã esta ocorreu '.imuitos.séculos apos o desaparecimento de Roma. Esse direito foi redesco -berto e "estudado pelos glosadores e pos-glosadores, a partir doséculo XI; utilizado inicialmente como fonte subsidiaria, assumiupouco a pouco o significado de tâbua de salvação para os juizes qiE

48freqüentemente viam-se perdidos no emaranhado dos costumes locais".Duas razões contribuíram para essa recep-

49çao. Em primeiro lugar, porque fundado na auctoritas ou seja, na autoridade, o direito romano fixa uma hierarquia entre normas ba seadas na autoridade e outras baseadas na divindade. As primeiras, neste caso, são relativamente autonomizadas em relação aos precei^ tos religiosos. Depois, porque sendo um direito essencialmente de' natureza pratica,-os romanos produzem conceitos duradouros e " cr^ térios distintivos para as diferentes situações em que se manifes­tavam os conflitos jurídicos e sua prâxis. Daí o aparecimento detécnicas dicotômicas introduzidas sob a forma de pares, como, por

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exemplo, actio in rem e actio in personam; res corporales e incor- porales; jus publicum e jus privatum — técnica esta mais tarde denominada divisio, a qual não foi um produto, pura e simplesmente da sua prâxis, mas teve alguma influência dos modelos gregos como os modelos produzidos pela gramâtica"^^.

Como lembra Tércio, a teoria jurídica ro mana não era uma theoria, ou seja uma manifestação da contemplação

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dos objetos, como entre os gregos. Antes, era a eaemplificação das relações passadas e mantidas através dos costxunes pela histõria^^. 0 raciocínio jurídico prudencial dos romanos, a partir do renasci­mento, £oi relativamente abandonado, dando origem a outro tipo de rivado de técnicas forjadas nas universidades medievais denomina ~ das glosas. Os. principais textos glosados foram o Corpus Juris Ci-vilis, de Justiniano, o Decretum de Graciano, além dos Cânones Ede - cosiasticos . Estes textos eram ordenados harmônica e hierarquica­mente, de tal modo que os mais recentes eram secundários, procuran do-se reconstituir um corpus através de princípios e regras mais gerais. 0 direito medievo resulta da confluência do direito romano com o comentário dos professores (glosadores) e a influência da igreja, que na êpoca detinha a autoridade (substituindo a auctori- tas da cidade de Roma). Eis a raiz do direito e estado racionais , os quais dominarão o ocidente mais tarde. A absorção do direito ro mano foi fundamental para justificar, bem tomo para instrumentali­zar, a constituição das grandes monarquias administrativas euro­péias .

0 período feudal é o período onde a circu lação de riquezas se dá mediante herança, rapinagem e guerra,sendo secundário o papel do comercio. 0 direito ligava-se intestinalmen- te ao exercício da guerra. Era a continuação da guerra de modo re gulamentado. Os súditos pediam ao soberano, não que decidisse o conflito, mas que fiscalizasse a regularidade dò procedimento.^^ Materialmente, quem detinha o direito era o mais forte, e no ápice o soberano, como o detentor da maior força, acumulando, portanto , um determinado número de direitos. Ora, a partir do século XII , com o surgimento das monarquias administrativas, o príncipe, como o detentor do poder das armas, constituirá o judiciário. Os indiví duos não terão mais o direito de resolver, regular ou irregularmen te, os seus litígios; deverão submeter-se a um poder exterior a eles (um terceiro), o qual se impõe como "poder judiciário e poder político"^^.

Num mesmo período, então, ocorrerá a re cepção do direito romano e a confiscação, pelo príncipe, do poder de julgar, constituindo o judiciário. Experimenta-se, o surgimento do soberano como corporificação de um poder político concentrado e absorvente. Esse poder requisita o auxílio de "legistas" aptos a

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trabalhar cora os textos romanos a partir dos quais, revisando-os e adaptando-os, instrumentalizam juridicamente as monarquias admini^ trativas. Isto aconteceu de tal modo que jâ com o mercantilismo, o estado bastante forte "fez surgir, um leraa: un roi, une foi , une loi"^^. Neste terapo, o direito costumeiro cedia lugar, cada vez mais, para o direito estatal de origem romana, o qual jâ começava a se apresentar como uma ordem jurídica.

Se as relações de força comandam as raodi- ficações sofridas pelas sociedades ocidentais a partir do final da idade média, o fortalecimento do poder central do soberano e o in^ cio da centralização administrativa necessitarão de ura discurso que instruraentalize esse processo, e ao mesrao íerapo, o legitirae. Esta­mos nos referindo ao discurso da soberania, um dos pilares da con£ trução jurídica do estado moderno, e, ao mesrao tempo, da constru - ção política do universo que hoje chamamos de direito. A atuação dos juristas aqui foi fundamental. Sabemos de sua importância a partir da idade média, no sentido de fornecer um instrumental jurí dico apto a favorecer a constituição do poder monárquico forte , centralizado adrainistrativaraente e, mais tarde, absolutista. A re construção do edifício jurídico romano, a partir do século XII obe deceu a esse sentido. Foucault chega a afirmar que "é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi ela borado. No ocidente o direito é encomendado pelo-rei"^^. Para ju^ tificar a legitimidade do poder real, a questão maior sobre a qualr nteoria jurídica se faz é a questão da soberania

A soberania é a corporificação discursiva da fundamentação da legitiraidade dos direitos do príncipe, e dos deveres de obediência dos súditos. Trata-se da legitimação de uraa relação assiraétrica de poder que estabelece uraa dominação centrada no binômio dever/obediência. A partir dela, a produção jurídica faz -se era torno do rei, seja para justificar seu trono, seja para ne­gar seu poder. Veja-se por exeraplo a seguinte colocação de Fou - cault (ele se refere ã teoria jurídico-política da soberania) :— "Ela deserapenhou quatro papéis. Antes de tudo referiu-se a um mecanisrao de poder efetivo, o da monarquia feudal. Em segundo lu­gar, serviu de instrumento, assim como de justificação, para a constituição das grandes monarquias adrainistrativas. Em terceiro

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lugar, a partir do sêculo XVI e sobretudo do sêculo XVII, mas já na êpoca das guerras de religião, a teoria da soberania foi uma ar ma que circulou tanto ninn campo como no outro, tendo sido usada em duplo sentido, seja para limitar, seja, ao contrário, para re forçar o poder real (..0 Em suma, ela foi o grande instrvunento de luta política e teórica em relação aos sistemas de poder dos sécu­los XVI e XVII. Finalmente, é ainda esta teoria da soberania,(...) que encontramos, no século XVIII, em Rousseau, e seus contemporâ - neos, desempenhando um quarto papel: trata-se agora de construir um modelo alternativo contra as monarquias administrativas, autoritárias ou absolutas, o das democracias parlamentares. É este mesmo

5 8papel que ela desempenha no momento da revolução francesa"Se a teoria da soberania em geral, qual -

quer tenha sido sua função, contribuiu para o desenrolar do proce^ so de positivação do direito, cremos, todavia, que serâ esta últi­ma teorização — a soberania pertence ao»povo, ou â nação I — coincidente com o início da consolidação da dominação burguesa , que favorecera as bases da identificação sinomizante direito/lei . Note-se que este é o momento final da derrocada do poder absoluti^ ta. 0 Rei era o detentor do poder soberano. 0 dever de obediênciaremetia ã sua autjoridade pessoal e ã sua presença física. Em " VI

59giar e Punir", Foucault demonstra como o crime, a infração , no ções que apareceram apos a centralização do poder real e a confis­cação pelo príncipe do poder de julgar, eram tidos não como viola­ção a um codigo, mas como agressão ã pessoa do rei. 0 corpo jurídj CO não possuía ainda certa autonomia e a abstração atuais. As leis não se legitimavam por si so, raas,funddamentavam-se, no corpo do rei soberano, o qual por sua vez se vinculava ã autoridade divina. 0 jusnaturalismo teologico oferecia as bases de sustentação legíti ma do poder real, e a sua soberania sé era compreendida â medida em que se dava de acordo com a vontade divina. Isto muda radical - mente com a ascensão da burguesia. 0 jusnaturalismo teologico cede terreno para um jusnaturalismo racional, a partir do qual o lugar de Deus, serâ tomado pela razão dos homens. Este racionalismo pro­porá o novo direito jusracional burguês , parteiro do dualismo li berdade/igualdade. 0 jusracionalismo se efetiva, com a queda do absolutismo, como direito positivo^^.

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Jâ o discurso da soberania popular, com a consolidação do poder burguês, cede espaço para o discurso da so berania nacional^^: — nem do povo, nem do rei, a soberania per­tence â nação I

Com Rousseau, escreveu Goethe, se iniciou62 * um novo tempo . Talvez fosse mais exato dizer que ele foi o arau­

to de um novo tempo. Ele dirâ : — "convenhamos, pois, em que aforça não constitui um direito e que não somos obrigados a obede -

6 3cer senão aos poderes legítimos" . A legitimidade do poder repou sa, para Rousseau, sobre uraa soberania que pertence ao povo; a e^ te, mediado, pela vontade geral. A vontade geral constitui as leis, que não podem ser outra coisa senão gerais: "quando digo que o ob jeto das leis ê sempre geral, entendo que a lei considera os súdi­tos em corpo e os atos como abstratos, jamais a um homera como ind^ víduo nem a um ato particular"^^. Em "0 Contrato Social" cuida-se do elogio da lei enquanto emanação da vontade geral materializando a soberania popular. Na verdade, este povo, esta soberania popular em Rousseau, jâ eram a nação.

0 problema da nação não permaneceu ausen­te no estado absolutista. Entretanto, com a ascenção burgyesa, a nação, enquanto um dos pilares do estado moderno, toma corpo. Ela assume a titularidade da soberania e a exerce através de represen­tantes^^. Aparece como corpo único e indiviso-transferido para o estado. Este emerge como "exterior" ao social, regulando-o " de fora ", e atendendo aos princípios da igualdade e de liberdade for mais dos indivíduos atomizados que corapõem o corpo societário. A nação ê princípio através do qual se articula uraa visão da socieda de como conjunto de corpos individualizados, mas reunidos pelo in teresse coletivo, do qual o representante legítirao é o estado. A função deste, portanto, através do direito, manter a ordem e a paz sociais. A nação é una e harmônica e o direito tambem como argumen ta Foucault, o jurídico não é o outro do poder, mas é ele mesmo travestido em linguagem jurídico-formal.

A formação do discurso que legitima o di reito pronunciado pelo poder soberano constitui o segundo momento do processo de positivação do direito dominante.

0 terceiro,, é o momento da jurisdição e

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ciência. Segundo Nelson Saldanha, o legalismo contemporâneo ê al go que ocorre sobretudo a partir das revoluções liberais. ’* Estas em verdade firmaram o seu predomínio; vimo-lo surgindo ou progre - dindo através delas desde tendências anteriores. Teriam sido, por tanto, o período feudal e o absolutista, cada um a seu modo, ” pre parações " para o tempo da dominação hipertrõfica da lei, que come ça com as mencionadas revoluções liberais. Sob certo prisma pode -se dizer que aquelas revoluções são apenas episõdios mais ou me nos externos (embora indispensáveis) de uma transformação que sem dúvida corresponde a um processo maior"^^.

As revoluções liberais são o canal de con solidação da dominação burguesa. Movimentos políticos que modifica ram o aparelho de estado absolutista acentuando e radicalizando as teorias de Montesquieu. A organização centralizada do estado abso­lutista ê mantida, mas, todavia, modificada em vários aspectos es­senciais, de modo a estabelecer a tripartição dos poderes e seus corolários, pedra de toque da dominação racional-legal. A adminis­tração do estado, já acrescida do parlamento (este como represen - tante da vontade geral, expressão da soberania do povo-nação) so mar-se-á o judiciário "independente"; este não mais como õrgão do rei, mas do estadç^^ com a organização que conhecemos hoje: pos­suindo (razoável autonomia), para assegurar a expressão de uma voz que se quer iraparcial e politicamente neutra. Na verdade este era o último passo necessário para a consecução da positivação do dõ reito de modo a assegurar previsibilidade e homogeneidade de julga mentos, o que não ocorria na êpoca do absolutismo: — naquele p£ ríodo, sabemos, o arbítrio não permitia a segurança jurídica ' de que o capitalismo necessitava. Materializa-se a tese de Rousseau , segundo a qual ê perfeitamente legítima a política no parlamento , aceitável no executivo, raas desnecessária na judicatura.

Chamaremos de iurisdição (do latim: jus6 8 ------------------- — —dicere; juris dictio) ao modo de dizer o direito, ou seja, ao

modo de administrar a justiça do estado capitalista. Se ê verdadeque, já no final da idade mêdià, com o início da centralização dopoder pelo príncipe aparece uma figura exterior aos litígios parasolucioná-los, representando o rei; e se durante o período das raonarquias administrativas e absolutistas existiu um judiciário exercendo função jurisdicional (já que dizia, em nome do rei, o direi

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reito), o que ê relevante para o nosso estudo, ê o novo judiciá -rio. Serâ â atividade desta judicatura renovada que designaremos pe

• - - 69lo nome jurisdição0 exercício da jttrisdição vai acarretar

uma progressiva separação entre a política e o direito. Esta auto­nomia relativa C© aparente) do jurídico, decorrência do primado da lei e da neutralização do, judiciário, garantira uma desvinculaçãodo "Direito de suas bases políticas, éticas e, mais tarde, nas

70suas formas epigônicas, atê mesmo sociais" . 0 jusnaturalismo ra cional serâ responsável em parte, também, por isto. De fato, tendo sido o poder judicial "despolitizado", ele não poderia decidir evai tuais conflitos de interesses a partir de uma solução política. A esfera política era a legislativa, e dela sairia a lei aplicável pelo judiciário. Com o advento do constitucionalismo o direito já havia assimilado características do jusracionalismo porque estava assegurada a relação hierárquica de subordinação entre o conjunto de leis emanadas do poder competente e a constituição enquanto nor mação mais geral. Percebe-se com isto, que o dualismo que Caracte­rizava a percepção jurídica burguesa manifestada pelo binÔmio di reito natural/direito do rei, com a queda do absolutismo se trans­forma num monismo, vivido pelo direito positivo estatal. Com isto , a noção de sistema, organizado pelo jusnaturalismo racional será incorporada ao direito novo. Este será captado como um sistema or gânico de sentidos normativos. A judicatura proporcionará as bases do desenvolvimento desta teoria, questionando a existência ou não de lacunas no ordenamento, criando o conceito de completude orgâni ca do sistema jurídico.

Cora a escola da exegese a tarefa do juri£ ta, tipicamente dogmática, circunscreve-se, "cada vez mais, â teo­rização e sistematização da experiência jurídica, em termos de uma unificação construtiva dos«juízos normativos e do esclarecimento dos seus fundamentos, descambando por fim, já ao sinal do século XIX, para o positivismo legal, com uma autolimitação do pensaraentojurídico ao estudo da lei positiva e ao estabelecimento da tese da

71 ^estatalidade do direito" . 0 raciocínio se coloca como um racio- 72 -cínio "desterritorializado" , ou seja, um raciocínio distante daorigem e conexão do direito com suas bases políticas e sociais. 0discurso dos juristas, daí em frente, serâ o discurso abstrato que

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se refere ã lei. Esta ê xma. abstração de primeiro grau; o legalis­mo juridicista uma abstração maior; üma abstração de segundo grau, ocasionando a eclosão de um saber ao qual se denominou ciência do direito.

Jâ afirmamos que a primeira escola a colocar-se perante o problema da cientificidade do direito, foi a escola histórica alemã: ela foi a primeira a chamar o saber instrumen

7 X . ^talizador do direito positivo de ciência do direito, é possívelquo anteriormente esse mosmo saber tivesse sido compreendido como uma ciência; entretanto, neste caso, tivesse isto acontecido e es­taríamos frente a uma concepção de ciência que se identificava,sim piesmente, com a atividade de conhecer ou contemplar: a ciência era o saber em geral. A partir do sêculo XIX nos defrontamos com outra realidade. Passamos para um novo período epistemologico, a partir do qual, com a multiplicação dos eixos epistêmicos, a velha noção da theoria, resultado da atividade de organização e reprodu­ção do contemplado, mudara radicalmente. Os trabalhos de elabora - ção científica aparecerão como hipóteses de trabalho, e não como a representação objetivada de algo teorizâvel (ou representãvel). É o momento da crítica ã metafísica e da fixação da realidade empír^ ca. 0 positivismo,* filosofia empirista, empresta seu nome para a nova forma de aparecer/conhecer o direito.

0 raciocínio legalista dá ciência do di reito, abstração jurídica de segundo grau^^, como bem assevera Ter cio, ê uma "abstração da abstração" . Ocorre um duplo processo de "desterritorialização" do direito. De fato, às organizações centra lizadas da produção normativa seguirão uma serie de conceitos, re gras, e princípios, os quais instrumentalizando e capacitando o ju diciârio, serão incorporados pelo jurídico. Estas, decorrentes da atividade cotidiana dos juristas e de seu trabalho de organização e sistematização do conjunto normativo-estatal, se efetiva jâ como uma abstração da lei, ou seja, da forma (abstrata) de expressão ju rídica do estado moderno . Este saber jurídico, esta "ciência" do direito, ê o saber jurídico competente e dominante; os juristas se guirão seus passos como se fosse o único saber legítimo, verdadei­ro ou possível.

0 presente capítulo tem o própõsito de í i xar o imaginário jurídico não apenas como uma ideologia (frente a

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outras mais), no sentido de falsa consciência, ou falsidade, raas como realidade histórica contemporânea da ascenção burguesa nas so ciedades ocidentais. As varias formulações, as varias teorias jur^ dicas positivistas — o sociologismo naturalista, o normativismo , o egologismo, o tridiraensionalismo, o raciovitalismo, etc. — de veraos corapreendê-las não como ’’ideologias específicas" as quais de turpariam a verdade, mas enquanto formações teóricas decorrentes de um mesmo imaginário: a forma positiva de aparecer do direito do minante. Tais teorias jurídicas não são apenas o produto da prisão ideológica de seus autores, mas ao contrário ,.;>constituem variações cognoscitivas de uraa mesma realidade. Esta realidade atual do di - reito, resultante do longo e acidentado processo que acompanhou a ascenção do capitalismo,mostrando suas faces notadamente, segundo nossa hipótese, em três momentos: — (i) o momento da recepção do direito romano; Cü) o momento da.soberania do povo-nação e, (iii) finalmente, o momento da jurisdição e ciência.

Estamos, então, frente a um direito abs - trato e autonomizado; ura direito apto a expressar, em tese,' os ideais burgueses de liberdade e igualdade forraais. E a ciraentar , ao nível do iraaginário, a atoraização dessa sociedade raarcada pela existência de indj.víduos em situações desiguais, através da ficção da igualdade jurídica. Estamos diante da realidade do formalismoju rídico, onde as formas abstratas do direito, talvez, sejam a ulti­ma garantia de sua funcionalidade. 0 que é suficiente para que o saber jurídico promova o elogio da lei.

