TRILOGIA VICENTINA
COMIDA E LITERATURA - ENCENAÇÃO DOS ALIMENTOS NA OBRA DE GIL VICENTE
Em
memória do meu amigo Dagoberto Markl
1
INDICE
1. ABERTURA
2. RECEITUÁRIOS
3. A REFEIÇÃO
4. O PÃO
4.1 LEITE E MEL
5. O VINHO
6. A CARNE
7. O PESCADO
8. O PESCADO
9. MODOS DE COMER 10. DA ALTERIDADE
11. HARMONIA E DESORDEM ALIMENTAR
12. O GORDO E O MAGRO
13. O EXCESSO DE MELANCOLIA – O HUMOR NEGRO
CONCLUSÃO
2
1. ABERTURA
A alimentação é a actividade essencial do homem. A procura de
alimento torna a história das civilizações e das conquistas de
território indissociável da evolução dos recursos e das políticas
alimentares. A técnica humana vai modificando as matérias-primas
oferecidas pela Natureza e transformando os modos de vida.
Platão é um dos primeiros autores do Ocidente a fazer uma
reflexão sobre a técnica culinária, na verdade muito depreciativa,
que para este filósofo é uma arte da ilusão. Recentemente, com a
descoberta de três placas em terracota, gravadas em caracteres
cuneiformes, encontradas na Universidade de Yale, ficámos a
conhecer mais ou menos quarenta receitas de cozinha relativas à
mais antiga civilização do mundo, a civilização mesopotâmica (que
se situava no actual Iraque). Estes documentos, estudados por Jean
Bottéro, investigador e tradutor da Bíblia, revelam mais de duzentas
receitas de pão e de cerveja1. Sabemos, assim, o que comiam os
Sumérios. A cozedura indirecta era a mais frequente (água com
gordura de ovelha, por exemplo). Nesta região consumia-se grande
variedade de carne, de porco, de vaca e diversas aves domésticas,
e grande variedade de cereais. Estes povos eram especialistas do
«cozido», ou pot-au-feu, prato arcaico e universal, e grandes
consumidores de alho, alho-porro, cebola, e diversas especiarias,
3
nem todas identificadas. Infelizmente não conhecemos os modos de
comer desses povos que viveram há 3500 anos.
A história da alimentação tem vindo a ser feita gradualmente, e
deparamo-nos com ideias que precisamos de corrigir. A zoo
arqueologia será um meio muito importante para o estudo do que
comiam os nossos antepassados. Estudar a alimentação através da
literatura é igualmente uma maneira de contribuir para o estudo da
alimentação, mas infelizmente quase só podemos chegar a conclusões
simbólicas, porque o escritor, ao escrever a sua obra, não teve o
intuito de dar uma amostragem do que se comia na época mas antes
estabelecer comparações, valorizar ou desprezar produtos e
tipificar personagens.
Poucos estudos têm sido efectuados sobre a história da
alimentação em Portugal, os produtos ingeridos, o protocolo e as
horas de comer. Foi com Jean-Louis Flandrin, na Escola Prática de
Altos Estudos em Ciências Sociais, no decorrer do seminário «Le
Désir et le Goût» que surgiu o interesse pelo que nós comemos e a
decisão de trabalhar este tema em Portugal. No entanto torna-se
difícil elaborar este tipo de análise no nosso país porque as
fontes são escassas. Continuando com o estudo da vida quotidiana e
finalizando a nossa Trilogia Vicentina, prosseguimos com o estudo das
maneiras de comer, analisando mais precisamente o papel da
alimentação em cena na obra do dramaturgo Gil Vicente.
O teatro é uma ficção no palco. A alimentação aparece na
dramaturgia sob várias formas, e os alimentos testemunham tanto a
realidade como o simbólico, em provérbios, alegorias e atributos.
4
Não temos como objectivo elaborar um inventário exaustivo de todas
as ocorrências, mas de preferência tentar definir uma gramática ou
um sistema de relações entre as personagens vicentinas e os seus
alimentos. A alimentação não pertence apenas ao registo da
necessidade (da natureza), mas também ao do imaginário (da
cultura). Esta conjunção do essencial e do supérfluo, da coisa e
do signo, do real e do sonho, já nos foi revelada ao analisar o
papel do vestuário no teatro vicentino e nas artes plásticas em
Portugal do final do século XV ao início do século XVI2. E porque a
alimentação nos suscita claramente uma análise do mesmo tipo é que
nos propomos continuar a analisar, dentro do mesmo espírito, os
hábitos alimentares em Portugal3, servindo-nos de dois
instrumentos: textos e imagens. No entanto, temos de ter precaução
com estas últimas porque muitos séculos passaram, estão
deterioradas e foram executadas num contexto muito diferente.
2. Receituários
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, do fim do século XV e início do
século XVI, é o mais antigo livro de receitas em língua portuguesa
conhecido até à data4. Em França existem numerosos manuscritos
culinários, alguns descobertos recentemente, outros já estudados
há muito. O Viandier de Taillevent, do século XIV, é um dos mais
antigos tratados culinários5; talvez exista um outro que lhe seja
anterior, o Petit traité de cuisine, escrito por volta de 1306, estudado
por Douët d’Arcq e publicado na Bibliothèque de l'Ecole de
Chartres6. O receituário catalão Sent Sovi (1324) foi escrito por um
cozinheiro do rei de Inglaterra, e o Ménagier de Paris: traité de morale et
5
d’économie domestique, datado de 1393, por um burguês parisiense para
aconselhar nas lides domésticas a sua mulher ainda jovem.
A escassez de fontes e de tratados de cozinha dificulta a nossa
tarefa. É hoje conhecido em França o sabor de pratos de países e
épocas diferentes graças ao estudo empreendido por equipas de
investigação7. A história da alimentação beneficiou nos últimos
anos de um interesse crescente com Fernand Braudel (1979), Bruno
Laurioux (1989; 1997; 2002), Jean-Louis Flandrin (1992; 1996) e
Allen Grieco (1992). Mais recentemente, em 2003, realizou-se um
colóquio em Paris em homenagem a Jean-Louis Flandrin. Em Portugal,
vários investigadores se têm interessado igualmente pela comida.
A alimentação depende de um conjunto de ingredientes, de
condimentos e de procedimentos fabricados num dado contexto
histórico e territorial: Food is Culture é o título do último livro de
Massimo Montanari8. Nos últimos anos começou a dar-se mais
importância ao estudo da alimentação e têm-se publicado muitos
estudos importantes. Segundo Roland Barthes, a comida «n’est pas
seulement une collection de produits justiciables d’études
statistiques ou diététiques. C’est aussi et en même temps un
système de communication, un corps d’images, un protocole
d’usages, de situations et de conduites»9. Em 1964, Claude Lévi-
Strauss publicou um livro que passou a constituir um dos pontos de
partida para os trabalhos sobre a alimentação de cunho
7 Jean-Louis Flandrin, quando professor na Ecole des hautes étudesen sciences sociales, organizou refeições históricas durante maisde duas décadas. Antes de falecer, em 2001, fundou a sociedade DeHonesta Voluptate, que continua a trabalhar sobre a alimentação e arealizar a reconstituição de cardápios de diversos países.
6
estruturalista. Em Le Cru et le cuit, o etnógrafo estuda uma população e
classifica-a segundo a ingestão de alimentos crus ou cozidos (ou
assados). Esta obra representa um trabalho fundamental para os
estudiosos da alimentação. Em 1989 Bruno Laurioux publicou Le Moyen
Age à table, já traduzido para português, e em 1997 Le Règne de Taillevent.
Livres et pratiques culinaires à la fin du Moyen Age10. Nestas obras, o autor
dedica a Portugal unicamente meia página, na qual evoca a penúria
de documentos e afirma que, em comparação com a Espanha, «le
Portugal voisin n’est plus dynamique»11. Este autor cita brevemente
o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, e Jean-Louis Flandrin não tem um
único capítulo dedicado ao nosso país na História da Alimentação,
organizada com Massimo Montanari12. Mais recentemente, Bruno
Laurioux voltou a publicar um livro sobre o mesmo tema, Manger au
Moyen Age, e também nele não refere Portugal. É verdade que, apesar
de termos escassos documentos sobre a alimentação, já foram feitos
vários trabalhos, e temos o precioso Livro de Cozinha da Infanta D. Maria,
já estudado por Salvador Dias Arnaut, Maria José Azevedo Santos,
Madeleine Maupetit, Georges Carantino e Maria José Palla. José
Labaredas é o autor de um interessante estudo sobre a alimentação
em Gil Vicente, onde encontramos precisões sobre os produtos13 e
mais precisamente a região de Coruche, associada ao nosso
dramaturgo14. As primeiras obras de cozinha europeias possuem
receitas culinárias a par de receitas medicinais, tal como o livro
da infanta. Esses receituários são compilações híbridas. Até à
alta Idade Média só se conhecia o tratado romano atribuído a
Apício (corpus essencial do século I d. C., com acréscimos), que
foi gradualmente desprezado, com o afastamento do garum (molho de
7
peixe), em favor de uma renovação e da proliferação de
especiarias. Este receituário será mais tarde elogiado pelos
humanistas italianos, tendo sido ignorado pelos receituários
medievais.
Os livros de cozinha mais antigos eram geralmente apresentados
em forma de rolo, num suporte muito rudimentar. Como eram muito
utilizados, conservaram-se mal. A par destes rolos existiam
códices luxuosamente ornamentados, que figuravam nas bibliotecas
reais. A França possui livros com quatrocentas receitas, e os seus
cozinheiros eram verdadeiros artistas. Pensamos que estes
documentos são obras literárias, de um género específico a que
pode dar-se o nome de receituário ou livro de cozinha. Trata-se de
uma literatura tradicional, transmitida oralmente, onde
gradualmente aparece o nome do autor. Jean-Louis Flandrin foi um
dos primeiros historiadores da alimentação. A investigação que fez
sobre o gosto do cozinheiro e do grupo que ele serve está próxima
daquela que se aplica em compreender o olhar do pintor, comparando
com o dos seus mecenas ou amadores. Pensemos nos livros de Daniel
Arasse sobre a pintura. O que vemos nós? «Que voyait un
observateur contemporain du peintre? Et qu’avait voulu goûter le
cuisinier? Une grave différence était que la peinture a traversé
les temps (plus ou moins indemne), les compositions du cuisinier
non»15.
No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria está presente o ciclo do cozinhar:
escolher o produto, lavar, cortar, desmembrar, temperar, cozinhar
e servir. As fatias de pão são nele recorrentes, mas não servem de
talhadores ou de pratos, e uma vez está indicado que a refeição
8
deve ser servida sobre uma toalha. Verificamos uma grande
preocupação com a qualidade dos alimentos: a melhor carne, os mais
belos frutos. A cor citada mais vezes é a cor branca, como a do
açúcar, mas também aparecem o açúcar rosa e os tons verde, rosa,
amarelado e ruivo. A cor mais importante é o amarelo, devido aos
ovos que cobriam os pratos, conferindo um dourado muito forte,
diferente do castanho, a cor dos pobres, à semelhança do que
sucede com o traje. As receitas do manuscrito apresentam o nome de
fidalgos do tempo.
O segundo livro de cozinha escrito em português, a Arte de Cozinha
de Domingos Rodrigues, surge já nos fins do século. O autor nasceu
em Vila Cova da Coelheira em 1637 e faleceu em Lisboa em 1719.
Quando da publicação desta obra, Domingos Rodrigues era cozinheiro
de D. Miguel de Portugal, sétimo conde de Vimioso, tendo passado
pela Casa Real de D. Pedro II. Este cozinheiro não escreveu apenas
receitas de culinária, adverte também para a prática das boas
maneiras e da apresentação da mesa, que deve variar segundo o mês
do ano. Neste livro de cozinha existem receitas que encontramos no
livro de cozinha de D. Maria a par de outras novas, estrangeiras e
de grande fantasia.
Segundo Massimo Montanari, quanto mais elevada for a categoria
social melhor e mais se come16. Os alimentos eram escolhidos para
serem servidos segundo as ocasiões e, por vezes, contribuíam
unicamente para a estética da cerimónia: pelo tamanho, pela forma
e pela cor. Por vezes eram confeccionados para servir de bodo aos
pobres, e como exemplo disso podemos referir a Crónica de D. João II, de
9
Garcia de Resende, aquando do casamento do príncipe Afonso, filho
de D. João II, com Isabel, ocorrido em Évora em 149017.
Em que medida podemos retirar do teatro alguns ensinamentos
sobre a condição da alimentação em Portugal no tempo de Gil
Vicente? Em que medida os topoi alimentares de que se serve o
dramaturgo podem fornecer dados pertinentes para o nosso trabalho?
Eles são, ao mesmo tempo, indicadores e reveladores de uma
mentalidade. Memória da história de um povo, a alimentação fala
pela sua própria simbólica, pela presença ou ausência de certos
alimentos, pela forma como estes são ingeridos ou cozinhados.
Neste sentido, estudaremos os alimentos considerando,
nomeadamente, as seguintes dicotomias: homem/mulher, rico/pobre,
velho/jovem, esposa/amante, eremita/mundano, campo/cidade,
puro/impuro, religioso/profano e cristão/não cristão. Analisaremos
a maneira como os alimentos surgem no nosso corpus (cozidos, crus
ou assados), como estão relacionados com os dias litúrgicos anuais
e como funcionam.
A comida ocupa um pequeno lugar no teatro vicentino, a sua
descrição praticamente não existe, embora certos alimentos façam
parte integrante do jogo cómico, e sejam um dos elementos
satíricos que contribuem para levar um olhar crítico sobre os
hábitos da sociedade. O jogo das referências alimentares funciona
como um revelador para tipificar certas personagens: velhos,
novos, solteiros, casados, profanos e sagrados. Na obra vicentina
não há banquetes nem referências concretas à comida; estamos longe
do teatro inglês ou italiano, onde o banquete tem um papel
adjuvante da acção. No teatro inglês do Renascimento existem
10
inúmeros banquetes, estudados pelo historiador inglês Chris Meads
num livro sobre o funcionamento destes e sobre como se integram no
jogo dramático18. Falstaff come capões, tripas, vaca não salgada e
bebe vinho de Xerez e das Canárias. E come muitas anchovas para
estimular a vontade de continuar a beber vinho19. O mesmo acontece
no teatro italiano. Na primeira edição da Cortesã de Aretino, datada
de 1525, as refeições dos senhores são teatralizadas com uma
encenação rigorosa. Estas são servidas por numerosos criados, que
se juntam aos espectadores depois do serviço. A disposição das
mesas obedece a uma preocupação estética com as cores e a
valorização da abundância. Nesta primeira edição da Cortesã de
Aretino encontramos uma refeição de Quaresma frugal: de manhã
quatro anchovas e dez sardinhas podres20, uma escudela de favas,
sem azeite nem sal, e quatro pedaços de pão; à noite mais um pouco
de pão. Os criados comem restos de aves, os pescoços, as patas e
as cabeças. Nesta peça, os servidores comem no tinello, uma sala de
refeitório muito suja e repugnante, em contraste com o salão dos
senhores. No Perffeto Maestro di Casa, de F. Liberati, a comédia é um
reflexo da sociedade, apropria-se do tema do banquete e dos seus
elementos, já presentes na comédia antiga, desenvolvendo-os. São
organizados como acção secundária sumptuosos banquetes de núpcias,
onde nos deparamos com um vocabulário alimentar e gastronómico em
contraponto com a alimentação dos criados e das pessoas da rua.
Vários autores contemporâneos escreveram sobre a maneira como
funcionavam o local das refeições dos ricos e o local dos
servidores. Vemos isto em Francesco Priscianese no livro Del Governo
delle Corte d’un Signore in Roma e em Cesare Evitascandolo, autor do Diálogo
11
del Perfetto Maestro di Casa, de 1581. Passando a Michel de Montaigne,
escritor e historiador francês do século XVI, ficamos a conhecer
com minúcia a comida da época e mesmo certos gostos culinários do
pai, que não gostava de molhos. Este autor alimentava-se com
comida gorda e carnuda, a comida da corte dos Valois, em França,
estudada por Jacqueline Bouche21. Montaigne era mais gourmand que
gourmet22. O próprio título Essais contém um sentido culinário, porque
a palavra pode remeter a «provas» ou «amostra» de comida, sentido
que encontramos duas vezes no livro. Sá de Miranda escreveu dois
poemas criticando as refeições na corte: a epístola em verso
dedicada ao irmão Mem de Sá inspirada na fábula de Esopo Rato do
Campo e Rato da Cidade, glorificando a refeição tranquila campestre, e
a comédia Os Estrangeiros, de 1527, onde a comida se presta a dividir
o dia, encontrando-se nela almoço, jantar e ceia. Ficamos, assim,
a conhecer as refeições da época e a duração da peça, que se
desenrola numa rua de Palermo em vinte e quatro horas. No Auto de
Filodemo, de Luís Camões, a personagem Vilardo, utilizando uma
linguagem alimentar, queixa-se de sofrer de amor e de falta de
apetite. No Auto do Anfitrião encontramos uma passagem muito curiosa
onde Luís de Camões deseja opor o mundo «bárbaro» ao mundo
civilizado:
Mercúrio:
«La carne de algun humano
me seria sabrosa.»
[…]
Sósia:
12
«Carne humana es mui mesquiña.
Oh! No comas deso, no!
Antes carne de galinha.»
O escritor Cervantes utilizou a comida para classificar a
sociedade: «estos dos tipos de cocinas, de gastronomía rural y
ganadera, y una culinaria más refinada aparecen en esa especia de
Biblia de la gastronomía castellana, de la cocina de Castilla – La
Mancha que es El Quijote»23. Veremos que nesta obra a alimentação
desempenha muitas vezes o mesmo papel que no teatro de Gil
Vicente, se bem que muito mais abundante e com pratos elaborados,
ainda hoje conhecidos.
3. A refeição
O estudo da alimentação na literatura tem de ser feito de um
modo simbólico, embora possam tirar-se lições sobre as maneiras de
comer da época em questão. Gil Vicente foi prudente ao introduzir
a comida no seu teatro. Será para a condenar? Rabelais, o pai de
Gargântua, para condenar os excessos alimentares do tempo exaltou
desmedidamente a comida. Este autor excedeu-se em metáforas
alimentares, onde os enchidos são fálicos, as festas facultam
vinhos com abundância e banquetes sumptuosos24.
Nas iluminuras muitas mesas surgem cobertas por uma simbólica
eucarística (séculos XIII, XIV e XV) somente com pão e vinho. De
um modo geral as mesas estão vazias se as compararmos com a
diversidade dos pratos e dos menus da época, e em geral não se
sabe de que refeição se trata, se é de manhã ou à noite. As
13
refeições campestres são raríssimas e as mais presentes nas
iluminuras são as do mês de Dezembro ou do mês de Janeiro, do
jantar de Natal ou do dia 1 de Janeiro25.
Por vezes as iluminuras deixam ver com realismo de que carne se
trata: aves domésticas e de caça, cordeiro inteiro ou cortado (na
Páscoa). Os frangos e os faisões não aparecem certamente porque a
carne destes últimos tem um cheiro muito forte, são somente
mostrados com a plumagem para adorno do repasto.
As carnes são muitas vezes escondidas numa empada, no entanto o
peixe aparece inteiro nas miniaturas, assim como ovos cozidos com
a casca, em cinza, ou fritos. As saladas representam as ervas
amargas dos Judeus na Páscoa. Por vezes distinguimos manteiga
fresca perto dos doentes, o que conhecemos pelo Livre des simples
médecines.
Não podemos associar a comida na obra vicentina à frase de
Plutarca «nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer
em companhia». Com efeito, não temos uma refeição propriamente
dita, existem apenas alimentos para ajudar a acção dramática. A
representação da alimentação cobre toda a história da arte
ocidental. Desde a Antiguidade que figura nos vasos gregos, nos
frescos romanos, em mosaicos e baixos-relevos. A literatura antiga
deu-lhe igualmente valor, nomeadamente as fábulas de Esopo, os
banquetes do Olimpo, as comédias de Terêncio e o Decameron de
Boccaccio.
Na Farsa dos Almocreves Gil Vicente refere um saleiro de prata
encomendado por um fidalgo a um ourives, que, não tendo dinheiro
para o pagar, o despreza: «ele é dos mais maus saleiros/que eu em
14
minha vida comprei» (240-241)26. Este é um dos raros exemplos em
que Gil Vicente evoca um objecto relacionado com a refeição.
Sabe-se que os pratos individuais ainda eram pouco divulgados.
Comia-se com a ajuda do polegar, do indicador e do dedo médio. No
final da refeição, lavavam-se as mãos, por vezes com água-de-
rosas. No nosso corpus não encontramos nem colher, nem garfo, nem
copo, mas vemos colheres representadas nos quadros da época. De
acordo com um inventário realizado depois da morte de D. Beatriz,
esposa de D. Fernando, sabe-se que esta tinha em 1447 no seu
enxoval de casamento um serviço de cozinha. Na Refeição em Emaús,
pintura portuguesa do século XV, no Museu Nacional de Arte Antiga,
vemos os talhadores (quadrados de madeira), a toalha e a faca.
