UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Biodiversidade no Brasil: uma abordagem antropológica sobre a domesticação de
um conceito
Eduardo Di Deus
Orientador: Henyo Trindade Barretto Filho
Brasília/DF
fevereiro de 2005
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Barbara Angélica Guimarães e Carlos Edegard de Deus, pelo exemplo, inspiração e total apoio. Minha curiosidade pelos meios ambientes é em parte explicada por suas trajetórias.
A Henyo Trindade Barretto Filho, professor e orientador dedicado, sempre pronto a dialogar virtual ou presencialmente sobre as diversidades e adversidades.
Aos entrevistados, que dedicaram parte de seu precioso tempo para responder minhas questões.
Aos Professores Paul Little, Mariza Veloso, Ana Carolina Pareschi e Gustavo Lins Ribeiro, que em suas aulas e/ou em conversas me ajudaram a ter mais clareza a respeito do objeto desta pesquisa.
Aos colegas da Coordenadoria de Agroextrativismo, órgão vinculado à Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente no qual estagiei, no início desta pesquisa. Julgo ter sido esta experiência de grande importância para este projeto de pesquisa e para meu crescimento.
Aos colegas e tutores do Programa de Educação Tutorial em Sociologia da UnB – PET/SOL, pela companhia ao longo de quase toda a graduação em Ciências Sociais.
Aos colegas do Projeto de Revitalização do Ribeirão Santa Maria, a quem devo momentos de aprendizado na prática de educação ambiental, ocorridos paralelamente ao encerramento desta pesquisa.
A Carol, Luanda e Carlinhos, irmãos queridos.
Aos amigos do Lesto!, pelo projeto em comum, que proporcionou até mesmo minha ida a um congresso em Curitiba sobre Unidades de Conservação.
Por fim, mas não menos importante, aos amigos Illimani, Bruno, Pedro Henrique, Marina e Guigui, Felipe, Alexandre, Erica, João Daniel, Gabriel, Marianna, Fernanda e tantos outros, que com os olhares distintos lançados aos meus devaneios sobre o tema pesquisado, ou simplesmente pela amizade, me deram força no caminho.
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ÍNDICE
Introdução .......................................................................................................................... 4
Para pensar biodiversidade no Brasil ...................................................................... 5
Percurso do trabalho e considerações metodológicas ............................................. 8
Capítulo 1: Uma palavra, uma nova idéia no ambientalismo ............................ 16
1.1. A criação da biodiversidade e da Biologia da Conservação ............................... 17
1.2. Convenciona-se .................................................................................................... 25
1.3. O termo no/do país ............................................................................................... 33
Capítulo 2: Vozes no debate sobre biodiversidade no Brasil ............................. 41
2.1. (In)definições ........................................................................................................ 42
2.2. Vozes governamentais e não ................................................................................ 51
2.2.1. As trajetórias ............................................................................................ 57
2.3. Vozes Dissonantes ................................................................................................ 60
2.4. A política, as ciências .......................................................................................... 63
Capítulo 3: Biodiversidade, tesouro do Brasil ..................................................... 68
3.1. Identidade Nacional e a emergência de um ambientalismo político no Brasil... 69
3.2. Afinal, por que conservar a biodiversidade? ...................................................... 75
Questões Finais ....................................................................................................... 82
Bibliografia ............................................................................................................. 83
Anexos ..................................................................................................................... 86
3
“Está se vendo, portanto, que para o melhor ou para o pior a biodiversidade é, antes de tudo, uma questão
brasileira.” Laymert Garcia dos Santos (1994)
4
Introdução
Setembro de 1986, Washington. Realiza-se o ao Fórum Nacional sobre
BioDiversidade. Na ocasião um grupo de cientistas, mobilizando os “mídia-panoramas”1
globais, tenta chamar a atenção de um público ampliado para o tema da biodiversidade e
sua perda.
Maio de 1992, Nairóbi. O Comitê Intergovernamental criado no âmbito do PNUMA
(Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) bate o martelo a respeito da versão
final do texto da Convenção sobre Diversidade Biológica.
Junho de 1992, Rio de Janeiro. A Convenção é aberta à assinatura dos países
durante a realização da CNUMAD (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento), a também chamada Rio-92.
Dezembro de 1994. Criado, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, o
Programa Nacional da Diversidade Biológica - PRONABIO, como parte dos compromissos
assumidos pelo Brasil ao assinar a CDB.
Junho de 1996. Criado o Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da
Diversidade Biológica Brasileira – PROBIO, como resultado de um acordo multilateral
entre o Governo Brasileiro, o GEF (Global Environmental Facility) e o BIRD (Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento).
Agosto de 2002, Brasília. São lançadas as diretrizes da Política Nacional de
Biodiversidade.
Novembro de 2003, Brasília. Durante a 1ª Conferência Nacional do Meio Ambiente,
o termo biodiversidade dá nome a um dos grupos de trabalho (“Biodiversidade e Espaços
Territoriais Protegidos”).
Dezembro de 2003. Este pesquisador tem acesso a um calendário intitulado
“Calendário da Biodiversidade: o Tesouro do Brasil”, organizado e distribuído pela OAB, a
partir de um trabalho de educação ambiental realizado em escolas de primeiro grau,
composto por versos e desenhos de alunos entre 5 e 13 anos.
1 Para a noção de “panorâmas”, ver Appadurai (1994).
5
Para pensar biodiversidade no Brasil
Os acontecimentos listados acima são pequena parte de um intenso processo pelo
qual o conceito de biodiversidade emerge de um contexto político-científico e se torna uma
questão mundo afora. É para este processo que estaremos atentos no presente trabalho.
Três questões, em especial, contribuíram para que um projeto de pesquisa se
desenvolvesse em torno de um conceito. Em primeiro lugar, a ampliação da força deste
conceito como idéia-chave e a popularização de seu uso em distintas formações discursivas.
Em segundo lugar, a curiosidade em torno de sua emergência como idéia-chave no
ambientalismo brasileiro. Por último, a intenção de investigar os entendimentos que
distintos agentes têm do mesmo.
A primeira questão desempenhou um papel importante na decisão de levar adiante
este projeto de estudos, na medida em que o conceito se transforma em uma questão
política de importância para distintos grupos sociais. Interessou-me, em especial, a
centralidade nas discussões ambientais alcançada por um termo relativamente recente,
cunhado no contexto da ação de biólogos conservacionistas norte-americanos na década de
1980 (Takacs 1996). Como se apreende pela breve e incompleta série de acontecimentos
listados no início desta introdução, esta história é marcada pela ampliação, tanto no número
de agentes que incorporam esta palavra em seu léxico, quanto da força política do termo.
Exemplar do que se diz é a sua inserção na engenharia institucional do Ministério do Meio
Ambiente ao longo dos últimos anos. Atualmente, uma das cinco secretarias deste
ministério – e uma das mais importantes – é a Secretaria de Biodiversidade e Florestas, que
incorpora, entre seus distintos programas, agendas diversas como áreas protegidas, política
florestal e recursos genéticos, de maneira muito distinta do que se verificava na
estruturação encontrada em meados da década de 1990. Nesta época, a Coordenadoria
Geral de Diversidade Biológica era um setor da então existente Secretaria de Coordenação
dos Assuntos do Meio Ambiente. Ela passa de mera designação de uma agenda específica
neste ministério, para área temática, idéia “guarda-chuva” que incorpora distintas temáticas
específicas. A mesma tendência a agrupar temáticas diversas se verificou na Conferência
Nacional do Meio Ambiente, quando um dos Grupos de discussão recebeu o nome de
“Biodiversidade e Espaços Territoriais Protegidos”, incluindo em seu bojo discussões
6
muito distintas como: sustentabilidade, unidades de conservação, participação de
comunidades locais, patrimônio genético e organismos geneticamente modificados
(OGMs), zoneamento ecológico-econômico, entre outras. O termo ganha força, além disso,
para além das fronteiras da estrutura institucional governamental, como se pode inferir pelo
seu uso como tema de um calendário, construído como parte de atividades de educação
ambiental e destinado principalmente às crianças. A aluna Celina Andrade Botelho, com
idade entre 11 e 13 anos, da cidade mineira de Pedro Leopoldo, escreveu os seguintes
versos que foram escolhidos para integrar este calendário:
Entre as cores, as formas e a variedade, surge da flora e da fauna a realidade. Na mais bela harmonia, é a Biodiversidade! Propus-me, desta forma, a buscar meios de explorar os intricados processos
sociopolíticos e tecno-científicos que perpassam o fenômeno de popularização e
fortalecimento desta idéia-chave.
Além disso, como revela a segunda questão, optei por direcionar a atenção à
realidade brasileira, com ênfase na emergência do conceito no cenário aqui denominado
ambientalismo brasileiro, entendido para além de apenas o movimento ambientalista2
stricto sensu, incluindo uma trama de relações que abarca outras esferas da sociedade civil,
como o movimento indígena, segmentos empresariais que dialogam com as discussões
ambientais e os aparatos governamentais dedicados (direta ou indiretamente) à formulação
e gestão de políticas públicas para o meio ambiente. O tratamento da emergência deste
conceito neste contexto se inspira também na tentativa de entender a sua “domesticação”
neste país, empreendimento realizado para o mesmo conceito no caso africano (Guyer &
2 Eduardo Viola (1992) enxerga no Brasil entre 1987 e 1991 – a “fase recente do ambientalismo brasileiro” tendo em vista a data de publicação de seu artigo – um processo de institucionalização e profissionalização de um incipiente e amador movimento ambientalista, que passa a dialogar com o que ele chama de movimentos sociais, dando origem a um socioambientalismo, que abarcaria movimentos que além de demandas sociais, incorporariam a dimensão ambiental em suas plataformas de luta, como o movimento dos seringueiros da Amazônia, por exemplo. Prefiro aqui utilizar o termo ambientalismo em um sentido mais abrangente, incorporando em seu entendimento tanto o que este autor considera movimentos ambientalistas quanto os socioambientalistas. Além disso, este termo pode ser utilizado não somente para por em questão os movimentos sociais/ambientalistas, mas também outras esferas em que a questão ambiental é tematizada, como o pensamento político de membros do poder público, parlamentares e segmentos empresariais. Trata-se de uma ampliação no entendimento do termo semelhante – mas não coincidente – ao que foi realizado por Viola & Leis em dois outros textos (1995a; 1995b) ao proporem a passagem de um “ambientalismo bissetorial” a um “ambientalismo multissetorial”, em referência surgimento de outros setores – cinco setores no primeiro texto (1995a) e oito no segundo (1995b).
7
Richards 1996: 9). Quando falo em domesticação me refiro às interpretações e re-
significações que o conceito sofre ao ser apropriado em distintos debates neste país. Trata-
se de um aspecto que ganhou importância na investigação, na medida em que a análise dos
processos de emergência deste conceito no ambientalismo brasileiro nos remeteu a
considerações a respeito de determinadas tendências de se tematizar o “mundo natural” ao
longo da história do país.
A terceira questão não é menos importante para os objetivos do trabalho. Percorrer e
explorar os distintos entendimentos que o conceito poderia apresentar nos discursos de
distintos agentes sociais constituiu uma das principais tarefas do presente trabalho. A
maneira pela qual foi enfrentada esta tarefa, no entanto, se alterou significativamente ao
longo do percurso do mesmo. Na próxima seção explorarei este ponto.
Por ora, gostaria de sugerir que o conceito de biodiversidade é gerado no âmbito da
ciência moderna e se configura como exemplo do “hibridismo” (Latour 1994) entre o
científico e o político, o que enreda/encerra uma arena de negociações e tensões
permanentes não somente em relação à definição mesma de biodiversidade mas,
principalmente, em relação à definição do agir nesta arena – de políticas públicas e de uma
sociedade civil que se engendram e se re-significam em torno desta idéia. Serão exploradas
– sobretudo no segundo capítulo – as tensões entre as distintas vozes que emergem nos
debates sobre a biodiversidade no Brasil.
Além disso, o trabalho discutirá a possibilidade de se falar em apreensões
particulares do conceito no Brasil, a partir da constatação de continuidades/recorrências
entre as primeiras manifestações de um “ambientalismo político” no Brasil entre os séculos
XVIII e XIX (Pádua 2002) e a configuração do campo da biodiversidade atualmente, como
manifestações políticas marginais em projetos de modernização/desenvolvimento do país.
A maneira pela qual se desenvolve a crítica ambiental naquele período indicaria tendências
no campo político brasileiro para a aceitação de discursos em relação ao meio natural,
tendências que se verificam no processo de emergência da idéia de biodiversidade no
ambientalismo brasileiro.
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Percurso do trabalho e considerações metodológicas.
"A biosfera não é menos antropológica do que a
natureza ou o território dos ancestrais" Bruno Latour
“Responder ao seu singelo questionário seria escrever
sua dissertação!” Carlos Joly, em resposta à solicitação de preenchimento
de questionário eletrônico em 06/08/2004.
A investigação a respeito da emergência do conceito de biodiversidade no
ambientalismo brasileiro foi direcionada, inicialmente, aos setores e atores do governo
brasileiro dedicados direta ou indiretamente à formulação e/ou gestão de políticas para a
biodiversidade. Ao privilegiar-se este grupo na análise, pretendia-se investigar os processos
sócio-históricos que levaram este conceito à condição de objeto legítimo de políticas
públicas. Inspirava-nos a idéia de “governamentalidade”, proposta por Michel Foucault:
Com esta palavra quero dizer três coisas: 1- o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2- a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3- o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (1979: 291) A emergência de um conjunto de instituições dedicadas à gestão do “meio
ambiente” ou dos “recursos naturais” é parte dos desenvolvimentos recentes da construção
de uma governamentalidade no Brasil. Não obstante a criação da SEMA tenha se
processado ainda na década de 19703, verifica-se um crescimento na institucionalização da
temática ambiental no Brasil sobretudo a partir da década de 1980. No início desta década,
3 Secretaria Especial de Meio Ambiente. Guimarães (1991) analisa a criação desta agência ambiental especializada em 1973, no âmbito do então Ministério do Interior, em parte como resultado do cenário político internacional. Um ano antes, realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, evento que teria estimulado não só a criação da SEMA, mas de agências similares em diversos países. O autor também mapeia a criação, nesta conferência, do PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, pondo fim a uma disputa entre outras agências do sistema ONU em torno da gestão de temáticas ambientais na política internacional. Pode-se considerar a sua criação como um marco para o tratamento do meio ambiente como um tema relativamente autônomo.
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a Política Nacional do Meio Ambiente é instituída pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de
1981, que cria o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e o Sistema Nacional
do Meio Ambiente (SISNAMA), o primeiro um conselho criado como referência para a
regulação ambiental e o segundo, um sistema integrado de órgãos de diversos níveis da
administração pública. Guimarães (1991), no entanto, considera que os avanços seriam
maiores “no papel”, indicando a carência de implementação das legislações ambientais que
se estabeleciam. A mobilização política em torno da construção da constituição de 1988 foi
um momento importante na transformação do meio ambiente em uma questão do grande
público, tendência consolidada no contexto preparatório para a CNUMAD (Conferência
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ou RIO-92), realizada em
1992 no Rio de Janeiro, outro marco importante deste processo. Este evento potencializa e
dá visibilidade à ação de um crescente movimento (socio)ambientalista, o que consolida a
temática ambiental como uma preocupação legítima na opinião pública. Em 1989, surge o
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis4. As
condições para a transformação do meio ambiente em tema de uma pasta ministerial já se
verificam, neste contexto, e em outubro de 1992 é criado o Ministério do Meio Ambiente.
A incorporação da biodiversidade como uma idéia-chave nesta governamentalidade
em construção está diretamente vinculada à assinatura da Convenção sobre Diversidade
Biológica, durante à Rio-92, que criou uma série de compromissos a serem cumpridos
pelos governos signatários na criação de um aparato burocrático dedicado a este tema.
Interessou-me, sobretudo, tentar compreender as alterações na mentalidade governamental
brasileira que tal idéia – e os novos aparatos administrativos que em torno dela se
construíam – trazia.
Como se verificou no caso da negociação desta Convenção, um elemento
importante para a transformação da biodiversidade em objeto legítimo de políticas públicas
é a mediação, nas palavras de Foucault, de um saber – de um tipo específico neste caso.
Um saber que emana das ciências naturais, em especial da Ecologia e da emergente
4 A Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, cria o IBAMA por meio da integração de quatro órgãos então existentes: Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), Superintendência do Desenvolvimento da Borracha (SUDHEVEA), Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).
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Biologia da Conservação. O papel das ciências na construção desta governamentalidade
não poderia ser negligenciado.
Outro ponto importante na construção do objeto de pesquisa seria a proposição de
um campo da biodiversidade, em uma tentativa de aplicação da noção de “campo”, assim
formulada por Bourdieu:
Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das características de seus ocupantes (em parte determinadas por eles). [...] Um campo se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputa e dos interesses específicos a ele [campo]. Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas etc. (1983: 89). A idéia era mobilizar este arcabouço conceitual para pensar a inserção dos atores
sociais vinculados a este setor da burocracia como detentores de uma “posição” –
privilegiada – na “estrutura” do campo da biodiversidade. Os principais objetos de disputa
deste campo girariam em torno da definição de biodiversidade e das estratégias para sua
conservação. Este campo seria, desta forma, composto por uma série de atores e
instituições: os já citados agentes formuladores e executores de políticas públicas para a
biodiversidade neste país, inseridos em diversos âmbitos dos governos federal, estadual e
municipal; organizações não-governamentais conservacionistas; o movimento indígena e
dos chamados povos tradicionais; cientistas naturais (principalmente biólogos, engenheiros
florestais, agrônomos); cientistas humanos (economistas, antropólogos, sociólogos,
cientistas políticos, entre outros) e empresários atentos às possibilidades que a exploração
das biotecnologias lhes abre. Ressalto que esta caracterização do campo foi construída de
maneira a funcionar como instrumento analítico, longe de representar um retrato fiel das
disputas que se processam.
As primeiras incursões de pesquisa, no entanto, levaram a uma revisão tanto da
utilização do conceito de campo que se fazia, quanto do recorte mesmo da pesquisa. A
constatação da existência de uma porosidade de fronteiras entre as distintas “posições” no
“campo da biodiversidade brasileira” – que propus de início – fez-me repensar, por um
lado, a adequação da opção teórica do uso da noção de “campo”, como a propõe Bourdieu,
para se pensar as relações sociais em questão e, por outro lado, a opção metodológica de
concentrar os esforços de pesquisa numa das posições do campo, a governamental.
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O elemento chave que motivou essa revisão é a posição do grupo que denominamos
de “cientistas”, divididos em naturais e humanos, devido aos distintos posicionamentos que
estas diferentes formações tendem a conduzir. Refiro-me a profissionais que possuem
vínculos com uma determinada instituição de ensino superior. Esta condição, no entanto,
não pode ocultar a existência de agentes vinculados, além de a universidades, a
organizações não-governamentais, ou mesmo ao aparato governamental. A formação
científica – principalmente nas ciências naturais – é tida praticamente como pré-requisito
para a atuação nas esferas governamental e não-governamental, diria até como constituinte
do “capital simbólico” necessário para ocupar estas posições, nesta construção que se faz
do campo da biodiversidade.
É o próprio Bourdieu (1990) quem fornece os subsídios para se pensar a aplicação
que fiz de seu conceito, ao propor que se encare a pesquisa em ciências sociais como
composta de dois momentos, o “objetivista” e o “subjetivista”, que se encontrariam em
relação dialética. Num primeiro momento, objetivista, realiza-se uma análise de posições
relativas numa dada estrutura, promovendo uma ruptura com as pré-noções existentes, de
maneira a construir as “relações objetivas” entre as posições existentes na estrutura em
questão. No segundo momento, subjetivista, dá-se uma ruptura desta vez com o objetivismo
traçado acima, inserindo as percepções dos agentes, as construções que eles realizam sobre
a realidade social.
Desta maneira, entendo que a construção da idéia de um “campo da biodiversidade”
operou como um momento “objetivista” da pesquisa, servindo de estenografia conceitual,
na medida em que possibilitou a compreensão de distintas relações de poder por trás das
discussões em torno da biodiversidade e de distintos contextos formadores de discursos
sobre a mesma. No entanto, a subseqüente investigação das trajetórias individuais dos
agentes – o momento subjetivista, das interações sociais – foi reveladora da fluidez entre as
posições do campo. É comum na trajetória dos entrevistados a constante transição entre
posições no governo, academia e organizações não-governamentais, quando não duas
dessas posições são ocupadas simultaneamente. Não reuni, por outro lado, dados suficientes
para demonstrar a autonomia relativa deste campo, um dos pressupostos desta idéia de
Pierre Bourdieu. Parece-me que antes de configurarem um campo autônomo, as relações
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sociais envolvidas nos debates sobre biodiversidade são constituintes de um imbricamento
entre campo político e campo científico.
Outra “posição” no campo que havia se construído ganhou importância na
investigação. Trata-se da crescente inserção dos povos indígenas e “populações
tradicionais” nos debates sobre biodiversidade, chancelada pelo reconhecimento no âmbito
da Convenção sobre Diversidade Biológica da importância de seus “conhecimentos
tradicionais”, tanto para a conservação, quanto para o uso sustentável da mesma. No
entanto, o já mencionado papel da ciência como mediadora dos debates sobre
biodiversidade lembra uma situação discutida por Michel Foucault. Ao tratar da
“genealogia dos saberes”, este autor chama a atenção para a relação desigual estabelecida
entre os saberes oriundos da ciência ocidental e os “saberes dominados” que são
“desenterrados”, considerando possíveis relações de subordinação estabelecidas. Não
poderiam ser maiores as analogias entre o seguinte trecho e as relações entre saberes,
estabelecidas no campo da biodiversidade:
A genealogia seria portanto, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torna-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico. [...] A partir do momento em que se extraem fragmentos de genealogia e se coloca em circulação estes elementos de saber que se procurou desenterrar, não correm eles o risco de serem recodificados, recolonizados pelo discurso unitário que, depois de tê-los desqualificado e ignorado quando apareceram, estão agora prontos a anexa-los ao seu próprio discurso e a seus efeitos de saber e de poder? (op. cit.: 172-173) A tentativa de, por um lado, abordar estas relações entre estes “saberes dominados”
e os científicos, que se verificam nos debates sobre a biodiversidade, e, por outro lado,
ultrapassar a limitação descrita acima, que impunha a construção do “campo da
biodiversidade” e a circunscrição da análise a uma das posições neste campo, optei por
redefinir o objeto de estudo e o grupo de atores sociais a serem investigados. Percebi que
seria mais frutífero para a compreensão do processo de emergência da idéia de
biodiversidade no ambientalismo brasileiro e da “domesticação” da mesma neste contexto
(Guyer & Richards 1996), em vez de pensar em um “campo” e analisar detidamente uma
das “posições” no mesmo, passar a uma consideração de distintas formações discursivas
presentes nos debates – políticos – acerca da biodiversidade. Migra-se para uma
consideração, nas palavras de Marcus (1991), de “perspectiva enquanto voz”, como
maneira de dar vazão a uma “montagem da polifonia” que se verifica nos debates sobre
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biodiversidade. A construção do objeto de pesquisa se insere, desta forma, no que o mesmo
autor nomeia, em outro texto (1998), de um “imaginário de pesquisa multi-localizado”, no
qual o fenômeno a ser tratado não pode ser encontrado em uma comunidade espacialmente
delimitada.
Fontes
Isto posto, como então proceder para seguir este conceito? Como pesquisar, a partir
de referências disponíveis nas Ciências Sociais, a emergência do mesmo nesse contexto
político amplo? Após um primeiro momento em que foi realizado o levantamento de
bibliografia pertinente ao tema de pesquisa, assim como de documentos oficiais correlatos,
as primeiras entrevistas – com base em um questionário semi-estruturado – foram
realizadas com agentes que estariam na “posição” governamental da construção feita do
“campo da biodiversidade”, os formuladores/gestores de políticas públicas para a
biodiversidade, com formação em ciências naturais (biológicas) e, alguns casos, atuação em
instituições de ensino superior. No entanto, acompanhando a ampliação do recorte analítico
acima exposta, foram incluídos na lista de entrevistados agentes situados para além da
estrutura governamental dedicada à biodiversidade – uma liderança indígena e
representantes de ONGs e da academia5. Além da realização de entrevistas, construí um
questionário a ser enviado por correio eletrônico a agentes envolvidos com a temática da
biodiversidade que, por razão de tempo ou mesmo de distância geográfica, não conseguiria
entrevistar pessoalmente. Esta etapa da pesquisa não foi exitosa no recebimento de
respostas6, mas revelou aspectos significativos. A resposta de Carlos Joly, da Unicamp, que
serve de epígrafe para esta seção, revela um aspecto que será explorado no segundo
capítulo, quando da discussão da definição de biodiversidade. Ao dizer que, respondendo
ao questionário, o entrevistado estaria, na verdade, escrevendo minha dissertação, é
revelada a desconsideração/deslegitimação de projetos de pesquisa que venham justamente
a colocar em questão os distintos entendimentos construídos a respeito do tema.