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2.3. Rede de poder e razão legal

0 positivismo fixa uma característica inu sitada na história do direito: a abstração de suas enunciações nor mativas as quais, assumindo a relativa autonomia de suas referên - cias genéticas, necessitam de \im universo de identidade específi - co. .0 direito, enquanto modo particulariz*ado de expressar valores dominantes, reduz-se a expressões normativas que se juridicizam em face de uma forma: a verdade do direito atual é a sua forma juridi ca.

Como vimos, o jusracionalismo dotou o di

reito contemporâneo de algumas categorias como a noção de sistema, incorporada pelo direito de tal modo que, hoje, não se o estuda se não pela otica de um sistema jurídica orgânico: o ordenamento nor mativo estatal. Tambem a noção de hierarquia, não de fontes ( esta provêm ainda dos glosadores), mas de normas parece ter alguma rela ção com o direito natural. Note-se que com a dicotomia direito do rei/direito ideal, os jusnaturalistas fundavam uma espécie de rela ção entre normas onde umas se fundamentavam em outras, tidas como superiores e, por isso, mais importantes. A validade que o relacio namento coerente das normas do rei com o direito natural expressa­va foi incorporada num monismo positivado onde 'a constituição se­ria a norma geral a partir da qual outras tantas poderiam, legiti­mamente, derivar. Entretanto, a influência do jusnaturalismo racio nal não para aí. Talvez Weber tenha razão quando afirma o direi­to contemporâneo corresponder a uma fase adiantada de uraa raciona­lização que corresponde a um processo iniciado pelos romanos e ul^ timado com o nascimento de uma casta de juristas especializados.

Mas em verdade, o que ocorreu foi a obje- tivação histórica dos valores de liberdade e igualdade, postulados pelo jusnaturalismo enquanto expressão de uma classe que, economi­camente dominante,, assumia, igualmente, a função de politicamente dirigente. E a abstração jurídica corresponde à forma necessária de expressão dos valores de liberdade e igualdade,, fundamentais pa ra a sociedade emergente.

Indicamos o pertencimento do imaginário ao mundo real, bem como o modo necessariamente invertido como ele orepresenta. 0 direito moderno ê como um "quadro de homogerieida-

7 6 "de" , que discursa a igualdade e a liberc^ade demonstrando ( peloseu silêncio) que fora de sua lei existe o reino das diferenças edas individualidades; ê, assim, o espaço forraal de designação dosvalores jurídicos a partir dos quais os conflitos exsurgidos dasdiferenças reais entre os homens são mediados. Eis porque se podeafirmar que os valores jurídicos se manifestam fora do seu domínio»

77"mediante seu contrario absoluto"

As mesmas forças históricas que, através do direito natural racional e das formulações teóricas da sobera - nia do povo-nação, encamparam os valores abstratos de igualdade e

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liberdade os formalizarão através de estrita regulamentação, denun 78ciando a "necessidade de cálculo de previsão" que o direito capitalista deve exprimir. A junção desses três valores: liberdade , igualdade e segurança/previsibilidade, objetivações de uma nova economia de reprodução das condições de existência'; humana, re-es- boçará a configuração do direito segundo uma forma inédita: a que evidencia a especificidade do direito atual. Esta, conjugando os três valores referidos, mostra-se como um complexo de normas jurí­dicas estatais. "Esí.as normas se apresentam como: a) gerais, opos­tas, neste sentido, âs disposições individuais que somente concer­nem a um caso ou uma pessoa determinada; b) abstratas, construídas por meio de conceitos autonomizados da realidade concreta; c) for­mais , despojadas de conteúdo concreto, "material"; d) estritamente regulamentadas, entendendo por este termo a estruturação específi­ca que tem por fim preservar a duração (e também garantir a previ-

79sibilidade) de uma ordem normativa"

Weber assinalou que a dominação mòderna80' -■ é a racional-legal . Neste sentido, o polo de legitimidade da re

lação de poder se desloca das mãos carismáticas do líder, ou da força divina encarnada no príncipe, para a abstração e impessoali­dade da lei. Assim', o que, em verdade, ocorre é outro deslocamen - to: o da legitimidade para a legalidade; mas a legalidade não maisorganizada com base no sagrado. "A lei, já encarnação do povo - na. 01ção torna-se a categoria fundamental da soberania do estado" ;ne£ te particular, a instância jurídica autonomizada, melhor do que a ética religiosa, responde pela "nova realidade" societária. Esta toma corpo apos o "desatamento" dos agentes de seus elos territo - riais. De fato, no momento em que o feudalismo entra em bancarro n ta, com a progressiva separação do homem dos meios de produção e dos elos pessoais que os uniam, é a lei abstrata e formalizada que esta apta a investir no imaginário representando as individualiza­ções e diferenças reais conforme um quadro coerente de homogeneida des que garante a liberdade e a igualdade jurídico-formais. Não hâ mais castas, ou feudos nem privilégios hereditários ou títulos heráldicos, nem classes sociais permanentes. 0 jurídico se encarre ga, então, de representar a homogeneidade desses agentes despoja - dos de seus meios de produzir. Entretanto, as relações produtivas continuarão a manter as diferenças necessárias para sua própria re

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82 produção. Sabemos que o indivíduo e uma invenção recente . Suasraízes são encontradas na divisão social do trabalho, passando p£ la divisão do trabalho manual/intelectual e culminando no despoja- mento do produtor direto dos seus meios de produzir. Estes se rei- ficam, são um ente autônomo, separado tanto do trabalhador como do capitalista. Ora, o funcionamento do aparato produtivo encarna uma relação espãcio-temporal traçando um codigo de localizações indivi dualizadas no seio da produção conforme funções que autorizem uma hierarquia a qual estatui diferenças entre os homens. Esta indivi­dualização jâ ê o resultado do processo de liberação dos agentes

8 3de suas ligações territorias anteriores . A lei contribui para o aguçamento deste processo, garantindo-o. Deste modo, a lei, ao me^ mo tempo em que é indispensável para a continuidade e reproduçãodo processo referido, cimenta o fracionamento por ele operado, instau rando o reino imaginário dos homens livres e iguais. A unidade re presentada pela lei ê, ao mesmo tempo, o fundamento e o resultado da instauração do universo das individualidades. Ela, não apenas oculta os fracionamentos reais da sociedade, mas contribui, efeti­vamente, para instaurá-los^^ . é uma força material agindo na his tõria. Sua linguagem possui a aptidão necessária para manter a coe são dos agentes atomizados, aglutinando suas diferenças e divergên cias. Suas prescrições, os vazios de seus ;significantes, permitem certa maleabilidade interpretativa, de tal modo que se pode afir - mar os vários métodos hermenêuticos, não como procedimentos juríd^ cos em busca de uma possível "essência" resgatável das palavras da lei, mas corao operações metódicas de revisão (de significados) doQ runiverso jurídico era face de contextos novos . Estes procediraen - tos não passam, segundo Warat, de recurso operadores de redefini -O ções indiretas das palavras da lei . Pode-se portanto dizer, co rao Poulantzas, que a lei, organizada conforrae o "puro signo" (abs­trata, forraal, universal, etc.) assurae uma função privilegiada no mecanismo de representação imaginária, é o real-imaginârio que in­vertendo o real-concreto contribui para a cimentação/coesão da for mação social preservando sua unidade.

Caracterizado o positivismo (modo de apa- recer/conhecer atual do direito), esboçamos sua gênese e vimos a forma jurídica apõs sua emergência. Dito o como do elogio da lei , cabe esclarecer o seu porque.

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Dois codigos distintos; eis a colocação de Foucault; um ë o codigo da lei, o outro, o das disciplinas; o primeiro se concentra no estado, o outro pode ultrapassâ-lo. Entre tanto, os dois codigos não se organizam de tal modo que o primei­ro seja o outro do segundo. Ao contrario, são, apenas, duas faces de uma mesma substância: o poder. Vejamos estas colocações, e a sua pertinência para o nosso estudo. Verifiquemos a possibilidade de afirmar o poder como uma relação objetivada em dois cõdigos di£ tintos, mas estreitamente interligados: o cõdigo jurídico e o cõ- digo disciplinar.

- 8 70 grande mérito da genealogia do poderfoi perceber a materialidade de uma tecnologia de poder à qual Fou cault denominou disciplina. Esta percepção abriu espaço para a re£ valiação do universo do imaginário, resgatando-o do mundo das idéias e conectando-o com a objetivação das práticas cotidianas de podèr. Por este caminho trilhará Poulantzas em "0 Estado, 0 Poder, 0 So cialismo", modificando, de algum modo,seu pensamento firmado ante riormente em "Poder Político e Classes Sociais". De fato, aqui, e_s te autor ainda não desenvolvia, exaustivamente, este aspecto, embo ra já o esboçasse. Pensamos que as colocações de Foucault foram im portantes para Poulantzas.

víssemos o poder não como uma substância, uma coisa que possa ser apropriada, a qual pode ser possuída, toma da ou alienada, mas como relação formando uma rede difusa de for ças interligadas; uma rede não descendente a qual provindo de um centro (o estado) se prolonga até domínios exteriores e perifêri - cos, mas ao contrário, que a partir de vários pontos celulares e infinitesimais ascendesse até o centro produzindo caracteres, prá ticas, tecnologias, saberes e discursos que moldarão o corpo so ciai; visualisâssemos assim o poder e estaríamos frente a Foucault. Este intelectual mostra o poder como relação e define os corpos so ciais contemporâneos como "sociedades disciplinares". Lugares on­de a disciplina, enquanto tecnologia de um poder específico, cria certa "anatomia social" sobre os corpos individualizados, moldando -os através de práticas normalizadoras. Vegamos o que isto pode significar.

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0 poder encontra sua base de sustentação em dois registros de controle: o registro do direito e o da norma lização disciplinar. 0 primeiro representa a unidade da formação social investindo no imaginário social que fornece o quadro de c^ mentação necessário para a reprodução societária. 0 segundo, fun cionando facilmente dentro do sistema de homogeneidade imagina - ria promovido pelo jurídico, aguça-o, de certo modo, todavia, re cheando o sistema de igualdade/liberdade formais com medidas hie-rarquizantes as quais, constituindo uma "gradação de diferenças

88 dividuais" , normaliza os agentes. Assim, se um ê o registro dalei, geral, abstrata e formal, encampação da liberdade e igualda­de, o segundo ê o registro da norma imperceptível, modeladora e produtora de corpos doceis. 0 primeiro registro emana do poder so berano e centralizado do estado objetivador da vontade do povo- nação; o outro provém e se multiplica em rede a partir de pontos moleculares múltiplos e infinitos situados na periferia do esta - do. ;

A concepção de estado em Foucault é limi tada, identificando-se com a visão juridicista: o estado é o apa­rato centralizado do estado, o domínio do público. Ora, a percep^r ção do papel e do domínio do estado deve ser ampliada encampando também o proprio domínio do privado. Afinal, como mostra Poulant­zas, o préprio eixo que estabelece o binômio público/privado, é uma "invenção" do estado. Eis porque devemos compreender as disci plinas, ou seja, os dispositivos disciplinares como também presen tes no estado; são parte dele (embora ultrapassem-no de muito) , e parte fundamental para sua reprodução. Se os aparatos, as inst^ tuiçôes que funcionam através da normalização não são exteriores ao estado, por outro lado, não respondem à mesma logica da lei . São duas lógicas distintas. Todavia, as lógicas da norma e da lei, conquanto não idênticas, desempenham papéis similares.

0 problema de Foucault foi que, identif^ cando o domínio do estado com o domínio legal, só poderia locali­zar o direito e as disciplinas em territórios distintos. Ora, o estado não é o terreno onde a lei é cidadã e a norma discipli - • nar estrangeira. Estas são peças de um mesmo dispositivo e situa­das num mesmo terreno; nas sociedades modernas uma é condição de existência e sustentação da outra.

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As disciplinas, corao mëtodo de "ortopediasocial", formadoras de corpos doceis, individualizados e localiza-

^ 89dos, são xnna invenção de curta historia , cuja data de nascimentopode ser apontada (séculos XVII e XVIII). Verdade que ejcistiramprocessos disciplinares anteriores â sua transformação em formulageral de dominação. É o caso da disciplina dos antigos conventos ,

- 90das casas monacais, dos exercitos, etc. . 0 modo de distribuição dos indivíduos nestas instituições foi tão fundamental para a so cicdaüc nascuntc quo osta o ubsorvou o o desenvolveu ato limites possíveis.

A disciplina age mediante distribuição e controle. Distribuem-se os corpos no espaço, distribuem-se os con­forme o tempo; são controlados seus movimentos e exercícios corpo­rais. Sua técnica ê a da recompensa e da vigilância. Extrai-se o máximo de tempo dos corpos. Cada um deles tem sua localização indi vidualizada, conforme uma escala de lugares; cada qual com tarefas próprias as quais, em grau ascendente, conforme valores relativos a uma prévia classificação, desenham os limites de uma rígida hie­rarquia funcional. Cada corpo num lugar correspondente a um nível ou categoria. Essa individualização do corpo societário é aguçada pela estratégia do controle, da vigilância e da recompensa. De fa­to, promove-se iim exame permanente, ininterrupto e invisível a par tir do qual se confrontam as aptidões e vontades dos indivíduos , prescrevendo-se punições ou vantagens. Entretanto, "A disciplina não é ... simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extraire acumular tempo deles, mas de compor forças para obter um apare -,

91 -lho eficiente" . Uma maquina que através da composição das forças corpóreas , "com os corpos localizados, atividades codi^Eicadas9 2e aptidões formadas" , multiplica numa combinação calculada sua eficácia e funcionalidade.

Esta formula de dominação, essa técnica de "bom adestramento" tem no corpo social não apenas o objeto so bre o qual age moldando-o, como também a matéria-prima que indus - trializa criando indivíduos. 0 homem, aqui, além de criação do p£ der, é instrumento para seus exercícios. Este procedimento socio - ortopédico revela um redescobrimento do corpo. Neste caso, o poder não sera apenas o pai que diz não, que censura, impede e proíbe Ao contrario, esse poder também autoriza, gera discursos e saberes.

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adestra, exercita, treina, torna o corpo mais util e mais útil : dupla utilidade. Utilidade econômico-funcional, de m lado, já que os corpos dos indivíduos são exercitados e controlados ao máximo para que forneçam ura máximo de trabalho com lam mínimo de dispêndio; e utilidade política por outro, pois aquele trabalho, a vigilância, a censura e a recompensa normalizara os agentes transformando-os em corpos politicamente dõceis.

Com isso, a massa e individualizada, ato- mizada: — em cada cidadão, um codigo. Hâ, portanto, um controlein visível, imperceptível e infinitesimal, não sobre a massa como um todo, mas sobre ela enquanto sobre cada ura. Regulam-se os detalhes, esquadrinhara-se o tempo e o espaço, os movimentos; calculam-se as forças e se as combinam multiplicando-as.

0 codigo disciplinar normalizando os seus objetos transforma-os numa massa homogênea de indivíduos. Mas aí , onde aparece um amontoado de homens sem faces, e portanto iguais , percorre também o fio indelével da microfísica desse codigo podero so: cada indivíduo está classificado conforme uma tábua de micro - julgamentos; está localizado conforme uma fila funcional e hierár­quica; está fichado no registro próprio da vigilância, da censura e da promoção. A ímassa uniforme e anônima que aí vemos não ê uma massa homogênea, raas mero aglomerado de corpos classificados e re conhecíveis. Ela ê fruto de um poder (o poder da sociedade disci - plinar) que estabelece uma relação de sujeição estrita: os indiví­duos são objetos e não sujeitos sociais.

A lei designa o sujeito (de direito), en quanto a normalização sujeita o objeto (do exercício disciplinar); a primeira cimenta/unifica o corpo social encampando no imaginário jurídico o discurso do povo-nação; a segunda fratura, atomiza a to talidade social individualizando os corpos; a lei fala em i|ome do direito; a normalização fala do que ê ’’natural" e cotidiano; a lei ê visível, e sua visibilidade ê essencial ã sua funcionalidade; a normalização ê imperceptível, "não existe"; o discurso da lei ema­na de um único lugar centralizado; o discurso das disciplinas pro vém de múltiplos lugares, de pontos periféricos, moleculares e pujL verizados^^ (concentrando-se também no estado). Como se vê trata - se de realidades distintas; no entanto constituem peças de lam úni-

CO dispositivos de poder: o dispositivo da dominação capitalista . Cada uma dessas peças ê essencial a continuidade da outra. E isso se dâ de tal modo que nas sociedades modernas não hâ lei sem disci plina e vice-versa. Eis o ponto a partir do qual ê possível esbo - çar a materialidade do imaginário jurídico contemporâneo.

Como dissemos, Poulantzas, retoma as colo cações foucaultianas. Sua preocupação, todavia, caminha em dois sentidos (silenciados pela genealogia do poder). 0 primeiro é o re lativo à ligação da disciplina com as relações de produção; o se gundo identifica-se com o proposito de interligar, teoricamente, a "maquina de docilizar corpos” com o estado, este enquanto monopoli^ zador, nas sociedades modernas, da violência legítima. Sabemos que o espaço das disciplinas para Poulantzas ê também o espaço do esta do capitalista (embora não se reduza a ele). Suas análises, portan to, trazem aspectos olvidados por Foucault.

A dicotomia entre o corpo individual e o corpo social ê consubstanciai â filosofia política que antecedeu as revoluções burguesas. De fato. Nela se precisava o lugar do indiv_í duo e se conferia ao estado, encarnação da vontade geral, um aspe£ to superior dotado de autoridade para, representando a nação, go- vernâ-la. Lembremos de Rousseau, para quem o homem assume uma in dependência cada vez mais evidente em relação aos outros homens , e uma dependência virtualmente progressiva em relação ao estado Ora, o que aparece aqui ê uma certa teorização onde o indivíduo - homem e sujeito de direito se circunscreve a um espaço que lhe ê peculiar, o espaço do privado: — o outro do público (este enten­dido como espaço do estado). Foucault percebe o indivíduo não co­mo algo "natural", senão como criação de um certo tipo de tecnolo­gia do poder. Neste caso os corpos individualizados não são, como nas teorias contratualistas, a realidade que, em comunhão referen- daria a autoridade do estado para manter, todavia, uma serie de prerrogativas e direitos individuais. Os próprios indivíduos são produto do exercício de um poder específico: o poder disciplinar . Mas, se Foucault chega aí, continua, entretanto, a ver a esfera das individualidades como a esfera do privado. Transparece, pois , o seu apego a uma certa visão limitada do fenômeno estatal. Alem de subestimar o papel do estado nas sociedades atuais, não capta sua ligação com as relações de produção e a divisão social do tra-

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balho, aspectos que poderiajn melhor elucidar a emergência das dis­ciplinas e sua complexa ligação com o jurídico. Eis onde entra Poulantzas: — as individualidades residem tanto nas relações de produção, como no estado. Este, ê co-constitutivo das relações de produção, tendo importância tanto no sentido de ocultar os fracio- namentos do corpo societário, como, também no sentido de sancioná- los e instituí-los. 0 direito desempenha os dois papéis; o primei^ ro através dos valores abstratos e formais de igualdade e liberda­de; o segundo por meio da encampação do sujeito de direito (o qual está em relação primeira com a atomização do corpo social e com as individualidades). 0 segundo papel cabe prioritariamente às técni­cas de que o estado lança mão,para seu exercício de poder e cuja materialização em sua "ossatura" institucional é apenas um aspec - to. As instituições "privadas" que trabalham uma microfísica do poder, promovem também o exercício do poder que é, igualmente, o poder n£ estado.