Voltando atrás no tempo, a leitura da Pragmática de 1340 indica-nos
duas refeições por dia: o jantar (cerca das 11 ou 12 horas) e a
ceia (ao fim da tarde), a refeição principal. Sabemos que antes da
refeição se bebia vinho. Eram servidos três pratos, sem contar as
sopas, os acompanhamentos e as sobremesas, mas estes pratos eram
unicamente servidos ao rei, à alta nobreza e ao clero. D. Duarte
no Leal Conselheiro recomenda um intervalo de sete ou oito horas entre
as refeições. O historiador A. H. de Oliveira Marques também evoca
duas refeições27. O sedutor Lemos deseja comer, e a sua amada
Constança responde-lhe: «Vós quereis cá cear/e eu não tenho que
vos dar» (IND 264). Presume-se que se jantava de manhã e ceava-se
às seis ou sete da tarde. No entanto Gil Vicente evoca uma outra
refeição: o almoço. Quando temos as três refeições, a que
corresponderá o almoço? Possivelmente a seguir ao levantar.
15
«À cea e jantar perdix,
ao almoço moxama,
e vinho do seu matiz» (EST 560-562).
Numa outra ocorrência parece-nos que assim seja, quando
Constança Roiz diz a Dom Duardos, disfarçado de hortelão, «vuesso
almoço está guisado» (895), e ele ao responder-lhe evoca o
trabalho do cortesão, «trabajar y sospirar/es mi comer» (896-897).
No que diz respeito à louça, notamos curiosamente que ela está
mais presente junto dos Judeus, em duas peças, no Auto da Lusitânia e
no Auto da Ressurreição. Nesta última peça, Samuel queixa-se dos
efeitos da Ressurreição:
«tremeu minha casa, caiu cantareira,
quebrou-se a louça, tudo se perdeu» (140-141).
Num outro contexto, no Auto da Índia, a Ama pergunta à Moça «quem
anda naquelas tigelas» (153) e exclama «quebra-me aquelas tigelas»
(397) para provar ao marido que vivia desoladamente. No Velho da
Horta, a mulher do protagonista cozinha em panelas (43, 258 e 268),
e no Auto dos Cantarinhos, de António Prestes, Duarte associa as
panelas partidas a um raio: «que digo este mês de Maio/que lá vai
não viu um raio/de noite quebrar panelas?». (p. 487)
A louça usada entre o Carnaval e a Quaresma é muitas vezes
quebrada ou lavada, para eliminar vestígios de gordura. Na Farsa dos
Físicos, a moça Branca Denisa lava numa ribeira com sabão para tirar
a sujidade da gordura do Carnaval. Muitas vezes acontecia que para
16
que o prato ficasse mais saboroso era cozinhado em louça a estrear
como lemos numa receita do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria.
A cozinha, pelo que deduzimos das várias iluminuras estudadas,
fica perto do local onde se come, pode ser uma lareira onde se faz
comida, onde os vizinhos podem vir pedir lume: «entra-se por uma
brasa», como lemos no Auto da Índia (491). Sabemos, a partir de
várias ocorrências, que havia cozinheiros negros: «ter carrego dos
gatos/e dos negros da cozinha» (ALM 82-83). Mas as citações
relativas à cozinha têm muitas vezes uma associação com o demónio:
será pelo lume? Temos vários exemplos dessa conotação negativa:
«varandas das dores/cozinha de gritos» (IND 249), «e se tu este
trazes à nossa cozinha/eu te farei mui grão cavaleiro» (HDD 926-
927), «meu fogo também em que se ocupasse/e meus cozinheiros» (HDD
129-30) (Lúcifer aludindo ao fogo infernal), «e acolá a sopa na
brasa/então ferver as mezinhas» (FIS 183-84) e «a crueldade
cozinheira/ e matadora» (ADA 740-741). Lemos, o amoroso de
Constança, abriga-se na cozinha, «metei-vos nessa cozinha/que me
estão ali chamando» (IND 249-250).
Sabemos pelos livros de cozinha que os cozinheiros da Idade
Média se serviram de orações para medir o tempo culinário, como
por exemplo, o tempo de uma ave-maria, de um pai-nosso ou de um
credo. No Livro de Guisados de Robert de Nola, de fins do século XV,
nas receitas «empada de carne» e «empada de peixe», o tempo de
cozinha era igual ao tempo de uma oração, e para o «guisado na
caçarola» era o tempo de um credo.
Vamos proceder ao estudo de duas pequenas refeições, porém de
grande relevo para o nosso estudo, visto serem as únicas que
17
surgem no desenrolar das peças. Comecemos por uma cena religiosa e
metafórica presente no Auto da Alma. Imaginemos um altar com a mesa
protegida por uma toalha e com uma bacia de iguarias. Logo no
argumento lemos que a mesa é o altar, e os manjares são as
insígnias da Paixão. Nesta peça, a acção e a música estão
associadas; temos uma obra de Quaresma próxima da peça francesa
Pèlerinage de la vie humaine de Guillaume de Diguileville, do século XIII,
na qual os cantos litúrgicos competem ao que se passa em cena. O
Auto da Alma é uma alegoria da instituição eucarística como alimento
espiritual, começando com o caminho do Calvário. Esta obra,
representada numa Sexta-Feira Santa, dia 1 de Abril de 1518, está
pontuada na segunda parte por sete hinos pascais cantados e
comentados pelos quatro Doutores da Igreja: «Vexilla Regis»,
«Salve Sancta Facies» da «Via Crucis» de Sexta-Feira Santa, «Ave
Flagellum», «Ave Corona Spinarum», «Dulce lignum, dulcis clavus» e
«Domine Jesu Christe», terminando com o «Te Deum Laudamus»,
anunciando a Ressurreição de Cristo. Estes hinos teriam sido
cantados em canto gregoriano a duas ou a três vozes, segundo um
costume europeu vindo do século X. Uma harpa poderia servir de
acompanhamento, porque os instrumentos de sopro eram proibidos
durante o tempo da Quaresma28. A primeira iguaria é saboreada com
salsa (evocação das ervas amargas) e sal (o tempero da vida) e é
acompanhada pelo hino «Vexilla Regis». A segunda representa a coroa
de espinhos e é oferecida enquanto os Doutores cantam «Ave Corona
Spinarum». A terceira é relativa aos pregos, enquanto os anjos
cantam «Dulce lignum, dulcis clavus», e a quarta, «Domina Jesu
Christe», representa o crucifixo. A refeição e a peça terminam ao
18
ar livre, num pomar, «a fruita deste jantar/que neste altar vos
foi dado/com amor/iremos todos buscar/ao pomar/adonde está
sepultado/o Redentor» (819-825). Esta refeição é a mais completa
na obra vicentina. O pomar representa o Paraíso e a salvação
final. Podemos comparar esta refeição à eucaristia. As almas serão
redimidas pelo modelo de Jesus e serão salvas com ele.
Segunda refeição, desta vez profana e erótica, encontra-se no
Auto da Índia. Identificamos nesta peça a associação entre a comida e
o prazer físico, a relação entre o erotismo e os prazeres da comida
e da bebida. Gil Vicente mostra-nos nesta peça cenas de sedução
amorosa servindo-se de alimentos. A assimilação entre o amor e uma
boa refeição é frequente no teatro europeu. No nosso corpus, Lemos
não quer gastar dinheiro com a refeição para Constança e encomenda
à Moça cerejas e vinho das Estrelas, marca de vinho citada várias
vezes na obra vicentina. Nesta cena surgem dois alimentos, fruta
(especialmente cerejas) e vinho. Vive-se a comida da alegria e da
festa, como na Nave dos Loucos de Hieronimus Bosch, do Museu do
Louvre, ou nos Sete Pecados Capitais, do Museu do Prado. Esta cena
amorosa vicentina com vinho lembra-nos as Mil e Uma Noites, obra da
literatura árabe que associa muitas vezes o vinho ao amor. Na peça
em estudo a criada de Constança cita animais que são metáforas do
sexo feminino, como «berbigões» e «ostras», alimentos afrodisíacos
evocando a vagina da mulher, conferindo um segundo sentido à cena.
E a mesma continua a insistir perguntando se Lemos deseja um
animal com cornos, mas ele não quer despender dinheiro e dá como
desculpa que a carne tem bicho:
Moça:
19
«Cabrito?»
Lemos:
«Têm mil barejas.»
Moça:
«E ostras, trazerei delas?»
Lemos:
«Se valerem caras, não,
antes traze mais um pão
e o vinho das Estrelas» (275-279).
O marido de Constança, antes de embarcar, deixara-lhe o
essencial: trigo, azeite, mel e panos. O azeite é do domínio da
mulher: Numa outra peça, Paio Vaz furioso com Mofina Mendes, dá-
lhe um pote de azeite para ver se ela tem mais sorte: «toma este
pote de azeite/e vai-o vender à feira» (452-453). A mulher sensata
e recatada não come carne mas sim pão e mel. No fim da peça,
quando o marido regressa, ela ordena vinho e cabrito à Moça, o que
corresponde ao que se passou durante a ausência do marido,
invertendo-se agora os papéis:
«Faze fogo, vai por vinho,
e a metade d’um cabretinho
enquanto estamos falando» (426-428).
Erotismo e gastronomia constituem uma associação relevante29. O
20
vocabulário amoroso e de beleza utiliza muitas expressões com
alimentos: cabelos louros como o milho, pele de pêssego, olhos em
amêndoa, lua-de-mel. Madeleine Lazard, especialista do teatro
francês do Renascimento, diz-nos que não há obra de teatro em que
não se estabeleça uma ligação entre a fome e o desejo amoroso. O
barão apaixonado da peça La Reconnue desenvolve em 16 versos uma
comparação entre o amor e a boa comida30. Na Farsa de Inês Pereira, a mãe
avisa a filha da pobreza que passará se se casar com o cortesão:
«choram-te os filhos por pão». No entanto, Inês prefere comer pão
e cebola (388) e subir de condição: «com uma borda de boleima/e
uma vez de água fria/não quero mais cada dia» (397-399). Inês
Pereira enumera assim o essencial para não morrer de fome.
21
4. O pão
Comecemos pelo alimento mais importante da mesa ocidental: o
pão. Na Antiguidade a agricultura e a arboricultura constituíam o
centro da economia, e os produtos mais importantes eram o trigo, a
vinha e a oliveira. Anius, rei e sacerdote de Delos, personagem
das Metamorfoses de Ovídio, afirma que as suas filhas transformavam
tudo em que tocavam nestes três alimentos. Deste modo o
cristianismo, influenciado pelas culturas mediterrâneas, elegeu
estes elementos como instrumentos de culto. O azeite era
necessário para iluminar o momento dos sacramentos, e Gil Vicente
evoca-o unicamente nessas circunstâncias.
A cultura romana marcou a religião e a civilização cristãs – «la
dimension symbolique que les écrivains des IVème et Vème siècles
ont attribué au pain, au vin et à l’huile d’olive est d’une grande
intensité», diz-nos Massimo Montanari31. Os apreciadores do pão, do
vinho e do azeite estão do lado da cristandade, enquanto as papas
pertencem aos «povos bárbaros», como diziam os Gregos e os
Romanos. Os Celtas e os Germanos alimentavam-se de toucinho, favas
e trigo, produtos da caça e da pesca, frutos selvagens e criação
de animais (porcos, cavalos e bovinos), e a carne constituía a
principal fonte da sua alimentação. Não bebiam vinho, mas leite de
burra, líquidos ácidos derivados da cidra (produto da fermentação
de frutos selvagens) ou cerveja (obtida a partir da cevada e do
trigo). Utilizavam a manteiga e o toucinho e não conheciam o
azeite. Ingeriam papas de aveia e fogaças de cevada, leite
coalhado, e não o pão de fermento da cultura do Mediterrâneo. «O
pão e o vinho permitem ao homem selvagem tornar-se civilizado»,
22
lemos na Epopeia do Gilgamesh, citada por Massimo Montanari no mesmo
livro32. Estes alimentos, ricos em conotações simbólicas,
constituíam uma parte importante da alimentação e foram
identificados com a carne e o sangue de Cristo no sacrifício da
eucaristia. Segundo Caroline Walker Bynum, a eucaristia é a única
festa sagrada33. O pão integra muitas refeições relatadas nos
textos litúrgicos e está associado à vida activa, enquanto o vinho
está relacionado com a vida contemplativa. O fermento, princípio
activo da panificação, associa-se metaforicamente às paixões e à
ausência de sacrifício. Cada área do mundo teve o seu grão: o
sorgo no continente africano, o arroz na Ásia e o milho na
América. No Antigo Testamento o pão é sinal de providência divina, e
no Novo Testamento é o divino por excelência.
Não é de espantar que os alimentos que surgem mais
recorrentemente na obra vicentina sejam o pão e o vinho, seguidos
pela carne. A confirmação da importância destes alimentos é-nos
dada pela boca do Ratinho do Auto de D. André34, ao vir do Norte a
Lisboa visitar o pai, quando com orgulho lhe indica que na Beira
não lhe falta a comida:
«Nunca, Deos louvado
me faltou lá pão e vinho,
nem a carne nem o pescado» (195-197).
34 Maria José Palla, Auto de D. André, Leitura, Apresentação, Regularização doTexto, Notas e Glossário, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
23
Relativamente ao pão, um critério convoca a nossa atenção: a
presença de cereais. Enquanto uma parte do mundo depende do cereal
propriamente dito, a outra desconhece as formas de transformação.
Os Romanos usaram todos os cereais, mas privilegiaram o trigo.
Na época em estudo, o pão era essencialmente fabricado com trigo,
cereal caro, muito apreciado, mas não acessível a todos: «cuán
granado viene el trigo/nuestro amigo» (229-230). O trigo era o
cereal por excelência: o pastor Gonçalo consola a pastora
Madanela, «eu hei-de ter muito trigo/e hei-de de ter a ti» (363-
364). Quando a produção de trigo era insuficiente, Portugal
importava-o da França, da Inglaterra, da Alemanha e de Castela. No
campo, em momentos de escassez, era substituído por castanhas e
glandes35. Embora o pão pudesse ser fabricado com grande variedade
de cereais, a falta de trigo era sinónimo de fome36. O milho dito
«maiz» chegará da América no início do século XVI37. Quando Gil
Vicente escreve no Auto da Fé que o milho era semeado nos rios,
trata-se certamente de milho painço. Para o historiador A. H. de
Oliveira Marques, «o milho na Idade Média era o actual milheto, ou
milho-miúdo, ou então milho-painço»38. Na opinião de Louis Stouff,
historiador da alimentação, o consumo de pão branco é um
privilégio dos ricos: «l’hiérarchie se définit par la couleur du
pain que les gens mangent et par la qualité de ce qu’ils
boivent»39.
Cedo surgiram tratados sobre o pão e os cereais. Em meados do
século XVI, Jean-Baptiste Bruyerin, médico e sobrinho do médico
leonês Symphorien Champier, chamado à corte de Francisco I,
dissertou no livro De Re Cibaria sobre os diversos grãos de farinha e
24
variedades de pão40. No nosso corpus o pão é muitas vezes citado
como sinónimo de comida em geral, o pão de cada dia. «Quant au
pain, il est le symbole de la nourriture par excellence», diz
Madeleine Lazard num artigo sobre imagens culinárias nas comédias
francesas do Renascimento41:
«Plus d’un pain manger
l’ayant appris à voyager
les Itales et les Espagnes
hautes et basses Allemagnes» (Les Escoliers, Perrin).
Com efeito, o pão era a alimentação por excelência para os
ocidentais e constituía a comida mais valorizada42. Encontramos
várias ocorrências da palavra «pão» como sinónimo de alimentação
em geral. Temos vários exemplos, Artada pergunta a Julião se tem
fome, «quieres pan?» (677); Constança confessa ao marido, quando
este regressa de barco, que ficou tão magoada quando ele partiu
que «juro-vos que de saudade/tanto de pão não comia» (IND 472-
473), ou as palavras de Cristo no Auto da Cananeia:
«Faze-nos mercê do pão
do nosso sostentamento» (345-346).
No Novo Testamento, o mau rico nem sequer dá migalhas de pão a
Lázaro (Lc 16, 21). «Nemigalha» é uma expressão muito comum na
época de Gil Vicente que significa «nada43. Os animais têm fome,
mas não há comida, e eles «se fartam das migalhinhas» (CAN 599).
25
Encontramos uma ocorrência muito curiosa em relação aos Judeus
na Farsa de Inês Pereira, quando o casamenteiro judeu diz ao companheiro
Vidal que são feitos da mesma massa ou da mesma raça, tomando o
cereal como símbolo da matéria:
«tu judeu e eu judeu
não somos massa d’um trigo?» (430-431).
Os Judeus comem o pão ázimo, o mazzot, o pão não levedado,
simbolizando privação e purificação, não encontrado na obra
vicentina, se bem que tenham sido eles que começaram a levedar o
pão. As mulheres hebraicas fabricavam o pão sem levedura (Gn 18,
6), e o israelita infiel foi obrigado a privar-se de pão (Lv 26,
26).
O pão de festa aparece no Clérigo da Beira, peça representada na
véspera de Natal. Francisco associa a regueifa, um pão fino,
próprio da Páscoa ou do Natal segundo as regiões, a esse momento
festivo: «já a minha mãe tem tascada/a regueifa do bautismo» (61-
62). Piero Camporesi escreveu O Pão Selvagem, um ensaio sobre a fome,
a miséria e a falta de comida provocada por doenças, em momentos
em que não havia pão e em que as pessoas eram capazes de comer
carne humana44, daí o título do livro. Na verdade, houve épocas em
que os ocidentais foram obrigados a recorrer ao canibalismo.
Massimo Montanari diz-nos que na Idade Média o pão atravessa os
documentos de uma maneira obsessiva, e que as terras para cultivar
eram «terras para pão», o que nos comprova Gil Vicente45 a propósito
das terras de Coruche:
26
«Oh, que matos pera pão,
que vales pera açafrão,
e canas açucaradas» (JDB 47-49).
Nos primeiros mistérios medievais a representação da última ceia
foi um dos episódios mais relevantes do ciclo narrativo da vida de
Jesus. Esta cena foi-se afirmando certamente pelo seu carácter
pitoresco e dramático, com a denúncia do traidor e a anunciação do
Calvário. Tudo indica que este episódio se tivesse desenrolado na
noite precedente ao dia em que Jesus foi crucificado, na véspera
do sabat, numa sexta-feira (cf. Mt 26, 17-20; Mc 14, 12-17; Lc 22,
7-18). Foi nesta refeição divina que Jesus instituiu a eucaristia,
momento da transubstanciação. O cálice da eucaristia havia sido
preconizado no sangue da circuncisão, como vemos em muitos
pintores, nomeadamente em Vasco Fernandes46. O corpo e o sangue de
Jesus, simbolizados respectivamente pelo pão e pelo vinho, são
consagrados e oferecidos em sacrifício. No Novo Testamento, o apóstolo
João afirma que «a carne de Cristo é um verdadeiro alimento» (Jo
6, 35-48). André Green nota justamente que «nos evangelhos a
destruição do corpo de Cristo, ainda que provisória, não é
mencionada, nem tão-pouco a do pão durante a incorporação»47. A
ceia mais famosa é aquela que Leonardo da Vinci pintou para o
refeitório da Igreja de Nossa Senhora da Graça em Milão, em 1447,
onde o pintor deu grande valor ao texto bíblico e ênfase ao gesto
dos apóstolos.
Na Tragicomédia da Serra da Estrela, Gonçalo não quer que a mulher
escureça a trabalhar ao Sol: «não quero que vás mondar/não quero
27
que andes ao sol» (366-367). O paradigma de beleza era uma pele
branca e rosada. Marta Dias, a mansa, deseja proteger-se. O chapéu
de palma aqui referido é, por certo, idêntico aos que sobejamente
observamos em iluminuras:
«Tendes sombreiros de palma
muito bons para segar
e tapados pera a calma?» (FEI 732-734).
No entanto o pão era necessário a todos, e os camponeses têm de
lutar contra o tempo meteorológico para que todos tenham que comer
e têm de sofrer com o estado atmosférico, sempre hostil: «Ora dá
palha sem grão/ora não dá grão nem palha» (AGR 148-149) ou ainda,
«que tempere a invernada/e leixe criar o trigo» (AGR 104-105).
Na peça Juiz da Beira, vários queixosos pedem ajuda jurídica. Ana
Dias queixa-se de um homem que abusou da filha, «e o trigo era
creçudo/e foi-se a ela» (JDB 183-184) e «era o pão onde os
achei/mais alto que é essa vara» (203-204). O cereal encobria os
amantes, a filha e o namorado. Numa outra peça, uma mulher casta é
pura como o pão: «limpia como el trigo/que se coge a buen placer».
A multiplicação do pão é relatada no Breve Sumário da História de Deus:
«farás destas pedras todas/ pão de calo» (952-953). No dia
seguinte ao da multiplicação dos pães, episódio presente nos
quatro evangelhos, sendo o texto de João o mais importante (VI, 1-
13), Jesus convida os Judeus a guardar o pão para a vida eterna.
Sem o compreenderem, eles evocam o maná, o pão dos anjos. No
entanto Jesus afirma que a alimentação do tempo da salvação não é
28
o maná mas o pão de Deus, aquele que desce do céu e dá vida ao
mundo, e acrescenta que ele é esse próprio pão. Pão da vida (Jo 6,
41; 48-51) é o termo aplicado a si próprio no discurso que prepara
a instituição da eucaristia: «porque é fartura infinita/é chamado
panis vitae» (657-658), diz Prudência a propósito de Jesus no Auto de
Mofina Mendes.
