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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS (PPGARC) STEPHANE LOUISE VASCONCELOS DAMASCENO REFLEXÕES ACERCA DE UMA DRAMATURGIA DA “CARA PINTADA” Orientação: Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo Natal/RN 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS (PPGARC)

STEPHANE LOUISE VASCONCELOS DAMASCENO

REFLEXÕES ACERCA DE UMA DRAMATURGIA DA “CARA PINTADA”

Orientação:

Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo

Natal/RN

2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Damasceno, Stephane Louise Vasconcelos.

Reflexões acerca de uma dramaturgia da "Cara pintada" / Stephane Louise Vasconcelos Damasceno. - 2019.

191 f.: il.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós

Graduação em Artes Cênicas (PPGARC), Natal, 2019.

Orientador: Dr. José Sávio de Oliveira Araújo.

1. Teatro - Dissertação. 2. Nova dramaturgia - Dissertação. 3.

Caracterização - Dissertação. I. Araújo, José Sávio de Oliveira.

II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 792.024.3

Elaborado por Kaline Bezerra da Silva - CRB-15/327

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STEPHANE LOUISE VASCONCELOS DAMASCENO

REFLEXÕES ACERCA DE UMA DRAMATURGIA DA CARA PINTADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do

título de Mestre.

Área de concentração: Práticas Investigativas da

Cena: Poéticas, Estéticas e Pedagogias.

Orientador: Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo.

Natal/RN

2019

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STEPHANE LOUISE VASCONCELOS DAMASCENO

REFLEXÕES ACERCA DE UMA DRAMATURGIA DA CARA PINTADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Mestre. Área de

concentração: Práticas Investigativas da Cena: Poéticas, Estéticas e Pedagogias.

Orientador: Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo.

BANCA EXAMINADORA

Professora Dr.ª Adriana Vaz Ferreira Ramos

– Membro Externo –

Professor Dr. Jefferson de Araújo Fernandes

– Membro Interno (UFRN) –

Professor Dr. José Sávio de Oliveira Araújo (Orientador)

– Membro Interno (UFRN) –

Natal (RN), 22 de março de 2019.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço...

A Ravi, filho querido e maior aventura que vivi até hoje, inesperado presente do

universo, em meio a esse processo tão atribulado e devastador;

Ao professor Makarios Maia Barbosa, eterno Mestre, que me colocou no caminho da

pesquisa e que sempre buscou no âmago do meu ser a fagulha da criação, através da

qual posso me descobrir e a tantas outras coisas;

À minha amada família, suporte afetivo que me mantém firme na jornada; sobretudo à

minha mãe Rosangela Vasconcelos e minhas irmãs Roberta e Gilmara; e as queridas

Gerlane Silva e Thaíz Zilte, sem as quais nada disso seria possível; e ao meu pai

Gilmar Xavier Damasceno – que já não está presente, mas que também teve parte

marcante nessa trajetória – e seu irmão, meu tio Gildo Xavier Damasceno, cujos

exemplos de generosidade, justiça e amor desmedido me acompanharão, servindo de

guia;

Em especial ao meu grande amor, Arandú Tessaporam Pinheiro, um companheiro de

verdade, e nossos filhos Kaluanã e Ravi;

Aos amigos Everson Oliveira da Cruz e Priscilla Dayanne silva de Oliveira, exemplos

de generosidade e altruísmo; pessoas que quero ter comigo para toda a vida;

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte;

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGARC da UFRN;

À CAPES, cujo investimento facilitou a dedicação a esse trabalho;

Ao professor Dr. José Sávio de Oliveira Araújo, meu orientador, pela crença e

autonomia votadas a esse trabalho;

Aos professores Dr. Jefferson Fernandes e Dr.ª Adriana Vaz Ramos, cujos

apontamentos foram decisivos para a transfiguração e o transcurso do que

investigamos;

Aos queridos actantes investigados: Híkel Brawn, Sebastião Silva, Henrique Fontes e

César Ferrario, que gentilmente compartilharam conosco um pouco de suas trajetórias

nos palcos e nas salas de ensaio;

Às “vozes de outros cantos”, cujas canções ressoam através de nós e de tantos outros;

Ao Comboio de Teatro e a cada uma de suas componentes, por serem o meu “lugar”

enquanto artista, e compreenderem as necessidades, distanciamentos, retornos,

mudanças;

Aos colegas “chafurdentos” da turma do PPGARC 2016, com os quais pude aprender

muito;

Ao presidente Luís Inácio Lula da Silva – o Lula; e à Presidenta Dilma Rousseff, cujas

políticas de acesso ao ensino superior de qualidade tornaram o sonho do diploma

possível.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao professor Makarios Maia Barbosa, querido amigo e mestre,

cuja crença, apoio, cobranças e amizade foram fundamentais para a compreensão da

maquiagem como algo que está além do que foi convencionado e para as reflexões que

ora fazemos sobre esse tema. Eu posso dizer com convicção que, sem suas provocações

e ensinamentos minha formação, inclusive pessoal, não seria a mesma.

7

O ator pode incluir, na construção de seu corpo cênico, extensões de

várias ordens, como maquiagens, adereços, figurinos, entre outros, ou até

mesmo pode abrir mão destes recursos para desnudar-se diante do

espectador, num estado de representação que evita qualquer estado de

ilusão [...] sendo capaz de mobilizar muitos conhecimentos necessários

para se fazer presente em cena e para o estabelecimento e manutenção de

um pacto simbólico com o espectador.

A Cena Ensina – José Sávio de Oliveira Araújo (2005, p. 81).

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DAMASCENO, Stephane Louise Vasconcelos. Reflexões acerca de uma dramaturgia

da “cara pintada”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientação do Prof. Dr. José

Sávio de Oliveira Araújo. Natal (RN): UFRN/CCHLA/PPGArC, 2019.

RESUMO

Em meio às diversas pesquisas que se realizam acerca das cenografias e das tecnologias

da cena, ainda é possível pensar uma “dramaturgia da cara pintada”? As reflexões que

fazemos em torno de uma dramaturgia da “cara pintada” assentam-se na área das Artes

Cênicas, como um estudo teatral alinhado à perspectiva de um teatro que compreenda a

imagem e o corpo para além do entendimento que tivemos na modernidade, ou seja,

compreendemos o corpo como percepção e sentido e a imagem, como um dispositivo e

uma presença. Para tanto, fazemos uso da percepção, aos moldes da fenomenologia

(Merleau-Ponty, 1996); da experiência como método de produção de conhecimento

(Larossa, 2002) e da dramaturgia como tessitura da teatralidade (Pavis, 1999; 2003;

2017), a partir de uma semiologia (Barthes, 1987; 2007) do mundo contemporâneo. Isso,

porque reconhecemos a “pintura da cara” como um fenômeno que está para além da

compreensão da maquiagem enquanto tecnologia de cena ou aparato visual ou técnica

cenográfica ou, mesmo, estética da composição plástica da personagem. O presente

trabalho considera a “cara pintada” um dos momentos mais significativos da criação

teatral contemporânea, apresentando-a como uma possível solução para o problema da

maquiagem como uma poética da cena. Partimos da investigação do ato de pintar-se como

poética do sujeito para discutir a importância da pintura da cara enquanto elemento

civilizatório humano. Para tal, organizamos uma breve “cosmogonia” acerca das

narrativas que estes constroem através de suas pinturas para construir significados na

sociedade em que estão inseridos, através de um “sistema da linguagem” que se organiza

na “figura” através da pintura. A partir daí, buscamos investigar a possibilidade de uma

leitura da “experiência” da pintura do rosto e dos aspectos de seu uso na cena teatral,

como um fenômeno dramatúrgico. Para isso, tentamos discutir a maquiagem, em seu

sentido mais amplo, como manifestação da teatralidade e o fazemos relatando e

dialogando com fenômenos de composição plástica a partir de experiências práticas de

actantes. Acreditamos na cara pintada como uma síntese conceitual cíclica da mise-en-

scène: drama + ação + tempo/espaço + imagem + percepção + leitura + comoção +

entendimento + novo drama. Dessa forma, no hall das novas dramaturgias, a cara pintada

pode ser compreendida como uma poética teatral da cena.

Palavras-chave: Teatro; Nova Dramaturgia; Caracterização; Maquiagem teatral;

Imagem.

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DAMASCENO, Stephane Louise Vasconcelos. Reflections about a dramaturgy of the

"painted face". Master's thesis. Graduate program in Arts os Scene. Federal University

of Rio Grande do Norte. Guidance from Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo. Natal

(RN): UFRN/CCHLA/PPGArC, 2019.

ABSTRACT

Amid the many researches that are being done about the scenography and technologies

of the scene, is it still possible to think of a “painted face dramaturgy”? The reflections

we make around a painted face dramaturgy are based on the Performing Arts area, as a

theatrical study aligned with the perspective of a theater that understands the image and

the body beyond the understanding we had in modernity, or that is, we understand the

body as perception and meaning and the image as a device and a presence. To do so, we

make use of perception, along the lines of phenomenology (Merleau-Ponty, 1996); of

experience as a method of knowledge production (Larossa, 2002) and of dramaturgy as a

fabric of theatricality (Pavis, 1999; 2003; 2017), from a semiology (Barthes, 1987; 2007)

of the contemporary world. This is because we recognize “face painting” as a

phenomenon that goes beyond the comprehension of makeup as scene technology or

visual apparatus or scenographic technique or even aesthetics of the plastic composition

of the character. The present work considers the "painted face" one of the most significant

moments of contemporary theatrical creation, presenting it as a possible solution to the

problem of makeup as a poetic of the scene. We started by investigating the act of painting

as a subject's poetics to discuss the importance of face painting as a human civilizing

element. To this end, we organized a brief "cosmogony" about the narratives they

construct through their paintings to construct meanings in the society in which they are

inserted, through a "language system" organized in the "figure" through painting. Starting

there we look for an investigation of the possibility of face painting and it's uses in

theatrical scene experience as a dramaturgical phenomenon. Therefor we try to talk about

stage make up we talk about makeup in its broadest sense as a theatricality manifestation

and we do it by reporting and dialoguing with plastic composition phenomenons from

actants' practical expericences. We believe in the painted face as a cyclical conceptual

synthesis of mise-en-scène: drama + action + time / space + image + perception + reading

+ commotion + understanding + new drama. Thus, in the hall of the new dramaturgies,

the painted face can be understood as a theatrical poetic of the scene.