Procuramos em Poulantzas subsídios para nossa hipótese de que o imaginário jurídico integra um imaginário maior, dotado de materialidade, onde a lei e as disciplinas são dois dos seus aspectos, ambos presentes no, e utilizados pelo, es­tado. Uma visão que nos permita desmentir o positivismo como con­junto de idéias falsas, ptoduzidas por agentes comprometidos ideo­logicamente, com o poder. Na verdade, as teorias jurídicas positi­vistas são emanações discursivas do universo do real-imaginário Note-se que, segundo Poulantzas, "o indivíduo bem mais que criação da ideologia politico^jurídica C***)^ aparece (...) como o pontode cristalização material, ponto localizado no proprio corpo hu-

- 94mano, de uma serie de praticas na divisão social do trabalho" .Mas o fracionamento do corpo social não é resultado, apenas e dire tamente, das relações de produção. As individualizações estão nes­tas, como igualmente, no es>tado capitalista.

As práticas de poder do estado, se esco - ram numa tecnologia de produção de individualidades. Entretanto, o estado não é mero anotador dessa realidade. Ele produz fracionamen tos na mesma medida em que homogeniza os indivíduos representando- os na unidade do povo-nação. Este ente consagra a atomização socie tária através da criação das unidades-sujeitos de direito, inves -

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tindo, ao mesmo tempo, na sua cimentação imaginaria, o que promo - ve invertendo o real: a fração torna-se unidade; a diferença, igual dade e controle, liberdade. Estas praticas de poder produzem um imaginário onde o positivismo, ainda que reduzindo o universo do jurídico, fala a verdade.

Em síntese, o positivismo não ê um corpo de idéias sistematizadas e coerentes fundadas por intelectuais 0£ gânicos da burguesia, ou por juristas obliterados por uma espé - cie de "falsa consciência". Antes, trata-se, de forma espontâneade imaginário produzida pela pratica do poder (que incorpora e aguça a divisão social do trabalho presente nas relações de produção e na ossatura institucional do estado capitalista).

N O T A S

(1) - Machado Neto, A.L. "Teoria da Ciência do ..." op. cit. p. 121(2) - Cleve. Clèmerson Merlin. "0 Direito em Relação". Ctba, Ed. Veja, 1983 ,

p. 21.(3) - Sobre isso V. Kelsen, Hans. "Teoria Pura do Direito". Coimbra, Armênia

Amado, 1979. pp. 267-375.(4) - Coelho, L. Fernando.'Teoria da ..."op. cit. p. 65.(5) - 0 Quadro abaixo representa o processo de ontologizaçao do direito em

Cõssio;

REGIÕES SNTICASOBJETOS IDEAISCARACTERÍSTICA I - Irreais: não tem existência no espaço e no, tempo. CARACTERÍSTICA II - Não estão na experiência.CARACTERÍSTICA III - Sao neutros de valori

OBJETOS NATURAISCARACTERÍSTICA I - Keais: têm existência espãcio-temporal. CARACTERÍSTICA II - Estão na experiência.CARACTERÍSTICA III - Sao neutros de valor.

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OBJETOS CULTURAISCÂRACTERISTICA I - Ueais: têm existência espãcio teanporal CARACTERÍSTICA II - Estão na experiênciaCARACTERÍSTICA III - São -valiosos positiva ou negativamente.

OBJETOS METAPiSICOSCARACTERÍSTICA I - Ueais: têm existênciaCARACTERÍSTICA II - Não estão na experiênciaQARACTERÍSTICA III - São valiosos positiva ou negativamente.

(6) - Coelho. L. Pernando . "Teoria da ..." op. cit. p. 65(7) - Idem.(8) - Marques Neto. Agostinho R. op. cit. p. 132.(9) - Reale, Miguel. "Teoria Tridimensional do Direito". S.P. Saraiva. 1980 p

61.(10) - Idem.(11) - É o caso das normas consuetudinãrias, as quais embora eficazes e obser­

vadas, para efeito de aplicação, não podem violar os enunciados le­gais. AUTORIZAÇÃO aqui tem o sentido de compatibilidade entre a nor­ma costumeira e a norma sancionada por autoridade competente.

(12) - Chauí, Marilerta de Souza. Cultura e Democracia. S,P. Ed. Moderna, 1981.p.03. Tb. "Competência ?", in Leia Livros, ano VI, n9 57, maio/junho de 1983, p. 03.

(13) - Chauí, Marilena de Souza. "0 que é Ideologia". S.P. Brasiliense, 1981 .p. 23

(14) - De qualquer modo utilizaremos indistintamente ambas as expressões.(15) - Cf. Nosso Opúsculo. "0 Direito em Relação", op. cit. Ens. I.(16) - Sobre isto Cf. Chauí, Marilena de Souza. "0 que é Ideologia" op. cit.(17) - Rouanet, Sêrgio Paulo. "Imaginário e Dominação".Rio, Tempo Brasileiro,

1978, p. 12.*(18) - Althusser, Louis. "Aparelhos Ideológicos de Estado". In "Posiçõps-2" ,

Rio.Graal, 1980, p. 47.(19) - Bouanet, Sérgio Paulo. op. cit. p. 31.(20) - Idem(21) - Em busca de uma Ontologia do Direito que descortine a "essência verdadei

ra" do direito, Lyra rilho caracteriza o positivismo como ideologia entendendo-o como mero modo "deturpado" de conhecer o direito real.

(22) - Liakãcs, Georg. "Historia e Consciência de Classe". Porto, Escorpião, 1974.

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(23) - Esse todo téoríco coerente refere-se a certa fase teórica do filosofo ,jã vinculada* radicalmente, ao marxismo. A trajetória intelectual de Lukács inicia-se com Tim anticapitalismo vi m d o sob a forma de visão tragica do mundo. Cf. LBwy, Michael. "Para tnna Sociologia dos Inte - lectuais Revolucionários : A evolução Política de Lukãcs (1909-1929)" S.P. LECH, 1979. Tb. Konder, Leandro. "Lukãcs". P. Alegre, L&PM,1980

(24) -McDonough, Roisin. "A Ideologia como Falsa Consciência: Lukãcs." in"Da Ideologia". Org. Centre for Contemporay Cultural Studies, Rio , Zahar, 1980, p. 49.

(25) - Idem, p. 54.(26) - Hall, Stuart; Lumley, Bob e Mclennan, Gregor. "Política e Ideologia :

Gramsci" in "Da Ideologia", op. cit. p. 64.(27) - Idem, p. 65(28) - Rouanet, Sêrgio Paulo, op. cit. p. 104.(29) - Idem, p. 108.(30) - Poulantzas, Nicos. "Poder Político e Classes Sociais no Capitalismo de

Hoje ". 2a. Ed. Rio, Zahar, 1978.(31) - Relativamente, o mesmo se pode afirmar de Althusser com a sua teoria

dos A.I.E.(32) - Clarke, John. Connel, Ian e Mcdonoug, Roisín. "Identificação Errônea de

Ideologia: a Ideologia no Poder Político e Classes Sociais" "Da Ideologia", op. cit. pp. 140-141.

(33) - Poulantzas, Nicos. "Poder Político e ..." op. cit. p. 203. Cf. Clarke ,John et alii, op. cit. p. 141.

(34) - Chauí, Marilena de Souza. "0 que i Ideologia", op. cit.(35) - Idem. p. 92.(36) - Bielsa, Rafael. "Metodologia Jurídica". Libreria y Editorial Castellvi,

Santa Fe,-1961, p. 207.(37) - Idem.(38) - Ib.Id.(39) - Chauí, Marilena de Souza. "Cultura e Democracia", op. cit. p. 07.(40) - Ferraz Jr., Tercio Sampaio. "Função Social da ..." op. cit.(41) - Machado Neto, A.L. "Compendio de Introdução ao Escudo do Direito".S,P.

Saraiva, 1073, p. 147.(42) - Adolfo Merkel, Kelsen e CÕssio levaram ao extremo a consideraçao do d^

reito segundo essa paradigma, criando a teoria da estrutura pirami - dal do ordenamento jurídico. Aqui, os enunciados jurídicos extrava - zam o sentido da lei manifestando-se nas normas jurídicas, expressão esta que tenta acompanhar a juridicidade desde as normas mais generi

cas até as mais individualizadas, como o contrato ou a sentença judj. ciai. A relaçao de conexão entre as normas ê de derivação e fundamen taçao, sendo que a inferior sempre se -validara funéamentando-se em outra superior; por sua vez, daquela imediatamente inferior pode d£ rivar outras normas, de tal maneira que as mais individualizadas s^ riam pura fundamentação, não podendo derivar delas quaisquer outras expressões normativas. 0 critério de -validade, portanto, e eminente­mente formal: logico em Kelsen e ontolõgico em Cõssio. Isto denuncia o formalismo do direito dominante contemporâneo. Sobre isso ver A.L. Machado Neto. "Compêndio de ..." op. cit. p. 147.

(43) - No drama GBetz von Berlichingen. V. Saldanha, Nelson. "Legalismo e Ciencia do Direito". S.P. Atlas, 1977, p. 49.

(44) - Poucault, Michel. "A Verdade e as Formas Jurídicas". Cadernos PUC/RJ ,Série Letras e Artes 06/74. Caderno le, 1974.

(45) - Saldanha, Nelson. "Legalismo e ..." op. cit.(46) - Sobre isso V. Thompson, Augusto F.G. "Escorço Histérico do Direito Cri­

minal Luso-brasileiro". S.P.,, Rev. dos Trib., 1976, ppM 77-115.(47) - Saldanha, Nelson. "Legalismo e ..." op. cit. p. 52(48) - Coelho, L.Fernando. "Teoria da ..." op. cit. p. 44(49) - A palavra auctoritas provém de augere, que significa aumentar: aumentar

a fundação (da cidade romana). Cf. Ferraz, Tercio. "Função Social..." op. cit. p. 29.

(50) - Idem, p. 24.(51) - Ib.Id. p. 30(52) - Ib.Id. p. 32(53) - Foucault, Michel. "A Verdade e..." op. cit. p. 50(54) - Idem, p. 51.(55) - Saldanha, Nelson. "Legalismo e ..." op. cit. p. 48(56) - Foucault, Michel. "Soberania e Disciplina". Jji ’*Micrd)fÎsica do Poder" .

Rio, Graal, 1979, p. 180.(57) - Idem, p. 181.(58) - Idem, p. 187.(59) - A noção de infraçao, ou crime, nasceu em oposição ã noção de dano. Este

poderia sofrer reparação pelas partes, através de vários modos. Com o surgimento da centralização do poder nas maos do príncipe, cria-se a figura da infração, a qual sera julgada, enquanto ilícito, por um terceiro, exterior ã relação entre as partes. 0 infrator sera punido nao pela violação da lei, mas pela agressao ã pessoa do rei. V. Fou­cault, Michel. 'Vigiar e Punir", op. cit.

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(60) - Sobre isso Ver Lyra 7ilho, Roberto, "Para -um Direito sem Dogmas".gre. Sérgio Tabris Ed., 1980.

(61) - "A Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789, em seu art.39 proclama assim que: 'o princípio de toda soberania reside essen - cialmente na nação”.’ V. Perraz Jr., Tercio. "Função... "op. cit. p.63

(62) - Bertognoli, Afonso. "A Doutrina Política de Rousseau" jji Rousseua, JeanJacques. "0 Contrato Social". Rio, Ed. Ouro, sem data, p. 24.

(63) - Rousseau, Jean-Jacques. "0 Contrato Social", op. cit. p. 41.(64) - Idem, p. 72.(65) - Leonel Severo Rocha (op. cit. p. 71) elabora vmia síntese das principais

formações discursivas sobre a soberania. Mostra que a partir da con­solidação do capitalismo a "teoria da soberania" continuara sofrendo modificações, as quais, através de ruturas, criarão novos discursos conforme a correlação de forças em dada formação social.

(66) - Saldanha, Nelson. "Legalismo e ..." op. cit. p. 52.(67) - Lembremos que até aquele momento, o poder de julgar pertencia ao rei ,

e ele o delegava, através de doações ou venda de cargos de Juiz, a terceiros, mantida, todavia, a justiça como expressão de seu poder pessoal.

(68) - Cf. "Vocabulário Jurídico". De Plácido é Silva. Vol. III, Rio, Forense,1975, p. 8p.

(69) - Neste particular não entraremos no domínio dos processualistas, por serdesnecessário aqui discutir sobre o conceito de jurisdição no direi­to adjetivo, bem como a diferença entre jurisdição e competência.

(70) - Ferraz Jr., Tercio Sampaio. "Função Social.." op. cit. p. 65.(71) - Idem, p. 70.(72) - Sobre isso Ver: Dos Santos, Laymert G. "Alienação e Capitalismo". S.P.,

Brasiliense, 1982.(73) - No caso da escola histórica não podemos falar, propriamente, em "lega -

lismo". Mas de qualquer modo o "seu" direito, se não era a lei, erao direito dominante aceito/tutelado pelo estado, já que o volksgeist - espírito do povo - era mais um conceito cultural do que uma reali­dade histórica: identificava-se com a produção jurídica dos sábios e eruditos comprometidos com a estrutura de dominação.

(74) - Em artigo elaborado juntamente com Edmundo Lima de Arruda Jr., chamamosde sofisticação do discurso ideológico, ou ideologia de segundo grau ao positivismo jurídico. Nossa concepção de ideologia a epoca a ace^ tava como laanifestação discursiva não científica e, portanto, neces-:; sariamente falsa. Já esboçávamos, entretanto, a percepção da propria

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ciência como manifestação do naniverso imaginário.(75) - Terr a 2 Jr., Tercio S. ”runção Social...** op. cit.(76) - Poulantzas, Nicos. "0 POder, 0 Estadq, o Socialismo”. Rio, Graal, 1980,

p. 98.(77) - Poulantzas, Nicos. **Hegemonia y Dominaciõn em el Estado Moderno". CÓrdoi

ba, Pasado y Presente, 1968, p. 23.(78) - Idem, p. 25.(79) - Ib.Id. p. 28.(80) - A proposito Cf. Weber, Max. "Economia e Sociedad". T.L. Mexico, 1969

Aqui esse autor entende existirem três tipos de dominação, conforme sua legitimação, isto e, conforme a natureza dos princípios que dão estabilidade a dominação. Distingue entre dominação tradicional, ca­rismática e dominação racional-legal. Embora esses três tipos de do­minação não se encontrem em f o m a pura, tem-se por tradicional e le­gitimada na crença da justiça dimanada da continuidade dos princí­pios herdados de antepassados, como na obediência-lealdade dos súdi­tos aos reis ou governantes. Por carismática, a legitimidade prove - niente das qualidades de alguém para dirigir o grupo social (' seja pelo heroi, profeta ou demagogo). Enfim, por dominação racional- le­gal, tem-se a legitimidade fundada na crença da lei impessoal. 0 apa rato administrativo que corresponde a dominação legal ê chamado bur^ cracia. E o direito se apresenta como abstrato e formal.

(81) - Poulantzas, Nicos. "0 Poder, 0 Estado, ... "op. cit. p. 99(82) - Poucault diz que £ homem é vona invenção recente. Cf .- "As Palavras e..."

op. cit. Ver adiante, p. 110.(83) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. cit.(84) - Idem. "0 Poder, 0 Estado..." op. cit. p. 98.(85) - Warat, L.Alberto. "Mitos e Teorias na Interpretação da Lei". P.Alegre .

Síntese, 1979, p. 93.(86) - Idem. V. Tb. Clive, Clêmerson Merlin. " 0 Direito em..." op. cit. p.24-

25.(87) - Sobre isso V. Foucault, Michel. "Vigiar e Punir". Petropolis, Vozes, 77

Tb. "História da Sexualidade (I A vontade de Saber)". Rio, Graal,80, notadamente capítulo V: Direito de morte e poder sobre a vida. Ainda "Microfisica do Poder", Rio, Graal, 1979. Trata-se de uma coletânea de textos de Foucault organizada por Roberto Machado. Conveniente - ver a introdução do Trad, e Org. (Por tnna Genealogia do Pcíder) . Fun­damental o texto XII: Soberania e Disciplina, p. 179.

Ill

(88) - Poucault, Michel. 7igiar e Punir, op. cit. p. 164.(89) - A "invenção dessa nova anatomia política não deve ser entendida como

xnna descoberta subi ta mas como xnna raultiplicidade de processos mui - tas vezes Tnínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas , que recordam, se repetem, ou se imitam, ap5iam-se uns sobre os ou - tros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em conve^ gencia e esboçam aos poucos a fachada de um método geral... 0 que não impede que se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas". Foucault. "Vigia: e Punir", op. cit. pp. 127-128. Note-se que, historicamente, no mes­mo momento em que se radicalizavam os discursos jurídicos da sobera­nia do povo-nação e se buscava um jurídico fundado sobre as premis - sas iralorativas da igualdade è liberdade, as disciplinas, de simples métodos esparsos e utilizados aqui e acola, transformam-se em "fõrm_u la geral de dominação".Ë que o mesmo discurso que diz a lei favorece a disciplina.

(90) - Poucault, Michel. "Vigiar e ..." op. cit. p. 126(91) - Idem, p. 147.(92) - Ib.Id.(93) - Idem. "Soberania e Disciplina", "Microfísica do..." op. cit. pp.179-

191. Essa colocação será questionada mais adiante.(94) - Poulantzas, Nicos. "0 Poder, 0 Eÿ.tado,---" op. cit. p. 72.

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capítulo IV

AO DIREITO QUE FAZ A LEI

1. 0 NÍVEL JURÎDICO-ESTATAL

0 saber produzido pelos juristas necessi­ta sofrer alguns questionamentos. 0 siraplismo idealista de suas ex plicações, e o empirismo de suas "descobertas" devem ser revistos. Todavia, estas limitações podem ser explicadas. As teorias jurídi­cas, corao jâ salientamos, são tecnologias, saberes orientadores do agir jurídico-institucional. Se, por um lado, o estrito legalismo dessas teorias não ê apenas "criação inventiva" dos juristas, por outro, a redução do saber jurídico ã mera descrição fenomênica de£ se legalismo, tomando-o, e so a ele, como digno de teorização, ê lamentável. Aliás, o direito — leia-se aqui a doutrina — se ca racteriza por um duplo e contraditorio aspecto: — ê saber sobre ura objeto, no caso o direito, e, ao mesmo tempo, ê parte desse me^ mo objeto (já que a doutrina ë tarabêm fonte do direito). Assira o saber jurídico, além de um saber é, concomitantemente, um dos meios de expressão (ao lado da lei, da jurisprudência, etc.), do jurídi­co. Ora, esta simples ambiguidade desnuda o caráter tecnologico de^ se discurso, desvendando, igualmente, os seus limites teoricos in­trínsecos.

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Nenhtim saber pode ser fonte do direito sem que seu objeto confirme o direito dominante. Esta tendência locali za o discurso jurídico tradicional no espaço que ocupa; teorização instrumental, circunscrita a operacionalização do jurídico esta tal. Ao contrário de colocação comum, não ê o saber jurídico posi­tivista o responsável pela conformação da teoria do direito ao es­paço do direito positivo-estatal. Esta, ê uma realidade imposta pe la historia. Não podemos olvidar o papel do estado nas sociedades modernas, nem seu caráter de produtor de legalidade.

