Post on 30-Jan-2023
Índice
Apresentação, 7
China, um Comunismo Reinventado, 9
O Novo Confucionismo, 31
No Mundo da Mutação As origens do Pensamento Chinês, 49
Um Desprendimento Impossível, 63
A importância do sossego para Confúcio, 81
A Sabedoria e a Amizade, 87
A dificuldade de lidar com os ‘santos’, 93
As desventuras da Política, 99
Harmonia e Diferença, 105
O que fazer com a Mente?, 111
A arte de ouvir, 117
Apresentação
Coisas Chinas é um despretensioso livro que reúne meus
ensaios publicados na Revista Filosofia- Ciência e Vida
desde 2010. São pequenos artigos e colunas com o objetivo
de divulgar o pensamento chinês em suas mais variadas
facetas. Curiosamente, começamos nosso trabalho com a
reinterpretação do Comunismo atual, que se seguiu a um
ensaio sobre a questão do Novo Confucionismo na China – a
doutrina que provavelmente o suceder|. ‘No mundo da
mutaç~o’ e ‘Um desprendimento impossível’, analiso facetas
da filosofia chinesa razoavelmente desconhecidas do
público brasileiro. Depois, seguem-se curtos textos que
formavam a minha coluna sobre ‘Pensamento Oriental’
[título que nunca gostei, mas enfim...].
Espero simplesmente que o leitor aprecie essa singela
oferta.
ANDRÉ
[André Bueno], 2014
9
China: um Comunismo Reinventado
É impossível compreender o pensamento chinês moderno
sem buscar suas raízes no passado. Até mesmo o que
podemos chamar de um “comunismo chinês” est|
carregado deste pensamento tradicional, antigo, por mais
contemporâneo que pareça. Isso acontece em função da
continuidade histórica da China, um fenômeno que a
diferencia de quase todas as outras civilizações do mundo,
e é praticamente desconhecido no Ocidente. Para os
chineses, citar filósofos como Confúcio para o contexto
atual é tão normal e verossímil quanto citar Marx - e apesar
disso parecer contraditório, no plano das idéias desta
civilização, ambos dialogam de modo atemporal. Isso se dá
em função da rica herança filosófica que constitui o alicerce
do que é “o pensar chinês”.
As pessoas estão curiosas de saber: o que é o
comunismo chinês? Para alguns, é um sistema repressivo e
arcaico, que faz execuções de prisioneiros e tem sérios
problemas éticos em lidar com o nascente capitalismo e os
princípios democráticos; para outros, é justamente um
sistema firme, conservador, que pune devidamente os
10
prisioneiros, e que compete no mundo do capitalismo como
se deve fazer. Mais do que isso, porém, o comunismo chinês
é uma incógnita histórica e teórica. Suas inúmeras
adaptações o fizeram ser entendido tanto como um
pragmatismo necessário à cultura chinesa quanto um
desvio ideológico preocupante.
A questão não pode ser abordada de forma simples,
e a meu ver, é impossível falar da China contemporânea
sem compreender suas raízes históricas e filosóficas - fazer
isso seria agir, por exemplo, como esses pregadores que, ao
analisarem a bíblia, o fazem como se ela tivesse sido escrita
na semana passada e diretamente em português.
O que entendo sobre o comunismo chinês, e que
pretendo propor neste breve ensaio, é resultado de
algumas observações próprias que buscam conectar a
absorção e a transformação do comunismo, na China,
dentro de uma lógica própria desta civilização, tal como
ocorreu com o Budismo. Uma tendência marcante no
pensamento chinês é a disponibilidade (como apontou o
sinólogo François Jullien) de se abrir para novas idéias, mas
ao mesmo tempo, a inserção destas se dá pela sua sinização
- ou seja, pela possibilidade de se transformarem e se
adaptarem as necessidades intelectuais e ideológicas
11
chinesas milenares. Dito isso, não é preciso muito para
imaginar que se o comunismo conseguiu se estabelecer na
China, é porque foi devidamente modificado para dialogar
com a mente chinesa. Mas com quem, ou com o que, este
marxismo precisava discutir para se firmar?
Desde a época Han, os chineses já dirigiam suas
teorias filosóficas a um processo de síntese, uma atitude
interessante que mescla tolerância (para com outras
teorias), reconhecimento (que envolve a identificação de
pontos positivos no outro) e interesse próprio (a
adaptabilidade e a disponibilidade). Os chineses têm,
portanto, uma vasta experiência em absorver idéias
estranhas a sua cultura, mas de um modo bastante
particular, capaz mesmo de operar importantes
modificações no perfil de uma teoria.
Raízes
Antes de analisarmos a vinda das teorias marxistas
para a China devemos aceitar, no entanto, que os chineses
j| tinham algumas concepções de “comunismo primitivo”.
Na China antiga, entre os séculos 5 e 3 a.C., a sociedade
passava por uma intensa crise ética e política, que levou a
formação de uma série de escolas de pensamento cujos
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objetivos eram criar propostas para a resolução das
questões que assolavam o governo e povo. A escola do
pensador Mozi já advogava, por exemplo, a "luta social"
entre a elite exploradora e o campesinato espoliado como a
causa fundamental dos conflitos sociais. Para ele, a solução
era a destruição da cultura vigente, a abolição das classes
altas (nobreza), a instauração de um regime camponês
comunitário e a divisão das terras de modo igualitário.
Diante desta síntese, poderíamos quase acreditar
que Mozi era comunista-marxista; mas além de criarmos
um anacronismo histórico, o fato é que Mozi acreditava
também no “Céu” como uma entidade religiosa e magnífica,
capaz de cuidar dos seres humanos; seu "novo sistema" não
pretendia mais do que a abolição os nobres, mas mantinha,
substancialmente, o modo de vida da antiga comunidade
camponesa. Por fim, Mozi apenas embrionou teorias sobre
a exploração e a luta de classes, mas não aprofundou as
questões históricas e teóricas sobre economia e política.
Estranhamente, quem analisou estes últimos itens foi uma
outra escola, chamada de Fajia, ou legista, que defendia
uma centralização do poder nas mãos de um príncipe único,
circundado de funcionários públicos, e regido por uma lei
draconiana (em chinês, Fa). Maozedong gostava de citar as
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analises dos autores legistas, como Shang Yang e Hanfeizi,
sendo Shang uma das mais importantes influências na
mentalidade comunista de Mao, devido aos seus textos
sobre economia e agricultura. Se os legistas não
propunham um regime igualitário, eles defendiam uma lei
única, um estado pesado e burocrático, cujo acesso - livre
para todas as classes - permitia uma certa mobilidade
social, e um estado de eterna vigilância e convocação
pública, algo muito parecido com o que se deu nos regimes
socialistas.
Contudo, as escolas mais famosas da história chinesa
foram o confucionismo e o daoísmo. A primeira, fundada
pelo famoso mestre Confúcio, pregava que a solução dos
problemas sociais baseava-se num vasto e profundo plano
educacional, enquanto os daoístas propunham um espécie
de abandono da sociedade, calcados num desprendimento
das coisas materiais.
O sucesso do confucionismo como doutrina oficial
do império e do daoísmo como religião não apagaram de
todo, porém, a existência das outras linhas de pensamento.
A durabilidade destas propostas é um fenômeno
desconhecido no Ocidente, e nos permite realizar um
14
grande salto histórico que nos coloca diante do momento
de seu encontro com o marxismo.
A República
Como sabemos, na China o pensamento antigo continua
vivo, influenciando e servindo de referência para as noções
atuais. Na época em que se deram as grandes convulsões
sociais chineses, na passagem dos séculos 19-20, estas
teorias antigas estavam bastante vivas na memória chinesa,
e a necessidade de importar respostas do ocidente não as
excluía, de modo automático, dos padrões de raciocínio
desta civilização.
Em 1911, quando a republica chinesa é proclamada,
ela nasce sob o signo de uma tensão clara; a disputa entre
comunistas e capitalistas pelo poder. Sun Yatsen, o grande
mentor desta revolução política na China, era ele mesmo
uma mescla de confucionista, socialista utópico e
republicanista americano. Na sua indecisão premente, ele
deu vazão ao conflito que lançaria esta jovem república a
uma ditadura, promovida por seu pupilo Chiang Kaishek,
um perseguidor implacável dos comunistas - vale notar que
Chiang teve sua formação militar na Rússia, e
aparentemente ele se colocava como um "socialista" no
15
inicio de sua carreira política. Em 1927, no entanto, Chiang
realiza o massacre de Xangai, quando destroça quase
inteiramente o partido comunista chinês, lança-o na
clandestinidade e encerra as possibilidades de dialogo e de
liberdade política. Chiang assume uma total defesa do
capitalismo, e chega mesmo a estabelecer alianças com
países nazi-fascistas. Seu grande erro foi permitir, por
acidente, que o jovem Maozedong saísse vivo.
As adaptações do comunismo chinês
Mao Zedong, no início de sua carreira política, era também
um intelectual bastante sensível e capacitado. Se suas
leituras sobre marxismo eram um tanto confusas, por outro
lado, sua sensibilidade ao mundo chinês não foi tocada
pelas miragens do ocidentalismo. Desde cedo Mao percebeu
que a realidade chinesa estava calcada no campo, no
trabalho campesino, como já afirmavam Mozi e os legistas.
Isso ajudou em muito na recepção do comunismo como
uma das "saídas" para o atraso tecnológico e econômico da
China. Os chineses tentaram, assim como fizeram os
japoneses, empreender um processo de modificação de
suas estruturas econômicas por meio da absorção de
teorias organizativas e políticas ocidentais. A experiência
16
que os chineses tiveram com o capitalismo, porém, foi
péssima; primeiro, ele foram atacados e espoliados pelo
capitalismo mercantil europeu; segundo, as colônias
ocidentais na China – imperialistas e racistas - só
contribuíram para piorar a imagem dos europeus (e de
suas idéias) nesta sociedade; por fim, os tempos de
capitalismo de Chiang kaishek se caracterizaram por uma
escalada de corrupção, brutalidade e violência, o que
apenas confirmava os receios dos chineses em relação ao
capitalismo.
Diferente disso, o marxismo propunha que os seres
humanos eram iguais; que o mundo era uma comunidade
de proletários; que as classes mais baixas deviam superar a
elite; que as terras deveriam ser divididas por igual; que
haveria apenas uma lei; e por fim, que o socialismo e o
comunismo eram etapas para uma sociedade onde todos
teriam tudo. Não é preciso dizer que este discurso era
muito mais simpático e atraente do que o do capitalismo
duro, perverso e individualista. Obviamente, para se fazer
isso era necessária uma revolução, em geral armada, para a
tomada do poder. Em outras ocasiões, este tipo de
conclamação causaria mal estar e poderia soar exagerada,
mas na situação catastrófica em que o país de achava, uma
17
guerra a mais era apenas uma circunstancia, e não uma
questão insuperável.
Estas condições foram mais que propícias para o
desenvolvimento de um comunismo maoísta na China.
Após as malsucedidas tentativas de promover o marxismo
perto das áreas industriais, e da necessidade de fugir das
tropas de Chiang, empreendendo a famosa Longa Marcha -
um quase fracasso que virou lenda, depois - Mao "caiu na
real" e redescobriu a verdadeira China dos camponeses, dos
agricultores, do passado vivo. Onde muitos teimavam em
manter uma visão européia de revolução socialista, Mao
inovou e se adaptou as circunstâncias, tal como já
pregavam muitos e antigos sábios chineses. Afinal, não era
o próprio Confúcio que dizia: “mestre é aquele que, por
meio do antigo, descobre o novo?”.
Mao poderia ser acusado de ter desvirtuado a
verdadeira dinâmica da luta de classes, ou de estar
corrompendo a teoria das revoluções socialistas, mas a
questão é que o único modelo disponível de revolução,
nessa época, era o estalinismo soviético - que estava longe
de ser aquele idealizado por Marx - e por causa disso, não
podemos ser intolerantes de acreditar que ele seria a única
via possível. Para os mal informados, aconselho a leitura da
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Era dos Extremos de Hobsbawm, ou mesmo a Revolução dos
bichos de Orwell, e em pouco tempo compreenderão que
Mao não estava tão equivocado assim em conceber um
modelo próprio, e adaptado as necessidades de sua
sociedade.
Isso gerou desconfianças em Moscou, que decidiu
apoiar Mao somente no final da 2a guerra mundial. Por
outro lado, os frutos dos desatinos de Chiang não
demoraram a surgir, e em breve (1949), ele seria obrigado
a fugir para Taiwan.
O grande começo
Apesar das acusações de sinólogos como Simon Leys
(Sombras chinesas), que defendem o contrário, o
comunismo chinês começou bem. Ele tinha apoio dos
camponeses, era excitante, prometia um mundo novo; a
teoria se materializava, deixando de ser uma utopia para
ser uma heterotopia, uma idéia visionária manifestada e
realizada, como dizia Foucault. Muitas vezes, os
especialistas tendem - mas não sem razão - a confundir a
China de hoje com a China revolucionária, como se o
embrião de seus erros estivesse presente desde o inicio.
Não creio que isso seja tão verdadeiro quanto o fato de que
19
as revoluções se perdem, muitas vezes, de modo
espontâneo. Abordaremos este ponto melhor, ao final deste
texto.
O que podemos afirmar, contudo, é que não se pode
negar o clima de euforia e comprometimento da população,
no geral, com as conquistas revolucionárias. Isso implicou,
num curto espaço de tempo, que a China começasse a
empreender uma reformulação econômica relativamente
eficaz; que fosse capaz de surpreender o mundo com a
obstinada resistência apresentada na Coréia, ou na
estranha cortesia com que foram tratadas as questões de
Hong Kong e Macau; que invadisse o Tibete, na época um
espécie de Vaticano dos Himalaias, com quem os chineses
tem disputas ancestrais; por fim, que abolissem antigas
costumes sociais e dessem uma liberdade relevante a
mulher chinesa.
Mas Mao, como economista, era um apenas um bom
ideólogo. Em breve, as condescendências do início, a
tolerância com os desviados, e o pragmatismo realista,
deram lugar a um regime fechado, distante do povo e
promotor de catastróficos erros.
20
O problema burocrático
A China é uma nação burocrática há milênios, e isso não
mudaria de um momento para outro. As pesadas estruturas
administrativas recriadas pelo comunismo (fenômeno que
também ocorreu na União Soviética) começaram a
emperrar o dinamismo revolucionário. Tal como ocorreu
no final de todos os grandes impérios chineses, os
burocratas começaram a agir em função dos ganhos
pessoais, num sistema que desestimulava o comércio e a
produção (ainda que as metas produtivas fossem um mote
da propaganda revolucionária). A burocracia por si só,
porém, não produz nada; privilegia muito mais o raciocínio
administrativo do que o ideológico; estimula a conspiração
e a mentira, na medida em que os cargos superiores se
transformam no único meio de realização pessoal; visto
assim, a burocracia imperial confucionista era até mais
preparada do que aquela criada pelos comunistas.
Logo, os desastres se sucederam; crises de fome,
perseguição aos intelectuais, e um clima de repressão
política se instaurou no país. Nesta época Mao começou a
citar constantemente os legistas, invocando as agruras que
a unificação do país teriam custado para justificar a criação
de um regime forte, porém violento. Qinshi Huangdi, o
21
déspota que reunificou a China no século 3 a.C., construiu a
grande muralha e seu túmulo de guerreiros de terracota ao
custo de milhares de vidas, foi reabilitado como herói
nacional, e grandes campanhas de construção nacional
foram empregadas para mobilizar o povo, do mesmo modo
como foi, no passado, a construção da mesma muralha ou
do mausoléu real...