Na Farsa dos Almocreves assistimos a uma brincadeira, o Fidalgo goza
com o Capelão por estar rouco depois de ter ingerido açorda, um
prato pesado, e estabelece uma comparação entre um animal grande e
forte com comida que empanturra. Esta crítica vem a propósito do
Fidalgo tentar ajudar à missa em latim e desconhecer essa a
língua:
«tendes essa voz tão gorda
que pareceis alifante
depois de farto d’açorda» (161-163).
O pão, tal como a roupa, também se oferece. O Bailarino do Juiz da
Beira oferecia pão à sua amada «eu lhe trazia das bodas/sempre o
capelo atestado/de figos de carne e pão» (705-707). Na Farsa de Inês
Pereira, Pêro Marques também tem um presente alimentício para Inês,
oferta-lhe peras, criando uma simbologia para os dois nomes, o
dele e o dela. A pêra lembra uma chama e pode evocar o primeiro
fruto. Na Exortação à Guerra, Aquiles apela à pobreza, pois é preciso
economizar para fazer a guerra:
«deveis vender as taças
29
empenhar os breviários,
fazer vasos das cabaças,
e comer pão e rabaças» (481-484).
Como José Labaredas apontou, o ciclo do pão está patente no
teatro vicentino48. Este ciclo pode abranger o período a partir do
arranjo da terra até ao cultivo do cereal, à época das colheitas e
ao seu fabrico. Dom Duardos, nobre apaixonado, indo ao moinho,
também participa na feitura do pão, assim como Dom Rosvel,
disfarçado de Juan de las Brozas, tem a mesma tarefa, «ir por leña
y al molino/traer mato para el horno/y aun cocer» (VIV 467-469).
Temos ainda os pratos cozinhados com pão, todos eles, como
constataremos, ainda hoje confeccionados. Comecemos pelas migas.
Nas ocorrências de migas é difícil destacar o nível social. O
Viúvo da comédia do mesmo nome, dirige-se a Dom Rosvel referindo a
comida do pobre: «cena, cena dalde, el pan,/y migas a gran
hartura/con del ajo» (559-601). Num outro sentido, Margarida no
Auto Pastoril Português escondeu uma imagem de Nossa Senhora num feixe
de lenha e oferece migas como recompensa a quem a descobrir: «mas
é pera adivinhar/e quem quer que o acertar/eu a fartarei de migas»
(407-409). Aqui as migas são uma recompensa. Não encontrámos em
Gil Vicente a palavra broa, citada no Cancioneiro Geral bem como no
Auto de Vicente Anes Joeira e na Farsa do Físico de Jerónimo Ribeiro. No
Cancioneiro Popular Português temos quatro ocorrências da palavra migas,
seis de filhós, quinze de bolos e a palavra açúcar só existe em
relação ao amor49.
30
Nas peças cómicas, Gil Vicente graceja por vezes com os
alimentos, mas sempre com contenção, com uma espécie de respeito
que não encontramos no teatro francês da época. Na Floresta de Enganos
(1536), uma personagem a quem chamam doutor, com a idade de
sessenta e seis anos (de cor negra?), estuda um livro de leis
quando surge uma moça. Ela deseja brincar com ele, dar-lhe uma
lição e ensiná-lo a amassar pão. O nosso dramaturgo diverte-se a
estabelecer uma comparação entre o saber manual e o saber
intelectual. As duas personagens combinam a hora do encontro,
entre as nove e as dez. Ele deve assobiar ou tossir para se
anunciar, artifício que encontramos muitas vezes no teatro e que
presenciamos no Auto da Índia, ou mais tarde na ópera. A Moça compraz-
se em achincalhá-lo (a palavra negro aparece várias vezes), tira-
lhe o hábito de doutor e veste-lhe roupa de padeira, fraldilha e
beatilha e obriga-o a peneirar:
«Quero-vos dar uma lição.
Tomai aqui com esta mão
ora andai assi ao redor.
Ah! isso vai muito loução» (601-604).
Está assim o Velho quando chega uma Velha que não entende o que
se passa: «haveis mister farelos/ou que peneirada é essa»? (677-
678). Mas, quando observa um homem de leis mascarado de mulher,
critica o seu desvario em «ser doutor e padeira» dizendo-lhe:
«No baldo achareis, doutor
31
essa negra amassadura,
ou na Sagrada Escritura? (690-692)
Que mau livro é o alguidar
e que letras anciãs» (697-698).
Aqui Gil Vicente reprova mais uma vez os velhos, cita o alguidar
das feiticeiras e das misturas, coloca cada um na sua profissão na
sociedade e opõe o saber livresco ao saber empírico. Fazer pão é
uma tarefa primordial de iniciação aos mistérios da terra.
Françoise Desportes indica-nos no seu importante livro sobre o pão
que em quase todas as representações iconográficas com padarias
posteriores ao século XIV se encontra uma mulher50. Mas seria mesmo
a mulher que amassava o pão nessa época? Em Gil Vicente, quem
fazia a comida eram as mulheres. Não quer dizer que seja sempre
assim como, vimos no início.
4.1.Leite e mel
Leite e mel são dois alimentos muitas vezes citados na Bíblia para
designar a terra prometida e de abundância. Em conjunto,
simbolizam uma oposição ao deserto, e aparecem pela primeira vez
no Livro do Exodo (Ex 3, 8). Constituíam a base da alimentação dos
Hebreus, na origem um povo nómada, ideia repetida várias vezes no
Auto da Ressurreição: «a terra que mana o leite e o mel» (264), e «a
terra que mana o leite e mel/que nossa herança que de Deos
herdamos»? (268-269) e ainda «se bem entendermos nossas
profecias/não vinha a fartar os corpos de mel» (282). As
personagens divinas comem o que há de melhor. O mel é um alimento
32
sagrado, um dos primeiros alimentos do homem, que ganhou logo uma
conotação benéfica. Isaías, vestido de pastor, extasia-se com o
alimento de Jesus:
«El su nombre es Maria
que desvia
de ser tú la madre dél;
y el hijo Emanuel
manteca y miel
comerá como yo decia» (570-574).
O mel é um alimento ideal para os bebés porque é natural e
assimilado rapidamente. No Auto da Visitação o Vaqueiro entra no quarto
da rainha, que acabara de dar à luz e vai oferecer-lhe os seus
produtos:
«Mil huevos y leche aosadas
y un ciento de quesadas;
y han traído
quesos, miel, do que han podido» (105-108).
Branca Anes deseja comprar na feira: «eu queria uma
pucarinha/pequenina pera mel» (FEI 742-743). Temos ocorrências que
nos levam à cena bíblica em que Jonas estendeu a ponta da vara num
favo de mel e deu-se conta que tinha pecado. Este gesto levou-o a
ser condenado: «provei ansiosamente com a ponta da vara que tinha
na mão um bocadito de mel; e eis que devo morrer por isso? Aqui me
33
tens, morrerei». No texto vicentino encontramos uma ocorrência
alusiva a este episódio. O enforcado pensava que iria comer um
manjar divino antes de morrer:
«Dixe-me, com São Miguel
irás comer pão e mel
como fores enforcado» (BIN 792-794).
Segundo a concepção bíblica, o pão e o mel constituem alimentos
não concebidos pelo Criador; o mel não pode ser dado em ablação a
Iavé (Lv 2, 11), e o pão não pode ser fermentado. Relembremos que
o marido de Constança, antes de partir, lhe deixara mel (IND 66).
Os vícios foram muito criticados pelos artistas da época,
nomeadamente Hieronimus Bosch foi um dos mais incisivos. Na Mesa
dos Sete Pecados Mortais no Museu do Prado, este pintor ilustra vários,
nomeadamente a preguiça. Gil Vicente ao evocá-la compara-a ao mel:
«não há i favo de mel/tão doce como a preguiça» (JDB 618-619).
Para David, superiores ao mel, só as palavras de Deus que lemos
nos Salmos: «oh quão doces são as tuas palavras ao meu paladar!
Mais doces do que o mel à minha boca!» (sal. 119-120). Relembremos
que Jesus Cristo, depois de ressuscitado, comeu um favo de mel
oferecido pelos discípulos.
5. O vinho
O vinho tem sido exaltado em todas as civilizações. É uma bebida
muito consumida desde os Egípcios, como o ilustram pinturas
fúnebres, apesar de a bebida local ser a cerveja. O povo hebreu
34
exaltou o vinho no Antigo Testamento, nomeadamente no belo poema
«Cântico dos cânticos», do rei Salomão: «beije-me ele com os
beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho» (1
1, 2), ou «a tua estatura é igual à palmeira, e os teus peitos aos
cachos de uvas» (7, 7). O vinho tem uma função erótica neste poema
e é um termo de comparação muito elevado. No Novo Testamento o vinho
aparece tanto como exemplo positivo como maléfico. Jesus cita nas
Parábolas a vinha e as folhas de videira para exemplificar e
enriquecer o seu discurso.
Os Gregos serviam-se do vinho para libações, para a alimentação
e como bebida para acompanhar os repastos. No entanto é com os
Romanos que o vinho é exportado para os países conquistados,
tendo-se tornado um dos agentes da romanização. Na cidade de
Pompeia, foram encontradas várias tabernae onde era vendido vinho.
Os Árabes, no início, bebiam vinho, mas com o nascimento do
Profeta o vinho foi proibido pelo Corão.
Na obra vicentina esta referência ao pão e ao vinho é recordada
por um eremita cuja condição o obriga a consumir apenas água, pão
e vegetais (a carne só era permitida em dias de festa, e nem
sequer em todas as ordens religiosas). Temos dela um exemplo na
célebre ocorrência da Tragicomédia da Serra da Estrela quando um padre
deseja abandonar a religião e tornar-se um homem mundano, pedindo
pão e vinho em abundância, uma perdiz e um prato exótico.
O vinho tem vários campos semânticos: é um néctar, mas pode,
degenerando, ser propício a combinações simbólicas contraditórias.
É uma bebida recorrente no nosso corpus, pois na época bebia-se
muito. Temos condenações do vinho na obra vicentina e palavras
35
para qualificar as pessoas que bebiam demasiado, tais como
«bebarro» e «almude».
Portugal foi um afamado produtor de vinho. Aliás bebia-se muito
vinho em toda a Europa, e conhecem-se muitas canções da época
sobre o vinho, nomeadamente canções de taberna francesas e
inglesas. Uma casa burguesa deveria ter pão e vinho, tanto para os
senhores como para os criados. A pessoa de mais elevado estatuto
social era a primeira a beber. Segundo Salvador Dias Arnaut, no
século XV as mulheres bebiam mais do que os homens51, pois a ração
quotidiana de vinho para o convento de Vila do Conde foi de um
litro e meio por religiosa52.
De Henrique da Mota, poeta, dramaturgo, juiz e comerciante de
vinho, podemos ler poemas e diálogos em honra do vinho. O poema V,
listado pelo historiador Neil T. Miller, é dedicado a João Ruiz de
Sousa para que «falasse por ele ao Conde, seu sogro, e a Jorge de
Vasconcelos, seu cunhado, sobre o dinheiro que não lhe pagavam dos
vinhos que lhes vendeu para uma armada» lemos na rubrica. No poema
VII organiza um elogio do vinho que pode beber-se sempre e até
demasiado. É interessante a combinação de vinho com fruta, de que
temos notícia pela literatura e pelas artes plásticas:
«É uma coisa muito sã
para os corruptos ares,
nos dias caniculares
o beber pela manhã
Atouguia ou Lourinhã.
Quem não tiver Caparica
36
sobre pera ou maçã
e o resto é coisa vã,
em salvo está quem repica»53.
Gil Vicente faz uma apologia do vinho no Auto da Festa54 quando o
vilão Janafonso vai bebendo enquanto fala:
«Não há i tal coração
como depois de beber» (p. 110).
O vinho é importante no teatro porque está associado ao tempo de
Carnaval e às peças cómicas. Nas Cantigas de Escárnio e Maldizer, aparece
como uma felicidade para o paladar e um bem para temperar a
comida. Henrique da Mota, escreveu poemas e farsas publicados no
Cancioneiro Geral, que seguiam o tempo ritual do ano, sobretudo o da
época carnavalesca, evocando inúmeras vezes o vinho. Na Lamentação do
Clérigo, peça datada por Eugenio Asencio depois de 1514, o vinho é o
tema principal. As povoações de Atouguia e da Lourinhã são citadas
mais uma vez55. A peça começa deste modo:
«Ai, ai, ai, ai e farei
ai, que dores me cercaram
ai de mim, onde me irei?
Que farei triste mesquinho
com paixão,
tudo leva mau caminho
pois que vai todo o meu vinho
37
pelo chão.»
E assim acaba:
«Todo o género honrado,
em que virtude consiste,
ajudai a chorar o triste,
que jaz aqui entornado.
E pois eu por meu pecado,
para tanto mal fiquei
para sempre chorarei.»
A associação do clérigo ao vinho em forma de planctus, o «seu
melhor amigo», está próxima do pranto medieval, como no Pranto de
Maria Parda, datado de 1522, e em muitas farsas francesas. No Pranto
do Clérigo o protagonista é um padre cuja amante é uma negra do
Congo, uma criada inocente acusada pelo patrão, que acaba por sair
vitoriosa no fim da peça. Henrique da Mota evidencia o concubinato
do clérigo, elemento de inspiração goliarda. Este tema é
recorrente na obra vicentina, na qual encontramos clérigos que não
desejam exercer o seu ofício (Clérigo da Beira), que querem mudar de
profissão (Frágua de Amor), que têm amante (Auto da Barca do Inferno) ou que
morrem de amor (Auto dos Físicos). Na Lamentação da Mula, uma outra peça de
Henrique da Mota, um animal queixa-se da sua condição. Os outros
comem e bebem, mas a mula é obrigada à abstinência:
«Linguado, perdix, coelho,
38
e em fim,
muito branco e vermelho,
e eu em palheiro velho
por ruim»56.
Voltando ao nosso corpus, Maria Parda, paradigmática figura de
Quaresma, queixa-se do corpo martirizado pelo tempo (braços,
gengivas, lábios) e pela falta de vinho:
«oh vinho mano, meu vinho,
que má hora te gostámos» (23-24).
O texto deste lamento carnavalesco repleto de brincadeiras
escatológicas e irreverências não poderia ter sido escrito depois
da Inquisição de 1536 ou da Contra-Reforma. Relata a história de
uma mulher idosa, que pragueja, blasfema e não efectuou nenhum
feito extraordinário, personificação do anti-herói. Gil Vicente
insere neste pranto um calendário do tempo: Advento, Carnaval,
Quaresma, Páscoa e Ascensão. Temos uma obra sobre a ausência de
vinho, e não sobre a morte de um rei ou uma lamentação amorosa. A
personificação da Quaresma através de uma velha era frequente, e o
testamento no fim é comum a estas peças. Maria Parda evoca a missa
seca, sem a consagração do cálice, pois não há vinho. Maria Parda
não bebe vinho porque entrou em período de abstinência, no entanto
diz «ainda ontem bebi a mantilha/que me custou dous cruzados» (15-
16), e não se consola de não poder beber vinho: «fiai-me um gentar
de vinho/e pagar-vos-ei em linho» (176-177). Maria conhece um
39
local perto de Lisboa conhecido pelo seu vinho famoso, Pedra da
Estrema (325), onde será capaz de ir toda nua só para poder beber.
Tudo é possível pois trata-se de uma peça carnavalesca.
Curiosamente, não aprecia o vinho de Monção. O de Azóia não é
evocado apesar de muito conhecido e exportado para França e para a
Flandres. Gosta do vinho verde e do vinho rosé, de clarete e de
vinho branco, exportado para a Inglaterra, a Holanda e o mundo
hanseático: «i’eu sempre dar no fito/num vinho claro rosete./Oh,
meu bem, doce palhete/quem pudera dar um grito!» (78-81). Gosta
especialmente do vinho de Malvasia, o bom vinho da Idade Média na
Europa e informa-nos ainda sobre a localização das tabernas em
Lisboa57 e de algumas regiões vinícolas na Europa do tempo.
A peça desenrola-se perto do Dia de Ramos ou nesse mesmo dia:
talvez seja por isso que existem ramos verdes às portas. Os vinhos
da Candosa têm reputação negativa e parecem ter grande teor em
álcool: «são diabos pera os ratos/estes vinhos da Candosa» (365-
366), afirma Pêro Vaz na Farça dos Almocreves. Na Tragicomédia da Serra da
Estrela, Rodrigo afirma que Felipa é vaidosa porque lhe disse,
ridiculizando-o, «que me cheiras a Cartaxo» (437), subentendendo-
se que bebeu um mau vinho, e sabemos que existe um outro mau
vinho: «é como bafo da Arruda» (CLB 754).
Numa outra peça, a regateira Branca Anes queixa-se do marido,
«que é melhor para beber/que não pera maridar» (VIV 644-645),
admitindo que os alcoólicos são maus amantes. Uma outra personagem
vicentina, o vilão Janafonso, evoca as regiões de vinho: Landeira,
Ribatejo, Pederneira, Barreiro, Chamusca, Cartaxo, Alhandra,
Alcochete, Golegã, Tomar, Almeirim, Santarém e Aveiro. Mas quem
40
vindima? O amigo de Aparício «pisou uvas no lagar», e Fernando, o
negro da Frágua de Amor, vindimou em Castela:
«nova uva já maduro
já vindimai turo turo» (FRA 256-257).
Os falsos camponeses também são obrigados a fazer vinho. D.
Rosvel tem de «vindimar y cocer lino/hacer vino y poner torno/si
es menester» (470-471) e ouvir o viúvo a dar-lhe ordens:
«cava la viña luego
sin reproche
bien cavada y adobada
y trae cepas para el fuego» (VIV 702-705).
O poeta António Ribeiro Chiado dá-nos a conhecer, na Prática dos
Compadres, os vinhos de Monção, Campolide e Caparica. Recuando no
tempo, pela leitura do Leal Conselheiro sabemos que o rei D. Duarte
dissertou sobre a forma de beber vinho, aconselhando vinho aguado
e advertindo contra os seus excessos. Vejamos: «e o vinho, se o
bever, seja razoadamente aguado, porque se é forte, dá maior
trabalho ao estamago em no cozer e degerir, e acrecenta sede, per
que nom se pode bem soportar com pouco beber»58 e ainda «bever
vinho, o mais do tempo, com duas partes d’agua»59.
Francesc Eiximinis também discorreu sobre o vinho e os seus
perigos, sobretudo em relação às mulheres60. No Livro de Cozinha da
Infanta D. Maria o vinho surge unicamente como medicamento, na receita
41
para as dores de dentes de D. Luís de Moura. Na Farsa dos Físicos, como
veremos a seguir, os médicos proíbem vinho a João Calado, o
clérigo apaixonado, enquanto Brásia pergunta insistentemente, «e
dar-lhe-ei eu puro o vinho?» mas os médicos desaconselham-no
vivamente, «não senão água tal/entendeis, cozida com rosmaninho»,
responde-lhe Mestre Filipe (267-268).
Não encontramos referência à cerveja na obra vicentina, bebida
muito apreciada pelos Egípcios. É a bebida medieval na Europa, em
especial em Inglaterra: «chaque foyer consommait environ un gallon
de bière par jour, la boisson naturelle de tout Anglais»61.
A este propósito, gostaríamos de chamar a atenção para uma
magnífica pintura no Museu do Louvre, L’Homme au verre de vin, exposta
durante muito tempo no departamento da pintura espanhola do Museu
com a etiqueta «Peinture portugaise?». De facto, até há pouco
tempo foi considerada uma obra portuguesa do século XV. No entanto
a tábua está actualmente exposta na Sala Jean Fouquet, no mesmo
museu, e é considerada uma pintura francesa. Neste painel
deparamos com um homem representado de frente a segurar num copo
de vinho e com um bocado de queijo e pão em cima de uma pequena
tábua à sua frente. Segundo Jean-Louis Flandrin, no Norte da
Europa não era muito comum associar estes três alimentos pelo que
seria interessante analisá-los para determinar a região de origem
e poder atribuir o quadro. É possível, inclusive, que se trate de
uma das primeiras representações de um copo de vidro. Num outro
quadro mais tardio, o Homem com Copo de Vinho de Martem van
Heemskerk62, distinguimos um retrato de família alegórico em que o
pai ergue o copo de vinho para nos saudar, à esquerda do quadro, e
42
a mulher, à direita, tem o filho mais pequeno ao colo numa posição
imitando a Virgem e o Menino; um rapaz e uma rapariga brincam com
cerejas, símbolo do sangue de Jesus e temos uma maçã dividida em
cima da mesa com pão, queijo, pêra e noz. O pecado foi cometido, e
o futuro comprometido.
43
6. A carne
«Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem
cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que
costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame
que aqui há muito e dessa semente e fruitos que a terra e as
árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão
nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes que
comemos».
A carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita ao rei D. Manuel em 1500
e só publicada em 1817, mostra-nos a curiosidade com que os
Portugueses viam os outros povos e como lisonjeiam uma outra forma
de comer, a dos Tupiniquins. Mas, de facto, a região era rica em
caça e pesca. É curioso que a carne de porco não seja citada. Será
uma ausência propositada?
