CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA CLERIANA PEREIRA ALVARES
HOUSE M.D:
UMA ANÁLISE JUNGUIANA À LUZ DO
ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO
Juiz de Fora 2013
CLERIANA PEREIRA ALVARES
HOUSE M.D:
UMA ANÁLISE JUNGUIANA À LUZ DO
ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Centro de Ensino
Superior de Juiz de Fora, como
requisito parcial para a
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca CES/JF – CES/JF
Bibliotecária: Áurea Almeida Vespasiano – CRB 6-2224
ALVARES, Cleriana Pereira. M.
D. House: uma análise Junguiana
à Luz do arquétipo do curador
ferido. Trabalho de Conclusão
de Curso, apresentado como
requisito parcial à conclusão
do curso Graduação em
Psicologia, do Centro de Ensino
Superior de Juiz de Fora,
realizada no 1° semestre de
2013.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Paulo Bonfatti......
Orientador
Espec. Anna Maria Lobo Poncinelli
Prof. .....
Examinado(a) em: ____/____/______.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, que lutaram junto comigo para que este sonho
torna-se realidade.
Ao João Pedro, pelos livros, paciência e por fazer a revisão
ortográfica deste trabalho.
Aos meus amigos, pelas orações e pensamentos positivos para
que eu pudesse alcançar meus objetivos.
Ao meu orientador Paulo Bonfatti pela paciência, perseverança
e por não me deixar desistir.
"[...] enquanto você não fizer
o inconsciente consciente, isso
irá controlar sua vida e você
chamará de destino".
Jung
RESUMO
ALVARES, Cleriana Pereira. M. D. House: uma análise Junguianaà Luz do arquétipo do curador ferido. 35 f.Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em psicologia).Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013.
Neste trabalho será realizada uma tentativa de análise
junguiana do personagem do Gregory House da série House M.D.,
a luz do arquétipo do curador ferido. A psique coletiva que
antes constelava suas imagens arquetípicas ao produzir mitos
que mobilizavam o ser humano, hoje ela se manifesta também no
mundo criativo, fantasioso, fascinante das grandes produções
que atraem multidões. Os arquétipos são atemporais e suas
imagens arquetípicas se atualizam em nosso cotidiano, as
representações arquetípicas atuais, podem ser observadas no
cinema, teatro e séries de televisão. A série de televisão
House M.D obteve sucesso em âmbito mundial e durou por 8 anos.
Apesar de seu um drama médico, o seriado possui um vasto
material psicológico a ser explorado. Representando um locus
privilegiado para se perceber manifestações de imagens
arquetípicas. House, o protagonista da série, é um
diagnosticador brilhante capaz de curar as doenças mais
incuráveis, mas ele não consegue curar a si mesmo. Sua ferida
na perna e seu vício por Vicodin fazem do personagem um
curador ferido. E embora House não seja um curador ferido
dentro do que é proposto dos cânones junguianos. Este trabalho
propõe uma análise do personagem á luz do arquétipo do curador
ferido, apontando o que House deveria fazer para por em marcha
seu processo de crescimento psicológico e se tornar um curador
ferido, mas próximo da tradição de Asclépio.
Palavras-chave: Psicologia Junguiana. Arquétipo. Curador Ferido. House M. D.
ABSTRACT
Based on the theoretical Jungian, we comprehend that
collective psyche that before constellated archetypal images
in the production of myths that mobilized the human being,
today is also manifested in a creative way, fanciful and
fascinating in other ways.Archetypes are timeless and their
representations are updated in our daily lives through film,
theater and television. Accordingly, the object of study of
this research is the television series House MD which was
successful worldwide and lasted for 8 years.House, the series
protagonist, is a brilliant doctor that can cure diseases that
no one else can, but do not achieve the same success to heal
himself from his eternal pain and leg pain and addiction to
opioid analgesic-based. Though House is not a representation of
the archetype of the wounded healer within what is proposed
canons Jungian, this paper proposes an analysis of the
character in the light of this archetype. Going further, we
seek to show that the House should quest to set in motion the
process of psychological growth and become a wounded healer,
nearest to Asclepius tradition.
Keywords: Jungian Psychology. Archetype. Wounded Healer. House
M. D. .
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................. 3
2 MITO E PSICOLOGIA JUNGUIANA................................ 4
2.1 MITO E SOCIEDADE......................................... 4
2.2 MITO E ARQUÉTIPO......................................... 5
2.3 MITO, IMAGENS ARQUETÍPICAS E SÍMBOLOS.................... 7
2.4 MITOS E PSICOLOGIA ANALÍTICA............................ 11
3 O MITO DE ASCLÉPIO E QUIRÃO E O ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO.
12
3.1 O MITO DE ASCLÉPIO E QUIRÃO............................. 12
3.2 CURADOR FERIDO.......................................... 15
3.3 RELAÇÃO ANÁLITICA E O CURADOR FERIDO.................... 17
3.3.1 Transferência......................................... 20
3.3.2 Contratransferência................................... 22
4 HOUSE O CURADOR FERIDO.................................... 24
4.1 O PERSONAGEM............................................ 24
4.2 HOUSE E A SOMBRA DO ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO......... 27
4.3 HOUSE E INDIVIDUAÇÃO.................................... 28
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................... 31
REFERÊNCIAS................................................. 34
3
1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho será realizada uma análise junguiana do
personagem do personagem Gregory House da série House M.D., a
luz do arquétipo do curador ferido. A escolha de um
personagem de televisão para a realização deste estudo é
embasada na afirmativa de Jung (1966a, p.88, tradução nossa):
“Em geral, é o romance não-psicológico que oferece as mais
ricas oportunidades para esclarecimento psicológico.”
Para se desenvolver esse trabalho, que é a análise do
personagem à luz da teoria junguiana, foi necessário percorrer
um caminho de construção teórica. No segundo capítulo será
realizado um breve estudo sobre o mito e psicologia junguiana:
importância, atualização e relação com a formação dos
arquétipos e imagens arquetípicas.
No terceiro capítulo será abordado o arquétipo do curador
ferido e sua representação arquetípica mais próxima que é o
mito de Asclépio e Quirão. Neste capítulo também será abordada
a constelação do arquétipo do curador ferido na relação
analítica em seu aspecto transferêncial e
contratransferêncial.
No quarto capitulo será realizada uma tentativa de análise
do personagem Gregory House como representação do arquétipo do
curador ferido, refletindo a sombra deste arquétipo.
Por fim, o que o personagem deveria realizar para pôr em
marcha seu crescimento psicológico para se tornar um curador
ferido, dentro daquilo que é proposto dentro dos cânones
junguianos. Entendemos que esse esforço acadêmico, no formato
4
de pesquisa bibliográfica, é relevante para se compreender
como ocorre a constelação do arquétipo do curador ferido na
relação analítica. Ressaltando ainda a importância da
personalidade e da formação do terapeuta, com suas questões
pessoais, no bom andamento de um processo de análise.
2 MITO E PSICOLOGIA JUNGUIANA
Neste tópico é destacada a importância do mito na
constituição da psicologia e a conexão que existe entre
arquétipos e imagens arquetípicas na formação dos mitos,
destacando também o papel do mito nas sociedades antigas e na
sociedade atual.
2.1 MITO E SOCIEDADE
Para Brandão (1986, p.38) o mito “[…] é um ingrediente
vital da civilização humana”. Jung (2008a, p. 112) afirma que
sua origem “[…] remonta ao primitivo contador de histórias
[…]. Estes contadores não foram gente muito diferente daquelas
a quem gerações posteriores chamaram poetas ou filósofos”.
Os mitos têm uma importante função nas sociedades humanas
desde as épocas tribais. Campbell (1990, p.83) afirma que os
5
“[…] mitos antigos foram concebidos para harmonizar a mente e
o corpo. […] Os mitos e ritos eram meios de colocar a mente em
acordo com o corpo, e o rumo da vida em acordo com o rumo
apontado pela natureza”. Mesmo nas sociedades atuais o mito
ainda representa uma força organizadora das instituições e
comportamentos. (BOECHAT, 2008).
Eles interferem inclusive na formação psíquica dos
indivíduos de uma sociedade, pois as culturas que possuem
imagens míticas vitais possibilitam que seus indivíduos
construam a noção do si-mesmo1, orientando-os sobre como devem
interagir e proceder em sociedade; ao passo que as culturas
que não possuem um cerne mitológico consistente, ou que é
muito fragmentado e diversificado, produzem indivíduos
perdidos e assustados, que mudam constantemente de ideologia.
(HOLLIS, 1997).
Há acadêmicos que compreendem os mitos como uma leitura
equivocada de mundo, aquilo que era feito antes do
estabelecimento da ciência, no entanto se esquecem ou não são
capazes de perceber que a própria ciência também possui
motivação mitológica. A ciência constantemente se vale de
suposições e modelos de realidade, tais como: os modelos
atômicos, quarks, quasares, buracos negros, e estas
conjecturas não possuem status mais objetivo do que Ares e
Afrodite (HOLLIS, 1997).
1 A noção de si-mesmo a qual Hollis (1997) se refere corresponde ao conceitojunguiano do Self. O Self ou “‘Si-mesmo’, […] deve ser compreendido como atotalidade da esfera psíquica. O Si-mesmo não é apenas o ponto central, mastambém a circunferência que engloba tanto a consciência como oinconsciente. Ele é o centro dessa totalidade, do mesmo modo que o eu é ocentro da consciência.” (JUNG, 1990, p.51).
6
Jung (2011b) discorre sobre outra prerrogativa que fora
equivocadamente atribuída aos mitos, a afirmação de que eles
procedem da “vida infantil do povo” de uma sociedade
determinada. Segundo Jung (2011b, p. 45) o mais correto seria
exatamente o oposto desta afirmação, pois os mitos são “[…] o
que há de mais adulto na produção da humanidade [dita]
primitiva […]. Pois o mito não é uma fantasia pueril, mas um
dos requisitos mais importantes da vida primitiva.”
