A Matemática da Navegação e da Cartografia no Tempo das Descobertas
Chama-se ‘navegação marítima’ ao processo de conduzir uma embarcação de um local para
outro à superfície da Terra, bem como às ciências e técnicas que lhe estão associadas. As
actividades da navegação podem agrupar-se em duas componentes fundamentais, estreita-
mente interligadas: o planeamento do movimento da embarcação, que inclui a determina-
ção do rumo e da velocidade para atingir um certo destino num certo instante; e a determi-
nação e controlo da sua posição no mar. Desde que as primeiras cartas náuticas do Mediter-
râneo foram desenhadas, há cerca de oitocentos anos, os princípios básicos da navegação
têm-se mantido inalterados. Contudo, ocorreram durante este longo período dramáticas
melhorias na sua eficácia, eficiência, exactidão e segurança, em resultado da introdução de
novas técnicas. Estas incluíram, em particular, os métodos astronómicos para determinar a
posição no mar (ca. 1450), a invenção do cronómetro marítimo (ca. 1750) e os métodos
electrónicos de posicionamento, incluindo o GPS (séc. XX). Em todas estas inovações, a ma-
temática desempenha um papel fundamental, nem sempre óbvio para quem as utiliza.
Chamamos ‘mapa’ a uma representação gráfica ― geralmente plana ― da superfície da Ter-
ra e das entidades naturais e artificias que nela se localizam, em regra numa dada escala e
projecção cartográfica. Uma característica comum a todos os mapas é o facto de serem re-
presentações convencionais da realidade, o que os torna distintos das fotografias aéreas.
Enquanto uma fotografia aérea mostra todas as entidades físicas que os sensores fotográfi-
cos puderam detectar, e somente esses, um mapa é uma selecção de entidades naturais e
artificiais, visíveis e invisíveis, realizada de acordo com os objectivos da representação e com
os limites impostos pela escala. As ‘cartas náuticas’ são um tipo especial de mapa, expres-
samente concebido para apoiar a navegação marítima 1. Nelas é representada a informação
relativa à terra e ao mar que, de alguma forma, possa contribuir para a eficácia e segurança
da navegação marítima: a configuração da costa, os pontos notáveis, a profundidade e natu-
reza do fundo, os faróis e bóias, etc. Embora se tenham verificado grandes melhorias na
quantidade e qualidade da informação representada nas cartas náuticas, desde que as pri-
meiras foram construídas para apoiar a navegação no Mediterrâneo, os princípios funda-
mentais sobre as quais elas se apoiam mantiveram-se constantes. Tais melhorias resultaram,
não só de um conhecimento mais exacto e pormenorizado da geografia do nosso planeta
1 Não existe entre nós uma distinção formal entre os termos ‘mapa’ e ‘carta’ os quais podem, em geral, ser
considerados sinónimos. A palavra ‘mapa’ teve origem medieval e era utilizada, nessa época, para designar as representações terrestres. A partir do séc. XIV os mapas utilizados em navegação passaram a ser conhecidos por ‘cartas’ (as ‘cartas de marear’), designação que se estendeu depois a outros tipos de representação. Em Portugal, o termo ‘carta’ é normalmente utilizado para designar os mapas utilizados em navegação (cartas náuticas e aeronáuticas), bem como as representações topográficas (cartas topográficas). Na tradição anglo-saxónica o termo chart é reservado às cartas náuticas e aeronáuticas. Ver Gaspar (2008), p. 57; 202.
2 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
mas também, tal como aconteceu com a navegação, da crescente matematização da carto-
grafia.
A matemática associada à navegação e à cartografia náutica é complicada pelo facto de nos
localizarmos sobre a superfície esférica da Terra, onde o cálculo de ângulos e distâncias é
consideravelmente mais complexo do que sobre um plano. Contudo, estas dificuldades só se
tornaram relevantes quando se iniciou o período das grandes descobertas e os navios come-
çaram a navegar regularmente no mar oceano. Embora a esfericidade da Terra fosse conhe-
cida pelas pessoas cultas da época, incluindo cosmógrafos e pilotos, o facto podia ser igno-
rado quando se navegava nas águas relativamente confinadas do Mediterrâneo e da Europa
ocidental. A razão está em que os erros que se cometiam ao assumir uma Terra plana eram
normalmente inferiores aos que resultavam da imperfeição dos métodos de navegação.
Como se verá, a situação alterou-se com o alargamento dramático das distâncias navegadas
e das áreas geográficas a representar nas cartas.
Neste capítulo, são abordados alguns aspectos técnicos relativos à navegação e à cartografia
náutica durante uma época histórica particularmente rica: o período das grandes descober-
tas e da expansão marítima, que se desenrolou durante os séculos XV e XVI, durante o qual
os métodos astronómicos foram introduzidos e a carta de latitudes foi desenvolvida.
1. Navegação e cartografia no Mediterrâneo
A navegação científica na Europa teve o seu provável advento no primeiro quartel do século
XIII, após a introdução da bússola marítima e do sistema decimal. A construção das primeiras
cartas náuticas, as ‘cartas-portulano’, deve ter-se seguido naturalmente 2. A matemática
associada à navegação marítima era então rudimentar, limitando-se esencialmente ao cálcu-
lo da distância percorrida, com base na velocidade das embarcações estimada pelos pilotos,
e à determinação da sua posição, em função do rumo e da distância percorrida. Esta podia
ser feita graficamente sobre a carta, utilizando a escala de distâncias e a malha de linhas de
rumo que irradiavam de certos pontos, ou através de métodos analíticos 3. Uma vez que
nem sempre era possível navegar ao longo da linha recta que unia o ponto de partida ao de
chegada, devido aos constrangimentos impostos pelo vento e outros elementos, foi criado
um método matemático destinado a determinar a posição da embarcação relativamente
àquela linha e a forma de a ela retornar, a raxon de marteloio. Este método permitia resolver
os triângulos rectângulos formados pelo trajecto planeado, pelo trajecto efectivamente se-
guido pela embarcação e pelo trajecto necessário para o corrigir. Era aplicado através de
2 Os exemplares mais antigos que se conhecem são do final do século XIII ou início do século XIV. No entanto,
há indícios que levam a situar as primeiras cartas no início do século XIII. Para uma abordagem pormenorizada da génese da cartografia náutica medieval, ver o excelente livro Les cartes Portolano (Pujades y Bataller, 2007). 3 Para medir ou marcar um trajecto sobre a carta utilizavam-se dois compassos de pontas secas, através dos
quais as direcções indicadas pelas linhas de rumo e as distâncias medidas sobre a escala de milhas eram trans-tadas graficamente. Note-se que as cartas eram instrumentos valiosos e o lápis de grafite, cujos traços podiam ser apagados com facilidade, só apareceu na segunda metade do século XVI.
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 3
3
tabelas ou de ábacos, conhecidos, respectivamente, por toleta de marteloio e por tonda e
quadro (‘círculo e quadrado’). A toleta de marteloio (Fig. 1, esquerda) era composta por duas
tabelas complementares: a suma de marteloio, que fornecia a distância percorrida na direc-
ção do rumo planeado (avanço), e a distância lateral entre este e o rumo efectivamente se-
guido (alargo), para cada cem milhas navegadas; e o avanço de retorno, que fornecia a dis-
tância a navegar (retorno) e a correspondente componente na direcção do rumo planeado
(avanço) para cada dez milhas de distância lateral. Vejamos, através de um exemplo, como
se utilizavam estas tabelas.
Figura 1 – Toleta de marteloio (esquerda) e tonda e esquadro (direita), do atlas náutico do cartógrafo
veneziano Andrea Bianco, 1436. A toleta de marteloio é composta por duas tabelas: a suma de mar-
teloio, que calcula o triângulo formado pelo caminho seguido e o caminho planeado; e o avanço de
retorno, que calcula o triângulo formado pelo caminho a seguir e o planeado (ver Fig. 2 e explicação
no texto). Os valores são fornecidos para oito rumos, espaçados de 11 ¼º (um quarta).
Suponhamos (Fig. 2) que era suposto a embarcação partir de P e deslocar-se para Este (090º)
mas que, devido às limitações impostas pelo vento, se deslocou para és-sueste (112,5º), até
ao ponto Q. Entrando na tabela da esquerda com a respectiva diferença de rumos, que é de
duas quartas (=22 ½ º), podemos retirar os valores de 38 milhas (largar) e de 92 milhas
(avançar) por cada 100 milhas navegadas 4. Admitindo que a embarcação navegou 200 mi-
lhas entre P e Q, podemos concluir que a componente desta distância na direcção planeada
(o avanço) foi 2×92=184 milhas e que o afastamento lateral (o alargo) foi de 2×38=76 mi-
lhas. Admitamos agora que se pretende voltar rapidamente ao trajecto planeado, alterando
o rumo para nordeste (045º). Entrando na tabela da direita com a diferença entre este valor
e o rumo planeando, que é de quatro quartas (=45º, quarta linha da tabela), retiramos os
valores de 14 milhas (retorno) e de 10 milhas (avançar), por cada 10 milhas de afastamento
lateral. Como o afastamento lateral foi de 76 milhas, os correspondentes valores da distân-
cia a navegar e do avanço no sentido do rumo planeado serão, respectivamente, 14×76/10 =
106,4 milhas e 10×76/10 = 76 milhas.