Keywords: Theater; New Dramaturgy; Caracterization; Stage make-up; Image.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............. 10

DO OBJETO E SEUS RECORTES ............. 12

DO CAMINHO TRILHADO E DO QUE SURGE À FRENTE ............. 13

DE “CARA LIMPA” OU A APROXIMAÇÃO COM O NOVO OBJETO ............. 19

A EXPERIÊNCIA COMO PERCEPÇÃO E ANÁLISE ............. 27

DA INVESTIGAÇÃO E SEUS APORTES METODOLÓGICOS ............. 33

CAPÍTULO I – BREVE COSMOGONIA DA CARA PINTADA ............. 38

1.1 A DIMENSÃO TRIBAL ............. 42

1.1.1 Grupos de “nativos” ............. 44

1.1.2 Grupo de “naturalizados” ............. 56

1.2 O LÚDICO ESSENCIAL ............. 60

1.3 A BELEZA COMO POLÍTICA CIVILIZATÓRIA ............. 67

1.4 A SUBJETIVAÇÃO DO DESEJO DE SER ............. 85

CAPÍTULO II – O FENÔMENO DA “CARA PINTADA” ............. 94

2.1 “OUTRO TEATRO”: VOZES DE OUTROS CANTOS ............. 97

2.1.1 O Teatro do Século XX ou “Um canto de revolta pelos ares” .......... 97

2.1.1.1 Songs: Brecht e o Teatro Épico ............. 98

2.1.1.2 Do Teatro “do absurdo” e do “transe” do corpo teatral ...... 103

2.1.2 Da pele e sua sacralização ............. 106

2.1.2.1 A Flor ............. 107

2.1.2.2 A Pele ............. 109

2.1.2.3 A Flor na Pele ............. 114

2.2 DRAMATURGIA: TEATRALIDADE DA FIGURA E DA PRESENÇA ......... 123

2.2.1 Teatralidade: contemporaneidade e leitura ............. 128

2.2.2 Dramaturgia: figura, presença e dramaturgia visual ............. 131

CAPÍTULO III – POR UMA DRAMATURGIA DA “CARA PINTADA” ... 137

3.1 QUATRO ACTÂNCIAS DA “CARA PINTADA” ............. 139

3.1.1 Travessia ............. 139

3.1.2 Saudades Z(é) ............. 145

3.1.3 Jacy ............. 153

3.1.4 Sua Incelença, Ricardo III ............. 157

CONCLUSÃO ............. 165

REFERÊNCIAS ............. 169

ANEXOS ............. 175

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INTRODUÇÃO

Não, solidão!

Hoje não quero me retocar

Nesse salão de tristezas

Onde as outras penteiam mágoas...1

Descobre o peito

Pinta a boca e beija o espelho

Que reflete a silhueta que você acabou de descobrir... 2

Venho para a festa, sei que muitos têm na testa

O deus-sol como um sinal, um sinal... 3

Que coisa incrível o meu coração

Todo pintado e nessa solidão

Espera a hora de sonhar... 4 5

As reflexões que ora fazemos em torno de uma dramaturgia da “cara pintada” são

fruto de uma pesquisa que durante um longo tempo se pautou pela tentativa de

compreensão do exercício criativo do actante 6 quando maquiador e da ação de

1 Canção A Mais Bonita (Chico Buarque – 2003).

2 Canção Da Menina (Tulipa Ruiz – 2010).

3 Canção Palco (Gilberto Gil – 1981).

4 Canção Sonhos De Um Palhaço (Antônio Marcos – 1980).

5 As notas referentes às canções utilizadas neste trabalho foram colhidas no Dicionário Cravo Albim da

Música Popular Brasileira, acessadas em: <http://dicionariompb.com.br>.

6 Doravante, utilizaremos a expressões actante ou actantes, sem grifo tipográfico, para nos referir a atores

e atrizes, considerando o trabalho desses sujeitos para além da presença física na cena, mas como poética

de construção de personagens, personas, caracteres, simulacros etc., na acepção que a semiologia do teatro

12

“construção de um rosto” para sua personagem, partindo da hipótese de que esta seria

uma das manifestações da poética de atuação. O que buscávamos era perceber nuances

do fenômeno criativo no gesto de compor a maquiagem para ser uma força actante na

personagem.

A pesquisa que realizamos para este trabalho se reconhece dentro da área das Artes

Cênicas como um estudo teatral. Aceitamos que a maquiagem – em seu sentido mais

amplo – é a pintura da cara: o ato, o espírito, o significado da coisa. Acreditamos que a

“cara pintada” é mais que uma tecnologia de cena, que um aparato visual, que uma técnica

cenográfica, que uma estética da composição plástica da personagem. O presente trabalho

considera a “cara pintada” um dos momentos mais significativos da criação teatral

contemporânea.

Partimos de uma problematização desse novo Objeto de estudo, considerando a

“cara pintada” como a experiência de uso da pintura do rosto e dos seus aspectos de

composição, como uma dramaturgia. Acatamos o pressuposto de que há, de fato,

potencialidade dramatúrgica nos processos de composição de personagens de actantes e,

sobretudo, de actantes que criam (constroem e/ou realizam) a caracterização de suas

personagens, compondo (ou auxiliando na composição de) figurino e maquiagem.

Nossa compreensão advém do fluxo contestatório da recente história do teatro,

não apenas no tocante a discussão “texto x cena”, mas adentrando aos processos de

criação, as ramificações dos estudos e, sobretudo, a dimensão política, humanitária desse

teatro que se chama contemporâneo.

Tal investigação esteve centrada nas experiências e percepções artísticas da

própria pesquisadora como Corpus investigativo. No entanto, a pesquisa havia caído em

um fluxo repetitivo, partindo e chegando ao mesmo lugar, devido à constituição do recorte

que, há algum tempo, tornara a proximidade da pesquisadora com o Objeto pesquisado

um problema, uma vez que tanto o recorte do Objeto dentro do Corpus, quanto as escolhas

dos fundamentos Teórico-Metodológicos nos levaram ao deslize epistemológico da

“cegueira”, da perda de criticidade, incorrendo em um fenômeno endógeno de negação

das descobertas da pesquisa e do valor do Método.

tem utilizado tal expressão. Nossa intenção é unificar numa mesma percepção os agentes da cena, quer

sejam atores ou brincantes ou sacerdotes etc. O professor Patrice Pavis descreve o esquema actancial (em

que o actante é o agente da ação) como tem sido utilizado na semiologia teatral. (PAVIS, 1999, p. 8).

13

No último semestre (2018.2), já com os prazos de encerramento da pesquisa quase

esgotados, discutimos com outros pesquisadores acerca do desânimo e das perdas que

haviam sido significativas e, quando da Qualificação para defesa, o trabalho foi

duramente criticado. O que vinha se desenvolvendo apontava, per si, as fragilidades

encontradas no trabalho. Generosamente, a banca de qualificação elencara os diversos

rumos que a pesquisa poderia tomar, nos fazendo refletir com profunda criticidade sobre

o que havíamos realizado.

A partir de então, veio a ocorrer uma cisão profunda na base epistemológica da

pesquisa. Aqui, peço licença para trazer a voz do texto para a primeira pessoa. Com a

ruptura, do ponto de vista pessoal, precisei me reordenar, uma vez que foi dolorido

(avassalador, mesmo!) o reconhecimento das falhas e da inoperância que tomara conta do

trabalho. Busquei refúgio longe do que havia construído como Ethos do Mestrado.

Precisei me afastar. Mas voltei. Com a certeza do valor e da seriedade com que tratamos

nossa pesquisa.

DO OBJETO E SEUS RECORTES

Quando se fala em afastamento, ao que me parece, nos trabalhos acadêmicos, é

comum ocorrer a compreensão de que só há uma forma de “afastar-se”, qual seja, romper

o fluxo conectivo que existe entre o Objeto e o Sujeito – a coisa em si e o ser em si. Como

se o pudéssemos. No entanto, não é este o único modo de se afastar. Não é este o único

afastamento de que se precisam munir os investigadores. Há afastamentos de cunho

formal, de caráter metodológico, exatamente para aludir ao que, em si, é ontológico ao

objeto e epistemológico ao sujeito e à pesquisa.

Sendo assim, não se trata de promover uma “discórdia” entre Objeto e Sujeito.

Isso, toda a Filosofia da Ciência, na contemporaneidade, já discute. Trata-se, então, de

promover um distanciamento – ao modo operado no Teatro Épico (FERNANDES, 2006)

– como posicionamento formal do Sujeito frente ao seu Objeto e à carga sensível e, da

mesma forma, semântica que este deve destinar à sua pesquisa.

Problematizar o que se apresentara como “problema da pesquisa” tornara-se o

caminho possível. Mas, como problematizar algo que, naquele instante, já não se dava a

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conhecer, nem a perceber? Começamos daí. Retomamos a leitura do projeto inicial e, em

seguida, das suas diversas mudanças. E, com isso, montamos a seguinte problemática:

1ª) Qual é o Corpus da Pesquisa? Em que universo e, mais especificamente, em

que área a pesquisa se localiza? Que fontes e materiais podem corroborar sua realização?

O que se ordenara, em mim, como motivação para tal investigação? Havia valor e

profundidade em tudo o que já havia sido organizado do Corpus anterior? Que Corpus se

elabora a partir da reflexão crítica realizada?

2ª) Qual é (era/será) o Objeto de Pesquisa? Que recortes foram feitos para nutrir

tal Objeto? Poderíamos utilizar os recortes anteriores? O Objeto recortado se dava à

qualidade de uma investigação em nível de Mestrado? Que Objeto emerge a partir dessa

problematização?

3ª) Que hipóteses nascem a partir do novo Objeto? São hipóteses ou pressupostos

refletidos que levam a Questões Problemas? Que Questões? Que Questão é central ao

novo Objeto recortado?

4ª) Considerando a reforma que essa problematização provocou, que novas fontes

de investigação se estabeleceram? Que fontes são primárias? Que fontes, mesmo de

segunda ou terceira ordem, podem corroborar a densidade da investigação?

5ª) Para tais fontes irrefutáveis, que Método utilizar? Um Método ou um

“arcabouço metodológico”? Que metodologias nos levariam a concretude material nessa

investigação?

6ª) E quais os fundamentos que este novo Objeto exige? Que aporte teórico se dá

ao enquadramento das metodologias usadas na nova organização da pesquisa? Quais as

novas Referências e como dialogam com os resultados da investigação produzidos

anteriormente?

DO CAMINHO TRILHADO E DO QUE SURGE À FRENTE

Foi fundamental dispor de um tempo de cuidados e reflexão para a reorganização

da estrutura da pesquisa. E, considerando que o recorte do Objeto de estudo, na maneira

que estava, não bastaria para fazer avançar a produção de conhecimento na Área, se fazia

necessário verticalizar ou mudar o paradigma que vínhamos pesquisando.

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Compreendemos o termo “paradigma” na exata acepção que nos legou o cientista

e pensador americano, Thomas S. Kuhn (1998), ou seja, “[...] conjunto que dá à tradição

o seu caráter e a sua autoridade sobre o espírito científico [...]” ou mais propriamente, um

elemento que organize por “semelhança” ou “molde” uma carga significante de valores

que fazem o objeto (científico ou não) ser reconhecidamente aceito no conjunto da

comunidade (científica ou não) em que é usado como base de compreensão ou método.