Para Brandão (1986) os mitos são representações coletivas,
que passam de geração em geração e representam uma via de
sentido para o mundo. De acordo com Wilkinson e Philip (2009,
p.14), são histórias sagradas que tentam explicar a gênese do
mundo, a origem de deuses e o surgimento dos primeiros homens.
Os mitos também falam sobre “[…] aventuras de heróis e da
audácia dos trapaceiros, da natureza do céu e do mundo
subterrâneo e também do que acontecerá no final dos tempos”.
Desta forma, eles podem ser considerados um registro padrão de
todos os aspectos de uma sociedade (WILKINSON; PHILIP, 2009).
Jung (2000b, p. 17-18) ressalta a importância dos mitos
para o homem primitivo: este não se interessa por explicações
objetivas ou óbvias da realidade, mas sua “[…] alma
inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda
experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos”.
Os acontecimentos anímicos mitologizados, tais como o
inverno, as fases da lua, o regime de chuvas, etc., não eram
consideras por Jung (2000b, p.18) alegorias das experiências
objetivas, mas sim, como representações simbólicas “[…] do
drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana
7
consegue apreender através de projeção — isto é, espelhadas
nos fenômenos da natureza.” E esta projeção era tão forte que
foram necessários milhares de anos de civilização humana para
livrar-se de seu objetivo exterior. (JUNG, 2000b).
2.2 MITO E ARQUÉTIPO
Jung (1966b) afirma que existem em cada indivíduo, além de
suas memórias pessoais, as imagens primordiais, isto é,
possibilidades herdadas da imaginação humana vindas de tempos
imemoriais. Sendo assim: “As imagens primordiais são as mais
antigas e as mais universais ‘formas de pensamento’ da
humanidade.” (JUNG,1966b, p.66, tradução nossa).2
A existência dessas imagens primordiais no inconsciente
humano é análoga à história do corpo humano:
Assim como nosso corpo em muitos órgãos conservam aindaos resquícios das funções de antigas funções e estados,também nosso espírito, que parece ter ultrapassado todosos instintos primitivos, traz ainda marcas dodesenvolvimento porque passou e repete o arcaico aomenos em sonhos e fantasias. (JUNG, 2011b, p.49).
Essas imagens primordiais, que Jung chamou depois de
arquétipos, fazem parte de um substrato psíquico coletivo e
não devem ser compreendidos como conteúdos pessoais. O
conjunto dessas imagens primordiais ou arquétipos formam o que
Jung apontou como inconsciente coletivo. (JUNG, 2000a).
2 “The primordial images are the most ancient and the most universal‘thought-forms’ of humanity.”
8
Inicialmente o conceito de inconsciente “[…] limitava-se a
designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos.”
(JUNG, 2000b, p.15). Mas de acordo com Jung (2008a, p.160),
“Além da individualidade, que parece ser o âmago da
consciência do eu e do inconsciente, encontramos o
inconsciente coletivo.” - onde se situam, didaticamente, os
arquétipos.
Analisando o termo arquétipo em seu aspecto etimológico
podemos observar que:A primeira parte, ‘arque’, significa início, origem,causa e princípio, mas representa também a posição de umlíder, de uma soberania e governo (portanto, uma espéciede ‘dominante’); a segunda parte, ‘tipo’, significabatida e o que é produzida por ela, o cunhar das moedas,figura, imagem, retrato, prefiguração, modelo, ordemnorma… Transferido ao seu sentido mais moderno éamostra, forma; básica, estrutura primária (algo que jazno ‘fundo’ de uma série de indivíduos ‘parecidos’, quersejam seres humanos, animais ou vegetais). (SCHMITT,1945apud JACOBI, 1991, p. 51).
Jung (2000a, p. 73, grifo do autor) associa o arquétipo ao
mito postulando que: “Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as
vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira
uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o
seu caráter mitológico.”.
Jung (2011b, p. 51) também afirma que “[…] os produtos do
inconsciente têm parentesco com o mito.” O mito e conto de
fadas são formas bastante conhecidas na qual os arquétipos
costumam se apresentar. (JUNG, 2000b). “Aqui, também, no
entanto, se trata de formas cunhadas de um modo específico e
transmitidas através de longos períodos de tempo.” (JUNG,
2000b, p.17).
9
Corroborando com as ideias de Jung, Campbell (1990, p.72)
afirma que os mitos “[…] estão tão intimamente ligados à
cultura, a tempo e espaço […]”, se mantêm vivos através da
constante atualização e recriação por meio das artes, caso
contrário seriam simplesmente abandonados com o decorrer do
tempo.
As manifestações oriundas dos arquétipos (imagens
arquetípicas) representariam, segundo Jung (1966b), uma
possibilidade de compreensão para a semelhança entre temas de
mitos e lendas ao redor mundo, sendo também uma chave de
compreensão para o fato de alguns pacientes psicóticos
apresentarem em seus delírios e alucinações conteúdos
semelhantes aos mitos e lendas, mesmo sem ter tido acesso ao
relato oral ou escrito dos mesmos.
Nesse sentido, Boechat (2008, p.56) corrobora com Jung
(1966b) quando afirma que: “Os arquétipos constituem e são
responsáveis pela faculdade mitopoiética da mente humana, a
sua faculdade criadora de mitos.”
2.3 MITO, IMAGENS ARQUETÍPICAS E SÍMBOLOS
Jung (2000b, p. 184) desenvolveu o conceito de imagem
arquetípica através de décadas de observação de criações do
inconsciente “[…] no sentido mais amplo, isto é, os sonhos,
fantasias, visões e delírios.” E em suas observações ele não
pode deixar de perceber certas regularidades. (JUNG, 2000b).
Nesse aspecto foi observado por Jung (2000b, p.184, grifo
do autor) que: “[…] Há tipos de situações e de figuras que se
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repetem frequentemente de acordo com seu sentido.” Assim
sendo, Jung (2000b) utilizou os termos “tema” ou “motivo” para
designar estas repetições. Dessa forma não existem sonhos
comuns, mas sim, temas comuns de sonhos.
Portanto, sempre que nos deparamos com a noção de
arquétipo, na obra de Jung, devemos ficar atentos se o autor
está se referindo ao arquétipo em si, ainda não manifesto e
imperceptível ou se refere ao arquétipo “[…] já atualizado e
tornado imagem na matéria psíquica consciente.” (JACOBI, 1991,
p. 40), ou seja, a imagem arquetípica.
Jung (2000b, p. 184, grifo do autor) aponta como exemplos
de imagens arquetípicas: “[…] a sombra, o velho, a criança
(inclusive o menino-herói), a mãe (“mãe originária” e “mãe
Terra”) […].”
Para melhor ilustrar o conceito de imagem arquetípica
podemos apontar exemplarmente o arquétipo da grande mãe.
Segundo Jung, (2000b) o arquétipo da grande mãe é um arquétipo
universal na psicologia dos povos, embora esteja sujeito a
experiência prática individual. “Como todo arquétipo, o
materno também possui uma variedade incalculável de aspectos.”
(JUNG 2000b, p.91). E enumera alguns deles:
[…] algumas das formas mais características: a própriamãe e a avó; a madrasta e a sogra; uma mulher qualquercom a qual nos relacionamos, bem como a ama-de-leite ouama-seca, a antepassada e a mulher branca; no sentido datransferência mais elevada, a deusa, especialmente a mãede Deus, a Virgem (enquanto mãe rejuvenescida, porexemplo, Demeter e Core), Sofia (enquanto mãe que étambém a amada, eventualmente também o tipo Cibele-Átis,ou enquanto filha-amada (mãe rejuvenescida) […]). (JUNG,2000b, p.91)
11
Jung (2000b, p. 92) afirma que imagens arquetípicas: “[…]
podem ter um sentido positivo, favorável, ou negativo e
nefasto.” Um aspecto:
“[...] do arquétipo da grande mãe é a deusa do destino(as Parcas, Gréias, Nomas). Os aspectos nefastos podemser simbolicamente representados pelas bruxas, dragões[…] (ou qualquer animal devorador e que se enrosca comoum peixe grande ou uma serpente); o túmulo, o sarcófago,a profundidade da água, a morte, o pesadelo e o pavorinfantil.” (como Empusa, Lilith, etc). (JUNG, 2000b,p.92).
Segundo Jung (2000b, p.87) o arquétipo da grande mãe “[…]
abrange as mais variadas manifestações do tipo de uma Deusa-
Mãe”.
Mesmo se tratando de uma obra de ficção, em As Brumas de
Avalon, de Bladley (1993), que tem sua narrativa situada no
período histórico das invasões saxônicas na Grã-Bretanha, a
autora descreve, baseada em fatos, como teria ocorrido à
substituição do culto da Deusa Virgem Caçadora, cultuada pelo
povo celta, pela Virgem Maria cristã. Seu romance descreve
como os ritos pagãos eram condenados e punidos de forma
violenta pelos padres que vieram junto com os conquistadores
saxões. À medida que o território dos celtas era conquistado,
sua cultura, hábitos e deuses eram suprimidos por seus
dominadores. Os pagãos não mais podiam prestar culto
livremente à sua Deusa, no entanto os celtas forçosamente
convertidos ao cristianismo, viram um paralelo de sua Deusa
Virgem Caçadora com a Virgem Maria cristã e passaram a prestar
culto a ela.
12
Portanto, pode-se inferir que a imagem arquetípica da
grande-mãe caçadora que era bastante atuante na cultura dos
celtas, não desapareceu apesar da dominação cultural imposta
pelos cristãos saxões - apenas teve suas imagens arquetípicas
atualizadas.