Nas leis de Moisés, intervenientes nos cinco livros da Bíblia e na
Tora, existem normas alimentícias, em especial em relação à carne. A
carne de porco é interdita nas religiões judaica e muçulmana.
Encontrámos no nosso corpus, além de porco, carneiro63, vaca,
borrego, coelho, lebre, perdiz, capão, bode, veado, novilho,
ganso, galinha, pato e perdiz, os enchidos morcela e chouriço.
Segundo os estudos que conhecemos, não faltou gado em Portugal no
fim da Idade Média, e a carne mais dispendiosa foi a de carneiro,
vindo em seguida a de vaca, segundo João José Alves Dias64. O
carneiro é um animal sagrado para os Cristãos, Judeus e
44
Muçulmanos. A carne começa a diminuir de consumo e a ser mais rara
na segunda metade do século XVI.
Maria José Azevedo Santos estudou os alimentos contidos no Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria e verificou que galinha vinha em primeiro
lugar (29,2 %), seguida de coelho ou láparo (12,5 %), de carneiro
ou porco fresco (8,3 %), de perdiz (8,3 %) e de vaca (4,2%)65.
1
? Jean Bottéro, La Plus vieille cuisine du monde, Paris, Audibert, 2002.
2 Maria José Palla, Do Essencial e do Supérfluo, Estudo Lexical do Traje e Adornosem Gil Vicente, Lisboa, Estampa, 1992.
3 «Manger et Boire au Portugal à la fin du Moyen Age», in Banquets etmanières de table au Moyen Age, Centre universitaire d’études et derecherches médiévales d’Aix, Sénéfiance n.º 38, 1996, pp. 95-123; «Amesa é uma construção simbólica, comida e devoção na pinturaportuguesa do Renascimento», II Encontro Interdisciplinar daUniversidade Nova de Lisboa, 1998, pp. 483-497; «Cozinhar é contaruma história. O imaginário alimentar em Gil Vicente», in Actas doQuinto Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas,Universidade de Oxford, organização e coordenação de T. F. Earle,Oxford-Coimbra, 1998, pp. 1187-1200; «Comer em Portugal no fim daIdade Média - texto e imagem», in Universitas Gratiae, Lisboa, 29 deJunho de 1995; «A alimentação em Portugal no limiar do MundoNovo», in À Volta da Mesa, Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional, 26 de Junho - 4 de Julho de 2004; «O combate entre oCarnaval e Quaresma no ‘Auto dos Físicos’ de Gil Vicente», inAnuário de Estudos Filológicos, Universidad de Extremadura, 2006, vol.XXVIII, pp. 229-247. Livre de cuisine de l’Infante Maria du Portugal, traduçãode Maria José Palla, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de EstudosMedievais, 2008.
4 Livre de cuisine de l’Infante Maria du Portugal, tradução de Maria José Palla,colaboração de Georges Carantino e de Madeleine Maupetit, prefáciode Maria José Palla, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos
45
No outro trabalho da mesma autora, Jantar e Cear na Corte de D. João III, um
estudo de dois livros de cozinha do rei (1524 e 1532) conservados
na Torre do Tombo, a historiadora relata que encontrou os
alimentos divididos em quatro partes: a carne e o toucinho, a
caça, o pescado e as galinhas. A carne ocupava o primeiro lugar66.
Medievais, 2008. 5
? Le Viandier de Guillaume Tirel, dito de Taillevent, edição crítica dobarão Jérôme Pichon e Georges Vicaire, Genebra, Slatkine Reprints,1967.6
? Un Petit traité de cuisine écrit en français au commencement du XIVe siècle, edição deLouis-Claude Douët d’Arcq, Bibliothèque de l'Ecole des chartres,XXI ano, 5.ª série, vol. 1, Paris, Dumoulin, 1860, pp. 214-216. 8 Massimo Montanari, Food is culture, traduzido do italiano por AlbertSonnenfeld, Nova Iorque, Columbia University Press, 2006.
9 «Pour une psychologie de l’alimentation contemporaine», in Annales,ESC, 1961, n.º 16, pp. 977-986.
10 Le Règne de Taillevent, livres et pratiques culinaires à la fin du Moyen Age, Paris,Publications de la Sorbonne, 1997.11
? Ibidem, p. 210.12
? Histoire de l’alimentation, direcção de Jean-Louis Flandrin e MassimoMontanari, Paris, Fayard, 1996.
13 José Labaredas, Coruche à Mesa e Outros Manjares, Lisboa, Assírio &Alvim, 1999. 14
? Maria Luísa Martins defendeu uma tese de mestrado em 2009 sobre aalimentação em Gil Vicente: «A alimentação do corpo e da alma» em Gil Vicente», Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009, dactilografada.15
46
A carne de vaca consumia-se cozida, em pastel ou para cuscuz. No
Tratado de Cozinha, do século seguinte, do cozinheiro Domingos
Rodrigues, o carneiro ocupa o segundo lugar. A carne citada por
Gil Vicente aparece raramente num prato confeccionado, à parte o
«desfeito». Pode ser vendida na feira67, ter sentidos literários ou
a influência de contos, do folclore ou de provérbios. É difícil
? Daniel Arasse, Le Détail. Pour une histoire rapprochée de la peinture, Paris,Flammarion, 1992.
16 Massimo Montanari, «Valeurs, symboles, messages alimentairesdurant le Haut Moyen Age», in Médiévales, 1983, n.º 5, pp. 57-66, p.57.
17 Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa daMoeda, 1973, cap. 212.
18 Chris Meads, Banquets set forth, banqueting in English Renaissance Drama,Manchester, Manchester University Press, Manchester-Nova Iorque,2001.
19 Simone Doranson, «Festins shakespeariens insolites ouinterrompus», in Boire et manger au XVIème siècle, in Actes du Colloque duPuy-en-Velay, estudos reunidos e apresentados por Marie Viallon-Schoneveld, Saint Etienne, Publications de l’Université de SaintEtienne, 2004, pp. 211-225.
20 No teatro de Juan del Encina a sardinha é símbolo de Quaresma.Mas que sardinha? Se seguirmos o historiador Julio Caro Baroja,pode ser o porco estripado do Carnaval. Corominas diz existir umarelação entre sardinha e Carnaval, enterra-se a sardinha no fim doCarnaval.
21 Jacqueline Bouche, «L’alimentation à la cour des derniersValois», in Pratiques et discours alimentaires à la Renaissance, direcção deJean-Claude Margolin e de Robert Sauzet, Actes du Colloque deTours, Março de 1979, Paris, G. P. Maisonneuve et Larose, 1982, pp.161-176.
47
estudar a carne de uma maneira precisa porque os animais de então
eram diferentes dos de hoje, havendo espécies que desapareceram.
Robert Delort é da opinião que «pour les animaux des siècles
passés, qu’il n’est plus possible d’observer, et que les hommes de
jadis ne regardaient pas avec les mêmes yeux ni les mêmes
préoccupations qu’aujourd’hui, la démarche scientifique de base
22 José A. de Sousa Filho, «La civilisation à la française d’unpoint de vue culinaire: le cas de Michel de Montaigne», in Boire etmanger au XVIème siècle, in Actes du Colloque du Puy-en-Velay, estudos reunidos eapresentados por Marie Viallon-Schoneveld, Saint Etienne,Publications de l’Université de Saint Etienne, 2004, p. 66.
23 Lorenzo Dias, La Cocina del Quijote, Madrid, Alianza Editorial, 2003.
24 Mireille Hugon, «Rabelais, diététicien plus que gastrolâtre», inLittérature et gastronomie, Le Magazine littéraire, n.º 480, Novembro de 2008,pp. 68-69.
25 Mês de Janeiro, «Cena de jantar», Da Costa Hours, in Latin
Illuminated by Simon Bening (1483/1484-1561), Bruges, c. 515, Pierpont
Morgan Library, Nova Iorque.
26 As notas da obra de Gil Vicente são enumeradas por Paul Teyssier.
27 A. H. de Oliveira Marques, «A mesa», in A Sociedade Medieval Portuguesa,Lisboa, Sá da Costa, 1981, p. 7.28
? Danièle Becker, «De la musique dans le théâtre religieux de GilVicente», Arquivos do Centro Cultural Português, Fundação CalousteGulbenkian, vol. XXIII, homenagem a Paul Teyssier, 1987, p. 478.29
? Willy Pasini, Nourriture et amour, Paris, Editions Payot & Rivages,1998, p. 15.
48
consiste à rechercher, avec des moyens modernes, ce qu’il peut
subsister d’eux et des éléments de leur milieu»68. Este autor diz-
nos que somos pouco conhecedores do boi antigo e completamente
desconhecedores do boi medieval e que certos animais são tão pouco
conhecidos como os homens selvagens. No Auto do Purgatório, o Diabo
censura o Lavrador que vendia «o mais fraco cabrito» (237). A
30 Madeleine Lazard, «Images culinaires dans la comédie de laRenaissance», in Spectacle et image in l’Europe de la Renaissance, Centred’études supérieures de la Renaissance, Tours, 29 de Junho - 9 deJulho, de 1989, editado por André Lascombes, Leiden - Nova Iorque- Colónia, 1993, p. 99.
31 Massimo Montanari, La Faim et l'abondance, Paris, Seuil, 1995, p. 32.
32 Idem, ibidem, p. 24.
33 Fast, Feast and Flesh, The Religious Significance of food to Medieval Women,University of California Press, 1985. 35
? «O pão de trigo, entretanto, podia-se encontrar na EuropaOcidental, embora só como luxo dos potentados. Os pobrescostumavam comer pão de cevada ou de aveia, que eram cereais quese desenvolviam bem nos países nórdicos [...] O único país onde acomida à base de papas se manteve como expressão básica da dietaalimentar foi a Escócia», in Carson Ritchie, Comida e Civilização, Lisboa,Assírio & Alvim, 1995, p. 91.
36 Teresa-M. Vinyoles i Vidal, «La comida en la Barcelona gótica:necesidad primaria y rito social. Comida y alimentación en laBarcelona gótica, Museu d’Història de la Ciutat Barcelona», 15 deSetembro de 1994 - 15 de Janeiro de 1995, in Del rebost a la Taula,Barcelona, Museu d’Història de la Ciutat de Barcelona, Ajuntamentde Barcelona, 1994, p. 19.
37O termo «broa» existe no Cancioneiro Geral para designar o pão,certamente confeccionado com milho-miúdo.
49
carne de cabrito, apesar de dar excelentes leites, queijos e
manteigas, foi sempre desprezada69.
Isidoro de Sevilha (c. 570-636) consagrou um dos seus vinte
livros aos animais. Muitas raças de coelho, carneiro, gado bovino
e suíno desapareceram depois da Idade Média. Boécio, na Consolação da
Filosofia, descreve a ambivalência dos animais e dá como exemplo os
38 A. H. de Oliveira Marques, «À mesa», in A Sociedade MedievalPortuguesa - Aspectos da Vida Quotidiana, Lisboa, Livraria Sá da Costa,1981, p. 16.
39 Louis Stouff, «Ravitaillement et alimentation en Provence auxXIVe et XVe siècles», Paris, 1970, pp. 221-230, p. 228.
40 J. B. Bruyerin, De Re Cibaria, Lyon, 1560, t. XXIII.
41 Madeleine Lazard, «Images culinaires dans la comédie de laRenaissance», in L’Europe de la Renaissance, Centre d’études supérieuresde la Renaissance, Tours, 1989, editado por André Lascombes,Leyden - Nova Iorque - Colónia, 1993, p. 99. 42 Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, Histoire de l’alimentation,Paris, Fayard, p. 603.
43 Paul Teyssier, La Langue de Gil Vicente, Paris, Librairie Klincksieck,1959, p. 487.
44 Piero Camporesi, O Pão Selvagem, Lisboa, Estampa, 1990. 45
? Massimo Montanari, 1995, p. 71.
46 Circuncisão, da capela-mor da Sé de Lamego. Encomenda do bispo deLamego, D. João da Madureira, no Museu de Lamego, c. 1506-1511.
47 André Green, «Canabalismo», in Enciclopédia Einaudi, 30.º vol.,Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 93.
50
animais com os seus defeitos, valorizando a civilização cristã.
Por exemplo, o leão tanto pode representar o Diabo como Cristo. O
cordeiro é inocente e sacrificado. Existe uma concepção não
zoológica dos animais muito antiga; o animal é o produto de uma
visão totalisante do mundo. Na arte cristã o cordeiro representa
Cristo, é uma vítima virginal. O apóstolo João apresentou Cristo
48 José Labaredas, p. 143. 49
? Isabel Maria Grilo Redol Moita, «O doce nunca amargou: sabores,palavras e imagens na tradição e no Cancioneiro Português»,Mestrado de Estudos Românicos, dissertação para a obtenção do graude mestre em Literatura Tradicional e Oral, orientação daProfessora Doutora Ana Paula Guimarães, Fevereiro de 2004. 50
? Le Pain au Moyen Age, Paris, Olivier Orban, 1987, p. 83.51
? A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional-Casada Moeda, 1986 (introdução ao Livro de Cozinha da Infanta D. Maria dePortugal).
5252 Oliveira Marques, 1981, p. 16.
53 Obras de Henrique da Mota. As Origens do Teatro Ibérico, apresentação eestudo de Neil T. Miller, «Poema VII», Lisboa, Livraria Sá daCosta Editora, 1982, p. 389.
54 Para o Auto da Festa seguimos a edição do Conde de Sabugosa,Lisboa, Livraria Ferreira, 1909.55
? Ibidem, p. 397.
56 Ibidem, p. 422.
57 Rua da Ferraria, Rua de Cata Que Farás, Ribeira, Alfama, Rua dosFornos, Poço do Chão, Mouraria. Maria também é sabedora das regiõesde bom vinho. Para ela o melhor de todos é o de Malvasia (Chipre), degrande reputação internacional. Em Portugal, Maria prefere os de
51
deste modo: «eis o cordeiro de Deus», Ecce Agnus Dei (1, 29 e 36). O
cordeiro representa a pureza e o cristão fiel; o javali é a
antítese do cordeiro e está próximo do filho pródigo (Albrecht
Dürer). O carneiro é o pastor que encaminha as almas,
correspondendo a Cristo, forte e triunfante, emblema do cristão.
Caparica, Seixal, Madrigal, e os de termos de Alcobaça e Leiria.Também gostava dos vinhos de Abrantes, Punhete, Arruda, Alcochete,Alhos Vedros, Barreiro e Ribadavia. 58
? D. Duarte, Leal Conselheiro, edição crítica, introdução e notas deMaria Helena Lopes de Castro, colecção «Pensamento Português»,Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 367.
59 Idem, ibidem, p. 127.
60 Francesc Eiximinis, Llibre de les dones, edicição crítica de FrankNaccarato, Barcelona, Departament de filologia catalana, 1981, p.36. 61
? Les Paston, une famille anglaise au XVe siècle. Correspondance et vie quotidienneillustrées, choix et commentaires de Roger Virgoe, apresentação de Emmanuel LeRoy Ladurie, Paris, Hachette, 1989, p. 72.
62 Maerten Van Heemsterck, Pieter Jan Foppeszoon e a Sua Família, óleo sobrecarvalho, Kassel, c. 1530. 63 A carne mais referida e documentada nos textos catalães é acarne de carneiro (cordeiro castrado).
64 «Portugal do Renascimento à crise dinástica», in Nova História dePortugal, vol. III, direcção de Joel Serrão e A. H. de OliveiraMarques, coordenação de João José Alves Dias, Lisboa, EditorialPresença, 1998, p. 621.
65 «O mais antigo livro de cozinha português, receitas e sabores»,in Separata da Revista Portuguesa de História, t. XXVII, Coimbra, 1992, pp.
52
Na Idade Média os carniceiros abriam a procissão de «Corpus
Christi», em Coimbra e Évora. Nesta última cidade desfilavam além
dos carniceiros, os lagareiros, os caleiros, os ferreiros e os
teleiros70. É interessante a prática desta festa litúrgica em
relação à comida porque Gil Vicente escreveu em 1504 uma pequena
peça para exibir na procissão de «Corpo de Deus» chamada Auto de São
Martinho, onde um velho pobre implora pão e agasalho, e São Martinho
dá-lhe metade da sua própria capa.
O porco é um animal fortemente simbólico. Foi muito valorizado
no mundo romano – «carne doméstica mais apreciada e vendida, quer
fresca quer salgada, foi o prato emblemático do banquete», segundo
Inês de Ornellas e Castro71. No entanto é proibido aos Israelitas
pela lei de Moisés (Lv 11-7 e Dt 14-8) e aos Muçulmanos. Esta
63-95.
66 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear na Corte de D. João III, leitura,transcrição e estudo de dois livros de cozinha do rei (1524 e1532), Vila do Conde - Coimbra, 2002, p. 31. 67
? Sabemos por Maria José Azevedo Santos que na corte de D. Afonso Vos feirantes eram mulheres. 68
? Robert Delort, Les Animaux ont une histoire, Paris, Editions du Seuil,1984, p. 15.
69 Joaquim Romero Magalhães, «As estruturas de produção agrícola epastoril» in História de Portugal, vol. III, direcção de José Mattoso,Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 268.
70 Maria João Violante Branco Marques da Silva, «A procissão nacidade: reflexões em torno da festa do Corpo de Deus na IdadeMédia portuguesa», in Separata das Jornadas Inter e Pluridisciplinares, Actas I,Lisboa, 1993, p. 207.
53
proibição nunca foi posta em causa até hoje. Na religião judaica o
porco é proibido e mesmo o seu nome é evitado. O porco e os seus
derivados são marcas de cristandade que distinguem os Cristãos dos
Judeus e dos Mouros. Do corpo do porco tudo serve para o homem.
Sabemos que era abundante na época, os suínos existiam por todo o
país e reproduziam-se rapidamente. No Alentejo eram alimentados
com glandes e em Entre-Douro-e-Minho com castanhas. Rui Fernandes
é da opinião de que em 1531 os carros de bois do circuito de
Lamego traziam os animais «mais saborosos do reino por serem
cevados com castanhas»72. O castanheiro é a planta selvagem que
produz a melhor carne e a melhor fruta pois produz o visco, que
atrai os animais terrestres e os voláteis.
O porco, como todos os animais, possui uma simbologia dupla no
cristianismo medieval. Por um lado, faz-nos pensar num animal
abjecto, que se alimenta de animais infectos e cadáveres, que vive
num enquadramento ignóbil e só pensa em comer. Simboliza a
luxúria. É esse o sentido que Duarte emprega em relação a Gonçalo
quando lhe chama «guarda-porcos» (CLB 298), o estatuto mais baixo
na escada social. Mas, por outro lado, é o companheiro de Santo
Antão, o primeiro santo eremita, tentado várias vezes pelo Diabo.
Em meados do século XI, as relíquias de Santo Antão foram
transferidas para a vila de Saint-Antoine-en-Viennois, importante
local de peregrinação.
Segundo Michel Pastoureau, o javali foi-se tornando num animal
doméstico nos séculos XII e XIII73. Na ordem hospitalar antonina
começaram-se a criar porcos, que os religiosos deixavam divagar, o
que ocasionava acidentes. Os porcos eram tão abundantes que nos
54
dias de procissão tinham de ser proibidos nas ruas, tanto em
Portugal como em França. No entanto, sabe-se que Philippe, filho
do rei Luís VI, o Gordo, foi morto em 1131 por um porco esfomeado à
procura de comida. Michel Pastoureau é da opinião de que a
passagem do porco selvagem ou javali ao porco domesticado foi obra
dos antoninos. Santo Antão é representado nas artes plásticas com
o seu porco familiar, como podemos ver em quadros de Pieter
Bruegel e no de Hieronimus Bosch do Museu Nacional de Arte Antiga.
Nas ocorrências de porco no nosso corpus não se verifica ser um
animal de exclusão nem um animal consumido na alimentação. No
documento de 1524 estudado por Maria José Azevedo Santos foi
comido assado74. Uma ocorrência pejorativa é aquela proferida pelo
Viúvo em relação a Dom Rosvel disfarçado de vilão: «que haces acá,
porquero»? (VIV 433). Na Farsa dos Físicos, foi proibido, tal como
outros animais, por Mestre Felipe: «nem porco, nem cação» (336).
Pode estar em correspondência com a feitiçaria, «eis aqui a mama
de porca (FAD d 18), também se oferece, «e trago-lhe dous
novilhos/e uma porca e assi/que lhe já criei dous filhos» (TA 519-
521), ou é objecto de carinho, «e dous porquinhos cilhados/bé,
como estão pasmados/quantos feitos que trazeis» (ALM 571-573).
Até agora pensava-se que o porco entrava na alimentação das
classes inferiores, mas, mais recentemente, Bruno Laurioux
mostrou-se reticente a esta ideia: «le mythe du porc familial
semble pour le moins à revoir»75, pois nos últimos trabalhos de
arqueologia verificou-se que o porco foi uma carne pouco
consumida, tanto pelos camponeses (pouco) como pelos senhores
(mais). É um animal selvagem que se esconde: «este animal se
55
recolhe/nas matas mais esconditas/e lá lhe vão dar feridas», lemos
no Auto das Fadas (628-630). Gil Vicente refere o porco-espinho,
«destes há poucos na terra/deve ser muito estimado/da fortuna, e
namorado/sem ter guerra» (640-643)», na mesma peça, designação
imprópria de ouriço-cacheiro. Em determinada época os porcos
selvagens eram difíceis de distinguir dos javalis selvagens.