4 Nesta época, cada intervalo de 45º da rosa-dos-ventos era subdividido em quatro intervalos de 11 ¼º cada,
designados por ‘quartas’.
4 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Figura 2 – Exemplo de utilização da toleta de marteloio. A embarcação parte do ponto P e pretende
navegar ao rumo Este, em direcção a R. No entanto, o seu rumo foi desviado de duas quartas para
estibordo (=22½º), vindo a atingir a posição Q ao fim de 200 milhas navegadas. Para voltar rapida-
mente ao caminho planeado, resolveu-se alterar o rumo para nordeste (=45º). A toleta de marteloio
permite resolver os dois triângulos rectângulos da figura em função da distância navegada e dos ân-
gulos, e , entre o rumo planeado e os rumos da embarcação.
Mais simples do que utilizar estas tabelas seria, porventura, realizar os cálculos graficamente
através da tonda e esquadro (Fig. 1, direita). Trata-se de um ábaco constituído por uma tra-
ma de linhas de rumo que irradiam de um ponto (canto superior esquerdo do quadrado),
espaçados de meia quarta, a que se sobrepõe uma malha de quadrados de 100 milhas de
lado, complementada por uma escala de distâncias. Fazendo coincidir o rumo planeado com
o lado superior da quadrícula, o piloto colocaria uma ponta do seu compasso de pontas se-
cas sobre a origem e, sobre o rumo efectivamente seguido, marcaria a distância navegada.
Os valores do avanço e alargo seriam lidos directamente sobre a quadrícula. Processo aná-
logo se usaria para a correcção da rota. Contudo, não existe prova conclusiva de que a toleta
de marteloio ou a tonda e esquadro tenham sido efectivamente usadas pelos pilotos a bor-
do. Embora o método seja mencionado em algumas fontes históricas (em particular, no atlas
de Andrea Bianco, de onde a Fig. 1 é reproduzida), nenhuma referência foi encontrada nos
inventários de instrumentos náuticos dos navios e pilotos (Pujades, 2007, p. 463-65).
Ao método de navegação baseado no rumo fornecido pela agulha de marear e na distância
estimada foi dado nome de ‘ponto de fantasia’ pelos pilotos ibéricos dos séculos XV e XVI.
Mesmo após o advento dos métodos astronómicos de navegação, continuou a ser utilizado
por todos os navegadores em todas as épocas e constitui a base do que hoje designamos por
‘navegação estimada’. O que mudou foi, não o princípio fundamental em que se baseia – a
estimação do caminho percorrido pelas embarcações no mar a partir da informação de rumo
e distância – mas a exactidão dessa informação. Com o tempo, os rumos fornecidos pela
bússola foram corrigidos da declinação magnética e as velocidades estimadas através de
métodos empíricos passaram a ser medidas directamente.
Tudo leva a crer que a construção das primeiras cartas náuticas foi um passo natural que se
seguiu ao nascimento da navegação científica, na sequência da introdução da bússola marí-
tima e do sistema decimal na Europa. Na realidade, essas cartas (cartas-portulano) podem
considerar-se como a expressão gráfica da informação de rumos e distâncias entre lugares
registada pelos pilotos nos seus roteiros (os ‘portulanos’). Ao contrário dos mapas tradicio-
nais, que representavam o mundo de forma esquemática ou simbólica, as cartas-portulano
avanço
P
Q
R
184 mi
106 m
i
76 mi
76 m
i200 mi
avanço
reto
rno
ala
rgo
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 5
5
eram desenhadas à escala. Tendo em conta a imprecisão dos instrumentos e a incerteza as-
sociada à estimação das distâncias, a sua exactidão e pormenor são surpreendentes, sobre-
tudo quando as comparamos com a cartografia terrestre da época.
Figura 3 – Carta-portulano de Jorge de Aguiar, 1492. Note-se a trama de 32 linhas de rumo que irra-
diam de certos pontos da carta, alguns deles decorados com rosas-dos-ventos. A escala gráfica de
distâncias, graduada em léguas, encontra-se ao longo da cercadura. Trata-se de uma carta-portulano
típica, no estilo e cobertura geográfica, provavelmente pertencente à mais antiga escola cartográfica
portuguesa.
Sabemos, através de testemunhos históricos e da análise da sua geometria, que estas cartas
eram construídas com base nas direcções fornecidas pela bússola e nas distâncias entre lu-
gares, estimadas pelos pilotos 5. Tal informação era transferida directamente para o plano
da carta, com escala constante, como se a superfície da Terra fosse plana. Não, como já se
disse, devido à ignorância dos pilotos e cartógrafos mas porque era essa a solução imposta
pelos métodos de posicionamento utilizados em navegação. 6 Não sendo possível conservar,
sobre o plano, todas as direcções e distâncias observadas sobre uma superfície esférica, o
5 A fonte histórica mais antiga onde a construção das cartas-portulano é mencionada é o códice Liber de exis-
tência riveriarum, de cerca de 1200, onde se faz menção à informação recolhida junto dos pilotos. Ver Pujades (2007, p. 513). 6 Isto é, os novos lugares eram representados na carta através da direcção e distância que os ligava a outros
lugares, tal como se fazia em navegação. Até à introdução da navegação astronómica, que ocorreu em meados do século XV, as coordenadas geográficas (latitude e longitude) não eram utilizadas em navegação e cartografia náutica. Mesmo depois de se começar a determinar a latitude a bordo, as cartas continuaram a ser construídas com base em latitudes e rumos, como se a Terra fosse plana.
6 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
preço a pagar por tal simplificação é a inconsistência geométrica. Esta inconsistência mani-
festa-se no facto de a posição relativa dos lugares se tornar estritamente dependente da
forma como estes foram representados. Por exemplo, a posição da Ilha Terceira relativa-
mente a Lisboa será distinta se for determinada através de um único troço de loxodrómia
unindo os dois lugares ou, alternativamente, de uma rota fazendo escala na ilha da Madeira.
Tal diferença é devida à impossibilidade de representar o triângulo formado por aqueles
lugares sobre o plano sem distorcer lados e ângulos. Se, como na generalidade das cartas-
portulano, as direcções e distâncias entre Lisboa e a Madeira e entre Lisboa e a Terceira são
conservadas, é certo que a direcção e distância entre a Madeira e a Terceira serão distorci-
das.
Para áreas limitadas, tal como a do exemplo citado ou mesmo a bacia do Mediterrâneo, as
distorções são relativamente pequenas e podem ser ignoradas, especialmente quando com-
paradas com a imprecisão dos métodos de navegação da época. Tal não acontece, como
veremos mais adiante (ver ‘Inconsistência geométrica’), quando se pretende cartografar
grandes bacias oceânicas (como o Atlântico ou o Índico), uma vez que a geometria da repre-
sentação é fortemente afectada pela escolha das rotas a utilizar na construção.
2. A navegação astronómica e a carta de latitudes
Em 1434 Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador, após catorze anos de tentativas frustradas, nas
quais estiveram envolvidos vários navegadores ao serviço do Infante D. Henrique 7. Vários
perigos eram então associados à navegação nesta região, em particular os escolhos que aflo-
ravam a grande distância da costa africana e as fortes correntes que impediam o regresso
das embarcações. Na realidade, veio a revelar-se que passar para sul do Cabo Bojador não
implicava dificuldades ou perigos excepcionais, se fossem tomadas as medidas de precaução
adequadas a quem navega em águas desconhecidas. Pelo contrário, a progressão das em-
barcações para sul era facilitada pelos ventos alíseos, soprando de nordeste, e também pela
corrente das Canárias, que flui para sudoeste ao longo da costa africana. O principal proble-
ma colocava-se na viagem de regresso, devido à necessidade de vencer estes mesmos ele-
mentos.
Na época em que o Cabo Bojador foi dobrado, as embarcações empregues nas missões de
exploração (a ‘barca’ e o ‘barinel’) não conseguiam progredir contra o vento. Tal limitação
tornava as viagens de regresso demoradas e penosas, sendo por vezes necessário recorrer à
força dos remos. Por outro lado, os métodos de navegação então em uso não eram adequa-
dos a longas tiradas oceânicas. As embarcações navegavam, tanto quanto possível, à vista de
costa ou a curta distância desta, e a ausência continuada de referências visuais levava a uma
rápida degradação da sua posição estimada. Com o conhecimento do regime de ventos e
correntes na região e a introdução, cerca de 1450, de embarcações capazes de progredir
7 Actual Cabo Boujdour (26º 08’N, 14º 30’W), situado no Sahara ocidental, a sueste do arquipélago das Caná-
rias.