Outra fonte de dados importante para a pesquisa foi a participação em distintos
eventos nos quais o debate a respeito da biodiversidade deu. A lista disponível em anexo
5 Ver quadro de entrevistas em anexo ao trabalho, disposto em ordem cronológica. 6 Ver quadro de pessoas que receberam o questionário – e o próprio questinário – em anexo. É interessante notar que foi obtido apenas um preenchimento do questinário.
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exemplifica a opção que se fez por circular em eventos muito distintos, de maneira a
compreender a dinâmica do conceito que, pela abrangência mesma que é característica e
resultado de sua construção, tende a ser alçado, como veremos, a tema de diversas agendas
políticas no ambientalismo brasileiro.
Situo-me
Considero importante neste momento tentar, ainda que superficialmente, pensar
meu lugar de fala, tentar expor ao leitor as condições nas quais a pesquisa se realizou. Seria
possível elencar como fato significativo um período de quase dois anos de residência no
estado do Acre imediatamente anterior ao início do curso de Ciências Sociais: 1999 e 2000,
período em que lá residi, foram os dois primeiros anos de mandato do “Governo da
Floresta”, governo petista que assumiu o poder estadual e inseriu o desenvolvimento
sustentável como plataforma política e objetivo de governo, num estado que é indicado
como detentor de um alto grau de endemismos de espécies – sobretudo na região do Vale
do Rio Juruá – com uma cobertura florestal que ocupa cerca de 90% de sua área total . A
exposição a que fui submetido neste período, sobretudo por relações familiares com um
membro deste governo, foi fundamental, sem dúvida, para o despertar para as questões
ambientais como possíveis objetos de investigações antropológicas, e para a posterior
curiosidade acerca da biodiversidade, uma questão premente nesta região, como objeto
desta pesquisa. No primeiro capítulo será discutido o papel da região amazônica e, de
maneira mais ampliada, do que se considera o “domínio neotropical” para a criação mesma
do conceito.
Além disso, encontrava-me no início da pesquisa estagiando no Ministério do Meio
Ambiente, em um setor específico do mesmo: a Coordenadoria de Agroextrativismo, então
localizada na Secretaria de Coordenação da Amazônia. Tratava-se de uma das poucas
instâncias nas quais as “comunidades agroextrativistas” – no jargão próprio do órgão – e os
povos indígenas da Amazônia tinham inserção naquele Ministério7. Esta experiência, assim
julgo, influenciou o percurso da pesquisa acima descrito.
7 Há uma tendência neste Ministério de incorporação da participação deste povos – ao menos no plano retórico – seja nos órgãos colegiados, seja na criação de programas substantivos a eles direcionados e não somente ações apêndices a estratégias políticas mais importantes. Um exemplo do que se diz é o processo de negociação de um Programa de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade em Terras Indígenas, a ser
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O texto
A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro deles resenho argumentos
acerca da construção do conceito, após o que serão considerados alguns aspectos do
processo que levou à assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica. Também
haverá espaço para uma discussão a respeito do momento da emergência desta idéia no
ambientalismo brasileiro e, por fim, uma discussão a respeito das definições do conceito.
O segundo capítulo focalizará a tensão presente no campo da biodiversidade no
Brasil, iniciando pela problemática da definição do conceito de biodiversidade. Busco
caracterizar as “vozes” presentes no debate, com suas ênfases discursivas e respectivas
justificativas para a conservação. Ao final, emergem as vozes científicas como transversais.
Neste e no capítulo seguinte serão privilegiadas as entrevistas realizadas como fonte para a
construção da argumentação.
No terceiro capítulo, o foco estará na “domesticação” do conceito no ambientalismo
brasileiro, a partir de uma discussão sobre as relações entre biodiversidade e identidade
nacional.
estabelecido com recursos do Global Environmental Facility – GEF, que vem sendo realizado no âmbito da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA. Pude acompanhar uma reunião (ver lista de eventos em anexo), organizada por organizações indígenas com o apoio da The Nature Conservancy – TNC, em que lideranças indígenas convidaram representantes do Governo Federal, de organismos internacionais (PNUD e Banco Mundial) para reforçar o interesse no referido Programa e buscar tanto acelerar seu processo de estabelecimento, quanto ter um controle da definição de seu formato.
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Capítulo 1: Uma palavra, uma nova idéia no ambientalismo
Pensar o surgimento de uma palavra. Não uma palavra qualquer. Aquela que, como
um conceito científico, inventado por biólogos, é construído como idéia-chave em distintos
contextos sócio-políticos e se torna uma “questão”. Eis a tarefa aqui proposta, sem a
ambição de esgotá-la, tendo consciência de que a enfrentaremos com vistas a análise que se
fará adiante, sobre a sua emergência e configuração no ambientalismo brasileiro1.
Se fôssemos pensar de maneira ampliada, reconstruir o surgimento de conceitos a
respeito da diversidade da vida, mesmo que se leve em conta [apenas] o desenvolvimento
das ciências ocidentais, constituiria empreendimento intelectual demasiado árduo que,
dependendo do horizonte temporal considerado, arriscar-se-ia a gerar interpretações
anacrônicas. Existe um argumento em história da biologia que vincula ao período do
Renascimento europeu – período da expansão marítima, do estabelecimento das primeiras
colônias ultramarinas e da ampliação da biota conhecida neste continente – um processo de
“descoberta da diversidade” (Mayr 1998), com repercussões para desenvolvimentos
posteriores das ciências da vida. Para além disso, em sua proposta de fazer uma história da
biologia por meio de seus problemas centrais atuais e de seus conceitos, Mayr vai buscar
até mesmo em Aristóteles considerações a respeito da diversidade de formas de vida.
Paralelamente, existe em história ambiental uma linha interpretativa que enxerga no
processo sócio-histórico relacionado à expansão marítima européia um marco fundamental
para o entendimento das “modernas sensibilidades conservacionistas”, estabelecendo
vínculos, inclusive, entre sistemas de saberes nativos – em especial indianos – e o
desenvolvimento das ciências européias e, conseqüentemente, das referidas sensibilidades
(Grove 1996).
O surgimento da idéia de biodiversidade, no entanto, pode ser entendido como um
processo mais recente. Seria possível buscar no século XIX as raízes dos debates que
culminariam na emergência da idéia de biodiversidade, seja na história da Ecologia, seja na
configuração de pensamentos políticos a respeito dos recursos naturais em distintos países.
Foge do escopo do presente trabalho um esforço de reconstrução histórica como este,
1 Como definido na introdução do trabalho.
17
apesar de haver espaço, no terceiro capítulo, para uma discussão – à luz de estudos de
história ambiental (Pádua 2002; Grove 1996) – sobre a possível contribuição das
manifestações primeiras de um “ambientalismo político” no Brasil do século XIX para a
configuração internacional do ambientalismo e para o surgimento da idéia de
biodiversidade.
1.1. A criação da biodiversidade e da Biologia da Conservação.
“Scientists who love the natural world forged the
term biodiversity as a weapon to be wield in these battles”
David Takacs
“Na verdade, foi o desmatamento tropical que forjou o próprio conceito de biodiversidade e engendrou
uma nova questão” Laymert Garcia dos Santos
Nesta primeira seção pretendo lançar um olhar crítico – e ao mesmo tempo
conciliatório – para dois argumentos supostamente divergentes: por um lado, a
interpretação de Takacs (1996) a respeito do processo de emergência do “termo
biodiversidade”, que enfatiza uma tendência desenvolvida no pensamento e na ação política
de biólogos norte-americanos e europeus como fator explicativo central e, por outro lado, a
perspectiva de Santos, que entende a emergência do “conceito de biodiversidade” como
uma resposta no “debate ecológico global” (1994: 168) ao avanço do desmatamento nas
florestas tropicais, sobretudo na floresta amazônica. Enquanto Takacs se refere ao
surgimento desta idéia intimamente relacionada à consolidação de uma disciplina
acadêmica – a Biologia da Conservação – e de como aquela se configura nos discursos
atuais dos representantes, sobretudo norte-americanos, desta disciplina emergente, Santos
dirige sua análise para a questão que emerge em torno deste conceito, pensando em
dinâmicas políticas que afetam principalmente o Brasil e a política ambiental neste. Uma
ressalva, no entanto precisa ser feita. Como se trata de uma revisão de perspectivas
interpretativas a respeito da construção de um conceito e de um campo disciplinar pretendo
aqui me aproximar da premissa latouriana de se tratar simetricamente “contexto” de
18
produção e “conteúdo” científicos (Latour & Woolgar 1997: 20). Procuro fazer isto na
tentativa de articular a interessante análise de Takacs – que busca entender a mudança nos
conceitos e problemas centrais dos ecólogos ao longo do século XX (conteúdo), sem perder
de vista o contexto político em que se inseriam e que influenciaria no próprio conteúdo –
com as proposições de Santos que, mesmo não analisando com a mesma ênfase do primeiro
autor a dimensão do conteúdo, nos chama a atenção para a necessidade de se ampliar o
contexto a partir do qual se entende a produção do conceito.
Takacs busca, num período em que o “termo” ainda não existia, as raízes históricas
tanto da “idéia” de biodiversidade, quanto da disciplina da Biologia da Conservação.
Propõe a existência de uma tendência entre ecólogos, no decorrer do século XX, de
encampar uma luta política para enfrentar a crise de extinções de espécies2, percebida como
crescente. Esta crise ecológica que se constatava era interpretada como resultado de uma
crise ética, que só poderia ser resolvida a partir de um empenho por parte dos ecólogos em
disseminar os fatos, assim como os valores de sua ciência para um público mais amplo. No
caminho desta verdadeira empreitada de convencimento, viria à tona o que o autor
denomina de “dilema da conservação” (“conservation dilemma”), que consistiria num
conjunto de “tensions between seemingly antithetical ways of valuing, and thus arguing for,
nature” (ibid: 10), referindo-se à variação entre dois pólos de valores atribuídos ao “mundo
natural”: os estéticos, emocionais e espirituais, por um lado, e os seus valores econômicos e
utilitários, por outro3. Com maior ou menor ênfase, estes dois pólos de valores estarão
presentes na contribuição de quatro cientistas – Aldo Leopold, Charles Elton, Rachel
2 Charles Darwin, em A Origem das Espécies, percebia a extinção de espécies como um processo natural e até mesmo necessário. Não teria formulado pensamento consistente a respeito de extinções causadas pela ação antrópica como uma ameaça à evolução, hoje maior justificativa para a conservação da biodiversidade, sobretudo por meio do estabelecimento de unidades de conservação (UCs), nas quais a evolução supostamente poderia seguir seu curso natural. Antes dele, no entanto, Lamarck tinha outra visão a respeito do processo de extinção de espécies: elas somente ocorreriam por ação humana. Explicava a variedade da vida a partir de um mecanismo de “afastamento” de uma essência das espécies causado pelo meio, que daria origem às múltiplas formas de vida. Extinções, no entanto, seriam causadas pela ação humana que poderia, inclusive, através do hibridismo, criar, novas espécies. Essa nota, em certa medida redutora por sua pressa, é posta apenas para chamar atenção para o fato de que a percepção de uma “crise de extinções de espécies” é um construto que se firma ao longo da história da biologia e também para a novidade que é trazida pela oposição entre extinções “naturais” e aquelas causadas pela “ação humana”. As últimas seriam o maior alvo da ação dos ecólogos ao empreenderem verdadeiras cruzadas, como veremos, para além das fronteiras então postas para suas disciplinas. 3 Sobre este aspecto, conferir a análise de McCormick (1992), a respeito da oposição entre as tradições do “preservacionismo” e do “conservacionismo” no ambientalismo de países do Norte.
19
Carson e David Ehrenfeld – que, ao longo do século XX, são exemplares do empenho de se
colocar a ecologia e a biologia a serviço da mudança nos valores da sociedade mais ampla.
O primeiro deles, o norte-americano Aldo Leopold (1887-1948), abriu caminho para
o esforço de construção de uma nova ética a partir dos conhecimentos da biologia.
Antecipou, segundo Takacs (ibid: 12-13), considerações a respeito dos “serviços
ecossistêmicos”, base para o “argumento da ignorância”, recorrente, segundo Takacs, no
conceito de biodiversidade. Esse argumento, na versão de Leopold, consiste na defesa do
valor não apenas das espécies isoladas, mas de um “land mechanism”, do conjunto de
espécies, mesmo aquelas que não têm aparentemente nenhuma importância ou utilidade
para a humanidade, pois haveria um potencial de descoberta de valor tanto das espécies
individuais, quanto dos benefícios da manutenção de suas inter-relações. Uma fonte
importante para a ética ambiental que se propunha era a biologia evolutiva. A evolução – na
leitura da época, atualmente posta em questão – tenderia a “elaborar e diversificar a biota”
(Leopold apud Takacs 1996: 15). Exemplar do “dilema da conservação”, Leopold, ao
mesmo tempo em que propunha a expansão da ética para abarcar seres não-humanos como
sujeitos de direito4, também se baseava em “argumentos pragmáticos”, numa obra
considerada por Takacs como “pluralista” (op. cit.: 16). O mais importante para o
argumento deste autor, assim entendo, é o papel desempenhado por Aldo Leopold na
ampliação das fronteiras da ecologia e do limite de ação política dos biólogos. É justamente
esta tendência, para Takacs, que teria no conceito de biodiversidade um de seus resultados5.
Assim como Leopold, o britânico Charles Elton (1900-1992) trabalhou no sentido
de acionar a ecologia para transformar a atitude das pessoas em relação à natureza. Não
obstante mobilizasse argumentos de fundo religioso relacionados ao valor intrínseco das
espécies selvagens para justificar sua ética ambiental, são razões antropocêntricas, por um
lado “estéticas e intelectuais”, mas também “práticas” – relativas às utilidades econômicas
das espécies – que compõem a estratégia maior de convencimento de sua ética ambiental.
4 Sobre este aspecto, conferir Nash (1989), que discute, a partir de uma análise da história do movimento ambientalista nos Estados Unidos, a incorporação da natureza como sujeito do direito natural, o que consistiria na extensão máxima da ética liberal. 5 “Leopold the ecologist possessed an ecological understanding of ethics, and he evolved an ethic grounded in ecological laws. Ecology led him to realize that we needed a new ethic. [...] From ecological science comes ecological conscience. Leopold extended ecological frontiers, both where ecologists could go and how far the principles and values taught by ecology would spread into the hearts, minds, and ethical codes of his fellow citizens” (op. cit.: 18; ênfases minhas).
20
Elton promoveu um deslocamento, presente posteriormente na idéia de biodiversidade, da
preocupação apenas com espécies isoladas para a “variedade ecológica” (“ecological
variety”), trabalhada como uma entidade concreta a ser conservada em um estado de
estabilidade. Este seria o pressuposto de sua ação em favor da conservação6.
Rachel Carson (1907-1964), a terceira autora analisada, obteve maior êxito do que
os anteriores na tentativa de popularizar as idéias da Ecologia. Seu livro Silent Spring,
lançado em 1962, tornou-se um best-seller. Nele, Carson empreende uma crítica ao uso de
pesticidas, chamando a atenção para as conseqüências ecológicas desta prática. Um
pressuposto de sua obra é a autoridade do ecólogo devido ao conhecimento privilegiado
que possui a respeito do funcionamento dos sistemas vivos. Assim como os outros dois
autores, ela entende que este conhecimento deve ser levado a um público mais amplo, deve
influenciar a forma pela qual as pessoas vêem a “natureza”. Neste projeto, ganha
centralidade a idéia de variedade natural (“natural variety”), uma “reificação da natureza
como uma entidade concreta”, com uma suposta estabilidade, quantificável e passível de
ser pensada como um commodity. Também apresenta o conceito de diversidade genética
(“genetic diversity”). Ambos os movimentos – natureza como commodity e ênfase no valor
da diversidade genética – sinalizam uma continuidade em relação ao “conservacionismo”
de Elton, ou seja, a proposta de se advogar pela natureza a partir de seus valores práticos,
apreensíveis para um público mais amplo, de maneira a dar suporte à tarefa moral de
preservá-la, mas também compreendem dois aspectos muito importantes para a construção
da idéia de biodiversidade.
Para Takacs, um ponto importante é a relação entre a ação política da qual os
autores até aqui analisados são exemplares e os desenvolvimentos na biologia que levariam
ao surgimento do termo biodiversidade.
All science is, in part, a social construction, and the science Carson, Leopold, and Elton (and those who came after them) used to cajole their readers reflected the values of the cajolers. [...] We can see that a healthy dose of Carson’s conservation values modified the scientific “facts” that changed the way millions of her readers viewed the world . The uses of the term biodiversity likewise cannily reflect the inextricability of biology facts and biologists’ values. (op. cit.: 30).
6 “Ecology provides the scientific facts and the scientific fears that will prompt others to see the desirability of his prescripitions, along wih an appealing view of nature untrammeled: a realm where beauty and stability would reign if only we would allow it. Elton the ecologist also warns of the perils that face us if we ignore his theories and prescriptions” (op. cit.: 25; ênfases minhas).
21
Por fim, Takacs analisa a contribuição trazida por David Ehrenfeld para estes
desenvolvimentos da biologia. Durante a década de 1970, ajudou a promover o papel dos
biólogos como “advogados do mundo natural” em dois livros7 nos quais também
estimulava as pessoas a experimentarem a natureza, de maneira a se convencerem da
necessidade de conserva-la. Enfatiza, desta maneira, as razões emocionais e subjetivas para
a conservação da natureza, ao mesmo tempo em que empreende uma crítica das
argumentações antropocêntricas para a conservação, marcando posição no chamado
“dilema da conservação”8.
Já nos anos 1980, Ehrenfeld ajudou a formalizar a Biologia da Conservação. Foi o
fundador e primeiro editor do periódico Conservation Biology, principal veículo de
divulgação daquela, descrita pelos próprios membros como uma disciplina – na falta de
melhor tradução – “guiada por uma missão”9. Trata-se de uma disciplina que se propõe não
somente a detectar e mensurar o fenômeno de “deterioração da Terra”, mas também gerar
soluções para estes problemas. Nos trabalhos de inúmeros autores neste período, entre eles
Norman Myers e Paul e Anne Ehrlich, ampliam-se os argumentos para os distintos valores
da “diversidade biológica”, expressão que se incorpora nesta década ao jargão dos biólogos.
Desta forma, mobilizam-se tanto argumentos econômicos e pragmáticos, quanto aqueles
baseados nos valores intrínsecos de todas as formas de vida. Takacs interpreta a
emergência, neste período, tanto da idéia de diversidade biológica quanto da biologia da
conservação como resultados da tendência por ele mapeadas na obra dos ecólogos.
Um evento em especial, ocorrido ainda em meados desta década, potencializaria
esta idéia-chave e atuaria na sua popularização. Pode-se dizer que ele é responsável por
criar a biodiversidade enquanto uma questão política10. Refiro-me ao Fórum Nacional sobre
BioDiversidade, realizado em setembro de 1986 em Washington. Takacs interpreta a
realização deste fórum como um grande exemplo da tendência por ele mapeada de
militância política dos biólogos em prol da conservação, que culminaria na fundação da
7 Conserving Life on Earth (1972) e The Arrogance of Humanism (1978), citados por Takacs. 8 “The Conservation Dilemma” é o título de um dos capítulos de seu livro de 1978. 9 No original, “mission-oriented” (op. cit.: 35) 10 “The forum did go on, from 21 to 24 September 1986.[...] It was here that biologists who loved biological diversity came out of the closet. Development experts, economists, and even ethicists and theologians joined the impressive array of biologists to discuss the biodiversity crisis. They also came to create the biodiversity crisis, at least in the minds of the press, the politicos, and the public.” (op. cit.: 38; ênfase no original)
22
disciplina da Biologia da Conservação, e a utilização do termo de biodiversidade como
idéia central desta militância. Segundo o autor, é neste evento que se consolida o
neologismo biodiversidade (grafado na ocasião como BioDiversity), contração do termo
diversidade biológica (biological diversty). Dois aspectos em especial chamam a atenção a
respeito deste fórum. Em primeiro lugar, o fato de ter sido direcionado a uma finalidade
política explícita11, não obstante tenha sido patrocinada pela National Academy of Science
(Academia Nacional de Ciências), uma “august and cloistered institution” (op. cit.: 36),
comprometida com princípios de objetividade científica, e cujos objetivos principais se
vinculam à promoção das atividades científicas. Em segundo lugar, o grande sucesso obtido
pelos organizadores na tarefa de ampliar as discussões a respeito da crise de extinções de
espécies e, de maneira mais ampla, da perda de biodiversidade.
Paralelamente, como dito anteriormente, há a perspectiva de Santos a respeito da
emergência do conceito e da questão da biodiversidade. Vejamos o trecho inicial de seu
texto:
Como é de conhecimento geral, desde meados da década de 80 o desmatamento propulsou a floresta amazônica para o centro do debate ecológico mundial [...] Na verdade foi o desmatamento tropical que forjou o próprio conceito de biodiversidade e engendrou uma nova questão [...] Mas é necessário lembrar que a emergência da questão da biodiversidade projetou uma luz nova sobre a selva: de repente, todo o mundo descobria que as florestas tropicais concentram os hábitats mais ricos em espécies do planeta, ao mesmo tempo em que elas correm o maior risco de extinção. [...] Ora, dentre os países que abrigam florestas tropicais, o Brasil ocupa, com larga dianteira, o primeiro lugar, liderando o grupo dos treze ‘países da megadiversidade’. [...] Está se vendo, portanto, que para o melhor ou para o pior a biodiversidade é, antes de tudo, uma questão brasileira. (op. cit.: 168-9). O período em que este autor localiza a emergência desta questão coincide com a
análise de Takacs: ambos a situam em meados dos anos 1980. A novidade, desta vez, é a
centralidade conferida às florestas tropicais – ao também chamado “domínio neotropical”
(Barretto Filho 2001) – mais precisamente à sua conversão ou perda – o desmatamento.
Esta centralidade não é conferida à toa. Um dos centros irradiadores desta interpretação é a
comunidade de biólogos, em geral norte-americanos, engajados no processo descrito por
Takacs, que ocupariam um papel central no que Santos chama, de maneira um tanto vaga,
“debate ecológico mundial”. Como exemplo do que se diz basta uma análise do conteúdo
11 Em trecho de entrevista concedida a Takacs, Dan Janzen, um dos palestrantes do Fórum afirma: “The Washington Conference? That was an explicit political event, explicitly designed to make the Congress aware of the complexity of species that we’re losing. [...] A lot of us went to talk in a polítical mission” (op. cit.: 37).
23
do livro publicado como resultado do Fórum Nacional sobre BioDiversidade (Wilson
1997). Mais de vinte por cento dos artigos reunidos nesta publicação (12 artigos em 56) têm
como objeto questões relativas ao domínio neotropical, sem contar as referências a esta
região em outros artigos. Há também uma seção inteira dedicada ao tema: “Diversidade em
Risco: Florestas Tropicais”.
Outra indicação da centralidade das florestas tropicais nesse processo é fornecida
por Inoue (2003: 59-60). Preocupada em analisar a emergência da Biologia da
Conservação, a autora chama a atenção para o papel fundamental que exerceu, na
consolidação deste campo disciplinar, um Programa de Pós-graduação em Conservação
dos Trópicos, sediado na Universidade da Flórida, Gainesville. Seria neste centro, segundo
a autora, que teria surgido, de fato, a disciplina. O importante para nossos objetivos é o
vínculo estabelecido entre este surgimento e o referido centro de pesquisas, dedicado a
questões relativas às florestas tropicais.