A carne de vaca era consumida pela nobreza em dias magros e
estava relacionada com o mundo às avessas. A carne de boi ou vaca
do banquete do casamento de Isabel de Espanha e de Afonso, o filho
de D. João II, não foi ingerida pela corte mas dada em bodo, aos
pobres. Neste banquete o carneiro e o porco foram escolhidos para
a mesa dos senhores, e a carne de vaca e a carne salgada para a
dos criados. É estranho que no documento de 1524 figure o consumo
de vaca em primeiro lugar. Não seria para os criados? A serra da
Estrela é-nos revelada rica em gado na obra vicentina, «mandará à
vila de Cea/quinhentos queijos recentes/todos feitos à candea»
(606-608), exclama a alegoria da serra da Tragicomédia Pastoril da Serra
da Estrela. Ou mais ainda sobre a riqueza desta serra:
«E das vacas mais pintadas
e das ovelhas mais meirinhas,
pera dar apresentadas» (16-18).
«E mais trezentas bezerras
e mil ovelhas meirinhas
e duzentas cordeirinhas
taes, que em nenhumas serras
56
não nas achem tão gordinhas» (609-614).
Existia em Portugal uma indústria da manteiga, gordura muito
utilizada no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, onde o azeite é pouco
referido (o mesmo acontece com Gil Vicente, que só o menciona para
alumiar).
Gil Vicente mostra no seu teatro os animais de uma forma
carinhosa, referindo-os mais para ilustrar ideias do que para a
alimentação. A personagem do Inverno no Auto dos Quatro Tempos ao
falar dos animais dos senhores evoca a cabana do menino Jesus tal
como a conhecemos pelos Evangelhos Apócrifos:
«Los borregos de mis amos
la burra, hato y cabaña
con la tempestad tamaña
no sé adó los dexamos» (165-168).
O carneiro era uma carne superior (podia ser servido ensopado,
desfeito ou à maneira mourisca), assim como a caça e os animais de
pelos ou de penas, e além disso é um animal alegórico que
representa Jesus e aparece muitas vezes na última ceia. Foi a
carne consumida pelos senhores e pelos religiosos nos mosteiros.
Surge no segundo capítulo do livro de Domingues Rodrigues. O
carneiro tem sido considerado o animal mais completo em várias
civilizações: fornece-nos inúmeras riquezas, como leite, queijo,
57
lã, carne, couro, fumeiro, cornos, ossos e tripas. Por vezes ajuda
o homem como animal de carga.
Cortar a carne constituía uma tarefa muito importante76. De
acordo com o Livro de Receitas de D. Maria, a carne era cortada em pedaços
muito finos para facilitar a ingestão: «assim como a cortam para
comer». Segundo Fernão Lopes (1380-1460), o rei gostava da carne
«desfeita, assada e cozida»77 ou seja, as três maneiras de preparar
a carne. E Garcia de Resende conta que a última refeição de D.
João II foi constituída por miolo de pão embebido num molho de
carne78 e sabemos pelo livro de Maria José Azevedo Santos sobre D.
João III que havia na corte por ordem decrescente, perdizes,
pombos, coelhos, leitões, patos e lebres.
O Livro de Caça de Gaston Phoebus (1405-1410) dá-nos a conhecer
imagens dos preparativos para a caça, com o treino dos cães, as
campainhas, o tocar da buzina, as roupas dos senhores e dos
criados e as diversas armadilhas proibidas, usadas no entanto
pelos mais idosos, para lhes facilitar a caçada. Este livro
compreende oitenta e sete imagens com pormenores realistas. É
interessante relacionar estas cenas com as do início do Clérigo da
Beira, se bem que cem anos antes, quando assistimos a uma caça ilegal
com um furão, uma caça clandestina, já antiga, efectuada pelo
padre e o filho: «que cães e furão que temos/pera tempo de mester»
(90-91). Isidoro de Sevilha já gabara os furões que ajudavam os
caçadores na caça ao coelho. Utilizavam-se campainhas para fazer
sair os coelhos das tocas e em seguida chegavam os cães. Esta de
caçar era proibida em Portugal e em França. As Ordenações Manuelinas
58
proibiam as armadilhas, a caça com laços, cães, furões e bestas.
No Clérigo da Beira podemos ler o que diz o Clérigo:
«Venham-me os cães
ao redor e o furão
mas o coelheiro não» (160-162).
Na mesma peça, Gonçalo, filho de um lavrador e afilhado do
clérigo, entra em cena com um cesto com marmelos, uma lebre, dois
capões e limões (d. 227), seguido de Duarte e de Almeida, moços do
paço, de origem campesina. O Livro de Caça também ilustra a caça com
armadilhas que lemos na obra vicentina: «pois morri
dependurado/como tordo na buiz». Este animal serve de isco e
ostenta uma plumagem escura. Também se caçava com rola ou pomba
para apanhar aves de rapina: «que trago já os olhos fora/como rola
de negaça».
A divisa do Decálogo «tu não matarás» constitui uma proibição
relativa ao homem e a qualquer animal vivo. Depois do dilúvio e de
uma nova civilização, ou mesmo de uma segunda criação, o homem
poderá comer carne (Gn 9, 3), mas sem sangue. A caça é proibida
porque o animal não tem defesa, a sua morte é comparável a um
assassinato. Os animais têm de ser caçados às escondidas: «cacemos
nós dois coelhos/que isto à noite se fará» (CLB 12-13). Gonçalo
receia a caça: «com dous arráteis de vaca/escusaríeis a caça» (CLB
153-154).
Os Fenícios chamavam saphan ao coelho, nome que parece ter origem
na palavra Hisphania, ou Hispânia. Foi a partir dessa região que o
59
coelho foi conquistando a Europa. Robert Delort pensa que este
animal pode ter uma origem ibérica79. Em Roma designava o sexo
feminino, como vemos na iconografia romana. O senhor tinha
facilidade em vigiar o seu domínio, e o coelho não podia provocar
muitos danos, mas o camponês já sofria mais dificuldades, pois os
animais estragavam-lhe as culturas. Era caça fácil de conquistar,
mas selvagem: «este cativo animal/e tão vivo namorado/que há-de
morrer a cajado».
Lucas Cranach pintou muitas cenas cinegéticas. Lineu já
distingue o coelho da lebre. Existem diferenças e semelhanças
entre eles. A lebre desloca-se num território vasto, enquanto o
coelho gosta de permanecer fechado. Num efeito teatral muito
cómico, a lebre, animal muito ágil, ficou presa num chapéu, diz-
nos Gonçalo: «um fidalgo terrastão/com uma lebre no capelo» (CLB
362). A lebre e o capão é carne apreciada pelos senhores. Existem
receitas de coelho em Platino e no Livro de Cozinha de D. Maria. A lebre
é muito recorrente na obra vicentina, e vemo-la mais propriamente
associada à corte. «Indo ver à corte uma lebre» (CLB Arg.), ou «e
esta lebre pera haver/dinheiro dos cortesões» (CLB 232-233), e
ainda «vendes a lebre, vilão?» (CLB 334).
Existe uma receita de pastel de lebre ou empada de lebre no Livro
de Cozinha da Infanta D. Maria, alimento especialmente propício à
melancolia nos tratados de Robert Burton e de Thimothy Bright. Na
Farsa dos Físicos, Gil Vicente também sabe que tanto a lebre como o
empadão são nocivos à melancolia. Brásia, sempre em luta contra os
médicos, cozinhara para João Calado, doente de amor, «pastel de
lebre» (FIS 331).
60
Os pastores vicentinos são personagens literárias. Conhecemos os
seus jogos, as suas preocupações e os seus amores. São seres
aparentemente simples que vivem dos produtos da natureza, com uma
relação privilegiada com os animais, como também vemos na pintura
e na gravura. Vivem fora da cidade, no seu território. O gado não
lhes pode escapar, tal como Cristo, o pastor dos cristãos, não
pode perder o seu rebanho (Jo 10, 1-18, e Lc 15, 3-37). Têm
relações afectuosas com os animais que no nosso corpus não são
comidos. O pastor Gil é feliz: «solo quiero canticar/repastando
mis cabritas» (APC 34-35). Os animais de Mofina Mendes morreram,
ela não tem sorte, como o seu nome indica. Paio Vaz, o seu amo,
pergunta-lhe «que tal andam os meus porcos?» (MOF 414), e ela
responde «dos porcos? Os mais são mortos» (MOF 415), e as vacas?
«Das vacas, morreram sete/e dos bois morreram três» (MOF 411-412).
Verificamos a presença maioritária das aves e dos animais de
caça. No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, no qual em primeiro lugar
encontramos a galinha, o que nos confirma o que comem os senhores.
A caça tinha uma utilidade social, e a mais considerada era a
carne de caça com penas, como em Itália80. A jovem pensa vender os
pássaros na feira mas depois arrepende-se «pois digo-lho a
verdade/pássaros hei-de vender/olhai aquela piedade?», porque tem
compaixão. No entanto, Vicente, espantado, pergunta-lhe:
«E a mesa de meu senhor
irá sem ave de pena?» (FEI 853-854).
61
Num texto de Bruno Laurioux, historiador da alimentação na Idade
Média, é-nos relatado que Santonino escreveu no seu diário
redigido durante um itinerário culinário através da Itália (1485-
1487), que no momento em que viu na mesa frangos assados não pôde
comê-los, pois só o bispo tinha o privilégio de comer voláteis81.
A perdiz, apreciada desde a Antiguidade, era cara. Gil Vicente
atribui-lhe um valor de suborno. No Auto da Barca do Inferno, o Diabo
reprova o Corregedor dizendo: «o amador de perdiz!/quantos feitos
que trazeis?» (607-608). E a alegoria da Verdade, no Auto da Festa, a
propósito de corrupção, cita-a novamente: «se tu diante lhe
deitas/duas dúzias de perdizes/e outras semelhantes penitas/farás
que as varas direitas/se tornem em cousas fritas» (p. 101)82. O
frade da Frágua de Amor confessa a Cupido, «e eu peitarei perdiz/e
dous pares de cruzados» (589-590) e Valério diz-nos no Auto dos Reis
Mago: «En frente de las narices/a perdices/andarás, prometo à mí»
(MAG 259-261).
As aves eram raramente servidas aos pobres mas os senhores
faziam grande consumo, especialmente em dias de festa. Frei
Narciso, um padre mundano, aprovaria ser um senhor e ter um
«escravo ocupado/que tenha cuidado/dos cavalos e falcões (AGRA
626-625), imagem paradigmática do senhor.
O galo e a galinha surgem unicamente num contexto narrativo e
simbólico, e não directamente ligados à alimentação. Temos o
feminino e o masculino. O primeiro associado à mulher, à
dependência e o segundo ao homem, à dominação, ao canto e ao
tempo. Em Quem Tem Farelos ouvem-se os galos: «cacara cá cacara cá
(346), e Aparício exclama «pois os galos cantam já» (349). Os
62
galos marcam a hora como um relógio, e o Escudeiro guia-se por
eles:
«Meia noite deve ser
já fora razão comer
pois os galos cantam já» (QTF 347-349).
O galo encontra-se muitas vezes associado ao diabo e à magia. No
Auto das Fadas a feiticeira Genebra Pereira diz, quando está a fazer
as suas misturas:
«Mas galo negro suro
cantou no meu monturo» (FAD 200).
Cupido ao tirar da frágua um par de galinhas com tenazes (FRA d
539) queixa-se de não poder comer galinha, o que não é comum, pois
Gil Vicente raramente se refere à ingestão de alimentos:
«Com dinheiro que leixais
não comerei eu galinhas» (FIN 803).
«E sem galinha nem galo» (JDB 608).
O pastor Gregório gaba-se de ter campos férteis, «y mas trienta
e dos gallinas». Para os seus senhores? A galinha vale pela
criação, pelos ovos, e a sua gordura em caldo é um alimento para
os doentes, com propriedades anti-inflamatórias. A galinha ou o
63
pato chamando os filhos assemelha-se à evocação natural da chamada
de Cristo às almas. A galinha é o tributo da caridade em algumas
obras da Idade Média. O galo representa em Juan del Encina o fim
do Carnaval, o seu canto marca o início da Quaresma:
Pedruelo tem:
«Três gallos y dos gallinas
traxe puerrros y sardinas
por comer» (162-164).
O Negro da Frágua de Amor não quer ser «cativo como galinha» (287)
e opta ser «branco como ovo de galinha» (441). Finalmente fica
branco, mas continua a falar língua de preto. A galinha era a
carne do «manjar branco» na Europa, mas Gil Vicente escolheu veado
para a confecção deste prato na Farsa dos Físicos, «e um pouco de manjar
branco/de pospena de veado» (250-251). No Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria são abundantes os pratos cobertos por ovos, para se
assemelharem ao ouro. No documento de 1524 estudado por Maria José
Azevedo Santos aparece a referência ao ovo de galinha, D. João III
e a sua corte comeram 113 dúzias em 22 dias, certamente muitos
deles em doces.
Passando ao pato, animal um pouco à parte porque é um animal
psicopompo, condutor das almas dos mortos, vivendo entre a terra e
a água. No Auto da Feira, Serafim interroga-se, «esta feira é
chamada/das virtudes em seus tratos?» (744-745), assim como Marta,
«das virtudes! e há aqui patos?» (744-746). Julião, o nosso falso
64
hortelão, pede uma comida que não é da sua condição, «O Dios,
quien tuviera ahora/para os agasajar/un buen pato» (931-933),
evocando uma comida de segunda ordem. A personagem do Parvo, num
discurso associado ao mundo às avessas, faz a oposição entre pato
e santo no Auto da Festa:
«Oulá! Dai-me vós piquena.
Ó renego de São Pato» (p. 116).
E Berzabu no Auto da Lusitânia, tem uma linguagem meio demoníaca meio
mágica:
«e as moelas dos patos
e os miolos do cão
e o galo de Pilatos» (LUS 735-737).
Com o discurso do Clérigo deduzimos que o pato era barato:
«Porém coma de pato
senão uma talhada,
inda que custe barato» (CLB 39).
«Si queres miracula ver
torna lá c’um par de patos,
que se os capões vão baratos
estes assi hão de ser» (CLB 414-417).
65
Os ovos de pata também estão do lado da desordem e não são
caros. A pobre Mofina não tem sorte quando faz castelos no ar:
«Do qu’este azeite que render
comprarei ovos de pata
que é a cousa mais barata
qu’eu de lá posso trazer:
e estes ovos chocarão
cada ovo dará um pato,
e cada pato um tostão,
que passará de um milhão
e meio, a vender barato» (MOF 459-467).
7. O pescado
No teatro vicentino o peixe não faz parte de uma refeição
completa, aparecendo sob formas variadas: alcapetor, arengue da
Alemanha, azevia, berbigão, cação, enguia, lagosta, lampreia,
mexilhão, moxama (atum coberto de mel), pescada, sardinha e solha.
Nas Cortes de Júpiter encontramos uma panóplia muito completa de peixes
utilizados em sentido metafórico, sob a forma de disfarce festivo
imitando pessoas importantes do tempo83. O estudo deste cortejo
oferece-nos uma boa oportunidade para conhecer as figuras da época
e a sua relação com o mar ou o rio. Na Farsa dos Físicos, temos
igualmente uma enumeração de peixes, em contexto alimentar, embora
proibidos, porque se está na Quaresma. Ficamos a conhecer
exactamente quais os peixes que podem ser ou não comidos durante
este período.
66
A figuração do peixe é alegórica; Cristo é um pescador, e a sua
representação inicial nas artes plásticas foi um símbolo em forma
de peixe. O Novo Testamento relata como Jesus alimentou uma multidão
benzendo cinco pães e dois peixes. Existem regras alimentares
consoante as religiões. A religião hebraica proíbe certos peixes,
como os que não têm barbatanas e escamas, ou os dois. A lista é
muito extensa. Os peixes com barbatanas e escamas, podem ser
comidos (Lv XI e Deu XIV). Os restantes são impuros. As barbatanas
são o equivalente das asas das aves e das patas dos animais
terrestres. A locomoção distingue os animais dos vegetais. Os
terrestres devem andar, os aquáticos nadar, e os pássaros voar. Os
animais marinhos que não têm barbatanas e que não se deslocam são
impuros (animais revestidos de uma concha), assim como os que têm
patas e andam (crustáceos). As escamas são opostas à pele dos
animais terrestres, como às penas dos pássaros. Um pássaro se tem
asas, voa, mas se vive na água em vez de viver no ar é impuro: o
cisne, o pelicano, a garça e a ave pernalta.
Nos períodos de abstinência o peixe era obrigatório para os
católicos, durante uma grande parte do ano, e constituía a
principal proteína para aqueles que viviam perto da costa. É a
comida ideal pois não contém luxúria. O peixe comia-se muito caro,
fresco, seco, fumado e salgado (o mais barato). Na Farsa dos Almocreves
o Fidalgo trata mal o Capelão, que não tem voz para cantar, não é
entoado, e dá-lhe um mau peixe «de dous anos salgado/o pior que há
no mar» (182-183). O peixe deteriora-se rapidamente e era
conservado com sal. O comércio de peixe deveria dar lucro, pelo
que lemos no Auto da Índia, quando Lediça diz ao Cortesão: «lançai na
67
sisa do peixe/e logo sóis remediado» (LUS 49-50). Sabemos que a
pescada era muito apreciada84, tal como o salmão, a lampreia, a
enguia do mar, o sável e o salmonete. Na corte de Afonso V comiam-
se linguados, solhas, azevias, salmonetes e ostras. A ostra era
abundante e barata85. O salmão era copioso na Normandia e o arenque
nunca se desenvolveu em Portugal. A. H. de Oliveira Marques dá-nos
uma listagem dos peixes consumidos em Portugal no final da Idade
Média: «Um dos peixes mais consumidos pelos portugueses, na Idade
Média, parece ter sido a pescada. Sardinhas, congros, sáveis,
salmonetes e lampreias viam-se também na mesa de todas as camadas
sociais. Ruivos, pargos, atuns, trutas, solhas, besugos, cações,
rodovalhos, gorazes e muitas outras espécies eram também alvo da
culinária do peixe. Também se comia carne de baleia e de toninha.
Mariscos e crustáceos eram frequentes»86.
Maria José Tavares Santos em Comer com D. João III, faz um estudo
sobre os peixes ingeridos na corte portuguesa no mês de Novembro
de 1524, e são diversos os peixes encontrados: sardinhas, choupas,
azevias, muges, cavalinhas, pescadas, linguados, salmonetes,
besugos, bordalos, gorazes, pargos, linguados, litões, sáveis,
congros, santolas e ostras.
A sardinha foi um peixe muito consumido por todas as classes
sociais. Garcia de Resende é de opinião que a sardinha «era muita
e sabia muito bem e custava muito pouco»87 e Jacques Bonnadier
chama-lhe o «pão do mar»88. Gil Vicente, tal como outros autores,
refere este alimento diversas vezes89. Pensamos que se trata dum
peixe popular90 que corresponde à Quaresma no Sul da Europa e ao
arenque dos nórdicos «feito arenque d’Alemanha» (JUP 299). É tanto
68
o peixe ingerido pelos místicos franciscanos como à mesa dos reis.
Amâncio Vaz o marido da mulher brava, elogia a mulher:
«Outro bem terás com ela
quando vieres da arada
comerás sardinha assada» (FEI 604-606).
Existem muitas ocorrências de sardinha: Pedrinho, o menino da
Comédia de Rubena, está muito orgulhoso porque tem sardinha inteira
(RUB 798). Faziam-se empadas com sardinhas, um acepipe muito em
voga na época, com sardinhas e uma massa de farinha de trigo,
feita com água e sal. Este prato foi muito apreciado pelo rei D.
Afonso V. O escudeiro do Juiz da Beira também conhecia este alimento,
que oferecia à namorada: «as empadas de sardinhas,/bacios de
camarinhas,/a talhada do melão» (501-503).
Alguns versos lembram-nos o mundo representado no quadro a Nave
dos Loucos de Hieronimus Bosch, onde vemos um peixe pendurado numa
árvore, «este negro chilra mais/que salmonete em figueira (NAO
608-609), ou mesmo no discurso do Parvo no início da Tragicomédia da
Serra da Estrela:
«pedem-lhe em Coimbra cevada
e ele dá-lhe mexilhões
e das solhas em cambada» (EST 114-116).
Curiosamente a lampreia surge uma vez no nosso corpus, assim como
no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Mestre Filipe está atento à
69
alimentação do clérigo doente e proíbe-lhe vários peixes próprios
a provocar a melancolia:
«congro, lampreia, tubarão
não coma de meu conselho
inda que estivesse são» (FIS 337-339).
Os pastorinhos amigos de Cismeninha na Comédia de Rubena brincam
uns com os outros e falam de comida. Joane gaba-se do pai e mais
uma vez a comida é uma referência para as crianças:
«tomará um peixe tamanho
assi como o nosso tanho
e não vo-lo hei-de dar» (RUB 787-789).