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 7
7
contra o vento com mais eficácia – as ‘caravelas’ – foi possível tornar as viagens de regresso
consideravelmente menos custosas. Para tal contribuiu a introdução de uma nova rota
oceânica que afastava as embarcações da costa, de modo a evitar a corrente das Canárias e
a tornear os ventos dominantes, num percurso que as levava até perto do Mar dos Sargaços
e daí, buscando a latitude dos Açores, até à costa portuguesa. Esta solução, inaugurada cerca
de 1445, ficou conhecida por volta da Guiné ou volta do mar largo.
Contudo, cedo se devem ter apercebido os pilotos de quão desadequados eram os velhos
métodos navegação a esta rota oceânica. De facto, à medida que o tempo passava desde o
momento da última posição conhecida, a exactidão do ponto de fantasia ia-se degradando, a
ponto de se tornar extremamente incerta ao fim de alguns dias de mar. O problema era ain-
da agravado pelo facto de o rumo das embarcações estar condicionado pela direcção do
vento e, em algumas circunstâncias, ter de ser alterado com frequência. A solução encontra-
da para este novo problema foi a introdução dos métodos astronómicos de navegação.
Desconhece-se a data precisa em que tais métodos começaram a ser utilizados ou a autoria
da sua introdução. A menção mais antiga que chegou aos nossos dias encontra-se num rela-
to oral atribuído a Diogo Gomes, transcrito para latim por Martin Behaim, cerca de 1460, no
qual o navegador refere que utilizou um quadrante para medir e registar a altura da Estrela
Polar acima do horizonte, perto da ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde. Tratava-
se ainda de uma fase preliminar da navegação astronómica, conhecida por navegação por
‘altura-distância’, em que a altura da Estrela Polar em pontos conhecidos da costa era ano-
tada, de modo a poder determinar-se a distância norte-sul a esses pontos e poder a eles
voltar com facilidade 8. A determinação directa da latitude, primeiro por observação da Es-
trela Polar e depois do Sol, seria a fase seguinte da navegação astronómica. Mas para que
estes métodos pudessem ser utilizados em navegação tornava-se primeiro necessário simpli-
ficar os instrumentos de observação empregues pelos astrólogos (quadrantes e astrolábios),
de modo a adaptá-los à medição da altura dos astros a bordo, e preparar regras simples para
uso dos pilotos. No caso da observação da Estrela Polar, estas regras ficaram conhecidas por
Regimento do Norte e destinavam-se a corrigir a altura observada de modo a determinar a
latitude 9. No caso da observação do Sol, as regras eram conhecidas por Regimento do Sol e
incluíam tabelas da declinação do astro para todos os dias do ano. 10
8 Para uma explicação mais pormenorizada do processo ver Albuquerque (2001), p. 250-6.
9 Não se encontrando a Estrela Polar exactamente no pólo árctico, antes descrevendo um arco diurno aparente
cujo valor era de cerca de três graus e meio, era necessário aplicar uma correcção à altura observada de modo a obter o valor exacto da latitude. Esta correcção dependia da posição da estrela relativamente ao meridiano do lugar, a qual era avaliada através da orientação das guardas da Ursa Menor. Ver Albuquerque (2001), p. 241-50. 10
Declinação é a medida do arco de círculo horário entre o equador e o astro. A latitude era determinada ao meio-dia, quando o Sol passava no meridiano do lugar e atingia a sua altura máxima. Nesse instante, o seu valor pode ser calculado através de meras somas ou subtracções cujos argumentos são a altura acima do hori-zonte e a declinação. Para uma descrição mais pormenorizada do método ver Albuquerque (2001), p. 274-89.
8 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
2.1 Ponto de fantasia e ponto de esquadria
Antes da introdução dos métodos astronómicos de navegação, as cartas utilizadas pelos pi-
lotos ibéricos no Atlântico partilhavam o modelo das cartas-portulano do Mediterrâneo. A
posição do navio era então determinada como a intersecção entre um segmento com ori-
gem na última posição conhecida, orientado na direcção do rumo, e um arco de circunferên-
cia centrado no mesmo ponto, cujo raio era a distância estimada pelo piloto. Este método
era conhecido por ‘ponto de estimativa’ ou ‘ponto de fantasia’, numa clara alusão à incerte-
za associada à estimação da distância. Com a introdução da navegação astronómica, o mé-
todo foi modificado de modo a incorporar a latitude observada. À posição do navio assim
obtida, na qual a latitude passou a prevalecer sobre os outros dois elementos de informa-
ção, foi dado o nome de ‘ponto de esquadria’. No ponto de esquadria, a posição era deter-
minada pelo cruzamento do paralelo da latitude observada (representado por uma linha
horizontal) com o segmento correspondente ao rumo do navio ou, quando este fosse próxi-
mo de 90º (Este) ou de 270º (Oeste), com o arco representando a distância percorrida.
Figura 4 – Ponto de fantasia (esquerda) e ponto de esquadria (direita). d é a distância estimada e é
a latitude. Na ausência de quaisquer erros, as duas posições são coincidentes.
Na ausência de quaisquer erros, quer no rumo e distância estimada, quer na latitude obser-
vada, o ponto de fantasia e o ponto de esquadria eram coincidentes (Fig. 4). Contudo, e de-
vido ao efeito da declinação magnética e aos erros associados à estimação das distâncias, tal
situação era pouco frequente. Na maior parte dos casos, os três elementos de informação (a
latitude, o rumo e a distância) eram discordantes, isto é, a latitude observada não confirma-
va o ponto de fantasia. Era então era aplicado um conjunto de regras destinadas a harmoni-
zar o ponto de fantasia com a informação de latitude, conhecidas por ‘emendas do ponto de
fantasia’. 11
11
A mais antiga descrição pormenorizada destas emendas que chegou aos nossos dias é a do cosmógrafo-mor Manuel Pimentel, na sua Arte de Navegar, publicada em 1712 (Cortesão et.al., 1969, p. 145-49). Uma descrição ligeiramente diferente, apresentada por Fontoura da Costa na Marinharia dos Descobrimentos, é normalmente aceite como a versão padrão, muito embora o autor não lhe refira a origem (Costa, 1983, p. 395-97). Em am-bas, a latitude observada prevalece sobre o rumo e a distância embora os critérios divirjam quanto ao peso a atribuir a um e a outra.
ponto defantasia
ponto deesquadria
d
ponto de
partidaponto de
partida
N N
Rumo Rumo
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 9
9
Com a introdução do ponto de esquadria, a toleta de marteloio terá dado lugar ao Regimen-
to das Léguas. Mais uma vez, tratava-se de resolver um triângulo rectângulo, neste caso, o
triângulo formado por um segmento orientado segundo o rumo da embarcação, correspon-
dente a uma variação de latitude de um grau, por um arco de meridiano contendo o ponto
inicial e por um arco de paralelo contendo o ponto final. O regimento fornecia o comprimen-
to daquele segmento (relevar) e o comprimento do arco de paralelo (afastar), em léguas,
para os rumos tradicionais: 0 º, 11 ¼ º, 22 ½ º, 33 ¾ º, 45º, 56 ¼ º, 67 ½ º, 78 ¾ º e 90º. Em to-
dos os regimentos que se conhecem o comprimento do grau de meridiano é de 17 ½ léguas.
O mais antigo faz parte do chamado Guia Náutico de Munique, impresso no na primeira dé-
cada do século XVI mas cuja informação provém do século XV (Fig. 5). 12
Figura 5 – Regimento das léguas. À esquerda, o triângulo rectângulo resolvido pelo regimento. À
direita, reprodução dos valores do Guia Náutico de Munique, calculados provavelmente no século
XV.
2.2 Declinação magnética
Declinação magnética é o ângulo, num certo lugar e num dado momento, entre a direcção
do Norte geográfico, indicada pelos meridianos, e a direcção do Norte magnético, indicada
pela bússola. O fenómeno era desconhecido até ao final do século XV, sendo os desvios
normalmente atribuídos a agulhas mal magnetizadas ou bússolas deficientes. De acordo com
o piloto João de Lisboa, que escreveu o Tratado da Agulha de Marear, o mais antigo texto
conhecido sobre a bússola marítima (Albuquerque, 1982), era prática comum entre os cons-
trutores de instrumentos náuticos rodar a rosa-dos-ventos colocada sobre as agulhas mag-
netizadas de modo a que aquelas apontassem para o Norte verdadeiro no local onde eram
construídas. A mais antiga referência à existência e influência da declinação magnética na
navegação é atribuída a Colombo, durante a sua primeira viagem às Índias Ocidentais, em
1492, mas é muito provável que o fenómeno fosse já conhecido dos pilotos portugueses. O
nome de Golfo das Agulhas, utilizado no planisfério de Cantino para designar a baía que se
encontra cerca de 80 milhas a leste do Cabo da Boa Esperança, mostra que a declinação
12
Ver Albuquerque (1965), p. 193-94.