Temos estabelecido uma relativa sinonímia entre expressões como direito (positivo, dominante, moderno, atual, capitalista), sistema jurídico e ordenamento jurídico. Ao lado de^ sas expressões chamaremos mais uma: instância jurídica, ao nível jurídico^. Esta categoria pode, mais facilmente, instrumentalizar a análise do direito atual. Duas razões parecera essenciais para tanto: (i) o estudo da instância jurídica não so permite como exi­ge a percepção da relativa especificidade do direito nas formações sociais contemporâneas; (ii) depois, fugindo da mera descrição fun cional e justificadora do sistema ou ordenamento jurídico, o nível jurídico reclama pela sua localização no interior do modo de produ ção (este constit\aído pelo interrelacionamento dos vários níveis , como o econômico, o jurídico, o político, etc.), podendo explicar a gênese desta ou daquela forma jurídica, sua dinâmica e funciona­lidade, etc.

A explicação do direito enquanto instân - cia jurídica (localizada espacial e temporalmente) ê o que sugere o materialismo historico. Evidente que a pesquisa seduzida por es­te tipo de visão (alargando, consideravelmente o campo constituti­vo de seu objeto) privilegia o jurídico sancionado pelo estado co-

2mo tal .

A análise da instância jurídica coincide num ponto básico com os estudos dos juristas tradicionais. Entre - tanto, o que para os críticos não passa de um início de pesquisa , um ponto de partida teórica para a explicação do direito, entre os juristas tradicionais trata-se de um lugar do qual não se pode sair: "o direito ê o direito"^. Ainda assim há de comum entre as posturas teóricas o entendimento de que o jurídico moderno se apre

senta como um conjunto sistemático de normas gerais, abstratas e estritamente regulamentadas que encarnam os Tralores formais de li berdade, igualdade e previsibilidade (segurança, calculabilidade). Mas se ã teoria tradicional cabe apenas justificar, descrever e instrumentalizar esse conjunto, â crítica impõe-se a necessidade de explicâ-lo.

0 político e o jurídico são níveis espec^ ficos que, ao lado de outros como o econômico, formara um todo e^ trutural. Esta perspectiva contraria as colocações do jovem Marx , segundo as quais o jurídico-político ê uma ilusão; algo como um fe nômeno mistificador cuja função seria ocultar a essência da reali­dade social. Esse fenômeno ilusório e fantasmagórico, tratado se -gundo o modelo da alienação, identifica-se com certa produção ideo

- 4logica, entendida como emanação de uma ’’falsa consciência" .Na analise do direito, não devemos buscar

uma certa e possível essência social a qual, mistificada por fenô­menos ilusórios seria encontrada no homem-indivíduo-concreto, úni­co ser real, mônada essencial da realidade societária. Ao contra - rio, e este foi o caminho do Marx maduro, devemos nos referir a e£ truturas. Assim, o acesso ã categoria do modo de produção e inevi­tável. Miaille chkma atenção para o fato de que essa expressão não se refere apenas ao econômico, ou seja, ao nível das relações de produção. Alguns autores usam essa locução apenas nesse sentido Entretanto, quando normalmente se fala em modo de produção, e este ê o nosso caso, devemos visualizar uma unidade complexa, uma estru tura social a qual "consiste em um conjunto de níveis com estrútu-, ras próprias e eficácia específica, com predomínio, em última ins­tância, do econômico"^. É uma estrutura social com dominante, ou seja, "tim todo complexo com dominante"^. Isto não quer significar que os demais níveis sejam meros apêndices do econômico, subordinados a este segundo uma relação de causalidade mecânica. Porem não

7 -basta, como Engels ,afirmar que a infLuência não provêm -apenas dabase porquanto os níveis superestruturais igualmente afetam e in fluenciam as relações de produção. 0 próprio conceito althusseria-gno de sobredeterminação parece ser insuficiente. Este conceito to ma a metáfora marxiana do edifício composto por uma infra e outra super estruturas (no qual a primeira corresponderia ã base) que mutuamente se influenciam, entretanto com a dominância, em última analise, da infra-estrutura.

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0 sentido daquela colocação deve ser en­contrado no interior da unidade complexa; não pode ser estabeleci­do aprioristicamente, pois os vários níveis não são meros apêndi - ces do econômico. São antes verdadeiras condições para a existên - cia deste: "os diversos níveis superestruturais intervêm não secun9dariamente senão originariamente em uma estrutura social global" . Neste sentido, "dizer que em uma certa estrutura o econômico ë pre dominante em última instância, ê imdicar que ocupa lugar somente em função da uspocificiUade o do eficucia propria dos outros veis que constituem a estrutura social como unidade complexa"^^.

Segundo Poulantzas, o econômico não ê o sujeito central da estruturação social. A simples explicação de^ te nível pouco contribui para a explicação do todo. 0 modo de pro dução so pode ser explicado interpretando-se o papel de cada ura dos níveis do conjunto, bem como a funcionalidade e formas que assumem conforme a articulação com os demais níveis.

0 nível jurídico assume, na sociedade ca pitalista, uma autonomia relativa. 0 problema, por exemplo, da di_s tinção entre o direito e a moral ê relativamente recente. Porém , se a autonomia do jurídico sempre foi defendida pelos juristas tra dicionais (os quais, radicalizando esta percepção, juridicizam to das as relações s o c i a i s ) o mesmo não ocorre com os jusfilosofos críticos. De fato, as correntes dominantes — o voluntarismo de Reisner e Vychinsky, e o economicismo de Pashoukanis — praticamen te reduziram a nada esta relativa especificidade.

0 voluntarismo ê o resultado das investi­gações da escola'soviêtica dos anos/30. Filiando-se ã doutrina que defendia a existência de uma cultura proletária, esta escola acei­tava a distinção entre o saber burguês e o saber proletário. Sub£ tituiu, na U.R.S.S., a doutrina de Pashoukanis (a qual veremos a seguir). Baseada numa visão de mundo que superpolitiza o jurídico, reduziu-o ã expressão da vontade das classes dominantes. Neste sen tido, o direito ê proletário ou burguês conforme se situe em meio a uma cultura proletária ou burgjaesa: — o direito "é um conjunto de regras de conduta, que expressa a vontade da classe dominante , e que constituirá um ordenamento jurídico que ê, simultaneamente , um conjunto de costumes e de regras de vida, em comum, confirmadas

pela autoridade estatal, sendo estes dois»conjuntos garantidos pe la força coercitiva do estado, para salvaguardar, assegurar e desenvolver as relações e conciliações sociais necessárias e provei-

12tosas a classe dominante"A doutrina se mantêm fiel aquele marxismo

segundo o qual qualquer direito resulta como expressão de uma j só ciedade de classes. Anote-se a preocupação de Vychisnky que o dj reito tem por finalidade "desenvolver as relações de conciliação ne ccssarlas c proveitosas ã classe dominante". 0 direito, ê assim , apenas, o direito da classe dominante.

Muito embora se possa encontrar nessa e^ cola um certo normativismo, seu principal corifeu contesta as vi­sões que aproximam seu pensamento do juridicismo. Afirma que para

/

os normativistas o direito se explica por si so, não estando os ju ristas preocupados com sua elucidação. 0 contrario ocorre com ele. Entretanto, convenhamos, que se hâ distinção, esta a iarece a par - tir da ligação por este firmada entre o ordenamento jurídico e a vontade da classe dominante. Isso revela uma politização extremada do jurídico^^. Sua autonomia ê severamente reduzida, sendo expli­cada apenas pelo político; negligencia-se o papel do ecçnômico,bem como o proprio papel da instância jurídica enquanto tal. Aquele ê situado, inclusive, como um campo inerte passível de acionamento pela classe-sujeito^^. A ligação entre o econômico e o jurídico se desenvolve exclusivamente através de uma certa vontade toda podero sa.

Jâ o economicismo ê o modo mais comum de aplicação da teoria marxista ao direito. Manifesta-se como uma teo rização supervalorizadora do econômico como fonte de explicação dos fenômenos sociais. 0 direito ê compreendido corao simples epifenôme no, verdadeiro reflexo da infraestrutura. Ura efeito ilusório e fan' tasmagôrico servindo apenas para ocultar a realidade concreta^^ Reduz-se o real a sua expressão econômica; o que se encontra fora da economia foge da realidade; ê algo dela refletido, necessaria - mente falso. 0 economicismo de Stoutchka e Pashoukanis é a doutri­na jurídica aceita na União Soviética antes de Vychinsky. Suas limitações são evidentes. Mostrando o direito como disciplina - re flexo das relações de troca entre possuidores de mercadorias, ele sô poderá constituir-se numa sociedade burguesa. Não hâ, portanto.

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direito de outra espécie, iniciando~se coto o socialismo o processo de desaparecimento do fenômeno jurídico.

Esta perspectiva se desinteressa pelo es tudo dos demais níveis do modo de produção; o materialismo histor^ co se transforma numa disciplina econômica e a teoriá do direito numa teoria da economia jurídica. Olvidava-se a especificidade da instância jurídica sob o capitalismo. Se o voluntarismo não permi­te uma analise seria do grau de ligação entre o direito e o econô­mico, Pashoukanis ao considerar o direito (e o estado) como uma ojr dem ou sistema de relações correspondentes às relações entre po£ suidores de mercadorias, situa-se em outra dimensão. Ã primeiravi£ ta, sua concepção permite desvendar a relação do nível jurídico e^ tatal com a base econômica. Entretanto, reduz, em verdade, segundo um economicismo simplista, o direito e o estado a epifenômenos de^ ta base: rechaça, em relação ao direito, seu "caráter específicode sistema coerente de normas" e desconhece, assim, "totalmente .sua autonomia relativa"^^.

0 voluntarismo e o economicismo, segundo Miaille e Poulantzas, constituem verdadeiros "desvios" teóricos , tal o modo como interpretara a filosofia materialista, desfigurando -a. Pode-se perguntar: qual a importância dessas correntes teóri - cas para nós ? — Nossa intenção ao enfocá-las foi demonstrar co­mo, ao se tentar explicar a instância jurídica, se pode cair em erros, desprezando-se a especificidade desse nível. Este e um ris­co que a dogmática não corre porque se satisfaz em descrever o d^ reito, revelando seu caráter de sistema normativo autonomizado não se preocupando, porém, com sua explicação. Não ê o nosso caso. Vejamos, então as conseqüências daqueles desvios mencionados.

Poulantzas, com propriedade, identifica nas perspectivas mencionadas raízes de uma mesma problemática: a problemática do jovem Marx, abandonada pelo Marx maduro a partir de "A Ideologia Alemã"^^. Não quer Poulantzas afirmar que, delibe­radamente, os pesquisadores ligados às duas correntes tenham se valido de uma certa interpretação da obra marxiana que privile giou, de algum modo, as obras de juventude. Entretanto, nota-sene^sas elaborações teóricas uma certa coincidência com o que se con -

18vencionou chamar de "historicismo" . 0 "historicismo", presen-

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te também nas teorizações de Lukács ("Historia e Consciência de Classe”) ê característico de uma primeira fase do pensamento de Marx. A conseqüência maior dessa problemática ê reduzir a estrutu­ra social e a múltipla e complexa interação de seus níveis a um su jeito central que desempenha o papel de essência. Todo o resto se apresenta como aparência, ou seja, como algo falso, fruto da astú­cia maliciosa da historia. Neste particular, todas as expressões fenomênicas existentes no universo único e complexo são manifesta­ções ou deturpações daqual ossôncia. Poulantzas nota quo nas obrus de juventude, Marx elabora uma crítica ao idealismo hegeliano mate rializando as determinações historicas^^. Porem, ficou, ainda,por algum tempo, prisioneiro do pensamento hegeliano. Tendo elaborado uma crítica a partir do modelo proposto por Fuerbach, fundiamentou seu discurso nos ”indivíduos concretos-homem genérico”; a essên - cia da sociedade. 0 lugar do espírito absoluto de Hegel ê tomado por esse sujeito — o homem — da historia. Apenas ele ê real , o restante não passa de conseqüência do fenômeno da alienação.

jOra, tanto no voluntarismo de Vychinsky

quanto no economicismo de Pashoukanis, essa problemática está pr£ sente. Lembremo-nos de que no voluntarismo o direito sobre uma ”su perpolitização”, constituindo expressão (conjunto normativo) dos interesses da classe dominante: esta a classe sujeito criadora das normas jurídicas. Já no economicismo, o nível-fenômeno-sujeito da histórica ê o econômico: o direito ê emanação deste nível, consti­tuindo um seu apêndice.

0 ”historicismo do sujeito” se caracteri-' za pelo fato de que ”os diversos níveis do conjunto da estruturaso ciai, e suas relações, estão fundadas era sua origem genética por um sujeito criador da sociedade e princípio unilinear, em seu de senvolvimento, da historia. Esses níveis formam uma 'totalidade na medida em que se supõe que são engendrados por um centro, con£ tituindo todo nível uma 'pars totalis’, uma simples expressão des­se sujeito central. Dito de outro modo, as diversas realidades so ciais são consideradas como se tivessem lam sentido conquanto raani- festam, sob forma e aparências variadas, uma essência. São reconhe cíveis aqui elementos característicos da teoria hegeliana, na qual o espírito absoluto ocupa o lugar do sujeito central. A absorção dessa problemática pelo marxismo aparece sob diversas formas: esse

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sujeito pode estar representado pela 'classe social', ou pela 'pra xis', ou também por um certo nível da estrutura social, neste caso pelo econômico"^®.

Esse tipo de raciocínio ('desviante') su bestima a especificidade da instância jurídica. Veja-se que o eco- noraicismo relaciona o direito com o nível das relações de circula­ção de mercadorias. Já, o voluntarismo, mostra-o como ura conjunto de normas organicamente ligadas aos interesses de uma classe-sujei^ to dominante.

Por outro lado, nas teorias jurídicas do minantes o direito ê estudado através de um trans-historicismo que o define pelo seu modo de aparecer imediato. Daí o direito não é de tal ou qual época e espaço determinados, assumindo tais e tais caractiérísticas, mas, simplesmente, em fenômeno universal. 0 po sitivismo enquanto saber, embora assumindo e reproduzindo a relati va autonomia do direito, ao descrevê-lo pu instrumentalizá-lo tec­nologicamente, não consegue dar conta dessa autonomia. Atra;vés de conceitos como heteronomia, alteridade, bilateralidade recíproca , etc., o que se faz, em ultima análise, é caracterizá-lo como siste ma de normas coercitivas, dependentes do acionamento do aparelho centralizado do estado, e nada mais. Assim, o próprio saber jurí­dico, defendendo a autonomia de seu objeto, para demonstrá-la socorre-se da noção de coerção. Neste ponto, por uma espécie de in

21 ~versão qualquer, o direito passa a ser definido pela sanção .Mas sanção oficial, do estado detentor do monopólio da força, porque em sociedade outros sistemas normativos podem acionar, como o di-~ reito, mecanismos coercitivos. A diferença, neste particular, é que esses mecanismos, difusos e pulverizados pelo corpo social,não estão centralizados ã disposição do aparato estatal. Aparece o d_i reito substancializado; uma espécie de corpo particularizado, tuna coisa-sujeito dotada de pròpriedades intrínsecas e trans-históri - cas impondo sua verdade ao corpo social e respondendo pela ordem e segurança deste. Esta noção é o oposto daquelas vistas anteriormen te — o voluntarismo e o economicismo — onde o jurídico objetiva va-se, também como coisa C uma coisa ilusória e fantasmagórica pa­ra os economicistas; inna coisa instrumento para os voluntaristas), mas, no entanto, como uma coisa-objeto, totalmente dependente, ou do econômico Ccirculação de mercadorias) ou da vontade de uma cla^

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se cujeito; algo destituído de personalidade, sendo comandado dé fora.

Miaille demonstra que o raciocínio quevincula de modo mecânico o direito à sanção, o faz de modo errôneo,por dois equívocos. 0 primeiro ê tomar a sanção como coerção, ouseja, como repressão; o segundo consiste na concepção da norma co

22mo imperativo C^utorizante ou não) . Quanto ao primeiro aspecto-• 23Miaille argumenta, com acerto, e o faz também Roberto Lyra Filho ,

que "um direito que se mantivesse so pelas sanções repressivas e,24portanto, pela força nao duraria muito tempo" . Na verdade, se a

instância jurídica de uma sociedade capitalista ê constituída por ura conjunto de normas sancionadas, elas o são não no sentido de normas repressivas garantidas pela força, mas no sentido de que são normas tuteladas pelo estado. Toma-se a sanção aqui, não como sinônimo de coerção/repressão, mas no sentido de que as normas ju­rídicas são sancionadas (autorizadas) por um poder competente; si^ nifica dizer que as normas são "estritamente regulamentadas". Posi cionam-se conforme um sistema que prevê e regulamenta sua propria dinâmica através da criação de novas normas (as quais serão saneio nadas). 0 direito contemporâneo ê xim direito onde a forma, o pro­cedimento, tem significação especial.

0 segundo problema ao qual Miaille chama atenção, como vimos, ê o da tradução da norma jurídica como impe­rativo . Retomando a raiz da palavra norma, aquele autor demonstra seu signif icado de medida ; a norma jurídica não ê uma obrigação , mas um instrumento de medida. Tal afirmação se baseia, também ,nas colocações de Marx sobre o "fetichismo da mercadoria" ; --"daí, o valor das mercadorias passar pelo que não ê, uma qualida­de intrínseca dos objetos: sob a troca dos objetos dissimula -s seuma relação social real, a que organiza a circulação das coisas por

2 Suma certa organização dos homens" .

0 direito ê um sistema de normas, unida - des de medida para as relações reais de troca entre equivalentes . Ora, trocas so se efetivam a partir de relações entre pessoas. Sen do que a norma não pode ser pensada como simples produto da inteM gência racional, criada por homens anteriores a ela para discipli­nar suas múltiplas atividades, impõe-se ex|)licar a ligação indisso lúvel entre a pessoa e a norma. 0 homem moderno ê a um tempo,suje^

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to e objeto do império jurídico. Ele cria as normas e as obedece . Miaille explicará o jurídico atual a partir das relações de circu­lação de mercadorias. Para ele, o fetichismo da norma e da pessoa oculta o fato de que as relações entre pessoas jurídicas são em verdade relações entre indivíduos concretos. Nesse sentido, o jur^ dico ê a medida das relações sociais, e estas se expressam no si^ tema jurídica; a imperatividade das normas jurídicas nada mais ê do que parte do imaginário. A ligação entre a forma valor e a for ma jurídica (igualdade manifestada pelas noções fetichizadas de norma e pessoa jurídicas) parece demonstrar que a imperatividade não reside na norma, más nas relações reais por ela medidas e ocul_ tadas. Eis porque Miaille definirá a instância jurídica como " o sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de trocas eco nÕmicas e sociais .