Segundo Kuhn, a comunidade científica acata certos dados e modelos “[...] através da

educação ou da literatura a que são expostos posteriormente, muitas vezes sem conhecer

ou precisar conhecer quais as características que proporcionaram o status de paradigma

comunitário a esses modelos [...]”. É, portanto, esse substrato significante que unifica

linguagens e leituras em torno do mesmo objeto ou “[...] a existência de um corpo

subjacente de regras e pressupostos [...]”, que acatamos como “paradigma”. Até mesmo

por sua condição de motivador das “revoluções” (científicas ou não) de períodos em

períodos, “[...] quando os paradigmas são primeiramente atacados e então modificados

[...]”. (KUHN, 1998, p. 67-76).

Assim, retomamos a investigação do que vinha sendo feito no campo da

caracterização cênica – com enfoque na maquiagem, mas compreendendo sua

abrangência para corpo e cena – em que examinamos os trabalhos publicados em um

recorte de dez anos (desde 2008 até 2018) por diversos pesquisadores da área, dentre eles

Adriana Vaz Ramos (2008, 2013), Renata Cardoso da Silva (2008a, 2008b), Mona

Magalhães (2009; 2010; 2018), José Roberto Santos Sampaio (2015) e Micheline

Penafort Pinheiro (2016), cujos trabalhos se dedicam a compreender a poética da

maquiagem e/ou da caracterização como elemento insigne da cena/obra artística.

Procurando seguir uma ordem cronológica nas publicações feitas pelos

pesquisadores citados, mencionaremos brevemente a quê suas pesquisas se dedicam, a

fim de contextualizar o lugar em que a pesquisa na área de caracterização artística se

encontra no Brasil atualmente. No entanto, frisamos que não aprofundaremos nesses

trabalhos, de modo que para melhor conhecimento de cada pesquisa, sugerimos ao leitor

que busquem as fontes citadas.

Considerando o espetáculo artístico como uma obra sistêmica, RAMOS afirma

em sua tese O design de aparência de atores e a comunicação em cena (2008) que para

compreender uma obra artística é preciso que se faça uma leitura relacional de seus

elementos e que, desta via, no que concerne à caracterização “[...] não é mais possível

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continuar com o pensamento redutor que se volta apenas para o figurino [...]” (Idem, p.

6-7), uma vez que nas obras contemporâneas – especialmente, nas artes do espetáculo –

a complexidade dos elementos postos em cena requer a compreensão dos campos de

significação de cada elemento, em particular, e sua manifestação no conjunto em que se

encontra inserido.

A partir da problematização do uso do termo “figurino”, para definir a aparência

dos actantes em cena, bem como sua distinção dos demais elementos (maquiagem,

cabelos, adereços), a autora defende que, sendo a caracterização visual dos actantes

compreendida como linguagem, esta precisa de uma denominação que não particione seus

níveis de construção de sentido, compreendendo a complexidade do jogo entre as partes

para se compor como um único elemento expressivo em cena, e, ainda, um elemento que

se torna expressivo através da imagem. Por isso, cunha o termo “caracterização visual de

atores”.

Portanto, podemos considerar que, segundo RAMOS (2008), o “Design de

aparência de Atores” agencia a caracterização visual deles, não apenas criando uma

vestimenta (figurino), mas elaborando toda a concepção de símbolos que o actante trará

para a cena, a partir de sua imagem. Ou seja, a autora considera o “figurino [como] uma

informação preexistente, já dada, enquanto o design de aparência de atores é uma nova

informação construída” (Idem, p. 43).

No livro de mesmo nome, RAMOS (2013) mantém o Corpus e seu recorte,

trazendo os principais pontos da discussão de maneira um pouco mais suscinta e

atentando para o caráter de desdobramento de sua obra, que segundo a autora “apenas se

inicia com esta pesquisa” (RAMOS, 2013, p.133).

Em sua dissertação O Mambembe: uma experiência de maquiagem na

formação de atores (2008), Renata Cardoso da SILVA discorre sobre a criação do rosto

do personagem-tipo a partir da experiência de composição da caracterização visual do

espetáculo O Mambembe – baseado no texto de mesmo nome, de Arthur Azevedo –,

realizada em processo participativo com seus alunos e com a professora do componente

curricular de interpretação (que dirigiu o espetáculo, desenvolvido na Escola de Teatro

da UFBA – onde a autora atua como professora de maquiagem).

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SILVA (2008) parte de princípios da fisiognomonia 7, que relaciona os traços da

face humana com traços de caráter, investigando a aplicação desses estudos ao longo dos

séculos em diferentes grupos sociais, como suporte para guiar os alunos em suas criações,

e avalia o percurso metodológico desse processo, bem como os resultados a que chegaram

na obra final.

O trabalho desenvolvido com os alunos rendeu ainda o artigo O uso da

fisiognomonia na criação de maquiagens para personagens-tipo (2008), que resume

o processo desenvolvido e analisado pela pesquisadora em seu ofício de professora de

maquiagem na UFBA.

Mona MAGALHÃES, em sua tese de doutorado intitulada Maquiagem e Pintura

Corporal: uma análise semiótica (2010) configura – grosso modo – a maquiagem e a

pintura corporal como pertencentes ao território da linguagem, considerando a função

semiótica da pele como um suporte do “envelope corporal” 8, uma vez que nela será

inscrita a enunciação expressiva da caracterização, através da maquiagem ou da pintura

corporal.

Em seu artigo A construção da identidade figurativa do personagem na peça

teatral O Carrasco: um processo semiótico (MAGALHÃES, 2009) publicado nos anais

da ABRACE, a autora reforça o que havia dito em sua tese (MAGALHÃES, 2010),

aplicando o conceito acima descrito à análise do espetáculo O Carrasco, do Grupo Amok

de Teatro, em que usa os exemplos das caras pintadas das personagens para reforçar a

práxis enunciativa da construção da identidade figurativa das mesmas, sobretudo o

personagem principal, que dá nome ao espetáculo.

7 Fisiognomonia é uma “[...] teoria citada e aprovada por Goethe, que o desenho do perfil dos rostos

humanos expressasse a qualidade mais ou menos sutil ou civilizada de seus portadores. Martine Dumont,

num lúcido artigo de análise desse episódio pouco conhecido das idéias[sic] “físico-morais” do Ocidente,

sugere que se estivesse assim procurando reintroduzir pela mão de uma teoria científica, naturalizante, as

recém desacreditadas teorias tradicionais da diferença dos entes políticos”. (DUARTE, 2004, p. 10).

8 O psicanalista francês Didier Anzieu explica que “Envelope é uma noção abstrata que exprime o ponto

de vista de um observador minucioso, mas de fora” (1989, p.67). Na semiótica, de acordo com Fontanille,

o sujeito, a partir da experiência sensorial, passa a perceber seu próprio envelope, tanto no campo transitivo

quanto no recursivo. Desse modo, todos os objetos palpáveis, odoríficos, auditivos ou visíveis são dotados

de envelopes e podem envolver qualquer coisa com suas capas englobantes. Além disso, “o envelope

converte-se em uma parte característica de algo transformado em actante do mundo sensível” (2004a, p.

109). O envelope corporal seria “o resultado da energia do mundo ou do corpo-carne, aplicada à matéria

corporal, tratada como forma reativa e resistente” (FONTANILLE, 2004a, p.128). (MAGALHÃES, 2010,

p. 52).

18

Em sua última publicação analisada nesse trabalho, o artigo Guernica Bodypaint

(2018), MAGALHÃES aborda a pintura corporal como um meio de expressão política,

explanando sobre a relação do corpo com o espaço e da pintura corporal como dispositivo

de interferência política com esse espaço através da ação artística – também intitulada de

Guernica Bodypaint (2017) – realizada pelo grupo de pesquisa do Projeto de Extensão

Núcleo de Criação da Escola de Teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UNIRIO), em que foi reproduzida, através de pintura corporal, a obra Guernica do pintor

espanhol Pablo Picasso em um ponto de importantes embates políticos nacionais

localizado na Cinelândia, cidade do Rio de Janeiro (RJ).

Em sua tese de doutorado Maquiagem Teatral: uma experiência metodológica

de ensino na licenciatura em teatro (2015), José Roberto Santos SAMPAIO discute os

aspectos metodológicos do ensino da maquiagem no Brasil. Para tal, perfaz uma

contextualização histórica da maquiagem no teatro apontando suas contribuições para a

cena, bem como os métodos e procedimentos utilizados em sua concepção, com enfoque

no uso desse elemento para a construção da personagem.

Além disso, o autor faz um levantamento dos aspectos metodológicos que vêm

sendo empregados no ensino da maquiagem em seis universidades brasileiras em que, a

partir das entrevistas realizadas com os professores responsáveis, SAMPAIO (2015)

analisa as propostas metodológicas de ensino, sua aplicação e seus resultados, e os

compara com sua própria experiência docente.

Micheline Penafort PINHEIRO, traz em sua dissertação A arte do disfarce: a

maquiagem como mídia e o processo de construção da maquiagem no audiovisual

(2016), a caracterização para o campo da comunicação e da semiótica, analisando a

necessidade da maquiagem em uma obra artística a ser veiculada em meios de divulgação

em massa. No tocante a isto, investiga o processo de construção dessa caracterização e

suas funções como elemento que auxilia na construção do universo simbólico das

personagens para o audiovisual.

Reconhecemos a importância dos trabalhos desenvolvidos por todos esses

pesquisadores e pesquisadoras para os estudos teatrais, em especial, para a maquiagem,

enquanto Objeto de estudo. Entretanto, trilhando um caminho paralelo ao que já fora

desenvolvido nas pesquisas estudadas, buscamos problematizar a interação do processo

de construção da maquiagem com a construção cênica em face à produção simbólica da

narrativa da maquiagem.

19

Compreendemos que, em sua totalidade, esse fenômeno está para além da

fisiognomonia, ou seja, desta herança romântica que, como afirma DUARTE (2004), em

seu artigo A pulsão romântica e as ciências humanas no Ocidente, em que examina a

dimensão da diferença, compreendendo a ênfase no caráter não igualitário, hierárquico,

propriamente distinto ou específico, dos entes entre si, que diz, acerca da fisiognomonia,

[...] Martine Dumont, num lúcido artigo de análise desse episódio pouco

conhecido das idéias[sic] “físico-morais” do Ocidente, sugere que se estivesse

assim procurando reintroduzir pela mão de uma teoria científica, naturalizante,

as recém desacreditadas teorias tradicionais da diferença dos entes políticos

(cf. M. Dumont, 1984). Sem dúvida, disso se tratava, mas – na verdade – de

muito mais do que isso. Não apenas a recusa ao igualitarismo político

característico da Revolução Francesa e do primeiro Napoleão, mas a recusa de

todo o universalismo, inclusive no seu aspecto fisicalista, já que se tratava

exatamente de reintroduzir uma medida “físico-moral”, uma nova mediação

positiva e localizada entre a matéria e o espírito. (DUARTE, 2004, p. 10).

Ou seja, crer no rosto como suporte definido e tácito, presente nos traços

fisionômicos de alguém, pode ser um exercício de fundo determinista, historicamente

aprisionador, que reduz o rosto do actante em sua mera condição de suporte. Pode mesmo

ser algo de fundo etnocêntrico, que incorre em negação dos processos de autoconstrução

e de auto expressão que pertencem à ordem da criação artística e do corpo. Não

compreendemos a maquiagem como desenvolvimento de rostos, mas como dramaturgia

na composição dos rostos para a cena.