No entanto, o partido comunista chinês não era uma
unanimidade comprometida com estes novos desvarios; na
década de 60 Mao foi afastado, e durante algum tempo os
chineses começaram a respirar um ar novo, uma busca de
renovação, materializada numa proposta de comunismo
mais leve. Mao teve que usar de todas as artimanhas de que
dispunha para retornar ao poder, por meio da terrível
Revolução Cultural, que invocava a construção de um novo
socialismo chinês “autêntico”. Entre 1966 até
aproximadamente 73 (alguns autores afirmam que ela só
foi até 71, mas o clima de perseguição continuou além
disso), a China sofreu um golpe interno, e os velhos
guerreiros da longa marcha tomaram o poder, dando vazão
a toda sua teimosia, rancor e intransigência. Isso
significava, com efeito, um recrudescimento das práticas
22
obscuras do regime, e a retomada da burocracia emperrada
e agressiva.
O mundo tinha uma dificuldade tremenda de
entender as mensagens que a China mandava para o
exterior ao longo deste período. Para o ocidente, ter o
maior país do mundo (união soviética), e o mais populoso
(a China), sob regimes comunistas era assustador; por
outro lado, um recente rompimento promovido pelos
chineses com os soviéticos parecia um alívio, o fim de uma
aliança perigosa e ameaçadora.
Para os chineses, as preocupações internas levaram
a uma grande campanha de perseguição a Lin Biao (ex-
amigo de Mao e depois, conspirador e inimigo) e Confúcio –
isso mesmo, o velho sábio da antiguidade -, tido como uma
sobrevivência intelectual deletéria para a modernização da
China! Quem poderia entender os chineses sem
compreender esta lógica tão sutil e tão própria? Era preciso
destruir este passado, a qualquer custo - enquanto para os
ocidentais, tecnologias e indústrias seriam a única medida
para tirar o pais do atraso. Como conciliar visões tão
díspares?
23
A história cíclica
Mas Mao morreu, como vários outros lideres. Em 1976,
uma parte importante dos antigos camaradas se foi, e os
pragmatistas tomaram o poder. Liderados por Deng
Xiaoping - que teve o cuidado de não manchar a imagem de
Mao, mas de destroçar todos os seus antigos aliados -, se
iniciaram as reformas na China, abrindo gradualmente a
economia e dando espaço para o povo respirar.
Curiosamente, muitos intelectuais ocidentais, que
viam o maoísmo como uma opção socialista para o terceiro
mundo, consideraram isso uma traição do novo governo
chinês para com o socialismo mundial; algo parecido como
um cliente (no caso, o ocidente) tentar ensinar um
vendedor tarimbado em como fazer seu trabalho. A
ignorância sobre o ritmo cíclico da história chinesa criou
estas ilusões nestes pobres idealistas; mas quem, nesse
momento, não estava envolvido em um dos lados da
política mundial? A Guerra fria foi uma época que não
permitia indecisões ideológicas, e as mudanças de curso
destas políticas causavam bastante confusão na cabeça dos
pensadores.
24
A manutenção do comunismo
Este regime novo e estranho, que conjugava os ideais
marxistas com uma estranha política de mercado se
apresentava, pois, como uma contradição - perfeitamente
concebível para os chineses, mas incompreensível para os
ideólogos marxistas ocidentais, cuja dialética não alcançava
os sistemas de pensamento chineses.
Tais contradições permitiram ao comunismo chinês
sobreviver, enquanto a tradição pró soviética ruiu.
Estagnados pelas suas próprias burocracias, o mundo
socialista ocidental não soube se reformular, enquanto a
China já o vinha fazendo há alguns anos.
Na seqüência, o incidente que ocorreu na praça da
paz celestial em 1989 foi, aos olhos da história chinesa, um
mero acidente. O número de estudantes que pediam
democracia era ínfimo perto da realidade da população
chinesa; mais perigosos do que eles eram as forças
conservadoras, reduzidas mas ainda agressivas, que
pediam um retorno do maoísmo reacionário como forma de
resolver estas tensões. Deng escolheu sua própria via, e
reprimiu ambos de uma vez só. Os estudantes apareceram
diante das câmeras sendo espancados, e os expurgos dos
conservadores, no partido, foram feitos à surdina. Em
25
poucos dias, Deng restaurou a ordem e criou a China de
hoje.
E que comunismo é esse?
A China de hoje se inspira nas teorias do passado, e age com
o pragmatismo realista de sua filosofia própria. A busca da
eficácia é o fundamental; o regime se estrutura em torno de
uma burocracia que se organiza ao antigo modo comunista,
mas que já aceita as exigências do jogo capitalista
internacional. A China de hoje está organizada segundo
seus critérios milenares, e o que se passou com o
comunismo maoísta se parece muito com uma reprodução
do quadro existente na época da reunificação promovida
por Qin. Mao provavelmente esperava consertar as falhas
de Qin, mas cometeu exatamente vários de seus erros; do
mesmo modo, Deng aceitou muito do que havia sido
construído anteriormente, mas suavizou os aspectos mais
duros do regime, deu impulso à liberdade de trabalho (não
tanto individual, mas talvez os chineses não façam muita
distinção entre as duas) e tornou a China uma potência, tal
como fez a dinastia Han, depois de Qin. Esta avaliação,
baseada em analogias, pode ser entendia por um ocidental
como uma forçar uma relação inexistente, mas ela é
26
absolutamente palpável e coerente dentro do senso de
história tradicional chinesa. Que se veja a reabilitação de
Confúcio, em tempos recentes. O comunismo chinês de hoje
é, portanto, um nome para disfarçar o verdadeiro senso
chinês de civilização; pode-se duvidar seriamente que o
império volte, mas o que significa atualmente para os
chineses as idéias de "república, comunismo, e democracia"
é, basicamente, uma coisa só: o desejo de uma ordem
cósmica e universal que permita aos seres se
harmonizarem, produzirem e florescerem.
Em tempo: muitas pessoas gostam de criticar os chineses
por sua aparente selvageria, sendo porque comem de tudo,
seja porque fuzilam pessoas em estádios, porque
abandonam crianças nas ruas ou porque os pobres estão
desprotegidos pelo Estado. Não me atreveria a duvidar que
essas coisas acontecem por lá: apenas, e volto a insistir,
leiam as notícias dos jornais sobre o nosso próprio
cotidiano. Para além da intenção, sempre existente nos
meios midiáticos, de apresentar uma postura ideológica
(pró ou contra o mundo asiático) velada pelas "denúncias"
sobre um regime, o fato é que temos aqui as mesmas
mazelas de lá ou dos EUA. Aliás, não são raras as pessoas
que defendem a pena de morte no Brasil, o que ocorre tanto
27
na China como nos EUA também... Lembremos das
olimpíadas de 2008, quando alguns comentaristas
esportivos disseram que os atletas chineses foram
treinados a exaustão, impiedosamente, para ganhar as
medalhas olímpicas. Mas existe outra forma de fazê-lo?
Tudo, obviamente, é uma questão de ponto de vista, que
pode ser separada entre os bem informados e os mal
informados... E a compreensão da China exige,
indiscutivelmente, uma boa dose de estudo, profundeza de
raciocínio e compreensão, sem o que as opiniões recebidas
– e emitidas -, não formarão mais que um quadro de
incoerências.
Nota 1
As raízes do Pensamento Chinês
A base do que é o atual "modo de pensar chinês" vem de
sua herança filosófica secular. As escolas de pensamento
chinês, desde o século 6 a.C., estão em busca de um Dao (ou
Tao, em uma grafia mais comum), que pode ser traduzido
como “método”, “caminho” ou “via”, para reordenar o
mundo e modificar a ação do indivíduo perante ele. Assim
sendo, todos os pensadores chineses criaram ou se filiaram
a um certo tipo de “Dao”; Confúcio propunha a via da
28
educaç~o (Jiao), Laozi e seus “daoístas”, o caminho do
retorno a “natureza original” (Ziran, ou desprendimento do
mundo humano); os seguidores de Mozi ao amor universal
(Jian Ai); e os legistas ao caminho do direito (Lei, Fa). Some-
se a este pensamento tradicional a adição do budismo, cujas
contribuições fundamentais se deram no campo da
religiosidade e da crença no além. A China de hoje é uma
mistura de tudo isso: o valor ao estudo e ao respeito
familiar é uma herança confucionista marcante; a
apreciação da natureza e a religiosidade derivam do
daoísmo e do budismo, o forte senso comunitário vem do
moísmo e por fim, a estrutura severa das leis, do legismo.
Contudo, o marxismo veio dar uma nova faceta para estes
pensamentos múltiplos. Li Dazhao e Chen Duxiu, mentores
intelectuais de Maozedong, propuseram um novo Dao,
calcado no pensamento científico ocidentalizante, para
compreender os fenômenos sociais chineses. Isto seria feito
por meio da teoria marxista, cuja estrutura dialética, na
visão dos chineses, parecia muito com seu sistema de
oposiç~o complementar, chamado classicamente de “yin-
yang” - todavia, Marx teria conseguido desenvolver este
sistema dentro das ciências ocidentais, o que constituía
uma vantagem em sua análise. Passadas algumas décadas, a
29
China de agora quer conciliar os ideais educacionais e
familiares do confucionismo com a planificação comunista,
e com o pensamento estratégico de Sunzi, da Arte da
Guerra, para criar um novo modelo político.
Nota2
O Governo Atual
A China de hoje se inspira nas teorias do passado e age com
o pragmatismo realista de sua filosofia própria. A busca da
eficácia é o fundamental. O regime se estrutura em torno de
uma burocracia que se organiza ao antigo modo comunista,
mas que já aceita as exigências do jogo capitalista
internacional. A China de hoje está organizada segundo
seus critérios milenares. Deng aceitou muito do que havia
sido construído anteriormente, mas suavizou os aspectos
mais duros do regime, deu impulso à liberdade de trabalho
(não tanto individual, mas talvez os chineses não façam
muita distinção entre as duas) e tornou a China uma
potência, tal como fez a dinastia Han, depois de Qin. O
comunismo chinês de hoje é, portanto, um nome para
disfarçar o verdadeiro senso chinês de civilização; pode-se
duvidar seriamente que o império volte, mas o que significa
atualmente para os chineses as ideias de "república,
30
comunismo e democracia" é, basicamente, uma coisa só: o
desejo de uma ordem cósmica e universal que permita aos
seres se harmonizarem, produzirem e florescerem.
31
O Novo Confucionismo
Ao mesmo tempo em que busca retomar seu papel como potência mundial, a China resgata o milenar pensador Confúcio, e o transforma numa nova proposta ética para o século 21.
Em 2010, o filme “Avatar” foi desbancando em apenas um
único país ao redor do mundo: a China. Por mais estranho
que pareça, seu posto quase un}nime de ‘primeiro lugar’ de
bilheterias foi atropelado pelo subestimado sucesso de
“Confúcio”, uma biografia cuidadosa e bem realizada do
antigo mestre que teve o galã chinês Chow Yun-Fat no
papel principal, representando o próprio Confúcio. Embora
muito se fale das artimanhas do governo chinês para que o
sucesso de “Avatar” fosse restringido, a questão é que os
chineses afluíram em massa aos cinemas para assistir a
super produção sobre esse antigo pensador de sua
civilização. Outro detalhe importante nesse acontecimento
foi o fato de se consolidar a total reabilitação de Confúcio
como grande pensador e educador – algo impensável há
quarenta anos, quando falar de Confúcio ainda era um
grande perigo no país comunista. Contudo, assim como a
China mudou muito nesse meio tempo - se transformando
32
numa economia poderosa e cada vez mais distante do velho
projeto maoísta-comunista – também o modelo político e
social chinês está gradualmente se modificando. A busca de
uma ‘nova forma’ de ideologia que possa agregar a ordenar
a sociedade chinesa se dirigiu, porém, em direção ao
passado; e a figura de Confúcio e do movimento
confucionista surge, novamente, como a grande opção de
pensamento para esse milênio.
A História do Confucionismo
Para entendermos esse fenômeno, precisamos voltar
no tempo e tentar entender a importância de Confúcio
(551-479 a.C.), para a sociedade chinesa. É difícil para um
ocidental compreender como o pensamento confucionista
penetrou tão profundamente a sociedade chinesa sem se
tratar do que poderíamos chamar de “religi~o”; por outro
lado, pensar a ética confucionista como uma teoria viva,
aplicável e adaptada ao contexto moderno seria algo similar
a alguém usar Platão ou Aristóteles como uma teoria
contemporânea de governo.1 No entanto, o confucionismo é
1 Apenas o pensador inglês Alaisdar MacIntyre (ainda vivo) tentou algo parecido com isso, procurando reinventar a ética aristotélica para a sociedade atual.
33
o modelo filosófico e educativo mais antigo sobre a face da
Terra, cujo sucesso é denotado por sua durabilidade e
capacidade de adaptação – ou mesmo, de reinvenção. O que
Confúcio propunha, portanto, que permitiu essa
continuidade histórica praticamente desconhecida para
nós?
Podemos resumir o pensamento de Confúcio da
seguinte maneira: suas teorias nasceram de uma
preocupação direta com a formulação de uma ética que
garantisse a convivência humana de forma mais harmônica
e produtiva. O pilar dessa ética seria uma Educação
formadora, capaz de proporcionar aos indivíduos uma
capacidade criativa autônoma – e, no entanto, inserida num
conjunto social devidamente normatizado e estabelecido,
de modo a valorizar o mérito pessoal sem recair no
individualismo egoísta. Assim, a teoria confucionista
pretendia criar uma hierarquia meritocrática, em que as
relações sociais seriam regulamentadas politicamente, mas
a mobilidade social seria assegurada pela capacidade de
estudo e de trabalho do indivíduo. O modelo político de
Confúcio, portanto, pressupunha a formação de um corpo
de sábios e de funcionários públicos competentes, capazes
e humanistas, que auxiliariam no governo na administração
34
do Estado. Esse governo ideal promoveria, assim, o Ren (仁,
o Humanismo ou harmonia social), que poderia ser
resumido numa frase do próprio Confúcio: “n~o faça aos
outros o que n~o quer que seja feito com você” – desligando
a ética confucionista, assim, de qualquer compromisso
religioso e colocando-a num plano pragmático. Este último
ponto seria um fato fundamental em sua retomada
moderna.
Durante a dinastia Han (sécs. 206 a.C. – 221 d.C.), o
confucionismo transformou-se na ideologia estatal, criando
a idéia de um império burocrático. Os imperadores
passaram a ser assessorados por um vasto grupo de
funcionários qualificados, que cuidavam de um amplo leque
de atividades públicas, tais como educação, segurança,
administração regional, etc. Durante o período Tang (618 –
907), o sistema de exames imperiais, até então aplicado de
modo inconstante ou limitado, foi oficializado como o meio
nacional de acesso ao funcionalismo governamental,
criando o protótipo do que hoje conhecemos como
‘concurso público’ e do ‘vestibular’. Na dinastia seguinte, os
Song (960 – 1279), um movimento que hoje chamamos de
35
“Neoconfucionismo”2 ampliou os horizontes do
confucionismo, investindo em áreas científicas, na
historiografia, cosmologia, e numa revisão geral dos textos
clássicos.