17
½ lé
gu
as
afastar
R
rele
var
Rumo relevar afastar
quartas graus
0 0 17 ½ 0
1 11 ¼ 17 5/6 3 ½
2 22 ½ 19 1/6 7 ½
3 33 ¾ 21 1/3 11 5/6
4 45 23 ¾ 17 ½
5 56 ¼ 31 ¼ 26 1/6
6 67 ½ 46 ½ 42 ½
7 78 ¾ 87 1/6 85
10 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
magnética na área era próxima de zero no início do século XVI, e que teria sido medida e
registada antes de 1502, quando a carta foi concluída. Acreditava-se então que as ‘isógonas’
(linhas de igual declinação magnética) se orientavam na direcção norte-sul e eram equidis-
tantes, pelo que a sua medição permitiria determinar a longitude no mar. A teoria veio a ser
desmentida pelas observações realizadas por D. João de Castro no Atlântico Sul e Índico,
durante a viagem que efectuou em 1538, publicadas no seu Roteiro de Lisboa a Goa (Castro,
1538). Isso não impediu, contudo, que a ideia de se utilizar a distribuição espacial da decli-
nação magnética para estimar a longitude sobrevivesse até meados do século XVIII, quando
veio a ser finalmente abandonada após a invenção do cronómetro marítimo. Por outro lado,
poderíamos supor que a capacidade de medir o seu valor viesse rapidamente a propiciar o
uso de direcções verdadeiras em navegação e cartografia. Na realidade, tal evolução tardou
a concretizar-se e toda a cartografia dos séculos XVI e XVII, pelo menos, é baseada em direc-
ções magnéticas.
Figura 5 – Influência da declinação magnética () no ponto de fanta-
sia e no ponto de esquadria. Para =0, ambos os pontos coincidem
com o pequeno círculo, sobre o paralelo de latitude (linha tracejada).
Como se viu, o ponto de esquadria e o ponto de fantasia são coincidentes se nenhum erro
for cometido na medição de rumos, distâncias e latitudes. Tal não acontece, contudo, em
presença da declinação magnética (Fig. 5). Enquanto no método do ponto de fantasia, tanto
a latitude como a longitude são afectadas por erros no rumo, no método do ponto de es-
quadria, o erro é inteiramente reflectido na longitude. Em consequência, a adopção de um
ou de outro método na construção de uma carta determina diferenças significativas na sua
geometria. No primeiro caso (ponto de fantasia), a declinação magnética é reflectida na ori-
entação dos meridianos e paralelos; no segundo (ponto de esquadria), somente a orientação
dos meridianos é afectada, sendo os paralelos sempre representados por segmentos rectilí-
neos e equidistantes, orientados na direcção este-oeste. Este é um ponto central na com-
preensão da geometria das cartas náuticas anteriores à projecção de Mercator, geralmente
desconhecido ou ignorado pelos historiadores. Embora a introdução dos métodos astronó-
micos tenha constituído um avanço significativo na navegação e cartografia do Renascimen-
to, a sua exactidão era fortemente afectada pela declinação magnética, em especial quando
ponto deesquadria
ponto defantasia
ponto de
partida
N
Rumo
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o rumo era próximo de Este ou Oeste. Este erro poderia contudo ser corrigido, ou pelo me-
nos mitigado, substituindo o rumo pela distância estimada na determinação da posição do
navio, tal como era previsto nas ‘emendas do ponto de fantasia’. No entanto, é duvidoso
que tais correcções tenham sido aplicadas no desenho das cartas, uma vez que introduziriam
erros significativos nos rumos magnéticos entre lugares, informação bem mais importante
para os pilotos do que as distâncias.
No seu Roteiro de Lisboa a Goa, ao referir a distância exagerada entre o Brasil e o Cabo da
Boa Esperança nas cartas, D. João de Castro mostra estar consciente das distorções longitu-
dinais introduzidas pela declinação magnética. Após descrever a sua variação ao longo da
rota entre Lisboa, o Brasil e o Cabo da Boa Esperança (onde as agulhas apontavam para leste
do Norte verdadeiro), e do Cabo da Boa Esperança até à Índia (onde elas apontavam para
oeste), D. João de Castro comenta (Castro, 1538, p. 200):
‘Destas cousas se segue que a Ilha da madeira, Canareas, Ilhas do cabo verde, e assi
mesmo as prayas do Brasil que se opoem ao vento leste, estão maes apartadas do meri-
diano de Lisboa pêra a banda do occidente do que jazem situadas nas cartas de marear
[...], e também que as ilhas de Tristão da Cunha, cabo da boa esperança, com toda a ter-
ra e mar que se contem ate a costa da India [...] jazem maes chegadas ao merediano de
Lisboa por muitos graos do que nas cartas e pomas se mostra.’
A interpretação de D. João de Castro é correcta. Devido aos elevados valores de declinação
magnética que se faziam sentir no Atlântico Sul durante o século XVI (em algumas zonas da
ordem de 20º Este), os rumos medidos pela agulha, e depois transferidos para as cartas, apa-
reciam rodados no sentido dos ponteiros do relógio, fazendo com que as costas do Brasil e
do continente africano fossem substancialmente desviadas para leste.
2.3 O advento da carta de latitudes
Dado que a declinação magnética afectava diferentemente o ponto de fantasia e o ponto de
esquadria, o modelo cartográfico em uso durante o século XV, o das cartas-portulano do
Mediterrâneo, não era formalmente compatível com os métodos astronómicos de navega-
ção. O problema ter-se-á, porventura, revelado quando se procurou conjugar esses métodos
com as cartas antigas, às quais terão sido acrescentadas escalas de latitudes. Em regiões cuja
representação tivesse sido pouco afectada pela declinação magnética, o que acontecia com
as costas atlânticas da Europa e norte de África, o expediente terá eventualmente resultado.
Tal não acontecia, contudo, com a costa africana para sul de Cabo Verde, onde os valores da
declinação magnética eram substancialmente mais elevados. Aí, a utilização do ponto de
esquadria ter-se-á revelado incompatível com a geometria das cartas tradicionais.
12 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Figura 6 – Malha de meridianos e paralelos implícita à carta de Jorge de Aguiar (1492), interpolada a
partir de um conjunto de pontos de coordenadas conhecidas (círculos vermelhos), utilizando a apli-
cação MapAnalyst. A parte da costa de África (Golfo da Guiné) representada no interior do continen-
te foi aqui reproduzida na sua posição correcta. Note-se a rotação de meridianos e paralelos no Me-
diterrâneo, que reflecte o efeito da declinação magnética e indica que a área não foi cartografada de
acordo com as latitudes dos lugares.
A Fig. 6 mostra uma reprodução da carta Jorge de Aguiar de 1492, à qual foi sobreposta a
malha geográfica que lhe está implícita. Muito embora as cartas da época não representas-
sem meridianos ou paralelos, estes podem facilmente ser interpolados a partir de um con-
junto de pontos de coordenadas conhecidas, positivamente identificados na carta antiga e
num mapa moderno (os pequenos círculos vermelhos, na figura). É o que se fez para estimar
a malha geográfica representada, utilizando uma ferramenta informática disponível gratui-
tamente na Internet, a aplicação MapAnalyst 13. Este exemplo foi escolhido devido ao facto
de se tratar da mais moderna carta portuguesa conhecida ainda baseada em métodos não-
astronómicos. Note-se como o eixo do Mediterrâneo se encontra rodado para noroeste, de
um ângulo de cerca de 8º, característica comum a todas as cartas-portulano anteriores a
1600. Este é um sinal claro de que a região foi representada utilizando o método do ponto
de fantasia, sem recorrer a informações de latitude. O mesmo se passa com a parte da costa
africana para sul de Cabo Verde, onde meridianos e paralelos aparecem também rodados no
sentido contrário aos dos ponteiros do relógio. Quanto à representação das restantes regi-
ões, designadamente da parte norte da costa africana, das ilhas atlânticas e da Europa oci-
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MapAnalyst é uma aplicação informática desenvolvida por Bernhard Jenny e Adrien Weber, disponível gra-tuitamente em http://mapanalyst.org.