Não se pode, destarte, dizer que a emergência do conceito de biodiversidade está
vinculado apenas a uma dinâmica de desenvolvimento das ciências nos Estados Unidos,
nem mesmo reificar a contribuição que as caracterizações e preocupações recebidas por
uma bioregião oferece para se entender o processo. É preciso ter uma visão integrada. É
possível, assim entendo, dar conta desta tarefa ao analisar as considerações de Barreto Filho
(2001) a respeito do “domínio neotropical” enquanto um “artefato histórico construído,
majoritariamente, por meio de intervenções tecnocientíficas”. Este autor assim analisa este
processo:
As florestas tropicais emergem, ao lado de outras zonas “ambientalizadas”, como um novo registro territorial – o domínio neotropical – a transversalizar as fronteiras entre os estados-nacionais. Sítio de supervisão de sistemas administrativamente delimitados, esse domínio espacial resulta do novo mapeamento das economias regionais promovido por movimentos e organizações ambientalistas contemporâneos, em seu esforço de impelir a governança do(s) meio(s) ambiente(s) para uma escala de monitoramento e controle globais, senão cósmicos, posto que observando o planeta de fora e de cima. Na qualidade de bioregião que está acima e além dos territórios construídos pelos estados nacionais, estamos – assim como no caso das UCs [Unidades de Conservação] – diante de um artefato histórico construído, majoritariamente, por meio de intervenções tecnocientíficas. (ibid: 28; ênfases minhas). Ao fazer essa análise, o autor tem por objetivo entender o processo de criação de
Unidades de Conservação (UCs) na Amazônia brasileira. Este se encontra intimamente
vinculado à emergência da idéia de biodiversidade, haja visto o protagonismo que a
24
conservação in situ exerce nas estratégias conservacionistas12, e a preemência que ganham
justificativas baseadas na conservação da biodiversidade para se criarem estas áreas – em
detrimento de outras justificativas, como as recreativas, cênicas e educativas, que
continuam, no entanto, a serem mobilizadas. Não cabe aqui uma análise detida deste
aspecto. Menciono-o, no entanto, a título de sinalizar o importante contexto político no qual
a idéia de biodiversidade vai ser mobilizada nessa “nova bioregião”, principalmente por
agentes com formação em Ciências Biológicas – em geral Biologia da Conservação –
engajados nos “movimentos e organizações ambientalistas contemporâneos”. Isto nos dá
uma pista para uma discussão a ser aprofundada no capítulo 2, a respeito da porosidade de
fronteiras entre as distintas posições (academia, governo, sociedade civil organizada) dos
agentes envolvidos com a biodiversidade.
O importante a ser dito aqui é que o “domínio neotropical” exerce um papel
fundamental na emergência desta idéia e esta influência não para por aí, se levarmos em
conta a proposição de Barretto Filho (op. cit.: 29-30), segundo a qual uma “modificação na
caracterização da região” teria contribuído “decisivamente para tornar ainda mais complexa
a definição mesma de biodiversidade”. Isto, no entanto, também já é parte da discussão do
capítulo 2. Olhemos, por ora, para um desenvolvimento posterior do conceito de
biodiversidade: a sua transformação em idéia-chave de uma convenção internacional, locus
privilegiado da “geopolítica da biodiversidade” (Albagli 1998), claramente marcada pela
divisão entre os países do Sul (em geral, do “domínio neotropical”, os detentores da maior
parcela da biodiversidade do planeta) e os países do Norte (países “ricos”, detentores de
(bio)tecnologias e com interesses industriais sobre a biodiversidade).13
12 A conservação da biodiversidade pode ocorrer pela estratégia preferencial, in situ – a preservação por meio do estabelecimento de UCs nas quais se manteriam os organismos em seus ambientes “naturais” – ou por meio da estratégia ex situ – na qual organismos ou partes deles são protegidas em bancos de germoplasmas, jardins botânicos e outros (Barretto Filho 2001: 13) 13 Entre 17 e 21 de janeiro de 2005, período de redação deste trabalho, o Grupo de Países Megadiversos – mencionado por Santos acima – se reuniu em Nova Deli, India. Este grupo constitui uma articulação dos países do Sul, que detêm em seus territórios, segundo o MMA (www.mma.gov.br), cerca de 80% da biodiversidade do planeta. Atualmente, o grupo conta com a participação não mais de 13, mas dos seguintes 17 países: Brasil, África do Sul, Bolívia, China, Costa Rica, Colômbia, Congo, Equador, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru, Quênia e Venezuela. Compreende uma articulação destes países – na qual o Brasil exerce liderança – para influenciar de maneira mais efetiva as decisões que são tomadas nas Conferências das Partes (COPs) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). O principal ponto em que se pretende chegar a um consenso é em torno de uma posição sobre o Regime Internacional de Repartição de Benefícios do Acesso aos Recursos Genéticos. Como preparação para esta discussão, ocorreu em novembro de 2004, em Brasília, o seminário Construindo a Posição Brasileira sobre o Regime
25
1.2. Convenciona-se.
“Conventions are, as Austin says, conditions in which performatives can take place.”
Paul E. Little (1995)
Algumas análises já foram construídas a respeito do processo de negociação que
levou à assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica – ou simplesmente CDB
(Albagli 1998; Alencar 1995). Foge do escopo do presente trabalho realizar uma resenha
sistemática dessas análises. Pretendo, neste momento, dar especial atenção para um aspecto
do processo que levou à CDB, tendo sempre em vista a contribuição do mesmo para a
consolidação/popularização do conceito de biodiversidade: a aproximação entre as
discussões sobre conservação e desenvolvimento. Pretendo, mais especificamente, indicar
como o fortalecimento dos debates sobre a viabilização de um desenvolvimento sustentável,
entendido como um “meio termo” entre os pressupostos ambientalistas conservacionistas e
os desenvolvimentistas (Ribeiro 1991: 75), ofereceu as condições, neste “campo de
negociação política” (idem) ampliado, para que a biodiversidade viesse a ser objeto de uma
convenção internacional.
Barretto Filho, a partir de outros autores, propõe-se a pensar o modo pelo qual se
deu essa aproximação desde o período posterior à segunda guerra mundial, momento a
partir do qual “a agenda da conservação dos recursos naturais foi paulatinamente anexada
pelas instituições responsáveis pela promoção do desenvolvimento” (op. cit.: 142). Enfrenta
esta tarefa, por um lado, analisando algumas características da ação de organizações
conservacionistas, no processo de crescente internacionalização do movimento de áreas
protegidas (denominado “national park movement”), percebido nas articulações da sociedade
civil verificadas por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano, realizada em Estocolmo, no ano de 1972, ou mesmo no surgimento e ação da IUCN
– International Union for the Conservation of Nature14. Por outro lado, procura entender como
Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios (http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1895). Neste endereço é possível acessar a íntegra das discussões que se deram neste evento com o objetivo de consultar organizações indígenas, de quilombolas e demais “populações tradicionais”, além de outras organizações envolvidas nesta temática, com o objetivo de uma ampliação do respaldo à posição a ser defendida pelo Brasil na negociação deste Regime. 14 Para análises mais detalhadas a respeito da natureza híbrida (“semi-estatal”/não-governamental) desta organização, consultar o próprio Barretto Filho (op. cit.: 143-145) ou Alencar (op. cit.: 117).
26
a internacionalização desse movimento se relaciona à passagem da ação nacional e privada
para a ação por meio de agências multilaterais de cooperação internacional, em geral do
sistema ONU (Organização das Nações Unidas), processo que se percebe nas próprias
mudanças verificadas na estrutura da IUCN. Nessa passagem, segundo o autor, as “redes e
organizações internacionais focadas na conservação da natureza” agitariam o “caldo cultural”
do “paradigma de modernização” característico das políticas de ajuda externa do sistema
ONU. Sobre isso, nos diz o autor:
O paradigma da modernização, estando diretamente relacionado à teoria da mudança tecnológica em antropologia, contribuiu para reforçar o estereótipo da sociedade tradicional e atávica e a concepção do desenvolvimento como um processo evolutivo. O caráter de “performance internacional”, de “alvo universalmente desejado”, embutido na idéia mesma de desenvolvimento qua modernização, fez dela uma categoria central no esperanto da modernidade, ao prover um sentido e uma explicação para as posições desiguais internamente ao sistema capitalista mundial, sem referir-se a e, portanto, dissimulando os conflitos inerentes à situação de dominação/subordinação entre distintas sociedades políticas. (op. cit.: 146). Por ora, é importante lembrar que a aproximação verificada entre as organizações
conservacionistas e as agências de desenvolvimento não se dá para além dos vínculos
existentes entre as políticas de ajuda externa dessas agências e, por exemplo, os interesses
geopolíticos das nações doadoras, também chamadas “desenvolvidas”, e das construções
destas – como se apreende pela citação acima – em torno de um caminho de modernização a
ser exportado para outras sociedades. Desta forma, haveria uma reprodução/herança, nesse
embrião das políticas conservacionistas globais, das relações implícitas de
“dominação/subordinação” entre distintas sociedades.
No período considerado por Barretto Filho, como já mencionado, o termo
biodiversidade não havia sido construído no cenário político internacional, e nem mesmo a
idéia de desenvolvimento sustentável havia se consolidado. Daremos ênfase doravante para
acontecimentos da década de 1980 e início da década de 1990, época em que se verifica uma
transição de uma ordem bipolar nas relações internacionais para uma nova ordem, multipolar,
contexto de preparação para a assinatura da CDB. Segundo Alencar 15, o início dos anos 1980
é marcado por uma “evolução e ampliação do conceito” de biodiversidade. Um elemento disso
seria uma “mudança paradigmática da proteção ambiental”, caracterizada por um “novo
15 Alencar (1995) empreende uma reconstrução da história da incorporação da temática ambiental na política e direito internacional, encontrando tratados intergovernamentais sobre o tema desde o ano de 1902, ano da assinatura de uma Convenção Européia a Respeito da Conservação de Pássaros Úteis para a Agricultura.
27
ambientalismo”16 que “veio propor a superação do debate entre preservacionismo e
conservacionismo [...] com a conciliação entre sociedade e natureza e com a conjugação dos
objetivos de proteger o ambiente, ao mesmo tempo em que é possível servir-se dele” (op. cit.:
111-112). Sentia-se, já neste momento, os efeitos da aproximação da agenda conservacionista
com a desenvolvimentista verificando-se, a meu ver, ao contrário de uma “conciliação”, uma
continuidade do “dilema da conservação” em que se encontram os atores sociais. É importante
ter em mente que a indicada “mudança paradigmática” teria efeitos mesmo na abrangência da
agenda conservacionista, ampliando seu foco para além dos planos de estabelecimento de
sistemas de unidades de conservação, mas não que se tenha substituído o papel destes como
estratégia central da conservação. Os desenvolvimentos da negociação da Convenção, com a
incorporação que se verificaria, como veremos, das discussões a respeito do acesso aos
recursos genéticos em seu bojo, tornariam ainda mais candente o referido dilema. Além desta
mudança paradigmática, a autora nos fala de uma:
transformação nas ciências naturais, quando se passa da percepção das espécies como foco de análise, para a percepção dos ecossistemas, ou do mundo em que as espécies interagem [...] Os ecossistemas começaram a ter tanta importância para as estratégias de conservação como as espécies em si, o que garantia a preservação de um conjunto de seres vivos e não somente espécies estrelas. (op. cit.: 112, ênfases minhas). Ela se refere aqui a uma transformação já indicada por Takacs (op. cit.), quando este
propõe que há uma ampliação dos focos de preocupação conservacionista, o que requeria
um concomitante aumento na abrangência do conceito utilizado pelos conservacionistas,
culminando na idéia de biodiversidade. De espécies ameaçadas de extinção – noção com
abrangência limitada a determinadas espécies e em geral restrita a espécies que despertem
um maior interesse do público em geral – ou simplesmente da natureza – noção que, em
geral, remete aos valores intrínsecos dos seres – aciona-se uma noção mais abrangente, a de
biodiversidade, que inclui não somente espécies em risco, mas todas as espécies. O
conceito, no entanto, não se restringiria ao âmbito das espécies. Incluiria também a
variedade de ecossistemas – como indica Alencar – que se apresenta na superfície terrestre,
contemplando a percepção da crise ambiental como global. A variedade intraespecífica, ou
seja, a variabilidade genética entre os indivíduos de uma mesma espécie também é
contemplada. Abre-se, desta forma, a possibilidade para que a conservação da
16 A respeito da “mudança paradigmática” que desemboca na emergência desse “novo ambientalismo” ver também Inoue (2003: 55-61).
28
biodiversidade inclua uma noção de “recursos genéticos” (Alencar 1994: 106), passível de
ser entendida como reserva de valor econômico. Estes seriam os três níveis de diversidade
que passam a ser incluídos na definição de biodiversidade: diversidade genética, de
espécies, e de ecossistemas.
Como resultado desta “evolução conceitual”17 surgiria, então, uma movimentação no
sentido da criação de uma convenção de alcance global para dar conta da “proteção da
natureza”, percebida por membros de organizações ambientalistas de atuação internacional –
como por exemplo a já referida IUCN18 – como dependente de um esforço multilateral para a
ampliação de sua eficácia. O lançamento, em 1980, da Estratégia Mundial de Conservação por
esta organização, em parceria com a UNESCO, o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA) e o WWF corrobora essa tendência ao configurar uma tentativa de
organizar/coordenar o esforço de conservação em nível internacional. Seria necessário esperar
até 1984, quando da realização da 16ª Assembléia Geral da IUCN, para uma sinalização mais
efetiva na direção de um acordo global. A resolução 16/24 desta assembléia indicava a
preparação de uma versão preliminar de um acordo global sobre o tema, com a utilização da
noção de diversidade genética19, em seguida alterada pela de diversidade biológica, termo
ainda restrito ao âmbito acadêmico, mas que já se considerava mais abrangente do que o
anterior. A realização do já referido Fórum Nacional de BioDiversidade, em 1986, atuaria na
consolidação do termo, em sua versão contraída. É significativa, no entanto, a importância
atribuída por Alencar ao conceito e à sua “evolução” como unificadores de iniciativas
dispersas no sentido da consecução do almejado acordo global:
A gênese da Convenção da Biodiversidade nos informa que a convenção surgiu da necessidade de se articularem regras pré-existentes e de se programarem outras regras, que preencheriam as lacunas que a falta de um tratado global denunciava. Diferente da questão do ozônio ou do clima, em que se criou consenso a partir de informações científicas, de alguma forma verificáveis, na questão da biodiversidade o que evoluiu foi um conceito, a partir da preocupação de juristas conservacionistas, em que foi fundamental o trabalho de persuasão
17 Para a reconstrução feita, nos próximos quatro parágrafos, das primeiras negociações de um tratado conservacionista global a fonte é Alencar (op.cit.: 111-132). 18 Alencar se refere a Cirylle de Klemm, membro da Comissão de Direito Ambiental desta organização como o idealizador, ainda nos anos 1970, de uma convenção conservacionista de alcance global (op. cit.: 113 e 148). 19 Segundo Alencar, eram os seguintes os temas a serem incluídos, de acordo com a referida resolução, no documento preliminar: “a) o papel dos recursos genéticos na manutenção da diversidade biológica; b) o acesso aos recursos genéticos; c) a responsabilidade dos Estados-nacionais; d) o fortalecimento das legislações nacionais para conservação in situ; e) o uso comercial dos recursos genéticos; f) os recursos financeiros para a conservação dos recursos genéticos” (op. cit.: 115).
29
levado adiante por Cyrille de Klemm. De genes a espécies, e daí a ecossistemas, ficava claro que tudo estava vinculado entre si, interdependente, e que era necessário adotar um só conceito que englobasse estes três níveis de se perceber o mesmo fenômeno – as diferentes formas de vida na Terra – para que fosse facilitada sua proteção efetiva. (op. cit.: 116-117). Isso nos faz pensar, ao revelar uma novidade em relação à discussão já empreendida
acerca da emergência do conceito, na medida em que o papel de “juristas conservacionistas”,
inseridos na política internacional, teria sido fundamental na “evolução” deste conceito, tema
desta convenção internacional. Diferentemente de outras duas convenções internacionais
(“ozônio e clima”) supostamente justificadas a partir de evidências científicas diretas, “de
alguma forma verificáveis”, a Convenção da Biodiversidade seria proveniente de um esforço
de persuasão e militância política de um grupo do ambientalismo transnacional, os juristas
conservacionistas. Nesta linha de interpretação, propõe-se que mesmo sendo a Convenção
devedora de um processo de “evolução conceitual” vinculado mais a dinâmicas da política
internacional do que a evidências científicas verificáveis, “ficava claro” que os “três níveis de
se perceber o mesmo fenômeno” deveriam ser objeto de um acordo global.
A própria autora, no entanto, nos dá elementos para pensar que, além da abrangência
do conceito e de sua capacidade de consolidar a integração entre distintas agendas, foram
também as condições sócio-históricas nas quais se configura a aproximação do ambientalismo
com a ideologia do desenvolvimento – no intervalo entre a publicação do Relatório Nosso
Futuro Comum (ou Relatório Brundtland) em 1987 e a realização da Rio-92 – que
estabeleceram um campo político internacional para que efetivamente a Convenção se
realizasse. Esse intervalo de tempo é muito importante para a consolidação desse acordo
global, devendo destacar-se alguns acontecimentos. Primeiramente, a consolidação do sistema
ONU, por meio do PNUMA, como locus principal das negociações, responsável por
estabelecer um Grupo de Trabalho, em 1987, composto por “especialistas em diversidade
biológica” com o objetivo de aperfeiçoar as discussões sobre o estabelecimento da convenção.
Há que lembrar, no entanto, que a iniciativa de elaboração de subsídios para esse processo
continuava sob os auspícios da IUCN. Em segundo lugar, a publicação, neste mesmo ano, do
referido Relatório Nosso Futuro Comum, que consolidaria internacionalmente o conceito de
desenvolvimento sustentável como eixo norteador das políticas ambientais e que elevava à
condição de prioridade para tal a construção de uma “Convenção sobre as Espécies”.Em
terceiro lugar, é importante ressaltar a mudança na estrutura da convenção que se pretendia
30
estabelecer, de uma convenção sistematizadora (umbrella convention) para uma convenção-
quadro (framework convention)20.
A meu ver, o quarto e mais importante acontecimento seria a incorporação do processo
negociador da convenção na agenda de acordos a serem firmados na Rio-92, fato que agiu no
sentido de estabelecer prazos determinados para o final do processo e, além disso, influenciou,
por meio das disputas geopolíticas já estabelecidas nesse contexto preparatório, a aproximação
com as discussões sobre o desenvolvimento sustentável21. Little (1995), que procura
interpretar a Conferência do Rio como um “mega-evento transnacional” e a assinatura de
documentos internacionais que então ocorreram como parte do “ritual” que se estabelecia,
entende que o termo desenvolvimento sustentável provê “a foundation for the construction of
a new political cosmology that would resolve the contradictions and anomalies that have
emerged within the old one [desenvolvimento econômico como crescimento econômico
constante]” (ibid: 278). Segundo este autor, um aspecto importante da ritualística do evento é
o debate acerca de sua cosmologia política, que girou em torno do termo desenvolvimento
sustentável como palavra-chave. As palavras de Vicente Sánchez – Embaixador do Chile e
Presidente do Comitê Intergovernamental estabelecido em 1991 pelo PNUMA para levar
adiante as negociações finais em torno dos documentos já elaborados para a CDB – são
reveladoras da aproximação que se verifica nesse momento entre a negociação da CDB e o
desenvolvimento sustentável, em parte explicada pelo confronto de posições entre países do
Norte e do Sul:
As negociações eram conduzidas como parte de um processo de definição do que vinha a ser exatamente o desenvolvimento sustentável e também de esclarecimento sobre quais eram as responsabilidades diferenciadas para se atingir esta meta global. A Convenção foi o resultado de um processo que se iniciou com a convicção – particularmente entre os países
20 Uma convenção sistematizadora atuaria, como seu nome indica, integrando num único acordo multilateral alguns acordos internacionais já existentes numa dada área, no caso, a Convenção de Rãmsar (sobre áreas úmidas), a do Patrimônio Mundial, a CITES (um acordo sobre comércio internacional de espécies) e a Convenção de Bonn (limitada a um grupo específico de espécies). A nova proposta para a Convenção sobre Diversidade Biológica era a de uma convenção-quadro, que estabeleceria um regime internacional em novas bases, sem se sobrepor às anteriores, mas não carecendo de um esforço de integração e adaptação dos mesmos num único acordo. 21 “A Convenção de Biodiversidade, que nascera uma convenção conservacionista global, voltada para a proteção dos recursos biológicos, tanto que se chamava Convention on the Conservation of Biological Diversity era, a partir de 1991, transformada em um acordo global sobre desenvolvimento sustentável. Sua dinâmica anterior vinha se estabelecendo no interior do mundo jurídico conservacionista, abrigada pela IUCN; contudo, a partir de sua inclusão na agenda da Conferência do Rio, não só como um dos documentos a serem ali abertos para assinatura, mas também porque o tema era abordado pela Agenda 21, converteu-se em um fórum de debates sobre questões sensíveis da clivagem Norte/Sul” (Alencar op.cit.: 121-122; ênfase minha).
31
desenvolvidos – de que seria produzido um acordo conservacionista dos mais abrangentes: uma convenção sobre parques e reservas. Entretanto, desde o início das negociações esta abordagem se mostrou incompleta e começaram a ser incluídos aspectos da complexa interação entre países desenvolvidos/em desenvolvimento. (Sánchez & Juma apud Alencar 1995: 122-123). Cumpre ressaltar, pois, que se operou no processo mesmo de negociação da
Convenção a “geopolítica da biodiversidade” (Albagli 1998), cujo principal traço seria o que o
Embaixador do Chile chama de “complexa interação entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento” no tocante à questão da biodiversidade. Importante aqui é o uso que os
representantes diplomáticos dos chamados países em desenvolvimento ou do Sul fazem da
ideologia do desenvolvimento, que pode ser reconstruído desde a Conferência de Estocolmo,
em 1972. Nesta ocasião, a posição do Brasil e de outros países do Sul era de enfrentamento
intransigente às propostas de proteção ambiental construídas com base na realidade dos países
do Norte, encaradas pelos primeiros como entraves a seus projetos nacionais de
desenvolvimento. Sobre o assunto, nos fala Barretto Filho:
A posição, o papel e a performance da delegação brasileira presente à Conferência [...] são exemplares das posições endossadas pelos demais países “em desenvolvimento”. Pelo menos dois componentes da posição defendida então pelo país foram publicamente endossados pelo Secretário-Geral da Conferência, Maurice Strong: o desenvolvimento não deveria ser sacrificado em nome do meio ambiente e os países “desenvolvidos” deveriam pagar pelos esforços de proteção ambiental nos países “em desenvolvimento”. Um terceiro elemento da posição brasileira produziu bastante controvérsia. Em virtude das freqüentes denúncias de destruição generalizada da natureza na Amazônia e do pináculo alcançado pelo contencioso de Itaipu com a Argentina, a delegação brasileira adotou uma posição entrincheirada em defesa da soberania nacional: esta não deveria capitular diante de interesses ambientais mal definidos e imprecisos - a cooperação internacional não deveria servir de instrumento de intrusão de interesses externos em assuntos nacionais. (op. cit.: 149-150; ênfases minhas). Aqui temos indicações do entendimento de que os recursos biológicos –
posteriormente a biodiversidade – são encarados como patrimônios nacionais, sobre os quais
os Estados detêm soberania. Isso persistiria até o período de negociações da CDB, quando
estes países obteriam maior êxito. Em defesa da soberania sobre a biodiversidade de seus
territórios, os países do Sul – liderados pelo Brasil, segundo Alencar – empreendem uma
alteração em uma idéia importante que norteava a assinatura da CDB. A biodiversidade sofre
um deslocamento de entendimento, por ação desses países, de patrimônio comum da
humanidade (common heritage of humankind) a preocupação comum da humanidade
(common concern of humankind) sendo incluído no texto da Convenção a soberania dos
32
países sobre a biodiversidade presente em seus territórios e obrigações desiguais por parte dos
distintos países em relação a sua conservação22. Cabe aos países do Norte um papel maior no
financiamento da mesma e uma ação no sentido de repartir os benefícios advindos do acesso
aos recursos genéticos e transferir tecnologias aos países do Sul23. Em entrevista pessoal,
Bráulio Ferreira de Souza Dias – atual Gerente de Conservação da Biodiversidade, da
Diretoria de Conservação da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente, um dos
representantes do Brasil no processo negociador da CDB – discorre sobre a influência dos
países “em desenvolvimento” na negociação da Convenção como algo a ser destacado no
processo.
ED: O senhor teve participação nas negociações que levaram à Convenção sobre Diversidade Biológica. Que pontos o senhor destacaria neste processo? BD: A Convenção começou a partir de uma proposta dos cientistas americanos – isto no final dos anos 80 – e ela tinha um viés apenas conservacionista. Um ponto importante foi a articulação que houve na negociação a partir principalmente da iniciativa de países em desenvolvimento como o Brasil, a Malásia, entre outros, com os organismos internacionais no sentido de se acrescentar à preocupação também a questão de uso sustentável e da repartição de benefícios. Só trabalhar com conservação, o tema biodiversidade continuaria sendo um tema restrito apenas à área ambiental. Então a Convenção contempla questões sócio-econômicas e não só questões ambientais. O direito da repartição dos benefícios é um direito novo, que foi instituído pela Convenção. Bráulio endossa o argumento acima discutido, com relação à mudança no escopo da
convenção de um acordo conservacionista para um documento que incorpora “questões sócio-
econômicas”. Mas o faz atribuindo um papel central à “iniciativa de países em
desenvolvimento como o Brasil”.