Esse sistema funcionou bem até o advento da última
dinastia imperial, os Qing (1644-1911), que foi em grande
parte responsável pelo subseqüente atraso tecnológico e
cultural da China nos séculos 18 e 19. Os Qing, de origem
estrangeira (vindos dos planaltos mongóis), se
concentraram numa versão problemática e arcaizante de
confucionismo, repelindo a idéia de uma autonomia
administrativa e transformando a burocracia imperial num
sistema de dominação extremamente repressiva. O impacto
causado pelas invasões européias no século 19 forçou a
uma inevitável revisão do confucionismo como doutrina
política do país. Esse foi o primeiro momento do ‘Novo
Confucionismo’, movimento que buscava revitalizar o
confucionismo em face do mundo moderno.
2 N~o confundir esse “Neoconfucionismo”, cujo termo abrange diversas escolas diferentes de confucionismo Song, com o “Novo confucionismo” aqui abordado, e ocasionalmente chamado de “Pós-confucionismo” para evitar maiores confusões.
36
O Novo Confucionismo (Xin Rujia)
Nos estertores da dinastia Qing, um grupo de reformistas
liderados por Kang Youwei (1858-1927) tentou salvar o
império por meio de um programa de modernização do
país, no qual se incluía uma revisão da ideologia estatal
confucionista. Kang propunha a retomada do sistema
meritocrático, a valorização da ciência e uma modificação
geral nos currículos educacionais. Sem receio de adotar
tecnologias ocidentais, Kang acreditava que o problema
estava no engessamento da educação, principal motor e
origem do dinamismo que o confucionismo teria perdido
durante a Era Qing. Sem uma reforma na educação, não
seria possível evoluir. O problema, pois, não seria a ética
confucionista, mas sim, a sua banalização, que tornara a
educação um expediente moralizador e esvaziado, reticente
quanto às transformações do mundo. As reformas de Kang,
porém, não foram bem sucedidas: os dinastas Qing tinham
ojeriza a qualquer capacitação maior por parte da
população chinesa, o que – em sua crença - poderia levar a
uma revolução nacionalista, o que de fato acabou
acontecendo. Incapaz de resistir à pressão ocidental, e
minada por crises internas, a China imperial desfez-se para
dar lugar à República em 1912.
37
Sun Yat-sen (1866-1925), o principal articulador
dessa nova China republicana, era um simpatizante do
confucionismo, mas reticente em relação aos reformistas
confucionistas. O mundo da época começava a dividir-se
entre capitalistas e socialistas, e Sun percebera –
corretamente – que em breve a China seria lançada nessa
disputa. Ele não podia imaginar, porém, que o país seria
palco de uma das maiores batalhas mundiais entre essas
duas ideologias, culminando com a vitória comunista em
1949, e com a criação de Taiwan como refúgio para os
capitalistas chineses.
O Novo Confucionismo nos tempos do Comunismo
Mao Zedong (1893-1976), o grande líder comunista,
incorporou a total recusa ao confucionismo, que
considerava a causa de atraso da China. Sua análise fez com
que, ao longo de sua vida, ele combatesse ardentemente o
confucionismo como uma teoria ultrapassada e reacionária.
Para se ter uma idéia, entre 1973-74, Mao dirigiu uma
campanha ideológica contra o falecido Lin Biao (ex-aliado e
depois condenado como traidor, morto num acidente
misterioso em 1971), que se chamava “Campanha contra
Lin Biao e Confúcio”! Na cabeça de Mao, o confucionismo
38
continuava vivo como uma força ideológica viva e
potencialmente ameaçadora. Todavia, Mao não estava
equivocado. O confucionismo era considerado uma teoria
política legitimamente chinesa, que deveria ser
reconsiderada como opção a dualidade capitalismo-
comunismo que ameaçava o mundo da época. Em 1958,
quatro autores – Mou Zongsan, Tang Junyi, Xu Fuguan e
Zhang Junmai publicaram um manifesto sobre a cultural
chinesa, incluindo aí o confucionismo como uma de suas
expressões maiores, e clamando por uma revisão filosófica
dos parâmetros confucionistas para a modernidade. Esse
aspecto fundamental estruturaria a obra desses autores,
cujo diálogo com as formas de pensar ocidentais seria
marcado pela anuência do confucionismo como teoria
central do pensamento chinês. Na sequência, ao longo da
década de 60, o termo “Novo Confucionismo” (Xin Rujia)
surgiu e se popularizou, denominando esse movimento de
idéias.
No entanto, o Novo Confucionismo, para sobreviver,
precisou se estabelecer em outros lugares, como Taiwan,
Cingapura, Coréia do Sul, Japão e Estados Unidos. Nesses
países, a produção intelectual do Novo Confucionismo foi
expressiva, mas eminentemente histórica, filosófica e
39
literária. Na China comunista, expoentes como Feng Youlan
(1895-1990) foram obrigados a refutar sua própria obra
(mas Feng sobreviveu para ser reabilitado, porém, na
década de 80). No entanto, o impacto do Novo
Confucionismo no mundo seria provocado, justamente, pela
China comunista, país que o reconheceu mais tardiamente
como teoria política e, no entanto, parece agora promovê-lo
da forma mais realística e profunda possível na sociedade,
como veremos a seguir.
Novo Confucionismo: a opção política da China no
século 21
A era “Pós-Mao”, iniciada pelo governo de Deng Xiaoping
(entre 1978 a 1992), envolveu uma grande reforma da
política e da economia chinesa, flexibilizando o modelo
comunista maoísta e guinando a China para uma posição
alternativa no âmbito internacional. Por outro lado, as
fissuras nessa ideologia socialista afloraram de modo grave
em 1989, no episódio da Praça da Paz Celestial.
Acompanhando a queda do comunismo no leste europeu,
grupos da sociedade chinesa puseram também em causa a
continuidade do regime na China, opondo reformistas
(como os estudantes), moderados (linha do próprio Deng) e
40
conservadores (maoístas). Deng habilmente reprimiu e
enfraqueceu tanto os reformistas quanto conservadores,
mas já havia percebido a tensão existente na política
chinesa, e a necessidade de buscar um novo modelo para o
país. A solução foi encontrada nas próprias raízes da
cultura chinesa, por meio do resgate do confucionismo.
Pode parecer anacrônico retomar um antigo
pensador como opção para o futuro, mas na mente chinesa
não o é: o pensamento chinês não opera pela eliminação do
antigo, mas pela sua reinterpretação conceitual de acordo
com o contexto. O confucionismo representava um projeto
testado e aplicado ao longo de séculos, constituindo uma
forma segura e consolidada de ideologia. Além disso, ele é
legitimamente chinês, e poderia ser capaz de dar conta das
contradições entre uma proposta socialista de Estado em
conjunto com uma economia concorrencial de mercado.
Todavia, o principal nesse Novo Confucionismo deveria ser
a capacidade novamente de inculcar, na sociedade, a idéia
da busca de autonomia pelo individuo, a meritocracia e o
anseio por ordem. O atual governo chinês tem aberto mão
de várias áreas sobre as quais mantinha, anteriormente, um
controle direto e rigoroso, tais como a obrigatoriedade de
educação, de saúde, geração de empregos, etc. Com isso, sua
41
capacidade de manter a ordem social depende de transferir
para o cidadão essas responsabilidades, sem causar com
isso uma quebra na instituição política e burocrática.
Esse Novo Confucionismo encontrou sua melhor
express~o na obra de Jiang Qing, autor de “Confucionismo
Político” (zhengzhi ruxue, 1991), e que se dedica a criação
de um novo projeto político para a sociedade chinesa
baseado no confucionismo. Jiang mantém uma academia
própria de estudos confucionistas, tal como os antigos
letrados chineses, e não entra em choque com as
autoridades chinesas, ao contrário: em sua visão histórica,
o comunismo é tão somente mais um estágio na cronologia
chinesa, necessário a reorganização do país, mas que se
findará quando a cultura chinesa retomar sua condição
indispensável de agregadora da sociedade.
Por conta disso, Jiang propõe um retorno do sistema
meritocrático, baseado em concursos públicos – tanto para
cargos administrativos quanto para os cargos políticos.
Nesse sistema, a república não se dissolve, mas passa a ser
organizada num sistema de três câmaras: uma ligada às
administrações regionais, uma para os agrupamentos
políticos e uma terceira, de caráter superior, em que as
decisões seriam tomadas por um corpo de funcionários
42
exaustivamente treinado e qualificado em administração
pública, com formação acadêmica reconhecida e uma
trajetória que englobe os diversos estágios e postos da
carreira governamental.
Note-se que o anseio democrático ocidentalista
passa longe dessa proposta do Novo Confucionismo. Não se
propõe eleições diretas, por exemplo, para os cargos
maiores; de fato, a proposta de Jiang prevê que para todos
os níveis de governo devem ser feitos testes de qualificação.
Ou seja, um deputado não seria eleito por voto, mas
aprovado em um teste. Podemos imaginar os diversos
problemas que uma proposta dessas representa, mas parte
dela já está sendo implantada pelo governo chinês. Para
termos uma idéia, apenas 25% dos cargos decisórios de
alto escal~o ainda pertencem { chamada “velha guarda”
comunista, que privilegia mais a formação ideológica do
que técnica; os outros 75% são preenchidos por técnicos,
cientistas, acadêmicos ou profissionais de carreira com
vasta experiência pública, o que contribuiu decisivamente
no desenvolvimento chinês dos últimos vinte anos. O
sistema de ensino chinês também foi remodelado,
privilegiando o estudo científico e estimulando a constante
43
atualização docente como condição de progressão nos
planos de carreira.
Todos esses elementos serviram para evidenciar a
necessidade da educação e da responsabilidade individual,
fortalecendo a concepção meritocrática e reforçando uma
tradicional cultura de estudo existente na sociedade e
promovida, justamente, por Confúcio. Uma sociedade
calcada – e governada – a partir dos mais qualificados e
educados seria também mais capaz de promover a tão
desejada harmonia social, manifesta no humanismo chinês
confucionista – o Ren.
A proposta de Jiang tem sido divulgada, embora não
tenha sido completamente assimilada pelo Estado – e isso
provavelmente irá demorar. Jiang extrapola a proposta
ética de Confúcio e não teme, por exemplo, que o
confucionismo se transforme numa religião (como muitos
ocidentais já o entendem, erradamente). Isso seria um
passo que o Estado chinês não estaria disposto a aceitar, já
que desde a época imperial o confucionismo sempre foi
considerado uma doutrina política e social, cujas
implicações religiosas eram conscientemente vagas e
liberais. O Estado chinês, tradicionalmente, submete as
religiões a uma lei básica de cunho civil - uma herança que,
44
paradoxalmente, é também confucionista, em função de sua
ética “n~o-religiosa”. H| milênios os governos chineses
administram a vida de budistas, daoístas, cristãos,
muçulmanos, etc. Aceitar um processo de culto religioso a
Confúcio seria uma contradição – e talvez, mesmo, uma
bizarrice.
Do mesmo modo, a transferência de poder de um
partido único (o PCC) para o sistema tricameral implicaria
na reorganização dos quadros políticos e da formação de
um novo sistema de exames, tarefa cuja complexidade toma
dimensões épicas nesse país gigantesco. Novamente,
porém, não podemos nos equivocar ou subestimar a China:
afinal, o Gaokao – o exame de acesso as universidades – já
qualifica e encaminha os alunos mais pontuados para as
melhores universidades, e alcança milhões de estudantes
anualmente. A velocidade dessas mudanças pode demorar
séculos, como próprio Jiang admite – mas esse é o tempo da
China, a longa duração.
O desafio do Novo Confucionismo
Em 2006, o governo chinês patrocinou a divulgação de uma
obra intitulada “Confúcio com amor”, da Prof. Yudan,
baseado num programa televisivo de grande sucesso na
45
China. O livro continha indicações de como utilizar a
sabedoria milenar confucionista no dia-a-dia, e foi um
sucesso absoluto de vendas. Para um leitor ocidental, o
livro soaria simplesmente como uma auto-ajuda; mas para
os chineses, ele representa o resgate de uma tradição
milenar, que dá o caráter do que é ser chinês até os dias de
hoje. Poderíamos considerar o livro de Yudan como uma
espécie de “vulgarizaç~o” da extensa, complexa e
abrangente obra confucionista, consolidando a linha do
Novo Confucionismo na civilização mais populosa e antiga
do mundo. A consagração veio, porém, com o filme
“Confúcio” em 2010. Seu sucesso tremendo demonstrou, de
certa forma, que a sociedade chinesa deseja para si um
modelo social, cultural e político próprio, capaz de dialogar
com o mundo globalizado mantendo, porém, uma
“essência” de civilizaç~o. O desafio do Novo Confucionismo,
para o restante do mundo, é o de mostrar o quanto
desconhecemos sobre a cultura chinesa, que invoca o seu
passado, de modo absolutamente atual, para reformar a
política e estabelecer planos para o futuro! Isso só pode
ocorrer numa civilização cuja força da continuidade nos é
estranha; mais ainda, o modelo chinês escapa a nossa
compreensão imediata porque não responde prontamente
46
a nenhuma de nossas classificações usuais (Capitalismo?
Comunismo? Autoritarismo?...), mas vêm se construindo
como alternativa política e econômica para a Ásia e para
outros países espalhados pelo mundo.
A compreensão do Novo Confucionismo pode ser
resumida, novamente, numa frase do próprio Confúcio:
“mestre é aquele que, por meio do antigo, descobre o novo”.
Eis a síntese desse pensar instigante, e uma das opções
filosóficas desse milênio.
Nota 1
As linhas gerais do Novo Confucionismo
Confúcio entendia que havia uma conexão direta entre
educação, cultura e governo. Um bom governo só existiria
com pessoas educadas; e havendo uma cultura que
privilegiasse a educação, a sociedade e o governo estariam
em harmonia, propiciando a durabilidade do sistema. Pode
parecer apenas um modelo simplista e ideal, mas funcionou
– dentro de certos limites – ao longo da história chinesa,
criando uma tradição de valorização do estudo como forma
de ascensão social. O Novo Confucionismo pretende
resgatar esse modelo investindo em dois aspectos
fundamentais da educação: primeiro, a capacitação
47
científica, considerada como decisiva para concorrer no
mundo moderno; segundo, numa concepção moral de
responsabilidade social herdada do confucionismo
tradicional, capaz de manter o desejo de ordem, a coibição
do crime, a valorização e o sustento da família. Para o
governo, isso é decisivo: a pujança econômica depende
tanto da competitividade e de uma meritocracia qualificada
quanto do combate a tentação da corrupção e do
individualismo egoístico. O autoritarismo comunista ainda
sobrevive, em grande parte, como um fiel da balança, que
tenta equilibrar essa transição sem rupturas traumáticas; e
os chineses confiam que, de uma maneira ou de outra, essas
mudanças gradualmente se farão presentes, embora poucos
mesmo tenham noção de como...
Nota 2
A justa medida confucionista
Como construir uma moral sem requisitar as forças do além
ou o medo da morte? Os confucionistas usualmente
respondiam com um bocejo aos problemas desse gênero.