De forma análoga e não ficcional podemos observar o
panteão das religiões afro-brasileiras atualizando e
amalgamando-se com os santos católicos no Brasil. (PRANDI,
1997).
A raiz grega da palavra símbolo “[…] por si mesmo já
indica algo ‘trançado, amontoado’ e assim é o ‘sinal’ ou a
‘insígnia’ de algo vivo […]”. (SCHMITT apud JACOBI, 1991,
p.88).
Na psicologia analítica, segundo Jacobi (1991, p. 90), o
símbolo é: “[…] uma espécie de instância mediadora entre a
incompatibilidade do consciente e do inconsciente, um
autêntico mediador entre o oculto e o revelado.”
Os arquétipos são conteúdos pertencentes ao inconsciente
coletivo e não costumam emergir à mente consciente,
permanecendo assim ocultos. De acordo com Jacobi (1991, p.78)
os arquétipos são: “[…] essencialmente, energia psíquica
aglomerada […].” Essa energia aglomerada que provém do
inconsciente coletivo seria vazia e disforme, portanto
inimaginável. Mas o consciente de cada indivíduo logo
encontrará uma forma, por assim de dizer, de preencher esse
conteúdo inimaginável com material imaginável. Ou seja, o
consciente irá associar tal conteúdo com material semelhante
13
já existente, para que as formas arquetípicas possam tornar-se
perceptíveis. (JACOBI, 1991).
Assim sendo, a formação de símbolos se faz necessária,
pois esta possibilita que conteúdos arquetípicos do
inconsciente transpassem para a consciência, sem que ocorra
uma invasão arquetípica. Caso isso ocorra, o encontro direto
com o arquétipo seria insuportável ao ego que consequentemente
fragmentaria-se diante da força arquetípica não intermediada
pelo símbolo. Portanto, “A alma […] cria símbolos.”
(JACOBI,1991, p. 72). Dessa forma é possível dizer que cada
símbolo também constitui um arquétipo, “[…] no entanto, o
arquétipo não necessita ser idêntico a um símbolo.” É preciso
estar ciente de que: Os arquétipos e imagens arquetípicas não
se prestam da forma igual à formação de símbolos. (JACOBI,
1991).
Jacobi (1991) descreve didaticamente as etapas do processo
que corresponderia à formação de símbolos na psique humana. O
arquétipo que jaz no inconsciente coletivo seria como: “[…] um
‘elemento nuclear’ invisível […] [à consciência]”. (JACOBY,
1991, p.107).
O arquétipo quando constelado recebe uma carga de energia.
A carga energética do arquétipo age sobre o consciente tal
como uma atração magnética e atraída pela carga do arquétipo o
consciente finalmente consegue percebê-lo. Então, o arquétipo
percebido pode tomar forma em duas esferas: na esfera
biológica, como impulso; ou, na esfera intelectual, como
imagem ou ideia. Posto isso, “[…] associa-se a ele [o
arquétipo] a matéria-prima da imagem e a configuração do
14
sentido e daí nasce o símbolo.” (JACOBI, 1991, p. 107, grifo da
autora).
O símbolo formado pode ser percebido ou sentido pela
consciência de três maneiras possíveis. Uma destas é de “[...]
maneira relativa; como pertencente ao ‘eu’; mas não será
revelado inteiramente e, por isso, continuará ‘vivo’ e ativo;”
(JACOBI, 1991, p. 108).
O símbolo também pode ser “[...] completamente perscrutado
e explorado, parecendo assim ser plenamente integrado e
assimilado pelo consciente, mas, na verdade, perde com isso a
sua ‘vida’ e eficácia [...]”. (JACOBI, 1991, p. 108). Ao mesmo
tempo se não assimilado pelo ego pode “[...] opor-se
inamistosamente, quando [...] incompreendido e como
manifestação de um complexo [...] oculto por trás dele, como
algo estranho, à consciência do ‘eu’, [podendo causar assim]
uma dissociação na psique”. (JACOBI, 1991, p. 108).
Existem símbolos que se constelam em nível coletivo e que
serão venerados, esses são os que se formaram através dos
milênios de civilização e que têm significado para um grande
número de pessoas, como por exemplo, a cruz3 que aparece em
várias culturas e também na cristã. Segundo Jung (2011a, p.
86) é “[…] o símbolo do sofrimento da divindade que salva o
mundo. Existem também os símbolos cujo significado ficará
restrito a uma esfera mais individual”. Estes símbolos surgem
a partir da capacidade psíquica de cada indivíduo em formá-
los, tendo como base formas arquetípicas fundamentais.
3 Exemplarmente, Cruzes Tau e Ansata egípcias, cruz Anu assíria, cruz celta e cruz Gamada hindu.
15
(JACOBI, 1991). A forma com a qual o símbolo se apresenta,
pode variar ou se modificar de acordo com a época na qual o
indivíduo está inserido e as características pessoais de cada
um. (JACOBI, 1991).
2.4 MITOS E PSICOLOGIA ANALÍTICA
A psicologia analítica tem uma relação bem próxima com a
mitologia, pois essa vem sendo peça fundamental desde seus
primórdios. Segundo Boechat (2008), a psicopatologia é
importante na fundamentação do construto teórico de todas as
linhas teóricas da psicologia. A esquizofrenia, cujos
conteúdos são intrinsecamente ligados com a mitologia, é a
base do construto da psicologia analítica. (BOECHAT, 2013).
No início de sua carreira médica Jung trabalhou ao lado de
Eugene Breuler, em um hospital psiquiátrico, tratando
pacientes esquizofrênicos. E no delírio destes pacientes, Jung
pode perceber mitogemas4, que são núcleos de mitos, que
apontavam “[…] para uma origem comum, coletiva desses
conteúdos delirantes.” Os mitogemas (mitemas)5 propiciaram a
Jung a percepção do que ele viria a compreender futuramente
como inconsciente coletivo. A partir do contato com estes
pacientes, Jung formulou a hipótese da existência tanto do
4 O termo mitogema, foi pesquisado em diversas fontes, no entanto somente otermo Mitologema que é análogo foi encontrado. Mitologema é conjunto devárias histórias míticas que traduzem uma mesma temática (exemplo:mitologema do rapto, mitologema do nascimento virgem, ou da iniciaçãofeminina, etc. (ALVARENGA, 2007, p. 11).5 Mitema é a tradução de cada construtiva dos mitos e mitologemas; porexemplo: reconhecimento do herói pela cicatriz na perna. (ALVARENGA, 2007,p. 11).
16
inconsciente coletivo quanto dos arquétipos. (BOECHAT, 2008,
p.31).
Para compreender melhor os mitogemas apresentados por seus
pacientes, Jung se dedicou intensamente ao estudo do
misticismo oriental, alquimia medieval, cristianismo, crenças
aborígenes etc. (HOLLIS, 1997).
Portanto, o analista junguiano, a exemplo de Jung, deve
ser um conhecedor de mitologia, pois, de acordo com Henderson
(2008), a conexão entre os mitos arcaicos ou primitivos e os
símbolos produzidos pelo inconsciente é de grande importância
prática para o analista.
3 O MITO DE ASCLÉPIO E QUIRÃO E O ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO
Neste tópico será apresentado o mito de Asclépio e o
arquétipo do curador ferido. Sendo também abordada também a
relação analítica e como o curador ferido se constela na
análise.
3.1 O MITO DE ASCLÉPIO E QUIRÃO
O mito de Asclépio é a representação mitológica mais
didaticamente próxima que pode ser aplicada na compreensão do
17
arquétipo do curador ferido. Todavia, há outros mitos no qual
o curador ferido também é retratado, como o da divindade
canina Babilônica que possuía dois nomes: Gula, que significa
morte e Labartu, que significa cura. Entre os deuses indianos
há também Kali que é a deusa da cura e ao mesmo tempo da
varíola. (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008). No entanto, na delimitação
do objeto deste trabalho acadêmico optou-se pelo mito grego de
Asclépio (Esculápio, na versão romana).
Asclépio é filho da mortal filha de Flégias, rei dos
Lápitas, a Ninfa Corônis com o Deus Apolo. Corônis, temendo
que Apolo, sendo imortal e eternamente jovem, acabasse por
abandoná-la na velhice, uniu-se, mesmo grávida, a Ísquis, que
foi morto pelo deus. Corônis não teve um destino muito
diferente de seu consorte, ela foi morta por flechas da deusa
Ártemis a pedido de seu irmão Apolo. (BRANDÃO, 1987).
Quando Apolo encomendou a morte de Corônis, ele não estava
ciente de que ela esperava um filho seu. Mas assim que soube
do fato o deus enviou Hermes até a pira funerária de Corônis
para que ele resgatasse o feto. (HART, 2000 apud WADDEL,
2011).
O filho de Apolo com a mortal Corônis foi entregue aos
cuidados do Centauro Quirão. De acordo com Brandão (1987),
Quirão é filho do Deus Crono que se uniu a Fílintra sob a
forma de um cavalo, por isso o centauro possuía dupla
natureza: equina e humana. O Centauro Quirão pertencia à
geração divina do Olimpo. Quirão morava em uma gruta no monte
Pélion. E a ele eram confiados diversos heróis, para que
fossem educados e treinados, dentre os quais podemos citar:
18
Jasão, Peleu, Aquiles e Asclépio. O sábio centauro, amigo dos
humanos, era responsável por ensinar a estes heróis música,
arte da guerra, moral, mas principalmente a medicina.
O nome do centauro Quirão é uma provável abreviatura da
palavra óKheirurgós), “[...] que trabalha ou age com
as mãos”, cirurgião. Foi um excelente médico, pois sabia
compreender aqueles quem tratava, por ser um “médico ferido”.