O “apelo nacionalista” (Alencar op. cit.: 123) com o qual os países do Sul abordavam
– e abordam – a questão da biodiversidade e a relacionam ao desenvolvimento sustentável,
entendido talvez como algo estranho àquela, compreende, ao meu ver, um aspecto central da
ação desses países em relação à temática. Sem querer me alongar demais neste aspecto,
22 No preâmbulo do texto da Convenção sobre Diversidade Biológica há a seguinte passagem: “a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum à humanidade [...] os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos” (Convenção sobre Diversidade Biológica 2000: 8). 23 A ação política dos países do Sul conseguiu incluir como um dos três objetivos da Convenção, juntamente com a conservação e uso sustentável da biodiversidade, a repartição dos benefícios advindos do acesso aos recursos genéticos. O artigo 1 da CDB trata deste ponto: “Os objetivos desta Convenção, a serem cumpridos de acordo com as disposições pertinentes, são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado” (ibid: 10).
33
gostaria apenas de sugerir, por ora, que é justamente o princípio de defesa da soberania sobre
a biodiversidade – presente em outros termos na posição desses países, como se viu, já em
Estocolmo/72 – uma condição sine qua non para a consecução de estratégias nacionais de
desenvolvimento24.
Esta breve análise do processo de negociação da CDB nos revela, portanto, que a
emergência do conceito de biodiversidade e a sua consolidação como uma idéia-chave se
vinculam ao chamado “domínio neotropical”, não somente como cenário principal que a
preocupação com a conservação da biodiversidade focaliza, mas como região integradora de
Estados-nacionais que, por sua condição de detentores de “megadiversidade”, se colocam
numa postura ativa nas discussões diplomáticas que consolidam o termo. O Brasil, como país
líder em “megadiversidade”, encontra-se em posição privilegiada na questão da biodiversidade
e, como visto, exerceu e exerce papel importante nesta arena política internacional. Passemos,
então, a uma breve discussão a respeito do momento no qual o termo se torna uma idéia-chave
neste país.
1.3. O termo no/do país
Após a discussão inicial sobre a emergência do termo, cumpre aproximarmo-nos de
outra tarefa: dar o primeiro passo no caminho de uma interpretação a respeito da
“domesticação” (Guyer & Richards 1996: 9) do conceito de biodiversidade no contexto da
política ambiental brasileira e, de maneira mais ampliada, no ambientalismo brasileiro.
Pretende-se, por ora, entender o momento no qual o conceito se torna uma idéia operante
neste contexto.
Uma das maneiras pelas quais tentei dar cabo desta tarefa foi apresentando a
seguinte questão aos meus entrevistados: “quando você se recorda de ter ouvido e/ou lido
este termo pela primeira vez?”. Recebi o seguinte grupo heterogêneo de respostas25.
24 Refiro-me especialmente ao contexto brasileiro. Configuraria outro estudo inventariar as múltiplas visões de desenvolvimento presentes no discurso da Biodiversidade. Longe de cumprir este objetivo, tentar-se-á, ao longo deste trabalho, pontuar algumas vozes presentes no debate da biodiversidade e, ao menos, indicar alguns posicionamentos possíveis quanto ao desenvolvimento, que aí se expressam. 25 Ao longo de todo o trabalho, sempre que for citado mais de um entrevistado continuamente, suas respostas estarão dispostas na ordem alfabética de seus nomes.
34
Cláudio Pádua: Não sei, mas já nos anos 80, talvez. Começo dos anos 80, 84, 85. Não, talvez antes até. Começo dos anos 80. ED: E em que contexto? CP: O termo, na verdade, como o termo biodiversidade, ele surge nos anos 70 mesmo. Talvez antes. Mas o [Edward O.] Wilson fala nele pela primeira vez nos anos 70. Na universidade, na pós-graduação. Não, antes disso, quando eu trabalhava no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro. Quando eu fui trabalhar em biologia no Centro de Primatologia. Eu imagino que a primeira pessoa que me falou disso foi o Professor Coimbra Filho, mas eu não tenho bem lembrança, não. O Professor Coimbra Filho é um primatólogo do Rio de Janeiro. Eduardo Vélez: Eu fiz a faculdade de 86 a 1990. E essa foi exatamente a época em que o termo biodiversidade começou a ganhar, digamos assim, a ser popularizado. Já existia mas não era popularizado. Então era fauna e a flora, a biota, enfim, outros, e biodiversidade encaixou como uma luva, enfim, porque eu não preciso falar a palavra ecossistema que é uma palavra que quase ninguém sabe o que é um ecossistema. Biodiversidade dá idéia de diversidade biológica, seja falando de um organismo, de uma floresta, é um termo muito prático, muito útil, sob o ponto de vista de comunicação nessa área. E ele é um termo integrador de certa forma, porque ele permite, ou seja, quando eu falo de conservação da natureza, ao falar de conservação da biodiversidade eu tô falando de conservação da natureza, é uma espécie de refinamento da idéia da natureza. É um termo que eu acho que veio pra ficar. Fernanda Kaingang: Não me recordo de quando ouvi a palavra biodiversidade pela primeira vez, mas faz bastante tempo, porque, em 1992 foi feita a RIO 92, que deu origem, no futuro, a este tratado multilateral que é a Convenção da Diversidade Biológica, onde, né? se falou muito em biodiversidade, se falava em meio ambiente. Alguns povos indígenas falavam, “Nós não entendemos esta noção de meio ambiente. Pra gente o ambiente é inteiro, ele não é pela metade”. Então é moda no mundo se falar em biodiversidade. O que também parece uma coisa estranha pra gente. Gustavo Fonseca: Eu não lembro exatamente, mas, em meados de, no final da década de 80, em torno de 88 eu lembro que já estava sendo utilizada numa reunião que participei em Bogotá, em 88, que foi uma das reuniões que levaram à publicação de uma coisa chamada a Estratégia Mundial para a Conservação que foi publicada pela IUCN e pelo World Resources Institute e divulgado durante a ECO-92. Então foi mais ou menos por aí. Maria Tereza Jorge-Pádua: Na década de 80. Quer dizer, o termo biodiversidade, que antes a gente usava muito diversidade biológica, riqueza biológica, tal, tal, tal, mas o termo mesmo ganhou força na década de 80, em especial no final da década de 80, antecedendo a Rio-92, em que se preparou estratégias nacionais, a Estratégia Internacional da Biodiversidade, foi lançado no Brasil também a Estratégia Mundial da Biodiversidade, depois os países foram preparando as suas estratégias nacionais e culminou com a Convenção da Biodiversidade na Rio-92. Quer dizer, o termo ganhou corpo nos final da década de 80, e o grande momento foi a Convenção da Biodiversidade na Rio-92. Muriel Saragoussi: Não é antigo, porque o meu doutorado é em genética e melhoramento de plantas e eu terminei meu doutorado em 85. Eu fiz minha iniciação científica com genética de populações e então acho que eu ouvi em 78, 79, dentro desse contexto de especialista. Na verdade não era uma discussão pública, era uma discussão de especialista.
35
Paulo Kageyama: Na verdade, quando tomei contato com a Convenção da Biodiversidade. Ela foi proposta, esta convenção, foi criada esta convenção para a RIO-92, a famosa reunião do Rio em 92. Foram propostas duas convenções, a Convenção da Biodiversidade e a Convenção de Mudanças Climáticas. Quando foi proposta esta convenção na verdade surgiram os documentos de que se propunha oficialmente, digamos, esse conceito. Rubens Nodari: Isso foi lá por volta de 88, quando essa expressão foi usada pelo Edward Wilson. A gente comprou o livro dele e lá consta essa expressão. Alguns relacionam seu primeiro contato com o termo a documentos publicados na
década 1980, inseridos no contexto de discussões conservacionistas no âmbito da
diplomacia internacional, que tentamos reconstruir na seção anterior (Fonseca e Jorge-
Pádua). Outros mencionam a influência de Edward O. Wilson como fundamental na
divulgação do termo (Nodari e Pádua). Nodari não menciona o Fórum Nacional sobre
BioDiversidade, de 1986, mas cita o livro (Wilson 1997) resultante das discussões
ocorridas neste evento. Vélez não cita eventos, mas localiza na segunda metade da década
de 1980 o contato inicial com o termo. A líder indígena Fernanda Kaingang e Paulo
Kageyama o localizam no contexto da assinatura da CDB, quando da realização da Rio-92,
momento em que se “propunha oficialmente” o termo, nas palavras do último.
Uma pista para entender esse intervalo relativamente grande de tempo entre as
estimativas mais ou menos antigas é fornecido por Saragoussi. Segundo ela, seu contato
com o termo em sua trajetória acadêmica até a conclusão do doutorado em 1985 se dava
numa “discussão de especialistas”, e não se configurava uma “discussão pública”. Poder-
se-ia pensar, portanto, que é a partir deste momento que se dá a popularização do conceito.
David Takacs argumenta, com base numa comparação das ocorrências do termo
entre os anos de 1988 e 1993 no Biological Abstracts – uma ferramenta de busca em
periódicos de ciências da vida de várias partes do mundo – que a popularização do termo se
verifica neste período, como um resultado da militância de biólogos verificada no Fórum de
1986.
“In the few short years since the National Forum on BioDiversity, the term has been promoted vigorously; it has been transformed from a bit of scientific esoterica into a buzzword of popular culture. In 1988, biodiversity did not appeared as a keyword in Biological Abstracts, and biological diversity appeared once. In 1993, biodiversity appeared seventy-two times, and biological diversity nineteen times” (op. cit.: 39).
36
Seu potencial como “buzzword” – ou seja, “um termo de um jargão de um
determinado assunto que transmite a impressão de um conhecimento especializado”26 –
favoreceria essa popularização. Quis fazer exercício semelhante em bases de dados
nacionais, de maneira a comparar os resultados com os dados de Takacs27. A primeira em
que procurei foi a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)28. Trata-se de um instrumento
que procura congregar as teses e dissertações produzidas em universidades brasileiras em
um único banco de dados. Estaremos olhando, pois, para a produção original das principais
universidades do país. Na figura 1, o gráfico obtido em uma busca simples do termo
biodiversidade nos campos título ou nos resumo feitos pelos autores:
BDTD/IBICT
0
5
10
15
20
25
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
ano
nº d
e re
gist
ros
figura 1: ocorrências do termo biodiversidade no campos título e resumo na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações/IBICT.
Este resultado nos revela que a academia brasileira só incorpora o termo em seu
jargão a partir do ano de 1994, em que se verificam as duas primeiras ocorrências do
mesmo. Isso já é uma indicação de que a popularização do termo neste país se dá num
período posterior ao indicado por Takacs para o contexto científico internacional. Minha
26 Definição do “The Wordsworth Concise English Dictionary”, citada por Bensusan (1997: 18). 27 As informações que se seguem encontram-se atualizadas até dezembro de 2004. 28 “O IBICT atua no contexto das novas tecnologias de acesso à informação. Um de seus programas é a Biblioteca Digital Brasileira - BDB, que objetiva atender as demandas por serviços de informação inovadores que a ela possam ser integrados. Nesse sentido, o IBICT coordena o projeto da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - BDTD, que busca integrar os sistemas de informação de teses e dissertações existentes nas Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras, como também estimular o registro e a publicação de teses e dissertações em meio eletrônico.” (texto extraído do portal www.ibict.br).
37
primeira interpretação desse dado é que, no Brasil, seria a Rio-92, e não o Fórum de 1986,
que consolidaria o termo como uma “questão”, não obstante ele já se encontrasse em
processo de incorporação num âmbito mais restrito, numa “discussão de especialistas".
Resolvi, no entanto, pesquisar em outros bancos de dados, dessa vez em sistemas de busca
de bibliotecas de grandes universidades brasileiras: o sistema da Biblioteca Central da
Universidade de Brasília e o sistema Dedalus, que congrega as bibliotecas da Universidade
de São Paulo. Nas figuras 2 e 3, temos os gráficos obtidos:
Dedalus - USP
0
20
40
60
80
100
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
ano
nº d
e re
gist
ros
figura 2: ocorrências do termo biodiversidade no campo título no sistema integrado de bibliotecas da Universidade de São Paulo - Dedalus.
38
BCE/UnB
0
2
4
6
8
10
12
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
ano
nº d
e re
gist
ros
figura 3: ocorrências do termo biodiversidade no campo título na Biblioteca Central da Universidade de Brasília.
É preciso ter em mente que a natureza dos documentos nestas duas últimas buscas é
um tanto diferente da primeira. Enquanto na BDTD/IBICT havia um cadastro apenas de
teses e dissertações, nas bibliotecas das duas universidades o acervo no qual se buscou
registros da palavra biodiversidade é mais variado: além de teses e dissertações, demais
livros das mais diversas áreas do conhecimento, de cunho acadêmico ou não, vídeos,
periódicos, anais de encontros, documentos institucionais – governamentais ou não – etc.
Vale ressaltar que nestes sistemas de buscas das bibliotecas destas duas universidades os
primeiros registros do termo aparecem em 1992 e não somente em 1994 como na
BDTD/IBICT. Isso é em parte explicado pelo tempo relativamente mais longo que se leva,
suponho, para que se absorvam nas produções de cunho acadêmico – que são refletidas no
primeiro gráfico – novos termos, o que não ocorre com a variedade de publicações
encontradas nas bibliotecas das como, por exemplo, documentos governamentais ou anais
de encontros. Corroborando nossa hipótese de que a transformação do termo em uma
palavra-chave se opera como efeito da Rio-92, temos picos de ocorrência no ano de 1992
para a BCE/UnB e 1993 no Dedalus/USP.
Algumas ressalvas devem ser feitas, de maneira a deixar mais claro o procedimento
realizado. Na BDTD/IBICT, realizamos a busca nos campos título e resumo – este último
foi incluído porque, em geral, é preparado pelo próprio autor da obra. Já nas buscas nos
39
acervos das bibliotecas, optei por buscas simples nos “títulos” das obras, excluindo o
campo “assunto”, cuja redação poderia ter sido construída não pelos autores, mas sim pelos
sistemas de indexação das bibliotecas. É o que revela a figura 429, resultado de uma busca
realizada no mesmo sistema da BCE/UnB, acrescentando o campo assunto. A ocorrência
mais antiga do termo biodiversidade agora aparece no ano de 1962, muito antes de – como
vimos nas seções anteriores – o termo ter entrado em discussão internacionalmente. Este
dado revela que, além de ter sido popularizado, o termo biodiversidade se transforma numa
categoria integrativa, projetada pelos responsáveis pela indexação de obras nesta biblioteca
para um período anterior à sua criação.
BCE/Unb (no título e assunto)
0
5
1015
20
25
1962
1972
1973
1977
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
ano
nº d
e re
gist
ros
figura 4: ocorrências do termo biodiversidade nos campos título e assunto na Biblioteca Central da Universidade de Brasília
Além disso, o padrão de curva encontrada no Dedalus/USP, com picos nos anos de
1999 e 2002 em certa medida pode ser explicado pelo recurso que esse sistema oferece de
listar, nos anais de eventos e periódicos, por exemplo, os artigos individualmente e não
somente a obra em que constam. Este recurso não se encontra disponível no primeiro
gráfico encontrado na BCE/UnB (figura 3) que – não obstante o pico verificado no ano de
29 Para que gráfico coubesse na página de maneira inteligível retirei do mesmo os anos em que não havia registro do termo.
40
1992, cujas causas já aqui conjecturamos – apresenta um padrão de crescimento de curva
similar ao verificado no BDTD/IBICT.
Entendo o cruzamento dos dados provenientes dos instrumentos de busca com as
respostas dos entrevistados como revelador da dinâmica de emergência do termo
biodiversidade no Brasil ao longo do tempo. Enquanto alguns entrevistados acusaram o
primeiro contato ainda na década de 1980 isto se deu, como analisa Muriel Saragoussi,
numa “discussão de especialistas”, que no entanto não chegou nem mesmo a se refletir em
uma incorporação do termo como palavra-chave da produção científica. A palavra se
tornaria uma questão neste país por ocasião da Rio-92 e ganharia força, como mostram as
curvas dos gráficos, ao longo da década de 1990. No próximo capítulo apresentaremos
algumas tensões entre as distintas vozes que se apresentam no debate em torno deste
conceito emergente no ambientalismo brasileiro, a começar por uma discussão acerca de
sua definição.
41
Capítulo 2: Vozes no debate sobre biodiversidade no Brasil
“Ciência é ciência, política é política. As duas coisas quando tendem a
ser misturadas, elas tendem a produzir resultados danosos pros dois lados[...] Então deixar as duas coisas bem separadas para que as coisas
não sejam desvirtuadas, pra que a ciência continue bem entendida e bem respeitada por que tá interpretando isso, e que a parte política siga
seu curso” Gustavo Fonseca, entrevista pessoal
“É impossível você considerar que somente os diplomas acadêmicos
credenciam as pessoas pra discutir os assuntos. A biodiversidade é uma discussão de cidadania”
Muriel Saragoussi, entrevista pessoal
Na introdução do trabalho delineamos o trajeto da pesquisa que nos levou – a partir
de uma problematização da aplicação feita do conceito de “campo” em Bourdieu – da
consideração das posições no “campo da biodiversidade” ocupadas pelos gestores e
formuladores de políticas para a biodiversidade, para o tratamento, de maneira ampliada, de
distintas vozes que se apresentam nos debates sobre a biodiversidade no Brasil. Neste
segundo capítulo, estaremos mais próximos destas vozes, principalmente por intermédio
das entrevistas realizadas (ver quadro em anexo). Tentar-se-á circular por vozes
governamentais, vozes não-governamentais, vozes acadêmicas e vozes indígenas, em seus
entrecruzamentos e tensões. Neste trajeto, emerge a voz científica como transversal a estes
discursos.
O primeiro ponto a ser explorado, dando continuidade à discussão iniciada no
primeiro capítulo, é a problemática da definição de biodiversidade.
42
2.1. (In)definições
“No eixo da oposição entre natureza e cultura, os conjuntos dos
quais ambos [signo e conceito] se servem estão perceptivelmente deslocados. Com efeito, pelo menos uma das maneiras pelas
quais o signo se opõe ao conceito está ligada a que o segundo se pretende integralmente transparente em relação à realidade,
enquanto o primeiro aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real”
Claude Lévi-Strauss (1970)
Apresentar-se-á, nesta seção, algumas formas de se definir biodiversidade: por um
lado, esta aparece como um conceito carente de definição mais precisa, de modo a haver
um rigor em seu uso; por outro lado, é pensada como um conceito “amplamente
consensuado”1, até mesmo “auto-definível”2, tendo principalmente a Convenção sobre
Diversidade Biológica – entre outros documentos – como referencial de positivação.
Bensusan, preocupada com o impacto da variação conceitual em Ecologia para as
políticas de conservação, chama a atenção – com base no levantamento de definições feito
por Takacs em suas entrevistas com biólogos conservacionistas – para a “multiplicidade de
concepções para o termo biodiversidade, o que pode trazer os mesmos problemas
enumerados nas seções anteriores3” (1997: 20). Cita também como outro problema inerente
ao conceito a sua grande abrangência. Indica como referência de definição e de abordagem
inovadora a Convenção sobre Diversidade Biológica, principalmente por ter consolidado a
biodiversidade em três níveis, como vimos anteriormente – genes, espécies e ecossistemas,
e com estes, “diversos processos mantenedores de biodiversidade” (ibid: 17). Abordagem
inovadora por “enfatizar” como objetivos para a conservação da biodiversidade o “uso
sustentável” de seus componentes e a “partilha dos benefícios gerados pelo uso
sustentável”, objetivos incorporados no processo de negociação internacional delineado
acima.
1 entrevista com Eduardo Vélez. 2 entrevista com Maria Tereza Jorge-Pádua. 3 Nestas seções a autora tenta entender em que medida variações no entendimento a respeito de conceitos importantes para a ecologia, como os de “comunidade”, “diversidade” e “estabilidade”, trariam propostas distintas de ações conservacionistas. Cita um exemplo, tirado de outros autores, no qual se constroem cinco cenários hipotéticos de recomendações para a conservação com base em variações acerca dos conceitos de “diversidade” e “estabilidade”.
43
Entretanto, um grupo de autores (Brandon, Redford & Sanderson 1998) com
preocupação semelhante a de Bensusan – “imprecisões” no uso do conceito – parece
construir justamente uma crítica da incorporação desses dois objetivos – sobretudo a idéia
de um “uso sustentável” – às políticas de conservação com base no estabelecimento de
UCs. Empreendem uma breve reconstrução da “história do conceito”, que passaria pelo
uso, nos anos 1970, do termo “natural diversity” no léxico da ONG The Nature
Conservancy. Teria relação também com uma “série de publicações em meados dos anos
19804” que teriam incluído na idéia de biodiversidade a “diversidade genética e a
diversidade ecológica”. História esta que culminaria num “debate sobre o significado do
termo no interior da comunidade de biólogos” nos anos 1980, entre uma noção restrita, com
base na riqueza de espécies apenas, e uma noção que inclui o âmbito genético e ecológico –
debate contaminado por “outros grupos”5 que, pelo crescimento da popularidade e
importância política do termo, passariam a incorporá-lo em suas agendas. Assim,
descrevem suas preocupações:
“The international pressures for use, or sustainable use, which have become intertwined with biodiversity conservation have created a conflicting set of values and of policies.[...] [these conflicts] highlight the need for agreement on what biodiversity means” (op. cit.: 7). As críticas empreendidas por estes autores à imprecisão no uso do conceito são
direcionadas a um determinado aspecto da definição, demasiado controverso, que se
relaciona, mas não coincide, com a questão do uso sustentável: a relação entre diversidade
biológica e diversidade cultural. Segundo os autores, “to include management of human
cultural diversity alongside biological and ecological aims [...] introduces further conflict
into meeting conservation objectives” (ibid: 6).
Barretto Filho enxerga aí uma expressão da “controvérsia quanto ao peso dos
fatores naturais e socioculturais na determinação da diversidade biológica”, tendo como
foco de análise as florestas tropicais que, como já vimos, são cruciais na conformação deste
conceito. Excluir a diversidade cultural da definição de biodiversidade seria desconsiderar
4 U.S. Congress Council on Environmental Quality’s annual report (de 1980); e Burley, F. W. 1984. The Conservation of Biological Diversity: a Report on United States Government Activities in International Wildlife Resources Conservation, with Recomendations for expanding U.S. Efforts. Washington, D.C.: World Resources Institute. 5 Neste grupo, incluem literalmente quaisquer agentes que não sejam os conservacionistas com formação em ciências biológicas e militantes conservacionistas: “plant breeders, ethnobotanists, pharmaceutical companies, anthropologists, indigenous and traditional peoples” (op.cit.: 6).
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uma mudança na compreensão da floresta tropical: de algo “amplamente uniforme, um
ambiente hostil à civilização, de ocupação relativamente recente, esparsamente povoada,
sociologicamente anestesiada e culturalmente dependente de áreas mais desenvolvidas”
para uma visão, ainda não hegemônica, de “uma área originalmente populosa,
sociopoliticamente complexa e com uma ecologia significativamente alterada pela
intervenção humana; um bioma composto por distintas e diversas paisagens, cada qual com
suas particularidades e histórias específicas de constituição e nas quais a plasticidade da
intervenção humana desempenhou um papel fundamental” (2001: 29-30).
De maneira um tanto distinta – em relação a esta controvérsia sobre as
“imprecisões” no uso do conceito – apresentaram-se as respostas de alguns dos
entrevistados quando interpelados a respeito da definição de biodiversidade, primeira
questão colocada a todos6. Com a exceção da fala da líder indígena, não foi possível
encontrar grandes distinções entre respostas de agentes situados no âmbito governamental e
aquelas apresentadas por representantes de organizações não-governamentais ou da
academia. Vejamos suas respostas.