Quando o discípulo Zilu perguntou a Confúcio como servir
aos mortos, o mestre respondeu: “aprenda antes a servir
aos vivos”. A ética confucionista deslocou o problema da
48
boa conduta do “plano celeste” para o plano terrestre: o ser
humano ideal buscaria a justa medida das coisas, ou seja, a
harmonia existente entre as tensões da ‘necessidade e da
possibilidade’, da ‘conveniência e da inconveniência’, do
‘apropriado e inapropriado’, ‘excesso e ausência’, etc. N~o
se trataria de buscar um “meio-termo” artificial entre o que
se quer e o que se pode; mas sim, de conseguir o que se
quer desde que de modo apropriado e sem prejudicar ao
outro. Isso ensejaria uma autonomia realizante do
indivíduo, mas dentro dos limites da lei, da convivência e da
adequaç~o aos recursos. A ausência de forças “metafísicas”
nesse discurso favoreceu a sua retomada na sociedade
chinesa, com a benção do governo, que sabe que o ideal de
abnegação e simplicidade comunista já não inspira mais
ninguém, e que a realidade material exige uma outra
resposta que não recaía no fortalecimento dos cultos
religiosos.
49
No Mundo da Mutação: As origens do Pensamento Chinês
O pensamento chinês surge de modo singular ao da filosofia na Grécia: ele não se preocupava com o verbo ‘ser’, não buscava a origem das coisas, e pretendia descobrir a natureza por um método que seria a sua marca: a oposição complementar.
Já de início, é difícil falar de um único pensamento chinês;
existem, na China, pensamentos, escolas que reinterpretam
uma antiga estrutura de pensar. Abordar o mundo da
filosofia chinesa fazendo uma análise generalizante seria,
portanto, um grande equívoco. Por outro lado, existe um
sistema fundador, que alicerça o surgimento das diversas
escolas chinesas. É a ele que nos ateremos, hoje, para
compreender um pouco melhor os chineses construíram
suas formas de pensar.
Não se sabe ao certo quando esse sistema ancestral
surgiu; a princípio, ele parece ter sido descrito em torno do
século -12, com o surgimento do Tratado das Mutações – o
Ijing. Mesmo assim, o Ijing informava que ele havia surgido
bem antes, em torno do -3º milênio. Dúvidas a parte, a
versão de que dispomos do Ijing é aquela coligida por
50
Confúciono século -6. Diante da aceitação geral dos
pensadores chineses sobre a versão confucionista do Ijing,
somos inclinados a pensar que havia certa concordância
intelectual e histórica sobre o seu conteúdo e proposições.
E o que propunha essa antiga estrutura de pensar
dos chineses? Uma forma de leitura do mundo. O que se
apresenta no Ijing, no qual nos basearemos, é uma tentativa
de conceber e compreender as leis pelas quais a natureza
operava, ajustando-se a elas em busca do equilíbrio. No
passado distante, os chineses conceberam uma cosmologia
fundadora, sobre a qual as escolas posteriores
desenvolveriam suas interpretações e propostas.
I (Yi) 易- Vivendo no mundo da Mutação
Para os chineses antigos, vivemos num mundo em
constante transformaç~o, o mundo ‘material’. Esse mundo é
o mundo da mutação, das sensações. Ele é regido por ciclos
e padrões. Os ciclos repetem-se no tempo (Shi, séculos,
anos, estações dos anos, dias e noites), os padrões repetem-
se no espaço e nas coisas (Wu- espécies animais, vegetais e
naturais, morfologia). Todas as coisas têm um ciclo: eles
surgem (nascem), existem (vivem), se transformam
(desenvolvem) e desaparecem (perecem). Nada é: tudo
51
existe, em constante dinamismo e interação. Contudo, se
tudo é mutável, como poderiam existir ciclos e padrões
constantes? A mutação é constituída, pois, de uma relação
de oposição complementar (Taiji) entre Princípio (Li) e
Matéria (Qi).
Li理 – Estrutura, princípio gerador
Para existirem ciclos e padrões, é necessária constância. Li
é a ‘lei da natureza’, que determina a existência de um
padrão de manifestação. Algo só pode pertencer a uma
Categoria X se dispuser de uma série de elementos que a
qualifiquem para tal. Esse conjunto de propriedades (‘Ben’,
ou Raiz) é o que determina um tipo X de princípio.
Exemplo: determinamos que certa planta pode ser uma
árvore por um conjunto de características morfológicas que
aproximam a espécie em estudo de outras árvores. Logo,
essa planta tem o mesmo Li das árvores, podendo ser
classificada como tal. Li, porém, gera outros múltiplos Li’s
derivados, que se cruzam gerando coisas novas – tais como
cruzar plantas para gerar espécimes novos. Os limites
desses cruzamentos são dados pela Matéria (Qi). Como os
princípios se manifestam na mutação, ele mantém um certo
padrão, mas suas manifestações são sempre diferentes
52
umas das outras. Não há, por exemplo, dois seres iguais,
nem mesmo duas pedras iguais. O mundo da mutação é
variável, pois é uma propriedade da matéria bruta (Qi) ser
plástica, moldável e inconstante.
Qi 氣– Energia, matéria
Qi é o ‘vapor’, a matéria primordial, que em seu estado
bruto se encontra na forma de ‘energia’. Ela se condensa de
maneiras variadas. As formas básicas pelas quais ela se
manifesta são as tendências da natureza (chamadas no Ijing
de oito Gua), simbolicamente apresentadas como Céu,
Terra, Fogo, Água, Trovão, Lago, Montanha e Vento. Essas
tendências são formadas pelas coordenadas Yang e Yin, que
designam o que uma coisa está em oposição ao que não
está. Elas geram as categorias pelas quais as tendências da
natureza podem ser classificadas – no Ijing, representadas
pelos hexagramas formados pela combinação dessas
coordenadas.3 Do mesmo modo, Qi se agrega, inicialmente,
nos cinco estados da matéria (Wuxing), indicados como
3 A possibilidade de representar tendências da natureza gerou o caráter oracular pelo qual o Ijing é mias conhecido atualmente. Acredita-se que ele possa representar as características de um problema X, demonstrando assim as possibilidades de resolução do mesmo.
53
madeira, metal, água, fogo e terra.4 Como se pode notar, Li e
Qi formam a oposição complementar geradora das coisas,
que se manifestam constituindo o Mundo da Mutação, Yi.
Taiji 太极– Oposição Complementar
O sistema de oposição complementar (Taiji) mostra que as
coisas se manifestam de modo duplo. Tudo que passa a
‘existir’ (‘estar’, Zai) é percebido por algo que se opõe ao
que é igualmente percebido. Exemplo: se concebe o claro
porque há escuro; se concebe uma cor em contraste com
outras cores; o inverno se ‘opõe’ ao ver~o, etc. As coisas
passam a ‘estar’ no mundo da mutaç~o quando s~o
identificadas. De certo modo, pois, tudo já existe; mas
certas coisas ainda n~o ‘est~o presentes’, precisando ser
descobertas ou concebidas.
Representação clássica do Taiji
4 O sistema wuxing não é apresentado no Ijing. A correlação do mesmo com o Ijing será feita posteriormente, na época de Confúcio.
54
Taiji representa a articulação entre tempo (ciclo) e espaço
(padrão), suas conjugações e alternâncias. Ambos se
engendram mutuamente e continuamente. O mundo da
mutação busca o ajuste constante entre yang e yin; quando
um se excede, o outro o compensa; quando um se eleva, o
outro decresce. Isso proporciona uma cosmologia criativa
que nunca finda, e que se reproduz incessantemente.
Shi 勢– propensão
Todas as coisas se manifestam pela oposição
complementar, e se condensam na matéria em um dos
cinco estados (Wuxing). Como cada manifestação é única,
cada uma delas possui certa especificidade, que a distingue
das outras. Contudo, elas surgem dentro de um padrão que
permite identificá-las numa mesma categoria (Ben, ou
Raiz). A combinação de ambos – princípio e mutação – gera
a propensão. Exemplo: a Madeira pode ser talhada, mas não
derretida; e a propriedade que torna algo ‘Madeira’ é a
impossibilidade de ser derretida, aproximando-a e
afastando-a de outras coisas; do mesmo modo, há arvores
boas para serem talhadas, e outras mais difíceis; portanto,
todas podem ser talhadas, mas variam entre si; por fim, elas
podem ser da mesma espécie, tipo, mas variam de
55
qualidade e dimensão. Essa combinação de fatores
determina que alguma coisa X tem uma propensão
(afinidade) com uma ação Y na mutação. Tal propensão não
é determinista ou fatalista; para os chineses, compreender
a propensão serve ao ajuste do ritmo (Yun) da existência
(‘estar no mundo da mutaç~o’). Quando algo est| em seu
ritmo natural, ela está em estado de equilíbrio no mundo da
Mutação.
He和– Harmonia, equilíbrio
Ao perceber as propensões de algo, pode-se determinar seu
ritmo ideal. Compreendendo a propensão e seguindo seu
ritmo, aproveita-se ao máximo o potencial de algo em
relação às leis da natureza. A preservação da vida é um
exemplo: descobrindo-se as propensões físicas de um ser,
ele pode definir seu ritmo ideal; fazendo isso, ele se ajusta
as condições em que se encontra e atinge o equilíbrio entre
seu corpo e a natureza. A Harmonia (He) é o estado em que
as coisas encontram-se devidamente equilibradas em suas
tendências yang e yin. Esse equilíbrio é dinâmico: como ele
se insere no mundo da mutação, deve igualmente
acompanhá-la. Não há estado de harmonia perene ou
imutável; o ajuste é constante. O desequilíbrio é causado
56
quando a especificidade (propensão) não se ajusta ao ciclo
e aos padrões, perdendo ritmo e incorrendo em ausência ou
excesso. A sabedoria (Sheng) é a capacidade de
acompanhar as mudanças da natureza e ajustar-se a elas,
continuamente. Preservar-se, sem interferir de modo
excessivo na natureza, constitui o ritmo perfeito que
somente o autoconhecimento e o estudo da Mutação podem
trazer. Esse é o atributo do sábio: compreender a si mesmo
e o mundo que o cerca, diluindo-se no todo. O sábio só age
no mundo quando necessário, educando as pessoas sobre o
que constitui o sistema da oposição complementar.
Mudanças
Mas no século -6, a China encontrava-se num profundo
processo de crise social e política. Segundo Confúcio (-551 -
479), o principal historiador e pensador dessa época, a
crise ocorria em função da não aplicação desse sistema nas
questões de governo, de economia e de vida comum. Para
tanto, era necessário resgatá-lo – ou, reinterpretá-lo. Foi
nesse momento que o mundo chinês viu surgirem diversas
escolas de pensamento, discutindo e propondo soluções
para essa crise e a conseqüente retomada do equilíbrio
natural. Foi nesse momento que se começa a utilização
57
constante do termo Dao (Tao), que se tornaria um conceito
fundamental no pensar chinês.
Dao 道 (Tao) – Caminho, via, método
A palavra Dao significa um caminho ou método para
restabelecer a Harmonia (He) no mundo da mutação. Ela se
populariza a partir do século -6, e cada escola proporá uma
abordagem diferente – ou, apresentaria seu próprio Dao.
Desse período é que surgirão as principais escolas que hoje
conhecemos – confucionistas, daoístas, legistas, moístas,
cosmológicos, entre outros -, e que formam o complexo
panorama dos pensares chineses, cujo desenvolvimento
continuou (e continua) a ocorrer até os dias de hoje. Todas
partem dos mesmos elementos – a busca do ajuste, do
equilíbrio – calcadas nos conceitos aqui discutidos. Isso
levará, igualmente, os pensamentos chineses a certas
peculiaridades em relaç~o ao ‘pensamento ocidental’, que
vale citarmos aqui para compreendermos as profundas
diferenças que se estabeleceriam entre eles.
A ausência do verbo ‘Ser’
Como estamos no mundo da mutação, e a propensão busca
o ritmo com os ciclos, nada é, mas tudo está. O princípio de
58
algo (seu Li) dá-lhe o padrão, mas ele se governa por sua
especificidade – e por isso, a essência de algo não se
sobrepõe. Não há necessariamente um sentido na
existência; viver é buscar o ajuste para prolongar a própria
vida, por exemplo. A regulação da existência por suas leis
visa estender a possibilidade de continuidade. Por isso, a
especificidade do ‘Ser’ se dilui no contexto da natureza, no
qual o indivíduo tem que buscar se integrar para atingir a
Harmonia. A princípio, não se pensa em qualquer tipo de
libertação transcendente: os pensares chineses propõe uma
adaptação ao imanente, o ajuste à mutação. Isso fez com
que o verbo ‘ser’ (Shi), e toda a carga que ele carrega
consigo, fosse praticamente ignorada na linguagem e no
pensamento chinês. N~o h| essencialidade em ‘ser’ alguma
coisa. A noç~o transitória de ‘estar’ (Zai) foi preferida, para
denotar a manifestação de algo na mutação; para o pensar
chinês, as coisas estão de um certo modo no mundo, e se
sujeitam a mudança. Mesmo a individualidade é uma
condição, mais do que uma característica.
O desinteresse pela metafísica
Sendo assim, não se constrói nenhum interesse mais
aprofundado pela transcendência. Não há superação do
59
físico, ou busca do espiritual. São os mecanismos de
adaptação à natureza que interessam. Nesse ponto, pode-se
afirmar que os pensares chineses são essencialmente
materialistas. A discussão metafísica só teria alguma
repercussão na China com a chegada do Budismo – mesmo
assim, grande parte desse debate somente se desenrolaria
depois do século 11, e se deslocaria novamente para outros
planos. Para termos uma ideia, a refutação da metafísica
levou os chineses a desenvolverem uma filosofia da mente
(Xinxue), desenvolvendo toda sua argumentação no plano
da imanência e dos fenômenos físicos. Isso levou a que a
metafísica fosse associada, na China, à religião, a teologia e
a mitologia.
A cosmologia criadora
O sistema de oposição complementar entendia que a
criação ocorria continuamente no mundo da mutação. Não
havia interesse por uma fundação ou origem primordial
(Arkhé). O processo criativo continua a se desenrolar,
indefinidamente. Só apreendemos um momento desse ciclo
cósmico: e dele, tentamos extrair as leis que vigoram para
buscar o ajuste. O passado, pois, é o arcabouço das
experiências, e a referência para discussão; mas não é o
60
determinante fundamental para o ajuste necessário no
contexto. Fosse o passado algo perene, não haveria ciclos
de alternância; por essa razão, compreender como o ciclo
opera, agora, é mais importante do que sua origem. Essa é
uma das prováveis razões pela qual os pensadores chineses
antigos não tinham qualquer interesse relevante pelos
mitos de criação de sua própria civilização, deixando-os de
lado na investigação da natureza. O pensar chinês não
nasce, portanto, de qualquer embate nítido com os mitos, e
se desenvolve numa esfera paralela a da religião.
Conclusão
Construídos a partir de uma estrutura básica comum, as
várias formas de pensamentos chineses desenvolveram-se
focando aspectos específicos desse mundo da mutação, que
julgavam mais apropriados para acessarem uma
compreensão dos princípios que nele operam. Ao entender
que o processo criativo é dinâmico e nunca se esgota, os
chineses aprenderam também a tentar fazer com que seu
pensamento acompanhasse as manifestações na mutação,
propiciando um contínuo desenvolvimento de suas
filosofias. Esse é o cerne de uma mentalidade adaptativa
que conseguiu sobreviver aos séculos, e que se impôs como
61
um modelo intelectual e cultural de sucesso numa das
maiores e mais antigas civilizações do mundo.