Essa colocação caracteriza o direito como forma; uma forma específica e historicamente situada de disciplina das relações sociais. Ésta é, na verdade, uma teoria da autonomia relativa da forma jurídica, concebendo as relações de produção co mo relações determinantes, em ultima instância, e as relações decirculação e distribuição de mercadorias como aquelas qué consti -

27 ^tuem e reproduzem as relações legais . Este raciocínio está pr£sente em vários autores além de Miaille. É o caso de Juarez Cirino

28 29dos Santos , de Poulantzas e mesmo, sob alguns aspectos, deFoucault^®.

Miaille e Cirino dos Santos retomam, de certo modo, a otica economicista de Pashoukanis, porém relativizam -na, pois aceitam as relações de produção como determinantes do ju rídico, em última instância. Curiosa é a presença desse economicis^ mo em Miaille, o qual, na mesma obra, critica-o com severidade. En tretanto, esse pensador evita as conseqüências graves do raciocí - nio puramente econômico: a redução do objeto-direito ã esfera eco­nômica e a percepção do imaginário como fantasmagoria , ilusão e falsidade. 0 mesmo ocorre com Cirino dos Santos, para quem " a anã lise da forma do direito, explicada pela produção de mercadorias , indica que a forma jurídica possui uma base social objetiva, como medida geral de troca de equivalentes: não é 'mera máscara' ou

’ilusão ideologica', o que significa que a extinção das superestru turas Cformas jurídica e política) exige, cojno mediação histórica, o desaparecimento das relações objetivas da produção de mercado rias Corigem e fundamento da forma legal)

Se Pashoukanis inaugurou um pensamento ju rídico conformando-o 5 análise da esfera de circulação de mercado­rias , os autores mais recentes, deslocaram o foco de explicação pa ra as relações de produção C®ntre as classes sociais). Mas, se e^ se deslocamento teõrico recupera, por ura lado, a percepção da rela tiva autonomia do jurídico, por outro continua prisioneiro de uma espécie de logica que privilegia o econômico.

Este panorama começa a mudar com Poulant- zas Cnuma segunda fase) o qual, apos a revisão de suas teses ante­riores, notadamente das desenvolvidas era ’’Nature des Choses etDroit", começa, desde 1964, com os trabalhos mais tarde reunidos no

- 32volume "Hegemonia y Dominacion en el Estado Moderno" , a desenvol^ver uma análise da forma jurídica moderna que não tem receio de sedefrontar com os múltiplos fatores que, num mesmo modo de produção,agem sobre o direito (os quais não podem ser conhecidos mediante amera dedução da esfera das relações produtivas).

Nas relações capitalistas de produção en contramos um ponto de partida para a compreensão da forma, da fun­cionalidade e da autonomia, ou seja, da especificidade do jurídico nas sociedades contemporâneas. Elas são a base teórica que possibi^ lita decifrar o universo jurídico, especialmente, porque nelas ra dica o ponto nodal da explicação da emergência das característi­cas primeiras do direito; o sujeito de direito individualizado e a liberdade e igualdade formais encarnadas num conjunto geral e orga nizado de princípios normativos abstratos.

Definindo as relações de produção ’ como uma combinação articulada de alguns elementos — "o trabalhador (o produtor direto), os meios de produção (objetos e meios de traba - lho) e o não-trabalhador (o quál se apropria do trabalho exceden - te)"^^ — Poulantzas retoma Marx demonstrando que conforme a com binação entre os elementos constitutivos (das relações produtivas) temos relações sociais (políticas, jurídicas, etc.) distintas. A principal diferença, neste ponto, entre as relações capitalista

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de produção, e as pre-capitalistas C^odos de produção asiático feudal ou escravista) e a separação entre o produtor direto e os meios de produção, constitutiva das primeiras. Ora, a não-sepaita - ção do produtor direto dos meios de trabalho vai dar origem a uma estrutura social onde os vários níveis — o econômico, o jurídico, o político — não existem enquanto tais, ou seja, esses níveis apresentam-se fundidos, amalgamados, não autonomizados (relativa - mente) um do outro, como atualmente.

No item referente ao imaginário jurídico,demonstramos que a autonomização do direito, alem de material e

34real (a despeito de que algumas correntes afirmem o contrario) , ê historicamente recente; está intimamente ligada à progressiva con solidaçãq do poder burguês, e não pode ser dissociada deste fato . Como Marx demonstra em "0 Capital" a relação direta existente en tre os proprietários dos meios de produção e os produtores dire - tos (...) ê a que nos revela o segredo mais recôndito, a base ocul ta de toda a construção social"^^. No caso do capitalismo com a se paração do trabalhador direto dos meios de produção, os vários nr veis constitutivos do modo de produção assumem uma autonomia rela­tiva, inaugurando uma estruturação cuja análise s5 ê possível atra vês de múltiplas^aproximações (dado grau de abstração sempre cres­cente necessário para esta atividade cognoscitiva). Sob o capita - lismo, todos os níveis ou instâncias se interrelacionam, de tal ma neira que o jurídico nasce dessas interligações complexas. Eviden te que não podemos explicá-lo sem a remissão ã análise do políti - C O , já que este, o estado, não é mero anotador — já o dizíamos an teriormente — da realidade social, senão que ê seu produtor igua] mente.

Aquela divisão entre o trabalhador direto e os meios de produção não apenas ê absorvida como também ê repro­duzida, originariamente pelo estado em sua ossatura instit.ucional. Neste caso, evidencia-se tanto o jurídico como o político, não co­mo epifenômenos do econômico, mas enquanto condições para existên cia deste.

A análise da realidade jurídica tomando - -se como ponto de partida (e como ponto de partida apenas) a esfe­ra das relações de produção oferece algumas vantagens teóricas ad^ cionais. Não se explicará o direito, (e toda a superestrutura di

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riam aqueles que se apegam à metáfora arquitetônica do edifício !) socorrendo-se ã realidade Cunica) do indivíduo concreto (sabemos que essa posição — lembremo-nos do jovem Marx e da noção de ima­ginário em Lukãcs — converge para o reconhecimento do direito apje nas como efeito da alienação do ser-homem concreto). Ao contrario, com aquele ponto de partida recupera-se a especificidade do jurídi co, condição primeira para conhecê-lo sem reduzí-lo ou subestima - -lo enquanto força histórica material.

Jâ discorremos sobre a individualização/ atomização do corpo social e as técnicas de normalização. Naque­le momento ligamos as disciplinas ao direito afirmando, respalda - dos em Foucault, constituírem duas faces de uma mesma rede de po­der; não são realidades distintas senão que partes indissociáveis de mesma realidade. 0 jurídico que cimenta o organismo societário representando a unidade do povo-nação através da lei geral e abs­trata e as disciplinas que fracionam a sociedade em corpos indivi­dualizados através da normalização, fazem parte de um mesmo proce_s so: — enquanto o primeiro pressupõe as segundas (só há um discur­so de igualdade quando,de fato, há desigualdade social) oferecen do as condições (jurídicas) para que se desenvolvam, as segundas individualizando, jCriam homogeneidades: mesmas categorias , mesmas funções, etc.; seres normalizados homogeneamente através da atomi­zação disciplinar. Essa constatação permite compreender a materia­lidade das superestruturas agindo de dois modosprimeiro encampa, reproduz e co-constitui o fracionamento individualizante sugerido, num momento inicial, no nível das relações de produção; depois re presenta a unidade do corpo social através do direito, encarnando a soberania do povo-nação.

Poulantzas formula algumas críticas a Fou cault. Segundo aquele autor, a genealogia do poder prende-se a uma certa descrição das técnicas disciplinares de poder, não conse guindo precisar os seus fundamentos. Poder»pelo poder ? — é o que transparece da leitura de "Vigiar e Punir*'. Essa circularidade pode ser afastada (ao mesmo tempo em que se explica tanto a emer - gência dos indivíduos como do sujeito de direito) com o acesso a esfera das relações de produção. De fato, aí se compreenderá o in divíduo, como o sujeito de direito, e ambos enquanto dotados de igualdade e liberdades formais assegurados por um conjunto de nor

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mas relativamente autônomas e imprescindíveis para a reprodução (e constituição) do modo capitalista de produzir (as condições mate riais de existência humana).

0 direito contemporâneo encontra sua ma triz mais remota no surgimento do ’’indivíduo desnudo”, fundamento do trabalhor livre trabalhador desterritorializado, ou seja , sem território, e totalmente despojado dos seus meios de traba-7lho . Este se desenvolve com a progressiva e lenta derrocada do sistema feudal, e so constitui elemento necessário do novo modo de produzir; ê o protótipo do sujeito jurídico. 0 direito, pois , não ê apenas regulador/disciplinador das relações mercantis entre possuidores de mercadorias; ê, na verdade, co-constitutivo das próprias relações capitalistas de produção. Mas a sua funcionalidade

— « " 3 8transbordando o econômico, não ê simplesmente dedutível das relações de produção.

Tentamos, apoiados em Poülantzas, fixar não a origem, mas o fundamento da especificidade ido direitoi Neste particular, o acesso ao conceito relativo ãs relações de produção foi inevitável. Entretanto, fizemo-lo apenas como hipótese de expe rimentação teóric^.

Podemos retornar agota ã tão decantada pro blemãtica da caracterização do direito como imperativo. Vimos que os juristas tradicionais apoiam-se sobre uma possível coerctivida- de do direito, como se ele constituísse um conjunto organizado de enunciados normativos imperativos. Mostramos>ainda o pensamento de Miaille para o qual a coerção não reside no direito senão que nas relações sociais concretas que ele oculta. Ora, não podemos redu­zir o espaço jurídico a uma ou mais fórmulas que, possivelmente , o caracterizariam; não podemos simplesmente negar a coercitivida - de/imperatividade do direito, para fixâ-la no reino das relações reais concretas. Quer nos parecer que o caminho seja outro.

0 direito contemporâneo ê constituído de normas sancionadas não no sentido de repressivas, mas no seiltido de que são estabelecidas, reconhecidas ou tuteladas pelo estado Tanto o direito constitucional, como o direito público ou privado em geral, ainda o direito internacional, são direitos sancionados

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pelas autoridades competentes. A presença do estado ë determinante. Entretanto, sabemos, as relações de produção, o estado e o jurídico co-constituem-se mutuamente, no sentido de que ê impossível um (a materialidade histórica de um) sem o outro (sem a materialidade hi£ torica do outro).

Assim como as relações de produção fracio nam o organismo social através da compra da força de trabalho dos indivíduos livres e assalariados para, depois, submetê-los a um aparato disciplinar e normalizador, o estado co-constitui osse fra cionamento ao incorporâ-lo à sua materialidade e ao garantí-lo via monopolio da violência legítima e da produção do direito. 0 pro­cesso de articulação desses níveis ê extremamente complexo.

Se as normas jurídicas aparecem como imp£ rativas, essa imperatividade não reside nelas (neste ponto, e ape­nas atê aqui, concordamos com Miaille) mas em todo o complexo arti culado que permite ao estado sanciona-las como única expressão ad mitida de direito. Não se trata de captar o direito como o centau­ro de Maquiavel, meio fera, metade dõcil, onde a primeira metade corresponderia ao uso da coerção-violência, e a segunda ao consen- so-ideologia^^. Esta concepção, para nos seria impossível, dado o modo como concebemos o imaginário.

A funcionalidade do jurídico e sua eficá­cia decorrem de três momentos^^ analíticos, teoricamente distintos, mas concretamente simultâneos: (i) o momento individualizante das disciplinas e normalização; (ii) o momento da violência e da vontade geral e, finalmente, (iii) o momento das lutas: conflito e con-

41frontaçao. Estes momentos se inter-implicam mutuamente

Ja tratamos dos dois primeiros momentos : as disciplinas operacionalizando uma tecnologia de poder presente tanto nas relações de produção quanto no estado; e a lei, ’enquan­to encarnando a vontade geral que cimenta a nação ao mesmo tempo em que oculta o seu fracionamento, favorecendo as bases jurídicas necessárias para que a atomização possa acontecer. No entanto, ã lei, para que seja politicamente eficaz, leia-se imperativa, não basta prescrever uma sanção/repressão. Ele deve estar organicamen­te ligada tanto âs disciplinas, como ao exercício do Poder sobera­no. As disciplinas no sentido de que ali é o lugar da normalização

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dos indivíduos, ao mesmo tempo que e o solo originário da materia­lidade do imaginário jurídico. E ao Poder soberano porque, parado­xalmente, o mesmo processo que constitui o estado (e portanto o ju rídico-estatal) como encarnação da vontade geral, também favorece 0 exercício do monopólio da violência física legalizada. 0 estado esta acima dos indivíduos, materializando a unidade do povo-nação, e para serví-la pode, inclusive, utilizar-se da violência. A léi é consbustancial ãs forças armadas, e a polícia (esta incorpora o poder de guerra do estado, apenas em relação aos conflitos atomiza dos e controláveis juridicamente); o parlamento e o judiciário são consubstanciais ao monopólio da guerra e da violência. Foucault , privilegiando as disciplinas, a tecnologia de adestramento corpo - ral diluída capilar e molecularmente pelo campo social, mostra que esta ortopedia não é apenas ideológica (no sentido de abstrata e ideal) mas, principalmente física e corpórea. Entretanto, subesti­ma o papel do estado enquanto monopolizador do exercício da vio -- 42lencia . Isto nao acontece com Poulantzas, o qual, como vimos

interliga a normalização à lei^^. Percebeu que, em ultima instân­cia, se o determinante do jurídico é o econômico — a esfera das relações de produção — a garantia material para o exerccio da lei não cabe ao judiciário, mas ao aparato mil itar: a função deste é garantir o uso da soberania tanto interna como externamente. Neste caso, o direito, enquanto materialização da unidade do povo-nação,é contemporâneo tanto das técnicas normalizadoras, como do monopó-

44lio da violência legal e da guerra ; estas duas esferas consti tuem condições indispensáveis para a sua funcionalidade e eficácia. E aí reside a sua imperatividade.:.

Mas não se trata de momentos isolados, senão que, ao contrário, acham-se estruturalmente imbricados com umterceiro: o momento das lutas: conflito e confrontação, o qual v£ remos a seguir.

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2. A LUTA PELO DIREITO^^

A instância jurídica corao espaço estraté­gico de confrontação entre classes e frações dè classes sociais e grupos antagônicos sintetiza aquela dialética entre o momento da normalidade disciplinar e o da violência e da vontade geral.

Sob 0 capitalismo a individualização é o modo proprio de constituir as classes sociais. Eis porque elas se mostram dinâmicas: não se fundam era mandamentos sagrados ou num cô digo de nobreza hereditário, mas numa relação entre corpos indivi­dualizados.

A divisão social do trabalho e as rela­ções de produção fornecera o terreno a partir do qual as classes se constituem, favorecendo uma relativa mobilidade: indivíduos di£ tintos em classes distintas em distintos momentos. Essa mobilidade social inscreve-sé no rol das praticas da ortopedia social. Entre tanto, se ela favorece o controle dos corpos, o faz não como regra que possibilita a 'ascenção’ dos indivíduos de uraa classe a outra, mas como simples hipótese.

0 que, todavia, importa é captar as clas­ses sociais como portadoras e agentes das lutas sôcio-políticas A sociedade não pode ser concebida corao ura corpo sera fraturas e sera conflitos. Estes, na verdade, são a própria matriz da história, o que nem sempre é reconhecido pelo saber jurídico tradicional. E£ te, tende a analisar o direito como um corpo-sujeito dotado de ' princípios axiológicos e enunciados normativos capazes de garantir a 'ordem', de tal modo que a sociedade, concebida corao ordem, só é vista como atravessada por conflitos na raedida era que estes são "disfuncionais" ou "anômicos". Ora, esta representação faz parte do próprio imaginário; reproduz a idéia da unidade social plantada conforme princípios legais do direito capitalista.

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As lutas que não estão ausentes da esfe­ra das relações de produção — ■ o que o economicismo parece esque­cer — também atravessam o estado em sua materialidade institucio­nal, manifestando-se ainda que de modo diferenciado, na instância jurídica. Tratamos desse tema em outro lugar^^, embora sem termosdetectado, ainda, a especificidade do jurídico, de sorte que este,

« • 4 7 -facilmente, se diluia no político . 0 que fazíamos naquele esbo­ço de enfoque crítico da questão política do direito era procurar um fundamento de juridicidade nas lutas diretas que se travavam en tre as classes e frações delas. Hoje, a partir da constatação do direito como sistema formal de enunciados normativos, onde a pre - sença do estado ê indispensável enquanto agente tutelador/sanciona dor, percebemos que aquele entendimento era insuficiente. É que as lutas estão presentes no domínio jurídico, não de maneira direta , mas de modo mediatizado. Neste caso não serâ nas lútas que encon traremos a juridicidade, senão que as lutas atravessam esta confor mando-a e ultrapassando-a ao mesmo tempo.

Poulantzas demonstra como as relações de produção constituem, igualmente, relações de poder. 0 poder não se concentrando apenas nos aparelhos de estado e na lei, os ultrapas­sa em muito. Entretanto, se a luta não estâ_ausente do econômico , ê porque ela também não se ausenta dos aparelhos que materializam as relações que o constituem. Eis, então, a formula poulantziana :— "todo poder so existe materializado em aparelhos", os quais não são necessariamente aparelhos de estado.

Todo aparelho é uma materialização de uma relação de forças. Esta afirmação aplicada ãs disciplinas impli­ca na conceituação destas como fruto de uma relação assimétrica de poder. As lutas não estão exteriores ãs instituições — hospital , prisão, fabrica: locus de uma micro-física do poder — estudadas pela genealogia do poder; ao contrário, elas são o fundamento e a objetivação dessas instituições.

0 estado, enquanto aparato centralizado e burocratizado, além de outras funções, des*empenha o papel primor - dial de organizador do bloco no poder e de atomizador da organiza­ção popular. No desempenho dessa função, ele recupera as relações

de poder, de modo a dotâ-las de um pertencimento de classe. Eis porque a relação homem-mulher, por exemple, reproduz a dominação proprietário/trabalhador assalariado, embora não seja redutível a ela. 0 estado portanto embora não se 'aproprie' de todo poder — como se este fosse assim, quantificavei, apropriâvel e não relacio nal — tende a organizâ-lo.

Para tal escopo, a utilização do univer*i so jurídico ê indispensável; este, o direito contemporâneo, e por tanto parte constitutiva do estado . Não ha estado sem juridici­dade. Não queremos afirmar que o direito seja apenas o direito do estado e que, portanto, não existiria sem ele. Nem nos filiamos ã ortodoxia segundo a qual findo o estado não restaria vivo também o direito. Apenas afirmamos que o direito dominante é parte constitu tiva do estado. Aparece como uma região prépria do espaço jurídico -político desta ou daquela formação social. Como o estado, esse dõ reito não esta ã margem das relações sociais, mas comunica-se com elas .

Essa otica desmitifica a concepção positif vista segundo a qual o jurídico é a ordem exterior ã sociedade , imune aos seus con^flitos, sendo o direito exatamente o remédio pa ra tais conflitos. Este discurso, corapreendêmo-lo na medida em que faz parte do imaginário — o aparecer jurídico elevado ao status de teoria. A funcionalidade do direito depende de sua relativa au­tonomia em relação aos conflitos e ãs lutas.