Bráulio Dias: A Convenção sobre Diversidade Biológica define biodiversidade. É toda a variabilidade da vida. Intraespecífica, dentro das espécies, a diversidade de espécies, a diversidade de ecossistemas e inclui também as funções ecológicas da biodiversidade. A definição da Convenção não fala explicitamente, mas isto inclui também a questão dos serviços ambientais. Eduardo Vélez: Acho que já está plenamente consensuado. Basicamente se refere a todos os componentes do mundo natural, do mundo vivo, em diferentes escalas de organização biológica. Então começa, de uma forma mais ampla, incluindo todos os ecossistemas. Então, a biodiversidade, parte da biodiversidade, é formada pelos diferentes ecossistemas, terrestres, aquáticos, etc. Aí entram as florestas, os campos, o cerrado, as savanas, os oceanos, os rios, enfim, todos os componentes bióticos nesta escala de organização. Depois o segundo componente são as espécies. Então a forma de organização biológica através de espécies, todas as espécies existentes e terceiro lugar, um componente de organização genético. Então todos os genes e toda a variabilidade genética que está presente no genoma, que é o conjunto de genes de cada espécie, que é o que caracteriza cada espécie, é o terceiro componente da biodiversidade. Então hoje quando se fala em biodiversidade, pode estar se falando de qualquer um destes três níveis de organização biológica, né, relacionado ao mundo biológico. Fernanda Kaingang: O que é biodiversidade? Bom, Trabalhar com biodiversidade é uma coisa bastante complexa, porque nós trabalhamos com muitos povos indígenas no país, e o conceito deles sobre o que seja, pros diferente povos, biodiversidade, parece uma palavra alienígena pra gente. Quer dizer, se você falar em território, se você falar em terra, se você
6 As ênfases em itálico são minhas. Ver quadro de entrevistas em anexo.
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falar em conhecimento tradicional, parece uma coisa mais próxima. Biodiversidade não parece ser uma coisa palpável, sabe? Parece alguma coisa que está distante de você e não o local onde você vive, e não a terra onde você mora, e não as plantas das quais você se alimenta ou a água que você bebe. Gustavo Fonseca: Biodiversidade não tem uma definição mecanística muito útil do ponto de vista operacional. No entanto eu aceito a que foi dada pela Convenção da Biodiversidade que a define como a variabilidade da vida em diferentes níveis: de genes a espécies e comunidades, aos sistemas e aos processos que fazem parte, que ligam essas coisas todas. Então é uma definição mais genérica, mas abrangendo desde os níveis de organização biológica microscópicos como os genes até os processos que vão ocorrer em larga escala. Maria Tereza Jorge-Pádua: Pois é Eduardo, eu fiquei um pouco surpresa com a sua pergunta porque, eu acho que é autodefinível né? É diversidade biológica, mesmo. Em todas as suas formas, mas é, até que nisso, têm várias definições que eu gosto, mas eu acho que a definição do SNUC tá muito bem, a da Convenção da Biodiversidade tá muito bem, porque aí define um pouco melhor. Mas aí, é uma coisa muito clara, é diversidade biológica, então é autodefinível, num tem nenhuma definição a não ser essas clássicas, da própria Convenção da Biodiversidade, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, são definições, da Conservation International, do livro Megadiversidade, são as definições clássicas que existem e não tenho nada a acrescentar e é isso mesmo. Muriel Saragoussi: Biodiversidade é diversidade da vida, basicamente. Eu acho que a gente pode sofisticar em cima disso um tanto, mas basicamente a biodiversidade é o que a gente encontra na natureza em termos da diversificação da vida. E, aí você pode colocar inter-relações e outras coisas, mas já são sofisticações. ED: Certo... MS: Não sei se você espera um tese sobre isso, mas... Rubens Nodari: Biodiversidade, ela deve ser entendida não só como um conjunto de formas de vida, mas também de diferentes ecossistemas, o que inclui o processo ecológico. Popularmente, biodiversidade ela é entendida como riqueza de espécie. Esse é um conceito muito estrito, muito insignificante, porque não existe espécie, não existe vida, sem que haja o ambiente. Então ela tem que incluir as formas de vida, os ecossistemas e o processo ecológico. Se você num tem um processo ecológico você num tem nem forma de vida nem ecossistema. Então essa é inclusive assim que a CDB entende e é assim como nós do Ministério do Meio Ambiente também entendemos biodiversidade. Paulo Kageyama: Biodiversidade, no sentido institucional, digamos, que é definido pela Convenção da Biodiversidade que eu considero o marco maior que rege a nossa biodiversidade no mundo é o conjunto de plantas, animais e microorganismos, juntamente com os ecossistemas onde eles existem, assim como as interações bióticas complexas de que eles fazem parte. Acho que são essas três coisas, né? Desde genes até espécies – populações, aliás – e os sistemas e suas interações. [...] Normalmente se fala que biodiversidade é só de genes a espécies e populações até, vamos dizer, o conjunto de espécies, digamos, as comunidades. Agora, eu acho que é muito importante colocar que os ecossistemas diferentes, na verdade, onde estas comunidades existem fazem parte também da biodiversidade, já que é causa de existir tanta diversidade no mundo tropical. E, é lógico, a ênfase na interação de polinização, de dispersão e predação, eu acho que é uma questão muito importante, já que é nisso que reside, de fato, a diferença entre o mundo
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tropical e o temperado. As interações são muito mais complexas entre organismos, né? Então nós temos aí relações muito fantásticas entre planta-polinizador, por exemplo, planta-dispersor de sementes, planta-predador. Enfim, estas interações são muito, muito fantásticas mesmo. É interessante atentar para o fato de que, na condição específica em que forneceram
estas definições, interpelados em uma entrevista, não houve menção a supostas imprecisões
no uso do conceito, como se viu anteriormente. Pelo contrário, a pergunta chegou a gerar
surpresa para uma entrevistada (Jorge-Pádua) por considerar que a biodiversidade é “auto-
definível”, estando “amplamente consensuado” (Vélez) no “marco maior que rege a nossa
biodiversidade” (Kageyama): a Convenção sobre Diversidade Biológica, que é o que
“define biodiversidade” (Dias7). Vejamos a definição de biodiversidade que consta neste
documento, às vezes interpretada como “a mais precisa” (Oliveira 2002: 52):
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas (Convenção sobre Diversidade Biológica 2000: 11). A Convenção apresenta, como seus objetivos
a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado (ibid: 10). A referência à CDB, cerca de doze anos após sua abertura para a adesão dos países
na Rio-92 e pouco mais de dez anos após ter entrado em vigor, no final do ano de 1993,
reflete, em grande medida, a força que ganhou este tratado multilateral como marco
positivador do conceito e locus apropriado para as decisões acerca da biodiversidade e,
mais do que isso, como instrumento de sua definição jurídica. A maioria dos entrevistados
– mesmo quando não se fazia referencia direta à CDB – ofereceu uma definição
aproximada daquela que consta na Convenção, passando pelos três níveis de diversidade:
diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas, acrescentando algumas
ressalvas, em geral com referência ao nível ecossistêmico, enfatizando que a abrangência
7 É possível interpretar a frase de Bráulio (“A Convenção sobre Diversidade Biológica define biodiversidade”) como uma leitura semelhante à de Alencar (op. cit.), segundo a qual o processo mesmo que levou a essa Convenção teria um papel fundamental na conformação da definição deste conceito, em sua “evolução conceitual”.
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do termo inclui a noção de que processos biológicos no nível do ecossistema estariam aí
incluídos. “A definição da Convenção não fala explicitamente, mas isto inclui também a
questão dos serviços ambientais” (Dias). “É muito importante colocar que os ecossistemas
diferentes, na verdade, onde estas comunidades existem, fazem parte também da
biodiversidade, já que é causa de existir tanta diversidade no mundo tropical. E, é lógico, a
ênfase na interação de polinização, de dispersão e predação, eu acho que é uma questão
muito importante, já que é nisso que reside, de fato, a diferença entre o mundo tropical e o
temperado. [...] estas interações são muito, muito fantásticas mesmo” (Kageyama). Note-se
que este último traz novos elementos para pensarmos a importância do “domínio
neotropical” para esta definição, quando enfatiza a questão da complexidade das interações
biológicas como caractere distintivo entre estes distintos biomas.
Pode-se dizer que a existência da Convenção, como suposto marco do “consenso”
em torno do conceito de biodiversidade, ao positivá-lo, transforma-o em uma definição
acima de tudo jurídica, baseada em definições legitimadas por disciplinas científicas. O
efeito dessa transformação é similar ao que ocorre com as unidades de conservação, na
análise de Barretto Filho (op. cit.: 32-43). Este autor mobiliza a noção de “artefato” para
pensar o caráter de “construto histórico específico instável” destas unidades, em oposição a
uma visão hegemônica entre os formuladores e gestores de políticas para as mesmas, que,
num efeito de naturalização, tendem a vê-las como algo que, a partir do momento de sua
criação, se projetam para além da história. O momento de criação destas unidades seria
análogo ao que Latour e Woolgar (1986 apud Barreto Filho) nomeiam de “ponto de
estabilização”, momento no qual o conjunto de palavras que compõe uma assertiva a
respeito de um dado objeto passa a ser percebido como o próprio objeto, perdendo
quaisquer vínculos com o lugar e o tempo a que se referiam.
De maneira similar, nas falas da maioria dos entrevistados, a biodiversidade perde
os vínculos com seu processo sócio-histórico de construção, que tentamos esboçar no
primeiro capítulo, tornando-se uma definição jurídica, tendo a CDB como seu “ponto de
estabilização”. Supera-se, desta maneira, a distinção entre o termo biodiversidade e aquilo
que se pretende designar por este termo, anulando-se o processo de construção desta
relação.
Ainda no prefácio de seu livro, Takacs antevê este aspecto:
48
“It is difficult to distinguish biodiversity, a socially constructed idea, from biodiversity, some concrete phenomenon. My editors ask that I put biodiverstity and its close relative, nature, in italics whenever I discuss these words without direct reference to the outside world to which these terms relate. But the terms are always informed by that tangible world; and we have no direct access to that world without our conceptual processes. The decision whether to italicize has come down to a coin flip in a few cases. I believe any confusion this creates will encourage you to ponder the flexible boundaries between the real world and our depictions of it” (op.cit. XV; ênfases no original). Novamente recorremos a Bruno Latour. Aproximemo-nos da noção de “referência
circulante”, proposta por este autor (2001) numa discussão com a filosofia da linguagem,
para assim tentar entender a dificuldade descrita acima por Takacs. Em linhas gerais, essa
idéia chama a atenção para a existência de uma cadeia de mediações entre as “palavras” e o
“mundo”8 a que fariam referência, no lugar de pensar a existência de um hiato, um vazio
entre ambos. A referência entre elas circularia por uma ampla cadeia de representações
entre matéria e forma, que configuram o processo – histórico – de construção dos fatos
científicos. Não haveria um processo único de referência entre as palavras e um mundo
externo que supostamente representariam, mas sim, toda uma cadeia de mediações. Latour
procura fundamentar tal formulação ao acompanhar uma expedição pedológica9 que tentava
entender a dinâmica da mudança nas fronteiras entre savana e floresta na região de Boa
Vista, estado de Roraima. Reconstrói, para o caso analisado, a rede de mediações presente
na caracterização da transição floresta-savana, composta pelos procedimentos de coleta de
material, organização, disposição de acordo com convenções da(s) disciplina(s) em questão
e construção de diagramas. Faz isso no intuito de por em questão uma separação que
haveria entre a floresta de Boa Vista, pensada como uma realidade externa, e a sentença
“ floresta de Boa Vista”, expressão contida nos relatórios finais da expedição.
A partir de outras preocupações, imbuído do propósito de entender o “fenômeno do
conhecer”, Humberto Maturana (2001) nos traz novos elementos para pensar não somente a
questão da produção dos conceitos científicos, mas também a forma pela qual o “conhecer”
se dá na vida cotidiana, aproximando-o do conhecimento científico. Para ele – um biólogo
preocupado em discutir primeiramente, mas não apenas, com seus colegas das ciências
8 Entre “linguagem” e “natureza”. 9 Nesta expedição, além de um pedólogo francês – cientista dedicado ao estudo dos solos – estavam presentes uma botânica roraimense, uma geógrafa paulista e o próprio Bruno Latour, que poderíamos aqui chamar de “antropólogo da ciência”.
49
naturais – há a necessidade de se considerar a condição de observador daquele que se
propõe a construir uma “explicação” para um fenômeno. O explicar seria uma experiência
distinta da experiência que o observador se propõe a dar cabo. A explicação constituiria – à
semelhança de argumento presente em uma sociologia fenomenológica – em “uma
reformulação da experiência aceita por um observador” (ibid: 29) e se dá na linguagem.
Este elemento da aceitação como condição para a explicação é um ponto importantíssimo
para a reformulação proposta por ele da idéia de objetividade na ciência. Haveria, dessa
forma, dois caminhos pelos quais os cientistas escutariam e aceitariam explicações, ou seja,
as reformulações da experiência. O primeiro deles seria o caminho da “objetividade sem
parênteses” e o segundo o da “objetividade entre parênteses”. A “objetividade sem
parênteses” consiste na maneira usual pela qual os cientistas pensam sua atividade,
assumindo a existência de uma realidade externa ao observador, que teria um acesso
privilegiado a esta, tomando a experiência do observar como dado. Já a “objetividade entre
parênteses” consistiria na sua tentativa de repensar a forma pela qual se dá o conhecer,
levando em conta a condição do observador enquanto ser vivo e, portanto, necessariamente
levando em conta a sua biologia. Leva-se em conta a biologia porque o observador,
enquanto ser vivo, não distinguiria, na experiência, ilusão e percepção10. O objetivo deste
autor é propor que o leitor mude “seu modo de ver, seu olhar” a respeito de como se dá o
conhecimento, posto que
a realidade é sempre um argumento explicativo. Na objetividade entre parênteses há tantas realidades quantos domínios explicativos, todas legítimas. Elas não são formas diferentes da mesma realidade, não são visões distintas da mesma realidade. Não! Há tantas realidades – todas diferentes mas igualmente legítimas – quantos domínios cognitivos pudermos trazer à mão (op. cit.: 38; ênfase minha). O passeio pelas proposições desses dois autores não se fez à toa. Ao aceitarmos a
simetria proposta entre as distintas formas de conhecer e considerarmos o longo caminho
que há entre uma definição conceitual e aquela dimensão do mundo a que se pretende se
referir, abrimos a possibilidade de colocar em questão a maneira pela qual os conceitos
científicos são pensados. Em relação à biodiversidade, isso nos ajuda a repensar as
10 A incapacidade de distinguir ilusão e percepção na experiência do ver é proposta com base em dois experimentos. O primeiro, uma experiência realizada por outro biólogo e replicada por ele, com relação à regeneração do nervo óptico de salamandras, e da resposta destas à rotação de 180 graus em seus globos oculares. O segundo, desta vez com seres humanos, com relação à percepção de cores. Para maiores detalhes consultar o próprio Maturana (op. cit.: 20-27).
50
formulações que aceitam a definição “estabilizada” na CDB e nos ajuda a compreender o
motivo da resposta de Fernanda Kaingang para a questão da definição de biodiversidade ter
fugido do padrão acima delineado, se referindo à biodiversidade como uma “palavra
alienígena”, que “não parece uma coisa palpável”.
As formulações de Latour e Maturana também nos fornecem elementos para
considerar a seguinte passagem:
as populações rurais espalhadas pelo planeta dependem diretamente da biodiversidade para a sua sobrevivência e percebem isso, porém, de forma diferente dos conservacionistas. Por exemplo, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, enquanto os biólogos estavam preocupados com a biodiversidade, os ribeirinhos estavam preocupados com a comida do dia-a-dia. Assim, talvez a questão não seja se a biodiversidade é ou não importante, mas como os diferentes atores percebem o seu valor (uso ou não-uso) (Inoue 2003: 4-5; ênfase minha). Não obstante a da autora se preocupe em considerar os ribeirinhos como atores na
discussão a respeito da biodiversidade, insiste-se na existência de uma biodiversidade
existente lá fora, cuja definição foi estabelecida por cientistas, positivada inclusive em
tratados internacionais, mas passível de ser “percebida” de maneiras distintas por diversos
atores. Gostaria de complicar um pouco mais esta situação. O ponto para o qual gostaria de
chamar a atenção é que as contribuições destes sempre “outros atores” no debate – aqui
incluo, além dos ribeirinhos amazônidas a que Inoue faz referência direta, outros grupos
comumente classificados como “populações tradicionais” e os povos indígenas – devem ser
interpretadas não como formas diferentes de perceber a biodiversidade, mas sim como
participantes mesmo da construção – permanente – da(s) realidade(s) que chamamos de
biodiversidade. Ainda neste capítulo haverá espaço para uma consideração mais detida
destas vozes dissonantes nos debates sobre biodiversidade.
Por ora, cumpre ressaltar que neste primeiro aspecto examinado – qual seja, a
problemática da definição de biodiversidade – existe pouca variação nas falas dos
entrevistados, de maneira que não se encontram grandes divergências entre vozes
governamentais, não-governamentais e acadêmicas, à exceção da fala da líder indígena
Fernanda Kaingang. Isso é revelador da eficácia do mecanismo de “estabilização” da
biodiversidade enquanto um fato globalmente articulado a partir de sua definição jurídica.
Na próxima sessão, serão considerados os pontos em que os discursos de representantes do
51
governo, de organizações não-governamentais e da academia divergem e também as
construções que os próprios agentes fazem das transições entre estes distintos papéis.
2.2. Vozes governamentais e não
Antes de passarmos à comparação entre as vozes governamentais, as acadêmicas e
as não-governamentais que foram investigadas, será realizada uma breve apresentação dos
setores do Ministério do Meio Ambiente em que se inserem os agentes governamentais
entrevistados. Este Ministério apresenta atualmente cinco secretarias em sua estrutura
regimental: Secretaria de Coordenação da Amazônia, Secretaria de Biodiversidade e
Florestas, Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável, Secretaria de
Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos e Secretaria de Recursos Hídricos11. No
interior da Secretaria de Biodiversidade e Florestas encontramos uma estrutura institucional
que, em certa medida, foi construída ao longo do processo que levaria à assinatura da CDB,
como parte dos compromissos que os Estados membros assumiram12. Não cabe aqui
proceder a uma reconstrução histórica da institucionalização da biodiversidade na estrutura
burocrática brasileira, empreendimento em certa medida já realizado por Albagli (ibid: 159-
198). Faremos um breve comentário a respeito da estrutura em que alguns de nossos
entrevistados se inserem.
A referida Secretaria de Biodiversidade e Florestas tem os seguintes três Programas
como base de sua política: Programa Nacional de Áreas Protegidas, Programa Nacional da
Diversidade Biológica e Programa Nacional de Florestas. O primeiro deles se insere na
Diretoria de Áreas Protegidas (DAP)13 e tem por atribuição maior a implementação e
gestão das Unidades de Conservação no Brasil, que configuram a estratégia de conservação
in situ da biodiversidade neste país. O segundo Programa encontra-se na Diretoria de 11 Ver organograma deste Ministério em anexo que, além da divisão em secretarias, apresenta sua estrutura completa, seus órgãos colegiados e autarquias. 12 O Primeiro Relatório Nacional para a CDB (Brasil 1998) é um compêndio das ações promovidas pelo Governo Brasileiro no sentido de adequar sua estrutura institucional de maneira a cumprir os compromissos assumidos na Convenção. 13 “Do ponto de vista operacional, as atribuições da Diretoria do Programa Nacional de Áreas Protegidas - DAP consistem em promover a implantação, consolidação e gestão de áreas protegidas por meio da implementação e coordenação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC” (texto extraído do portal: http://www.mma.gov.br/port/sbf/dap/index.cfm, em 24 de janeiro de 2005).
52
Conservação da Biodiversidade (DCBio)14, que concentra uma agenda ampla relacionada à
biodiversidade. A biodiversidade, no entanto, não é alvo de preocupações governamentais
somente no âmbito desta Secretaria, nem mesmo deste Ministério. Optou-se, no decurso da
pesquisa, por priorizar o diálogo com agentes inseridos nestes órgãos, sem ignorar a
presença de programas e órgãos dedicados à biodiversidade, por exemplo, nos Ministérios
da Ciência e Tecnologia e das Relações Exteriores. Sendo assim, dos nove entrevistados,
cinco se encontram atualmente no quadro do MMA, sendo três deles vinculados à
DCBio/SBF. Os outros dois entrevistados do MMA são o diretor do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético (CGEN)15 e a então diretora do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(CONAMA)16. A estas vozes governamentais vêm se juntar, na lista de entrevistados: uma
representante de organização indígena dedicada a temas correlatos à biodiversidade, uma
representante de uma ONG com atuação na área e dois atores sociais que se encontram
vinculados tanto a ONGs conservacionistas quanto a instituições acadêmicas.
Um primeiro aspecto que gostaria de ressaltar é a existência de divergências
discursivas de acordo com o lugar de fala dos entrevistados. Algumas temáticas são
exemplares disto, como a reconstrução que os mesmos fizeram, nas entrevistas, da Sétima
Conferência das Partes Signatárias da CDB (COP-7), evento no qual a maioria deles havia
participado. A COP-7, ocorrida entre 8 e 20 de fevereiro de 2004, em Kuala Lumpur, na
Malásia, foi a sétima reunião dos países signatários da CDB. Essas Conferências são
14 “[a DCBio] tem como objetivos a formulação de políticas e normas para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, a disseminação de informações sobre biodiversidade, o estabelecimento de um sistema de acesso a recursos genéticos e, entre outros, o estímulo, nos setores público e privado, à conservação e utilização sustentável da biodiversidade” (texto extraído do portal: http://www.mma.gov.br/port/sbf/, em 24 de janeiro de 2005). 15 Órgão colegiado vinculado à SBF, criado por força da Medida Provisória MP nº 2.186-16 de 2001, constituiu-se como órgão de deliberação a respeito da temática do acesso aos recursos genéticos e da repartição de benefícios advindos deste acesso. Foi também locus de discussões para construção do Projeto de Lei de Acesso aos Recursos Genéticos, atualmente sob análise do Gabinete Civil da Presidência da República, onde sofre pressões de forças políticas contrárias à redação construída no âmbito do CGEN. A polêmica em torno deste Projeto de Lei vem ocasionando, segundo notícia veiculada no site do Instituto Socioambiental, movimentação política de grupos que consideram a versão construída no CGEN como demasiadamente restritiva ao acesso. Esta movimentação vem no sentido do esvaziamento deste fórum como locus legitimo para decisões acerca do acesso aos recursos genéticos e a transferência desta responsabilidade para o âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia (fonte: Notícias do Instituto Socioambiental – ISA http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1881). 16 O CONAMA é um órgão colegiado do Ministério do Meio Ambiente de caráter “consultivo e deliberativo”, criado pela Lei 6.938/81, juntamente com a Política Nacional do Meio Ambiente. A entrevistada Muriel Saragoussi, que à época da entrevista se encontrava à frente deste Conselho, atualmente é Secretária de Coordenação da Amazônia do mesmo ministério.
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grandes eventos, com uma pauta extensa posta em negociação. Têm como principal
objetivo fazer avançar o processo de implementação da Convenção. Em sua sétima edição,
tomou-se a decisão de que a próxima reunião, no ano de 2006, terá o Brasil como sede. É
na avaliação da importância desta decisão que encontramos uma nítida divergência de
discursos, explicada pela posição dos agentes. Os representantes governamentais tenderam
a analisar esta decisão como algo muito relevante para o país:
Bráulio Dias: Acho importante. [...] o Brasil é reconhecido internacionalmente como país que tem a maior biodiversidade. Tem diversidade cultural associada a esta biodiversidade. Tem experiências importantes aqui, geralmente de caráter piloto, localizado, sobre conservação, sobre uso sustentável, sobre repartição de benefícios. No entanto nenhuma das reuniões sobre biodiversidade aconteceu no Brasil [...] E o maior ganho é a possibilidade do Brasil de mostrar pro mundo as experiências que nós estamos tendo aqui no Brasil [...] É uma oportunidade do país também dar uma ênfase política, um peso político maior pra certas negociações, e influenciar nestas negociações internacionais. Muriel Saragoussi: Eu acho que vai ser pro Brasil ou pra biodiversidade aquilo que a Eco 92 foi sobre a questão ambiental. Primeiro porque vai dar a oportunidade de a gente discutir biodiversidade com a população brasileira de um modo muito mais aprofundado do que hoje se faz. [...] E o fato de poder colocar na mídia, ajuda a colocar nas escolas, ajuda aos professores de ciência a colocar isso no cotidiano das crianças, vai gerar 300 mil documentários [...] E acho que do ponto de vista governamental, a gente no mínimo pode fazer bonito na fotografia vai acabar cumprindo algumas coisas que a gente precisaria cumprir mais aqui no Brasil, então nos dá o poder de estar negociando dentro do governo alguns cumprimentos de metas que pra gente é importante. E também gostaria de deixar claro que de certa forma, por mais críticos que a gente seja, porque a gente gostaria de ter muito mais coisa cumprida, o Brasil até que não está mau na figura. Paulo Kageyama: Não tem nenhuma dúvida de que é super importante. Primeiro porque o Brasil é o país de maior biodiversidade do mundo [...] Enfim, temos muitas experiências importantes pra mostrar, e o contingente de pesquisadores da área muito grande. Nosso conjunto acadêmico nesta área é muito, muito grande. Eu tenho certeza de que a participação brasileira vai ser muito, muito grande. Rubens Nodari: Nós somos um dos países que mais avançamos na implementação das decisões das conferências das partes da CDB [...] Nós estamos num momento em que queremos valorizar exatamente a biodiversidade, o uso sustentável e a repartição justa. Nós somos um dos países que mais querem a repartição justa. Então, trazer a COP pra cá é dar oportunidade pra sociedade brasileira discutir mais esse tema. São, pois, três os principais aspectos levantados por eles para justificar a
importância da decisão de realizar a COP-8 no Brasil, no ano de 2006. Primeiramente, a
existência neste país de experiências inovadoras de conservação, uso sustentável e
repartição de benefícios da biodiversidade. A realização desta COP seria uma maneira de
publicizá-las internacionalmente. Em segundo lugar, a possibilidade de, em sendo realizada
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no país, que determinadas negociações sejam conduzidas de acordo com o interesse do
Governo Brasileiro. Por último, a possibilidade de dar visibilidade nacional ao tema da
biodiversidade, dada a atenção que um evento internacional deste porte atrairia por parte da
imprensa.