Gil Vicente quase não alude ao bacalhau, que sabemos muito
abundante. Limitava-se às zonas costeiras e era a comida da
abstinência durante o Advento e a Quaresma. Gil Vicente cria uma
polifonia com quatro versos, em que num deles aparece o bacalhau:
«contrabaxas: bacalhaus» (JUP 256). Por outro lado, o cação
deveria ser um peixe muito corrente pois aparece muitas vezes. No
Clérigo da Beira a Velha gaba-se de ter ainda dentes para comer um
peixe raivoso, «ainda eu como co’elas/uma posta de cação» (751-
752), e Brásia evoca um peixe semelhante ao pargo, «cabeças de
alcupetor» (FIS 241), e obriga o padre a comer algo que lhe faz
mal:
70
«um focinho de cação
lhe tenho ali bem valente,
com seu caldinho, que é são» (FIS 542-544).
No Amadis de Gaula Oriana tem um viveiro de peixes em casa,
certamente para comer, gosta de os ver nadar. Os senhores tinham
viveiros para as épocas de abstinência: «Mais estimo ver nadar/los
peces de mi vivero» (GAU 170-171).
8. Fruta e legumes
Será a maçã o fruto proibido? Num sermão, Gil Vicente comenta
este dogma: «No quiero arguir si el fruto vedado/si era manzana, o
pera, o melon» (115-116). Sabe-se que isso se deve às diversas
traduções da Bíblia. De qualquer maneira, a maçã tornou-se o
arquétipo de todos os frutos e é ela que aparece normalmente na
literatura e nas artes plásticas. No Aparecimento de Cristo à Virgem do
retábulo da Madre de Deus, de Jorge Afonso (1515), no Museu
Nacional de Arte Antiga, Cristo surge depois da permanência no
Limbo. Adão aparece com a maçã na mão esquerda e Eva desenha-se
atrás dele. Neste caso, o fruto traduz a união entre os dois
evangelhos, tal como a presença de João Baptista. Michel
Pastoureau, num belíssimo artigo, fala-nos da boa e da má maçã91 e
da ambivalência dos frutos. A partir do momento em que Eva comeu o
fruto, o Homem foi obrigado a trabalhar. É interessante verificar
que dois momentos decisivos da História sagrada estejam ligados à
comida, tanto no Antigo como no Novo Testamento.
71
A fruta comia-se ao natural, seca, em conserva ou em doce. Gil
Vicente cita pouca variedade de fruta na sua obra: amora,
camarinha, castanha, cereja, figo, limão, laranja, maçã, marmelo,
melão, romã, tâmara e uva. O marmelo é citado várias vezes. O
Diabo no Auto da Feira vende marmelada, e Pedro, o pastorinho da
Comédia de Rubena, afirma ter muita marmelada. Segundo Sara Paston-
Williams, a marmelade, inglesa feita com laranja e limão é de
origem portuguesa e foi muito consumida em Inglaterra na Idade
Média92. Tratar-se-á de doce de marmelos, ou da verdadeira
marmelade? A marmelada era um potente anti-escorbuto. Nos barcos,
quando os marinheiros ficavam sem alimentos frescos e os biscoitos
se enchiam de vermes, comia-se muita marmelada porque curava. Há
várias receitas de marmelada no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria.
A ocorrência de laranja vicentina é possivelmente de laranja
amarga, aquela que D. Duarte, no Leal Conselheiro, desaconselha, com o
limão. A laranja doce só será trazida mais tarde. O árabe Albufeda
fez no século XIV uma descrição das laranjas de Sintra seria o
fruto amargo? Uma outra fruta, a cereja, é uma fruta de festa:
«Traze uma quarta de cerejas
e um ceiltil de briguigões» (IND 273-274).
Nas refeições festivas os frutos são mencionados associados ao
vinho. Bebia-se vinho e fruta antes e depois da refeição. Tratar-
se-ia de frutos cristalizados? Ou em geleia? Na Nave dos Loucos de
Bosch uma freira e um frade cantam música profana. Na mesa à
72
frente deles vemos cerejas e vinho. Estão a festejar num ambiente
de mundo às avessas.
Os figos eram abundantes, muito cotados e apreciados em
Portugal. São um fruto muito antigo. Por vezes colhiam-se duas
vezes por ano. Vejamos o ditado que Branca Leda cita no Pranto de
Maria Parda:
«Olhade, molher de bem,
dizem que «em tempo de figos
não há i nenhuns amigos
nem os busque então ninguém» (PRA 163-166).
Na noite de São João costuma comer-se um figo, fruto que tem a
forma da uma chama e que nos lembra o solstício de Verão e as
fogueiras. Os figos, como os outros frutos, têm uma simbólica
ambivalente. Da fruta conhecida no Ocidente o figo deve ser a mais
antiga e carregada de símbolos. Na Bíblia significa abundância. A
expressão «não valer um figo» significa não valer nada. Madanela,
ciumenta, diz para Gonçalo:
«Trás Felipa, que é aquela
que não no estima n’um figo» (EST 209).
O melão é sazonal e difícil de cultivar, pois necessita de calor
e humidade. Foi uma planta mal vista até muito tarde, até à horta
de Luís XIV, em Versalhes, onde ocupou um lugar importante pela
73
beleza e pela cor. O melão chegou do Egipto no século IX e era
difícil de digerir. Nesta ocorrência deve querer dizer duro:
«com’a casca de melão» (EST 166). Lediça lembra o tempo dos
alimentos próprios dos Judeus:
«As amoras e o trigo
vêm no tempo dos melões» (LUS 121-122).
O rei D. Duarte no Leal Conselheiro entre muitos conselhos adverte
contra a ingestão de legumes e aconselha não comer em demasia. Os
frutos e os legumes foram também desvalorizados pelos médicos
medievais, que aconselhavam cozê-los antes de serem consumidos e
Segundo Oliveira Marques, as classes superiores não os
apreciavam93.
Os legumes mais consumidos na época foram os seguintes, segundo
João Alves Dias:couves, espinafres, nabos, rábanos, rabanetes,
cenouras, beringelas, cebolas, alhos, brócolos, pepinos, espargos,
cogumelos, abóboras, ervilhas, lentilhas, grão-de-bico94. Teremos
tudo isto em Gil Vicente? Gil Vicente cita o agrião, a alface, o
alho, a avenca, a beringela, a abóbora, o pepino, a castanha, a
cenoura, a couve, o espinafre, a ervilha, a hortaliça, a lentilha,
a naba, o nabo, o rábano e a fava. Em tempo de penúria, estas
últimas, sucedâneas do pão, vinham da Bretanha95. Juliana, do Auto da
Feira, vende favas originárias de Viana. No interior do país,
comiam-se castanhas. No nosso corpus, o camponês queixa-se sempre
das dificuldades da vida do campo. Na Romagem de Agravados, o Vilão
chega mesmo a renegar a sua religião apesar das suas rezas. Duarte
74
afirma que Almeida cheira a nabo, o que quer dizer que é vilão,
que está perto do campo.
É curioso que Gil Vicente mencione apenas o açafrão, a alcaravia
e o cominho quando as receitas culinárias do fim da Idade Média
estão repletas de especiarias, de sabores e de cheiros. Do Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria constam variadas especiarias: cravo,
açafrão, pimento, gengibre, adubo, cominho, assim como seguintes
ervas aromáticas, coentro, hortelã, salsa e cheiros.
Quanto mais elevado é o nível social mais especiarias são
ingeridas e mais o leque é alargado. Os pobres utilizavam quase
unicamente a pimenta, herança de Roma. A historiadora da
alimentação Inês de Ornellas e Castro, na introdução à sua
tradução do livro de Apício, diz-nos que a pimenta e o cravo são
os condimentos preferidos dos Romanos96. Mas também usavam o
açafrão, o coentro, o cardomomo e o cravo de girofle.
No Velho da Horta assistimos a uma cena de um amor trágico entre um
velho e uma jovem, pertencente ao topos «amores desiguais», muito
conhecido pelas gravuras. Vemos desenrolar-se um episódio pungente
num jardim, que remete para um espaço sagrado, jardim esse
associado à expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Este local está
ornado com uma fonte que evoca o jardim das delícias. O velho
Fernandianes vê reflectido na água o seu rosto idoso próximo da
morte, ao contrário da figura de Narciso. Quem costuma olhar-se na
água são as jovens donzelas. A horta deste jardim corresponde à
apropriação de um local paradisíaco reconvertido num local de
transgressão. O jardim é o local onde se realiza o ideal cortês,
ponto recorrente nas artes visuais. O pretexto do encontro são as
75
ervas ou os cheiros, «vinha ao vosso hortelão/por cheiros pera a
panela» (42-43), diz a Moça, maravilhada com o perfume das
plantas.
As especiarias são conhecidas desde os comerciantes árabes e os
seus intermediários venezianos. Os pratos eram temperados com
muitos condimentos (cravinho, açafrão, pimenta, gengibre, canela),
e a eles estavam, em geral, associados ao açúcar, o vinagre e o
limão. Segundo Jean-Louis Flandrin, a variedade das especiarias
nunca foi tão abundante como entre os séculos XIV e XVI. Os
Italianos e os Ingleses apreciavam mais as carnes açucaradas e
agridoces do que os Franceses97. O amor pela comida ácida parece
ter precedido o gosto pelo açucarado.
O historiador Braamcamp Freire publicou o inventário da Infanta
D. Maria, documento muito importante para o estudo da história das
mentalidades, tanto no que diz respeito ao vestuário como à vida
quotidiana. Nesse documento são feitas referências à pimenta, ao
gengibre, à malagueta, à noz-moscada, ao cravo-da-índia, à canela
e ao pimentão. A mostarda melhora o gosto da comida e era de uso
corrente surgindo uma vez na obra de Gil Vicente:
«Vossa vida negra e parda.
Não lhe abastará comer
da vaca com da mostarda?» (FEI 850-852).
A noz-moscada aparece numa obra de um seguidor de Gil Vicente,
na peça Vicente Anes Joeira v. 102498. O açafrão corresponde ao estame da
flor de crocus sativos. Foi uma especiaria muito cara, Garcia de Orta
76
chamava-lhe açafrão-da-índia. Gil Vicente refere «campos pera
açafrão». No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria surge algumas vezes,
pensamos que tanto para dar sabor como para dar cor à comida. Em
Gil Vicente temos uma ocorrência de pimenta, trata-se de Filipa
Pimenta, o nome de uma velha do Auto da Festa, certamente para a
associar à volúpia o seu desejo de se casar.
Dois líquidos contêm um sentido simbólico muito forte no Auto da
Ressurreição onde há uma luta entre cristãos e judeus sobre a
ressurreição de Cristo. No momento em que a terra abala e Jesus
ressuscita, segundo a narrativa bíblica, tanto o azeite como o
vinagre se entornaram. No Auto da Barca do Inferno o vinagre pode
significar traidor: «por vinagre beiçudo, beiçudo» (270); e ainda
na mesma peça, «nem ficou vinagre, nem em que o deite» (145). O
azeite é tanto um símbolo cristão como judaico, e o vinagre
significa o vinho corrupto, é assemelhado ao infiel. Estes dois
elementos explicam que as duas religiões não se entendem:
«até o pichel que tinha d’azeite.
Fendeu-se-me um pote»,
quebrou-me tigelas
bacios, candeeiros, panelas
não ficou vinagre, nem em que o deite» (141-145).
9. Modos de comer
Observamos no teatro vicentino uma alimentação adequada às
idades e aos rituais de passagem. No Breve Sumário da História de Deus,
Satanás evoca o Antigo Testamento lembrando Adão e Eva, «comerão seu
77
pão com grande suor» (156) e recordando as palavras do Génesis «no
suor do teu rosto comerás o teu pão» (3,19) e como lemos na fala
do Mundo, na mesma peça, «semeai das favas, que haveis de
suar/comei dessa fruta amarga, montesa». No exórdio do Templo de
Apolo, o próprio Gil Vicente surge desculpando-se da imperfeição da
sua obra porque esteve doente e com febre evocando a extrema
pobreza de Adão e Eva, que não desfrutam sequer de lume para
cozinhar depois do pecado cometido:
«la hermosa Eva hacía
unas migas para Adan
sin agua ni sal ni pan
la nieve gelas cozía» (16-19).
Passando ao Novo Testamento, o pastor Brás, ao admirar-se com a
quantidade de ovos que comeu a Virgem depois do parto, exclama:
«Con esso se m’acordó/que cuando parió mi ama/chapuzada allí en la
cama/todos los huevos comío» (FE 256-259). Com efeito, os ovos são
um dos alimentos da mulher que dá à luz99, como podemos comprovar
no quadro Nascimento de São João Baptista do Museu Nacional de Arte
Antiga, obra de um pintor anónimo português de meados do século
XVI, onde uma serva segura num cestinho com ovos para oferecer a
Isabel, logo a seguir ao nascimento de João Baptista, sob o olhar
calmo do pai, à esquerda. Os ovos e o leite fortalecem e são
símbolos de felicidade eterna, e os pintores colocam-nos em
primeiro plano, marcando o nascimento e a fertilidade, como num
outro quadro, a Adoração dos Pastores do retábulo da Madre de Deus, no
78
Museu Nacional de Arte Antiga, onde distinguimos uma tigela,
certamente com manteiga, um recipiente com leite e, em terceiro
plano, um pastor com colheres de pau na mão. O Livre des simples
médicines aconselha a manteiga fresca aos doentes e aos fracos, que
também vemos representado muitas vezes em obras da época100.
Num outro contexto, numa cena de parto comovente, Rubena dá à
luz assistida por uma parteira que lhe dá a comer um doce, para
apaziguar a dor: «mordei neste maçapão/esforçai, rosa florida»
(280-281). O maçapão era um analgésico na época; é um bolo de
pasta de amêndoa pisada e açúcar, um doce que se servia nos partos
ou nas intervenções cirúrgicas, de que conhecemos uma receita no
famoso Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, inserida no caderno «Coisas de
conserva». Sara Paston Williams diz-nos que este foi criado em
Itália101. Segundo Sylvie Laurent, historiadora da Idade Média,
alimentava-se a parturiente com uma tigela de leite servida por
uma colher de pau, ou com um copo de vinho102. No Nascimento de São
Roque de Jorge Leal, exposto no Museu de São Roque, em Lisboa, uma
jovem serve um caldo à mãe do santo, deitada na cama, topos
recorrente em outros nascimentos. A sopa, alimento universal,
constitui o alimento quer do rico quer do pobre, e tanto como
convém em dias de festa como em dias de jejum103.
Os pediatras renascentistas cedo se interessaram pela
alimentação dos recém-nascidos e sobre ela escreveram tratados104. O
melhor alimento é o leite materno. O mel também é prescrito. No
entanto muitas famílias ricas recorriam a uma ama para amamentar,
o que era contrário ao benefício dos próprios filhos, segundo os
médicos. Na Comédia de Rubena a Ama diz «dai-me a criança e mamará»
79
(RUB 602) mas a Feiticeira tem cuidado com o leite: «primeiro eu
saberei/que leite é o vosso, amiga» (603-604). Gil Vicente poderia
conhecer tratados de alimentação de médicos europeus que incluíam
comida de recém-nascidos. Em Itália temos Paolo Ballardo (1494),
na Alemanha Mellinger (1491) e em França Vallembert, médico e
poeta. Estes médicos escreveram sobre o leite para o recém-
nascido, o aleitamento, a comida da ama e o seu comportamento
moral. Os bebés deveriam deixar de mamar com o surgir dos dentes105
e então o leite da mãe ou da ama seria substituído por papas. No
nosso corpus o bebé da pobre Rubena come papinhas de pão ralado
(RUB 635) e «depois de rebentarem os dentes/sopazinhas da panela e
leite fresco, coado» (637-638). Na mesma peça, as crianças comem
bolos, papas e mel. Cismena e Pedrinho têm uma conversa alimentar
a propósito da idade, do que comem e de quanto comem. Pedrinho e
Joane também falam de comida:
Pedrinho
«Eu comi papas aquesta» (774).
Joane
«E nós temos tanto mel
que trougue a nossa Isabel» (779-780).
Pedrinho
«Temos tanta marmelada
que minha mãe me há-de dar» (785-786).
80
A infância esteve muito tempo reservada ao Menino Jesus e à
Virgem Maria, a mãe de todos. A partir do século XVI começa a dar-
se mais importância às crianças, e elas têm mesmo uma determinada
maneira de vestir. Gil Vicente tem muito carinho com as crianças
como vemos na Comédia de Rubena, embora Philippe Ariès nos diga que
elas só foram mimadas muito tarde106.
O leite era considerado um alimento do espírito e da
inteligência do cristão, juntamente com o peixe. Existia um ritual
excepcional de comunhão de pão e de leite. Por vezes nos
sarcófagos pré-cristãos vemos pastores a mungir vacas. O leite na
doutrina cristã pertence ao mês de Março, a um momento de
renovação. Allen J. Grieco, autor do livro Table et tableaux, sobre a
relação entre pintura e alimentação, diz-nos que o tema da Virgem
a amamentar o Menino apareceu com o fim de persuadir as mães a
alimentarem os filhos. O leite de vaca era tido como perigoso e
susceptível de transmitir aos bebés as propriedades dos animais107.
Gil Vicente, a par dos pintores da época, faz a apologia do leite
da Virgem, pela boca de Cassandra na Comédia de Rubena:
«Yo, dias ha, que hei soñado
y barruntado,
que via una virgen dar
á su hijo de mamar,
y que era Dios humanado» (RUB 445-449).
Um outro tema recorrente nas artes plásticas e na literatura é a
recusa de Jesus do leite da mãe preferindo a cruz: «estando a
81
vezes mamando/tal via de quando en quando,/que no mamava a
sabor:/una cruz le aparecia,/que el temia/y llorav a y suspirava»
(CAS 492-497).
Os jovens fidalgos e os moços vicentinos passam o tempo a
pentear-se e a jejuar. Em Quem Tem Farelos? os moços de esporas
queixam-se de não ter que comer e Aparício diz a Ordonho, evocando
a penúria absoluta, «morremos ambos de fome/e de lazeira todo o
ano» (12-13), ou então «nem de pão não nos fartamos» (33), ou
ainda Aparício ao evocar a pobreza do amo exclama «ele não tem
meio pão». Mais adiante, na mesma peça, a Velha critica-o, «e,
demais, se não tens pão/que má hora começaste» (442-444). No Clérigo
da Beira, Gonçalo critica os rascões que só têm pão para comer:
«ora fiai de rascão
que farpa todo o pelote
e não se farta de pão» (CLB 37).
O pão acompanhado de alho, cebola, rabanete, tremoços ou favas é
comida dos camponeses e pode substituir a carne para os mais
humildes, como vemos na literatura e nas artes plásticas (O Comedor
de Favas de Annibal Carracci, 1583, Galeria Colonna).
«toma um pedaço de pão
e um rabão engelhado,
e chanta nele bocado» (QTF 58-60).
82
Os jovens ofereciam comida às namoradas tal como roupa. O
Bailador do Juiz da Beira ofereceu o essencial à amada como prova de
amor, «eu lhe trazia das bodas/sempre o capelo atestado/de figos,
de carne e pão» (705-708), uma refeição completa. Na mesma peça,
um Escudeiro «mandava-lhe a pada de pão, um bocado de pão (JDB
500).
O cereal continua a marcar o tempo. Para um casamento ser
próspero o casal deverá ser distinguido pelo cereal, «tendes vós
trigo/para nos deitar por cima?» ou «tendes vós aqui trigo/ pera
nos geitar por rila» (FIN 958), ou ainda «hulo o trigo que aqui
está» diz o Vilão à Velha no Auto da Festa. Ainda hoje este ritual é
praticado. O cereal é símbolo de abundância.
Mudando de cidade e de estatuto, o senhor na obra vicentina come
um desfeito ou um manjar branco, prato inicialmente elaborado com
peito de galinha. É um prato comum na Europa medieval e
renascentista existindo variantes quanto à sua confecção. A
receita de manjar branco que encontramos no Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria é confeccionada com o peito de galinha preta, diferente do
manjar branco francês ou inglês (com peito de galinha branca).
Neste livro a receita foi inserida no caderno de «Manjares de
leite», certamente pela cor. A cor deste prato podia ser muito
diversa, acontecendo haver receitas com duas ou quatro cores, e o
branco pode mesmo não existir. O desfeito, um guisado, também
figura no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Sabemos que o Vilão tem um
gosto diferente:
«Porque com duas sardinhas
83
fico eu mais satisfeito
que vós com o vosso desfeito,
nem com capões, nem galinhas,
não nos fazem mais proveito» (FES 733-734).
Na obra vicentina os velhos desejam muitas vezes aventuras
amorosas com pretendentes mais novos. Apaixonam-se e deixam de
comer. Fernandianes, o protagonista do Velho da Horta, prefere a
companhia de uma donzela a ir para casa comer com a mulher na
cozinha.
Segundo a tradição, oferece-se ao moribundo um caldo, ou tudo de
que ele gosta; é a chamada «última alegria do moribundo». Na
iconografia da morte da Virgem, episódio relatado nos Evangelhos
Apócrifos, surge frequentemente comida numa pequena mesa. Na
Miraculização do Cardeal Inglês, do mesmo ciclo, vemos em primeiro plano
uma tigela com grãos de romã, símbolo de abundância e de
eternidade. A romã tem 613 grãos, o mesmo número que encontramos
no Livro de Moisés. É um dos frutos ou plantas que simbolizava a terra
fértil de Israel. A última ceia é uma refeição frugal, magra,
salgada, pouco colorida, onde não existe nem prazer nem
abundância; situa-se no oposto do repasto de festa, colorido e
voluptuoso.