Na verdade, o direito, do mesmo modo que mantém a coesão do estado social, fragmenta-o, instaurando o rei­no dos sujeitos individualizados de direito e permitindo (ocultan­do e facultando) a emergência da república das disciplinas. Isso desfavorece a organização das classes populares, mas, paradoxalmen te, organiza as classes dominantes, as quais, fisicamente, se en­contram presentes nos aparelhos de estado. Como, porém, os indiví­duos são criação das normalizações e da lei, e como estas se con - centram era aparelhos materializadores de relações de força, com­preende-se que tanto os aparelhos são impensáveis sem a luta, como também os indivíduos são o modo através do qual as classes sociais, sob o capitalismo, se constituem.

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X32

Isso explica o pertencimento do direito às relações de poder; ao mesujo tempo em que o direito oculta o con flito e o desestimula, ê atravessado por ele. As classes populares então, estão presentes no universo jurídico.

Esta colocação ê de extramada pertinência desde o momento em que as teorias jurídicas identificam o jurídi - CO,ou seja como um corpo-sujeito que 'governa' a sociedade — esta ê a concepção tradicional — seja como um corpo-objeto, mero ins - trumento de dominação sujeito as determinações da vontade das cla£ ses dominantes. Estes discursos são unilaterais na medida em que privilegiam exageradamente a autonomia do direito, ou a esquecem.

As individualidades e a lei são material^zações específicas das relações de poder. Eis porque^o direito-po-lítico por excelência, alem de mediação ünica, é também um terre -

49no, uma arena de lutas que não exclui as classes populares. As lutas, as confrontações agem moldando e transformando o direito Não fosse assim, de que maneira poderíamos explicâ-lo nos estados capitalistas de exceção? Nas ditaduras militares, no fascismo, no estatismo totalitário ? 0 jurídico ê, como o estado, uma "conden­sação material de uma relação de forças entre classes e frações de classes"^®. Nessa materialidade se fixam tanto o direito como m e diação de conflitos, ao organizar as classes no poder e boicotar a organização das classes assalariadas, como o direito enquanto are­na de lutas e confrontações.

As lutas consolidam o terceiro 'momento' ou polo de sustentação da eficácia da juridicidade. 0 direito ê parte constitutiva do estado que o sanciona. Esta sanção, ato jur^ dico-político que sintetiza a presença do estado na lei, a garante; não nos esqueçamos que por trás dessa sanção estão (i) as discipli^ nas (normalização), (ii) o signo legal (viólência legítima;'a for­ça das armas e a soberania popular — a vontade geral) e (iii) as lutas.

IPode-se perguntar; de que modo as ilutas contribuem para a eficácia política do direito ? A resposta não ê difícil. E formulando-a, estaremos eplicando a "imperatividade" da norma jurídica. Se a norma não ê um imperativo e se a imperativida

de não reside nas relações sociais que o direito disciplina, nem no puro signo legal, onde localiza ?

A norma não ê imperativa, embora o seja o jurídico enquanto um dos níveis da formação social. Essa imperati­vidade radica na sanção da lei, e não na prescrição normativa da repressão â sua hipotética violação, pois nesse caso negaríamos a pertinência jurídica do direito constitucional e do direito inter­nacional. No momento em que o estado sanciona a lei, ele a garan­te Neste ponto, ê importante lembrar que o estado para garan - tí-la utiliza de todo o seu aparato judiciário e administrativoEm último caso lança mão do exercício da violência, embora nunca

52contra ele fazendo uso, muitas vezes, da ilegalidade (razao de estado) para manter as relações de força conforme certa logica sin tetizada na legalidade.

Enquanto as classes dominantes se encon - tram, fisicamente, nos aparelhos de estado, as classes populares— se fazem presente de modo mediatizado. Suas lutas incorporam-se— ao estado, inscrevendo-se em sua ossatura institucional, embora não se esgotem aí^^. Sabemos que o estado, embora organizador do bloco no poder, mantêm certa autonomia face a esta ou aquela parce la social. E, esta ou aquela fração da classe dominante não possui as mesmas contradições com as classes populares. Se a materialida­de do estado resulta da condensação de uma relação de f o r ç a s n e £ ta relação não apenas se incluem as diversas frações do capital como tarabêm as classes trabalhadoras. A estratégia do bloco no po­der frente às lutas populares responde à estas lutas, e elas, em face de sua múltipla articulação com os inj:eresses díspares das di versas frações no poder, fomentam as contradições entre esses inte resses. A política a ser seguida, pelo estado, é então resultante tanto das relações de forças entre as frações das classes capita - ; listas, como também entre as classes populares. Deste mecanismo par ticipa a juridicidade.

Esta deve se mostrar como a expressão le­gítima da nação organizada legalmente. Como o correto, o competen­te, o natural; como o conforme a razão. E, por uma inversão ideoló gica, fixa-se o racional — a lei — como o justo. Mas para que realmente o jurídico apareça como expressão do justo, ele deve, em

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vários casos, efetivamente, sê-lo. Sobre isso veja-se o que Thomp­son afirma: "A condição de eficácia do direito (...) ê a de que se manifeste como independente de manipulações grosseiras e pareça jiB to. E não pode aparecer como tal sem manter sua propria logica e seus critérios de eqüidade: mais ainda, sem ser ãs vezes realmente justo"^^.

Essa 'justiça* não ê criação hipócrita do imaginário, algo como uma fantasmagoria criada por um artifício qualquer, senão que e fundajnento da eficácia contraditoria do reito. Nasce com uma condensação de relações de poder, traduzindo -se como materialização de compromissos provisorios entre as clas­ses populares e as classes dominantes. Algo que se fixa como 'con­quistas' das classes assalariadas modificando, de certa maneira , as relações assimétricas de poder, e assegurando um maior equilí - brio para elas. Pois bem, essas 'conquistas' são a objetivação de lutas que, deste modo, contribuem, provisoriamente — assim como as individualidades, o monopõlio da violência e a vontade geral do povo-nação unificados — para a funcionalidade imperativa do sis­tema jurídico.

Em suma, deve-se entender a instância ju­rídica do estado contemporâneo como uma "condensação material e e^ pecffica de uma relação de forças" que se expressa como mediação , através de normas jurídicas, princípios e valores, e como espaço de confrontação — lutas: imposição de novos valores e normas jur_í dicas; novos compromissos — entre classes e frações. 0 direito con temporâneo ê, pois, um espaço de mediação ip de luta entre forças antagônicas e conflituosas.

Esta concepção, não destruindo a especifi^ cidade do jurídico, como os marxismos instrumental e economicista, não absolutiza essa especificidade; como o fazem os juristas tradi cionais. Com ela,efetiva-se a não exterioridade do direito ãs rela ções sociais, percebe-se sua ligação com a esfera das relações de produção, e não se o distancia nem do político e nem do estado.

A articulação teõrica indissociável dos movimentos e da prática libertárias é não so possível, mas indis - pensável, possibilitando o renascimento de um pensamento era busca do que Marilena Chauí chamou de "a dignidade política do direitcf' ,

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que ê, ao mesmo tempo, a busca da dignidade teoxica do saber jurí­dico .

, N O T A S

(J J - Subic issu Ver Cürrüui, Pouluatzas ti Miiiiile, Obras citadas.(2) - Roberto Lyra Filho demincia esse recurso teõrico como espécie de "posi-

tÍT7Ísmo de esquerda". Não aceitamos esta colocação. Afinal, como f^ zer uma teoria jurídica não positivista sem antes conhecermos o dj. reito dominante ?

(3) - Miaille, Michel, "üma Introdução Critica ao Direito", op. cit.(4) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..."op. cit. p. 142.(5) - Idem. p. 142, Essa colocação de Poulantzas evidencia uma teoria presente

tambem em Miaille. Ela retoma, de algum modo, o pensamento de Etienne Balibar (e do Althusser teoricista), severamente criticada por Mili- band. Sobre isso V. Laclau, Ernesto. "A Especificidade do Político". in "Política e Ideologia na Teoria Marxista". Rio, Paz e Terra,1978 p. 57 e segs.

(6) - Miaille, Michel, op. cit. p. 63(7) - Cf. Gomes, Orlando. "Marx e Kelsen". Salvador, Progresso ,Ed., 1959,p.21(8) - V. Althusser, Louis. "Aparelhos Ideologicos do Estado". ^ "Posiçoes-2"

op. cit. p. 47. Tb. Apresentação dos Tradutores.(9) - Poulantzas, Nicos . "Hegomina y ..." op. cit. p. 143(10) - Idem.(11) - Miaille afirma que o direito tem vocaçao hegemônica, op. cit.(12) - Motta, Benedito. "0 homem, a sociedade, o direito, em Marx". São Paulo.

Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p. 95(13) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. cit. p. 137(14) - Idem.(15) - Miaille, Michel, op. cit. p. 71.(16) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. cit. p. 15.(17) - Miaille critica o teoricismo de Poulantzas radicado no fato dele compa­

rar o voluntarismo e o economicismo apenas a nível teorico, sem res­saltar contextos políticos distintos a partir dos quais esses des­vios emergiram. Para Miaille o economicismo não e compreensível s^

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não for colocado "nas .condições concretas em que se desenvolveram simultaneamente as loitas da social-^democxacia alemã dos séculos XIX e, num contexto miito diferente, os aconteci-mentos que rodeiam o nascimento do jovem estado socialista soviético em 1917. As dificul­dades e impasses da luta política levam a pensar que a evolução eco­nômica conduzira inelutavelmente a crise do capitalismo; para os bo_l cheviks do principio do século, as formas de luta estão diretamente dependentes das condições econômicas que devem constituir portanto a üni ca preocupação dos dirijí^ntcs Bovieticos (...) Pelo que nos toca, o sistema jurídico torna-se iim quadro em que so o conteúdo econômico nos interessa: a ciência do direito desaparece a favor de uma ciên­cia econômica do direito". Já a escola de Vychinsky "substitui na URSS a escola de Pashoukanis. As condições políticas da URSS dos anos trinta, o aparecimento da teoria do certo capitalista, e do reforço do estado tornaram difícil a manutenção desta teoria, e mais operan- te a teoria da cultura proletária oposta ã burguesa, portanto, do estado e do direito socialistas opostos ao direito capitalista", op. cit. pp.72-73.

(18) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. cit. p. 138.(19) - Segundo Marx " a dialética de Hegel, esta de cabeça para baixo. É precj^

so invertê-la para descobrir na ganga mística o nõdulo racional" Cf.9;Althusser, Louis". A Pavor de Marx". Rio, Zahar, 79, p. 75.

(20) - Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. ci^. p. 138.(21) - Roberto Lyra Filho ("Para um Direito sem Dogmas", op. cit. p. 36) lem —

bra que Kelsen "exprime a norma jurídica em tese; dada a não presta­ção deve ser a sanção. 0 dever jurídico é, então, conseqUência do estabelecimento (aspecto primário) de sanções. A isto não traz remen do a revisão egolôgica. De fato, Cõssio teria, aparentemente, alterj do as coisas com a endonorma (dado o fato, deve ser a prestação por alguém obrigado, perante algum titular). Mas resulta claro que a prestação exigida se funda no recorte de normas e se coliga a Kelsen através da perinorraa conseqüente: dada a não-prestação, deve ser a sanção, pelo funcionário obrigado, ante a comunidade pretensora "

(22) - Miaille, Michel. op. cit. p. 82 e segs. Sobre o conceito de norma jurí­dica como imperativo autorizante M. Diniz, Maria Helena. "Conceito de Norma Jurídica como Problema de Essência". S.P., R&v. dos Tribu - nais, 1976. Tb. Telles Jr., Goffredo. "0 Direito Quãntico". S.P. , Max Limonad, 1971, Cap. 71.

(23) - Segundo este autox "se a norma ê vista como precextuação coercivel, enisto se acantona o direito inteiro, a regra e feita paxa a exceção, pois, das duas, uma: ouoo ordenamento hermetico e pleno, não é supor tado pela comunidade e tomba na ineficacia; ou é suportado e se pra­tica em 90% dos casos, como aplicação espontânea. Entretanto, a teoria tradicional do direito destaca, sobretudo, a aplicação conten ciosa, como se esta fosse o paradigma da norma e o direito, em ulti­ma analise, uma resultante da sanção prevista e aplicável". Cf. "Pa­ra um Direito sem Dogmas", op. cit. p. 37.

(24) - Miaille, Michel, op. cit. p. 85.(25) - Idem. p. 89. "A mercadoria na esfera economica tem o mesmo papel que a

norma na esfera jurídica".(26) - Ib.Id. p. 91.(27) - Dos Santcs, Juarez Cirino. "A Criminologia Radical".Rio, Forense, 1981,

p. 63.(28) - Idem, Cap. V, pp. 60-75.(29) - Referimo-nos aqui ao Poulantzas de "Nature des Choses et Droit. Essai -

sur la dialectique du fait et de la valeur". 0 pensamento deste au - tor sofre serias reformulações a partir de obras posteriores.

(30) - V. "Vigiar e Punir", op. cit. p. 172. : "Muitas vezes se afirma que omodelo de uma sociedade que teria indivíduos como elementos cons ti -ituintes é tomado ãs formas jurídicas abstratas do contrato de troca. A sociedade comercial se teria representado como uma associação con­tratual de sujeitos jurídicos isolados. A teoria política dos sécu - los XVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema. Mas não se deve esquecer que existiu na mesma epoca uma técnica para consti­tuir efetivamente os indivíduos como elementos correlates de um po - der e de ym saber".

(31) -Dos Santos, Juarez Cirino. op. cit. p. 65.(32) - Esse volume ê constituído por textos elaborados por Poulantzas entre os

anos de 1964 a 67, e foram publicados, originariamente, em revistas como "Les Tetops Modernas", "New Left Review" e "Archives de Philoso phie du Droit". Note-se que "Nature des Choses et Droit" foi elabo­rado em 1964. Neste trabalho Poulantzas ainda se prende a um certo economicismo, fruto de suas ligações, nesse tempo, com o pensamento de Lukács, alem de outros como Goldmann. Este e o caso, também, do primeiro dos textos publicados no volume mencionado: — ? **La teoria marxista dei Estado".

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(33) - Idem. op. cit. p. 151.(34) - É o caso de Ljrra Tílho, Roberto., para quero o ’’positi-vismo" e apenas

uma ideologia. Cf. "Para "üm Direito Sem Dogmas" e "0 que e Direito" obras citadas. Parece também a concepção q|ue deflui da teoria Críti­ca, no entendimento de Coelho, L. Fernando. "Positivismo e Neutrali­dade ideologica to Kelsen", iji "Introdução ã Crítica do Direito" , op. cit.

(35) - Cf. Poulantzas, Nicos. "Hegemonia y ..." op. cit. p. 153.(36) - Idem, p. ,158.(37) - Nesse sentido V. Tb. Gomez, José Maria. Estado e Direito - Agumas Ob -

servações. in Rôvista Economia & Desenvolvimento. S.P., Cortez Edi­tora, n9 3, p. 46: " ... a despossessão dos meios de produção por parte do trabalhador assalariado é acompianhada pela despossessão do controle direito dos meios de coerção física por parte do capitalis­ta. Isto implica a emergência de iim terceiro sujeito — as institui­ções estatais — detentor do monopolio da violência e, portanto, fi^ dor coativo inerente às relações de produção ... uma vez que pode invocar sua atualização em caso de 'desajuste' ".

(38) - Segundo Laclau, Ernesto, op. cit. p. 14 "..., nem todo conceito tem umarelação necessária com os outros. Não e possível, portanto, partindo de apenas ym deles reconstruir a totalidade do sistema":^Nesse sentj. do Tb. Viola,Eduardo J. A Problemática do Estado e do Regime Políti­co: Um Ensaio desde a Otica da Democracia Política. Florianópolis , Cadernos de Ciências Sociais, Vol. I, n9 I, 1980, p. 34, pensa que - "..., alem das relações de produção capitalistas, outros tipos de determinações contribuem para determinar o caráter do estado..." ; neste caso, também do direito.

(39) - Este é posicionamento comum entre os intelectuais liberais. Assim se colocam, por exemplo, Mário Brockmam Machado e Joaquim de Arruda Fal - cão. Cf. Falcão, Joaquim de Arruda. "Doutrina Jurídica e Règime PolJ tico". Brasil: 1930/75, Mimeo, 1981, p. 05.

(40) - Estes 'momentos' devem ser vistos apenas como tan artifício teórico quepermite a continuidade de nosso estudo. 'Momento', neste caso, assu­me o significado de elemento, ou fator.

(41) - Essa colocação decorre de lana pesquisa iniciada ainda em 1981, juntamente com Edmundo Lima de Airuda ,Jr. As linhas básicas dessa pesquisa - podem ser encontradas no texto: "0 Discurso do Direito-Ciência: sòr fisticação do discurso Ideológico (ou ideologia eím 29 grau)", ^ "0 Direito em Relação", op. cit. pp. 29-40.

(42) - Foucault subestioma o papel do estado enquanto terror, mas nao o esque - ce. Sobre is so V. "Soberania e Discipina" ^ '!Microfisica do Poder", op. cit. Tb. "Historia da Sexualidade: A Vontade Saber I", Gap. V , op. cit.

C43) - Of. "0 Poder, 0 Estado, 0 Socialismo", op. cit.(44) - Gomez, José Maria. "Estado e Direito - Alguifas Observações", op. cit.p.

45, parece acompanhar esse raciocínio. Para ele a eficácia (fala em "validade") do direito "não radica no puro signo legal, mas na força organizada do Estado, última ratio do poder político, quando fracas­sam seus outros meios".

(45) - A primeira grande expressão teórica do direito como 'espaço de luta' p^rece ter sido Ihering, quando reagiu contra a Escola Histórica. Reye lou entao Ihering que, ao contrario do que afirmavam Savigny e seus discípulos, o desenvolvimento do direito não era a produção espontâ­nea e tranqUila do Volksgeist , mas o resultado de uma luta intensa e profunda que nunca termina. S5 que a teleologia de Ihering não se libertou do idealismo característico do saber tradicional e sua luta é a dos indivíduos, ou agrupamento de indivíduos como instituições , para a conquista e garantia dos direitos individuais, aqueles direi­tos que a ideologia capitalista considerou supra-histõricos. Escapou -lhe naquele momento de glorificação do jurídico como lugar de con quista da dignidade humana, a visão real e profunda da luta de clas­ses e da dialética dos grupos antagônicos que tendem ao poder. Cf.de Iheringi Rudolf "Von. "A luta pelo Direito". Trad. Rio, Ed.Rio,1983.

(46) - Referimo-nos ao nosso opGsculo: "0 Direito em Relação", op. cit.(47) - Como Gomez compreendemos a instância jurídica com van nível com pertinên

cia política. Isso, entretanto, não impede o direito de se manifes':;- tar com uma materialidade e autonomia as quais fornecem a base de sua especificidade.

(48) - Gomez, José Maria. "Estado e Direito..." op. cit. p. 43.(49) - Gimenez, Gilberto. "Ideologia y Derecho (Perspectivas para un anâlisis

sociológico dei discurso constitucional)" "Arte, Sociedad, Ideol£ gia". México, (data ilegível). 0 autor baseia-se em Thompson,Edward. "Modes de Domination et Revolutions en Anglaterre". "Actes de la Re­cherche en Sciences Sociales" n9 23, Junio de 1976.

(50) - Poulantzas, Nicos. "0 Poder, 0 Estado, 0 Socialismo", op. cit.(51) - Isso explica porque, como diz Lura F9, o direito "é respeitado e se pra

tica em 90% dos casos, como aplicação espontânea".