No entanto, basta analisarmos as respostas de agentes situados fora do aparato
governamental para encontrarmos um outro padrão de respostas, que revela, inclusive, uma
opinião a respeito da própria eficácia destes instrumentos regulatórios de caráter
internacional, como a CDB. Vejamos as respostas de dois membros de ONGs, que, além
disto, também se vinculam a instituições acadêmicas.
Cláudio Pádua: É importante, mas eu não acho que seja tão importante assim não. [a COP] é um processo governamental, dos diplomatas, e tal. Trazer isso pro Brasil é bom porque certamente vai gerar interesse em alguns estudantes brasileiros que vão ter chance de estar um pouco mais próximos deste processo, vai ter chance de trazer as pessoas encarregadas deste processo pra ver a biodiversidade brasileira, mas não vejo que altere em grande... Bom vai trazer algumas pessoas pra gastar dinheiro no Brasil, o que é bom, dólar, em termos de turismo. Não vejo uma grande vantagem pro nosso país, nesse sentido. Tem vantagens, mas não grandes. O poder de pressão não está onde você está. O poder de pressão está na equipe que você tá levando. Então isso é que é o grande segredo. [...] ser aqui ou não ser aqui é bom, mas não é fundamental. Gustavo Fonseca: Eu acho que pode ter uma importância política momentânea no Brasil, mas eu acho que o local onde essas reuniões são feitas não tem muita importância para o que vai ser decidido, porque são trabalhos que ocorrem muito previamente a essas próprias Conferências das Partes, e o que acontece lá são só ajustes pequenos. Então, é um momento importante pro país fazer uma auto-análise – e eu acho que no caso do Brasil a gente tá precisando fazer uma auto-análise, esse governo precisa resolver o que vai fazer na área ambiental – e é uma desculpa que você tem pra chamar a atenção da mídia, e a mídia, por sua vez, tende por sua vez a tentar contextualizar as discussões no âmbito do Brasil e do mundo. Entã, tem essa oportunidade, mas ela é transitória e não é necessariamente determinante do que vai ser discutido. Ambos parecem concordar – ao contrário daqueles entrevistados que se encontram
atualmente no governo – que o local de realização destas reuniões teria pouco a influenciar
nas decisões que efetivamente são tomadas, justificando que se trata de um processo
negociador de longo prazo, mas que haveria benefícios secundários e momentâneos para o
país, como a já mencionada atenção da mídia, ou até mesmo vantagens para o turismo
nacional.
A discussão empreendida por Inoue (op.cit.), ampliando a noção de um “regime
internacional de biodiversidade” para a de um “regime global de biodiversidade” pode
elucidar determinados aspectos da comparação feita acima. A autora faz isso a partir de
55
uma análise detalhada de uma experiência local de conservação e uso sustentável da
biodiversidade, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Sugere que as
percepções existentes de um regime de biodiversidade restringem sua abrangência aos
marcos institucionais intergovernamentais, consolidados pela Convenção sobre Diversidade
Biológica, e negligenciam um importante aspecto, segundo ela, para a existência de tal
regime, qual seja, a existência iniciativas que concretizem, na ponta, pressupostos desta
Convenção. A autora argumenta que mesmo não sendo a experiência de Mamirauá uma
resposta à assinatura da Convenção, ela se insere numa gama de iniciativas exemplares que,
embora de acordo com os pressupostos da CDB, resultariam de um quadro mais amplo de
iniciativas do que ela nomeia “comunidade epistêmica17 da Biologia da Conservação”. É a
ação desta comunidade epistêmica que proporciona a existência destas iniciativas, mesmo
não agindo como uma resposta direta à CDB, mas inserida num campo de pressupostos
comuns.
A ação conservacionista dos dois últimos entrevistados citados se dá paralelamente
na academia e em duas organizações não-governamentais um tanto distintas. Enquanto
Cláudio Pádua encontra-se aposentado das funções de professor do Departamento de
Engenharia Florestal da Universidade de Brasília e é atualmente diretor científico do
Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) – uma organização com atuação em nível
local/regional como veremos abaixo –, Gustavo Fonseca é professor titular do
Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Minas Gerais e é vice-presidente da
Conservation International, uma organização com atuação em distintos países do mundo.
No entanto, ambos – sobretudo Pádua – podem ser considerados membros ideais-típicos da
“comunidade epistêmica da Biologia da Conservação” de que nos fala Inoue, na medida em
que não atuam diretamente nas negociações do processo de implementação da CDB – de
que as COPs são os principais loci –, mas têm participação importante em ações
conservacionistas. A ação de Pádua no IPÊ se dá principalmente, mas não somente, a nível
local/regional, trabalhando com um modelo desenvolvido na experiência este instituto.
Cláudio Pádua: Tem sempre uma ou mais espécies ameaçadas no centro do modelo, depois tem educação ambiental, extensionismo – um extensionismo conservacionista e práticas de
17 “Comunidade Epistêmica é uma rede de profissionais com reconhecida especialização e competência num domínio particular e com uma afirmação de autoridade sobre conhecimento politicamente (policy) relevante naquele domínio ou área.” (Inoue 2003: 83)
56
desenvolvimento sustentável para proteção do habitat. Depois tem restauração da paisagem, e influencia políticas públicas. Portanto, a posição destes dois atores neste “regime global de biodiversidade” pode
ser um outro fator para explicar a divergência discursiva encontrada. Na medida em que
não estão inseridos intensamente nas negociações da implementação da CDB, tendem a
entender a realização das COPs como algo secundário, mas com alguma relevância.
Importante notar a ênfase dada pelos próprios entrevistados que atuam no governo,
justamente, às “experiências exitosas”, como aquelas em que atua Pádua, por exemplo,
como credencial para a realização da COP no Brasil em 2006 – o que reforçaria o
argumento de Inoue quanto à necessidade de se pensar o regime global de biodiversidade
para além dos marcos institucionais construídos em torno da CDB.
Esta breve comparação é reveladora da maneira pela qual as posições que ocupam
influenciam as construções discursivas dos agentes. No caso dos representantes do governo
interpelados, emerge uma dada governamentalidade, uma mentalidade governamental, no
sentido em que parecem, por vezes, falar em nome do Ministério que representam, mas
também deixam transparecer, em determinados momentos, visões sobre o próprio lugar de
fala. A seguinte passagem da entrevista com Muriel Saragoussi – que integra o aparato
governamental há pouco tempo, depois de experiências profissionais: como pesquisadora
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e da FIOCRUZ e no “mundo das
ONGs”, na Fundação Vitória Amazônica (FVA) – é exemplar deste aspecto, além de já
nos introduzir ao tema que iremos abordar em seguida, com relação à constante transição
de posições atualizada pelos entrevistados, e de sua visão a respeito destas transições:
Muriel Saragoussi: Quando a gente trabalha com pesquisa aplicada, a gente tem aquela preocupação – que é um dos motivos pelos quais eu acabei saindo da área acadêmica – é essa preocupação em que aquilo que eu descubro e conheço tenha efetivamente implicações na vida das pessoas. E essa angústia de ver a distância entre a ciência feita nas instituições e a vida das pessoas é que acabou me tirando do meio acadêmico. E quando a gente está numa ONG, a nossa obrigação é não só ter uma aplicação prática daquilo que a gente faz, e uma rigorosa prestação de contas – seja financeira seja técnica – pra sociedade e para aqueles que financiam ou dependem do nosso trabalho, a gente na área de políticas públicas acaba tendo uma enorme liberdade de proposta. [...] Quando a gente tá no serviço público eu acho que a gente perde um grau de liberdade. Porque, a gente tem que trabalhar em dois níveis. Um nível que é o nível do possível, que inclui limitações orçamentárias, que inclui limitações de pessoal, inclui limitações políticas. E no outro nível a gente tem que trabalhar dentro do próprio governo, pra fazer com que as coisas avancem.
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2.2.1. As trajetórias
Como já indicamos acima, foi possível verificar, a partir de uma análise prévia da
trajetória dos entrevistados – seja com base em seus currículos disponíveis na base Lattes
do CNPQ18, ou mesmo a partir de buscas realizadas na rede ou informações adquiridas por
outras vias – que a maioria deles transitou ou transita por instituições acadêmicas,
organizações não-governamentais e/ou governamentais. Julguei tratar-se de um dado
significativo para pensarmos as configurações do ambientalismo no Brasil19, de tal modo
que me fez problematizar a construção que havia delineado – quando da elaboração do
projeto de pesquisa – de um possível “campo da biodiversidade” no Brasil, utilizando o
conceito proposto por Bourdieu20. Foi justamente a porosidade entre as distintas
“posições”, apreendida a partir das falas dos entrevistados, que nos fez repensar esta
utilização do conceito bourdieusiano. Vejamos as próprias formulações dos entrevistados a
respeito da transição verificada entre distintas posições.
EduardoD: Em um texto publicado na coletânea Rio+10 Brasil: uma década de mudança, publicada pelo ISER e pelo MMA, o senhor afirma: “Minha experiência na área de biodiversidade é obviamente relacionada à pesquisa científica, ensinando e treinando profissionais nesta área”, em tradução livre do inglês. O senhor poderia qualificar esta afirmação? Bráulio Dias: Esta é minha formação. Minha formação primeira foi como pesquisador. Sou pesquisador do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e professor lá no IBGE [...] A outra experiência como professor foi no Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília. [...] Esta seria a minha experiência prévia antes de trabalhar no IBAMA e para o Ministério do Meio Ambiente. Obviamente a partir do momento em que eu passei a trabalhar para o IBAMA e para o Ministério eu adquiri outra experiência, que é a experiência com o poder de decisões na área de políticas públicas, que é outra experiência. EduardoD: Você poderia falar um pouco mais sobre essa transição entre essas duas experiências? BráulioD: Sim. São duas experiências um pouco distintas. Eu sempre tenho comentado que existe um hiato muito grande entre governo e academia. Nesta passagem podemos apreender que Bráulio Dias, Gerente de Conservação da
Biodiversidade (GCBio/DCBio/SBF/MMA), qualifica como duas “experiência distintas” a
de “pesquisador”, que constituiria a sua “formação” básica (“primeira”), e a experiência na
“área de políticas públicas”. No entanto, no trecho que selecionei de um texto seu –
18 www.lattes.cnpq.br 19 Embora não seja possível afirmar que se trate de uma característica particular do ambientalismo no Brasil. 20 Ver discussão na introdução do trabalho a respeito do uso deste conceito.
58
construído em um contexto completamente distinto daquele da entrevista, em uma
coletânea de artigos com o objetivo de refletir sobre o desenvolvimento da agenda
ambiental nos dez anos que haviam se passado após a Rio-92 – e que apresentei para que
ele comentasse, sua experiência na área de biodiversidade era apresentada como
“obviamente relacionada à pesquisa científica”. Na situação de entrevista, pois, ele se viu
impelido a ampliar o recorte que havia feito de sua “experiência na área de biodiversidade”,
tratando, no entanto, o elemento novo – a “área de políticas públicas” – como uma
“experiência distinta” da científica. Bráulio, que se insere no aparato governamental desde
a época da negociação da CDB, constrói sua atuação na conservação da biodiversidade
acima de tudo como “científica”, mas, quando precisa incorporar a dimensão política de sua
tarefa, o faz como uma “experiência distinta”.
Vejamos o que Paulo Kageyama – Diretor de Conservação da Diversidade
Biológica (DCBio/SBF/MMA) –, que atua no governo há um tempo muito menor do que
Bráulio Dias, tem a nos dizer sobre o assunto.
EduardoD: Como se deu a sua recente transição para um cargo na administração pública federal? Paulo Kageyama: Na verdade foi um chamado, digamos, do Secretário [de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Capobianco] e da Ministra [Marina Silva], com quem eu tive bastante contato, já que, muito embora eu tenha tido uma carreira acadêmica, eu sempre me interessei muito pela questão política da biodiversidade, tanto no debate acadêmico, como também no ativismo de fato em defesa do meio ambiente, atuanto em ONGs. Eu fui presidente de duas ONGs. Eu acho que não consta no meu currículo, mas eu fui presidente de duas ONGs meio ambientalistas, uma era bem ambientalista mesmo... EduardoD: Quais eram as duas ONGS? PauloK: A primeira é a SODEMAP, Sociedade de Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba, né? Eu fui presidente. E a outra é uma ONG ambientalista, mas também científica, que é uma ONG também de Piracicaba, chamada Centro de Pesquisas e Estudos do Vale do Piracicaba, CEP-Vale é a sigla. Então quando eu fui chamado, convidado pra fazer parte do governo, é lógico, como apoiador deste governo, e tendo trabalhado com a Ministra Marina Silva no Acre nas políticas lá do extrativismo, então tudo isso ajudou muito a que eu aceitasse, de fato, essa incumbência, né? Então na verdade foi um desafio pra mim eu ter sido convidado pra este grupo. EduardoD:E o senhor continua atuando na área acadêmica, o senhor continua orientando teses? PauloK: Eu tenho ainda uma meia dúzia de orientandos que ainda não terminaram suas teses, que eu continuo ainda dando uma orientação à distância, porém eu tenho reduzido, quer dizer, não tenho aceito mais orientandos neste período. É lógico que, após o período de governo eu deva voltar a minha atividade acadêmica, já que eu acho que é a minha verdadeira vocação.
59
Paulo Kageyama formula, assim como Bráulio Dias, uma concepção de que a
atividade científica e a ação no governo constituiriam atividades distintas. Chega a indicá-
las como atividades separadas temporalmente quando fala de sua recusa em aceitar novos
orientandos, não obstante ter dito sempre ter se interessado muito pela política da
biodiversidade, se referindo ao “ativismo de fato” em ONGs. Ao final da entrevista, no
entanto, surge uma formulação reveladora de aspectos importantes, que nos ajudam a
entender o uso que acima fez de palavras como “chamado”, “incumbência” e “desafio” para
pensar sua ação no governo, em oposição à atividade acadêmica, sua “verdadeira vocação”.
EduardoD: O senhor classificaria a atividade de conservar a biodiversidade como um ofício político ou científico? PauloK: Pois é. Eu na minha situação eu acho que meio a meio. Eu tenho usado muito na minha posição de político, digamos, da biodiversidade, eu tenho usado muito o meu conhecimento científico da biodiversidade. Inclusive influenciado muito o governo como um, o ministério como um todo. Eu tenho contribuído com outras secretarias, outras diretorias, com minhas posições em função do meu conhecimento cientifico. Eu sou especialista em biodiversidade, em genética e biodiversidade e sou especialista também em restauração da biodiversidade, em recuperação de áreas degradadas. Então nestes dois temas as pessoas têm me procurado também como consultor, digamos, pra outras diretorias outras secretarias. Então eu sinto que tenho atuado mais ou menos nos dois sentidos. Tenho me sentido como fazedor, digamos, de política pública e também como consultor na área científica e técnica, né? Estas construções que os atores fazem de suas passagens pelas distintas “posições”
nos revelam uma insistência no que Latour denomina de “constituição moderna” (1994), ou
seja, na construção – que, segundo ele, funda a modernidade – de “natureza” e “sociedade”
enquanto domínios distintos, o que pressupõe uma divisão no trabalho de falar a respeito de
cada um deles. Cabe à ciência a legitimidade de se falar sobre a primeira. É o mecanismo
que ele chama de “purificação”, que retira a dimensão de humanidade dos “híbridos” ou
“quase-objetos” que proliferam em nossas sociedades, tornando-os objeto legítimo de um
grupo que a eles deteria o acesso privilegiado.
Isso nos ajuda a entender porque, não obstante os próprios atores construam suas
trajetórias como múltiplas, constituídas de várias experiências, a produção de discursos
sobre a biodiversidade continua requerendo que se mantenha a voz científica como
fundamento – inclusive como constituinte de sua formação. Exploraremos o que se
pretende dizer com este ponto adiante, após trazermos para a análise vozes dissonantes.
60
2.3. Vozes Dissonantes
“No começo, as palavras da ecologia não existiam. Hoje, revelaram-se e, por isso, as palavras yanomami também se revelaram [...] vocês me disseram muitas vezes que eu falava com sabedoria, então eu também comecei a dizer as minhas palavras. Foi a minha vez
de despertar” Davi Kopenáwa, citado por Albert (1995)
Como já dito na primeira seção deste capítulo – quando pensávamos a questão da
definição de biodiversidade – a resposta que mais se afastou do padrão verificado nas dos
demais entrevistados foi a de Fernanda Kaingang. Este fato inspirou esta seção, com o
objetivo de discutir algumas questões a respeito da inserção indígena – e, de uma maneira
ampla, das chamadas “populações tradicionais” – nos debates sobre biodiversidade. O uso
da palavra “dissonante” para qualificar estas vozes no debate vem no sentido de
problematizam a harmonia existente no, por assim dizer, “coro” da biodiversidade21.
Essa entrevistada foi a primeira liderança indígena que fez parte de uma delegação
brasileira em uma Conferência das Partes (COP) signatárias da CDB, em sua última edição,
a COP-7, realizada em fevereiro de 2004, na Malásia. Neste evento, estavam presentes
lideranças indígenas de outros países, envolvidos em discussões principalmente a respeito
do acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e da temática da
repartição dos benefícios advindos do acesso aos recursos genéticos. Sua participação neste
evento se vincula ao fato de, na condição de diretora executiva de uma organização
indígena dedicada a questões relativas aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas,
participou de reuniões do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) (ver
nota16). Trata-se do Instituto Brasileiro para a Propriedade Intelectual Indígena
(INBRAPI), fundado a partir de do Encontro de Pajés ocorrido no mês de dezembro de
21 O verbete “dissonância” é assim definido pelo Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa: “1 reunião de sons que causam uma impressão desagradável ao ouvido 2 p. ext. falta de harmonia, discordância (entre duas ou mais coisas) {cores e formas em d. não acalmam} 3 MÚS relação entre notas próximas que gera tensão 4. MÚS combinação simultânea de notas convencionalmente aceitas como em estado de irresolução harmônica 4.1 na música tonal, acorde (ou intervalo) sem resolução harmônica ou consonância, esp. os de segundas ou sétimas e os que contêm tais intervalos, requerendo resolução noutro acorde 5 ger.infrm. desafinação + d. cognitiva PSIC ansiedade resultante de atitudes, convicções simultâneas, incompatíveis entre si, como, p.ex., a que é sentida por quem gosta de uma pessoa, mas que desaprova atrozmente algum de seus hábitos. + ETIM lat. dissonatia,ae'dissonância, diferença'; ver son(o)-;f.hist.. 1536 dissonançia + SIN/VAR absonância + ANT assonância, consonância”.
61
2001, em São Luís/MA, que marcou uma aproximação dos povos indígenas ao tema da
propriedade intelectual e suas relações com seus conhecimentos tradicionais.
Fernanda, apesar de representar a “tradição” de povos indígenas, insere-se no
debate mediada por sua formação em uma disciplina: o Direito, que – não obstante esteja
do lado dos “humanos” na “constituição moderna” (Latour 1994) – faz parte da instituição
universitária, que produz e legitima a produção de saberes “técnicos”. Seria um exemplo da
figura do “intermediário” (broker), proposta por Wolf – tendo como exemplo a sociedade
mexicana – para pensar a condição daqueles atores sociais que transitam pelas “redes”
constituídas pelas “comunidades” e “instituições nacionais” (2003). Em sua inserção em
debates regionais com os “parentes”22, possivelmente a percepção de sua figura deve ser
mediada pela experiência acadêmica que possui.
Ao ser interpelada sobre a definição deste conceito, como vimos, referiu-se ao
mesmo como uma “palavra alienígena”, que “não parece uma coisa palpável”, o que é
extremamente revelador da condição dos povos indígenas nos debates acerca de temas
ambientais. Albert (1995) realiza um trabalho interessante em que discute a apreensão de
noções do ambientalismo, como o “meio ambiente”, por exemplo, realizada – nos termos
de sua cosmologia – pelo líder indígena Yanomami que fornece a epígrafe desta seção. O
autor nos fala que o discurso ambientalista passa a ser um “meio de simbolização
intercultural adequado à expressão e à validação de uma visão de mundo e de um projeto
político Yanomami” (ibid: 22). Assim, longe da leitura de que seriam “selvagens
ecologicamente nobres”, pode-se pensar a identificação pura e simples entre estes povos e
práticas ambientalistas como um “mal entendido interétnico” (ibid). É o que nos diz a
entrevistada:
FernandaK: As pessoas tem uma tendência, também equivocada, de pensar que nós somos, ai, guardiões da floresta, então que tudo é intocável. Se passou de uma fase de exploração industrial desenfreada pra uma fase de um conservadorismo excessivo [...]a biodiversidade não tem que estar numa redoma, que era uma coisa que se pensava, inclusive no Ministério do Meio Ambiente há pouco tempo. Bichos de um lado, índios do outro. Não. As florestas, as reservas extrativistas, as áreas indígenas podem provar, na maior parte dos seus casos, que a interação entre homem e meio ambiente é, inclusive, necessária pra renovação de algumas espécies. Então esta idéia também é superada: de que nós somos guardiões da floresta, de que nós somos preservadores. Nós preservamos por uma questão de necessidade, por uma questão de sobrevivência, de ter consciência de que você precisa daquilo.
22 Categoria utilizada como tratamento entre indígenas de distintas etnias.
62
Desta forma, a aproximação entre povos indígenas e ambientalismo é tensa e
mediada por uma história de conflitos entre os objetivos de seus movimentos, que sofrem
uma aproximação temática principalmente a partir do contexto de preparação para a Rio-
9223. Nesta arena, o movimento e as lideranças indígenas tentam se localizar, entender,
digerir e domesticar tanto as noções que os demais grupos manejam, quanto as projeções e
interpretações que se fazem das mesmas aos povos indígenas. É neste sentido que os povos
indígenas, por meio de algumas lideranças, vêm enfretando o desafio de participar do
debate acerca do que conta como biodiversidade. Exemplar disto é a fala de Fernanda
Kaingang ao formular algo próximo de uma idéia de mega-sócio-biodiversidade, em
referência à importância de se considerar a diversidade étnica no trato da biodiversidade.
FernandaK: Nós enriquecemos esta diversidade biológica, porque nós fazemos parte dela [...] A imensa biodiversidade brasileira se deve à nossa imensa sócio-diversidade e as pessoas não se percebem disso [...] O país é megabiodiverso porque nós somos mega-sociodiversos [...] A nossa participação em fóruns como esses [as COPs] é reduzidíssima, enquanto ela, na verdade, seria fundamental. Ela teria que ser ampliada, teria que ser, a nossa posição teria que pesar muito lá fora. E a posição do governo brasileiro pesa muito na COP. Então pela primeira vez a delegação brasileira levou pra uma COP “representantes”, entre aspas – porque a palavra representante daria um problema pros povos indígenas – dos principais interessados na discussão, e os povos indígenas estrangeiros, eles diziam assim: “nós não somos interessados, nós somos atores principais desta discussão; vocês não tão fazendo favor nenhum pra gente garantindo a nossa participação aqui. Sem a nossa participação vocês vão discutir como biodiversidade, se esta biodiversidade está nas nossas terras?” [...] Por toda a vivência e as convicções da atual ministra [a participação na COP] foi muito favorável, embora tivesse gente ali, como o Ministério da Ciência e Tecnologia, que era frontalmente contra as posições indígenas. Eu fui com certa autonomia. Eu era da delegação e, por regras do Itamaraty você só fala se o chefe da delegação permitir, e ele tem que saber o que você vai falar [...] Como a CDB é uma instância de decisão governamental, têm que haver um consenso mínimo de governo pra você ir [...] Foram dadas instruções muito claras para que a posição dos povos indígenas, qualquer que ela fosse, deveria ser respeitada, no mínimo, senão acatada ou apoiada explicitamente pela delegação brasileira nos fóruns. E efetivamente aconteceu. Neste trecho selecionado vem à tona um tema crucial: a participação indígena e
sua representatividade, pensadas em uma esfera internacional. Em outro momento da
entrevista, quando comentava a realização de uma oficina pelos povos indígenas para
fornecer as diretrizes de um Programa de conservação e uso sustentável da biodiversidade
em suas terras, a ser implementado no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, com
23 Para uma perspectiva crítica a respeito da relação entre conservação da biodiversidade e as lutas políticas indígenas ver Gray (1991). Uma crítica à CDB pode ser encontrada em Shiva (1993).