(BRANDÃO, 1987, p. 90).
Conta-se que durante o massacre dos centauros por
Héracles, Quirão, que era amigo e aliado do herói, foi
acidentalmente atingindo por uma flecha envenenada disparada
por Héracles. O Centauro aplicou unguentos sobre o ferimento,
mas este era incurável. Devido à dor intensa causada pelo
ferimento, se recolheu à sua gruta e desejou a morte. Mas nem
isso lhe foi possível, pois ele era imortal. Prometeu, que
havia sido castigado por Zeus por entregar o fogo aos homens,
havia nascido mortal e cedeu ao Centauro o direito de morte,
que assim pôde descansar. (BRANDÃO, 1987). Zeus em homenagem a
Quirão o transformou em constelação colocando-o no céu como a
constelação de sagitário.
Asclépio teria crescido sob a tutela de Quirão no “[…]
aprazível e regenerador monte Pélion, [lá] o filho de Apolo
fez […] progressos na medicina, e chegou mesmo a ressuscitar
vários mortos.” (BRANDÃO, 1987, p.90). Conta-se que Asclépio
adquiriu a habilidade de ressuscitar os mortos matando uma
cobra que o picou enquanto ele estava cuidando do morto
Glaucus. Logo depois, ele se deparou com o par da cobra e
curou sua companheira morta com ervas. Asclépio teria
19
replicado a técnica para reviver Glaucus. (WILCOX; WHITLAM,
2003 apud WADDEL, 2011, p.62).
Plutão, sob a alegação de que a imortalidade era uma
prerrogativa exclusiva dos deuses, pediu para que Zeus tomasse
alguma providência quanto a Asclépio. Zeus fulminou o filho de
Apolo com um raio. (GRAVES, 1960 apud WADDEL 2011, p.62). Após
sua morte houve tão forte comoção entre os humanos, que Zeus o
levantou dos mortos e o imortalizou. (COTTER, 2011).
[…] Asclépio é um herói-deus muito antigo e deve ter‘vivido’ lá pelo século XIII a.C., pois já oencontramos, como médico, na célebre expedição dosArgonautas, em companhia de heróis como Jasão, Peleu,Héracles, os Dioscuros (Castor e Pólux) e tantos outros…(BRANDÃO,1987, p. 90).
Segundo Brandão (1987 p.90-91). Asclépio fixou-se em
Epidauro “[…] onde o médico Apolo há muito reinava. Asclépio,
‘o bom, o simples, o filantropíssimo’, como lhe chamavam os
gregos, desenvolveu ali uma verdadeira escola de medicina,
cujos métodos eram sobretudo mágicos […]”, esta escola foi a
precursora de uma medicina mais científica praticada pelos
“Asclepíades” (descendentes de Asclépio), tendo entre seus
praticantes mais notáveis Hipócrates. (BRANDÃO,1987).
A natureza de Asclépio era ambígua, divina e humana ao
mesmo tempo, sendo ele cultuado como deus e como herói. A
Asclépio eram outorgadas oferendas como deus e sacrifícios
eram ofertados como herói. O culto a Asclépio como herói era
“oculto”, “[…] pelo Thólos (edifício abobadado, rotunda) de
Epidauro, famoso por sua luxuriosa ornamentação e seu
misterioso Labirinto”. (BRANDÃO,1987, p.91).
20
Neste templo era mantida a serpente que de acordo com a
cultura da época, possuía o dom da adivinhação. Por ser
ctônica e trocar sempre de pele a serpente simbolizava a vida
que renasce e se renova continuamente. As curas do corpo que
ocorriam em Epidauro, somente eram consideradas completas,
quando se curava primeiro a mente. “Em outros termos, só
existia cura, quando havia metánoia, ou seja, transformação de
sentimentos.” (BRANDÃO,1987, p.91). Nesse sentido as causas
das doenças eram atribuídas à mente, portanto para que o
processo de cura ocorresse os doentes eram orientados a “[...]
pensar de forma santa”. (BRANDÃO, 1987). “Era, portanto, o
equilíbrio biopsíquico o fator básico, o medicamento de uma
cura irreversível!” (BRANDÃO,1987, p.91). Nesse sentido, os
sacerdotes do templo de Epidauro davam grande importância aos
sonhos dos pacientes que adormeciam no Santuário de Asclépio.
Esses sonhos do paciente eram considerados manifestações do
divino, Asclépio vinha visitar os pacientes através dos
sonhos, “[…] e tocava as partes enfermas do organismo. [Esses
sonhos] eram interpretados pelos Sacerdotes que, em seguida,
‘aviavam a receita’. Era o que se denomina mântica por
incubação”. (BRANDÃO,1987, p.92). “Muitas vezes, no entanto,
o deus aparecia sob a forma de um animal, ou seja, a
serpente.” (KERÉNYI, 1959 apud GROESBECK 1983, p.76).
Em um caso de cura ocorrido no templo de Epidauro, citado
por Groesbeck (1983), um homem tessálio, teve uma visão em seu
sonho de cura. Pandarus tinha cicatrizes na testa e em seu
sonho Asclépio, pousava uma atadura sobre as cicatrizes e em
seguida ordenava que ele, ao sair do lugar sagrado, deveria
21
retirar a bandagem e a dedicar ao templo. Ao amanhecer o
tessálio se levantou e retirou a bandagem. Sua face estava sem
as cicatrizes, que haviam “passado” para atadura. O homem,
assim como foi ordenado pelo deus, dedicou-a ao templo.
O ato de pendurar as ataduras nas árvores do templo era
feito na intenção de que a doença se “transferisse” para as
árvores. “Meier acredita que o significado do termo
‘transferência’ originou-se, aparentemente, desta idéia.”
(MEIER, 1959 apud GROESBECK 1983, p.76).
O ex-voto seria o paralelo presente na cultura brasileira
para a prática de pendurar ataduras nas árvores. O termo ex-
voto é a abreviatura latina de “[…] ex-voto suscepto (‘o voto
realizado’), o termo designa pinturas, estatuetas e variados
objetos doados às divindades como forma de agradecimento por
um pedido atendido.” A prática do ex-voto pode ser observada
em diversas culturas, não se sabe ao certo, mas várias fontes
apontam que esta prática se iniciou entre os fenícios. “O
costume de oferecer ‘presentes votivos’ se dissemina pelas
Américas do Sul e Central, entre a colonização portuguesa e
espanhola, e as missões católicas romanas.” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ
CULTURAL ARTES VISUAIS, 2013).
3.2 CURADOR FERIDO
Na perspectiva junguiana “[…] um ‘curador ferido’ não é
aquele que ‘uma vez foi ferido — mas agora está curado’, mas
22
aquele que permanece vulnerável (a palavra latina ‘vulnus’
significa ‘ferida’)”.6 (SEDGWICK, 2004, p.112, tradução nossa).
Segundo Guggenbühl-Craig (2008, p. 90) “[…] todos temos
dentro de nós o arquétipo da doença-saúde”. Um paciente, ao
procurar um analista, projeta seu paciente interior sobre o
terapeuta, ao mesmo tempo seu terapeuta interior se manifesta.
Este terapeuta interior também pode ser chamado de “fator de
cura”. (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008, p. 85).
No terapeuta é ativado seu lado interior ferido, “[…] sua
própria doença – psíquicas, somáticas ou ambas – ainda não
resolvidas – ao entrar em contato com a pessoa enferma.”
(GROESBECK, 1983, p. 77). Assim sendo, Guggenbühl-Craig (2008)
adverte que nem todos os que escolhem a psicoterapia como
carreira estão preparados para suportar a exposição continua
aos dois pólos desse arquétipo.
Análogos aos estudantes de medicina que acreditam ter
todas as patologias, os estudantes de psicologia, que ao
estudarem psicopatologia, acreditam ter todas as enfermidades.
“Esta fase um tanto neurótica representa um ponto crítico para
o estudante.” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008, p. 91). Mas se for
capaz de superar isso começará a compreender que esses males
existem nele próprio. É assim que ele se torna o terapeuta
ferido.
Guggenbühl-Craig (2008) afirma que os arquétipos possuem
dois pólos. No entanto, os arquétipos podem possuir mais que
dois pólos, sendo dessa forma multifacetados. Na
6 “From a Jungian perspective a ‘wounded healer’ does not mean a ‘oncewounded—now recovered’ one, but one who is currently vulnerable as well (theLatin word ‘vulnus’ means ‘wound’).
23
verdade, não sabemos ao certo como os arquétipos se
comportam. “Mas, na psicologia humana que conhecemos ambos os
pólos estão contidos no mesmo indivíduo. Nascemos todos com
ambos os pólos dentro de nós.” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008, p.
84).
O arquétipo do curador ferido possui o pólo da saúde e o
da doença. Alguns terapeutas irão tentar negligenciar o pólo
da doença contido no arquétipo do curador ferido, e por vezes
projetarão a doença sobre o paciente de forma integral, pois
“[…] identificam-se exclusivamente com o pólo da saúde. Mesmo
assim os pacientes e as feridas não o deixam em paz; quer
queira, quer não, tudo isso lhe pertence.” (GUGGENBÜHL-CRAIG,
2008 p. 88).
Portanto para que se possa unir o arquétipo do curador
ferido cindido é necessário que o analista esteja ciente
de suas próprias feridas. Fazer isso implica em tornar-se
ciente da própria vulnerabilidade, permitindo assim que o
paciente se implique no processo de cura.
(GROESBECK ,1983).
De acordo com Guggenbühl-Craig (2008, p.33), a imagem dos
profissionais de ajuda (assistentes sociais, terapeutas,
médicos, sacerdotes) têm também seu aspecto sombrio, “[…] o
qual representa o oposto do ideal luminoso.” Ou seja, sua
persona.