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 13
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dental, os paralelos apresentam-se aproximadamente horizontais e equidistantes. Contudo,
tal indício não é suficiente para se concluir que latitudes observadas tenham sido incorpora-
das nas cartas, uma vez que esta geometria é compatível com o uso do ponto de fantasia,
admitindo que a declinação magnética era pequena na época em a informação foi obtida. De
facto, e de acordo com o que sabemos sobre a distribuição espacial e secular da declinação
magnética na época, mínimos locais ocorreram na região entre 1300 e 1500, com valores
geralmente inferiores a 3 graus (Gaspar, 2010, p. 97).
Não existindo outros factores que confirmem a incorporação de latitudes observadas, tal
como a presença de uma escala de latitudes, podemos concluir com segurança que a carta
de Jorge de Aguiar foi totalmente construída com base em rumos magnéticos e distâncias
estimadas, à semelhança das outras cartas-portulano. Este resultado não invalida a possibili-
dade de cartas semelhantes terem sido utilizadas em conjunto com métodos astronómicos
de navegação. Como bem sugeriu António Barbosa (Barbosa, 1938a, p. 184-86; 1945, p. 188-
89), a ocorrência de pequenos valores de declinação magnética durante o século XV consti-
tuiu uma circunstância favorável para o processo de transição entre os dois modelos carto-
gráficos. O pouco que se sabe sobre esse processo, baseado na análise das outras cartas por-
tuguesas do século XV e início do século XVI, leva-nos a supor que a completa compatibiliza-
ção entre o ponto de esquadria e a cartografia náutica teria sido longa, uma vez que a im-
plementação do novo modelo estava dependente da realização de levantamentos astronó-
micos nas áreas onde se pretendia adoptá-lo. E muito embora a introdução dos métodos
astronómicos de navegação remonte provavelmente, à primeira metade do século XV, a
carta de latitudes portuguesa mais antiga que chegou aos nossos dias é o planisfério de Can-
tino, terminado em 1502, onde o resultado do levantamento astronómico ordenado pelo rei
D. João II ca. 1485, em ‘toda a Guiné’ é evidente 14. Outras cartas de latitude mais antigas
terão certamente existido. Contudo, é duvidoso que a sua origem seja muito anterior a
1500, já que as três cartas portuguesas do século XV conhecidas pertencem ainda ao modelo
tradicional: a carta anónima de ca. 1471, a carta de Jorge de Aguiar de 1492, que acabámos
de analisar, e a carta de Pedro Reinel do final do século.
3. A geometria das cartas de marear
3.1 Como eram feitas as cartas
Nenhum texto anterior ao século XVI explicando como as cartas eram construídas durante o
Renascimento chegou aos nossos dias. A fonte mais antiga onde a geometria da carta de
latitudes é discutida é o Tratado em defensam da carta de marear, publicado em 1537 pelo
matemático português Pedro Nunes (Nunes, 2002, p. 120-84). Trata-se de um texto longo,
ilustrado por figuras e exemplos, no qual o autor analisa a geometria das cartas náuticas do
seu tempo. Dois modelos cartográficos são referidos: o baseado em rumos e distâncias, que
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A ordem de D. João II é conhecida através de uma nota atribuída a Cristóvão Colombo, ou a seu irmão Barto-lomeu, manuscrita na margem de um livro sobre a história dos Papas.
14 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Nunes considera ter sido empregue na representação do Mediterrâneo e onde, por essa
razão, as latitudes dos lugares não são correctamente representadas; e o baseado em rumos
e latitudes, de que o autor se ocupa detalhadamente. Partindo de um princípio falso sobre a
geometria da malha geográfica implícita da carta, em que meridianos e paralelos formam
supostamente uma malha quadrada, o autor acaba por reconhecer que os meridianos não
podem ser paralelos entre si, nem sequer rectilíneos, e que lugares que aparentam estar
situados no mesmo meridiano normalmente não o estão. Uma outra conclusão importante
de Pedro Nunes, que remete para a inconsistência geométrica resultante de se ignorar a
esfericidade da Terra, é o facto de somente algumas rotas estarem correctamente represen-
tadas na carta (Ibidem, p. 132-33). Em geral, a obra reveste-se de um carácter teórico e não
contém nenhuma descrição detalhada sobre a construção das cartas. Mais do que um texto
didáctico destinado a esclarecer o leitor sobre um assunto complexo, o tratado parece re-
produzir o processo intelectual de familiarização progressiva do próprio autor com os aspec-
tos teóricos do tema. Esta abordagem não foi geralmente bem entendida pelos cosmógrafos
e historiadores das gerações seguintes, que se limitaram a acolher afirmações avulsas do
autor, sem as contextualizar na globalidade do texto. É o caso da suposta malha regular for-
mada por meridianos e paralelos na carta de latitudes, que tenho vindo a designar por ‘mito
da carta quadrada’, teoria que logrou sobreviver até aos nossos dias e é ainda repetida em
importantes publicações internacionais, não obstante a sua falsidade.
A construção prática de cartas náuticas foi abordada pelo cosmógrafo espanhol Alonso de
Chaves, que viveu entre 1492 e 1586 e foi piloto-mor da Casa de Contratación de Sevilha,
num livro de navegação que nunca chegou a ser publicado. Nessa obra descreve-se como
implantar novos lugares numa carta de marear, a partir do conhecimento das suas latitudes,
e dos rumos e distâncias relativamente a outros lugares. Uma outra descrição, muito deta-
lhada, é feita pelo padre Francisco da Costa, que foi professor da Aula da Esfera no Colégio
de Santo Antão, em Lisboa. Escreve Francisco da Costa no seu Tratado de Hidrografia, publi-
cado no final do século XVI (Albuquerque, 1970, p. 111; 113):
‘Para nas cartas hidrográficas se representar o mar e dar mostra da terra que com ele
confina [...], se pressupõem duas coisas [...]: as alturas de todos os portos, cabos, ensea-
das, etc.; [e] as derrotas por que correm as costas, portos, etc., tanto entre si como em
respeito da mesma costa [...]’
‘Por meio, pois, destas alturas e derrotas descrevem os hidrógrafos todo o marítimo e
quaisquer seus lugares como os geógrafos o fazem por meio das alturas e lonjuras […].
Porém, havendo de situar lugares que jazem de leste a oeste na mesma altura, […] é ne-
cessário que se saiba a distância que há de um lugar ao outro, o qual sabido se tomará
no tronco de léguas as que entre eles houver, e tanto se porá um afastado do outro na
altura em que estiverem […]’
Um pouco mais adiante no texto, o autor explica que estes métodos devem somente ser
utilizados quando se pretende implantar um novo lugar, já que a produção rotineira das car-
tas é realizada a partir dos padrões existentes (Ibidem, p. 113):
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 15
15
‘Estes são os dois modos por que se lança todo o marítimo, com ilhas, baixos, penedos,
etc. nas cartas hidrográficas; mas para evitar trabalho e enfadamento […] têm os hidró-
grafos outras de diferentes grandezas, a que chamam padrões, pelos quais com muita
facilidade fazem tantas cartas como vemos, e somente se servem dos sobreditos modos
para situarem alguma terra, ilha ou baixos de novo achados […]’
A descrição mais moderna que se conhece é já do início do século XVIII, da autoria do cos-
mógrafo-mor Manuel Pimentel, e incide sobre os três modelos cartográficos que então coe-
xistiam na cartografia náutica (Cortesão et al., 1969): o da carta-portulano, o da carta de
graus iguais (a carta de latitudes) e o da carta de Mercator. É interessante verificar como
também Pimentel, porventura influenciado por uma leitura descuidada de Pedro Nunes,
interpreta mal a geometria da carta de latitudes ao considerar que nela os meridianos e pa-
ralelos formam uma malha quadrada, como outros tinham feito e continuarão a fazer depois
dele (Ibidem, p. 137-41):
‘Três espécies há de cartas de marear. A primeira, donde as outras tiveram princípio, é
daquelas cartas que se descrevem por rumos e distâncias, sem se atender às latitudes,
ou alturas das terras, nem às longitudes […]. A segunda espécie é daquelas cartas que se
chamam comuns ou planas ou de graus iguais, nas quais os meridianos e paralelos se
representam em linhas equidistantes que fazem quadrados iguais […]. Estas cartas se fa-
zem por derrotas e alturas, pondo-se as terras nas suas alturas do pólo e nos rumos que
se correm com outras terras […]. A terceira espécie é daquelas cartas [em que] o meridi-
ano […] se reparte em partes desiguais.’