Do mesmo modo, não acatamos a condição da maquiagem meramente enquanto

linguagem, uma vez que a forma como a maquiagem é construída não interfere na cena

apenas do ponto de vista plástico/imagético, mas também do ponto de vista

poético/processual. Desta via, se fez necessária a verticalização da análise do paradigma

que investigávamos, a fim de que fosse possível mergulharmos num conceito que

examina a “cara pintada” enquanto fenômeno dramatúrgico.

Nos regíamos pela ideia do paradigma da “maquiagem”, ou seja, a concepção

ligada à cosmetologia de um dispositivo que serve para mascarar o actante, seja para

embelezá-lo, para codificar seu rosto de acordo com as características da personagem, dar

vida ao rosto do actante ou, ainda, estender-se pelo corpo, tornando-se “cenário

ambulante” (PAVIS, 1999, p. 233). Percebemos que, por mais amplo que seja esse

conceito, sua dimensão ontológica (maquiagem) aprisionava sua dimensão

epistemológica (maquiar-se/pintar-se) em direção ao poderio estético do espetáculo, mas

não da narrativa corporal do actante.

20

Precisamos, pois, atualizar a compreensão do conceito de maquiagem, em sintonia

com a percepção que temos do novo objeto de estudo: o ato de “pintar a cara” universaliza

a poética de actantes, quer seja na construção de personagens dramáticos – pelos actantes;

na apresentação de personagens-tipo – pelos comediantes; na vivificação performática –

pelos performers; no ludo – pelos brincantes; no ilusionismo – pelos mágicos, enfim, usar

a “pintura” (e outros acessórios similares) para colaborar com a construção, no corpo, da

enunciação teatralizada da narrativa da cena. Portanto, doravante, sempre que nos

referirmos à maquiagem ou à caracterização faremos uso da expressão popular e universal

da “cara pintada”.

DE “CARA LIMPA” OU A APROXIMAÇÃO COM O NOVO OBJETO

A construção dessa dissertação possivelmente parece ser mais pretensiosa do que

eu – em minha humilde condição de pesquisadora debutante – possa suportar. Nos últimos

três anos entre reviver aspectos fundantes da formação inicial, compreender os meandros

do desenvolvimento do conhecimento teatral – naquilo que mais me interessa e me apraz

–, adentrando ao mestrado para aprender a pesquisar, para discorrer sobre um tema tão

relevante e, ao mesmo tempo, tão inóspito quanto a maquiagem (caracterização),

descobrindo que em mim estou além de mim e aquém do que sonhei ser; chego a

consciência do extenuante trabalho que por diversos caminhos, diversas tentativas,

tentativas e erros, erros e reencontros, reencontros e acertos, acertos e descontentamento,

descontentamento e escolha... chego ao cabo desta “aventura” com a certeza de que não

me afastei um só segundo de mim mesma.

Da mesma forma, chego à conclusão de que não me afastei das questões

problematizadas, desde a graduação, para me fazer ser a pesquisadora que falará o que a

seguir apresento. Afastar-me de mim como preceito de objetividade científica chega a

soar como uma ideia estruturante, muito antes de ser uma ideia útil, eficaz.

A esse respeito, precisamos realizar uma arqueologia do racionalismo e sua

objetividade nas ciências humanas como forma de compreensão das cadeias

epistemológicas com as quais lidamos para produzir conhecimento no mundo

contemporâneo. Ao que nossas leituras indicam, o mundo pós-estruturalista, o mundo

pós-relativista, o efetivo mundo das ciências humanas, prescinde da “objetividade” por

21

nela reconhecer a falta de valor e eficácia nos meandros teórico-metodológicos dos seus

objetos de estudo.

De outro modo, não seria compreensível que o processo civilizatório humano se

instaurasse a partir da necessidade e reconhecimento da unidade subjetiva na pluralidade

social. Isto é, a dimensão social da civilização humana reconhece a individualidade como

fundamento da sociabilidade. Para tal, se estabelece uma relação de troca nos encontros.

Neste sentido, compreendemos que o teatro tem sido, desde os primórdios, um

valoroso fenômeno propiciador desses encontros e, em torno de toda a dramaturgia

tradicional, o princípio da crença no verossímil é o ponto convergente do encontro de

subjetividades e sociabilidades.

Sobre este tema não é sem motivo que os principais teóricos, desde a Antropologia

até as Artes, insistem em aludir a apetência e competência dos estudiosos de qualquer

tema destas áreas a condição de pertencimento, pertinência e presença, portanto, de

aproximação.

Em um breve transcurso historiográfico, vide pesquisa bibliográfica, tentaremos

demonstrar como as ciências humanas nos últimos dois séculos afastaram-se da

objetividade racionalista a elas apregoadas sob orientação ou encorajamento das ideias de

Karl Popper (1992).

Dentre os filósofos da ciência que adotaram uma postura “racionalista” em

termos gerais, Karl Popper e seus inúmeros discípulos foram quem exerceu,

por ventura, uma influência mais marcante na orientação das disciplinas

sociais. O contributo mais importante de Popper foi o de introduzir uma

perspectiva particular sobre o que pode ser afirmado corretamente para ser

julgado como uma asserção cientificamente respeitável. Segundo Popper, uma

opinião é racionalmente fundamentada e, logo, cientificamente respeitável, se

e apenas se, tendo sido submetida a uma “experimentação crucial” destinada a

testar sua falsidade (a refutá-la), conseguir passar o teste (SKINNER, 1992,

p.14).

A perspectiva popperiana – desde a sua origem – anula, nega, descredibiliza a

condição ontológica do que se definiu como ciências humanas. Ora, o que há para além

das ciências, na condição humana, que não esteja assentado sobre sua condição de afeto,

sensibilidade, experiência? Impingir objetivismo e exatidão racionalistas sobre as

ciências do humano é negar-lhe a condição de contradição e de reflexão.

A objetividade científica é herança da Física Mecânica, sobretudo, depois da

retumbante consagração das leis e teses desenvolvidas pelo cientista inglês Isaac Newton.

22

Entrementes, a insuficiência do que se convencionou a chamar de racionalidade

(racionalismo), premência da objetividade científica, é como um pensamento que não

cabe no nosso modo de pensar, “uma agulha enfiada” no meio do cérebro, nos impedindo

de sentir o fluxo da razão e da intuição, assim como da sensação e das emoções como

formas de saber implícitas.

Quem nos demonstra isso é Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977,

professor da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade de Austin, no Texas,

juntamente com a sua colaboradora Isabelle Stengers, em um livro necessário à

compreensão do que fazemos como pesquisadores da Artes: um livro sobre o Tempo,

intitulado A Nova Aliança (1987).

Em A Nova Aliança, Prigogine e Stengers (1987) nos falam da evolução do

“pensamento científico”, partindo do conhecido aforismo de Santo Agostinho, que diz:

“Se não me perguntarem o que é o tempo, então eu sei o que é o tempo; mas se me

perguntarem o que é o tempo, então eu não sei o que é o tempo.”, considerando que Santo

Agostinho afirmava um princípio elucidativo em seu aforismo: há um saber implícito

sobre o tempo (sobre tudo) e, da mesma forma, na incapacidade de saber explicitamente

sobre ele (sobre todas as coisas), por isso seria necessário descobrir um novo modo de

“saber” e “conceituar” o tempo e, mais que isso, um novo modo de compreender os

processos de investigação (científicos ou não), que passa a considerar outras leis e teses,

para além da Mecânica Clássica.

É lugar-comum dizer-se que ciência conheceu notáveis progressos no decurso

dos três séculos que vão de Newton à atualidade. [...] chegamos hoje a uma

situação teórica completamente diferente, a uma descrição que situa o homem

no mundo que ele mesmo descreve e implica a abertura desse mundo. Não é

exagero falar dessa transformação conceitual como de uma verdadeira

metamorfose da ciência. Lento trabalho de algumas questões, postas muitas

vezes "desde a origem", que continuam sob nossos olhos a metamorfosear a

interrogação científica. (PRIGOGINE; STENGERS, 1987, p. 1).

Os autores, em A Nova Aliança (1987), questionam se, de fato, seria possível

existir uma filosofia da natureza em favor da ciência, que nega as possibilidades de

invenção e afirma limites ao invés de acatar o fluxo expansivo que há na vida natural e

social. Para isso, cita Maurice Merleau-Ponty 9, considerando a gravidade que este

9 Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo existencialista francês que, partindo do estudo da percepção,

desenvolvera uma sólida base de reflexão acerca da Fenomenologia, reconhecendo que o "corpo próprio"

não é apenas uma coisa, um objeto potencial de estudo para a ciência, mas também é uma condição

permanente da experiência, a abertura perceptiva para o mundo e seu investimento. Com seu trabalho,

23

filósofo existencialista faz recair, em forma de consequências, da separação, “estéril”,

diriam, da natureza com a ciência.

O abandono em que caiu a filosofia da natureza envolve certa concepção do

espírito, da história e do homem. E a permissão que a si mesmo se concede de

as fazer aparecer como pura negatividade. Inversamente, voltando à filosofia

da natureza, a gente não se afasta senão aparentemente desses problemas

preponderantes e procura encontrar-lhe uma solução que não seja imaterialista.

(MERLEAU-PONTY apud PRIGOGINE; STENGERS, 1987, p. 76).

Ora, se assim o é, a filosofia reservaria para si “apenas” a compreensão da

subjetividade humana e da história? O que dizer da construção, desde o século XIX, de

caminhos para uma ciência da filosofia, para a própria condição de “filosofia da ciência”

a que se chegou, enquanto epistemologia, no final do século passado? Voltaríamos, assim,

à reflexão passiva da inútil afirmação das ciências “exatas” como modelo e marca de

produtora da “Verdade” e fidelidade do mundo?

Pois bem, a separação, o distanciamento, a objetividade inatingível nas pesquisas

na área das ciências humanas, geradas a partir do racionalismo, de uma “ciência sem

filosofia”, ou pior, de uma “filosofia longe da ciência”, instituíram sistemas e estratégias

metodológicas que não apenas buscam o valor inquestionável dos resultados construídos

na investigação, mas, além disso, separam pesquisadores/investigadores/criadores (o

humano) dos conhecimentos que produzem e/ou manipulam.

E nessa loucura institucionalizada em múltiplas escolas, instituições, práticas e

postulados de ciência, a condição humana não parece ter o valor pressuposto que ainda

perpassa os discursos acadêmicos (e do senso comum), de tão enviesados pela cegueira

epistemológica que tais estratégias promovem. Pode-se, mesmo, afirmar que há um sem

número de “formas” de ciência. E que todas repousam no lugar que A Nova Aliança

(9187) considera, a partir das teses de Henry Bergson 10 sobre a consciência humana,

como o universo das “generalidades efetivas”.

estabelece, assim, um reconhecimento marcação análise como uma corporalidade da consciência da

intencionalidade corporal, contrastando com o dualista categorias ontologia corpo / mente de Descartes.