84
10.Da alteridade
Temos poucas ocorrências em relação ao Outro. Gil Vicente
evoca essencialmente uma alimentação cristã e ocidental. No
entanto, no Auto da Lusitânia (1532), mostra-nos em myse en abîme, na
representação de uma peça dentro do auto, o dia de preparação
do sabat, ritual que inicia com a aparição da primeira estrela
de sexta-feira rompendo o ciclo semanal. Trata-se de um ritual
preparado na véspera. Em geral, aprontam-se duas refeições,
uma para o jantar de sexta-feira (dia de apparatio), e a outra
para o almoço de sábado, pois, como sabemos, nesse dia não se
trabalha. Ao mesmo tempo que se preparam as refeições, várias
tarefas de limpeza são executadas, tanto domésticas como
corporais. Estamos num momento de regeneração. Esta cerimónia
tem uma estética na cor e no volume dos alimentos, com saladas
e legumes cozidos, beringelas, cebolas, pimentos e cenouras.
Este importante ritual judaico passa-se no seio de uma família
cujo pai é alfaiate, profissão comum entre os judeus em
Portugal e na Europa. Nesta família encontra-se tudo em
desordem e sujo. Lediça, a filha do alfaiate, sofre de
melancolia e está despenteada. O pai sujou o mantão. Menoba, o
filho mais novo da família, está a dormir. O nosso autor tanto
os reprova no asseio físico como em relação à alimentação.
Estão situados do lado do impuro. Lediça confessa que se
tivesse juízo mudava de religião e chamava-se Maria, Felipa ou
Guiomar. E lamenta-se do trabalho que tem e da mãe que está
possuída pelo demónio:
85
«Muito tenho por fazer
e não tenho feito nada.
Está logea por varrer
os meninos por erguer
e enha mãe ensobrada» (1-5).
A comida do sabat é uma comida carnuda, pesada e consistente.
Segundo Joëlle Bahloul, a carne de vaca é «incontestablement
l’aliment carné prédominant dans cette nourriture108. Esta carne
«sagrada» é a «viande privilégiée des temps forts de l’année
hébraïque»109, o modelo dos animais herbívoros:
«Berenjelas e pepinos
e cabra curada ó ar» (197-198).
Sabe-se que a carne de cabra era desprezada pelos cristãos e Gil
Vicente insinua assim que os cristãos comem a melhor carne. A
carne curada ao ar é certamente uma carne salgada ou fumada, da
qual foi retirado o sangue – separação do puro e do impuro (Gen 9,
4). É importante que não seja carne de porco. Esta família come
carne de cabra, feminino de cabrão ou bode, símbolo do povo
judaico, como vemos no Auto da Barca do Inferno e nas artes plásticas.
Nesta peça, o Parvo denuncia o Judeu, que «comia a carne da
panela/no dia de Nosso Senhor» (597-598). No Auto da Festa, Janafoso,
108 Joëlle Bahloul, Le Culte de la table dressée, Paris, A. M. Métailié,1983, p. 46. 109
? Idem, ibidem, p. 48.
86
ajudante na igreja, oferece aos religiosos católicos carne de
porco:
«Lá ajudo eu ao meu responso
às vezes ao nosso prior
e trago-lhe dous novilhos
e uma porca e assi» (p. 111).
Passando às artes plásticas, no quadro O Inferno, do Museu Nacional
de Arte Antiga, temos uma representação interessante do porco na
pintura portuguesa110. Segundo o historiador judeu Isaiah Shachar, o
«Judensau»111, o judeu a mamar nas tetas de uma porca pertence a um
imaginário germânico. Trata-se de um estereotipo visual mais
presente nas artes plásticas do que na literatura, proveniente de
uma corrente antijudaica, conhecida na Alemanha, mas sê-lo-ia no
nosso país? Em Gil Vicente encontramos a expressão «eis aqui a
mama de porca» (FAD 181). Bernhard Blumenkrantz, um outro
investigador da história dos judeus, refere esta imagem num
capitel em Upsala, Suécia112.
110
? Maria José Palla, «Nova leitura iconográfica d’O Inferno’ in OsSentidos e o Sentido, Homenageando Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, EdiçõesCosmos, 1996, pp. 167-184.
111 The Judensau, a Medieval Anti-Jewish Motif and its History, Londres, The WarburgInstitute, University of London, 1974, p. 2.112
? Le Juif médiéval au miroir de l’art chrétien, Paris, Editions Augustiniennes,1966, p. 46.
87
Em certas representações, o judeu não só mama como bebe e come
os excrementos (Catedral de Estrasburgo). Segundo Shachar, «the
jews belong to the sow, the sow to the jews»113. O porco também
simboliza os pecados da luxúria e da gula.
Voltando à refeição no Auto da Lusitânia, o pão é um alimento
importante neste dia de sabat, era fabricado em casa e repartido
por todos «filho amor, queres do pão?» (281), pergunta a mãe. No
entanto não encontrámos referência ao pão ázimo, ou mazot, no
contexto deste menu. Gil Vicente conhece os preceitos da cerimónia
e acentua o aspecto do impuro. O pai tem hemorróides: «assi é meu
pae, senhor, que tem dores d’almorrans/que é cousa d’apiadar» (86-
88), e o filho tem diarreia, «Samuel, bem t’encaminhas/luxas-te-te
filho meu?» (133-134). Lediça defende-o, porque ele comeu fruta:
«bem vo-lo dizia eu,/não lhe compreis camarinhas./Agora ele fez o
seu» (135-137). Nesta peça, Gil Vicente faz rir a assembleia
através dos alimentos e dos seus efeitos.
As especiarias são importantes nesta refeição e têm três
funções: dar cor, dar vida e ajudar a digestão. O cominho é a mais
importante, dá sabor e ajuda a digerir. Acompanha os legumes, os
guisados e as sobremesas. As cenouras e as favas também são
próprias da alimentação judaica114. O pai pede para jantar:
«E çanoiras, porque não
com favas e alcorouvia
e cominho e açafrão» (LUS 199-201).
88
A sobremesa costuma ser servida com frutos secos, tâmaras,
nozes, amêndoas, figos e uvas, em geral tem um sabor ácido e
forte: «pinhoada comereis/ou caçoila de mançãs?» (LUS 160-161).
Logo no exórdio da peça, Lediça é cortejada por um cortesão
cristão que se gaba de descender de Adão. Ela não se interessa por
ele no entanto, diz-lhe que pode consolá-lo com pratos judaicos.
Gil Vicente cita essencialmente a comida cristã, à parte esta
refeição judaica. No entanto refere ainda dois pratos exóticos, a
«moxama», palavra de origem árabe e o cuscuz (prato do Magrebe) da
Moura Tais. Este último foi um prato muito comum em Portugal e era
servido dentro de um cuscuzeiro. Gil Vicente torna emblemáticos
estes dois pratos. «Com o passar dos anos, novos hábitos
alimentares afastaram os portugueses do consumo de cuscuz, tendo,
por isso, os oleiros deixado de produzir o recipiente onde estes
eram cozidos, diz-nos a historiadora Isabel Maria Fernandes.
Vários alimentos foram trazidos pelos Árabes entre os séculos
XIII e XV: beringelas, espinafres, citrinos, arroz e massas (cuja
difusão se faz a partir de Sicília), de entre outros. O Islão
impôs a sua marca na alimentação. Introduziu perfumes, água-de-
rosas, açafrão, canela, cravo-da-índia e noz-moscada. Faziam-se
bolos com frutos secos, tâmaras, uvas, amêndoas, nozes, avelãs e
pinhões. A cozinha portuguesa tem vários pratos de origem árabe,
como as almôndegas, que também se faziam em Roma, e o escabeche,
de entre muitos outros. No Livro de Cozinha da Infanta D. Maria vemos
várias receitas com esta origem: alfitete, almojávenas, filhós com
queijo fresco, alféolas, massapão galinha mourisca, onde
89
curiosamente entra o toucinho, e galinha, ou seja pedaços de
galinha fritos depois de terem sido mergulhados em farinha.
Genebra Pereira é a maga protagonista da Farsa das Fadas. Gil
Vicente dá um lugar de destaque a esta personagem marginal, uma
mulher com poderes maldosos e condenáveis. Temos a teatralização
de um acto social em presença da corte, onde uma feiticeira
pratica bruxaria com diversos ingredientes. O que nos interessa
neste arsenal de sortilégios são o «bolo de trigo alqueivado/per
minha mão semeado/colhido, moído, amassado/nas costas do alguidar»
(185-189). O alguidar lembra o fogo alquímico. Nesta sessão de
magia, temos nas suas misturas «fel de morto excomungado» (183)
para os sofredores de amor. As entranhas servem muitas vezes as
misturas mágicas. Genebra serve-se de sortilégios que vêm dela,
para concentrar mais o seu poder. Tudo o que manipula é doméstico,
e mesmo o trigo foi trabalhado por ela. A farinha é a base das
suas misturas.
Mais adiante Gonçalo é roubado por um Negro que lhe leva o
capote e reza um Salve Regina burlesco. Nesta peça os espíritos
parecem em desordem e segue-se uma cena de espiritismo onde
Cezília, incarnando o espírito de um morto chamado Pedreanes
(Pedro João), descobre onde estão os alimentos roubados, o capão
está a ser depenado e a lebre a ser assada115:
«E uma moça corcovada115
? Ver Maria José Palla, «Images du sabbat et figures de magiciennesdans l’œuvre de Gil Vicente», in Le Sabbat des sorciers, XVe-XVIIIe siècles,Paris, Jérôme Millon, 1993, pp. 317-329.
90
está agora depenando
o capão da tua cunhada.
E o outro se está assando» (CDB 677-680).
Temos nestes dois versos, duas maneiras de tratar a carne. A
carne assada destinava-se aos mais ricos. Cezília diz para Almeida
não comer pato, mesmo que seja barato. Já vimos que o pato não era
bem visto nesta época como alimento. Mais uma vez as velhas são
maltratadas, nesta peça uma velha tem a pele macia como costas de
caranguejo ou de lagosta de Atouguia.
11. Harmonia e desordem alimentar
Na obra vicentina não existem excessos alimentares, tudo nela
obedece a uma ordem harmoniosa do mundo. Deparamos com uma batalha
alimentar na Farsa dos Físicos, uma luta religiosa entre dois tempos do
ano, escrita para uma terça-feira gorda de Carnaval num ano
bissexto116. Nesta peça tudo se agita, os humores evoluem, um
clérigo atinge a melancolia e quase a morte, para depois voltarmos
ao momento da Páscoa. O quadro de Pieter Bruegel, o Velho, 1525-
1569, Der Streit des Karnevals mit den Fasten, Combate entre Quaresma e Carnaval,
de Viena, é uma pintura que descreve rigorosamente o calendário
folclórico anual donde partiram várias obras plásticas, mais
particularmente gravuras.
Gil Vicente redigiu uma peça onde se assiste ao combate entre o
Carnaval e a Quaresma, entre o gordo e o magro, o Inverno e o
Verão. Na Farsa dos Físicos temos os quatro humores, com uma tónica na
melancolia, e alguns rituais do calendário, não só religioso como
91
profano. Carnaval dura os quarenta dias antes de quarta-feira de
cinzas117. Quaresma vem de quadragésimo, começa mais ou menos
quarenta dias antes da Páscoa. É um momento de interdições
alimentares e sexuais.
Gil Vicente encena uma luta entre a cultura popular e a cultura
erudita. A alternância entre dias gordos e dias magros situa-se no
centro da alimentação medieval e organiza livros de cozinha. O
historiador Jelle Koopmans afirma no artigo «La table sur les
tréteaux» que no teatro do fim da Idade Média a oposição gordo
versus magro é estrutural118. Madeleine Lazard especialista do teatro
francês do século XVI é da opinião que «les représentations
exceptionnelles, se donnent le plus souvent durant les jours gras,
les jours des rois, auxquels nombre de pièces font allusion»,
ideia que tenho defendido em vários artigos119.
12. O Gordo e o Magro
A desordem alimentar pode ser observada pelo que as personagens
comem segundo os ciclos festivos e litúrgicos, a sua idade e as
classes sociais. O gordo e o magro podem mesmo cobrir uma certa
sociologia do alimento. A gordura está do lado dos mais humildes,
lemos no teatro europeu. Já no século XIII, no Jeu de Robin et Marion,
representado na Sicília por Adam de la Halle (1283), se associa a
comida gorda aos camponeses e a comida magra ao cavaleiro. Por
exemplo, o pastor Robin diz a um dado momento «o queijo é gordo
como deve ser» (149) e deseja ainda toucinho (153), o camponês
Huard gaba «um bom rabo de porco gordo/com puré de alho e noz»
(561-562) ou ainda, no Auto Pastoril Português de Gil Vicente, «queres
92
Joane, toucinho/cum pouco de pão do meu?» diz (373-374). O
disfarce consumado também se associa à ingestão de alimentos. Na
Comédia do Viúvo, D. Rosvel ao disfarçar-se de hortelão tem de se
alimentar como um camponês, com alho e pão, «zurrón luego
aparejado,/y unas cabeças de ajos/y del pan» (497-499), assim como
Juan, disfarçado de hortelão, pede comida de pobre, pão e
toucinho:
«Primero vendrá del pan
y tocino una pica
que yo baxe la cabeza» (534-536).
O Auto de Dom André, de autor desconhecido, continua a tradição
vicentina do teatro profano, em oposição a Afonso Álvares e
Baltasar Dias. Como muitas farsas vicentinas, esta peça contribui
para o estudo da vida quotidiana da época pelas inúmeras
referências alimentares (leite/vinho, carne/peixe,
requeijão/toucinho). A alimentação surge nesta obra para sublinhar
as dicotomias campo/cidade e senhor/camponês. Fernando deseja
oferecer comida gorda (toucinho) e vinho (bebida propícia à
melancolia) ao Fidalgo, mas o pai não concorda:
«Sabeis que lh’hei-de trazer?
Vindo embora outro caminho,
uma posta de toucinho,
o mais gordo que houver
e uma borracha de vinho» (1490-1494).
93
Vilão
«Não vos ouçam a vós cá isso
que vo-lo estranharão.
Seja leite ou requeijão
que este é cá todo o seu viço» (1496-1499).
Ângela Beirante, num artigo sobre os ritos alimentares nas
confrarias, diz-nos que em São Pedro de Torres Novas «os pobres
tinham direito a uma iguaria de pão em merendeiras e carne gorda
de porco em talhadas, tudo em abastança, enquanto os confrades
recebiam duas espetadas de carne magra»120. Os mais pobres comiam
mais gordura. Máximo Montanari faz-nos observar as gravuras e as
pinturas da época onde vemos pessoas estropiadas e mancas porque
comiam gordura, sem vitamina D, o que provocava o raquitismo. Mas
o gordo e o magro manifestam-se sobretudo no período de Carnaval e
Quaresma.
O primeiro texto com o tema de Carnaval-Quaresma surge no Libro de
Buen Amor datado entre 1330 e 1350, atribuído a Arcipreste de la
Hita, onde se desenrola este combate ritual entre gordo e magro,
entre alimentos e armas. Mais tarde, Juan del Encina, nas églogas
V e VI do Cancionero publicado em 1496, organiza um díptico
carnavalesco121. Estas obras foram representadas numa noite de
terça-feira gorda. Na égloga V intitulada Antruejo o Carnestollendas122, o
autor personifica o Carnaval com o nome de «San Gorgomellaz», e
descreve assim a sua expulsão realizada pela Quaresma: «tras el
94
Carnal a porradas/por lo echar/de nuestro lugar» (51-53). A peça
termina com a celebração de uma breve vitória da comida: «oy
comamos y bevamos/y cantemos y holguemos/ que mañana ayunaremos»
(201-203).
Conhecemos algumas obras francesas com o tema do Carnaval123. Na
peça La Dure et cruelle batailleer et paix du glorieux saint Pensard à l’encontre de
Caresme deparamos mais uma vez com a oposição do gordo e do magro.
Do lado do gordo, temos o carneiro, o cerdo e o toucinho. É o
domínio do cozido, do assado e do frito. Do lado do magro, a lista
é mais longa e inclui legumes (nabos, salada, favas, ervilhas,
grão-de-bico, cebolas, couves, abóboras), fruta (maçã, castanha),
peixes (raia, pescada, solha, enguias, arenques, estes últimos
correspondem à sardinha do Sul), moluscos, crustáceos (lagostins,
chocos, mexilhões), preparações onde intervém o azeite (sopas,
saladas e purés). As castanhas são fritas, as maçãs cozidas. A
Quaresma alimenta-se essencialmente de arenque, nabos, favas,
saladas e puré de ervilhas novas.
Voltando à Farsa dos Físicos, o clérigo João Calado está apaixonado
por uma jovem que lava e ensaboa na ribeira para retirar a gordura
do Carnaval. O clérigo é tratado por Brásia, que lhe oferece
comida gorda, e por quatro médicos, que tentam curá-lo com
clisteres, tisanas e sangrias. A comida é confeccionada por uma
mulher, os homens são médicos. Mestre Felipe, o primeiro médico, o
do sangue, recomenda água fervida com alecrim, um clister de
cevada e farelos e uma alface cortada e cozida (como deveria ser
segundo Platerius). No entanto Brásia cozinha comida propícia à
melancolia, cabeças de dourada, caldo de patas de boi, manjar
95
branco com uma coxa de veado e um pescoço de bode (o bode e o
veado são animais carnavalescos). O clérigo tem a fleuma avariada.
O outro médico, Mestre Fernando, proíbe a carne de caça, assim
como o peixe da família da raia (muito propício à melancolia
segundo Timothy Bright). Brásia cozinhou pastéis de lebre. E dá-
lhe ainda coelho, porco, congro e lampreia (peixe de água doce
muito propício à melancolia). O terceiro médico diagnostica uma
alteração da bílis amarela, o «choler». Recomenda uma sangria, um
clister e uma combinação de «caña fistola» e de ruibarbo para
decompor os humores. E acrescenta uvas de Coríntia, tisana de
violetas e tisana de borragem, muito diuréticos segundo Platerius.
Brásia cozinhou ainda mais quatro coelhos, tem um salpicão de
porco, e mais vinho tinto.
Depois de o clérigo ser visto por Mestre Anrique, chegamos ao
quarto médico, Mestre Torres, astrólogo. O clérigo está cada vez
pior, o baço está doente. A bílis negra, defeituosa, vai matar o
clérigo, que já caiu na melancolia. Deste modo tem de comer
lentilhas, abóbora cozida e caldo de ervilhas. Brásia, em
contrapartida, tinha preparado um guisado de vaca e dois
salpicões.
Os médicos medem-lhe o pulso, examinam as urinas, esvaziam
enquanto a bruxa enche. Quem é ela? O seu nome Brásia lembra Braz,
em francês Blaise, nome do santo associado ao Carnaval, o patrão
dos demónios e do sopro. O dia de São Brás, dia 3 de Fevereiro,
também se inscreve no ciclo do Carnaval, é o dia do Santo Sopro.
Em certos mistérios medievais a cozinha gorda tem um papel
central. O inferno é uma cozinha. No Mistério de São Remi, os diabos
96
procuram uma rapariga; como o inferno é uma cozinha, o mártir
torna-se para os carrascos um assunto culinário, «tout comme
l’enfer est une cuisine, le martyre devient, pour les bourreaux,
une affaire culinaire»124. Brásia não será uma feiticeira com a
intenção de matar o clérigo com comida? Ela oferece, segundo os
livros de plantas e os tratados de melancolia da época, alimentos
gordos propícios a uma melancolia em acção125. A sua alimentação é
propriamente infernal. Não lhe basta cozinhar, assar, preparar
guisados e manjar branco, tudo nocivo para a melancolia (mais uma
vez Timothy Bright), não lhe basta dar a beber vinho tinto, uma
calamidade, ela dá-lhe, mais particularmente, a comer entranhas
(fel), excrementos e extremidades (pés, cabeças, coxas e
pescoços). Ela associa a comida ao corpo humano, aos cotovelos, ao
umbigo e, como é óbvio à boca, por onde tudo entra.
A personagem de Brásia Dias simboliza o Carnaval, tem dores nas
entranhas, a barriga inchada, ventosidade como São Brás. Ausenta-
se para expulsar o ar e a matéria fecal, associados a São Brás.
Brásia oferece alimentos flatulentos, «on mange des ‘pois frits’,
et cette coutume est assez ancienne pour que dès les XIIeXIIIe
siècles, les farces et les soties aient pris le nom générique de
Jeu des pois pillés. Nicolas de Chesnay é o autor de uma
moralidade (1503 e 1505) contra os excessos de comida que
conhecemos pela edição crítica de Jelle Koopmans e Paul Verhuick
(1991), La Condamnation au banquet. No fim da peça Banquete é
condenado à morte, e o confessor é obrigado a pregar a
abstinência. Jelle Koopmans é ainda autor de um excelente artigo
sobre a alimentação no teatro da Idade Média126 onde afirma «qu’à
97
partir de 1500, c’est Carême qui sort victorieux»127 como na peça na
Farsa dos Físicos.