63
recursos do Global Environmental Facility (GEF)24, Fernanda revela sua visão sobre a
participação dos povos indígenas nestas questões. Também nos fala como é pensada a ação
do INBRAPI tentando levar estas discussões a um maior número de indígenas.
FernandaK: A gente sustentou lá – e foi até elaborado um documento depois inclusive numa reunião com várias organizações não-governamentais e o próprio Ministério do Meio Ambiente, com quem a gente tem conversado, tem interagido durante estas discussões – a necessidade de aumento de participação dos povos indígenas, dos diferentes povos indígenas do país neste processo. Os povos indígenas deveriam ser estruturados por regiões [...] Você tem que ter uma participação minimamente representativa destas regiões, nestas discussões. Que é uma coisa que não tem ocorrido. Realmente os povos indígenas, quando você chega aqui e fala: “bom gente, vamos discutir biodiversidade”. Fica todo mundo olhando pra você e dizendo “O que é exatamente isto, parente?”. Então, é uma discussão que vai levar tempo. As pessoas dizem: “Ah, mas isso vai levar muito tempo”. É verdade. Mas nenhuma discussão que se propõe a ser feita com povos indígenas, num país em que você tem 700 mil pessoas que pertencem a 230 povos e falam 180 línguas, vai ser fácil, ou vai ser simples. [...] um de nossos objetivos [do INBRAPI] é levar estas discussões que ocorrem nacionalmente, que ocorrem internacionalmente, em linguagem acessível para as aldeias e discutir com as regiões, a partir da realidade deles, como é que eles vêem, por exemplo, como é que o centro-oeste pensa um projeto de redução de perda de biodiversidade. Como é que eles vêem isso, como é que eles aplicam isso à realidade deles, ao meio ambiente deles, à biodiversidade que eles têm e aos conhecimentos tradicionais que eles têm sobre aquilo, a forma deles de lidar com esta biodiversidade.
O que se percebe por esta fala é uma disposição por parte de lideranças indígenas
em integrar estes debates e levá-los até as distintas “regiões” em que se inserem os povos
indígenas, por perceberem a questão da biodiversidade como dentro de seus interesses
políticos. Isso teria de se dar, no entanto, num lento processo de “digestão” destas novas
idéias que chegam até eles, “aplicando isso à realidades deles”, captando a contribuição que
os diversos povos indígenas poderiam trazer para a construção mesma do que se entende
por biodiversidade. Veremos, no entanto, na próxima seção que a efetivação desta
participação enfrenta outro tipo de dificuldades.
2.4. A política, as ciências
Após o trajeto delineado neste capítulo – que configurou momentos de maior e
menor uniformidade entre os discursos dos distintos agentes entrevistados, revelando a
construção que os mesmos têm de sua transição entre distintas experiências no trabalho
24 Ver lista de eventos em anexo, para maiores detalhes sobre esta oficina.
64
com a área da biodiversidade, trazendo ainda vozes dissonantes que ganham volume no
debate – cumpre aqui ressaltar um vetor que transversaliza todos estes aspectos: as ciências.
Refiro-me a elas enquanto “capital simbólico” – no sentido de Bourdieu –
necessário para a legitimação de discursos nas distintas “posições” das quais se pode tentar
intervir nos debates acerca da biodiversidade. É praticamente um pré-requisito para a
legitimação dos agentes como contribuintes nestes debates a sua formação em alguma
disciplina científica que se relacione à biodiversidade.
Como indicamos no primeiro capítulo, a história da construção deste conceito é
marcada pelo importante papel desempenhado por cientistas, agentes fundamentais na
construção da questão política que o conceito articula, à qual dá unicidade. Os debates
sobre biodiversidade são herdeiros, pois, do entendimento de que seriam “debates de
especialistas”. As tentativas de inserção de “outros atores” guardam as marcas desta relação
de poder desigual entre os saberes. As estruturas que procuram incorporar a participação
indígena, como os órgãos colegiados do Ministério do Meio Ambiente que recentemente
lhes reservaram assento, enfrentam o desafio de construir, junto com estes povos, a
representatividade nesta participação. Como analisa Fernanda Kaingang, o timing da
discussão com os povos indígenas é diferenciado, na medida em que estamos diante de uma
empreitada de disseminação e tradução de novos conceitos.
Mas, então, o que impede a participação efetiva destes atores? O que torna o diálogo
tão difícil? Novamente recorremos a Latour (2004) – sabendo que se torna inevitável a
simplificação do argumento deste autor numa curta resenha que faremos – para tentar
pensar determinados aspectos. Segundo este autor, a “estagnação dos chamados
movimentos verdes” (: 11) deve ser entendida no bojo do repensar a Ecologia Política.
Latour critica as tentativas de reconciliar “natureza” e “política” sem levar em conta que
estes conceitos foram construídos para serem inconciliáveis.
Pretendeu-se, no entusiasmo de uma visão ecumênica, ‘ultrapassar’ a antiga distinção entre humanos e coisas, dos sujeitos de direito e dos objetos de ciência, sem considerar que eles haviam sido aparelhados, delineados, esculpidos, para se tornarem pouco a pouco incompatíveis (ibid: 13) Para se repensar a Ecologia Política, portanto, não bastaria olhar para natureza e
política. Faz-se necessário incluir neste projeto um terceiro aspecto: a produção científica.
As ciências, “sociedades de sábios” – no bojo da já referida “constituição moderna” (Latour
65
1994) – instauram um monopólio no acesso aos “objetos”, as “coisas” que compõem a
natureza.
Foi o que procuramos fazer ao longo deste capítulo ao ressaltar o papel que a
formação científica ganha, nas disputas por legitimidade sobre o domínio da natureza
compreendido pela biodiversidade. Quanto mais distante das ciências, mais dissonante se
torna a voz que ouse ser levantada nesta discussão. É interessante que um entrevistado
tenha formulado a seguinte visão acerca de sua transição entre o fazer acadêmico e a
administração pública:
Eduardo Vélez: a própria Biologia, o objeto de trabalho da Biologia – que em boa parte é, não é apenas, mas em boa parte é o conhecimento da natureza, o funcionamento e a compreensão de que a forma como o Homem utiliza essa natureza vem levando a uma diminuição da qualidade de vida e pode comprometer a própria existência da espécie – acaba fazendo com que, nos coloca, talvez mais do que outras profissões, diante, digamos assim, de uma, nos incita em ter assim uma ação prática, uma ação de transformação, de inserção na realidade. Bom, e também é um componente político particular meu. Eu sempre achei que enquanto cidadão eu tinha que ter uma participação política, né, ter um partido político. Desta forma, aliada a uma disposição individual para a militância política através da
democracia formal, Eduardo Vélez diz que o fato de ter assumido funções na administração
pública se deve à natureza mesma do objeto de sua disciplina. O conhecimento de uma
determinada parcela do real, neste sentido, o incitaria à intervenção. Isto nos faz lembrar a
imagem do “intelectual específico”, proposta por Foucault (1979: 8-14). Em oposição ao
“intelectual universal”, que derivaria da figura do “jurista-notável” – portador de “valores
universais”, da consciência das massas e, portanto, seu representante legítimo – começa a
aparecer na cena política a partir de Darwin, ganhando força a partir da segunda guerra
mundial, a figura do “intelectual específico”, que derivaria da figura do “cientista-perito”,
que emerge na cena política como representantes de um saber específico, detentor,
portanto, da produção de verdades num determinado campo. Essa imagem se aplica às
formulações que alguns de nossos entrevistados constróem de suas trajetórias profissionais.
Trata-se do “intelectual específico” assumindo a responsabilidade, no aparelho estatal, pela
gestão dos objetos nos quais é “especialista”.
Lembremos de que Bráulio Dias nos disse em dado momento que “existe um hiato
muito grande entre governo e academia”. Segundo ele, enquanto a última estaria
interessada em “avançar os limites do conhecimento” no contexto de “pesquisa
66
internacional”, o primeiro teria um “problema de gestão” e teria como prioridade “gerar
soluções” para estes problemas. Tendo em vista que “a maioria das soluções tem que vir da
academia”, mas que a mesma “não está direcionada para atender demandas do governo de
solucionar os problemas”, está criado o problema: a distância entre o “intelectual
específico” responsável por gerar a “maioria das soluções” e a administração pública. É das
ciências que deve vir essas soluções. Cumpre, pois, superar o hiato.
Mensagem similar foi transmitida por Miguel Milano – Presidente da Fundação O
Boticário de Proteção à Natureza – para os cerca de 1500 presentes na plenária de
encerramento do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, em sua maioria
jovens estudantes de ciências biológicas e afins. Milano enfatizou que a conservação no
Brasil deve ter três pilares: o primeiro deles consiste na “filosofia e história” da
conservação; o segundo pilar, responsável por “dar o caminho”, aquele que “tem ensinado”
como operar a conservação é a “ciência e a técnica”; por fim, o que ele chamou de
“ciências sociais”, que tem por finalidade embasar esta ação “num ambiente social”.
Dirigindo-se ao “grande número de jovens na platéia” – fato que entusiasmou quase a
totalidade dos palestrantes – encerrou o encontro dizendo que “é importante ter valores, ter
filosofia, mas devemos nos embasar na ciência”25.
Enquanto a “constituição moderna” estiver em vigor e a natureza constituir uma
“realidade” sobre a qual a produção legítima de conhecimento estiver monopolizada,
dificilmente serão levadas em conta as vozes dissonantes.
Se à pergunta “O que fazer da Ecologia Política?” a resposta é “Ecologia Política!”,
no sentido de que devemos pensar a mesma a partir de sua tríplice constituição (natureza,
política e ciência) (Latour 2004), resposta semelhante terá a questão: o que fazer da
biodiversidade? Bio-diversidade! Leve-se em conta o sujeito do conhecimento como um ser
biológico, logo, incapaz de discernir, na experiência, ilusão de percepção (Maturana op.cit).
25 Outro momento significativo desta plenária foi a aprovação da moção de congratulação a alguns parlamentares pela “defesa do Parque Nacional do Monte Roraima” frente à ameaça da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Isto se deu mesmo tendo o Secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, João Paulo Capobianco – durante conferência no primeiro dia do encontro – mostrado imagens de satélite que mostravam as terras indígenas como ilhas de conservação cercadas pelo desmatamento. A “purificação” do objeto a ser conservado continua na agenda conservacionista ao postular que as “unidades de conservação de proteção integral” (termo presente na lei do SNUC), que são aquelas mais restritivas às atividades humanas, são as que realmente são “efetivas”, nas palavras de Milano.
67
Leve-se em conta a diversidade de saberes que operam na conformação do que se quer
conservar, usar e/ou repartir.
68
Capítulo 3: Biodiversidade, tesouro do Brasil
“É pois evidente, que se a agricultura se fizer com os braços livres dos
pequenos proprietários, ou por jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas estas terras, mormente na vizinhança das grandes povoações,
onde se acha sempre um mercado certo, pronto e proveitoso, e deste modo se conservarão, como herança sagrada para a nossa posteridade, as antigas
matas virgens que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país”
José Bonifácio de Andrada e Silva [1823] apud Pádua (2002: 150)
“Eu venho discutindo nos últimos anos profundamente que o Brasil, no meu modo de ver, está dois ciclos econômicos atrasado. Nós estamos achando
bonito vender soja e produtos agrícolas quando depois disso o mundo civilizado, o mundo evoluído, o mundo desenvolvido já passou por um ciclo
industrial e está vivendo a era dos serviços e do conhecimento. Estamos insistindo com uma coisa, que é vender produtos, recursos naturais que
destroem a biodiversidade quando a gente devia estar, se a gente quer dar um salto de desenvolvimento, a gente devia estar preocupado em vender os
conhecimentos sobre a biodiversidade, não ela, mas os conhecimentos sobre a biodiversidade. Só que tudo isso requer um esforço grande de pesquisa,
que o Brasil não faz” Cláudio Benedito Valladares-Pádua, entrevista pessoal, outubro de 2004
O que pode haver em comum entre personagens tão distintos e apartados
temporalmente como o “patriarca da independência” José Bonifácio, que escreve no século
XIX, e o biólogo da conservação Cláudio Pádua, que me concedeu entrevista em 2004? O
objetivo deste capítulo é iniciar uma discussão – sem a pretensão de esgotá-la – a respeito
de possíveis recorrências existentes entre as maneiras pelas quais, não estes personagens
isolados, mas grupos de pessoas em suas épocas, pensaram a natureza nos trópicos – tal
como atualizada no conceito de biodiversidade – inserida em projetos para a nação, tendo
consciência das enormes diferenças entre seus discursos, que emergem de contextos sociais
distintos e em épocas diferentes.
Pádua (2002: 49) nos fala de um “trabalho específico e seletivo de interpretação” de
idéias científicas emergentes na Europa do final do século XVIII e início do século XIX
realizado de maneira a criticar uma “situação de fato”, qual seja, o “caráter predatório do
modelo econômico introduzido no Brasil pelo colonialismo”. Este esforço sistemático de
crítica ambiental que emerge configura, segundo o autor, um “pensamento político
próprio”, do qual Bonifácio é um dos principais expoentes.
69
Propusemo-nos a pensar, neste trabalho, algo semelhante, mas de escopo mais
reduzido. A idéia era atentar para a “domesticação” (Guyer & Richards 1996: 9) de um
conceito específico e não de correntes teóricas. Pensar a maneira pela qual o conceito de
biodiversidade emerge no ambientalismo brasileiro passa por um esforço de compreender,
num primeiro momento, a configuração dos debates em torno do mesmo. Foi o que
tentamos esboçar no segundo capítulo, após a reconstrução, realizada no primeiro capítulo,
de interpretações acerca do processo de construção/criação deste conceito mundialmente.
Neste terceiro capítulo tentar-se-á, em primeiro lugar, localizar determinadas ênfases que se
encontram nos discursos sobre a biodiversidade.
Além disso, virá à tona outro diálogo com a perspectiva de Pádua, para além da
inspiração de se pensar a maneira pela qual determinadas idéias são “interpretadas” ou
“domesticadas” no contexto brasileiro. Refiro-me a recorrências no processo mesmo de
domesticação destas idéias, em especial a ênfase dada – tanto na construção da crítica
ambiental do início do século XIX, quanto no estabelecimento dos debates acerca da
biodiversidade no Brasil a partir da década de 1980 – à necessidade de se
alterar/racionalizar a relação com a terra e com a produção – como se dizia naquela época –
ou de se conservar, utilizar sustentavelmente e repartir os benefícios da biodiversidade –
como se diz atualmente – nos discursos não hegemônicos que advogam
modernização/desenvolvimento da nação. Passemos a uma breve discussão a respeito da
relação entre natureza e a identidade nacional no Brasil.
3.1. Identidade Nacional e a emergência de um ambientalismo político no Brasil.
Com a finalidade de embasar a reconstrução histórica que empreende a respeito da
emergência do ambientalismo no Brasil – que teria se dado por volta da década de 1960 – e
de imagens contemporâneas sobre a Amazônia, Arnt (1992) discute o processo de
construção da identidade nacional e do papel do ambiente natural – das visões que sobre
este se construíram – para este processo. Propõe que “a natureza forneceu à identidade
nacional consciência de singularidade”. Esse recurso à natureza seria permeado por uma
70
atitude ambivalente1 que se construiu ao longo da história colonial em relação não somente
ao meio natural, mas também em relação aos habitantes originais dos trópicos, variando
entre uma valorização de ambos pela imagem de uma felicidade natural inerente ao modo
de vida de seus habitantes e pela exuberância do meio, e uma imagem negativa, de uma
natureza degenerada pelas condições climáticas tropicais, que teriam efeitos similares sobre
as sociedades que aí viviam (: 36-38).
Mais adiante, Arnt se baseia em Pádua (1987) para dar prosseguimento a sua
reconstrução histórica, argumentando que o recurso à natureza empreendido por um
“naturalismo” que esteve presente ao longo da história das construções de imagens sobre
este país – sobretudo na literatura – configuraria um discurso contraditório: ao mesmo
tempo em que se louvava retoricamente a natureza exuberante presente no país, percebida
como característica distintiva desta região, desenvolvia-se, por outro lado, práticas de
“devastação impiedosa”. Enquanto se idealizava em teoria, destruía-se na prática. Arnt diz
ser “notável que tão poucos pensadores brasileiros, entre tantos que interpretaram o país,
tenham se preocupado, especificamente, com a decantada natureza nacional”, sendo
possível “contar nos dedos as exceções” (ibid: 50). Essa maneira de tematizar o ambiente
natural se expressaria, segundo Arnt, ainda hoje, em visões sobre a Amazônia e nos debates
acerca de sua conservação.
Minha interpretação de Pádua, no entanto, vai em outro sentido, na medida em que
esta postura de “elogio retórico e laudatório do meio natural, indiferente e, por vezes,
conivente com a realidade da sua devastação” (Pádua 1987: 60) é apenas uma entre outras
maneiras de se tematizar o ambiente natural por ele identificadas ao longo da história do
Brasil. No pensamento de autores como José Bonifácio, Joaquim Nabuco e André
Rebouças, por exemplo, emerge uma forte crítica das maneiras – sobretudo na área
produtiva – de se relacionar com o ambiente, via de regra relacionadas a projetos de nação.
Mesmo que se aceite a interpretação de Arnt para o artigo escrito por Pádua em 1987, de
que seriam “poucos pensadores”, “exceções” a uma tendência geral, que teriam de alguma
maneira ido contra esta maneira ambígua de tematizar o ambiente natural tropical,
1 Identificada e reconstruída por Ventura (1991), em sua interessante discussão com a história da literatura no Brasil, com as construções que se empreenderam (em autores como Araripe Júnior e Silvio Romero) de um “estilo tropical” constituinte desta literatura. Nesta obra, o autor mobiliza a História da Ciência, discutindo a importância do meio natural e das populações nativas da América tropical para determinados desenvolvimentos científicos – em autores como Buffon, Du Paw, Humboldt e Lamarck.
71
precisaríamos de muitas mãos para contar os membros da “tradição” (Pádua 2002: 12) de
autores que Pádua identificou, ao longo de uma extensa pesquisa, como partícipes do
empreendimento de crítica ambiental juntamente com os já citados.
Nesse trabalho, como dito anteriormente, Pádua se propõe a reconstruir “ a
existência de uma reflexão profunda e consistente sobre o problema da destruição do
ambiente natural por parte de pensadores que atuaram no país entre 1786 e 1888” (: 10),
configurando um pensamento político minoritário no interior da elite da época. A
interpretação de que este grupo de pensadores conformaria uma “tradição” de pensamento –
mesmo que minoritária e mal sucedida na empreitada de implantar seu projeto político –
não poderia se justificar sem um esforço de compreender um denominador comum entre
eles. O surgimento desta tradição estaria vinculado a uma reforma universitária ocorrida no
final do século XVIII na Universidade de Coimbra, local onde se formou a “geração
ilustrada luso-brasileira” (ibid: 14), grupo que incorporou pressupostos do Iluminismo
europeu. No interior deste grupo, sob a influência do naturalista italiano Domenico
Vandelli, uma minoria viria a incorporar um viés de crítica ambiental em suas análises a
respeito da modernização que se fazia necessária. Por meio deste naturalista, estes jovens
tomariam contato com a primeira referência teórica de relevância para o pensamento
comum do grupo: a economia da natureza de Lineu, que indicava uma noção de
interdependência entre os elementos do mundo natural e é considerada por algumas análises
da História da Biologia como uma das grandes influências para o surgimento da Ecologia,
no final do século XIX. Uma segunda referência teórica central para o surgimento desta
tradição seria a economia fisiocrata, centrada num modelo rural de progresso. Uma terceira
contribuição, de certa maneira marginal e minoritária para este grupo, seria a cultura
romântica. Muito importante no desenvolvimento de uma ética ambiental nos Estados
Unidos, por exemplo, a tradição romântica no Brasil teria o já referido efeito ambíguo de
produzir uma idealização da natureza tropical, ao passo em que compactuava com sua
devastação, tida como inevitável (ibid: 23-26).
A crítica destes autores à destruição do ambiente natural no Brasil esteve baseada –
segundo Pádua – em “motivações políticas”, vinculando-se a projetos para a nação, a
tentativas de colocar a sociedade brasileira em um rumo de progresso, segundo concepções
da época. Nesse sentido, o sistema de produção baseado na escravidão era tido – não por
72
todos os membros desta tradição, tendo em vista que o autor identifica uma vertente não-
abolicionista no período monárquico – como marca do atraso que se pretendia superar e seu
fim visto como a solução para o mau uso que se fazia da terra. Eliminando-se, pois, um
sistema produtivo “arcaico”, “atrasado”, poder-se-ia chegar a um padrão de relacionamento
com a terra em bases “racionais”, “científicas”, o que cessaria a destruição. A ênfase, desta
forma, está na necessidade de se modernizar o país, com base num “cientificismo
progressista”, substituindo práticas atrasadas que vinham destruindo os recursos naturais ao
longo do período colonial.
No interior desse grupo heterogêneo de pensadores, que atuaram ao longo de quase
um século, encontra-se um grande número de hoje desconhecidos, mas também, como dito,
figuras selecionadas como ícones pela historiografia brasileira oficial, como José Bonifácio,
Joaquim Nabuco e André Rebouças. Sobre as origens do pensamento do primeiro, que teria
recebido grande influência de idéias iluministas e fisiocratas em sua formação européia
iniciada na Universidade de Coimbra e teria sido uma das figuras de maior destaque desta
tradição de pensamento – influenciando, inclusive, os seus sucessores nesta tradição –
Pádua, que analisou dezoito obras de sua autoria sobre a temática, nos diz que
é possível constatar que Bonifácio conviveu diretamente com o processo de gestação de todo um novo universo teórico sobre a dinâmica da natureza que veio a desaguar, décadas mais tarde,no surgimento formal da ecologia. Esse universo marcou profundamente o seu pensamento, inclusive no plano político. Mas, é importante notar que os escritos de Bonifácio não representam uma mera transposição da discussão européia para o contexto luso-brasileiro, e sim uma interpretação pessoal derivada das suas próprias reflexões e vivências. (op. cit.:133)
Cabe ressaltar um aspecto importante desta passagem. Pádua chama a atenção para
o fato de que esses autores não estavam apenas “importando idéias”, mas sim
ressignificando idéias vindas de outros contextos em suas agendas políticas.
A análise de outra discussão semelhante pode ser útil para se pensar a dinâmica de
troca de idéias com a qual estamos preocupados. Mais especificamente, um debate que se
trava sobre o liberalismo e sua introdução no Brasil do século XIX, no contexto da
formação do Estado brasileiro. Primeiramente, a polêmica entre Schwarz (1977) e Rouanet
(1994) acerca dos ideais liberais como “idéias fora do lugar”, nos termos do primeiro, que
chama a atenção, por exemplo, para a incongruência entre o Estado com bases
institucionais liberais que se instala aqui no período imperial e seu sistema econômico
73
escravista. Rouanet, por sua vez, tenta entender o processo de recepção de idéias, ao
contrário de Schwarz, como um processo dinâmico, no qual elas não são mecanicamente
transpostas, mas sim retrabalhadas, ressignificadas, fragmentadas, enfatizadas em
determinados aspectos. Realiza, desta forma, uma crítica ao que chama de “nacionalismo
cultural”, que permeou a história brasileira e tem como característica fundamental a aversão
a idéias externas, numa busca pelo genuinamente nacional. Sérgio Adorno (1988) expõe
ainda mais os paradoxos que Schwarz indica a respeito da incorporação de ideais liberais
no Brasil, mas procede a uma análise semelhante à de Rouanet, ao identificar diversas
apropriações e leituras que o liberalismo recebeu no período imperial. Sobretudo, enfatiza a
contradição exemplar dos primeiros bacharéis brasileiros – seu locus de análise é a escola
de direito de São Paulo em seu período fundacional – como intérpretes do direito natural,
dos ideais liberais, não obstante sua condição de filhos das oligarquias rural e comercial –
esta última incipiente. É de maneira aproximada à perspectiva de Rouanet e Adorno que
Pádua nos apresenta a dinâmica de apreensão das influências teóricas para construir uma
crítica ambiental naquele período.
O marco final da análise empreendida por Pádua em seu livro de 2002 é a abolição
da escravidão. Este evento, no entanto, não cessa a crítica. A crítica ambiental como parte
de um projeto de modernização tem continuidade no pensamento de Alberto Torres, que
escreve no começo do século XX (Pádua, 1987). O importante a ser frisado por agora é o
fato de que a crítica ambiental até este período esteve vinculada a motivações econômicas e
políticas, como questão estratégica para um projeto de nação, por autores engajados em
analisar os grandes dilemas do país em busca de possíveis soluções.