10 Henri Bergson, Licenciou-se em Letras, em 1881; Em 1889 obteve o doutoramento pela Universidade

de Paris com a tese Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, e com uma tese secundária sobre

Aristóteles. Em 1900, aos 40 anos, iniciou seus cursos à frente da cadeira de História da Filosofia Antiga

no Collège de France. Em 1907 publicou sua obra principal: A Evolução Criadora que une crítica da

tradição filosófica especulativa. Participou como diplomata das discussões sobre a Primeira Guerra

Mundial. Em 1914 tornou-se membro da Academia Francesa, dois anos depois, publicou Duração e

Simultaneidade (1916), obra que discute a comunicação de Einstein, de 1905, sobre a Teoria da

Relatividade Restrita. A partir de 1925 passou a sofrer de um reumatismo, que o deixou semi-paralisado, e

24

Generalizar e atingir conhecimentos aos quais possam aplicar-se regras é,

doravante, apanágio da inteligência produtora da ciência. A intuição

bergsoniana, por seu turno, é uma atenção tensa, uma progressão cada vez mais

penosa à medida que se aprofunda para penetrar as coisas na sua singularidade,

para se introduzir e se enrolar nelas, participar na duração que as constitui, e

isso sem possibilidade de abstração, sem conclusão geral. É certo que, para se

comunicar, a intuição deverá passar pela linguagem, deverá, "para se

transmitir, cavalgar em ideias"; ela o fará com uma prudência e uma paciência

infinitas, acumulando, para "abarcar a realidade", as imagens e as comparações

concretas; ela conseguirá assim, de maneira cada vez mais precisa, sugerir o

que não pode ser expresso, pois só a inteligência pode exprimir-se, quer dizer,

comunicar pelas palavras gerais e ideias abstratas. (PRIGOGINE;

STENGERS, 1987, p. 74).

Concentro-me no fascínio da linguagem sobre o que produzimos como Arte. Por

ele, tentamos explicar genericamente a forma como sentimos e criamos. Mas, há mesmo

na linguagem o campo referente suficientemente sólido para explicar e entender o que

fazemos como sensibilidade, percepção, criação... como poética?

Prigogine; Stengers (1987) nos apresentam outro cientista que, como Merleau-

Ponty e Bergson, busca compreender a experiência humana como um processo

pertencente à natureza, como existência física. Trata-se de Alfred North Whitehead 11,

um filósofo, lógico e matemático britânico que repudia a tradição filosófica mecanicista.

Segundo Prigogine; Stengers (1987), Whitehead define a experiência subjetiva

primeiro em termos de consciência, de percepção e de reflexão e, ainda, investiga a

existência física em termos do que podemos reconhecer como manifestação de desejo, de

sensação, de emoção, de fim, de decisão. Sua preocupação é, em uso do determinismo

mecanicista dos séculos anteriores ao XX e, também, do evolucionismo relativista da

termodinâmica quântica, para enfrentar aquilo a que chama de "materialismo científico"

oriundo da ciência do século XVII. (PRIGOGINE; STENGERS, 1987, p. 77).

Tal como Bergson, Whitehead sublinhou, portanto, as insuficiências do esquema

teórico provindo da ciência do século XVII:

O século XVII havia produzido finalmente um esquema de pensamento

científico ajustado por matemáticos para matemáticos. A grande característica

do espírito matemático é a sua capacidade de manipular abstrações e tirar delas

sequências de raciocínios claros e demonstrativos, perfeitamente satisfatórios

enquanto for nessas abstrações que se deseje pensar. No seguimento do enorme

o impediu de ir receber o Nobel de Literatura de 1927 em Estocolmo. Faleceu em 4 de janeiro 1941, aos 81

anos, em Paris.

11 Alfred North Whitehead foi um filósofo, lógico e matemático britânico. É o fundador da escola filosófica

conhecida como a filosofia do processo, atualmente aplicada em vários campos da ciência, como dentre

outros na ecologia, teologia, pedagogia, física, biologia, economia e psicologia.

25

sucesso da abstração científica, que produz de um lado a matéria, com sua

localização simples no espaço e no tempo, e, doutro, o espírito, que percebe,

sofre e raciocina, mas não interfere, a obrigação de aceitá-los como a expressão

mais concreta dos fatos viu-se despachada para a filosofia. A partir de então, a

filosofia moderna foi destruída. Ela oscilou de maneira complexa entre três

extremos. Há os dualistas, que aceitam a matéria e o espírito num pé de

igualdade, e as duas categorias de monistas, os que põem o espírito na matéria

e os que põem a matéria no espírito. Mas fazer malabarismos com abstrações

nunca poderá permitir desfazer a confusão inerente determinada pela

atribuição ao esquema teórico do século XVII de um caráter concreto

deslocado. (WHITEHEAD apud PRIGOGINE; STENGERS, 1987, p. 78).

Dessa forma, a vida e o universo, assim como, a filosofia que nutre a ciência e a

ciência que se nutre da filosofia, não podem desconsiderar que toda investigação se trata

de uma situação histórica e não de um destino, e nem a ciência nem a cultura estão votadas

a ficar prisioneiras dessa confusão.

A cosmologia de Whitehead, segundo Prigogine; Stengers (1987), constitui-se

numa tentativa ambiciosa de uma filosofia da natureza que não seja dirigida contra a

ciência, ou seja, que não haja separação entre o humano e suas imersões na busca de

entender o possível e o impossível, o sensível e o inacessível, o tangível, enfim.

[Whitehead] não via nenhuma oposição essencial entre ciência e filosofia, e a

sua obra é, aliás, dum lado ao outro, a dum matemático. Segundo ele, trata-se

de definir o campo problemático no interior do qual a questão da experiência

humana e dos processos físicos poderia ser posta com coerência, de determinar

as condições adequadas a tornar solúvel o problema; trata-se de formular o

conjunto mínimo de princípios necessários para caracterizar toda existência

física, desde a pedra até o pensador. E é precisamente o alcance universal da

sua cosmologia que, para Whitehead, a define como filosófica. Enquanto cada

teoria científica seleciona e abstrai na complexidade do mundo um conjunto

particular de relações, a filosofia, por sua vez, não pode privilegiar nenhuma

região da experiência humana, mas deve construir, por uma experimentação da

imaginação, uma coerência que dê lugar a todas as dimensões dessa

experiência, dependam elas da física, da fisiologia, da psicologia, da biologia.

da ética, da estética etc. (PRIGOGINE; STENGERS, 1987, p. 79).

Seria o caso de desconsiderar o entendimento do fenômeno sensível humano como

uma predisposição da alma, não uma ação de percepção, leitura e entendimento. Pois

perdura, no entanto, desde o senso comum às entranhas do universo acadêmico, a herança

do pensamento da metafísica clássica que nos aprisiona na visão dicotômica do mundo,

do ser, do pensar e da imagem. Ora, cultiva-se, por mais que não queiramos ou não

acreditemos: 1) a separação do corpo do mundo que, em tese, o circunda; 2) a distância

do ser de sua existência; 3) a afirmação do ato de sentir como dotação do pensar e não

da percepção.

26

Nesse território confuso e perturbador, formamo-nos em uma escola que

desconsidera a sensibilidade e a percepção como agenciadoras da aprendizagem. O

pensamento clássico, desde Descarte até Popper, perdura em nos explicar que o corpo

tem alma, que a alma é divina e transcendente, que o que vemos e sentimos é uma

“experiência estética”, destinada à contemplação e fruição. E deixamos de compreender

o pensamento moderno, que tem estabelecido, há séculos, que nossa percepção pode ser

estética, mas ela é, sobretudo, o modo pelo qual elaboramos, individualmente, a

construção cognitiva da imagem, esse valoroso instrumento do saber.

Para o filósofo francês Jean-Paul Sartre (2005), fazendo críticas à persistência do

pensamento metafísico clássico,

De acordo com a teoria clássica das sensações, o que alcançaríamos dos objetos

seria somente a sua representação, como um reflexo no espelho. Desta forma,

uma mesa ou um rochedo seriam, antes de mais nada, um conjunto de

conteúdos de consciência perdendo toda a sua substância. É como se os objetos

se diluíssem na consciência [...] (SARTRE, 2005, p.55).

A essa diluição, Sartre (1996, p. 17) chamou de “ilusão da imanência”. Tal

concepção reducionista, que “considera as imagens como conteúdos que estão na

consciência”, anula a percepção e o entendimento de que a forma, os objetos e a imagem,

enfim, seriam imagens e, para ele, estariam no campo sensível da existência. Para ele, a

consciência seria “um lugar povoado de pequenos simulacros”.

Ainda, segundo Sartre, embora haja uma diversidade teórica de concepções

clássicas dos grandes metafísicos do passado, estas resultavam numa teoria única:

“Descartes, Leibniz, Hume, têm uma mesma concepção de imagem. Somente cessam de

estar de acordo quando é preciso determinar as relações da imagem com o pensamento.

A psicologia positiva conservou a noção de imagem tal como a herdara desses filósofos”

(SARTRE, 2008, p.11).

“[...] fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela própria como uma coisa”

seria, para o filósofo existencialista, a “metafísica ingênua da imagem” (SARTRE, 2008,

p. 9). A imagem não é a coisa acrescida ao nosso modo de pensar, de deduzir, de abstrair,

ela é por si a coisa encontrada na leitura.

A cadeira não está jamais na consciência. Nem mesmo como imagem. Não se

trata de um simulacro da cadeira que penetra imediatamente na consciência

[...] trata-se de um certo tipo de consciência, isto é, de uma organização

sintética que se relaciona diretamente com a cadeira existente e cuja essência

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íntima é precisamente relacionar-se de tal e tal maneira à cadeira existente

(SARTRE, 1996, p.19).

A imagem que tanto respeitamos nos estudos da poética, da cena e de outros

gêneros, é um modo particular de consciência, na forma que Sartre chamou de

“consciência imaginante”. Segundo Sartre, “[...] seria um erro grave confundir essa vida

da consciência imaginante, que dura, se organiza, se desagrega, com a do objeto dessa

consciência, que, durante esse tempo, pode muito bem ficar imutável.” (SARTRE, 1996,

p. 20).

A herança metafísica, a tradição reducionista, o raciocínio que busca

cientificidade na objetividade são entraves na aprendizagem e na pesquisa que se podem

realizar no nosso tempo. Não é o fato de não considerarmos sua validade histórica e

epistemológica, mas fazem parte de uma condição paradigmática que não opera em nossa

compreensão a necessidade de reflexão crítica que precisamos para o conhecimento dos

fatos e do mundo em que vivemos. Somos capacitados, desde as revoluções que o

pensamento científico-filosófico operou, nos últimos séculos, a compreender as matérias

de nossa existência a partir de novos modos de imaginar, ler e entender.