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(52) - A lei, como afirma certo autor, ê ”o código da violência publica. Sabe--se, historicamente, da repressão física praticada pelas diversas - formas de poder político. 0 prÓprio 'estado de direito' que erige a lei como freio de certas manifestações da violência do poder, rião deixa de fazer uso do mesmo dispositivo legal para organizar o campo repressivo do estado e instituir as 'proibições, obrigações e permi£ sões' ". Cf. Gomez, Jose Maria, op. cit.

(53) - ” As lutas políticas desencadeadas sobre o estado não .estão, tanto comoqualquer luta frente aos aparelhos de poder, em posição de exteriorj. dade frente ao estado, mas derivam de sua configuração estratégica : o estado, como ê o caso de todo dispositivo de poder,e a condensação material de uma relação". Cf. Poulantzas, Nicos. "0 Pòder,.,." op. - cit. p. 166.

(54) - Também Viola, Eduardo J. op. cit. p. 37, pensa assim "...o estado e ar£na de luta de classes, ou seja, em seu interior as distintas frações das classes dominantes e as classes subalternas lutam por influen - ciar ejon controlar seus múltiplos centros decisÓrios. Nesse sentido as lutas das classes subalternas têm efeitos específicos sobre o es­tado, acarretando que determinadás de suas intervenções lhes sejam favoráveis".

(55) - Cf. Giminez, Gilberto, op. cit. p. 100.(56) - Cf. "Roberto Lyra Pilho ou da Dignidade Política do Direito" úi Direi­

to e Avesso, ,n9 02 , Brasília, Ed. Nair, 1982, p. 21. A autora faz menção ã obra de Roberto Lura P9., Mas, cremos, essa observação po­de ser estendida a todas as teorizações jurídicas direcionadas ã busca da libertação do,homem.

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CAPÍTULO V

0 SINGULAR E 0 PLURAL

1. REDEFINIR 0 DIREITO

Tratou-se de referir a materialidade his­tórica do jurídico- contemporâneo, vinculando-a ã uma problemática mais ampla: a de sua inserção no domínio socio-político das rela ções assimétricas de força.

Alguns pontos foram especialmente enfati­zados. Em relação ã estatalidade o positivismo não se engana: o lugar do jurídico não se distancia do lugar político-estatal. Mas, o positivismo, ao mesmo tempo, utilizando-se de alguns deslocamen­tos teoricos complexos, nega pertinência política ao direito ten - tando neutralizá-lo totalmente. A juridicidade passa, então, a ser descrita ou instrumentalizada, mas de maneira que, identificada con a norma legal, o saber jurídico daí não pode se afastar. Este ê o caminho metodológico pressuposto pelo normativismo, seja em suaclássica expressão formalista^:, seja em suas manifestações de con

« 2 ” ereção, no contexto do pensamento culturalista . é também a viaapontada pelos diferentes sociologismos positivistas^.

A tentativa de recuperar o político para a análise jurídica e a proposta epistemica mais interessante, embo

ra ambiciosa, do pensamento crítico. Não se trata de fazer vnova teoria jurídica, salTO casos excepcionais , com pretensão de subs­tituir as escolas jiarídicas tradicionais. 0 que se procura ë criar nova dimensão para o discurso jurídico, de tal modo que, alëra das meras preocupações pragmáticas de descrição e ação procedimentais, se possa conhecer o objeto como algo inserido na histpria.

Verdade que parte dos modernos jusfiloso- fos incorporara às suas análises o sentido dos valores. Referimo-nos aos neo-kantianos de Baden, bem como aos do culturalismo hispânico e brasileiro. Entretanto, eles o fazem de tal modo que os valores do direito aparecem como signos a-historicos legitimadores da or - dera positiva imperante. Assim, Reale situa lama serie deles (segu - rança, justiça, paz, etc.)^ como integrantes da ordem jurídica Valores que aparecem como imutáveis, tal como o direito *univer - sal’ das teorias tradicionais.

Recentemente viu-se reacender no Brasil uma busca jusnaturalista de paradigmas conceituais instituintes (como estado de direito e justiça social) procurando devolver ao direito a sua dimensão política. No entanto, se atitudes como es - tas têm sido importantes na fase histórica pela qual nosso país transita, ao nível teõrico, acabam contribuindoi como lembra Leo - nel Rocha, para uma certa mesclagem conceituai que, em última ana­lise, reforça o 'senso comum teorico' dos juristas e o seu forma - lismo juridicista^.

Ao lado, porem,dessas propostas, outras mais radicais têm aparecido, reincorporando ao domínio jurídico a preocupação com a sua explicação historico-política. Nota-se, igual_ mente, o renascimento de questões relativas à justiça, notadamen- te apos a reavaliação dos direitos humanos e da luta reivindicatõ-

ria de grupos minoritários, oprimidos e inconformistas, como por exemplo a dos pacifistas e grupos minoritários na europa e E.U.A. , bem como a das classes marginalizadas do Brasil em busca da afirma­ção do direito de moradia^.

Alguns fatores contribuíram para isso: a percepção, pelos proprios juristas, da fraqueza epistêraica e polít^ ca de seus discursos; a revalorização do direito por parte dos cien tistas e filosofos políticos, e também a percepção da especificida­

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de do direito por analises mais atuais da filosofia marxista que a olvidaram em virtude do voluntarismo e economicismo anteriores;con tribuiu para isso, igualmente, o sentido jurídico que as varias ma nifestações reivindicatorias tiveram que assumir.

Para a redefinição do saber jurídico, o dialogo entre juristas, filosofos, sociologos e cientistas políti­cos, como lembra Gõmez, ê de expressiva importância. Mas a preocu­pação com o repensar do discurso jurídico não e apenas de - ordem acadêmica. Ao tempo em que se investiga o fenomeno jurídico era suasi não poucas dimensões cognoscíveis, e se o compreende num contexto interdisciplinar, procura-se bases sólidas para transforraâ-lo. A preocupação cora a transformação libertaria, nesse particular, é claramente assumida pelos novos jusfilósofos do direito.

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1.1. Virar o direito do avesso

É o que ocorre, por exemplo, com Roberto Lyra Filho, o qual vem desenvolvendo uraa teoria dialética do direi to. jJt

Basicaraente sua teoria propõe renovada vi são do jurídico, articulando duplo processo: o priraeiro dissol­ve "as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel"^ do direito; o segundo constrõi uraa ontologia jurídi ca enquanto teoria da essência e do conteúdo de seu objeto.

A busca da essência ou conteúdo do direi­to não significa, segundo o autor, cair no reino metafísico da ex plicação dos fenômenos através de certas fôrraulas idealistas e a- historicas. Ao contrario, Lyra Filho procura conceituar a juridic^ dade identificando-a cora ura '’processo histórico era devenir".- Um processo em marcha permanente e em direção progressista, expressão do caminho historico do progresso libertário da humanidade.

Para a definição de seu pensamento, esse autor persegue dois caminhos:. — "Ninguém pode negar que o direi­to se inscreve na õrbita dos fenôraenos hiamanos e sociais, e assim logo se apresenta, quando o buscaraos nas suas manifestações empíri

cas. A primeira vertente ë, portanto, sociológica. Por outro lado, hâ viva e longa tradição de pensar o Direita em sua essência, que os fenômenos sociais apenas dinamizam e patenteiam. A segunda ver tente ë, em conseqüência, ontológica e filosófica” .

A teoria dialética tem, literalmente, ten tado virar o direito do avesso, ao enriquecer o processo de revi - são do saber jurídico e ao provocar discussões férteis e polêmicas que realimentam a dimensão política do direito. Entretanto, muitas vezes, o que ela apresenta como superação dos 'vícios' das teorias tradicionais, pode não passar, como veremos adiante, de fórmula a mais de apreensão do jurídico.

Essa dialética procurou elaborar uma r£ leitura total da juridicidade enquanto saber e enquanto realidade social. Uma das contribuições basilares foi desenvolver uma visão do direito que (i) o liberasse da 'camisa de força' legal, desvin­culando-o portanto, o mais possível, do estado; (ii) que superasse o dualismo direito positivo/direito natural, integrando-os em 'suas faces aproveitáveis' no processo dialético do direito, e (iii) re pensasse a justiça, integrando-a, também, como realidade, ao deve­nir jurídico, encontrando aí, precisamente, o critério dè avalia - ção dos seus elementos válidos. A justiça, neste caso, se identif^ ca com a "substância atualizada do direito", ou seja, com a "qqotade libertação alcançada em perspectiva progressista, ao nível his- 9 ~torico presente" .

£ eloqüente o sentido de engajamento pro gressista da teoria dialética do direito, na versão de Lyra Filho; o cuidado com a libertação das classes oprimidas; a revalorização da temática da justiça; a redefinição do direito ligando-o ã liber tação e identificando-o com a justiça historicamente alcançada,são fatores que sõ contribuem p^ra o refazimento do universo da juridi. cidade. Entretanto, ela se afasta da temática da dominação attavés do direito; antes, inverte a problemática procurando se construir o direito a partir de nova ontologia. Esta é formulada com o auxí­lio de alguns "pecados" teóricos^^. São os seguintes: — (i) o pro blema da essência como conteúdo; (ii) concepção da ideologia como falsa consciência, implicando o problema da 'deturpação' da verda­de essencial; (iii) subestimação do papel do estado, entendido on

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tologicamente como o estado das classes dominantes; e, (iv)' tarabêm a ideologia da linearidade histórica, cujo conteúdo ê a tese algo evolucionista do progresso permanente.

Devemos entender o ’’pecado'*, não como algo negativo que eventualmente possa macular ou corromper as contribui^ ções teóricas da chamada nova escola jurídica brasileira, mas como pontos que merecera ser questionados. Os ’’pecados”, aqui, designam opções teóricas e conceituais que seguem uma estratégia global , consciente e politicamente engajada. A proposta de Lyra Filho no sentido de transformar o direito passa pela sua reconstrução onto­lógica, o que não se identifica com a proposta crítica, por exem­plo, de Coelho, para que o problema ontológHco é falso,porque cria do artificialmente pela jusfilosofia^^.

A teoria dialética do direito não esconde mn resquício de historicismo. Se em Pashoukanis o historicismo apa rece sob uma forma economicista — as relações de troca são o su jeito da histpria — e, em Vychinsky sob forma voluntarista '— a vontade das classes dominantes faz a história — , em Lyra Filho emerge sob uma forma peculiar e quase imperceptível, eis que, nes­te caso, a história do direito é a história da libertação das cla_s ses oprimidas. São estas classes que constróem o direito, jâ que ele nada mais>é ;do que uma quota alcançada, historicamente, de ”lj. berdade conscientizada”.

A problemática historicista está presente, por exemplo, na questão da essência. Como o jovem Marx identificou a essência da realidade no homem-indivíduo-concreto, único ser real, Lyra Filho, ao procurar a essência do direito, a encontrou na liberdade, único conteúdo possível para a juridicidade.

0 conteúdo do direito é pedra de tqque pqs sibilitador da crítica aos discursos tradicionais preocupados ape­nas com a forma do jurídico. Estes devem ser abandonas e substitut dos por formações discursivas dialética que se ocupem em determi - nar o conteúdo explícito do direito. Este conteúdo, o conteúdo do ’’direito autêntico”, somente pode ser encontrado, em sua essência, se superarmos os condicionamentos ideológicos que o identificam sim piesmente com a lei. A ideologia, então, encarada como signo para-

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digmâtico da deturpação do real — xnna deturpação que carrega par­te da verdade — deve ser ultrapassada. Exemplos típicos dela se riam o positivismo e o jusnaturalismo. Este por pernsar o ; direi­to em termos ideais e abstratos, fornece certos critérios de ava - liação da juridicidade, mas se mostra impotente frente ao poderio do estado. E o positivismo por pensar o direito apenas enquanto direito positivo e estatal acaba sendo a pyopria emanação do poder.

Procurando superar a antinomia direito po siti vo/dircito nutural, Lyru 1'ilho fornece bases conceituais origi. nais para outros rumos de pesquisa sociologico e filosofico-jurídj^ cas, mas não explica o papel do direito positivo: não capta sua ma terialidade histórica, reduzindo-o a mero efeito de um tipo de sa ber ideológico, o positivismo.

Este pensamento ë fruto de uma concepção do estado nas sociedades capitalistas, que não alcança seu papel de ente monopolizador da produção jurídica. Sua compreensão dialé­tica do estado sinonimiza-o, sem mais, com a vontade das classes^ minantes: — o estado ë o mal, expressão da vontade dos explorado­res. Depois, escapa-lhe a especificidade e funcionalidade do esta do nas sociedades contemporâneas, as quais não se exaurem, de modo geral, na dimensão economicista da sociedade burguesa; o autor che ga a afirmar que, "para uma concepção dialética do direito, tería­mos de rever, antes de tudo, a concepção dialética da sociedade ,onde o estado e o direito estatal são, a bem dizer, um elemento não

12 desprezível, mas secundário"

É que para a teoria dialética, "o direito não se fixa ao estrito formalismo legal, não podendo ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei xim simples acidente no pro cesso jurídico, e que pode,' oü não, transportar as melhores- con­quistas"^^. Aqui radica m a otica histórica prisioneira de tmia li nearidade identificada cora certa crônica do progresso da humanida­de. A única essência (conteúdo)' do direito ë a libertação, e a hi£ tória da humanidade caminha nesse sentido, através de processo on­de, a cada momento, a síntese ë luma quota de libertação conquista­da. Esta ë 0 direito último, a justiça atual, o critério de avalia ção da jxiridicidade legítima dos vãrios elementos que, como as nor

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mas estatais, se apresentam como jurídicos.

Esqueçamos o estado; esqueçamos as normas estatais e a lei; esqueçamos o direito positivo I — 0 direito ê um 50 : o processo jurídico onde se desenvolvem as lutas sociais do homem. Tudo se passa como se fosse possível, mudando o saber jurí­dico como implicação de nova ontologia, transformar o direito. ra Filho busca na historia elementos para a ontologização do "jus", ma:s não percebe, por outro lado, que somentb a historia, vale dj zer a correlação de forças imperante era dado contexto socio-tempo- ral, poderã alterar o conteúdo da juridicidade.

Se o direito, no momento é identificado com a normação positivada/sancionada pelo estado de modo prevalen- te, isto não se deve ao positivismo deturpador dos juristas, mas a bases político-sociais que em dado momento o exigiram,

Na verdade a teoria dialética nasceu paraser a expressão de uma escola jurídica, e devera permanecer , comotal enquanto oferecer subsídios para a luta pelo direito, ao menos

14pelo direito mais justo, na esteira do jusnaturalismo ; todavia peca enquanto discurso apto a explicar o direito dominante contem­porâneo. Não se deve procurar um presumível conteúdo jurídico, mas verificar o que por ele se tom^,hic et nunc, hoje, ainda que seja expressão da mais crua opressão legislada.

De qualquer modo, importa ver não apenas o que a teoria dialética deixou de ver no direito contemporâneo e capitalista — a ligação indissolúvel direito/estado, ■ por -.exem­plo — , mas o que ela de fato resgatou: a problemática do direito justo, do direito extra-estatal e supra-legal, da libertação das classes oprimidas, e a dos direitos humanos. Entretanto, o idea­lismo da nova escola toma por essência da juridicidade precisamen­te 0 que, para as correntes mais expressivas do pensamento críti - co, não passa de bandeira de luta para a transformação do direito.

Ora, sabemos, não basta a mudança de teo­ria para a transformação da historia. Esta transformação deve ope­rar-se no plano concreto, ao nível das relações de forças que dina mizam o tecido social, constituindo a própria materialidade do di­reito. Nossa proposta epistêmica, por essa razão, tem o sentido de

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um saber que conheça o direito como ele ê, como se apresenta em sua histórica concreção, para modifica~Io, não teórica, mas histo­ricamente. As reconstruções ontológicas, neste caso, acompanharão as mutações históricas, e não o inverso.

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2. DIREITO E DIREITOS

Miaille demonstra a fragilidade dos tex­tos que procuram definir o direito pelo seu conteúdo, como uma subs tância dada, ou em transformação. Este e o vício do jusnaturalismo enquanto saber com pretensão de dizer a verdade.

A questão no momento e captar a materiali^ dade do direito, conhecer seu modo atualizado de aparecer, bem co­mo sua funcionalidade. Articulã-lo com as lutas que se travam em sociedade, em todos os níveis, reconhecendo sua ligação, a partir dás revoluções liberal-burguesas, com o estado. Isso não significa cair no imobilismo, mas ao contrario, integrar o saber no processo histórico, definiAdo a teoria como inóqua se distanciada da prâxis.

Dizer o que ê o direito, fugindo da preo­cupação de fazer 'escola* ou 'ciência*, ê verificâ-lo enquanto lo­calizado espâcio-temporalmente. 0 que significa compreender sua flutuação histórica e a possibilidade de sofrer transformações. E£ se tipo de pensamento não esta ausente em Bloch e Miaille, os quai-s, estudando a constituição do direito contemporâneo, nem por isso deixam de pugnar pela sua mudança, resgatando o sentido revolucio­nário dos direitos do homem e do jusnaturalismo; raas estes não en quanto discursos explicador,es da conforraação jurídica, senão como armas de luta em busca de outro padrão de juridicidade.

Claude Lefort^^ confirma os direitos hxaraa nos como uma política; instrmento de luta que deve ligar-se a ou tro mais amplo; a política de invenção democrática. Processo cont^ nuo de refazimento da democracia, no sentido de consolidar a defe­sa dos direitos adquiridos, ao lado da reivindicação incessante de novos direitos. A sociedade democrática ê aquela que não apenas ga

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rante os direitos indi-viduais e coletivos historicamente conquista dos, mas tambem os promove. Lefort parece absorver tanto a reali­dade do direito moderno, xon direito estata^ divinizado, quanto a sua porosidade. Se os direitos humanos não constituem o direito po sitivo, eles são todavia a epxressão de uma política que visa inva dir o espaço jurídico impondo conquistas, direitos, situações : "... enfim, não se vê que sob o impulso desses direitos a trama da sociedade política tende a modificar-se ou aparecer cada vez mais como modificâvel

Esta percepção não se encontra nos diseur sos jurídico tradicionais. Preocupam-se, estes, em decodificar a lei, em instrumentalizã-la ou justificã-la, mas perdendo-se a no ção de sua inserção histórica e da luta cotidiana de libertação , das reivindicações populares, do reclamo de novos direitos indivi­duais e coletivos que ocorrem no meio societário. Esta parece ser, para os juristas, uma luta muda, multiforme, insignificante: desju ridicizada; distante da realidade do direito.

Ê necessário restabelecer a luta jurídi-co-política cotidiana, "interpretar; elevar ã reflexão uma práticaque não é certamente muda, mas que, necessariamente difusa, ignoraseu alcance na generalidade do social e cujas formações políticasnão podem, por natureza, extrair a verdade, que elas se empenham

17somente em utilizar e, em parte, nao sem sucesso, em desarmar" .

Este itinerário não impedirá de conhecer o direito como ele, modernamente, se apresenta; apenas recupera a 'noção dos direitos' como iam caminho para, modificando o jurídico— o que significa conhecê-lo e reoonhecê-lo como espaço poroso , absorvente e relativamente receptivo, de lutas — favorecer bases teóricas para uraa visão globalizante e comprometida politicamente com a história.