63
Um Desprendimento Impossível
Na China antiga, a Escola do Caminho (Daojia) propunha que a solução para os problemas individuais era o retorno a uma natureza selvagem e desprendida do materialismo. Mas seria – e será – isso possível?
Está escrito numa agenda imaginária da
contemporaneidade: devemos ser mais econômicos, mais
ecológicos, menos apegados, mais ‘espiritualizados’, mais
desprendidos das ‘coisas materiais’. O consumo exagerado,
o desregramento das paixões, tudo isso há de esgotar o
mundo, levando-o a conflitos intermináveis, e no fim,
arrasá-lo por completo. Precisamos ser mais ‘harmônicos’
com a natureza, com as outras pessoas, e aprender a
preservar a vida.
Por outro lado... Sem desafiarmos a natureza, não
evoluímos tecnologicamente, filosoficamente ou
sapiencialmente. Pregamos a tolerância e a diversidade;
mas podemos ser assim ao lidar com aqueles que são
dogmáticos, e que estão dispostos, justamente, a não tolerar
e nem serem diversos? Precisamos ‘desprender-nos das
coisas materiais’; mas se s~o elas que nos sustentam –
64
comida, roupas, remédios, o estudo -, como sobreviveremos
sem elas?
Problemas muito parecidos como esses já rondavam
a cabeça dos chineses seis séculos antes de Cristo.
Conseguir um equilíbrio ideal entre nós, humanos, e o
restante do mundo natural, era um dos pilares do
pensamento chinês antigo (assunto que examinamos na
edição N.79), a chamada Harmonia (He). No entanto, os
pensadores daquela época acreditavam que haviam
perdido algo. Suas fórmulas tradicionais precisavam ser
modificadas, adaptadas, pois a sociedade estava em crise, e
a tradição parecia não dar mais conta de resolver, sozinha,
os problemas do mundo.
Era necessário, pois, um Método ou Caminho (Dao)
que pudesse indicar os meios pelos quais esse equilíbrio
perdido poderia ser recuperado. E, num longo período que
atravessaria séculos – chamado de ‘Cem Escolas do
Pensamento’ (Baijia) –, várias linhas diferentes de
pensadores iriam surgir, e debater sobre qual Dao seria o
melhor para o mundo chinês.
Nesse artigo, examinaremos a visão da Escola
Daoísta ou Daoísmo (Daojia), cuja proposta para a solução
dessas questões nos traz, inevitavelmente, a uma analogia
65
com o contexto contemporâneo. É possível desprender-se
do mundo por completo? Quais são os limites para
tentarmos romper com a sociedade e a cultura existente?
A Escola Daoísta (Daojia)
A ‘Escola do Caminho’ surgiu em meio ao caos chinês do
século – 6, e é razoavelmente conhecida entre nós por seus
autores mais famosos: Laozi (séc. -6?), Liezi (séc. -5?) e
Zhuangzi (séc.-4). Notem que todas as datas são estimadas,
tendo em vista que sabemos muito pouco sobre a vida
desses autores. O próprio nome dessa linhagem de
pensadores revela uma idéia absolutamente arraigada em
suas propostas – de que n~o existiria um ‘Método’ ou
‘Caminho’ humano, pois toda a natureza é uma só, e dela
não nos apartamos. Assim, n~o existem ‘Caminhos’; só
existe ‘O Caminho’, o Dao natural, ao qual devemos nos
dirigir. O nome dessa escola, pois, corresponderia a algo do
tipo ‘Escola do único Caminho’, ou ainda, ‘Escola dos
Caminhantes’ (no sentido de ‘buscadores’ da Harmonia).
A proposta dos daoístas ou ‘caminhantes’ assentava-
se, desde Laozi, em dois conceitos fundamentais: Wuwei
(não-ação, não-atuar, ação isenta) e Ziran (espontaneidade,
ou natureza original). Wuwei significava, basicamente, não
66
agir segundo padrões culturais ou regras de conduta
definida, nem por pressões de um contexto específico. Esse
procedimento implicava em afastar-se da vida cotidiana e
de seus problemas, evitando o envolvimento com questões
que escapavam as ‘reais’ (entenda-se ‘naturais’)
necessidades humanas. Nisso os ‘caminhantes’ incluíam
tudo aquilo de ruim que entendiam ter ‘nascido’ por causa
da cultura: a cobiça e a violência seriam causadas pelo
desejo de bens materiais, a inveja e o ódio por questões
intelectuais, a vaidade por causa das aparências, etc. Dois
versos do livro de Laozi, o Tratado da Virtude e do Caminho
(Daodejing) demonstram exatamente como o sábio deve
administrar sua vida por meio de um Dao absolutamente
‘natural’, isento das preocupações mundanas:
“N~o primando os bons /o povo não compete; Não prezando bens custosos / o povo não aladroa; Não exibindo o desejável/seu coração não erra; Por isso o governo do homem santo: esvazia os corações / sacia as entranhas / enfraquece as vontades/vigora os ossos / nunca deixa o povo com saber e desejos / não deixa o sábio ousar atuar/atuando o não-atuar ent~o n~o h| desgoverno” (Verso 3)
67
“Manter saturando / melhor cessar; seguir aguçando / não vai durar; sala cheia de ouro e jade/não se pode guardar; enfatuar-se com bens e fama / por si j| dana” (Verso 10)
Notemos, contudo, que para a realização dessa ação
isenta de propósitos materialistas, é imprescindível negar
aquilo que, para os caminhantes é o fundamento de todos
os erros: a própria cultura. A educaç~o ‘deseduca’, o
trabalho gera cobiça, o desejo de aprimoramento desvia, e a
busca da própria sabedoria leva ao desconhecimento – daí
porque, para se atingir essa harmonia ideal com a natureza,
se precisaria retornar a um estado de ignorância primeva,
um ritmo humano natural que foi perdido pelos
condicionamentos sociais. Por isso, seria necess|rio ‘n~o
agir’, para enfim, alcançar uma atuaç~o espont}nea e livre.
Esse seria o Ziran.
A espontaneidade, ou ‘natureza original’
Uma história do livro de Liezi ilustra perfeitamente, para
nós, o que seria esse ‘desligamento’ do mundo humano:
“Havia em Song um homem chamado Huazi, que contraiu ao chegar à meia idade a singular doença de esquecer tudo. Tomava
68
uma coisa de manhã e esquecia-se dela à noite, recebia uma coisa de noite e já não se lembrava pela manhã. Quando estava na rua esquecia-se de andar, e estando em casa esquecia-se de sentar-se. Não podia recordar-se do passado no presente nem do presente no futuro. E toda a família estava muito aflita com isso. Os parentes consultaram o adivinho e não puderam decifrar o caso, consultaram a feiticeira e as rezas não o puderam curar, e consultaram o médico e este não deu remédio. Havia, porém, um letrado confuciano na terra de Lu que disse poder curar o homem. Assim, a família de Huazi ofereceu-lhe metade dos seus bens se ele o livrasse dessa estranha doença. E disse o letrado confuciano: - A sua doença não é coisa que se possa tratar com predições, com rezas ou com remédios. Vou tentar curar o seu espírito e mudar os objetos do seu pensamento, e talvez ele se restabeleça. Assim, ele expôs Huazi ao frio e Huazi pediu roupa, deixou-o ter fome e ele pediu comida, fechou-o num quarto escuro e ele pediu luz. Conservou-o numa sala sozinho durante sete dias, sem se importar com o que ele fazia todo esse tempo. E a doença de anos foi curada num dia. Quando Huazi ficou restabelecido e soube do caso, enfureceu-se. Brigou com a mulher, castigou os filhos e expulsou de casa com uma lança o letrado confuciano. A gente do lugar perguntou a Huazi por que fez isso, e ele
69
respondeu: - Quando eu estava mergulhado no mar do esquecimento, não sabia se o céu e a terra existiam ou não. Agora eles me despertaram, e todos os triunfos e reveses, as alegrias e as tristezas, os amores e os ódios dos decênios passados voltaram a perturbar o meu peito. Receio que no futuro os triunfos e os reveses, as alegrias e as tristezas, os amores e os ódios continuem a oprimir o meu espírito como me oprimem agora. Posso eu recuperar algum dia sequer um instante de esquecimento?”
O ideal de uma vida humana seria, portanto, agir de
acordo com uma espontaneidade perdida por conta das
imposições da vida social. Essa ‘natureza humana original’
era o que os ‘caminhantes’ chamavam de Ziran. Ela
implicaria numa quase anulação dos padrões de
pensamento que nos ‘tornam’ humanos, levando-nos a um
estado que muitos compreenderiam ser de ‘selvageria’ –
mas tal ‘selvageria’ só é pejorativa para a ideia de cultura, já
que os próprios animais, por exemplo, não se entendem
‘selvagens’. Eles simplesmente s~o o que s~o, e vivem de
acordo com isso. O esquecimento, tratado na história de
Liezi, tenta mostrar as aflições causadas pelas imposições
sociais – ou, nessa linha de raciocínio, ‘n~o naturais’.
70
A Harmonia total
Os ‘caminhantes’ acreditavam que esse
desprendimento da cultura levaria, consequentemente, a
uma maior integração com a natureza, a um modo de vida
absolutamente harmônico. Uma terceira história, retirada
do livro de Zhuangzi demonstra, novamente, a concepção
de que uma mente moldada pela cultura tradicional seria
incapaz de compreender qualquer dinâmica externa a ela:
“Zhuangzi e Huizi passeavam sem destino na ponte que fica sobre o rio Hao quando o primeiro observou - "Veja como os peixinhos nadam! Nisso consiste a felicidade do peixe". - "Você não é um peixe", interrompeu-o Huizi, "como então pode saber em que consiste a felicidade de um peixe?" - "E você não sou eu", volveu Zhuangzi, "como pode então saber que eu não sei?" - "Se eu, não sendo você, não posso saber o que sabe", argumentou Huizi, "segue-se que você, não sendo um peixe, não pode saber em que consiste a felicidade de um peixe". - "Voltemos à nossa questão original", declarou Zhuangzi. "Perguntou-me como sabia qual a felicidade de um peixe. Só essa pergunta prova que você sabia que eu sabia. Sei-o (pelo que sinto) sobre esta ponte".
71
Zhuangzi seria capaz, pois, de compreender os
peixes, porque sua mente estaria livre das amarras
impostas por um modo de pensar humano que,
supostamente, teria perdido a capacidade de compreender
a harmonia natural – ou, o ‘Dao verdadeiro’. Esse pretenso
desprendimento da materialidade – em outros termos, da
idéia de ‘Humanidade’ – promoveria uma completa
reestruturação do individuo, abolindo as noções de
moralidade que lhe amarrariam a existência, e lhe
proporcionariam uma vida inteiramente ‘autêntica’. Por
conta disso, muitos ‘caminhantes’ abandonaram a vida nas
cidades e se mudaram para o campo, buscando uma vida
eremita e afastada dos problemas comuns da humanidade.
As críticas ao Daoísmo
Já na antiguidade, esse ideal de desprendimento
tornou-se bastante atraente para muitos que estavam
desiludidos com os rumos da sociedade. A escalada de
corrupção, ignorância e violência parecia justificar a
retomada de uma vida mais simples, desligada das tensões
cotidianas das cidades. Contudo, essa proposta recebeu
uma série de críticas entre os próprios chineses – e algumas
72
delas, talvez, possam nos ajudar a re-significar a própria
questão.
A mais contundente das críticas foi promovida pelos
Confucionistas, tradicionais ‘advers|rios’ dos ‘caminhantes’
(‘advers|rio’ entendido, aqui, como ‘crítico’, mas n~o
necessariamente como inimigo, como poderíamos ser
levados a crer). Para eles, alguém só se torna humano,
justamente, porque adquire a humanidade por meio da
cultura. Sem ela, seríamos outra coisa? Não seria da própria
Natureza Humana (Xing) criar a cultura? Uma frase
tradicionalmente atribuída aos confucionistas diz que: ‘a
diferença entre os animais e os humanos é que os animais
pensam, mas só os humanos pensam no que pensam’. Isso
faz todo o sentido, se observarmos que até a terminologia
dos ‘caminhantes’ se expressa por meios humanos – a ideia,
o conceito, a linguagem. Não é a própria concepção de
‘desprendimento’ algo concebido pelo humano, em busca
de um ‘retorno ideal’ a espontaneidade (Ziran)? E haveria
outro meio possível, aliás, que não fosse humano, posto que
todas essas colocações são absolutamente humanas?
Todavia, se o desprendimento for possível, por qual
raz~o eremitas e ‘desprendidos’ usam roupas ou cozinham
sua comida? O retorno a natureza original não implicaria
73
numa nudez sem pudor, e no consumo de alimentos in
natura? Inequivocamente, aquele que se veste e cozinha
traz dentro de si mesmo a experiência humana, e dela não
se desvencilhou. A análise dos textos daoístas nos supõe
pensar que, talvez, eles apenas buscassem um modo de vida
mais simples – algo parecido com o que os índios
brasileiros já viveram, por exemplo. Todavia, isso
significaria supor que modos de vida mais simples não
trazem consigo concepções culturais complexas – o que é
uma afirmação arbitrária e equivocada.
Confúcio (-551-479) comentava, ironicamente, que
não acreditava em eremitas que todos sabiam que eram
eremitas. Ou seja, alguém verdadeiramente desprendido
deveria sumir sem rastro; no entanto, se as outras pessoas
sabem onde ele está, e ainda, se ele adquire fama de sábio, é
possível que algo muito errado estivesse acontecendo. Essa
era outra crítica que os chineses, em geral, faziam aos
‘caminhantes’. Embora o ideal de uma ‘vagabundagem
santa’ fosse apreciado pelo senso comum, por outro lado,
um ditado chinês dizia que “para alguém ser ‘caminhante’,
precisa-se de um confucionista para sustentá-lo”. Desde
cedo, pois, os chineses haviam percebido que muitos
‘desprendidos’ eram apenas hipócritas preguiçosos, que
74
viviam de esmolas, sem fazer nada, na dependência dos
trabalhadores comuns. Os próprios ‘caminhantes’
defendiam que a inutilidade poderia ser funcional, como
nesse trecho de Zhuangzi:
“Havia um corcunda chamado Su. Os queixos batiam-lhe pelo umbigo. Os ombros ficavam mais altos do que a cabeça. Os ossos do pescoço salientavam-se apontando o céu. As vísceras ficavam voltadas para baixo. As nádegas estavam onde deviam estar as costelas. Ganhava a vida como alfaiate ou lavando roupa. Peneirando arroz fazia o suficiente para sustentar uma família de dez pessoas. Quando vieram as ordens para uma conscrição, o corcunda passou pela multidão sem ser notado. E do mesmo modo, na conscrição do governo para trabalhos públicos, sua deformidade salvou-o de ser chamado. Por outro lado, quando o governo distribuiu cereais para os incapazes, o corcunda recebeu por três, além de dez feixes de lenha para fogo. E se a deformidade física foi suficiente para preservar seu corpo até o fim de seus dias, quanto mais não seria de utilidade a deformidade moral e mental!”