A partir do que nos trouxe Prigogine; Stengers (1987), buscamos compreender e

ultrapassar os fracassos (que atribuímos a tudo o que fazemos ou que fazemos) de nosso

trabalho de investigadora das ciências sociais e humanas, das artes, da imagem.

Constatamos a presença de resquícios de um pensamento determinista, cientificista, nos

podando e nos atribuindo incapacidades de reconhecermos, na linguagem acadêmica,

aquilo que sentíamos e fazíamos enquanto investigação artística, pesquisa nos estudos

teatrais.

E isso não nos serve. Isto é mais uma armadilha que estrutura nossa arte e nossos

saberes em dizeres “estrangeiros” a nós. Quando, na verdade tratava-se de agir na

definição de um novo campo problemático, no âmago do que investigávamos, conforme

apreendemos a partir da leitura de Bergson, Merleau-Ponty, Whitehead (apud PRIGOGINE;

STENGERS, 1987).

A questão que se apresenta, agora, para nós é não estruturar, já de saída, o que

poderíamos encontrar como conhecimento na prática cênica da maquiagem. A questão

não é compreender a experiência da maquiagem fora dos contornos da experiência

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humana. Assim, os processos físicos de “existir” e “fazer arte”, daquele jeito que

fazíamos, não estariam fora de um universo de coerência da pesquisa.

Trata-se, então, de buscar condições adequadas para tornar solúvel o problema da

maquiagem como uma poética da cena. De formular um conjunto eficiente de princípios

necessários à pesquisa. Repito, de não nos estruturar, antes de fazer e sentir.

A EXPERIÊNCIA COMO PERCEPÇÃO E ANÁLISE

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, tendo formado a base conceitual e

metodológica da Antropologia Estrutural, nos aponta que a Arte, quando idealiza o

fascínio pelo “belo” e pela “estética”, seria uma atividade inconsciente do espírito (LÉVI-

STRAUSS, 1989, p. 21). Dessa forma, segundo Lévi-Strauss, podemos chegar a estrutura

inconsciente por meio do emprego do método estrutural desenvolvido pela linguística

estrutural, argumentando que a fonologia “não pode deixar de empenhar-se pelas ciências

sociais o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no

conjunto das ciências exatas” (1989, p. 33).

E isso não é verdade, conforme nos apresentaram os estudos pós-estruturalistas.

Segundo Foucault, “o problema do sujeito e de sua reformulação” seria o problema muito

próximo dos interesses daqueles que aplicaram método estruturais na linguística e na

mitologia comparativa, que não sabiam muito bem o que estavam fazendo, pois estariam

mais imbuídos na premonição de uma cultura de esquerda que pudesse emergir como

epistemologia (BRANDÃO, 2015).

De outra forma, o estruturalismo reafirma o determinismo cientificista a partir de

uma cadeia de conjuntos e de lógicas predecessoras a existência do sujeito. Tais

estratégias continuam sendo a separação do sujeito dos objetos e do mundo; a separação

do sujeito de sua materialidade individual e de sua imaginação.

Sabemos, que não podemos encontrar uma separação, uma distância, entre a forma

e o conteúdo. E o filósofo francês Jacques Derrida, em Força e Significação (2002),

destaca que algumas ideias-forças do estruturalismo nada mais são do que ações

“vingativas” contra a intuição, a percepção sensível.

[...] A forma fascina quando já não se tem a força de compreender a força do

seu interior. Isto é, a força de criar. Eis a razão pela qual a crítica literária é

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estruturalista em qualquer época, por essência e por destino. Ignorava-o,

compreende-o agora, pensa-se a si próprio no seu conceito, no seu sistema e

no seu método. Sabe-se doravante separado da força da qual, por vezes, se

vinga mostrando com profundidade e gravidade que a separação é a condição

da obra e não apenas do discurso sobre a obra. (DERRIDA, 2002, p. 14).

Michel Foucault, pensador francês contemporâneo, notadamente anti-

estruturalista e crítico do historicismo natural, em seu As Palavras e as Coisas (2002),

aborda as ciências sociais não apenas como saberes ou práticas e experiências, mas como

instituições. Compreendendo a gênese e a filosofia pertinentes a esta área do saber

humano, Foucault demonstra e discute como é recente o conhecimento do que se

considera “homem” na história e no saber.

Para tanto, Foucault propõe uma revisão epistemológica centrada na ideia de

investigação arqueológica da cultura ocidental para definir o limiar do que consideramos

nossa modernidade. Tal arqueologia, seria, portanto, um caminho de superação “de um

efeito de superfície” que se instalou como possibilidade assertiva direcionada do

racionalismo sobre o humano ou o que é pertinente ao humano. Ao criticar os caminhos

estruturalistas, que no século XX ainda se refrescavam à sombra do racionalismo através

de estratégias quase ecumênicas, da objetividade cientifica, Foucault (2002) explica:

Assim disposta e entendida, a história natural tem por condição de

possibilidade o pertencer comum das coisas e da linguagem à representação;

mas só existe como tarefa na medida em que coisas e linguagem se acham

separadas. Deverá, pois, reduzir essa distância, para conduzir a linguagem o

mais próximo possível do olhar e, as coisas olhadas, o mais próximo possível

das palavras. A história natural não é nada mais do que a nomeação do visível.

Daí sua aparente simplicidade e esse modo de proceder que de longe, parece

ingênuo, por ser tão simples e imposto pela evidência das coisas. Tem-se a

impressão de que [...] desde sempre fora visível, mas permanecera muda ante

uma espécie de distração invencível dos olhares. De fato, não foi uma

desatenção milenar que subitamente se dissipou, mas um campo novo de

visibilidade que se constituiu em toda a sua espessura. (FOUCAULT, 2002,

p.181).

De fato, não estamos aludindo às ciências naturais, nem tão pouco à história

natural como preposto no parágrafo acima. Estamos nos referindo às ciências humanas, a

análise das Artes e das práticas poéticas assentadas neste território do conhecimento.

Não podemos, por fim, crer dogmaticamente na assepsia absoluta na investigação

sobre processos humanos. Não nos esqueçamos do que disse Nietzsche (1992) sobre a

objetividade.

30

Por maior que possa ser a gratidão que se deve experimentar pelo espírito

objetivo [...] é preciso ter cautela mesmo com a própria gratidão, evitar os

exageros, que na renúncia à independência e à personalidade do espírito surge

um escopo em si, uma redenção e uma transfiguração [...]. (NIETZSCHE,

1992, p. 124).

Para o principal pensador do mundo contemporâneo, o “homem objetivo”

(NIETSZCHE, 2001, p. 126) é um apenas um instrumento.

O homem objetivo é um instrumento, um precioso instrumento de medida, que

se gasta facilmente, um espelho artístico que se turva facilmente, que é preciso

manejar cuidadosamente, que se deve honrar, mas não é um fim, um ponto de

partida, de saída não é um homem complementar, em que o resto da existência

se justifica, não é uma conclusão e, menos ainda princípio, uma geração, uma

causa primeira, mas algo primitivamente maciço, sólido, que tolhe por si

mesma, que deseja dominar. É, antes, um vaso, delicadamente trabalhado, com

contornos finos e movimentados, que deve esperar o advento de um conteúdo

qualquer para conformar-se. É geralmente um homem sem conteúdo de

qualquer ordem, um homem "sem essência própria" [...]. (NIETZSCHE, 1992,

p. 126).

O “homem objetivo” (idem, ibidem) é a condição da dinâmica do fim da filosofia

que não se dedica a perscrutar com afinco, buscando o insondável, o intocável. Seria um

homem fraco, que não consegue ir além do “formal”, que não considera haver vida nas

descobertas, que não tem “vontade de potência”. Seria o douto "ideal" em que o instinto

científico, depois de inúmeras tentativas, conseguiu, com grande risco, surgir e

desenvolver-se como condição de apagamento, de negação de si. Em cuja investigação

apenas a melodia enfadonha do recitado pelos dogmas e cânones já o fazem “dançar”, um

homem cuja experiência não foi por ele vivida, foi copiada, espelhada, da vida e da

curiosidade de outrem.

A prática e a experiência da criação de qualquer fenômeno teatral – muito

especificamente a maquiagem – não fugiria a este “lugar” de saber. A ação de se construir

a maquiagem (a coisa) já não é uma ação humana (a linguagem)? A ação de estudar a

maquiagem como processo poético pertinente a sujeitos criativos (a coisa) já não é

condição própria de sujeitos que a conhecem e a manipulam (a linguagem)? Quanto ao

conhecimento da maquiagem, que representação é plausível, quando desenvolvida em

atmosfera objetivista, distante da condição humana de se criar, manifestar, compreender,

analisar, refletir e estudar a maquiagem? Até quando aceitaremos a distância como

condição implícita de conhecimento nas pesquisas em Artes? Sim. Devemos “reduzir essa

31

distância, para conduzir a linguagem o mais próximo possível do olhar e, as coisas

olhadas, o mais próximo possível das palavras” (FOUCAULT, 2002, p.181).

A “assepsia laboratorial” proposta pelo “racionalismo”, pelo “estruturalismo” e

pela “cientificidade” não se aplica a condição dos processos criativos na forma que a

metafísica clássica nos legou. Ao contrário, a criação é “a nova aliança”. Criar é antes um

fenômeno de mistura, febre, incerteza e descobertas. O método a que nos aproximamos é

antes o próprio método de criar pertencente a cada criador especificamente, do que o

método universal da ciência. A pesquisa de dados de áreas específicas como a criação

artística requer uma aproximação intrínseca e profunda do pesquisador para com os

fenômenos pesquisados. De outra forma não seríamos capazes de uma investigação das

diversas camadas que formam o objeto.

É neste intuito que a análise arqueológica e reflexiva nos serve como aporte

teórico metodológico para a presente pesquisa. Da mesma maneira, a consciência

imaginativa que temos das imagens de maquiagem, dentro de espetáculos teatrais

precisos, tomadas como experiências: 1) manifestas no fenômeno de se maquiar e de

apresentar publicamente; 2) de observarmos criticamente seus meandros, como algo que

nos perpassa, como vida e poética, é nosso intento metodológico.

É, portanto, na busca de uma ideia de experiência como saber que tentamos

formular uma teoria da subjetividade criativa como estratégia metodológica de leitura e

análise da maquiagem, sem nos dedicarmos à objetividade, à racionalidade. Ao contrário,

buscamos a aplicabilidade dos preceitos de “autorreflexão” e “reflexividade” nos

encontros com os agentes e as obras que estudaremos.

Tais preceitos são pensados a partir da ideia de percepção sensível que ultrapassa

a herança metafísica e se nos apresenta como experiência, a partir da revisão crítica da

contemporaneidade teórico-filosófica, que se pode encontrar na obra de inúmeros

cientista, tais como Prigogine, Stengers, Whitehead; e de filósofos, tais como Nietzsche,

Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Derrida, conforme abaixo apresentados pelo sociólogo

Anthony Giddens (2002),

[...] Isto significa que não pode fazer face aos traços definidores da nossa

humanidade. E esse é o facto de sermos capazes de refletir sobre a nossa

própria história, quer como indivíduos, quer como membros da sociedade mais

vasta; e de usar essa reflexão justamente para alterar o curso da história. Esta

perspectiva está ausente em todas as formas de filosofia e de teoria social –

usualmente referidas como “positivismo” – que tentam moldar as ciências

sociais às ciências naturais. (GIDDENS, 2002, p. 160).