3.2 Inconsistência geométrica
É claro de todas estas descrições que as cartas de marear que antecederam a projecção de
Mercator não eram construídas com base em qualquer sistema explícito de projecção. As
observações de latitude, rumo magnético e distância estimada efectuadas à superfície da
Terra eram transferidas directamente para o papel ou pergaminho, com escala constante,
como se aquela fosse plana. Não devido à ignorância dos cartógrafos sobre a forma do nosso
planeta, mas porque os métodos de navegação então praticados assim o exigiam. O preço a
pagar por se ignorar a redondeza da Terra foi a inconsistência geométrica, no sentido em
que a posição de um lugar sobre a carta tornou-se estritamente dependente do conjunto
particular de rotas utilizado para o representar. Por exemplo, a forma de África no planisfé-
rio de Cantino resulta de se ter utilizado, para a delinear, uma rota com origem em Lisboa,
ao longo das suas costas ocidental e oriental, sob influência da declinação magnética. A in-
formação necessária foi recolhida durante as missões de exploração realizadas durante a
segunda metade do século XV, em especial as de Diogo Cão (1482-86) e de Bartolomeu Dias
(1487-88). Se os cartógrafos tivessem utilizado, para marcar na carta a posição do Cabo da
Boa Esperança, a rota que se tornou usual depois da viagem de Vasco da Gama (a qual pas-
sava junto à costa do Brasil), aquela teria sido bastante diferente. A inconsistência geométri-
ca consiste, precisamente, na incompatibilidade entre estas duas rotas (ou quaisquer ou-
tras), para efeitos de desenho da carta.
16 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Um outro bom exemplo para apreciar até que ponto a escolha das rotas influencia a geome-
tria das cartas é a representação da Groenlândia em duas cartas portuguesas do início do
século XVI: o planisfério de Cantino e a carta de Pedro Reinel de ca. 1504 (Fig. 7). Enquanto
no primeiro caso, a posição do Cabo Farvel (no extremo meridional da Groenlândia) foi de-
terminada com base num rumo magnético e numa distância estimada com origem num pon-
to indeterminado do norte da Europa, na segunda, o mesmo cabo foi posicionado com base
na sua latitude e num rumo magnético com origem nos Açores. Repare-se na grande dife-
rença entre as posições longitudinais da ilha numa e noutra carta.
Figura 7 – A posição da Groenlândia (Cabo Farvel) na carta de Pedro Reinel de ca. 1504 (esquerda) foi
determinada utilizando uma latitude observada e um rumo magnético, com origem nos Açores, se-
gundo o método do ponto de esquadria; no planisfério de Cantino (direita) a posição da mesma ilha
foi provavelmente determinada utilizando um rumo magnético e uma distância, com origem no nor-
te da Europa, segundo o método do ponto de fantasia. Note-se, na carta de Reinel, qual teria sido a
posição do Cabo Farvel se tivesse sido utilizado o método do ponto de fantasia (triângulo branco).
O matemático Pedro Nunes revela estar consciente das limitações das cartas do seu tempo
quando alerta para o facto de nem todas as rotas serem correctamente representadas. Es-
creve Nunes, no Tratado em defensam da carta de marear (Nunes, 2002, p. 132-33):
‘E os mareantes aporfiam assi ho que nam sabem como o que sabem. Porque aquelles
lugares estam em verdadeyras rotas: que per ellas se acharam: mas nam ja as que se se-
guem: da verdadeira situaçam doutros lugares. [...] Enganados andam logo os pilotos: e
os que presumem que ho sam: se nam sam bõs mathematicos: em cuydarem que nam
há cousa mais certa na carta: que o que nella esta norte sul. E daqui vem que muitas ve-
zes vam buscar hũa terra: que na carta esta norte sul: ou per outra rota: com ho lugar
dõde he a partida: e porque a nam acham: nam sabem dar a isto outro desconto: se
nam que ou as águas os abaterã: ou a agulha lhes nordesteou ou noresteou: mas a ver-
dade era que nam hiam pello verdadeiro caminho […]’
Nunes chama a atenção para dois factos: o de nem todas as rotas se encontrarem correcta-
mente representadas nas cartas, mas somente aquelas que forem objecto de experiência; e
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 17
17
o de o Norte indicado pelas suas rosas-dos-ventos não corresponder necessariamente ao
Norte geográfico. Este assunto será a seguir analisado, a propósito do mito da ‘carta-
quadrada’.
3.3 O mito da carta quadrada
Um aspecto importante associado ao modo como as cartas do Renascimento eram utilizadas
é a assunção implícita, mencionada no texto de Pedro Nunes, de que a direcção norte-sul
estava sempre alinhada com as linhas verticais da carta e de que os trajectos a rumo cons-
tante seguidos pelos navios no mar eram representados por segmentos de recta correcta-
mente orientados. Ambas as assunções são falsas, pelas seguintes razões:
As direcções fornecidas pela agulha de marear não eram corrigidas da declinação magné-
tica. Este facto reflectia-se tanto na geometria das cartas como nas rotas que nelas eram
traçadas;
As cartas eram dotadas de uma única escala de distâncias, aplicável a toda a sua área.
Em consequência, a distância longitudinal entre lugares situados em meridianos adjacen-
tes decrescia com a latitude, reflectindo a convergência dos meridianos à superfície da
Terra;
As inconsistência geométricas que resultavam de se assumir uma Terra plana provoca-
vam distorções nas posições relativas dos lugares, as quais dependiam das rotas utiliza-
das para construir as cartas.
É muito improvável que os pilotos e cartógrafos do século XVI tivessem consciência (como
tinha Pedro Nunes) de qualquer destes factos, pelo que as cartas eram usadas como se as
três assunções fossem verdadeiras. Estreitamente relacionada com esta matéria é a ideia de
que as cartas de latitude eram construídas segundo o modelo da projecção cilíndrica equi-
distante centrada no Equador, a chamada ‘carta quadrada’. Esta interpretação, porventura
nascida de uma leitura apressada do Tratado em defensam da carta de marear de Pedro
Nunes, surgiu no século XVI e logrou propagar-se até aos nossos dias, continuando a ser re-
petida em importantes publicações internacionais não obstante o facto de os métodos car-
tográficos do Renascimento estarem bem documentados e de a geometria das cartas da
época ser consistente com os métodos de construção descritos nas fontes.
Os primeiros estudos sérios onde o mito da ‘carta quadrada’ foi contestado são de António
Barbosa, um matemático e historiador que se dedicou ao estudo da ciência náutica do tem-
po das descobertas 15. Barbosa explicou por que razão a projecção cilíndrica equidistante
não se adequava à prática da navegação e mostrou como a geometria das cartas de marear,
que resultava dos métodos cartográficos dos séculos XV e XVI, era claramente distinta da
geometria da carta quadrada (Barbosa, 1938b). Contudo, os seus estudos são sistematica-
mente ignorados em Portugal e quase desconhecidos a nível internacional. Para tal contribu-
15
Um estudo sobre o contributo de António Barbosa nesta matéria encontra-se em Gaspar (2012b).
18 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
íram a morte precoce do autor, em 1946, o facto de as suas conclusões afrontarem as teses
tacitamente aceites por notáveis historiadores do século XX e a violenta oposição que estas
suscitaram por parte de Armando Cortesão. Somente cerca de cinquenta anos depois, reco-
nheceu o também matemático Luís de Albuquerque a justeza das teses de Barbosa (Albu-
querque, 1991, p. 37). As modernas técnicas de análise cartométrica e modelação numérica
permitem-nos hoje aprofundar e complementar essas teses de uma forma que seria inima-
ginável para o seu autor, lançando uma luz mais forte sobre a complexa geometria das ve-
lhas cartas de marear 16.
Figura 8 – Rede geográfica implícita a uma carta portuguesa anónima de ca. 1471 (Biblioteca Estense
e Universitaria, Modena). Os pequenos círculos escuros representam os pontos de controlo utilizados
para georreferenciar a carta e interpolar os meridianos e paralelos. Note-se a obliquidade dos parale-
los no Golfo da Guiné (canto inferior direito), sinal inequívoco de que a região foi cartografada utili-
zando o modelo da carta-portulano, com base no método do ponto de fantasia. Figura reproduzida
de Gaspar (2010), p. 92.
16
Para uma descrição detalhada desses métodos, ver Gaspar (2010, p. 45-84). Para uma análise da geometria de algumas cartas portuguesas dos séculos XV e XVI, ver Gaspar (2010, p. 85-182; 2012b).
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 19
19
4. Análise cartométrica e simulação numérica
4.1 Análise cartométrica
Embora, como vimos atrás, os princípios envolvidos na construção das cartas náuticas anti-
gas sejam muito simples, a sua geometria é inesperadamente complexa. Tal complexidade
tem origem, não na adopção de qualquer sofisticado sistema de projecção mas nos métodos
de navegação e cartografia da época, na influência da declinação magnética, na variedade de
fontes das quais a informação foi compilada e nos erros e imprecisões que a afectam. Atra-
vés dos textos de Francisco da Costa e de outros autores, sabemos que os novos lugares
eram marcados nas cartas relativamente aos que já lá figuravam, quer através de um rumo
magnético e de uma distância (caso do modelo da carta-portulano, baseado no ponto de
fantasia), quer de um rumo magnético e de uma latitude (caso do modelo da carta de latitu-
des, baseado no ponto de esquadria).