Esse tipo de comentário nos leva a concluir, com
efeito, que os ‘caminhantes’ agiam, por vezes, como os
75
‘espertos’ aqui do Brasil. N~o haveria um desprendimento
real, mas sim, uma alienação calculada, que não negaria a
relação com a sociedade. Tal alienação pressupõe, talvez,
até uma dependência profunda da estrutura social vigente,
evitando apenas o comprometimento moral com ela. Que
desprendimento total, portanto, seria possível?
Uma mensagem atemporal
Um famoso poeta da época Tang, Bai Juyi (772 a
846), escreveu um interessante poema intitulado ‘Lendo
Laozi’:
“Aqueles que falam n~o sabem, Os que sabem estão em silêncio Isso eu ouvi de Laozi Se o velho conhecia o caminho Por que escreveu isso em cinco mil palavras?”
Quase um milênio depois de Laozi, Bai Juyi brincava
com um Daoísmo filosófico que havia se perdido fazia
muito tempo. A própria ‘Escola do Caminho’ transformara-
se numa religião, cujo discurso de desprendimento fora
substituído pela busca de uma imortalidade alquímica. Os
‘caminhantes’ dessa época eram x~mas, exorcistas e
76
monges, muitos distantes do modelo de sábio-eremita
desapegado do mundo, como defendiam seus primeiros
autores.
O que os chineses observaram, ao longo dos séculos,
foi uma transformação profunda nesse discurso
‘caminhante’. A teoria do desprendimento completo, e do
retorno a uma ‘natureza original’, n~o apenas era complexa
ou pesada demais para a maior parte das pessoas, mas
talvez fosse simplesmente inacessível. Ironia total: era
necessária uma extrema capacidade intelectual para
compreender a ideia de ‘abandonar’ o intelecto!
Séculos antes dos hippies ocidentais dos anos 60, ou
dos modernos ideólogos de uma ecologia harmônica, os
chineses já haviam compreendido que era inviável seguir o
discurso do afastamento completo. No século 20, eles
conheceram também a radicalização do materialismo
comunista, que hoje cobra o seu tremendo preço da
sociedade e da natureza. Todavia, o que manteve a China
existindo, durante milênios, não foram os extremismos,
mas justamente, a harmonia dos opostos. Para que a
sociedade se desenvolva, é preciso desafiar a natureza; mas
para que a sociedade sobreviva, é indispensável preservar a
natureza. O verdadeiro Humanismo talvez consista,
77
justamente, em aceitar que nossa integração no cosmo não
nos afasta da natureza, mas difere de todas as outras
espécies. O desprendimento total é impossível; mas uma
vida mais simples e consciente, porém, é necessária à
própria manutenção da existência. Uma mensagem
caminhante, aí, pode ser revelada de maneira eficiente e
atemporal: não precisamos de tanto, não precisamos
sempre, nem precisamos de tudo todo o tempo. Ou, como
resumiu o próprio Zhuangzi:
"Zhuangzi estava pescando no rio Pu, quando o príncipe de Zhu mandou dois altos funcionários convidá-lo para assumir o cargo de administrador do Estado Zhu. Zhuangzi continuou pescando e, indiferente, disse: "Ouvi falar que em Zhu há uma tartaruga sagrada que morreu há cerca de três mil anos. E que o príncipe guarda cuidadosamente essa tartaruga em um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa tartaruga seria melhor estar morta e ter os seus restos venerados, ou estar viva e arrastando a sua cauda na lama?" "Seria melhor estar viva e arrastando a sua cauda na lama", responderam os dois altos funcionários. "Então, ide embora!", gritou Zhuangzi. "Eu também prefiro arrastar a minha cauda na lama".
78
Nota 1
Caminhantes e Confucionistas: opostos
complementares?
Comentamos num artigo anterior, publicado na edição 79,
que os chineses acreditam numa oposição complementar,
baseada no sistema yin-yang, em que alguma coisa só se
manifesta ou aparece diante de nós graças ao contraste
gerado pelo seu oposto. Assim sendo, só notamos,
compreendemos ou concebemos algo quando percebemos,
também, o seu ‘oposto complementar’. N~o h| luz sem
escuro, não há alto sem baixo, não há quente sem frio... e
poderia haver o Daoísmo sem o Confucionismo? A tradição
do pensamento chinês entendeu que não. Existem
historietas (sem qualquer comprovação) que dizem que o
próprio Confúcio teria tomado lições de filosofia com Laozi
– mas Confúcio não cita Laozi em qualquer momento. No
livro de Liezi, Confúcio aparece algumas vezes: ora como
um sábio, ora como um aprendiz. A questão fundamental é
que, embora caminhantes e confucionistas se vissem como
duas escolas radicalmente diferentes, havia um consenso
de que os extremos não representavam, também, o ideal. A
ação social radical confucionista levaria ao conflito; o
79
desprendimento absoluto daoísta levaria a alienação
irresponsável. Na mente chinesa, sempre em busca de
equilíbrio, a busca por harmonizar as duas escolas pareceu
ser o mais adequado. E buscando sempre um ajuste ideal,
elas se transformaram em opostos complementares – uma
não existe sem a outra, e uma ajuda a compreender a
outra...
81
A importância do sossego para Confúcio
Para filosofarmos precisamos ficar parados, meditando? Para Confúcio – e outros milhões de chineses – a resposta é ‘não’! Precisamos apenas de um pouco de sossego, para planejarmos o próximo passo.
Quando pensamos em ‘filosofia chinesa’, nos vem { cabeça a
imagem de monges meditativos, estáticos, que se desligam
durante horas do mundo da ação. Nada é mais equivocado
do que essa representação, ligada principalmente aos
monges budistas e construída num Ocidente ávido de paz e
distanciamento da matéria. O cerne do pensamento chinês
é, na verdade, de ação. A própria contemplação chinesa é
feita de olhos abertos, buscando o detalhe, acompanhando
as transformações da natureza, deslocando-se por entre
ângulos diversos de observação. Os chineses, no geral, não
meditam, mas ‘sossegam’ um pouco, refletindo em busca de
algo – e quase nunca em busca do ‘vazio’, como fazem
alguns poucos praticantes do budismo Chan (em japonês,
Zen). No século 16, um sábio confucionista chamado Li
Liweng já debochava da meditação estática seu texto
chamado ‘A arte de dormir’. Ao conversar com um mestre
82
que lhe ensinava a meditar apropriadamente, ‘sentado-se e
esquecendo do mundo’, Li respondeu que j| fazia isso
naturalmente quando dormia. Se Li brincava desse jeito já
naquela época, é porque nós não conhecemos o fato de que
grande parte dos chineses, ligados social e culturalmente a
ideologia confucionista, preferem usualmente ponderar e
refletir, mas sem se desligar do mundo. Essa parada, esse
momento de reflexão lúcida é o que podemos chamar de
‘sossego’, embasada milenarmente nos aforismos do grande
sábio, e pilar da cultura chinesa, Confúcio.
Confúcio (-551 -479) foi um crítico da meditação
parada. Ele mesmo disse: ‘uma vez tentei meditar, passei
um dia sem comer e uma noite sem dormir. Foi inútil.
Melhor estudar’. Pasme, nada de ‘esvaziamento mental’ ou
posições estáticas. O que precisamos é uma parada na
rotina, um momento de contemplação sobre os problemas e
questões da vida, mas de maneira absolutamente
consciente. Em outro texto, o método confucionista de
reflex~o é exposto da seguinte maneira: ‘Quando sabemos
[o que procuramos], sossegamos; Sossegados, ficamos
serenos; Serenos, tudo fica mais calmo; Calmos, podemos
ponderar; Ponderando, chegamos à solução desejada. As
coisas têm raízes e galhos. Os problemas têm começo e fim.
83
Saber o que vem primeiro e o que vem por último, esse é o
caminho’. No entanto, podemos passar dias perdidos entre
esses problemas e as especulações sobre o futuro. Então,
como ‘sossegar’ para refletir?
Novamente, a ideia de Confúcio parece quase um
clichê ou de uma obviedade gritante: apenas relaxe em
meio ao movimento. ‘Pare’ por algum tempo, mas somente
para tomar fôlego. O mundo material – ou, ‘a mutaç~o’,
como os chineses chamavam – está em constante
transformação, e o que podemos fazer é acompanhar seu
movimento dinâmico, tentando manter um equilíbrio
ajustável entre os momentos da existência. Parar
totalmente é ‘morrer’, é sujeitar-se ao acidente nesse
mundo de mutaç~o infind|vel. Por isso, essas ‘paradas’
confucionistas estão longe de ser estáticas. É por isso que
nos ‘Di|logos’ (Lunyu), o mesmo Confúcio que é descrito
como um estudioso profundo, um trabalhador obstinado e
dedicado aparece, também, como uma pessoa que adorava
conversar, receber amigos em casa, ‘acompanhar as
cantorias’, beber ‘enquanto a mente estivesse clara’,
pescar... e mais umas tantas atividades absolutamente
triviais, mas que eram seu momentos de descontração
absoluta. Em outra passagem, o próprio Confúcio concorda
84
com um de seus discípulos afirmando que, melhor do que
ter alguma ocupação importante, era simplesmente poder
tomar banho de cachoeira numa tarde de verão com os
amigos. Lendo essas coisas, podemos nos perguntar o que
candidataria Confúcio a ser um sábio, se tudo isso parece
tão óbvio. Contudo, uma pequena história chinesa – cuja
autoria é atribuída tanto a ele quanto a outros pensadores
chineses – diz o seguinte: uma pessoa perguntou a Confúcio
como obter a sabedoria, e ele respondeu: ‘coma na hora que
tem fome, durma na hora que tem sono, pense na hora que
precisa’. ‘Ora, todo mundo sabe isso!’, respondeu o fulano,
ao que Confúcio devolveu: ‘certo, mas quem consegue fazer
isso?’. Resume-se, de pronto, a ‘arte de sossegar’: encontrar
os momentos em que podemos descansar um pouco para
podermos viver mais harmônica e naturalmente, para
ajustar as tensões e, principalmente, para podermos
contemplar o mundo por outros ângulos (pois nada na
‘mutaç~o’ fica parado) que nos levem a compreender suas
sutilezas e transformações. Afinal, como se pode conhecer o
mundo de olhos fechados e ouvidos tapados?
O sossego, afinal, serve para pensar. Mas antes que o
próprio pensamento seja a causa do desassossego, é
importante levar a mente para outros cantos, numa
85
distração criativa que permita reinterpretar o quadro dos
problemas. O sossego n~o nos desconecta do ‘mundo real’,
apenas nos transporta a outros espaços do mesmo, nos
permitindo re-significar o contexto no qual estamos
inseridos. Fortalecidos pelo descanso, e incitados por novas
possibilidades e perspectivas, podemos continuar a
caminhada da existência, ajustando as ditas ‘tensões do
cotidiano’. Confúcio, por fim, sintetizou seu pensamento
acerca disso numa única frase: ‘exija muito de você e pouco
dos outros, e isso te trar| sossego’. É no auto-exame
contemplativo, possibilitado por esse vagar lúdico – e,
porém ativo e consciente - que encontramos, assim, as
respostas para aç~o. Nada de ficar ‘parado’, pois!
87
A Sabedoria e a Amizade
Começamos a nos aprofundar na busca da sabedoria e nossos ‘amigos’ somem! Há 2600 anos, Confúcio nos explicava porque isso acontecia – e pelo visto, acontece até hoje.
Para o sábio Confúcio, todo os seres humanos do mundo
eram seus irmãos (Lunyu, 12). No entanto, quem – em
busca da sabedoria – já não se sentiu só, desalentando, cada
vez mais longe daqueles com quem se relacionava? Será
que investigar o íntimo para nos tornarmos melhores
necessariamente exige o afastamento de todos? Precisamos
perder amigos, ou mesmo fazer inimigos, para buscarmos a
sabedoria? É necessário, de fato, afastar-nos de tudo? O
Caminho (‘Dao’, ou ‘Tao’) exige um total desprendimento
dos sentimentos e das coisas? Para Confúcio tal pergunta
pareceria, curiosamente, absurda. O Dao confucionista é
social, pois visa e prioriza o convívio ético entre os seres
humanos e a natureza; não pode (e nem tenta) nos livrar
completamente de desejos, sensações e sentimentos, posto
que estes são inerentes ao ser humano; busca, de fato, dar-
lhes uma coerência harmônica, evitando seu excesso ou
88
ausência de acordo com o ser, a circunstância e com as
possibilidades.
Então, tenhamos em mente que a busca do caminho
parte de nós mesmos. Ela tem origem no eu, e não no outro
(Lunyu, 12). Logo, o sábio sabe de si mesmo, e assim
procedendo, conhece aos outros. “Coloca-me na companhia
de duas pessoas escolhidas ao acaso - elas invariavelmente
terão algo para me ensinar. Poderei tomar suas qualidades
por modelo e seus defeitos como alerta” (Lunyu, 7). Seu
potencial reside, no entanto, no exemplo e na conduta, e
não na imposição – por isso, ele não busca modificar aos
outros, mas antes de tudo tenta conduzir a si próprio com
clareza e apenas incitar o que é benéfico. Assim é que o
sábio busca na amizade a realização do seu eu; na afinidade
existente em torno da busca da sabedoria, ele encontra seus
companheiros de viagem e pode, então, realizar
plenamente ‘Ren’, o humanismo (Lunyu, 12). Que fique
claro, não existem amigos unidos por afinidades nefastas;
pela violência ou corrupção aproximam-se pessoas cujos
interesses convergem enquanto a vale a causa; em situação
de perigo ou passada a ocasião, desfazem-se estes laços dos
piores modos. Ações, motivos ou objetos desagregadores
não podem unir, pois é da sua natureza desunir – logo,
89
como poderiam servir a amizade? Por isso afirma o mestre;
“Três tipos de amigos s~o benéficos; três tipos de amigos
são nefastos. A amizade com os retos, os dignos de
confiança e os sábios é benéfica. A amizade com os
desviantes, os falsos e os eloqüentes é nefasta" (Lunyu, 16).
A maior parte de nós usualmente afirma conhecer estas
regras, mas qual de nós realmente a põe em prática? Quem
de nós não tolera, por exemplo, uma certa maledicência
tomando-a pelo fim “útil” da informaç~o? Muitas de nossas
associações não são coerentes com o que buscamos – é
necessário, portanto, um auto-exame profundo neste
momento.
Tal condição implica naturalmente em observar que
algumas pessoas afastam-se de nós, tomando-nos como
contraponto a sua conduta. Apenas afasta-se, e
despreocupe-se (Lunyu, 5). Afinal, o caminho é muito mais
amplo do que isso. Perder de vista a busca em função da
incompreensão alheia, este sim é um erro. O buscador da
sabedoria deve sempre evitar cair nesta cilada – e não
podendo dela escapar, conduzir-se então de modo que suas
ações exprimam exatamente o seu caráter, pois o que se
funda na virtude não perece. Eis uma descrição sucinta do
sábio, que resume precisamente algumas características
90
buscadas na amizade; “apreens~o, inteligência,
conhecimento profundo e compreensão - qualidades
necessárias para o exercício da palavra; magnanimidade,
generosidade, benignidade e gentileza - qualidades
necessárias para o exercício da paciência; originalidade,
energia, força de caráter e determinação - qualidades
necessárias para o exercício do autocontrole; piedade,
ponderação, ordem e regularidade - qualidades necessárias
para o exercício da dignidade; graça, método, sutileza e
penetração; qualidades necessárias para o exercício do
julgamento crítico” (Zhongyong, 31). Ao buscarmos tais
valores, não vemos na sabedoria o espelho da verdadeira
amizade?