- 18 -Tambem Miaille releva o alcance teóricoe político dessa perspectiva. Este, revaloriza o direito natural , todavia caracterizando-o não como conhecimento mas como 'arma de combate', impondo a ele mna função social de luta político-jurídi­ca. Esta colocação não se distancia da de Werber, para quem " a in vocação do direito natural foi sempre a forma através da qual as

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classes se revoltaram contra a ordem estabelecida", conferindo le- 19gitimidade jurídica a sua reivindicação de criar direito . Nesse

sentido, Miaille privilegia os direitos humanos, em nome dos quais"são pedidas as transformações constitucionais, administrativas ou

20em sentido mais lato, políticas"

A busca do novo, do instituinte, traduz - se na articulação, pelo saber jurídico, do singular com o plural : do direito com os direitos. E o plural a nota significativa a exj_ gir a mímese do singular. E este, enquanto também espaço de luta , é a corporificação transitória da relação necessária entre o singu lar e o plural. 0 singular historicamente sõ pode ser compreendido enquanto singular e plural, como instituído absorvente e em muta - ção. Entretanto, enquanto singular e plural a m tempo, o singular não perde sua especificidade; será sempre singular enquanto o modo de produção que o envolve exigir um direito assim.

Tal dimensionamento inaugura outros cami­nhos para o direito; mesmo no contexto dal filosofia marxista supe-

21ra-se a concepção que Marx textual!zou em "A Questão Judaica" pa ra se compreender o jurídico sob novo aspecto.

Tambem Ernst Bloch, muito embora acompa - nhando, de algum modo, as colocações marxistas tradicionais, tenta recuperar a noção dos direitos humanos e do jusnaturalismo como úteis e necessários ã transformação do jurídico instituído.

0 pensamento de Bloch guarda algumas no22 ~ tas de originalidade . Quanto ao direito posto, este autor segue

as principais coordenadas do marxismo não crítico, anterior a Al­thusser. 0 que se verifica, por exemplo, quanto ã sua percepção do direito, enquanto ideologia, como falsa consciência; a "jurispru - dência será entre todas as autonomias e frações do real imaginário, a única que morrerá, em lugar de sair liberada simplesmente

- 23do falso carater ideologicó"

Não obstante isso, há em Bloch a permanên cia de duas questões fundamentias; (i) a necessidade de formular um conhecimento apto a expressar a condição do direito capitalista positivo, com a sua (ii) conseqüente localização no universo espá- cio-temporal em que ocorre. Somente apõs o trabalho de elucidação

do direito singular, ë que se o articula com os direitos intituin- tes.

Concordamos cora tais posicionamentos. Ca­be, todavia, enfatizar que, em relação ao direito instituído, as colocações do marxismo tradicional nos parecem insuficientes, pois em nossa maneira de ver, a forma jurídica contemporânea poderá ser superada com a derrocada do modo de produção capitalista, mas não o direito, o qual poderá revelar outras formas e conteúdos. Mas , se não aceitamos em sua totalidade a teorização de Bloch, concorda mos no concernente à urgência de m saber que, conhecendo seu obje to, exija sua transformação.

A articulação entre o singular e o plural permite o resgate da face revolucionária do jusnaturalismo, notada mente da associação entre o direito natural e as utopias sociais.

Assim como as utopias sociais foram a ba-- se sobre a qual se desenvolveu o matérialisme historic© — o " so­cialismo científico” — , um pensamento voltado para a interpreta - ção do mundo e para sua mudança, o jusnaturalismo ê a base sobre a qual se pode formular m novo direito. Bloch mostra que várias di­ferenças distanciam as utopias sociais do jusnaturáiismo, mas ain da outras tantas semelhanças os aproximam, o que o autoriza a pro­clamar a necessidade de uma utopia jurídica.

As diferenças seriam as resultantes de notadamente, três fatores; (i) quanto ã êpoca; (ii) quanto ao esta tuto epistêmico que reclamara e, finalmente, (iii) quanto ao foco de incidência. Enquanto o jusnaturalismo vem se manifestando, com regularidade, ainda quesob inúmeras formas, desde os gregos, as utopias sociais somente nasceram apos a consolidação do capitalis­mo industrial e como crítica a ele (utopias anteriores formularam- se, mas não com esse alcance social; ë o caso de Campanella e Mo - rus). Depois, enquanto o jusnaturalismo reclama um estatuto de co­nhecimento do que e, apresentando-se como a verdade jurídica, as utopias sociais já nasceram sob o signo da proclamação da mudança, sem auto-legitimar-se como saber monopolizador ou detentor da ver­dade única. Finalmente, enquanto o jusnaturalismo procura defender dignidade humana, preocupando-se com os humilhados e ofendidos ,

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as utOTpias sociais reclamam a felicidade do homem, procurando ins-24taurar a idade de ouro e o fim dos explorados e espoliados

Talvez tenha chegado, de fato, o momento de unificar esses propósitos. Eis a função das utopias jurídicas :— concretizando um saber inserido na historicidade, conhecedor do mundo e, voltando-se para o futuro, apto a formular os conceitos teorico-prâticos para mudâ-lo. Um saber jurídico que, conhecendo o direito positivo, explique-o historicamente, ao mesmo tempo em que, captando-o como resultante de relações de poder, promova e recla­me a afirmação dos direitos sociais relativos ã dignidade e felici dade do homem.

Para isso, deve-se recusar a busca de es­tatuto de cientificidade proprio e particularizado; a pretensão ao monopólio da verdade jurídica e o propósito de instrumentalizar o exercício da lei. A utopia jurídica, deve comunicar-se interdisci- plinarraente com os demais saberes e teorias jurídicas, manifestan­do um compromisso etico com os direitos politicamente conquistados, mas juridicamente não exigíveis, para reclamar a mutação do singu­lar posto através da promoção do plural instituinte.

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2.1. Para concluir

tA fim de melhor compreender o universo de nosso texto, convém esboçar a síntese de seus elementos basilares, os quais levarão a propostas conclusivas. Esses elementos resultam de duas preocupações básicas; (i) quanto ao aspecto epistêmico, a localização do saber jurídico na episteme contemporânea; e, (ii) do ponto de vista teórico- político, a busca de um saber jurídico apto a compreender/explicar seu objeto.

Localizar epistemologicamente o direito

0 jurídico atual nasceu sob o signo da cientificidade, de tal maneira que boa parte das teorias jurídicas não passam de discursos justificadores do estatuto teórico de suas

démarches ♦ 0 direito, então, é reconhecido como tal através de miâl tiplos deslocamentos que se socorrem desta ou daquela filosofia Entretanto, em última analise, ele sera definido conformando-o à prática jurisdicional. Percebe-se que antes de definirem o que é o direito, as várias teorias procuram monopolizar a disposição do que é ^ direito. São, então, atividades tecnológicas auxiliares da prática jurisdicional, e não cognoscitivas (em sentido estrito).

Estas teorias justificam-se como ciência, basicamontc de duas maneirus. (i) Primeiramente, socorrendo-se da epistemologia das ciências naturais — ê o caso dos vários "socio- logismos" — aí encontrarão os fundamentos para descobrir certo direito dado (pela natureza ou pela sociedade), o qual deve ser observado pela normas técnicas (as leis) construídas. Neste caso, a ciência do direito seria uma sociologia jurídica, .e a análise dos textos legais constituiria espécie de técnica subordinada à primeira, (ii) A segunda maneira assume mais claramente o aspecto tecnológico, nascendo a partir da separação entre o reino do ser e o do dever-ser, para proclamar a ciência do direito como uma di£ ciplina do segundo reino; uma ciência da norma. Desta concepção decorrem os posicionamentos lógicos de Kelsen, os deslocamentos on tológicos de Cóssib, e o tridimensionalista^s de Reale.

Conforme o referencial epistemológico, es tas teorias assumem esta ou aquela posição frente ã dogmática. A£ sim é que para os primeiros a dogmática é simples técnica decorren te da ciência jurídica. Para os segundos, a ciência do direito é a ciência dogmático-jurídica.

Estas colocações são severamente questio-- nadas pela filosofia mais recente, é o caso dos novos jusfilósofos brasileiros, e mesmo dos marxistas críticos (pós-althusserianos) , os quais basicamente, se identificara ao reclaraar ura novo estatuto epistêmico para o direito, de tal modo que este possa compreender/ explicar o seu objeto, dizendo não propriamente o que é conforme a lei, mas o que é o direito.

Esta postura constituiu um passo decisivo para a transformação teórica do jurídico. Entretanto, como o norma tivismo em relação ao sociologismo, ela proclama a condição ideoló

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gica das teorias jurídicas dominantes, querendo paxa si o monopo - lio da verdade e da ciência.

Oxa, a arqueologia do saber proposta por Foucault demonstra a impossibilidade do direito constituir ciên - cia. Mesmo as ciências humanas estão impedidas, na episteme da era da positividade, de assumir um estatuto epistemologico similar aos estatutos da matemática e das ciências naturais. Nem por isso, o saber jurídico, assira como as demais ciências do homem, confun - dem-se com a doxologia, cora o impprio das opiniões e do senso co - mum. São um saber ; disciplinas intermediárias entre o eixo epistê­mico da filosofia e os eixos das ciências.

Em suraa, o saber jurídico, diante da epis teme contemporânea, esta impossibilitado de assiamir um codigo de cientificidade. Os vãrios discursos jurídicos resultam do acesso a este ou aquele eixo epistêmico demonstrando a inexistência de ura eixo proprio para o direito e ciências humanas. 0 direito não esta impedido de buscar a verdade; porém esta so poderá ser elucidada com o abandono da justificação do monopólio da produção do saber jurídico.

■íExplicar/compreender o direito contemporãneo

0 pensamento jurídico tradicional, de uma maneira ou de outra, reduz o campo de est*udo do jurista. Assim acontece com as varias teorias sociológicas e normativistas. Es­tas, embora a paxtir de fundamentos epistêmicos diversos, ■ guardam certa semelhança entre si; o positivismo. 0 direito e apenas o d^ reito positivo, e esteé prisioneiro do universo estatal. Aqui , apenas a forma teórica de reconhecer o direito difere.

Este aspecto não resulta de nenhum condi­cionamento ideológico, que, porventura, possa ser ultrapassado por uma crítica veemente, ou por um conhecimento "desideologizado". Na verdade, o positivismo é a forma através da qual o direito bur.guês contemporâneo aparece. Este, necessariamente, é um direito positi­vado .

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0 direito positi"vo se constitmii como tal apos longo processo, que primeiramente receptou p direito romano , para depois se consolidar através de dois momentos. Ci) o momento da soberania do povo-nação, e (ii) o momento da jurisdição e ciên cia.

0 jurídico ê uma autonomia incorporada ao imaginário, não podendo este ser entendido como um fetiche, uma fantasmagoria nascida de um delírio imagético. Antes, é algo pro - fundamente histérico, e nesse sentido, material: tem existência, é real; materializa uma relação de poder.

® a normalização são as duas faces de uma mesma rede, de tmia mesma historia, de um mesmo poder. A lei é a expressão da soberania, do geral, e do monopolio da violên cia física do estado. A normalização é o sustentáculo cotidiano da lei; é o adestramento, a individualização, a face física e corpo - rea do poder, base da abstração universalizadora da juridicidade . Tanto os aparelhos disciplinares que funcionam sob o signo da nor­malização, como os corpos jurídicos que funcionam através da lei , são a materializarão de uma relação de forças entre classes e suas frações. Soberania e disciplina estão intimamente ligados, sendo apenas duas linguagens necessárias e complementares para uma mesma relação de forças. ...

A diferença — e neste particular traí - mos Foucault para seguir Poulantzas — reside no aspecto de que enquanto o direito situa-se, prevalentemente, no terreno do esta - do, a individualização ultrapassa-o, materializando-se igualmente nos aparelhos de produção, além de outros.

A ,forma jurídica contemporânea esta estr^ tamente ligada ao modo capitalista de produzir e reproduzir as con dições de existência hxmiana. 0 aparato produtivo funciona como ura instrumento disciplinar e normalizador, tendo nascido após o surgj mento do homem desnudo, a partir do desmantelamento da economia feu dal. Com o fim dos elos territoriais e pessoais, as relações de trabalho são reguladas pela abstração da lei, aparecendo um homem que, sujeito a uma relação jurídica, ê objeto do codigo discipli -

nar presente na fábrica. 0 homem capitalista ë sujeito e objeto , a ura tempo, de m a mesma rede de poder.

A relativa autonomia jurídica permite su por que a sua imperatividade reside na norma, assumindo esta o ca ráter de coercitividade. Na verdade, sendo a norma apenas um codi- go de medida, nada pode impor. A imperatividade reside no ato san cionador/ratificador do estado. Com este ato o estado, anquanto ma terialização de uma relação de forças, sintetiza a articulação de três momentos analíticos: (i) o momento individualizante da disci­plina e normalização; (ü) o momento da violência e da vontade ge ral e, (üi) o momento das lutas: conflito e confrontação.

Os três momentos estão imbricados, sendo que os separamos apenas como medida pedagógica. 0 momento das dis­ciplinas ë o do cotidiano, do adestramento físico, corpóreo e men­tal, que permite individualizar o homem sob o signo do que ë norr mal e patológico, sugerindo que a lei, o outro lado das discipli - nas, ë a norma, e seu desregramento admite punição e estigma. 0 se gundo, ë o momento da violência e da vontade geral. 0 estado, mo£ trando-se como representante da vontade geral, está acima dos indi víduos, podendo dispor da violência para a manutenção do interesse publico. Eis porque o estado monopoliza o exercício da guerra. Ne^ se sentido, só hâ a lei e o legislativo, porque há o aparato milÍT tar; e só hâ o judiciário porque há a polícia.

0 terceiro momento ë a face dinâmica dos dois primeiros. 0 momento das lutas: o direito ë um espaço de lu ta. E, enquanto o outro das disciplinas, ë tambëm linguagem do po der. Este não ë algo pronto e acabado, uma substância-coisa pronta a moldar o mundo. Antes ë uma rede. 0 poder não pode ser apreendi­do, quantificado, localizado; ë uma relação. E o direito enquan­to sua linguagem ë tambem a materialização de imia relação de for ças entre classes e frações delas. Com isso não podemos entendê-lo como repressão, pois ë tambem, em maior ou menor grau, conquista.

0 resgate do sentido político do direito tem facilitado o nascimento de novas perspectivas para o conheci - mento jurídico. Tentando nos situar no contexto daqueles que se preocupam com a renovação do estudo do direito, propomos o desen -

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volviraento de ura pensamento que, mantendo ura compromisso etico com as classes populares, promova a instituição do novo.

A recuperação da face revolucionaria do direito natural, travestido, atualmente, nos direitos humanos; a associação entre o jusnaturalismo e as utopias sociais desenvolvi­das por Bloch; a busca da instituição de novos direitos e a afirma ção de outros tantos politicamente jã conquistados; isso tudo per­mite supor a elaboração de uma teoria que, compreendendo o singu lar jurídico, teoriza e afirma o plural — os direitos — como re curso teorico e pratico indispensável para a problematização do di reito contemporâneo.

N O T A S

(1) - Kelsen, Hans. "Teoria Pura do Direito". Coimbra. Armênio Amado, 1979.(2) - Reale, Miguel." 0 Direito como Experiência", op. cit. Também o pensameji

to coelhano da fase inicial, que se revela em "Toeria da Ciência do Direito", op. cit. e na la. edição de "Logica Jurídica e ..." op.cit

(3) - Por exemplo, além dos jã apontados em capítulos anteriores, as manifes­tações da escola sociologica americana e do realismo jurídico estadu nidense.

(4) - Sobre isso V. Coelho, L.Fernando. "Da Ideologia do Direito ã Ontologiado Social". Seqüência n9 5, Fpolis, Ufsc, 1982, p. 67.

(5) - Rocha, Leonel Severo. "Critica da "Teoria Crítica do Direito". ^ Se

qüência n? 6, op. cit., p. 122.(6) - Roberto Lyra F9., "Direito do Capital e Direito do Trabalho" (Porto

Alegre, Fabris, 1982, p. 35) nos informa que José Geraldo de Souza Jr,, vem se .dedicando ”a auacultação doa anseios e organização dos movimentos espontâneos e organizados em defesa do direito supralegai de moradia, tal como ele emerge em Brasília", (grifo nosso).

(7) - Lyra Filho, Roberto. "0 que é Direito", op. cit. p. 07.(8) - Lyra Filho, Roberto. "Problemas Atuais do Ensino Jurídico".Brasília. 0

breira, 1981, p.22.(9) - Idem."o que é direito'.' op. cit.

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CIO) - Devemos entender o "pecado", nao ccano algo negativo que eventuálmentepossa macular ou corromper as contribuiçoes teóricas da chamada nova

%escola jurídica brasileira, "mas como pontos que mercem ser question^ dos. Os "Pecados", aqui, designam opções teóricas e conceituais que seguem xnna estratégia global, consciente e politicamente engajada.

(11) - Coelho, L. Fernando. "Da Ideologia do Direito a Ontologia do Social".op. cit. 0 mesmo texto foi publicado também em "Introdução à Crítica do Direito", op. cit.

(12) - Lyra Tilho, Roberto. "0 que é direito", op. cit. p. 65(13) - Idem, p. 11.(14) - Cremos que a teoria dialética pode funcionar na sociedade capitalista do

mesmo modo que os direitos humanos e o jusnaturalismo, ou seja, como 'arma de luta'. Não hã duvida, porém, de que numa sociedade democrá­tica e igualitária, onde as contradições essenciais tenham sido eli­minadas, seria«um exemplo de teoria jurídica superadora do normati - vismo formalista, relevando os direitos supra-legais.

(15) - Lefort, Claude. "Direitos do Homem e Política" ^ "A Invenção Democrá -tica".S.P., Brasiliense, 1983, p. 37.

(16) - Idem, p. 59.(17) - Ib.Id.(18) - Miaille, Miche^l. op. cit. p. 265.(19) Idem. 0 autor nos remete a J,Freund; "Le Droit d*aujurd"hui".(20) - Ib.Id. Tb. Coelho, L. Fernando (V. "Sentido Crítico do "Eterno Retorno

ao Direito Natural", i^ Seqüência n9 02, Fpolis^ Ufsc, 1980). Este autor evidencia o caráter renovador do discurso jurídico que resga­ta o Ewiger Wiederkehr, reivindicando novos direitos.

(21) - Sobre isso Cf. Lefort, Claude, op. cit. pp. 37'H69.(22) - Sobre Bloch Ver Habermas, Jürgen. "Ernst Bloch, um Schelling marxista".

in Habermas. Org. Barbara Freitag e Sérgio P. Rouanet. S.P. Ãtica ,1980. TB., nesse mesmo volume, as notas sobre Bloch na introdução dosorganizadores da edição. Ainda, Cf., LBwy, Michael. "Para Uma Socio-\ ,logia dos Intelectuais Revolucionários". S.P., Lech, 1979, p. 282 . (entrevista ccm Bloch).

(23) - Bloch, Ernst, op. cit. pp. 184-208.(24) - Idem.

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