32

O modelo metodológico que buscamos, em síntese, é perceber, organizar e

analisar o que nos sucede (e o que podemos fazer) como experiência, à acepção que temos

de experiência, segundo o professor Jorge Larrosa 12. Para ele,

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que

se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,

porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se

passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um

texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso

mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais

rara. (LAROSSA, 2002, p. 21).

Grosso modo, de acordo com os estudos filosóficos, o termo experiência teria o

sentido de ser a participação pessoal em situações repetíveis, de quem se diz “experiente”.

Mas, também, o termo pode ser entendido como uma situação ou estado de coisas

qualquer que se repita com suficiente uniformidade para dar aos indivíduos a capacidade

de resolver alguns problemas. (ABBAGNANO, 2007, p. 407).

No entanto, a experiência notabilizou-se como fonte de grande parte da discussão

filosófica da Era Moderna. A ideia do que valia como experiência, desde a Filosofia

Grega até nós, tornara-se a medida pela qual as ciências clássicas e modernas adquiriram

status e notoriedade frente ao senso comum. Na Modernidade, o termo tornara-se mais

útil à compreensão do humano e suas subjetividades, depois do advento dos estudos da

linguagem, da linguística, da psicologia e da lógica. (Idem).

A herança que o termo experiência traz do início da ciência moderna está ligada

à celeuma entre empirismo moderno, nas premissas e teses de Francis Bacon em

contraposição às elaborações críticas de Immanuel Kant.

Bacon entendeu a experiência como campo das verificações e das averiguações

intencionalmente executadas. Dizia:

Quando a experiência vem ao nosso encontro espontaneamente, chama-se

acaso; se procurada deliberadamente, tem o nome de experimento. Mas a

experiência vulgar outra coisa não é, senão um proceder às apalpadelas como

quem vaga à noite de lá para cá na esperança de topar com o caminho certo,

quando seria muito mais útil e prudente esperar o dia ou acender um candeeiro

para achar o caminho. A ordem verdadeira da experiência começa com acender

12 JORGE LARROSA é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente

é professor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em periódicos brasileiros e tem dois

livros traduzidos para o português: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Autêntica,

1999).

33

o candeeiro, com o que se ilumina o caminho, começando-se com a experiência

organizada e madura, e não com uma experiência irregular e às avessas;

primeiro, deduz os axiomas, depois procede a novos experimentos"

(ABBAGNANO, 2007, p. 412).

Enquanto Kant elaborara um conceito de experiência segundo o qual é ela

irredutível à simples intuição sensível. Para Kant, a experiência é o conhecimento efetivo

e, por isso, inclui a totalidade das suas condições. Kant diz:

Toda experiência encerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é

dado, o conceito de um objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na

base de todo conhecimento experimental há conceitos de objetos em geral

como condições a priori; por conseguinte, a validade objetiva das categorias,

como conceitos a priori, dever-se-á ao fato de que só graças a elas é possível

a experiência (segundo a forma do pensamento). (ABBAGNANO, 2007, p.

414).

De toda sorte, a experiência como matéria do empirismo apoia-se na unidade

sintética dos fenômenos: quer seja classificada como procedimento intelectual e

intencional, como preconiza Bacon; quer seja como síntese do objeto dos fenômenos em

geral, sem a qual nunca seria um conhecimento no contexto regular de uma (possível)

consciência inteiramente unificada, portanto, nem à unidade transcendental necessária da

percepção, como afirma Kant.

A partir de então, o século XX notabilizara-se por fazer avançar o entendimento

da experiência como conhecimento (científico intuitiva) e unidade empírica elementar

(vivência elementar), que impossibilitava a ciência de definir-se como “a Verdade” ao

impossibilitar a formulação de regras para a previsão dos fenômenos.

O filósofo lógico Wittgenstein valeu-se dela em seu Tractatus logíco-

philosophicus (1968) para fazer distinção entre “verdades de razão” e “verdades de fato”,

exprimindo-a na forma da oposição entre as proposições da matemática e da lógica, que

são "analíticas", "tautológicas", "não dizem nada" (WITTGENSTEIN, 1968, p. 6-11).

Para Wittgenstein, as proposições elementares das ciências naturais que representam os

"estados de coisas" ou "fatos atômicos" (WITTGENSTEIN, 1968, p. 4), os quais nada

mais são do que as impressões ou as sensações de cientistas, isto e, unidades empíricas

elementares.

Na filosofia contemporânea, o conceito de experiência como método foi

defendido pelo pragmatismo e pelo instrumentalismo. Charles Pierce dizia: "cuidamos

34

somente da experiência possível, experiência na plena acepção do termo, como algo que

não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento" (PEIRCE, 1958, p.

131).

Hoje, [...] se reconhece que a psicologia contemporânea esteja bem à frente na

análise dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem

dispõe como organismo (pense-se sobretudo nas contribuições que a psicologia

funcional tem dado à análise da percepção), a metodologia científica, ou seja,

o exame dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem

dispõe na ciência, ainda não passa de intenção. Está claro que, do ponto de

vista de uma tal metodologia, a experiência seria somente o conjunto dos

campos em que as técnicas de verificação ou averiguação de que o homem

dispõe se revelassem eficazes. (ABBAGNANO, 2007, p. 416).

Para a condição do que pesquisamos, o actante (agente vivo na cena) está em uma

condição muito especial de percepção sensível de si, de sua imagem, da imagem que

distribui em torno de si, para quem o assiste, do simbólico dessa imagem e de como a

construiu e a constrói a partir desse bloco de experiências que o perpassam. A experiência

da maquiagem é, portanto, uma experiência de narrativa de sujeitos, uma dramaturgia.

DA INVESTIGAÇÃO E SEUS APORTES METODOLÓGICOS

Tudo o que nos atravessou, durante o caminho percorrido nessa pesquisa, será

utilizado como fonte de investigação. Mais especificamente, as leituras bibliográficas

realizadas e as incursões na pesquisa pictográfica, que nos legou muitas imagens – suporte

material de primeira ordem para a análise. Na atual conjuntura da investigação,

acoplamos às descrições de fenômenos espetaculares assistidos e aos registros de

experiência retirados do bloco de notas, os relatos de experiência de profissionais das

artes cênicas e os dados coletados através de entrevistas.

[...] destacamos a noção de entrevista em profundidade que possibilita um

diálogo intensamente correspondido entre entrevistador e informante. [...] Nela

geralmente acontece a liberação de um pensamento crítico reprimido e que

muitas vezes nos chega em tom de confidência. É um olhar cuidadoso sobre a

própria vivência ou sobre determinado fato. Esse relato fornece um material

extremamente rico para análises do vivido. Nele podemos encontrar o reflexo

da dimensão coletiva a partir da visão individual. (CRUZ NETO, 1994, p. 59).

Optamos pelo uso de entrevistas em questionário estruturado para ouvir as

“vozes”, de modo sensível, dos actantes. As entrevistas buscam respostas que completem

nossos objetivos. Que são: 1) Investigar a possibilidade da maquiagem (pintura da cara)

35

como dramaturgia teatral; 2) Discutir a materialidade da maquiagem (pintura da cara)

como elemento conceitual da teatralidade; 3) Apresentar uma síntese conceitual acerca

da maquiagem como rito poético do trabalho de actantes; 4) Analisar fenômenos de

composição de maquiagem, na prática de actantes, que corroborem a ideia de uma

dramaturgia da “cara pintada”.

A entrevista é o procedimento mais usual no trabalho de campo. Através dela,

o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores sociais. Ela não

significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere como

meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objeto da

pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que está sendo focalizada.

Suas formas de realização podem ser de natureza individual e/ou coletiva.

(CRUZ NETO, 1994, p. 57).

Optamos por uma estrutura de questionário para a pesquisa que, embora fosse

individualizado, ou seja, destinado exatamente a cada actante questionado/a, também

pudesse conter um sentido de coletivo, de captação de informações à partir de nossos

objetivos, pois, os sujeitos estudados são contemporâneos, partícipes da mesma dimensão

cultural, do mesmo contexto histórico. Entre eles, inclusive, ocorre um trânsito artístico

e técnico, além de uma correspondência na economia da cultura. Os grupos em que estes

actantes trabalham se relacionam, de algum modo, estão conectados aos estudos teatrais

contemporâneos no cenário intelectual e artístico do Rio Grande do Norte.

À vista disso, no Primeiro Capítulo, apresentamos o que nomeamos de “breve

cosmogonia da cara pintada”, como um quadro de referências de imagens significantes

da experiência de “pintar a cara”, construído através de uma análise sócio crítica de

diversos desses fenômenos manifestos em nossa cultura. A construção dessa cosmogonia

se deu a partir da coleta de dados na pesquisa (já realizada em anos anteriores), agora

apresentados sob a organização favorecida pela discussão conceitual, à qual nos referimos

anteriormente.

Trata-se do reconhecimento de algumas “categorias” (se assim podemos chamar)

de “cara pintada”, ou seja, apresentação de grandes campos do fenômeno da pintura do

rosto como narrativa imagética, como formas manifestas, cujos paradigmas serão

analisados dentro das compreensões que compõem o recorte que fizemos desse Objeto de

estudo.

No Segundo Capítulo, apresentaremos a discussão teórico-metodológica referente

à “dramaturgia da cara pintada”, baseada na pesquisa bibliográfica, garantindo a

36

montagem de um quadro de fundamentação para a investigação, que se dedicará

especialmente a compreensão: 1) da dramaturgia enquanto um conceito expandido, que

não se refere apenas ao texto dramático, mas sim a expressividade poética de todos os

elementos que compõem o fenômeno cênico; 2) da teatralidade como parte fundamental

da instauração da verossimilhança e da codificação da linguagem teatral, portanto, um

dos fenômenos dramatúrgicos materiais dessa área de estudo; 3) da ação poética de pintar

o rosto como conceito pertencente à linguagem teatral, aos estudos da cena e às artes do

espetáculo.

O arcabouço epistemológico que usamos para discutir esta parte do trabalho se

consubstancia nas relações e reflexões entre os paradigmas contemporâneos que definem

arte / real / crítica. Neste fluxo, algumas figuras de linguagem foram usadas como

instrumentos de aproximação e distanciamento das diversas imagens pesquisadas, na

constituição desse recorte.

Aqui, a metáfora e a metonímia, como “tesouras”, fizeram o trabalho de

“conceituar” e “caracterizar” as relações que aproximam e afastam as “caras pintadas”,

considerando-as narrativas humanas, formuladas em imagens reais, de valor documental,

que podem ser reconhecidas em suas realidades, sua história, sua cultura.