A Amizade, portanto, é amor, o compartilhar da
virtude e da sabedoria, é o ideal de uma busca comum, o
Caminho. Assenta-se não apenas no prazer advindo da
relação, mas também em nos incitar constantemente a
reformular nossa conduta íntima e dirigir nossa atenção
aos nossos erros, visando corrigi-los. A Amizade é o próprio
Ren, o humanismo que nos funda, nos constitui e permeia
todas as nossas atitudes. Quem poderá, pois, não ter amigos
possuindo - ou apenas, buscando - a sabedoria? O sentido
profundo do valor da amizade não pode ser encontrado
91
meramente na aparência ou no conhecimento de uma
grande diversidade de companhias. Está, pois, no coração
de quem a conhece – e para conhecê-la, precisamos da
sabedoria. Sendo sábios, adquirimos o sentido da amizade.
E vemos, assim, que ambas se engendram mutuamente, se
alimentam, se sustentam de modo infinito, fortalecendo o
sentido da busca.
93
A dificuldade de lidar com os ‘santos’
Para os chineses, sábios e santos eram praticamente a mesma coisa – e como é difícil segui-los! A partir de uma análise baseada em Confúcio, vamos ver por que ainda vale a pena seguir os ‘santos’ da China antiga...
‘Santos’ s~o aquelas pessoas que fizeram – e ainda fazem -
coisas extraordin|rias. Na China antiga, o ideograma ‘sheng’
podia indicar tanto o “santo” quanto o s|bio; e isso porque,
para os chineses, santos não faziam milagres, mas seu saber
era uma herança cultural, um manancial de sapiência
sagrado. Os ‘santos’ – ou sábios, tanto faz – não eram
cultuados pelas interferências que poderiam provocar
agora, mas sim, pelo que legaram. Na mente chinesa, essa
herança cultural do passado, que continua a atuar sobe
presente, é a prova factível da sabedoria desses antigos
‘santos’. Por isso, repito: ‘santos’ s~o aqueles que fizeram
coisas extraordinárias. Tais coisas são incríveis porque
poucos as fazem; e qual a raz~o dos ‘santos’ terem feito o
que fizeram? Segundo Confúcio, servir de modelo, de
exemplo. Seguindo-os, se encontra a sabedoria do viver –
mas veja lá, Confúcio não devotava uma fé acrítica nos
94
antigos, mas sim, calcada no estudo, na avaliação crítica e
na razão. Nada menos religioso, pois. A questão é que se os
santos-sábios serviram de exemplo para nós, isso significa
que o que eles fizeram, as outras poderiam fazê-las também
– mas n~o fazem. Um ‘santo’, pois, existe para provar que, a
princípio, qualquer um poderia realizar aquilo que ele
próprio conseguiu. Esse é o fundamento do pensamento
confucionista: o conceito de humanismo (Ren), que torna a
todos nós uma mesma categoria, uma mesma espécie
perante a natureza.
Contudo, sabemos que as coisas não funcionam
assim. Os ‘santos’ s~o assim chamados justamente porque
são poucos, e só isso já complica bastante a vida de quem se
inspira neles. A dificuldade é saber o que os santos sabem, e
perder as dúvidas sobre qual o caminho a seguir. Se não
sabemos o que eles sabiam, fica difícil segui-los. Temos que
acreditar que os santos sabiam o que estavam fazendo; mas
e se eles chegam e dizem - como fez Confúcio uma vez – ‘oh,
ninguém compreende o que eu digo, n~o sei o que fazer!’,
que faremos nós então?
Se a quest~o fosse: ‘eles sabem que n~o podemos
segui-los, e n~o querem dizer’, ent~o, seriam mentirosos, e
não santos; mas se eles mesmos não sabem se podemos
95
segui-los ou não, então porque os seguir??? Ou ainda: se
eles sabem, mas nós não podemos entender, porque então
insistir? E se só uns poucos conseguem continuar no seu
caminho, então, esse mesmo caminho proposto pelos
santos-sábios não é para todos; e logo, não são santos, pois
seu caminho deveria servir a todos...
Que arapuca é a sabedoria!
Mas se n~o sabemos se podemos ou n~o ser ‘santos’,
ainda assim precisamos deles para pôr ordem de vez em
quando no mundo. Se é assim, deve haver algum modo de
tornar-se ‘santo’. Mesmo que isso seja para alguns poucos,
alguém pode ou não realizar-se, alcançando o tão almejado
‘estado de sabedoria’ que os chineses acreditavam existir.
Contudo, isso implica, também, que uma pessoa com
todo o potencial para ser ‘santo’ pode vir a n~o sê-lo, já que
se trata, então, de descobrir se é ou não possível ser um
sábio (e se o provável santo-sábio não acreditar em si
mesmo, então, ele nunca o será). No entanto, para os
chineses, tudo funciona dentro da lógica da oposição
complementar, da harmonia dos contrários, o que significa
que para cada situação X há um Y. Ou seja: se alguém que
podia virar um ‘santo’ pode via a n~o sê-lo, logo, alguém
pode vir a se transformar num ‘santo’, mesmo que n~o
96
fosse essa a sua propensão natural original (Shi). Disso se
conclui, portanto, que de uma maneira ou de outra, todos
podem, de alguma forma, transformar-se em santos, e que o
caminho está aberto para qualquer um.
Provavelmente por isso os santos de antigamente
educavam pelo exemplo - o que precisamos urgentemente
voltar a fazer hoje, agora, nesse momento. Como existem
bons e maus músicos, bons e maus professores, existem
pessoas bem e mal educadas. Delas nascem os ‘santos’ ou os
ignorantes; só depende do quanto foram educadas nos
princípios da vida e do humanismo. Por isso, santos são
possíveis; são reais; e podemos sê-los. Todavia, precisamos
nos livrar de uma falsa humanidade que corrompe e nos
ater ao verdadeiro lado do humanismo que salva as
civilizações das calamidades e das coisas inapropriadas.
Esse era – e é –o exemplo dos ‘santos’. N~o se pode
desprezá-los: eles são a força inspiradora tanto da ordem
criativa quanto das mudanças férteis e iluminadas. E por
isso, chamar um sábio de ‘santo’ n~o me parece nenhum
exagero sem sentido da parte dos chineses...
“O Mestre disse: uma pessoa Educada teme três coisas: a vontade do Céu, as grandes
97
personalidades e os santos. Um ignorante desdenha do céu, pois não o entende, zomba de quem é grande, e avacalha com o saber dos santos”. (Lunyu, ou ‘Conversas’ de Confúcio)
99
As desventuras da Política
Nós acreditamos em votos; os chineses acreditam em capacidade. Será que essas noções são tão distantes? Desde Confúcio, o estudo deveria ser a base de quem governa. Talvez essa lição nos seja importante.
Nas últimas eleições o leitor foi obrigado a votar – eu não
uso aspas porque o nosso ‘direito’ democr|tico se
transformou num ‘dever’ democr|tico, passível, inclusive,
de punição se não for cumprido. Eu não votei: estava longe
de minha zona, justifiquei minha ausência e admito, tenho a
consciência limpa. Não serei cúmplice das besteiras que
porventura sejam feitas pelo próximo governante. Se ele for
melhor, melhor pra todos. Com isso, não quero debochar da
Democracia, mas ela anda sendo muito mal praticada.
Quem realmente tem votado ultimamente com convicção
nos candidatos e nas instituições? E quando digo isso, falo
daquele voto autêntico, do desejo de mudança – não o voto
comprado, trocado por uma bugiganga qualquer ou pelo
interesse particular de ‘arranjar uma boquinha’.
Particularmente, meu problema tem sido confiar na
capacidade de nossa classe política. Como sempre, eu penso
100
na possível ligação que isso pode ter com o que aprendi no
pensamento chinês. E novamente, vasculhando as
Conversas (Lunyu) de Confúcio, me deparei com esse
trecho fabuloso:
‘Zigong perguntou para Confúcio: "O que faz que alguém merecer ser chamado de ‘Capaz’ (shi, o ‘cavalheiro’)?" O Mestre disse: "Quem se comporta de forma honrada e, ao ser enviado numa missão aos quatro cantos do mundo, não traz desgraça para seu senhor, merece ser chamado de ‘Capaz’". "E além disso, se me permite perguntar?", perguntou Zigong. Confúcio disse: "Seus parentes agradecem sua carinho fraterno e o povo de sua vila admira o modo como ele respeita os mais velhos". Zigong continuou: "E o que mais, se me permite perguntar?". Confúcio continuou: "Pode-se confiar em sua palavra; tudo o que empreende, ele leva até o fim. Nisso, ele pode até parecer obstinado como um homem vulgar, mas provavelmente é qualificado para ser alguém ‘Capaz’, mesmo que de um nível menor". E então, Zigong dá a deixa: "Nesse sentido, como o senhor avalia nossos governantes atuais?" Respondeu Confúcio: "Ai! Esse pessoal miserável nem deve ser levado em conta!"’
Isso foi escrito há dois mil e seiscentos anos atrás,
mas parece atualíssimo. Em épocas de eleição os candidatos
101
se comportam bem, beijam crianças, fazem coisas boas e
demonstram conhecimento. Mas qual deles é assim,
autenticamente? Confúcio acreditava num governo feito
por pessoas capazes, com estudo. Foram suas teorias que
inspiraram a criação do serviço público chinês, cujo acesso
era feito por concursos e que, durante séculos, sustentou o
funcionamento da China. Não era um sistema perfeito, e
sofria com os desmandos de imperadores
destrambelhados. Ainda assim, era meritocrático;
valorizava o estudo, e dispensava o populismo. Exigia que
as pessoas simplesmente cumprissem as funções para as
quais foram treinadas e designadas. Ora, quem faz a ponte é
o engenheiro, quem cura as doenças é o médico, e quem
conserta o carro é o mecânico. Esse raciocínio simples,
calcado no valor do estudo, ainda hoje é um dos
responsáveis pelo crescimento da China – sete em cada dez
funcionários do governo chinês, atualmente, são formados
(e quase todos pós-graduados) em universidades, fazendo
na prática aquilo que aprenderam. Por essa razão, talvez,
mesmo n~o havendo uma ‘democracia’ como entendemos
aqui, a China vai bem e os chineses tendem a confiar em
seus governantes. Claro, não quero dizer com isso que
102
desprezo a democracia: mas não confio de modo algum no
preparo de nossa classe política.
Confúcio explica isso, novamente – e bem – nas suas
Conversas:
‘Zigong perguntou sobre o bom governo. O Mestre disse: é fartura, segurança e confiança do povo. Zigong perguntou: e se tirarmos uma? O Mestre disse: tire a segurança. Zigong perguntou: e se tirarmos duas? O Mestre disse: tire a fartura. Entenda, todos morrem um dia. Se um governo tem a confiança do povo, ele consegue tudo. Mas sem essa confiança, ele não se mantém, mesmo com segurança ou fartura’.
No Grande Estudo (Daxue), ele arremata:
‘Quando aquele que dirige o governo só pensa em ganhar dinheiro, com certeza tem junto de si um ministro voraz e ambicioso. Alguns podem até achar que ele é bom: mas em breve, ele vai atrair um monte de desgraças sobre o país. Mesmo que haja pessoas boas por perto, elas não serão capazes de consertar o estrago feito. Por isso se diz: ‘um Estado n~o é próspero quando é rico, mas quando é justo’.
Por essas razões não tenho confiado muito nos
políticos. Não vejo gente capacitada para isso, e creio que
103
muita gente concorda comigo. Infelizmente, porém,
vivemos num país em que muitos desejam um diploma, mas
desprezam e apedrejam quem estuda. Obviamente, alguém
pode objetar: ‘existem pessoas simples, mas que s~o
honestas, e existem pessoas na própria academia que são
desonestas’. Concordo. Na próxima vez ent~o, vote errado, e
continue na mesma. Afinal, todos precisam de educação –
tanto os governantes, mas também os governados, para
saberem optar direito. Eu ainda prefiro escolher alguém em
quem eu possa confiar por suas capacidades, e não pelo seu
sorriso. Ou, apenas pra concordar mais uma vez com o
velho Confúcio ‘O Mestre disse: se eu n~o encontrasse
amigos com a justa-medida, viraria companheiro dos loucos
e dos puros. Os loucos ousam fazer de tudo, e os puros
nunca v~o fazer nada errado’.
105
Harmonia e Diferença
Vivemos tempos em que todos clamam por ‘igualdade’; mas precisamos mesmo da igualdade, ou precisamos de harmonia entre as diferenças? Os chineses antigos respondem.
Costuma-se dizer que vivemos numa época complicada, em
que lutamos pela igualdade e pelo respeito às diferenças.
Me pergunto qual foi a época, na verdade, em que a
humanidade não enfrentou dificuldades; e se não há uma
grande confusão – mas essa bem atual - entre as noções de
‘igualdade’ e ‘diferença’. Queremos ser iguais perante o quê,
se pedimos privilégios legais e políticos? Exigimos respeito
{s diferenças; mas considerar alguém ‘diferente’ j| n~o
seria um desrespeito { noç~o de ‘igualdade’? Essa discussão
é complexa; e no caso do Brasil, ela é intensamente
atravessada por preconceitos arraigados, e interesses
políticos oportunistas. Como de costume, buscamos amparo
nas teorias de outras culturas, em busca de uma
experiência que possa nos iluminar. Vamos nesse espaço,
então, ouvir um pouco da opinião chinesa sobre essas
questões.
106
Pra começar, os pensadores chineses antigos não
acreditavam realmente numa ‘igualdade’. É só olhar, e
perceberemos que nenhum humano é igual a outro.
Contudo, o que nos torna humanos é o princípio (Li) de
humanidade, que se manifesta tanto em nossa estrutura
física comum (temos dois braços, duas pernas, dois olhos,
etc.) como na nossa capacidade criar, conviver e aprimorar
nossa maior realização, que é a cultura – nosso modo de
viver em comunidade, essa capacidade de superar nossas
limitações físicas. Uma das primeiras coisas que torna os
humanos ‘iguais’, portanto, é sua capacidade de perceber as
suas próprias diferenças, sejam elas físicas ou intelectuais.
Por essa razão, não é difícil perceber que quando um grupo
reclama muito por uma ‘identidade própria’, logo ele
resvala na intolerância, no preconceito, no racismo, entre
outros males provocados pela utopia de uma ‘igualdade’
exclusivista. A grande ironia dessa busca de uma ‘igualdade’
artificial é que ela reconhece a diferença, mas não de modo
saudável: é necessário menosprezar, repelir e mesmo
exterminar a ‘diferença’. Mas os chineses entendiam que a
diferença era fundamental, e sem ela nada existe. É a
famosa teoria da ‘oposiç~o complementar’, que organiza o
mundo em duas coordenadas fundamentais, yin e yang.
107
Sem o seu ‘oposto’, algo simplesmente n~o existe. Por isso,
na cabeça dos sábios chineses, era preciso harmonizar-se
com o seu oposto, pois no dinamismo dessa relação que
residiria a transformação, a sobrevivência e a continuidade
de todas as coisas. Não seria possível, portanto, haver
‘igualdade’ entre as coisas, mas sim, harmonia entre as
‘diferenças’. Quando se afirma: ‘fulano est| em harmonia
comigo, ele é igual a mim’, comete-se um erro terrível.