Muito embora os pormenores técnicos relativos à construção de cada carta – designada-
mente o método utilizado para cartografar as diferentes regiões e a identificação das rotas
utilizadas para posicionar os diversos lugares – sejam, em geral, desconhecidos, informação
valiosa pode ser obtida da análise da sua geometria. Em particular, através da inspecção
visual da rede geográfica implícita a uma determinada carta, é possível identificar as áreas
em que o método do ponto de esquadria pode ter sido utilizado e aquelas em que não o foi
certamente.
A Fig. 8 mostra a carta portuguesa mais antiga que chegou aos nossos dias (ca. 1471), à qual
foi sobreposta a rede de meridianos e paralelos que lhe está implícita. Note-se como, no
Golfo da Guiné, os paralelos são representados por segmento oblíquos, sinal inequívoco de
que a região foi cartografada utilizando o modelo da carta-portulano, sob influência da de-
clinação magnética. O facto de os paralelos serem aproximadamente horizontais nas regiões
costeiras para norte de 20º N não prova, pelo contrário, que estas tenham sido representa-
das utilizando o modelo da carta de latitudes, uma vez que idêntica geometria se teria obti-
do com o velho modelo da carta-portulano se os valores da declinação magnética fossem
pequenos. E foi precisamente o que se passou na região durante o século XV, em que a de-
clinação magnética teve valores que não ultrapassaram, em geral, dois graus. Comparando a
geometria desta representação com a de cartas mais antigas, em que o modelo da carta de
latitudes não foi seguramente adoptado, verificamos que elas são quase idênticas.
20 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Figura 9 – Rede geográfica implícita ao planisfério de Cantino (pormenor). Note-se como os paralelos
na região do Golfo da Guiné são representados por segmentos horizontais aproximadamente equi-
distantes, sinal de que o modelo da carta de latitudes foi aí adoptado. Esta geometria é coerente com
o levantamento astronómico mandado realizar pelo rei D. João II, cerca de 1485. Reproduzido de
Gaspar (2010), p. 95.
Comparemos agora a malha geográfica desta carta com a do planisfério de Cantino, constru-
ído em 1502 (Fig. 9). Repare-se como os paralelos na região do Golfo da Guiné passaram a
ser representados por linhas aproximadamente horizontais e equidistantes, sinal de que
observações astronómicas de latitude foram aí incorporadas. Esta conclusão é coerente com
o levantamento astronómico ordenado por D. João II cerca de 1485, já referido atrás. Pelo
contrário, a representação do Mediterrâneo (e da Europa ocidental) é copiada de cartas
mais antigas 17.
Um outro tipo de abordagem através da qual é possível retirar informação valiosa das cartas
antigas é a análise da distribuição dos erros de latitude. O processo consiste em medir as
latitudes de uma amostra de pontos de controlo, utilizando a escala de latitudes da própria
carta, e comparar os valores encontrados com os valores correctos. A distribuição das dife-
renças encontradas (erros de latitude) com a própria latitude é então analisada. A Figura 10
ilustra as distribuições associadas à combinação de três tipos de erros típicos que afectam as
latitudes de uma carta: os erros aleatórios, associados à determinação das latitudes e ao
desenho das cartas; os erros constantes, em geral resultantes de se decalcar incorrectamen-
te um certo trecho da linha de costa copiado de uma outra fonte; e os erros de escala, asso-
ciados à incorporação de partes retiradas de fontes cartográficas com escala diferente.
17
Para uma análise mais pormenorizada ver Gaspar (2012b, p. 189-91).
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 21
21
Figura 10 – Os vários tipos de erro que afectam as latitudes nas cartas antigas. Os erros aleatórios,
em geral de pequeno valor, têm origem na determinação das latitudes e na imprecisão associada ao
desenho das cartas. Os erros constantes podem resultar de se transferir incorrectamente um trecho
da linha de costa de uma carta para outra. Os erros de escala resultam da incorporação de partes
retiradas de uma fonte cartográfica com escala diferente. Reproduzido de Gaspar (2010), p. 60.
Figura 11 – Distribuição dos erros de latitude no planisfério de Cantino (1502), para as costas euro-
peia e africana do Atlântico. A área sombreada do gráfico assinala os erros iguais ou inferiores a um
grau. Os declives das rectas de regressão são proporcionais aos erros de escala nas respectivas áreas.
Note-se os grandes erros de escala na Europa ocidental (linha e círculos vermelhos) e na região 20º S
- 30º S (linha e losangos azuis). A região compreendida entre o equador e 35º N, com pequenos erros
de latitude, é supostamente a mesma onde um levantamento astronómico foi realizado cerca de
1485. Reproduzido de Gaspar (2010), p. 151.
-1,0
-0,5
0,0
0,5
1,0
1,5
-5 0 5 10 15 20
Erro
(gr
aus)
Latitude
a. Erros aleatórios
-1,0
-0,5
0,0
0,5
1,0
1,5
-5 0 5 10 15 20
Erro
(gr
aus)
Latitude
b. Erros aleatórios + erro constante
-1,0
-0,5
0,0
0,5
1,0
1,5
-5 0 5 10 15 20
Erro
(gr
aus)
Latitude
c. Erros aleatórios + erro de escala
-1,0
-0,5
0,0
0,5
1,0
1,5
-5 0 5 10 15 20
Erro
(gr
aus)
Latitude
d. Erros aleatórios + erro constante+ erro de escala
22 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
Da análise da distribuição dos erros de latitude de uma carta pode-se extrair elementos ex-
tremamente valiosos sobre a forma como esta foi construída e sobre a origem da informa-
ção cartográfica. A Fig. 11 ilustra a distribuição dos erros de latitude no planisfério de Canti-
no, para as costas atlânticas da Europa e de África. É óbvio, da análise visual da distribuição,
que a informação representada nesta longa linha de costa foi compilada de fontes diversas.
São de assinalar, em especial, três casos: o norte da Europa (círculos e linha vermelha), onde
as latitudes são afectadas por um erro de escala de cerca de 15%; a região compreendida
entre o equador e e 35º N, onde os erros e a dispersão são pequenos, e o erro de escala é
quase nulo; e a faixa compreendida entre 20º S e 30º S, afectada por um erro de escala de
cerca de 70%. No primeiro caso, o erro de escala resulta do facto de a representação da Eu-
ropa ter sido copiada de padrões cartográficos mais antigos, não baseados em métodos as-
tronómicos; no segundo, os pequenos erros são explicados pelo levantamento mandado
realizar na costa africana por D. João II, cerca de 1485; no terceiro, trata-se de uma região
visitada por Bartolomeu Dias em 1487-88. O grande erro de escala deve-se, provavelmente,
ao facto de a representação desta faixa costeira ter sido copiada directamente de uma fonte
cartográfica de escala muito diferente.
Uma outra técnica cartométrica utilizada na análise de cartas antigas consiste na compara-
ção entre os rumos e distâncias entre lugares representados nas cartas e os respectivos valo-
res teóricos, medidos à superfície da Terra. Através desta técnica é possível avaliar a exacti-
dão das representações, determinar o método cartográfico utilizado nas diferentes áreas e
contribuir para identificar as rotas utilizadas para construir as cartas. Para que o método
possa ser empregue com eficácia é necessário conhecer previamente a distribuição espacial
da declinação magnética na área e no período em que a informação foi recolhida. Duas fon-
tes podem ser utilizadas para o efeito: as observações realizadas na época e o output de um
modelo geomagnético, baseado em observações paleomagnéticas. No primeiro caso, a me-
lhor fonte para os séculos XV e XVI são as observações realizadas por D. João de Castro em
1538, no Atlântico e Índico, que têm uma qualidade notável.
4.2 Modelação numérica
Conhecidos os métodos cartográficos da época, a distribuição espacial da declinação magné-
tica no período em que os dados foram recolhidos e alguma informação sobre as rotas marí-
timas praticadas, o processo de construção pode ser simulado numericamente. Uma boa
aproximação ao desenvolvimento de um modelo é o chamado multidimensional scaling,
uma técnica de estatística multivariada utilizada, em ciências sociais, na exploração de seme-
lhanças e dissemelhanças entre objectos. Partindo de uma amostra de distâncias entre pon-
tos num espaço n-dimensional, o processo consiste em ajustar a posição dos pontos num
espaço de menor dimensão, de modo a que as diferenças entre as distâncias iniciais (dadas)
e as distâncias finais (calculadas) entre os pontos sejam minimizadas. Este método é concep-
tualmente equivalente ao utilizado em Geodesia para ajustar as coordenadas dos vértices
geodésicos, a partir de medições das distâncias entre eles. A aplicação do mesmo princípio à
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 23
23
Cartografia foi sugerida por Tobler (1977), que introduziu o conceito de ‘projecção empírica’
para designar as representações da superfície da Terra em que técnicas numéricas são utili-
zadas para se obter determinadas propriedades, sem ter em conta as coordenadas geográfi-
cas. Tobler começou com uma amostra de distâncias entre as intersecções de uma malha
regular de meridianos e paralelos cobrindo o território dos Estado Unidos da América, ao
longo de círculos máximos (ou ‘ortodrómias’) 18, e determinou em seguida as coordenadas
planas desses pontos de modo a minimizar as diferenças entre as distâncias esféricas iniciais
e as distâncias planas finais. No mesmo trabalho, substituiu os arcos de ortodrómia por ar-
cos de loxodrómia e aplicou o processo à representação do Mediterrâneo e Mar Negro, su-
gerindo que este poderia constituir uma boa analogia da construção das cartas náuticas me-
dievais.