A imagem profissional corresponde ao conceito de persona.
Para Jung (2008a, p. 43) persona era o termo que “[…]
designava originalmente a máscara usada pelo ator,
significando o papel que ia desempenhar”. A persona não
24
corresponde à realidade do indivíduo, mas “[…] um compromisso
com a sociedade”. A maioria das profissões possui uma persona
característica e a sociedade espera certo tipo de
comportamento e, na maioria das vezes, o profissional se
esforça para corresponder a essas expectativas. (JUNG, 2000b).
Para Guggenbühl-Craig (2008), a sombra do analista
conteria o charlatão e o falso profeta, que se constelaria
justamente a partir do seu desejo de servir e ajudar seus
pacientes.
A Sombra, segundo Stein (2006, p.98), “[…] é o lado
inconsciente das operações intencionais, voluntárias e
defensivas do ego.” Sendo assim: “A sombra é caracterizada
pelos traços e qualidades que são incompatíveis com o ego
consciente e a persona.” (STEIN, 2006, p. 100). No conteúdo da
sombra pessoal existem: “[...] aspectos rejeitados e
inaceitáveis da personalidade que são recalcados e formam uma
estrutura compensatória para os ideais do Si-mesmo do ego e
para a persona.” (STEIN, 2006, p. 206). Porém nem todos os
conteúdos da sombra são nefandos ou prejudiciais. Pois, de
acordo com Henderson (2008), a sombra também pode conter
impulsos criativos bem como qualidades expressas e não
expressas do indivíduo.
Todavia, o charlatão contido na sombra, ao contrário do
desejo consciente do analista, “[…] só busca satisfazer seus
próprios desejos”. (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008, p.44). O analista
precisa “[…] portanto, estar o mais consciente possível do
modo como ele pode estar usando seus pacientes com objetivo de
25
satisfazer suas próprias necessidades pessoais […]”. (JACOBY,
2011, p.135, grifo nosso).
Dessa forma é possível considerar que o curador ferido
pode usar o analisando para entrar em contato com sua própria
ferida, paralisando assim, a análise daquele de acordo com sua
sombra, o que seria extremamente prejudicial a ambos.
3.3 RELAÇÃO ANÁLITICA E O CURADOR FERIDO
Segundo Jacoby (2011, p.19) “[…] a prática da psicoterapia
junguiana consiste em duas pessoas se encontrando para tentar
compreender o que se passa no inconsciente de uma delas”. O
que não quer dizer que o inconsciente de ambos não deva ser
considerado. Groesbeck (1983, p. 80) aponta a importância
especial da comunicação que ocorre entre os inconscientes do
analista e do paciente: segundo ele, as: “[…] comunicações
inconscientes entre analista e paciente desempenhariam,
aparentemente um papel crucial” na análise. Seguindo um modelo
relacional alquímico, Jung (1981, p.68) afirma que o: “[…]
encontro de duas personalidades é como a mistura de duas
substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação,
ambas se transformam”.
A psicologia junguiana apresenta um modelo relacional que
pode ser expresso através da seguinte ilustração:
FIGURA 1 — modelo relacional analítico
26
Fonte: JACOBY, 2011, p. 37.
Este modelo serve para ilustrar o que ocorre tipicamente
durante um encontro analítico. Jacoby (2011, p. 38) decodifica
este modelo: P representa o paciente que vai até o consultório
do analista A. P tem dificuldades ou sintomas dos quais deseja
se ver livre, em suma, curar-se. O analista esclarece ao
paciente que o sucesso está ligado diretamente a cooperação
entre P e A e que diferente do comportamento esperado de uma
paciente que se submete a um tratamento alopático7. Assim, P
não deverá se submeter ao processo de análise de forma
passiva. Afinal P está desprendendo uma boa quantia de
recursos monetários, portanto é razoável que este deseje
colaborar com o próprio tratamento, caso “[...] ambos pensem
que vale a pena fazer uma tentativa com psicoterapia.” P e A7 O tratamento alopático é o modelo de tratamento mais adotado entre osmédicos ocidentais. Este modelo de tratamento separa rigidamente osaspectos "físicos" dos emocionais ou "mentais ", seus adeptos geralmenterelutam em compreender, inclusive que há ligação entre estes aspectos. Umavisão reducionista, biomecânica produz um retrato fragmentado do serhumano, cuja consequência é o excesso de especialização dos profissionaisda área médica. (COTTER, 2011).
27
concordam em cooperar mutuamente e estabelecem uma relação
consciente para trabalhar as dificuldades de P na linha (a).
(JACOBY, 2011).
No entanto, a relação analítica irá frequentemente se
expandir além do acordo entre os egos de P e A, pois ambos
possuem um lado inconsciente. Dessa forma podemos supor que o
inconsciente de P responda ao de A linha (b). Este
relacionamento pode produzir efeitos diversos em P. Isto é P
poderá ser para A “[…] emoções mais ou menos intensas que, em
geral, não pertencem a A, mas sim as experiências de P. A tem,
portanto, a possibilidade de entrar até certo ponto até certo
ponto no inconsciente de P […]”. (JACOBY, 2011, p.39).
O estabelecimento relacional tanto com ego quanto com o
inconsciente de P irá favorecer o processo expresso nas linhas
(a) e (f). A será, portanto o agente facilitador do contato
com sua própria alma representada pela linha (d). (JACOBY,
2011).
De fato, A também será afetado pelo contato com P. Ele
pode agir empaticamente em relação a P, desejando assim
auxiliá-lo, ou pode achá-lo enfadonho e fútil. Dessa forma A
constrói uma imagem de P e concebe como este poderia
idealisticamente se modificar. Os sentimentos do analista em
relação ao paciente irão interferir de um modo ou de outro no
encontro analítico. “Sempre haverá pontos cegos e áreas
inconscientes enquanto vivermos […]”. (JACOBY, 2011, p.41).
Jung (1981, p.6) explicita sua preocupação quanto à
interferência dos pontos cegos da personalidade do analista no
processo de análise ao afirmar que: “Aquilo que não está claro
28
para nós, porque não o queremos reconhecer em nós mesmos, nos
leva a impedir que se torne consciente no paciente,
naturalmente em detrimento do mesmo.” Ou seja, o analista só
pode levar até onde foi. Assim Jung (1989) afirma ser
fundamental para o candidato a analista se submeter à análise
didática8.
No entanto, todo analista junguiano tem consciência que
não cabe a ele a função de curar9, já que a verdadeira
transformação provém da mudança de atitude por parte do
próprio paciente. (JACOBY, 2011). Hillman (2009, p. 138)
corrobora o ponto de vista de Jacoby (2011) ao afirmar que:
“Na realidade, o analista não é o Curador. Não há Curadores;
há apenas aqueles através de quem opera o arquétipo do curador
[…].”
Mas como o arquétipo do curador ferido se constela na
relação analítica? Segundo Groesbeck (1983) o arquétipo do
curador ferido é constelado a partir do momento em que alguém
adoece. Tal afirmativa pode ser atestada com a analogia entre
o arquétipo e condições de germinação da semente promovida por
Bolen (1990): a germinação das sementes depende de condições
climáticas favoráveis, da presença ou ausência de nutrientes
8 O candidato a analista junguiano deverá se submeter a análise, o queimplica conhecer e enfrentar seus próprios conflitos internos, afim dereduzir os efeitos nefandos da contratransferência. A análise didáticapassou a ser considerada como uma condição sine qua non para a formação doanalista, a partir da descoberta dos efeitos da contratransferência, quepode dificultar ou até mesmo impedir que uma relação analítica aconteça deforma positiva. É de certa forma conhecimento geral que análise de umanalista nunca irá se encerrar de fato, isso quer dizer que o analistadeverá se autoanalisar constantemente. (FORDHAM, 2005).9 Intencionalmente não nos preocupamos aqui em apontar conceitualmente o queseria cura. De forma genérica, a entendemos como suspensão de sintomas eencontro de sentido substancial.
29
no solo, do cuidado ou da negligência de quem as cultiva, do
tamanho e da profundidade se forem plantadas num vaso e da
resistência da própria espécie. Assim também seriam as
manifestações arquetípicas.
Jung (1954) afirma que todo terapeuta sabe ou pelo menos
deveria saber que não escolheu essa carreira por acaso. Jung
(1989, p.134, tradução nossa)10, afirma, em relação ao
arquétipo do curador ferido: “[…] só o terapeuta ferido cura”.
Portanto, estar atento a esse aspecto, associando-o ao modelo
relacional analítico, é fundamental tanto ética quanto
tecnicamente no processo de análise.
No entanto, isto não quer dizer necessariamente que o
terapeuta tenha que estar doente. Pois aquele que tem a
capacidade de curar a si mesmo não é aquele que está doente,
mas sim aquele que esta em condição de ajudar aos demais, por
ter seu núcleo mais íntimo intacto e um ego fortalecido. (VON
FRANZ, 1999). Todavia, o conceito de saúde “[…] varia de
pessoa para pessoa e muda com o tempo. Em termos junguianos a
visão arquetípica de ‘saúde’ é um estado de espiríto no qual a
energia do corpo está equilibrada e fluindo livremente.”
(HOCKLEY, p.16, tradução nossa).11
3.3.1Transferência
Stein (2006) entende que a transferência na psicologia
analítica é o que permite no processo de análise que o
10 "Only the wounded physician heals."11 “[…] varies from person to person and changes over time. In Junguianterms, the archetypal view of health is that it is a state of being inwhich the body's energy is balanced and flowing freely.”
30
paciente projete figuras de sua psique sobre o analista.