Quem apenas concorda com outra pessoa não o ajuda a
evoluir ou a crescer. Se um erra e o outro concorda, ambos
erram. Se um acerta e o outro concorda, este que concorda
não aprende a acertar por si mesmo, e diante de um novo
problema, não saberá como agir. Por isso, para os chineses,
a diferença é uma lição fundamental de harmonia. Confúcio
[-551 -479] gostava de invocar a analogia da música para
explicar a vida em sociedade: as notas são diferentes, mas
numa composição harmoniosa, regida por uma melodia
equilibrada, formam uma bela música. Ele mesmo disse, nas
Conversas: “me ponha junto com duas pessoas escolhidas ao
acaso, e com certeza vou poder aprender algo com elas. Vou
imitar suas qualidades, e vou me precaver de não ter os
mesmo defeitos”.
108
Curiosamente, o ‘oposto complementar’ de Confúcio,
o s|bio Laozi [séc. 6 a.C.], dizia algo semelhante: “O que
‘est|’ e o que ‘n~o est|’ se engendram; o ‘difícil’ e o ‘f|cil’ se
alternam; o ‘longo’ e o ‘breve’ contrastam; o ‘alto’ e o ‘baixo’
são posições; o ‘som’ e o ‘silêncio’ formam a harmonia; a
‘frente’ e ‘costas’ andam juntas.” Para pensadores t~o
distintos, a regra parecia se aplicar: a diferença é necessária
a criatividade e a vida. Elas precisam estar ‘harmonizadas’
para existirem. A anulação de um implica na morte do
outro. A Harmonia (He), portanto, é a compreensão da
interdependência que existe entre as diferenças, é o arranjo
eficaz que será feito para que ambas se alimentem e se
aperfeiçoem indefinidamente, gerando a continuidade.
A regra da vida harmoniosa – e no que tange a
convivência em sociedade, principalmente – pode ser
resumida novamente nesse trecho de Confúcio:
“Ranyong perguntou sobre o Humanismo. O Mestre disse: fora de casa, aja como se todos fossem convidados importantes. Cuide do povo como um evento importante. Não imponha a ninguém o que não gosta pra si mesmo. Não deixe o ressentimento pessoal se intrometer nas coisas públicas ou nos assuntos particulares”.
109
Séculos depois, o sábio budista Shitou Xiqian [700 à
790 d.C.] diria algo nesse mesmo sentido: “cada uma das
inúmeras coisas tem seus méritos, e se expressa de acordo
com sua função e lugar [...] a verdadeira igualdade é a
harmonia entre os diferentes”. Com regras t~o simples, é
fácil evitar preconceitos e concepções obscuras de
convivência em sociedade.
Ao olharmos a China de hoje, vemos que essas
teorias não conseguiram evitar a existência de problemas
sociais sérios. Contudo, essa orientação sobreviveu. O
filósofo contemporâneo Tang Yijie, em seu famoso artigo
‘Être en harmonie sans être identiques’ (Estar em harmonia
sem ser idêntico, 1999), nos mostra que o princípio foi
brilhantemente aplicado, por exemplo, nas relações que o
governo chinês desenvolve com o restante do mundo –
principalmente no caso dos Estados Unidos, seu maior rival
e, no entanto, seu maior parceiro comercial no mundo. Por
analogia, isso demonstra que uma educação voltada ao
reconhecimento e a integração das diferenças pode ser
salutar para a sociedade. Talvez - se ao invés de buscar uma
‘igualdade’ artificial - nós procurarmos desenvolver a
aceitação criativa e plena pelo que consideramos
‘diferente’, criando uma verdadeira harmonia, a ‘diferença’
110
deixará de existir como um problema, e passará a ser parte
integrante de nossa vida, como um motor de transformação
e – porque não dizer? – um dos acessos a sabedoria de
viver.
111
O que fazer com a Mente?
Na China, as três grandes escolas de pensamento- Confucionismo, Daoísmo e Budismo–se preocuparam em como trabalhar a Mente para alcançar uma vida melhor.
O sinólogo francês François Jullien gosta de afirmar que o
pensamento chinês é, antes de tudo, Imanente. Não que os
chineses não conhecessem o sentido de transcendência:
mas sua preocupaç~o fundamental sempre foi o ‘aqui e
agora’, dar um sentido ao ato de existir. Daí porque essa
‘imanência’: o objetivo das filosofias chinesas é o de
alcançar alguma eficácia no plano físico, no curso de uma
vida. Est| tudo ‘imanente’ – ou mesmo, presente – em nós
mesmos e na natureza que nos cerca. Se há algo além disso,
esse será o terreno da especulação religiosa, sobre a qual o
pensador chinês tradicional reage, tradicionalmente, com
um bocejo ou um sorriso. Facilmente a discussão metafísica
cai no campo da especulação, que não ajuda em muito a
resolver os problemas do cotidiano. Talvez por causa disso,
os chineses tentaram desenvolver discursos de aspecto
prático, ligados fundamentalmente ao exercício da vida.
Isso deslocou os chineses do obscuro terreno da
112
investigaç~o sobre a ‘Alma’ para se aprofundarem naquilo
que eles concebiam como algo absolutamente real e
material – a Mente (Xin). A Mente, para os chineses, era
representada pela palavra ‘Coraç~o’ – na medicina
tradicional chinesa, coração e cérebro formam um conjunto
que dividem as atribuições entre emoção e razão. Por se
tratar de um processo absolutamente verificável – e
portanto, ‘real’ – os pensadores chineses tentaram propor
experiências para administrar a existência baseadas não na
alma, mas sim, nos processos mentais. Essencialmente,
pois, a manifestação do viver estaria ligada aos atos básicos
de sentir e pensar. E para viver de forma mais harmônica e
feliz, as três principais escolas do pensamento chinês –
Confucionismo, Daoísmo e o Budismo indiano (na sua
forma achinesada chamada de Chan, ou no Japão, de Zen)
proporiam suas fórmulas (ou, seus Dao) para administrar
esses dois aspectos primordiais da Mente. Como
administrar o sentir? Como controlar o pensar? Como
conjugar os dois?
Já conhecemos um pouco o Confucionismo de
matérias anteriormente publicadas aqui nessa revista.
Sabemos que essa escola tinha, na Educação, seu método
básico de aperfeiçoamento individual. Para os
113
confucionistas, pois, viver é estudar. Conhecer o mundo
pelo estudo é o meio de decifrá-lo, e preparar-se, sempre,
para suas mudanças. Aquele que se aprofunda no
conhecimento, aprimora-se no autodomínio das emoções e
na compreensão do outro. A atividade contínua do ato de
ler, estudar, e exercitar o pensamento afasta o indivíduo
das preocupações vulgares, e o coloca em níveis superiores
de raciocínio e ponderação. Grosso modo, portanto, para os
confucionistas, o segredo de uma boa vida seria ocupar a
Mente. O filósofo Lu Xiang (1139 – 1193 d.C.), afirmava
mesmo que "O universo é idêntico à minha mente, e a
minha mente é idêntica ao universo” – ou seja, todo o
mundo, toda a vida, toda o existir está presente dentro do
próprio humano. A Mente o apreende, o concebe e o decifra.
Exercitar a mente constantemente, enfim, seria o segredo
de uma vida saudável e válida.
No sentido oposto aos confucionistas, os daoístas
representavam uma corrente filosófica fundamentalmente
ligada ao desprendimento das coisas materiais, e a prática
de uma vida mais simples e harmoniosa com a natureza.
Para os daoístas, era o apego ao raciocínio complexo, a
cultura, a vida em sociedade que gerava as tensões e
miasmas da existência humana. ‘Abandone as causas, e n~o
114
haver| problemas’ seria um bom lema daoísta. Para os
daoístas, é o ritmo criado pelo cotidiano das pressões
sociais que destruiria a natureza humana, afastando o ser
humano de sua espontaneidade essencial. E como resolver
isso? Esvaziando a Mente. Afastar-se das preocupações
mundanas e vulgares seria a única solução para se ter uma
vida tranqüila. A mente precisa estar livre para adaptar-se
as situações, e não para se enquadrar as criações da cultura
humana. Disse Laozi (aproximadamente séc. 6 a.C.), o
principal pensador do daoísmo: “O s|bio n~o tem conceitos
inflexíveis; Ele se adapta constantemente aos outros".
Somente uma existência desprendida pode permitir uma
consciência tranqüila: “Entregar-se ao desejo material, ao
desejo de conquista, ao descontentamento com a
simplicidade: n~o h| dano maior do que esse”. E como
esvaziar a mente? Dirigindo-a para a simplicidade.
Deslocando-se das preocupações cotidianas. Para os
daoístas, uma tarde de pescaria dispensaria muitas sessões
de terapia...
Por fim, os budistas chineses: nem ocupar a mente,
nem esvaziá-la. O segredo para uma vida ideal seria
Controlar a Mente. ‘Somos o que pensamos’, diz uma frase
budista antiga. O objetivo dos budistas, portanto, era o
115
domínio do autocontrole por meio da meditação. Um
esquecimento programado do mundo, tal como o sono. A
meditação permitiria ao indivíduo atingir um estado mental
isento de medo, receio, raiva, ira, paixão... Enfim, um estado
de paz mental, cuja contemplação permite deslocar-se para
um ambiente interior sereno e intocado. Como diziam os
budistas: "É bom domesticar a mente que, de difícil
domínio, e veloz, corre para onde lhe agrada; a mente
domesticada traz felicidade."
Ocupar, Esvaziar ou Controlar a Mente. Qual das
fórmulas seria a mais adequada? Para esse pensamento
chinês tão aberto as diversas possibilidades de existir, o
Caminho ideal é aquele que se adéqua ao indivíduo. Cada
um pode encontrar isso por si mesmo, se assim desejar.
Mas quem os pratica?
117
A arte de ouvir
Quase todos se preocupam em saber como falar.
Mas quem sabe ouvir?
Disse o antigo filósofo chinês Hanfeizi [-280 -233 a.C.]:
“A dificuldade em falar com uma pessoa n~o está em saber o que dizer, nem no método de argumentação que torne claro o que se pretende. Também não está na dificuldade de ter coragem para expor total e francamente o que se tem no espírito. A dificuldade está em conhecer a mentalidade da pessoa a quem se fala, e em adotar o meio mais adequado para atingí-la. Se a pessoa a quem se fala gosta de ter fama de altruísmo e idealismo, e lhe falares de proveitos utilitários, considerar-te-á um espírito vulgar e afastar-se-á de ti. Se, por outro lado, a pessoa a quem se fala tem a mente receptiva a lucros comerciais e lhe falares de idealismo, pensará que és um tipo nada prático, com quem não tem coisa alguma a fazer. Se a pessoa a quem se fala gosta de aparecer como homem de princípios, tendo, porém, o coração voltado para os proventos, e se lhe falares de princípios, fingirá estar de acordo contigo, mas não te concederá sua confiança. Se falares à mesma pessoa de grandes lucros,
118
secretamente seguirá teu conselho, mas, exteriormente, cuidará de manter-te à distância. São coisas que é preciso conhecer. [...]”
Hanfeizi afirmou que a dificuldade em falar trata do
momento, do propósito e do conteúdo. O momento pode ou
não ser o adequado; o conteúdo se atrela ao momento; e o
propósito é a intenção do comunicante. Hanfeizi estava tão
resoluto sobre a arte de falar que se esqueceu do problema
de ouvir. Em chinês, a própria palavra ‘s|bio’ (sheng)
significa, justamente, ‘aquele que escuta’. A quest~o é que
ele, assim como muitos especialistas em oratória e retórica,
tendiam a acreditar que seus discursos podiam impor-se
pela força da palavra, e pela suposta potência de seus
sentidos. Todavia, a experiência nos mostra que há pessoas
absolutamente conscientes da validade de um argumento e,
no entanto, não concordam com ele por razões particulares.
Esse é o problema da idéia de Hanfeizi – e que afeta
diretamente a maior parte dos ‘chatos’ que tentam nos
convencer de algo até os dias de hoje, tanto quanto as
pessoas as quais gentilmente tentamos convencer de
alguma coisa. Quem sabe falar? Mas o principal é: quem
sabe ouvir? Uma pessoa com propósitos escusos pode
119
escutar, mas não ouvir; se ouvir, não ponderar; se
ponderar, ainda que veja coerência e razão no argumento,
não concordar. Isso porque seu propósito particular e
pessoal, de antemão, já está definido. Quando há uma
recusa pré-definida, um argumento só pode se impor se
convencer uma ameaçadora maioria circundante – mas se é
a força da maioria, e não das palavras, que convence, então,
a maioria pode ser um péssimo e volúvel palco – mesmo
para os bons argumentos.
Obviamente que Hanfeizi pretendia amarrar a força
de suas idéias ao poder policial do reino que defendia, Qin –
Estado que iria re-unificar a China antiga em -221 a.C., e
cujos governantes autoritários se destacaram por sua
crueldade. Mas se a violência se torna necessária para
impor ideias, os argumentos precisam ser bons, então?
A arte de argumentar consiste em plantar sementes.
Não se trata apenas de dizer o que as pessoas querem
ouvir, pois não é o agradável que ensina o que é ruim, e sim,
o contrário. Para isso, pois, é necessário antes ouvir, de tal
modo que se possa saber como chegar ao âmago de uma
questão. Argumentar bem, pois, é usar de poucas palavras
para lançar alguém a uma possível reflexão. Um antigo
provérbio chinês (que Hanfeizi, aparentemente, esqueceu
120
de ouvir), dizia que ‘os idiotas sabem falar, os tolos sabem
discutir, e só os s|bios sabem ouvir’. O s|bio, pois, deveria
cumprir o papel de um terapeuta nos tempos antigos; ele
deixaria as pessoas falarem, ponderaria, interpretaria o que
elas queriam dizer, e tentaria ajudá-las a chegar a uma
conclusão por si mesmas. Afinal, não é possível pensar por
uma pessoa; mas é, enfim, viável levá-la por um caminho
mais seguro ao que é apropriado.
No entanto, somente a dúvida por de fazer isso.
Somente quem duvida pode buscar esclarecer-se sobre
qualquer coisa. E infelizmente, a maior parte das pessoas
prefere ficar com suas falsas e inseguras certezas. Talvez
por isso que um velho provérbio chinês (atribuído ao
grande sábio Confúcio [-551 -479]) já nos avisasse sobre a
arte de ouvir: ‘o prazer de um s|bio é parecer um idiota
diante de um idiota que tenta parecer s|bio’. Do que se diz,
e do que se ouve, tiramos nossas conclusões.
Em tempo: uma das grandes dificuldades de se
aprender chinês é dominar o sistema monossilábico e tonal
das palavras. Uma simples palavra - dependendo do acento
com o qual se dá sua pronúncia, ou do contexto em que ela
está sendo utilizada - muda completamente seu sentido.
Por essa razão, desde a antiguidade, os chineses
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desenvolveram um ouvido musical, profundamente atento
e sensível. Todavia, o chinês é a língua mais falada no
mundo. E o que isso nos revela? Penso: é mesmo o chinês
difícil, ou simplesmente não sabemos ouvir?
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