Essa crítica ambiental, no entanto, foi diferente daquela desenvolvida em outros
países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a preocupação com a destruição da natureza e
uma sensibilidade conservacionista surgem no bojo de um pensamento romântico, com
justificativas éticas para se combater a devastação ambiental (Nash, 1989). Nash procura
interpretar a história da “ética ambiental” na sociedade norte-americana a partir da
emergência da natureza como sujeito de direitos neste contexto. Constrói sua interpretação
inserindo o processo de surgimento e fortalecimento das mobilizações políticas nesta
sociedade em defesa da natureza como uma ampliação definitiva das fronteiras da ética
liberal. A natureza é assim concebida como detentora de direitos naturais à existência,
74
configurando o biocentrismo. Este autor está sugerindo que o ambientalismo em sua
vertente anglo-saxã constitui uma radicalização da ética liberal.
É importante notar que esta forma de conceber a natureza – como detentora de
direitos naturais – surge justamente nas sociedades que levaram ao extremo o ideal de sua
dominação. São reações radicais a estes valores, propostas de mudanças de ordem ética e
moral. Mas, então, como pensar uma potencial apropriação do biocentrismo no contexto
brasileiro? Barbosa & Drummond (1994) procuram explorar esta questão, tomando como
pressuposto que “o Brasil e as demais nações latinas representam uma vertente distinta do
mundo ocidental moderno, em termos dos seus valores básicos e de sua organização social”
(: 279). Este país seria “semitradicional”, ou “relacional”, no qual traços tradicionais como
a ênfase nas relações pessoais se combinariam com uma estrutura formal liberal,
individualista. Desta forma, o núcleo do argumento dos autores é que o biocentrismo – por
ser baseado numa atribuição de direitos naturais à natureza, numa extensão da ética liberal
(Nash, 1989) – teria uma eficácia simbólica mínima no nosso contexto, em que
submetemos a proteção da natureza a estratégias comumente mobilizadas para resolução
dos conflitos, com base no “jeitinho”.
Mesmo não tendo segurança em mobilizar os argumentos de Barbosa & Drummond
como válidas para explicar a reduzida penetração de valores biocêntricos no ambientalismo
político emergente no Brasil, argumento apenas que é possível verificar determinadas
recorrências na maneira pela qual as influências teóricas iluministas foram interpretadas
para se pensar a modernização da nação no final do século XVIII e ao longo do século XIX,
e a forma pela qual a biodiversidade é tematizada atualmente no bojo de estratégias de
desenvolvimento. Mesmo porque – como se verificará quando da análise da falas dos
entrevistados que se fará adiante – não se pode negligenciar uma filiação destes atores a
valores biocêntricos, nem mesmo a importância dos mesmos nos desenvolvimentos
recentes do ambientalismo no Brasil – sobretudo no último quartel do século XX.
Sendo assim, faço coro com o argumento de Pádua, segundo o qual as influências
teóricas dos autores brasileiros que analisa foram digeridas de maneira a tratar problemas
específicos de sua época, quando o problema político central era, além de pensar o atraso
da nação, a construção da mesma. De maneira análoga, os agentes envolvidos com as
75
discussões sobre biodiversidade desde a década de 1980 no Brasil operam o conceito nos
debates aqui efetuando ênfases, indicando tendências, ressignificando-o em certa medida.
É o que tentarei sugerir na próxima seção, mesmo tendo consciência de que o
estabelecimento de elos entre esta a tradição analisada por Pádua – que, segundo ele, foi
atenuada pela “euforia desenvolvimentista do pós-guerra” (1987: 61) – e o boom do
ambientalismo neste país, principalmente a partir da emergência do paradigma do
desenvolvimento sustentável entre as décadas de 1970 e 80 é um empreendimento ainda
carente de realização. Passemos à análise das falas dos entrevistados e de outras fontes
acessadas durante o período da pesquisa.
3.2. Afinal, por que conservar a biodiversidade?
Nesta seção, exploraremos tanto trechos das falas dos entrevistados quanto outras
fontes acessadas que nos forneçam material para a interpretação que pretendemos construir
a respeito de determinados aspectos que – com ênfases distintas e abordagens diferentes por
parte do grupo heterogêneo de agentes com os quais tive contato nesta pesquisa – nos
permitiriam sugerir determinadas características da apreensão particular deste conceito no
ambientalismo brasileiro.
A primeira pista para o ponto que quero aqui defender foi fornecida pela resposta do
primeiro entrevistado, Bráulio Dias, a uma questão a respeito de que argumentos mobilizar
para convencer um leigo da necessidade de conservar a biodiversidade.
EduardoD: Como o senhor convenceria um leigo da necessidade de conservar a biodiversidade no Brasil? BráulioD: Isso faz parte do que a ministra chama de transversalidade – e o que em inglês se chama de mainstreaming. Quer dizer, é preciso que a sociedade fora do setor ambiental entenda a importância da biodiversidade, o seu potencial e as consequências da sua perda. A sociedade não está ciente de nada disso. A biodiversidade tem um potencial econômico e social importante. Um potencial para gerar empregos, para desenvolver novos produtos, para aumentar a renda, para a exportação, desenvolvimento de fármacos, desenvolvimento de novas culturas para a agricultura, novas espécies para a domesticação, variabilidade genética para se usar em programas de melhoramento genético de plantas e animais usados na agricultura, desenvolvimento de novos processos industriais com a biotecnologia. Tem todo o lado social. Comunidades pobres, por exemplo, que dependem muito de biodiversidade e isso não tem, em geral, muito valor de mercado, mas tem um valor muito grande para estas populações [...] A perda de biodiversidade pode levar à perda de serviços ambientais. [...] A perda de biodiversidade na agricultura pode significar a perda de
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serviços como polinização, controle biológico de pragas, fixação biológica de nutrientes, de nitrogênio, a capacidade das plantas de absorver fósforo, por exemplo, frequentemente associada às chamadas micorrizas, que são fungos. [...] Existem os chamados valores intrínsecos da biodiversidade, não estão associados a demandas materiais. Estão associados a valores religiosos, morais, éticos, que têm um grande apelo para todas as sociedades. É claro que você tem particularidades em cada comunidade humana mas fazem parte do bem estar do ser, estas conexões com a biodiversidade. Um primeiro aspecto a ser enfatizado é que o alvo do convencimento, a “sociedade
fora do setor ambiental”, é demasiado amplo. Ao citar o uso do princípio da
transversalidade na ação do setor ambiental do governo do qual faz parte, Bráulio parece
estar fazendo referência a um primeiro nível no qual se deve trabalhar pela biodiversidade:
os diversos setores do próprio governo. Argumento semelhante ao de Muriel Saragoussi,
quando falava das diferenças entre o trabalho em ONGs e no serviço público federal (cf.
capítulo 2). Ela mencionou a necessidade, quando se tem um projeto em determinado setor
do governo, de se “trabalhar dentro do governo para fazer as coisas avançarem”. Deve-se
trabalhar no interior do governo tendo em vista viabilizar seu projeto que não é hegemônico
no interior deste. Em seguida, parece que Bráulio amplia o público alvo de seus argumentos
ao começar a listar exemplos do “potencial econômico e social” da biodiversidade, dos
quais a “sociedade [desta vez sem o predicativo “fora do setor ambiental”] não está ciente”.
Trata-se do potencial tanto para o desenvolvimento de produtos na agricultura e em setores
industriais, assim como um potencial “social”, vinculado à sobrevivência e
desenvolvimento – apesar de não usar esta palavra, está falando nos marcos desta ideologia.
Além destes potenciais, Bráulio fala da perda dos “serviços ambientais” da biodiversidade,
como conseqüência possível da sua diminuição. Seriam benefícios que a biodiversidade já
oferece à agricultura, por exemplo, que podem ser perdidos caso não se conserve a
biodiversidade. Por fim, “emergem os valores intrínsecos da biodiversidade” que teriam
“grande apelo a todas as sociedades”. Vimos anteriormente que uma ética ambiental
baseada nestes valores, em direitos naturais atribuídos à natureza, emerge em contextos
sócio-históricos específicos, especialmente em países do Norte (Nash, idem). No entanto,
sua presença – mesmo que marginal – na estratégia de convencimento de Bráulio não pode
ser negligenciada. Passemos à comparação com a resposta de outros entrevistados para,
com mais material, para avaliar o peso que os distintos argumentos teriam em suas
estratégias de convencimento.
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Cláudio Pádua: Eu gosto mais do argumento ético. Os seres vivos, todos eles têm direito de viver. As extinções ocorrem naturalmente, mas não pela ação do homem. Que direito nós temos de levar uma espécie à extinção? Então o argumento ético ele é bom, o argumento ético, que vai pelo lado espiritual, religioso e tal. Outro argumento é dos serviços prestados pela biodiversidade, embora este não seja muito fácil pras pessoas leigas verem. Mas ele, pra mim, talvez seja o mais importante deles. [...] Finalmente, o argumento que convence mais, mas o que eu menos gosto, é o utilitarista, biodiversidade significa dinheiro [trecho citado na epígrafe do capítulo] O que a gente tá fazendo é uma burrice. A gente tá gastando os nossos, tá destruindo a nossa biodiversidade pra plantar soja, pra alimentar gado do primeiro mundo, que nos vende conhecimento. Vamos ficar nessa situação pra todo o sempre. Porque o único jeito de sair disso é se você pegasse esse dinheiro e investisse maciçamente em pesquisas que te levassem um pulo a frente. Passar para a era do conhecimento. Maria Tereza Jorge-Pádua: Bom, pra um leigo, eu acho que infelizmente ou felizmente /risos/ você tem que usar argumentos da utilidade, né. Eu como sou uma especialista na área, meu tema é esse. Eu acredito na parte ética também. De se preservar todas as formas de vida, bem como a nossa [...]. Mas eu acho que pra convencer um leigo não, num acho que é por aí. Eu acho que uma pessoa que passa fome, uma pessoa que nunca, que tem medo de bicho em geral /risos/, que tem medo de mato, que num sabe nem apreciar nem amar a natureza, você tem que ir com argumentos mais utilitários. Como eu, nas minhas conferências, quando falo pra pessoas que não são especialistas no tema, eu sempre falo da utilidade, principalmente pra agricultura, que é uma coisa um, feeling que todo mundo tem. Maior produção de alimentos /risos/. Paulo Kageyama: Na verdade eu acho que, em primeiro lugar, eu partiria para o lado ético. Eu acho que nós somos parte dessa biodiversidade [...] Se bem que este aspecto vale pras pessoas mais sensíveis, mas pra maior parte das pessoas, mais racionais, mais tecnocratas, eles não funcionam desta forma, né? Então eu acho que a conservação da biodiversidade tem o aspecto econômico, que a gente pode também colocar, já que nesta biodiversidade existe uma infinidade muito grande de espécies que a gente não conhece ainda, e que podem ser muito úteis pra humanidade. [...] Eu acho que os dois principais argumentos seriam estes. É lógico que podem existir outros, mas acho que os mais fortes são estes dois argumentos.
Como se apreende por estas formulações, a crença na existência de valores
intrínsecos da biodiversidade – e, portanto, de valores éticos para justificar a conservação –
está presente na fala dos entrevistados, podendo ser entendida como influência da formação
destes atores em ciências biológicas. Nota-se, portanto, que eles estão imersos no que
Takacs (1996) já havia mencionado – citando David Ehrenfeld – como o “dilema da
conservação” (conservation dilemma)2. Paulo Kageyama expõe bem este dilema quando
fala que somente “pessoas mais sensíveis” se convenceriam pelo seu primeiro argumento,
2 Segundo Takacs, o dilema da conservação consistiria na encruzilhada que enfrentam os conservacionistas entre o uso de argumentos utilitários, de fundo econômico, para justificar seus empreendimentos, ou o uso de argumentos éticos, professando o valor intrínseco dos seres.
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de cunho “ético”, fazendo-se necessário o uso do argumento utilitário. Mais à frente, no
entanto, veremos como o setor do Ministério do Meio Ambiente do qual faz parte possui
ações concretas justamente para estimular e guiar o uso desta biodiversidade. Maria Tereza
Jorge-Pádua elabora ainda mais o argumento de que há de se distinguir os argumentos de
acordo com o público para o qual se fala. Para “especialistas”, como ela, é possível
mobilizar argumentos éticos. No entanto, para um público mais amplo – os leigos – é
necessário que se mobilizem “argumentos da utilidade”, enfatizando a importância da
mesma para, por exemplo, a produção de alimentos, sendo fonte de variedade genética para
o desenvolvimento de novas variedades agrícolas.
Na fala de Cláudio Pádua, selecionada também como epígrafe deste trabalho, temos
uma interessante formulação em que o conhecimento da biodiversidade ganha centralidade
num projeto de desenvolvimento do país. Este entrevistado foi quem, mesmo imerso neste
dilema, reformula-o de maneira mais clara. O potencial desta biodiversidade para a
sociedade brasileira, usado como argumento para convencimento de um público ampliado,
aparece como oportunidade para o desenvolvimento do país, para que o Brasil ultrapasse o
“ciclo econômico atrasado” no qual se encontra, passando da exploração intensiva da
biodiversidade para a exploração do “conhecimento” sobre a mesma.
Mas como essas visões a respeito do “potencial da biodiversidade” no Brasil se
materializam em políticas públicas? Novamente, a produção científica ganha centralidade
numa estratégia de desenvolvimento. São aqueles agentes situados no setor do Ministério
do Meio Ambiente que nos falam de ações em seus setores que objetivam catalisar o
aproveitamento deste potencial.
Bráulio Dias: A gente reconhece que existe um potencial de uso desta biodiversidade. O Brasil está sentado em cima de um tesouro econômico e social da biodiversidade. Agora isto é só um potencial. Na prática a nossa economia depende muito pouco do uso deste potencial. O grosso da nossa economia está baseado em espécies exóticas. Existem espécies nativas também sendo aproveitadas, mas são minoria [...] Há a necessidade de um papel mais forte do Estado aí [...] Devia haver uma coordenação muito maior, um investimento público maior nesta área de biodiversidade, para que a gente pudesse transformar este potencial em, realmente, oportunidades mais concretas. Paulo Kageyama: Com certeza a gente usa muito pouco da nossa biodiversidade [...] Eu acho que temos um potencial muito grande para descobrir espécies potenciais da nossa biodiversidade para uso e para gerar benefícios de fato, né? [...] Inclusive nós estamos promovendo isso bastante. Tem um edital do PROBIO que lançamos agora que se chama “plantas para o futuro”, que é exatamente uma tentativa de promover o uso de espécies subutilizadas comercialmente e industrialmente. É uma tentativa de valorizar de fato estas
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espécies que se conhece mas que não são de fato utilizadas. Além, vamos dizer, de espécies que são nativas e que são parentes silvestres de espécies comerciais. Nós somos centro de origem do algodão, da mandioca e do amendoim, além de outras espécies importantes comercialmente. A visão expressa por Bráulio Dias demonstra como o título de país líder em
megadiversidade no mundo3 dá nova dimensão à imagem – muito cara a certa variante de
um nacionalismo desenvolvimentista – do “gigante adormecido”. Dizer que o país se
encontra “sentado em cima de um tesouro econômico e social da biodiversidade” soa
demasiado próximo da imagem do país “deitado eternamente em berço esplêndido”,
expressa no hino nacional. O governo, neste ponto, ganha um papel central, mas suas ações
estariam ainda aquém do necessário para promover o “despertar” do “gigante” potencial da
biodiversidade. Torna-se imperativo – como este entrevistado afirmou em outro trecho
comentado no capítulo 2 – que seja superado o “hiato entre Estado e Academia”, através de
um “investimento público maior nesta área de biodiversidade”, ou seja, estimulando a
pesquisa, o conhecimento desta biodiversidade. São as ciências, como capazes de alterar a
relação com a biodiversidade, as responsáveis por “guiar o caminho” para o bom uso deste
“tesouro”.
Exemplar deste imperativo é o Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da
Diversidade Biológica Brasileira (PROBIO). Segundo Albagli (1998: 164), “o PROBIO foi
criado com os objetivos de: auxiliar o governo a iniciar um programa para a conservação e
o uso sustentável da biodiversidade, identificando ações prioritárias; estimular o
desenvolvimento de subprojetos demonstrativos; e disseminar informações sobre
biodiversidade”. Uma das estratégias para a consecução destes objetivos é a chamada
“demanda induzida”, com a qual se espera que o governo consiga superar aquele hiato e
trazer a academia para “gerar soluções para seus problemas”. Uma forma de “demanda
induzida” é o lançamento dos editais lançados no âmbito deste projeto, como dito por Paulo
Kageyama, que revelam tentativas de valorizar o potencial da biodiversidade. Dois deles,
lançados nos últimos tempos, são exemplares: um estimulava a pesquisa de variedades
silvestres de espécies já exploradas comercialmente, o outro a realização de planos de
manejo para polinizadores nativos.
3 Há estimativas de que em torno de 20% da biodiversidade mundial se encontra em território brasileiro (Albagli 1998; Brasil 1998)
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Entendo, pois, que a mobilização de imagens do desenvolvimento da nação é feita
de maneira a dar sustentação política para discursos sobre a biodiversidade4. À semelhança
da maneira pela qual os membros da “tradição de ambientalismo político” mapeada por
Pádua agiam, nestes projetos de desenvolvimento existe uma racionalidade científica como
base.
No entanto, para que a argumentação construída ao longo do capítulo não seja
acusada de passar por cima de peculiaridades, homogeneizando os atores sociais envolvidos
nos debates sobre biodiversidade, cumpre fazer uma ressalva. Não estamos aqui afirmando
que todos os atores que se inserem nestes debates seriam “nacionalistas
desenvolvimentistas”, na tipologia construída por Viola (apud Albagli 1998). O que
estamos aqui propondo é a existência de uma recorrência no discurso dos atores inseridos
nestes debates pelos mais distintos flancos. Pensar a biodiversidade vinculada a projetos de
nação não igualaria estes projetos, mas sim reforçaria a porosidade de fronteiras entre os
“setores” ou “tipos” criados em análises a respeito do ambientalismo.
Seria possível aqui inventariar alguns exemplos da ubiqüidade dessas imagens em
contextos ainda mais distintos nos quais a biodiversidade é tematizada. O primeiro deles
pode ser encontrado na audiência pública realizada no âmbito da Comissão da Amazônia,
da Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados. Nesta
audiência pública, o representante do Ministério das Relações Exteriores (MRE) falava que
o “potencial da biodiversidade” oferece oportunidades de desenvolvimento social. O
representante do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) ressaltava a
importância do instrumento das patentes para resguardar a “nossa biodiversidade”. O
representante do Fórum Brasileiro de ONGs ressaltou ainda a importância estratégica para
o país, que têm os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Portanto, o que espero ter mostrado neste capítulo é que, a exemplo da tradição
mapeada por Pádua, encontramos nos dias de hoje projetos não hegemônicos numa elite
política tecendo críticas ambientais com base em projetos de desenvolvimento da nação,
tendo como guia deste desenvolvimento a produção científica. Até mesmo tentativas de
4 E não seria o caso de dizer que apenas os agentes situados no governo mobilizam estas imagens, considerando que a visão do assunto externada por Cláudio Pádua vai num sentido muito próximo dos dois último entrevistados citados.
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objetivação que provêm da academia deixam transparecer que a biodiversidade tem de
constituir prioridade em um “projeto nacional”:
Como irá o Brasil se comportar está por ser visto: se conseguindo mobilizar-se para sacudir esses velhos problemas e articulando suas forças em torno de um projeto nacional que contemple estratégica e positivamente os desafios internacionais; se sucumbindo ante a incapacidade de mudar sua história política, marcada pelo imediatismo dos seus dilemas internos” (Albagli op. cit.: 251).
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Questões Finais
Não quero aqui concluir, mas sim deixar questões:
Pode a tradição mapeada por Pádua ter influenciado a emergência dos debates que
levariam à criação do conceito de biodiversidade?
Pode um empreendimento intelectual como o deste autor revelar que os vínculos
entre conservação e desenvolvimento não são tão recentes como se pensa – inclusive nas
interpretações resenhadas no primeiro capítulo?
É possível que a emergência do conceito de biodiversidade naquele caldo cultural
de que nos falam Arnt e Ventura traga novidades na construção que se faz de uma
identidade nacional e, particularmente, das identidades amazônidas?
De que maneira a incorporação deste conceito em círculos sociais cada vez mais
ampliados, para além mesmo do ambientalismo brasileiro – no senso comum, no
vocabulário de “leigos” – pode agitar este caldo cultural da relação entre o ambiente natural
e identidade nacional?
Por fim, poderá o dissonante tornar-se harmônico?
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ANEXO I – Entrevistas
Lista de entrevistas (ordem cronológica)
Nome Local Data Bráulio Ferreira de Souza Dias – Gerência de Conservação da Biodiversidade (GCBio/DCBio/SBF/MMA)
IBAMA sede, Brasília/DF 1º/04/2004
Paulo Yoshio Kageyama – Diretor do Programa Nacional Conservação da Diversidade Biológica (DCBio/SBF/MMA)
IBAMA sede, Brasília/DF 13/05/2004
Lúcia Fernanda Kaingang – INBRAPI sede do INBRAPI, Brasília/DF 24/05/2004 Eduardo Vélez Martin – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN/MMA)
IBAMA sede, Brasília/DF 28/06/2004
Maria Tereza Jorge Pádua – Fundação Pró-Natureza (FUNATURA)
sede da FUNATURA, Brasília/DF
22/07/2004
Muriel Saragoussi – CONAMA (atualmente na Secretaria de Coordenação da Amazônia do MMA)
Min. do Meio Ambiente, Brasilia/DF
11/08/2004
Rubens Onofre Nodari – Gerência de Recursos Genéticos (GRG/DCBio/SBF/MMA)
IBAMA sede, Brasília/DF 16/08/2004
Claudio Benedito Valladares-Pádua – Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) e Universidade de Brasília
residência do entrevistado, Brasília/DF
12/10/2004
Gustavo Alberto Bouchardet Fonseca – Conservation International (CI) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Estação Convention Center, Curitiba/PR
21/10/2004
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ANEXO II – questionário eletrônico
Questionário enviado por correio-eletrônico:
Nome questionário respondido Aziz Ab’Saber – Universidade de São Paulo (USP) não Carlos Alfredo Joly – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
não
Dalton de Morrison Valeriano - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)
não
Fernando Antonio dos Santos Fernandez – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
não
Gustavo Alberto Bouchardet Fonseca – Conservation International (CI) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
não
José Arnaldo de Oliveira – Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) sim Keith Spalding Brown Junior – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
não
Mauro William Barbosa de Almeida - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
não
Paulo Emilio Vanzolini - Universidade de São Paulo (USP) não Warwick Estevam Kerr – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
não
Modelo do questionário1:
1. Defina biodiversidade. 2. Quando você se recorda de ter ouvido e/ou lido este termo pela primeira vez? 3. Como você convenceria um leigo da necessidade de conservar a biodiversidade? 4. Qual a relação entre biodiversidade e atividades produtivas? 5. A Conferência sobre Diversidade Biológica (CDB) estabelece como um de seus
princípios a repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos do acesso aos recursos genéticos. Como você vê a implementação deste princípio no Brasil e/ou nos países signatários?
6. Os povos indígenas e os chamados povos tradicionais vêm buscando se inserir na discussão relativa à biodiversidade. Como você analisa a presença destes atores?
1 O modelo de questionário a seguir foi enviado para 12 profissionais com alguma relação com as discussões sobre biodiversidade. Destes, recebi resposta de apenas três. José Arnaldo de Oliveira (GTA), respondeu o questionário na íntegra. Carlos Alfredo Joly (UNICAMP) deu retorno à mensagem se recusando, no entanto, a responder o questionário. Recebi de Paulo Emílio Vanzolini uma resposta gerada, aparentemente, automaticamente.
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ANEXO III – Eventos Lista de Eventos (ordem cronológica)
Evento Local Data Conferência Nacional do Meio Ambiente – Grupo “Biodiversidade e Espaços Territoriais Protegidos”
UnB, Brasília/DF 28 a 30/11/2003
Reunião para Discussão da Agenda Comum de Implementação do Plano de Trabalho sobre Áreas Protegidas – COP-7/CDB
Prédio do IBAMA, Brasília/DF
26/01/2004
Oficina sobre programa de conservação e proteção da biodiversidade em terras indígenas no Brasil
Hotel Torre Palace, Brasília/DF
5 a 7/02/2004
XXIV Reunião Brasileira de Antropologia – FEP-01: “Biodiversidade, Propriedade Intelectual e Conhecimentos Tradicionais”
Centro de Convenções, Olinda/PE
13 a 15/06/2004
Audiência Pública: O Brasil e o Regime Internacional de Acesso e Direitos sobre a Biodiversidade
Câmara dos Deputados, Brasília/DF
30/06/2004
7º Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Biodiversidade – CONABIO
IBAMA sede, Brasília/DF 30/06/2004
Semana Ashaninka Apiwtxa UnB, Brasília/DF 20 a 24/09/2004 IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação
Estação Convention Center, Curitiba/PR
17 a 21/10/2004
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