Segundo Fordham (2005), Jung também apontou os aspectos
incestuosos, eróticos e infantis da transferência. Acerca do
encontro analítico Jacoby (2011, p. 20) afirmou que este, “[…]
pode tornar-se tão complexo quanto uma relação íntima.
Fantasias inconscientes provindas de necessidades vitais
tendem a aparecer entre os parceiros”. Os fenômenos da
transferência e da contratransferência devem ser levados em
conta.
A importância da transferência no encontro analítico pode
variar de acordo com a linha teórica adotada pelo terapeuta.
Nesse sentido, as visões da Psicologia Analítica e da
Psicanálise se diferem.
Para a psicanálise (QUINET, 2009, p.11) um paciente antes
de ser aceito tem que passar por um processo que Lacan
denominou de entrevistas preliminares: “[…] que têm suas
funções diagnósticas e dentre elas está a transferência. Elas
correspondem ao que Freud denominou tratamento de ensaio.”
Portanto o processo de análise não se inicia sem que a
transferência seja estabelecida, embora não se saiba ao certo
o que a condiciona. O que se sabe é que ela não depende do
analista e sim do analisante (sic), a transferência seria,
portanto o sinal da entrada da análise. (QUINET, 2009).
Todavia, “[…] para o psicólogo analítico, ela será apenas,
um dos muitos instrumentos em sua abordagem”. (ADLER, 1977,
p. 63). Para Jung, a transferência não seria algo
indispensável, podendo ser comparada à questão de fé, que só
tem valor se for espontânea. Fé e transferência não poderiam
31
ser criadas de forma artificial e nem ocorrer
obrigatoriamente. Portanto a transferência seria uma projeção,
não sendo um algo que se possa exigir ou obrigar (JUNG, 1954).
A transferência pode ser positiva ou negativa para o
encontro analítico. Segundo Jung (1999, p. 35): “A
transferência pode ser comparada àqueles medicamentos que para
uns são remédio e, para outros, puro veneno.” (JUNG, 1999, p.
35). Ela tanto pode representar uma mudança benéfica, quanto
um entrave, ou poderá não ser relevante no encontro analítico.
(JUNG, 1999).
Segundo Fordham (2005), Jung chegou afirmar que se a
transferência não ocorrer, tanto melhor. Pois o material que
emerge de fenômeno irá ser obtido de outras formas, como por
exemplo, através da análise dos sonhos. Todavia, Jung é de
certa forma ambivalente em relação à transferência, pois ele
reconhece sua importância, mas ainda assim afirmou que:
“Quanto a mim, sempre fico satisfeito quando a transferência
transcorre de maneira suave ou praticamente imperceptível.”
(JUNG, 1999, p. 56).
Quando há uma transferência do curador ferido na relação
terapêutica há uma perspectiva muito positiva no processo
analítico. De acordo com Jacoby (2011, p.26), a transferência
“[…] deve, portanto, ter não somente uma causa, mas um
propósito.”
Tanto a transferência quanto a contratransferência são
formas de projeção, e segundo Stein (2006, p. 206) a projeção
pode se entendida como: “A exteriorização de conteúdos
32
psíquicos inconscientes, ora para fins defensivos, […], ora
para fins de desenvolvimento e integração […].”
Na mesma direção Guggenbühl-Craig (2008, p. 86) aponta que
a transferência durante a constelação do arquétipo do curador
de ferido ocorre de maneira positiva quando “[...] o paciente,
[...] [projeta] seu paciente interior sobre o terapeuta que o
trata [...]”. O paciente ao procurar um terapeuta, transfere
suas feridas sobre este, ativando seu fator de cura interno
(“aquele que cura ou seu médico interior”). (GUGGENBÜHL-CRAIG,
2008). Todavia: “Este [fator de cura interna], no entanto, não
se integra à consciência sendo projetado e constelado pela
persona do terapeuta”. (GROESBECK, 1983, p. 77). A cura
verdadeira só pode ocorrer quando “[...] o paciente entra em
contato com seu ‘terapeuta interior’ e dele recebe ajuda”.
(GROESBECK, 1983, p. 77).
No entanto, a transferência do pólo ferido sobre o
terapeuta em sua forma negativa pode fazer com que o paciente,
passe a depender inteiramente do terapeuta para se cuidar
“[...] colocando nas mãos deste seu próprio fator curativo e
deixando o barco correr” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008, p. 86), o
que certamente não levaria a um processo de crescimento
psíquico.
3.3.2 Contratransferência
A questão da contratransferência é raramente abordada nos
livros por diversas razões, e em alguns casos pode ser de
fundo defensivo. Parte da dificuldade em se abordar a
33
contratransferência, fora o incômodo que ela naturalmente
gera, é o fato dela possuir uma conotação geralmente negativa.
(SEDGWICK, 2004).
Mas, segundo Adler (1977), a contratransferência pode ser
um instrumento de tratamento na psicologia analítica,
considerando seu modelo relacional. No entanto, a
contratransferência construtiva deve ser diferenciada das
manifestações negativas da mesma, “[…] tais como
identificações inconscientes e projeções devidas aos complexos
neuróticos não analisados do analista e, que levam a
envolvimentos inconscientes prejudiciais […].” (ADLER, 1977,
p.60)
A contratransferência negativa pode gerar ainda, sérios
entraves ao encontro analítico, pois esta “[…] libera ‘ódio’,
o pólo negativo da relação, pelo qual sua natureza ambivalente
pode tornar-se acessível ao paciente sem temor de retribuição
ou rejeição.” (ADLER, 1977, p.62).
Nesse sentido, não é fácil para os terapeutas tomarem
consciência da contratransferência. Estes resistem a admitir
que possam ser afetados, no mais íntimo de si mesmos, “[…] por
um paciente ‘qualquer’“. (JUNG, 1999, p. 46). Portanto “[…]
seria melhor aceitar este fato e estar o mais consciente dele
possível”. (JACOBY, 2011, p.54).
Jung (1990, p.19) retrata os riscos ocupacionais aos quais
o terapeuta se expõe: “Ninguém mexe com fogo ou veneno sem ser
atingido em algum ponto vulnerável; assim, o verdadeiro médico
[analista] não é aquele que fica ao lado, mas sim dentro do
processo.”
34
De acordo com o modelo relacional proposto, “Mesmo o
psicoterapeuta experiente terá que descobrir incessantemente
que um laço e uma ligação que lhe dizem respeito se criam a
partir de uma noção de um inconsciente comum.” (JUNG, 1999, p.
47). Ainda que o terapeuta possua amplo conhecimento sobre
arquétipos constelados, ele será impelido a reconhecer que
existem muitas coisas que irão transcender seu conhecimento
acadêmico. (JUNG, 1999).
A identificação do terapeuta com seu paciente é baseada em
componentes de sua verdadeira personalidade, e por isso ele e
o paciente estão interligados por uma ferida mútua. Sendo
assim, o trabalho que o analista faz em si mesmo tem efeito
nos complexos do paciente. (SEDGWICK, 2004). Isto quer dizer
que se a contratransferência que ocorre durante a constelação
do arquétipo do curador ferido for negativa, há o risco do
lado ferido do analista contaminar o paciente e fazer com que
este adoeça. (SEDGWICK, 2004).
No entanto, uma contratransferência positiva pode fazer
com que o analista no qual se manifesta o arquétipo do curador
ferido tenha manifestações psíquicas sobre seu paciente, e
trazer algo relevante sobre aquela ánalise.
4 HOUSE, O CURADOR FERIDO
35
Rosário (2007) afirma que o cinema é considerado uma das
grandes expressões míticas da contemporaneidade, ou seja, um
locus privilegiado para se perceber manifestações dos
arquétipos. Anteriormente, manifestações arquetípicas
existentes do inconsciente coletivo se constelavam através dos
mitos e mobilizavam os seres humanos. No mundo atual, elas se
também se manifestam através da sétima arte, que produz filmes
que levam multidões aos cinemas. Analogamente, podemos
observar tal fenômeno em séries de televisão, que duram por
anos e conquistam fieis expectadores por todo mundo, como foi
o caso da série House M.D. Nesse sentido, entendemos a
pertinência de tentar compreender esse personagem à luz da
psicologia Junguiana.
4.1 O PERSONAGEM
A série estadunidense House M.D. foi produzida pelo canal
Fox, e foi exibida entre 2004 e 2012, com 8 temporadas em um
total de 177 episódios. A maioria dos acontecimentos da série
transcorre no hospital fictício Princeton-Plainsboro Teaching,
situado em Priceton no estado de Nova Jersey. A série tinha
uma estrutura básica que consistia no caso médico da semana, e
os relacionamentos humanos da série ocorriam durante a
resolução dos mesmos.
House e sua equipe utilizavam métodos de diagnóstico como:
equipamento de ponta, testes laboratoriais, intervenções
arriscadas e a pouco ortodoxa invasão do domicílio do paciente
em busca de vírus e bactérias, que poderiam ajudar a
36
justificar o quadro clínico do paciente. Gregory House é chefe
do departamento de diagnósticos do hospital Princeton-
Plainsboro Teaching e o protagonista da série. (IZOD, 2011).
Ao relutar em ter contato com seus pacientes, as práticas
médicas do personagem diferem bastante da tradição de
Asclépio, que devido ao seu sofrimento passado, respondia
empaticamente ao sofrimento psíquico de seus pacientes. Já
House luta contra tal intimidade. (COTTER, 2011). Ele sustenta
sua posição afirmando: “Tratar doenças é razão pela qual nós
nos tornamos médicos. Tratar pacientes é que faz a maioria dos
médicos miseráveis.” (IZOD, 2011, p. 34)12.