Com os jejuns vegetais os cozinheiros fabricavam pratos
sofisticados. A «tempura», prato japonês, provém de uma receita de
Quaresma portuguesa elaborada com peixe e verduras.
Maria José Azevedo Santos elaborou um estudo importante sobre os
dias jejuados no mês de Novembro de 1524, com vinte dias gordos e
dez dias magros. Nos dias magros havia jejuns, todas as sextas-
feiras e sábados, mais a quarta-feira do dia 9 e a terça-feira do
dia 29128. No início da Quaresma comia-se uma só refeição, ao fim do
dia, com produtos vegetais, verduras, legumes, fruta, pão, azeite
e água. Os dias de abstinência podiam compreender quase metade do
ano, pois perfaziam três dias na semana. A Igreja foi inventando
novos períodos de jejum para certas celebrações litúrgicas, os
jejuns da vigília e os jejuns do Advento, jejuados às quartas-
feiras. No início das estações do ano também se jejuava, como no
jejum de Dezembro, que compreendia toda a semana do Advento. E
havia ainda o jejum de Verão, na oitava de Pentecostes, e o jejum
de Setembro, pelas festas de São Lourenço. Estes rituais
relacionados com o tempo foram-se alterando porque eram pouco
rigorosos.
O rei D. Duarte no Leal Conselheiro transmite conselhos referentes à
comida e à bebida, interessa-se pelos danos de estômago129, disserta
sobre o valor moral e físico da alimentação130 e condena a gula. É
de opinião que aparecem quatro níveis neste pecado:
98
«Sumariamente em quatro partes o pecado da gula se pode partir.
Primeira, que hora razoada, conveniente ou ordenada para comer ou
beber, não quer guardar. Segunda, que o ventre de comer ou beber
deseja sobejamente de encher. Terceira, que viandas e beberes
estremados cobiça sempre de usar. Quarta, que sobejamente com
grande folgança e glória faz comer e beber para elo perceber e
aparelhar»131.
O pecado da gula, pecado mortal, revela que a alimentação,
objecto de uma necessidade, pode prestar-se a diferentes formas de
desejo, a avidez do corpo que consome, a ambição de ostentação e
de poder. O pecado da gula constrange outros, todos eles mortais,
tais como o orgulho e a inveja. Na Lamentação da Mula Henrique da
Mota cita a gula para evidenciar o grau de fome do seu animal:
estaremos na Quaresma?
«Vós, no pecado de gula
não deveis ser culpada»
13. O excesso de gula – o humor negro132
Gil Vicente estava bem informado sobre a alimentação de festa e
de penitência e pondera a opinião da medicina oficial e as
soluções da medicina popular. Os tratados de Avicenas e de Galiano
deveriam existir na Biblioteca Real, pois no século XVI a teoria
dos humores e a descrição do corpo humano estão na moda. Galileu
interessa-se pela correspondência entre os humores, as quatro
idades da vida e o ciclo das estações. Quando um dos humores
99
predomina sobre os outros, adoece-se. Marcilio Ficino em Les Trois
livres de la vie, dedicado a Lorenzo de’ Medici, um príncipe melancólico,
é de opinião que os homens de letras são propícios à melancolia: o
capítulo X intitula-se «Comment on peut éviter l’humeur noire ou
la mélancolie». Segundo Hildegarde de Bingen, «Adão ficou marcado
pela melancolia no momento em que cometeu o pecado original»133.
A melancolia é um dos pecados dos monges do deserto que são
habitados por fantasmas devido à falta de exercício. Lembremos
Santo Antão, o primeiro eremita, um santo melancólico. Hieronymus
Bosch nas Tentações de Santo Antão, do Museu Nacional de Arte Antiga,
representa a acedia. Este pecado está representado numa mesa
ostentando os sete pecados capitais, por um homem recostado numa
cadeira com uma almofada, a mão esquerda no peito, um chapéu na
cabeça, uma bolsa e um punhal no cinto e um cão branco aos pés
(Museu do Prado, Madrid).
Desde Aristóteles que a melancolia se tornou a doença específica
do criador, uma das condições do génio e da literatura, da arte e
da filosofia. Na época de Gil Vicente este humor associa-se a
Saturno, deus que valoriza as qualidades intelectuais e também a
loucura. Este conceito será usado mais particularmente pela
astrologia. Aristóteles escreveu que os seres melancólicos são
dados à tristeza, ideia que Marcilo Ficino retoma. Em geral, a
melancolia é personificada por uma mulher (Albrecht Dürer, Cesar
Ripa), ao contrário de em Gil Vicente.
Nas artes plásticas o rosto de Cristo durante a Paixão revela
uma expressão melancólica. A morte está presente na expressão do
melancólico que reflecte sobre a duração do tempo muitas vezes
100
face a uma caveira. Num quadro posterior a Gil Vicente, de
Dominico Fetti, no Museu do Louvre (1589-1624), a melancolia está
representada por uma mulher indicando a morte das civilizações.
A articulação entre a melancolia e a comida e bebida, é antiga.
Aristóteles num estudo sobre as relações entre o vinho e a
melancolia, o Problema III, 1134, é o documento mais importante para a
noção de melancolia associada ao conceito de génio. Este estudo,
traduzido do latim para francês no início do século XIII por David
de Dinant, dá à melancolia o significado de que «todos os homens
excepcionais são melancólicos», citando Platão e Sócrates.
Aristóteles, no fim deste texto, afirma que os melancólicos são
seres de excepção, não pela doença mas pela cura. João Calado, o
clérigo apaixonado da Farsa dos Físicos, depois de ter comido e bebido
demasiado passa sucessivamente pelos quatro humores135 até atingir a
melancolia136. Platerius classifica os alimentos consoante os
humores. Garcia de Orta, no Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais
da Índia (1563), usa a palavra melancolia com o significado que
tinha na medicina da época137: «pelo pulso verificam a febre, se
está fraco ou rijo, e qual é o humor que peca, se é sangue ou
cólera, ou fleuma, ou melancolia»138. Num contexto freudiano, como
na Farsa dos Físicos, o apaixonado que não vive a sua paixão torna-se
melancólico (cf. Luto e Melancolia). Mais uma vez o historiador
britânico Timothy Bright que nos diz que os humores naturais têm
origem na comida. E examina os alimentos que combatem o frio e a
secura com o fim de purificar o baço (sede da melancolia) e
aconselha a sangria, os clisteres e as purgas, seguindo os
preceitos da escola de Salerno, que Gil Vicente e os seus
101
contemporâneos decerto conheceram. O nosso rei D. Duarte, rei
melancólico, descreve no Leal Conselheiro a sua própria tristeza139: «da
maneira que fui doente do humor menencorico e dele guareci». No
capítulo seguinte ensina como o evitar: «Dos azos per que se
acrescenta o sentido do humor menencorico e dos remédios contra
eles». Para D. Duarte a melancolia é um humor e uma paixão da alma
associada a um conjunto de representações próximas da tristeza
profunda. O rei filósofo dá como remédios para combater a
melancolia o exercício e regras de alimentação.
No quadro Combate entre Quaresma e Carnaval de Bruegel, o Velho, vemos ao
fundo, à esquerda, o Inverno a ser queimado numa fogueira. Na Farsa
dos Físicos, o protagonista está a morrer febril e a arder com a
comida da feiticeira. Em Portugal existe a tradição do enterro do
bacalhau, ritual mais recente, datando do século XVIII segundo
Carlos Lopes Cardoso140. O bacalhau, comida dos dias magros,
simboliza o jejum.
Conclusão
No termo desta análise bastante incompleta, podemos constatar
que a alimentação evocada no teatro vicentino é-o praticamente
sempre num contexto simbólico. É pouco possível saber exactamente
o que os Portugueses comiam e ou como se realizavam as refeições.
Curiosamente a única refeição confeccionada aparece em relação aos
Judeus e quanto aos Mouros temos apenas a «moxama», apesar de
muitas palavras relativas à alimentação terem origem árabe. A
102
comida no nosso corpus não tem cor, enquanto a comida na época era
muito colorida assim como os trajes e as casas.
É curioso verificar que na dramaturgia na não existem nem
refeições, nem banquetes e nem festas. Apenas é evocada uma
alimentação com um pequeno papel no desenrolar da peça. Não
encontramos personagens à volta de uma mesa, nem uma refeição
completa, nem elementos com uma função dramática particularmente
eficaz. A alimentação aqui estudada leva-nos para um mundo de
transição onde ainda não são conhecidos os novos produtos. O vinho
é citado inúmeras vezes e é possível conhecer através dos textos
as regiões produtoras de vinho, os vinhos mais ou menos apreciados
e o seu preço. Gil Vicente não fala em comer carne e alude ao gado
metaforicamente.
Estudámos o vocabulário da alimentação com significado dentro da
dramaturgia vicentina. A mesa é uma reconstrução simbólica e os
pintores ao representarem-na, atentos aos alimentos que escolhem
para os harmonizarem, conciliam estética, simbólica e quotidiano.
Inspiraram-se essencialmente no Novo e no Antigo Testamento, na Bíblia,
nos Evangelhos Apócrifos, na Legenda Aurea, na Vita Christi de Ludolfus de
Saxe, mas assimilaram igualmente lições vindas de outros países.
LISBOA-PARIS
Siglas que enviam ao texto de Gil Vicente
ADA Auto da AlmaAGR Romagem de AgravadosALM Farsa dos AlmocrevesAPC Auto Pastoril Castelhano
103
APP Auto Pastoril PortuguêsAQT Auto dos Quatro TemposBIN Auto da Barca do InfernoBIN Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de
1562BIN Mad. para especificar que se trata do texto da edição de
MadridCAN Auto da CananeiaCAS Auto de Sibila CassandraCIG Farsa das CiganasCLB Clérigo da BeiraCOI Comédia sobre a Divisa da Cidade de CoimbraDDU Dom DuardosDDU Cop. para especificar que se trata da Compilação de 1562DDU Mad. para especificar que se trata da edição de MadridEST Tragicomédia Pastoril da Serra da EstrelaEXO Exortação à GuerraFAD Auto das FadasFAM Auto da FamaFE Auto da FéFEI Auto da FeiraFES Auto da Festa, a partir da edição do conde de Sabugosa, a
única que nos transmitiu este textoFIN Farsa de Inês PereiraFIN Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de
1562FIN Mad. para especificar que se trata do texto da edição de
MadridFIS Auto dos FísicosFLO Floresta de EnganosFRA Frágua de AmorGAU Amadis de GaulaGLO Barca da GlóriaHDD Breve Sumário da História de Deus HDD Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de
1562HDD Mad. para especificar que se trata do texto da edição de
MadridIND Auto da ÍndiaJDB Juiz da Beira
104
JUP Cortes de JúpiterLUS Auto da LusitâniaMAG Auto dos Reis MagosMOF Auto de Mofina MendesNÃO Nau de AmoresPMP Pranto de Maria PardaPMP Cop. para especificar que se trata do texto da Compilação de
1562.PMP Palha para especificar que se trata do texto da edição Palha
estudado por Luciana Stegagno Picchio (Il Pranto di Maria Parda di Gil Vicente, Nápoles, 1963)PUR Barca do PurgatórioQTF Quem Tem Farelos?RES Diálogo sobre a RessurreiçãoRES Cop. para indicar que se trata do texto da Compilação de
1562RES Mad. para especificar que se trata do texto da edição de
MadridRUB Comédia de RubenaSM Auto de São MartinhoTEM Templo de ApoloTIN Triunfo de InvernoVAQ Monólogo do VaqueiroVDH Farsa do Velho da HortaVIV Comédia do Viúvo
105
116 Ver Maria José Palla in «O combate entre o Carnaval e Quaresma no‘Auto dos Físicos’ de Gil Vicente», in Anuário de Estudos Filológicos,Universidad de Extremadura, 2006, vol. XXVIII, pp. 229-247.
113 Iidem, p. 3.114
? Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, História da Alimentação, DosPrimórdios à Idade Média, vol. I, Lisboa, Terramar, 1997, p. 331.118 Jelle Koopmans, «La table sur les tréteaux. Cuisine grasse etcuisine maigre dans le théâtre de la fin du Moyen Age», in La Viematérielle au Moyen Age, l’apport des sources littéraires, normatives et de la pratique,Emmanuel Rassart-Eckhout, Jean Pierre Sosson, Claude Thiry e Tania Van Hemelryck, Louvain - la - Neuve, 1997, pp. 127-146.
119 Lazard, 1982, p. 95.
117 Claude Gaignebet e Marie-Claude Florentin, Le Carnaval, essais demythologie populaire, Paris, Payot, 1979, p. 9. 120 Ângela Beirante, «Ritos Alimentares em Algumas ConfrariasPortuguesas Medievais», pp. 559-570.121
? No teatro de Juan del Encina a sardinha é símbolo de Quaresma,enquanto o galo representa o Carnaval. Neste autor, os alimentosde Quaresma são o alho-porro, o alho, a cebola (plantas quecrescem da terra, que são desvalorizadas), e os alimentos deCarnaval, o salmão são os bolos, o toucinho, os ovos, a manteiga eo queijo.
122 Juan del Encina, Obras dramaticas, vol. I (Cancionero de 1496), edição eestudo de Rosalie Gimeno, Madrid, Ediciones Istmo, 1975, pp. 165-
106
177.
123 La Dure et cruelle bataille et paix du glorieux saint Pensard à l’encontre de Caresme,peça impressa novamente em Paris por Jehan Saint Denis, quecostuma ser datada de 1485 (1220 versos). No entanto MarieBouhaik-Gironès pensa que a peça data de 1529 e atribui-lhe umautor: François Habert (?). A segunda peça é o Testament de Carmentrantde Jehan d’Abundance, de 1540 (307 versos). Estas peças forameditadas em 1977 por Jean-Claude Aubailly . Conhecemos ainda umapeça de Carnaval do fim do século XVI, atribuída ao autorbazochiano Benoet du Lac, chamada Caresme-Prenant, tragicomédiequintessencée de folie, publicada em 1595) em Aix-en-Provence.
124 Saint Remi, p. 137.
125 Platerius, Timothy Bright, Robert Burton e Garcia de Orta.126
? «La table sur les tréteaux. Cuisine grasse et cuisine maigre dansle théâtre de la fin du Moyen Age» in La Vie matérielle au Moyen Age.L’apport des sources littéraires, normatives et de la pratique, Emmanuel Rassart-Eckhout, Jean-Pierre Sosson, Claude Thiry e Tania Van Hemelryck,Louvain - la - Neuve, 1997, pp. 127-146.
127 Idem, ibidem, p. 141.
128 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear na Corte de D. João III, p. 42.129
? O rei Afonso, o Sábio, em As Sete Partidas, dissertou igualmente sobrea alimentação, enumera as maneiras de estar à mesa e interessa-sepela higiene da refeição.130
107
? Estes conselhos são pertinentes e são os mesmos por toda aEuropa. 131
? D. Duarte, O Leal Conselheiro, p. 124.
132 Idem, ibidem, p. 70.133
? Raymond Klibanski, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, Saturne et lamélancolie, Paris, Gallimard, 1989, pp. 139-141.
134 Idem, ibidem. 135 Os humores são os seguintes: o sangue (quente e húmido)simboliza o ar, a infância; a fleuma (frio e húmido) simboliza osjovens e os adultos; a bílis amarela, ou choler (quente e seco),simboliza a idade adulta; a melancolia (fria e seca) simboliza avelhice e a morte. Na teoria de Galileu encontram-secorrespondências entre os humores, as quatro idades da vida(Ticciano) e o ciclo das estações do ano (Boticelli).
136 Ver Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico, por Francisco Maria EstevesPereira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1918, onde o Escudeiroapaixonado sofre de amor e finge ser melancólico e sofrer do baço.Diz o pai ao filho: «Isso é meleconia/muito certa, confirmada»(63-64).
137 Garcia de Orta, Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia,vol. II, edição fac-símile da edição de 1595, dirigida e anotada peloconde de Ficalho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987,p.137.
108
71 Inês de Ornellas e Castro, O Livro de Cozinha de Apício. Um Breviário doGosto Imperial Romano, Lisboa, Colares Editora, 1997, pp. 29-30.
72 Joaquim Romero Magalhães, «As estruturas de produção agrícola epastoril» in História de Portugal, vol. III, direcção de José Mattoso,Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 268.
73 Michel Pastoureau, Les Animaux célèbres, Paris, Bonneton, 2001, p.75. 74
? Idem, ibidem, p. 35.75
? Bruno Laurioux, Manger au Moyen Age, Paris, Hachette Littératures,2002, p. 14.
76 Arte de Cisoria de D. Enrique de Villena, con varios estudios sobre su vida y obras ymuchas notas y apéndices, Felipe Benicio Navarro, Madrid - Barcelona,1879.
77 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. 111.
78 Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, reimpressão fac-similada da nova edição conforme a de 1798, prefácio de JoaquimVeríssimo Serrão, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973,cap. 212.
79 Robert Delort, Les Animaux ont une histoire, Paris, Seuil, 1984, p.283.
80 Chantal Blanché, «Derrière le décor courtisan, le ‘Tinello’ deLa Cortigiana de l’Arétin au Perfetto maestro di casa de F.
109
Liberati», in La Table et ses dessous, estudos reunidos por AdelinCharles Fiorato e Ana Fontes Baratto, Paris, Presses de laSorbonne Nouvelle, 1999, p. 246. 81
? «Les voyageurs et la gastronomie en Europe au XVe siècle, in LeDésir et le goût, une autre histoire, actas do colóquio internacional emmemória de Jean-Louis Flandrin, Saint-Denis, Setembro de 2003,Presses Universitaires de Vincennes, 2005, p. 114.
82 Para o Auto da Festa seguimos a edição do Conde de Sabugosa,Lisboa, Imprensa Nacional, 1906.
83 Peixe-cavalo, barbo, safio, congro, sardinha, toninha, tubarão,baleia, raia, carapau, alcaputor, enxarrocas, bacalhau, rocim-marinho, tamboril, cisne, leão-marinho, congro, baleia, corvomarinho, golfinho.
84 Oliveira Marques, 1981, p. 9. ++
85 Maria José Azevedo Santos, «O peixe e a fruta na alimentação dacorte de Afonso V – Breves Notas», in Brigantia, vol. III, n.º 3,Julho - Setembro de 1983, pp. 307-343.
86 Oliveira Marques, 1981, p.10. ++87
? Ibidem, ibidem, p. XVIII.
88 Le Roman de la sardine, Avignon, Editions A. Barthélemy, 1994, p. 13.Apollon Caillat escreveu em 1898 Un Petit traité de cuisine com cento ecinquenta receitas de sardinha.
110
89 Maria Parda, à procura de vinho, vê muitas sardinhas nas grelhas. +++
90 A. Rucquoi, p. 302. ++++
91 Bonum, Malum, Pomum, une histoire symbolique de la pomme, Paris, Cahiersdu Léopard d’Or, 1993, pp. 155-158.
92 «As well as the citrus fruits themselves, confectionary madefrom them was also imported: quince marmalade or 'marmelada' fromPortugal», in The art of dining, a history of cooking & eating, Oxford, PastTimes, 1996.
93 Oliveira Marques, 1981, p.11. +++
94 João Alves Dias, p. 623. +++
95 Idem, ibidem.
96 Inês de Ornellas e Castro, O Livro de Cozinha de Apício. Um Breviário doGosto Imperial Romano, Lisboa, Colares Editora, 1997. 97
? «Brouets, potages et bouillons», in Médiévales, n.º 5, Novembro de1983, p. 10.
98 Auto de Vicente Anes Joeira, estudo de Cleonice Berardinelli, Ministérioda Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1963.
99 Arnold Van Gennep, Les Rites de passage, Paris, Picard, 1981, p. 81.
111
100 Danièle Alexandre-Bidon, Une Archéologie du goût, céramique etconsommation, Paris, Espaces Médiévaux e Picard, 2005, p. 48.
101 Oliveira Marques, 1981, p. 35. ++102
? Naître au Moyen Age, de la conception à la naissance: la grossesse et l’accouchement(XIIe-XVe siècles), Paris, Le Léopard d'Or, 1989, pp. 207-208.
103 Sobre a sopa, ver Antony Rowley, A table. La fête gastronomique, Paris,Découvertes Gallimard, 1994, p. 14.
104 Madeleine Lazard, «Nourrices et nourrissons d'après le trait deVallambert (1565) et la Paedotrophia de Scevole de Sainte Marthe»,in Pratiques et discours alimentaires à la Renaissance, Actes du colloque de Tours(1979), sob a direcção de J. C. Margolin e R. Sauzet, Paris,Maisonneuve et Larose, 1982, pp. 69-83. 105
? Madeleine Lazard, 1982, p. 78.
106 «A infância», in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casada Moeda, 36.º vol., p. 368. 107
? Allen J. Grieco, Tables et tableaux, Paris, Réunion des MuséesNationaux, 1992, p. 12.
138 Idem, ibidem. 139
? Yvonne David-Peyre, «D. Duarte roi du Portugal: une névroseexemplaire», in Mélancolie dans la relation de l’âme et du corps, Nantes,Université de Nantes, 1979, pp. 73-113.
112
Top Related