Figura 12 – Interface da aplicação EMP – Empirical Map Projections.
Mais tarde, generalizei o conceito introduzido por Tobler a distâncias, direcções e latitudes,
sob o efeito da declinação magnética (Gaspar, 2008b; 2010; 2011). A Fig. 12 mostra o inter-
face duma aplicação informática, o modelo EMP (‘Empirical Map Projections’), desenvolvida
18
Uma ortodrómia é o arco de círculo máximo que une dois lugares sobre a superfície esférica da Terra, sobre o qual é definida a distância mais curta entre eles. Uma loxodrómia é uma linha de rumo constante à superfície da Terra, isto é, uma linha que faz um ângulo constante com todos os meridianos. É este o trajecto normalmen-te utilizado em navegação marítima.
24 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
com o objectivo de simular a geometria das cartas náuticas antigas 19. O input do modelo é
um conjunto de pontos definidos através das suas coordenadas geográficas, a partir das
quais distâncias e direcções entre eles são calculadas; o output é uma representação carto-
gráfica das linhas de costa e da malha de meridianos e paralelos, interpolados a partir das
posições ajustadas dos pontos.
O input do modelo pode ser constituído pelos pontos de intersecção de uma malha de meri-
dianos e paralelos cobrido a área de interesse, como fez Tobler (‘Use geographic grid’, no
interface), ou por um conjunto de trajectos à superfície da Terra, simulando as rotas utiliza-
das na construção das cartas antigas (‘Use track’). Dois tipos de linhas esféricas podem ser
utilizados na simulação: ‘ortodrómias’ (arcos de círculo máximo) e ‘loxodrómias’ (linhas de
rumo constante). Para o caso das loxodrómias, duas variantes são consideradas: ponto de
fantasia (‘point of fantasy’), em que as posições são calculadas através do rumo e da distân-
cia entre os pontos à superfície da Terra, como nas cartas-portulano; e ponto de esquadria
(‘set point’), em que as posições são calculadas através das latitudes e rumos (ou distâncias)
entre os pontos, como na carta de latitudes 20. Uma terceira variante (‘mixed model’) é con-
siderada, a fim de simular as representações em que os dois métodos cartográficos são utili-
zados. Todos os rumos calculados pelo modelo podem ser afectados pela declinação magné-
tica (‘Magnetic declination’), cuja distribuição espacial para várias épocas é fornecida.
No fundo da caixa ‘Method’ existe uma escala que permite atribuir um peso relativo w às
distâncias e direcções, para o caso do método do ponto de fantasia. Par w=0, somente as
distâncias são consideradas no processo de optimização, tal como Tobler propôs em 1977;
para w=1, somente as direcções são consideradas; para valores de w entre 0 e 1, ambas são
consideradas. É também possível impor certas restrições aos pares de pontos utilizados co-
mo input do modelo (‘Constraints’). Por exemplo, só considerar os troços com origem num
certo ponto (‘Only from position’) ou restringir o domínio a distâncias inferiores a determi-
nado valor (‘Distances les than’), a única restrição que é relevante no presente contexto.
Depois de se ter escolhido os limites geográficos da área a representar (‘Geographic grid’) e
considerado todas as outras opções relativas ao método, declinação magnética, etc., o botão
‘Plot’ é utilizado para iniciar o programa e apresentar o resultado na forma de um mapa. Um
processo iterativo é então desencadeado, no sentido de as coordenadas iniciais dos pontos
escolhidos como input serem gradualmente ajustadas de forma a minimizar a diferença en-
tre os rumos e distâncias iniciais e os rumos e distâncias finais.
Dois exemplos de aplicação são a seguir apresentados, ambos relativos ao planisfério de
Cantino (1502): a simulação da geometria do Mediterrâneo e Mar Negro; e a simulação da
geometria do Atlântico e Índico ocidental.
19
Na realidade, a aplicação pode ser utilizada para simular qualquer tipo de representação cartográfica, a partir de distâncias e direcções definidas ao longo de ortodrómias e loxodrómias. Vários exemplos de aplicação estão em Gaspar (2011). 20
Só em casos excepcionais, quando o rumo é muito próximo de Este ou Oeste, se utiliza a distância para de-terminar o ponto de esquadria.
A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA 25
25
Mediterrâneo e Mar Negro
Uma vez que a representação desta região no planisfério de Cantino foi copiada de cartas-
portulano mais antigas, trata-se, neste caso, de simular a aplicação do método do ponto de
fantasia. Os pontos a utilizar na simulação são as intersecções de uma malha geográfica de-
finida para a área de interesse 21. No entanto, nem todos os pares de pontos são considera-
dos, uma vez que é imposta uma distância máxima que reflecte o comprimento das mais
longas rotas marítimas praticadas no Mediterrâneo. Os valores de declinação magnética a
utilizar na simulação são os fornecidos por um modelo geomagnético para o ano de 1200. A
escolha desta data justifica-se pelo facto de todas as cartas-portulano até cerca de 1600
apresentarem o Mediterrâneo rodado de um ângulo próximo do valor médio da declinação
magnética no início do século XIII, quando as primeiras representações foram eventualmen-
te produzidas.
Figura 13 – Representação do Mediterrâneo e Mar Negro no planisfério de Cantino (esquerda) e num
output do modelo EMP (direita). Os vectores representam o deslocamento do nodo da malha geo-
gráfica relativamente aooriginal. As áreas dos círculos são proporcionais a esses deslocamentos. Re-
produzido de Gaspar (2011), p. 241.
Na Fig. 13 compara-se o output da simulação (à direita) com a malha geográfica implícita no
planisfério de Cantino, para a região do Mediterrâneo (à esquerda). Esta é a melhor solução
de entre um conjunto de outputs em que se fez variar vários parâmetros do modelo: a época
de referência da declinação magnética (1200); a distância máxima entre pontos (cerca de
15º ≈ 1700 km); e o peso relativo entre direcções e distâncias (w=0,8).
Atlântico e Índico
Neste caso, trata-se de simular a representação cartográfica de uma área muito maior, onde
se sabe terem sido adoptados os dois modelos: o modelo da carta-portulano para a Europa,
Mediterrâneo e Mar Negro; e o modelo da carta de latitudes para o Atlântico e Índico, a sul
do estreito de Gibraltar. Em vez de, como no caso anterior, se utilizar as intersecções da ma-
lha geográfica como input, foi fornecido um conjunto de rotas, supostamente semelhantes
às que foram empregues para construir o planisfério. Várias simulações foram efectuadas,
fazendo variar os valores de alguns parâmetros. A Fig. 14 (à direita) mostra o resultado que
21
Esta abordagem justifica-se pelo facto de a trama de rotas marítimas no Mediterrâneo ser muito densa, do que resulta o resultado final ser fracamente dependente dos trajectos considerados.
26 A MATEMÁTICA DA NAVEGAÇÃO E DA CARTOGRAFIA
mais se aproxima da malha geográfica implícita do planisfério de Cantino (à esquerda). Na
simulação utilizaram-se os valores de declinação magnética observados por D. João de Cas-
tro em 1538, extrapolados para a data de construção do planisfério e complementados com
os fornecidos por um modelo geomagnético (Korte e Constable, 2005). Na mesma imagem
são representadas as rotas utilizadas como input. Note-se, em particular, a boa simulação do
Mediterrâneo e da região do Mar Vermelho, onde a malha se encontra distorcida por efeito
da declinação magnética.
Figura 14 – Representação dos Oceanos Atlântico e Índico no planisfério de Cantino (esquerda) e
num output do modelo EMP (direita). Na figura da direita encontram-se representadas as rotas utili-
zadas na simulação, supostamente representativas das que foram empregues na construção da car-
ta. Note-se a distorção dos meridianos na região do Mar Vermelho, bem reproduzida pelo modelo.
20N
0º
0º
20S
40N
60N
20W
20E
60E
40E
40W
60W
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27
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