Por certo House é um curador ferido, mas seu comportamento
seria mais claramente classificado como um médico alopata
ocidental. No entanto, sua ferida na coxa, vício por Vicodin13
e seus métodos de diagnóstico invasivos, que muitas vezes
levam seus pacientes à beira da morte, permitem que House seja
enquadrado, em pelo menos três categorias do arquétipo do
curador ferido: o curador que cura através de suas feridas,
curador que passou perto da morte e se recuperou e o curador
que possui uma ferida permanente (COTTER, 2011).
House pode ser enquadrado na categoria do curador que cura
através de suas feridas, pois ele usa a si próprio como um
laboratório experimental. Por mais de uma vez, House tentou
realizar intervenções cirúrgicas em si mesmo. Embora na12 “Treating illnesses is why we became doctors. Treating patients is whatmakes most physicians miserable.”13 Vicodin é um medicamento a base de ópio que contém paracetamol,acetaminofeno e hidrocodona que agem sobre certos centros no cérebro paraalívio da dor. Ele consegue ser ainda mais forte que o Tramadol, um dosmedicamentos mais fortes para o controle da dor, tendo ação quase queimediata, mas deve ser utilizado com muita cautela, pois causa dependênciaquímica. (TUA SAÚDE, 2013)
37
maioria das vezes ele esteja procurando a cura de seus
próprios problemas de saúde, em outros casos fica claro que o
fez por seus pacientes (COTTER, 2011).
No episódio 16 da quarta temporada, “Wilson’s Heart”, ele
se submete a uma estimulação elétrica do hipotálamo para
evocar as memórias, sobre ter estado em um ônibus com Amber14,
para que assim ele possa encontrar uma pista do que poderia
ter acontecido com sua ex-funcionária e atual namorada de
Wilson15. O procedimento fez com o médico entrasse em coma
seguido de um mal súbito que afetou seu lobo temporal, que for
fim ampliou a abertura em seu crânio acarretando em uma
hemorragia cerebral. (COTTER, 2011).
House utiliza a si mesmo como um campo de experimento por
vezes incomum. Ele se injetou com nitroglicerina para causar
enxaqueca, a fim de testar um novo medicamento criado por um
ex-colega de faculdade com reputação duvidosa; fez uso de LSD
para se livrar da dor ao constatar que um novo medicamento
realmente não funcionava (COTTER, 2011). O médico mais uma vez
pode ser visto com tipo incomum de curador, pois ele leva a
cabo a afirmação de Jung (1999, p.55) que diz: “[…] é
inevitável que o médico seja de certa forma influenciado […].
Ele ‘assume’ por assim dizer o mal do paciente,
compartilhando-o com ele.” House às vezes assume o mal do
paciente literalmente.
14Radiologista que participou de uma seleção de funcionários, promovida porHouse na quarta temporada, mas não conseguiu a vaga. Retornou na quintatemporada com namorada de Wilson. 15 James Evan Wilson chefe do departamento de oncologia e único amigo deHouse.
38
House também pode ser considerado um curador que passou
perto da morte e se recuperou. O curador que se enquadra nessa
categoria é aquele que através da experiência iniciadora de
quase morrer, e que até certo ponto se mantém constantemente
em contato constante com experiências relacionadas à morte. A
experiência de quase morte pode resultar em uma ferida física
e/ou psicológica permanente. Sendo assim, o curador que andou
perto da morte e se recuperou e o curador que possui uma
ferida permanente se assemelham. (COTTER, 2011).
A dor crônica que mudou a vida do médico para sempre, foi
resultado de um atraso no diagnóstico. Ele teve um coágulo que
não foi descoberto por quatro dias. A consequente morte
celular no músculo de sua perna fez da amputação a única opção
segura. House, mesmo sentindo uma dor excruciante, se recusou
a permitir o procedimento, enquanto Stacey, sua companheira,
tentou convencê-lo a aceitá-lo. Por causa da dor o médico
pediu para ser posto em coma induzido. Com o personagem nesse
estado, Stacey pêde tomar decisões médicas em seu lugar, e
autorizou o procedimento oferecido por Cuddy, diretora do
hospital, que seria a remoção do tecido muscular afetado, uma
espécie de meio-termo para a amputação. O procedimento salvou
a vida de House, mas a remoção do tecido muscular fez com que
o uso da perna ficasse severamente prejudicado e ele passou a
sofrer dor crônica (IZOD, 2011). Este ferimento permanente é o
que impede que ele tenha respostas empáticas. Por causa da
dor, House ficou viciado em Vicodin. Esses acontecimentos
permitem, por fim que, o médico também se enquadre na
categoria do curador de que possui uma ferida permanente.
39
House foi inspirado em Sherlock Holmes, personagem criado
por Sir. Arthur Conan Doyle. Os dois personagens têm várias
coisas em comum, dentre elas podemos citar: a habilidade de
tocar pelo menos um instrumento musical, House e Sherlock
moram no 221B na Baker Street, ambos tem somente um amigo
próximo (Holmes tem Watson e House tem Wilson), Holmes faz uso
de cocaína com fins recreativos e House toma Vicodin para
aliviar a dor que sente na perna. (HOCKLEY, 2011).
Por ser uma espécie de detetive das patologias, House
possui várias características da persona dos detetives da
ficção. Estes costumam ser solitários, parecem ser incapazes
de ter relacionamentos estáveis e por vezes são dependentes
químicos, geralmente alcoólatras. House se encaixa na
descrição exceto pelo alcoolismo, pois sua dependência química
é de analgésicos. (HOCKLEY, 2011).
Entretanto, segundo Rowland (2011, p.149, tradução nossa),
House e Holmes não são exatamente iguais, especialmente em
seus “relacões16”: Holmes termina suas investigações imutável e
quase intocável. Mas House acaba se modificando devido ao
contato com seus pacientes, mesmo que ele não goste disso.
Um exemplo da afirmação acima pode ser observado no
episódio “Autopsy” da segunda temporada. Neste episódio, o
médico e sua equipe tratam uma garota de 9 anos que tem câncer
terminal. A menina aceita um tratamento arriscado e doloroso
para ficar mais alguns meses com sua mãe, e ainda consegue
persuadir Chase (o médico bem apessoado da equipe) a dar um
beijo nela. Segundo Rowland (2011) na saída do hospital a
garota abraça House e numa conversa com ele insiste em sua16 Relations
40
atitude de benevolência e bravura frente à morte, apesar do
desprezo e cinismo do médico. Wilson diz a House que a garota,
apesar de estar morrendo, aproveita a vida mais do ele. House
então sai do hospital e vê uma moto de corrida numa loja, olha
para sua perna prejudicada e chega a desistir de fazer um test-
drive, mas o vendedor afirma que apesar da perna, ele ainda pode
pilotar. Ele termina o episódio pilotando a moto em alta
velocidade numa estrada.
O contato com esta paciente fez com que House desse mais
um passo em seu processo de crescimento psicológico17 e ela não
foi a única a causar uma mudança desse gênero no médico.
4.2 HOUSE E A SOMBRA DO ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO
Após esta breve contextualização do personagem Gregory
House, já nos é possível analisar as razões pelas quais ele
pode ser considerado um curador ferido. Todavia é importante
ressaltar de antemão que House não é um curador ferido tal com
concebido no cânone junguiano.
Como já apontado, Cotter (2011) propõe a existência de
quatro categorias do curador ferido: (1) O curador que cura e
fere, (2) o curador que chegou perto da morte e se recuperou,
(3) o curador que carrega uma ferida permanente e o (4)
curador que cura através de suas feridas.
A primeira categoria é frequentemente ligada ao deus
Apolo, pois ele é capaz tanto de matar ou purificar (KERENYI,
1959 apud COTTER, 2011). A segunda pode ser representada por
Asclépio que foi retirado do ventre de sua mãe por meio de uma17 Veremos nesse sentido o conceito de individuação mais adiante.
41
cesariana, enquanto ela jazia na pira funerária. A terceira
pode ser representada pelo centauro Quirão, que possuía uma
ferida incurável na perna. O quarto tipo pode ser representado
pelo personagem Gregory House da série de televisão House
M.D., embora House não seja curador ferido paradigmático. Mas
sua ferida na coxa, o vício por Vicodin e sua capacidade de
cura são os fatores que permitem que House seja enquadrado, na
quarta categoria do curador ferido. (COTTER, 2011).
Além disso House por vezes corresponde ao pólo negativo do
arquétipo do curador ferido. Pois ele constantemente vê seus
pacientes somente como espécimes propensos a suprir sua
atração por anomalias fisiológicas, sendo ele “[…] mais fixado
no enigma de encontrar a cura do que efetivamente em curar.
Uma vez que seus pacientes estejam curados, ele procura a
próxima investigação médica […]”. (WADDEL, 2011, p. 68,
tradução nossa)18.
A atitude de House é oposta como curador à atitude
esperada por Jung (1963, p. 121) em um analista: “O fato
decisivo [ao atender um paciente] é que enquanto ser humano
encontro-me diante de outro ser humano. […]”. Pois:
A técnica é sempre um esquema sem alma e quem consideraa psicoterapia como simples técnica corre no mínimo operigo de cometer erros irreparáveis. Um médicoconsciencioso deve ser capaz de duvidar de todas as suastécnicas e teorias, caso contrário caí nas malhas doesquema. Mas esquema significa estupidez e inumanidade.(JUNG,1993, p. 159)
House se vale de sua técnica e intuição apuradas e se
recusa a ter qualquer tipo de reação empática em relação a
18 “[House] is fixated on the puzzle of finding a cure rather than actuallycuring. Once patients are healed, he seeks out the next medical quest […].”
42
seus pacientes. Observando como o médico da série se porta e
considerando que um psicólogo também pode apresentar tal
postura, podemos inferir assim através da afirmação acima
mencionada de Jung (1993) que o analista deva tomar cuidado
para não reduzir seu pacientes a enigmas a serem decifrados e
encaixados na técnica que ele domina. Nesse sentido, como já
apontado, o analista estaria usando o analisando para evitar
suas próprias feridas psíquicas.
4.3 HOUSE E INDIVIDUAÇÃO
Como já foi exposto neste trabalho o modo como House
pratica a medicina difere da tradição de Asclépio. A tradição
dos Asclepíades inclui a preocupação do bem estar do indivíduo
como um todo, ou seja, inclui a compreensão de que os males do
corpo e da mente são interdependentes e que a cura demanda
atenção simultânea aos dois. (HILLMAN, 2009).
Apesar de ter experiência própria com a doença, House não
demonstra empatia alguma com seus pacientes. Isso é claro
quando comunica o diagnóstico ou prognóstico de forma bastante
abrupta, não se importando se isso causará sofrimento psíquico
àqueles de quem trata. (COTTER, 2011).
House têm a pretensão de conhecer todos os labirintos do
corpo humano, suas funções e disfunções e tenta por vezes
suplantar a morte, postura que trouxe problemas, até mesmo
para Asclépio. A mitologia grega nos mostra que tal coisa deve
ser prerrogativa exclusiva dos deuses. (WADDELL, 2011).
43
O personagem é dotado de um narcisismo quase infantil e
seu ego é inflado por quase nunca perder um paciente e também
por curar as doenças mais incuráveis. Além disso, a diretoria
do hospital recebe constantes queixas a seu respeito,
processos cíveis são impetrados contra o hospital por sua
causa. Mas ele é mantido no quadro da instituição por causa
de sua habilidade ímpar. Ele sabe e se vale disso, manipula as
regras e transforma o hospital em sua área de lazer
particular. House tem o costume de pregar peças em seus
colegas de trabalho e não costuma receber punição alguma por
isso. Ele-lhes atira com pistolas de paintball, coloca corante
laranja no Shampoo dos médicos de sua equipe, se apropria de
brinquedos da ala infantil etc. (WADDELL, 2011).
Groesbeck (1983) e Cotter (2011) apontam as
características esperadas em um curador ferido. Este deve
estar consciente de suas próprias feridas para conseguir unir
o arquétipo do curador cindido. Isto implica necessariamente
em descer do pedestal de uma onisciência presumida, reconhecer
sua própria vulnerabilidade e, principalmente, permitir que o
paciente participe ativamente do processo de cura.
Para se tornar um curador mais próximo da perspectiva
junguiana, House deve entrar em contato com sua sombra para
pôr em marcha seu estagnado processo de individuação.
(HOCKLEY, 2011).
44
Sabemos que, para que a individuação19 ocorra, é
necessário tornar o que é inconsciente em consciente.
(HOCKLEY, 2011). Também sabemos que para se individuar uma
pessoa deve buscar o que lhe falta, o que ainda não domina.
Por exemplo, uma pessoa introvertida talvez tenha que buscar a
ser extrovertida e uma extrovertida talvez tenha que buscar
ser um pouco mais introvertida.
O processo de crescimento psicólogo de House está
paralisado, porque ele não quer mudanças. Teme que se deixar
de ser miserável (miserable)20 e largar o Vicodin, possa vir a
perder as características que o tornam um médico brilhante. No
episódio “Broken”, primeiro da sexta temporada, ele se
internou voluntariamente em um hospital psiquiátrico, por ter
sua licença para exercer a medicina suspensa e por causa das
alucinações em decorrência do abuso de Vicodin.
Nesse episódio os roteiristas apontam o que House deveria
fazer para crescer psiquicamente: no tempo que passou
internado House compreendeu que para melhorar, ele precisa ter
conexões verdadeiras com outras pessoas, confiar, admitir que
é um ser falível e não um deus. Aprender a assumir seus erros,
se desculpar por eles, e seguir em frente, entendendo que se
ele errou tem que ser punido adequadamente. House também
compreendeu que o Vicodin era um analgésico para sua dor na
19 Crescimento psicológico. “Individuação significa tornar-se um ser único,[...]. Por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima,última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si-mesmo’(Verselbstung) ou ‘o realizar-se do si-mesmo’ (Selbstverwirklichung).(JUNG, 2008b, p.60)20 A palavra pode ser traduzida como: miserável, desgraçado, infeliz, desprezível, ruim. (DICIONÁRIO DE INGLÊS ONLINE MICHAELIS, 2009)
45
perna, mas além disso, para sua dor na alma: servia como um
tampão químico para suas emoções.
As conexões que House estabeleceu na instituição eram
apenas temporárias: a mulher com quem ele teve um affaire era
casada e se mudou da cidade, e os colegas de instituição com
os quais o médico se ligou também seguiram com suas vidas.
Se o personagem enveredasse pelo caminho apontado no
episódio ele deixaria de ser “House”, porque precisa de seus
demônios da sombra e de sua persona para ser o que é. Fora que
um House equilibrado estragaria a fórmula que fez com que a
série se tornasse um fenômeno mundial. (HOCKLEY, 2011).
Todavia, se ele conseguisse atingir alguns dos aspectos
apontados no episódio “Broken” e mais a empatia em relação a
seus pacientes, finalmente House poderia se tornar um curador
ferido, em um sentido mais amplo, e não necessitaria usar seus
pacientes para lidar com suas próprias feridas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho procurou-se abordar a importância dos mitos
no mundo antigo e no contemporâneo, tendo os arquétipos a
responsabilidade pela origem e a formação dos mesmos, através
de imagens arquetípicas que, por sua vez, não se prendem ao
tempo ou espaço e se renovam constantemente.
O arquétipo do curador ferido foi apresentado através do
mito de Asclépio e Quirão. A partir da análise desse mito foi
possível traçar as manifestações e atuações, o paradigma, do
comportamento esperado de um curador ferido e as
46
características dessa imagem arquetípica. Mais que isso,
tentou-se apontar como o arquétipo do curador ferido pode ser
compreendido na percepção da relação analítica e dos fenômenos
transferenciais e contratransferenciais que se manifestam na
análise.
Ao analisar o personagem House à luz do conceito
arquetípico do curador ferido, podemos compartilhar a
percepção de Hillman (2009) de que este foi concebido de forma
muito estreita, pois o personagem não corresponde ao paradigma
do arquétipo descrito. No entanto, as quatro categorias do
curador ferido, propostas por Cotter (2011), ampliaram a
abrangência deste arquétipo, o que corroborou para nossa
analise do personagem.
Tentou-se a partir do personagem de House traçar uma
analogia entre a postura do mesmo em relação a seus pacientes
e a postura de um analista. Como o personagem, podemos cair
na armadilha do reducionismo da relação analítica. House lida
com seus pacientes somente na esfera biológica e se preocupa
exclusivamente em tratar o mau funcionamento do corpo,
desconsiderando a esfera psicológica daqueles de quem trata,
desqualificando a relação analítica.
House vê seus pacientes como enigmas a serem decifrados, a
maior preocupação do personagem não é salvar e ajudar, mas
suprir seu vício por enigmas. Tal postura em um terapeuta é um
dos aspectos da sombra do ofício de analista. Guggenbühl-Craig
(2008, p. 44) afirma que: “A sombra profissional do terapeuta
que pretende ajudar seus pacientes é o charlatão, o agente
fraudulento que só busca satisfazer seus próprios interesses."
47
Como já apontado no episódio “Broken”, primeiro episódio
da sexta temporada da série, House é lembrado por seu
psiquiatra, que ele não é Deus e que sendo assim lhe é
permitido falhar. Segundo Guggenbühl-Craig, (2008, p.82) "Um
ser humano possuído por um ‘complexo de Deus’ tenta, como um
deus, dominar os outros." House tenta dominar tudo à sua
volta. O analista também pode ser tomado por um “complexo de
Deus” que pode fazer com que ele acredite que “[...] a
fraqueza, doença e ferida nada tem haver consigo [...]”, e que
por ser analista, está imune a doenças psíquicas. (GUGGENBÜHL-
CRAIG, 2008, p.87). Tal terapeuta crê “[...] que as feridas só
existem no paciente e que ele próprio está protegido; que as
pobres criaturas conhecidas como pacientes vivem num mundo
completamente distinto do seu.” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2008,
p.87). Hillman (2009, p. 137) vai ainda mais além quando
afirma que, equivocadamente, por vezes,
O analista percebe-se tentando produzir ordem, razão enão envolvimento em seu paciente. Tenta esclarecerproblemas, trazendo inconsciente à luz. Orgulha-se deexplicar mecanismo e busca o equilíbrio e a harmonia.Acima de tudo, tende a trabalhar sem envolver-se [...].(HILLMAN, 2009, p. 137)
House se recusa a mudar, pois teme perder os fatores que o
tornam um diagnosticador genial e isso fez com que seu
processo de individuação se estagnasse. Todavia, ainda assim
ele consegue curar seus pacientes. Mas para um analista isto
não é possível, pois segundo Jung (apud GUGGENBÜHL-CRAIG,
2008, p.58) “[...] o analista só pode dar a seus pacientes
aquilo que possui.”
48
Nesse sentido, Jung (1981, p. 84-85), afirma que a
personalidade do próprio analista causa grande interferência
na análise:
Todo psicoterapeuta não só tem o seu método: elepróprio é esse método. [...] O grande fator de cura, napsicoterapia é a personalidade do médico [analista] –esta não é dada “a priori”; conquista-se com muitoesforço, mas não é um esquema doutrinário. As teoriassão inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares.
Portanto, além de procurar investir seriamente em sua
formação acadêmica, o analista deve conhecer a si mesmo e
entrar em contato com suas próprias feridas para evitar uma
possível interferência negativa de questões
contratransferenciais e usar assim seus pacientes para lidar
com as mesmas.
49
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