A problemática da Arte, própria à realidade da negação do “real”, fabulações de

artistas etc., é o instrumento essencial no processo de revisão das imagens recolhidas. As

práticas e formas com que as “caras pintadas” passam a existir, objetivo desse trabalho,

são os meios de descrição reflexiva com os quais podemos nos nutrir para a compreensão

de seu papel espetacular, significante e crítico.

Bem antes de apregoar uma “definição” ou “engessamento teórico” ou “arbítrio

conceitual” que desconsidere as culturas e histórias, que as “caras pintadas” possuem, ou

mesmo, que reprimam ou neguem as infinitas possibilidades de leitura de tais imagens,

nossa tarefa de compor esse quadro de fundamento epistemológico é a de selecionar, a

partir do nosso modo de ver, aquilo que emerge como materialidade significativa

(sintagma e paradigma) e que se enuncia como dramaturgia nas “caras pintadas”.

Enquanto espectadores (leitores) críticos que ultrapassam a condição de

“seduzidos pela obra” e pelo efeito de realidade que a acompanha, buscamos uma reflexão

a partir de elementos pertencentes à própria obra, de modo a poder distinguir, para além

37

do espelho objetivo, a materialidade explícita e real que nos possa apontar um caminho

metodológico.

Por fim, investigamos no Terceiro Capítulo a prática da “pintura” do rosto, em sua

dimensão dramatúrgica, na arte de quatro actantes potiguares, apresentada em suas

realizações cênicas, a fim de instituir a importância do ato de pintar a cara para a

construção do fenômeno cênico. São eles: Hórus, o Ilusionista, da ação performativa

Travessia (2018); Sebastiao Silva, do espetáculo Saudades Z(é), com produção do

próprio Sebastião Sales (2017); Henrique Fontes, do espetáculo Jacy, com produção do

Grupo Carmim de Teatro (2012); César Ferrario, do espetáculo Sua Incelença, Ricardo

III, com produção do Grupo Clowns de Shakespeare (2010).

Para isso, fazemos uso de metodologias que são recorrentes em pesquisas

qualitativas, como essa. Importa-nos salientar a dimensão antropológica que perpassa

todo esse nosso trabalho, para que possamos organizar os dados coletados através das

entrevistas estruturadas, com as quais esses profissionais nos contam como a ação de

pintar a cara influenciou seus trabalhos e sobre os quais refletiremos criticamente.

De tal modo, dividiremos o capítulo em três partes complementares. A primeira,

de caráter descritivo; a segunda, reflexivo e a terceira, analítico crítico, considerando a

imagem da “cara pintada” como materialidade de primeiro nível, na pesquisa. A

apresentação se dá a partir de três estratégias metodológicas:

a) apresentação de uma escolha de um conjunto de fotografias dos actantes e

questão, com os rostos maquiados, colhidas em cena, no instante da sua apresentação,

referente à Presença do fenômeno, de um ponto de vista histórico e pictográfico;

b) descrição do conjunto de Imagens, anteriormente, feita por nós e recolhida de

nosso bloco de notas, de quando assistimos aos referidos espetáculos, acrescida de um

comentário atualizado acerca do valor dramático e imagético que têm as fotografias,

enquanto motivo significante: suporte e semântica da Objeto de estudos. Cabe aqui

mencionar que nessa notação, desde o tempo em que a fizemos, ali encerramos aspectos

de nossa percepção sensível, de nosso encontro afetuoso com o objeto;

c) análise síntese do conjunto que forma esse recorte do Corpus nesse capítulo,

ou seja, a fotografia + a descrição + o comentário + as vozes dos actantes (recolhidas nas

entrevistas) a partir da condição de “leitura transversal”, aos moldes proposto por Richard

Demarcy (1988), que se baseia na ruptura com o olhar despreparado, “neutro”, que

38

produziria, segundo o semiólogo, uma recepção horizontal no sentido de apenas aceitação

dos códigos apresentados como referências legíveis.

No recorte de uma leitura transversal, Cf. BARTHES (2007, p. 63-75), não

consideramos apenas o sintagma – nível “horizontal” da leitura: decodificação –, nem o

paradigma – nível “vertical” da leitura: problematização – mas, além, a derivação de

uma transversalidade que nota e faz referência, na própria leitura, da condição do leitor,

de sua qualidade e sua afetividade, de sua bagagem e sua relação com o objeto lido.

(DEMARCY, 1988, p. 23-38).

A análise da “cara pintada” em observação será abordada a partir de interesses

de uma observação qualificada, sendo ressignificada naquilo que emerge como objeto

significante, ao nível do legível, mas, além, naquilo que carrega como protocolo, técnica,

herança cultural, marco histórico, valor afetivo, semântica. A leitura transversal, proposta

por DEMARCY (1998)

É um modo de recepção a “distância”, em que o espectador-receptor parte do

princípio de que através de diversos sistemas, cenário, substâncias, matérias,

cores, gestualidade etc., a “máquina” que tem pela frente emite em sua direção

uma multiplicidade de informações que convém situar com precisão (o que,

evidentemente, não é imediato, uma vez que a obra não se apresenta como algo

destinado a entregar “mensagens”). (DEMARCY, 1988, p. 24).

Portanto, a primeira modificação em relação à uma leitura horizontal consiste na

vontade, ou seja, a não aceitação tácita do que se apresenta, a negação da “indigência

visual”, mas a escolha, a tentativa de distinguir, dentre as diversas unidades significantes,

contidas em um espetáculo de teatro, a “cara pintada” como matriz significante, como

principal rastro da narrativa dramática, como

[...] um corte feito ao nível do sintagma. Esse corte implica o reconhecimento

sistemático dessas unidades é o inverso da indigência visual, primeiro defeito

assinalado a respeito da leitura horizontal. E este é, sem dúvida, um ponto

fundamental sobre o qual é preciso insistir, lembrando que, antes de “ler”

convém aprender a ver, olhar e reconhecer. (DEMARCY, 1988, p. 25).

Em síntese, trabalhamos a análise dos dados como em um diálogo contínuo, um

percurso de paisagem, como se os sentisse e sobre eles comentasse, uma vez que, desde

a escolha de cada dado apresentado no texto, de “voz”, cada imagem, já se manifestara a

“leitura transversal”, que não se dará só quando da escrita do segundo e do terceiro

capítulos, mas desde a remontagem do Corpus de referência da pesquisa.

39

CAPÍTULO I

BREVE COSMOGONIA DA CARA PINTADA

Os sonhos de criança – embalados por acalantos antigos, pautados em fábulas

seculares, cheias de metáforas e grandes simbolismos – sempre nos remeteram e nos

remeterão a um prazer idílico, de certo modo, inatingível na vida adulta. Talvez esse

idílio, esse refúgio de prazer, só possa existir (em nós, adultos) na leitura e/ou na escrita,

ou seja, ao lidar com o texto, sobretudo, quando escrevemos, na fabulação do que

submerge mais fundo no que pensamos, que busca, incessantemente, o que sentimos,

mesmo quando a razão nos impede de seguir, desliza nos medos e rebate nas frustrações.

É por isso que me remeto ao universo do prazer do texto como um primeiro

caminho para me estruturar, enquanto alguém que se pretende que produza conhecimento

em um território tão simbolista quanto esse da “cara pintada”. O prazer é a porta pela qual

o texto – e a experiência enquanto meio de aprendizagem – me aproximam de um possível

modo de reconhecimento do meu Objeto de estudo. Não sem antes, de modo autopunitivo,

me questionar, como nos segreda Barthes (1987),

(Prazer/Fruição 13: terminologicamente isto ainda vacila, tropeço, confundo-

me. De toda maneira, haverá sempre uma margem de indecisão; a distinção

não será origem de classificações seguras, o paradigma rangerá, o sentido será

13 Repito, aqui, a Nota de Tradução, de J. Guinsburg, sem dúvida de que diz o que o texto diz, pensa o que

penso, me remete ao que almejo: “Alguns críticos têm considerado que a melhor tradução de jouissance

para o português seria gozo[grifo nosso], uma vez que esta palavra daria, de um modo mais explícito, o

sentido do prazer físico contido no termo original. De nossa parte, acreditamos que a palavra fruição,

embora algo mais delicada, encerra a mesma acepção gozo, posse, usufruto, com a vantagem de reproduzir

poeticamente o movimento fonético do original francês. Em todo caso fica para o leitor o prazer que

pretenda desfrutar nesta leitura”. J. Guinsburg [Tradutor] (BARTHES, 1987, p. 8).

40

precário, revogável, reversível, o discurso será incompleto.) (BARTHES,

1987, p. 8).

De fato. O gozo em pensar o que penso desse Objeto, desse estudo, ainda me faz

vacilar, tropeçar... me confunde. De que modo a “pintura da cara” se precipitou dentro de

mim para que eu pudesse tê-la como esse “lugar” de reflexão, que tanto interesse desperta

e, do mesmo modo, que tanto “foge de minhas mãos”, me afugenta, me recalca, como um

“território” de medo e inibição? A esse respeito, nada sei. Suspeito que há uma

cosmogonia da “cara pintada” fundando um “universo” e, ao mesmo tempo, me

desnudando, me proibindo de seguir. Por isso, essa pesquisa me custou tanto afeto, tempo,

desgaste e, contraditoriamente, desvelamento, reconhecimento, gozo.

O que compreendemos como “cosmogonia”, trazemos de algumas aulas da

Licenciatura em Teatro (UFRN – 2009/2015) e da pesquisa bibliográfica, como uma

descoberta, que – no acaso da pesquisa – emergiu do texto para se condensar como

território da escrita. Está, em primeira linha, ligado à problemática que BACHELARD

(1978) faz em sua Introdução d’A Poética do Espaço, trecho de BACHELARD, Os

Pensadores (p. 184-185).

Talvez perguntem por que, modificando nosso ponto de vista anterior,

procuramos agora uma determinação fenomenológica das imagens. Em nossos

trabalhos anteriores sobre a imaginação, tínhamos considerado preferível

situar-nos, tão objetivamente quanto possível, diante das imagens dos quatro

elementos da matéria, dos quatro princípios das cosmogonias intuitivas [Grifo

nosso]. Fiel a nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado

considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal.

Pouco a pouco, esse método, que tem a seu favor a prudência científica,

pareceu-nos insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação.

Parece-me que o conceito de cosmogonia, na forma como o filósofo francês nos

apresenta, é bem situado em minha compreensão, quase intuitiva, do que as imagens da

“cara pintada” fizeram comigo. Não acato as imagens fora de nenhuma interpretação

(hermenêutica ou epistêmica) do que senti, do que, por si só, me revelou, do que

significou dentro de mim.

Por isso, uso aqui o conceito de cosmogonia, complementado na forma como o

usa, assim como Bachelard, a grande maioria dos estudiosos do imaginário pesquisados.

Como “lugar” de entendimento construído para a compreensão do “ritual sagrado” que

emerge do caos profano, isto é, como pensamento epistemológico que nasce da leitura

sensível das imagens, como está presente em Mircea Eliade (1979, p. 30),

41

Se o mundo é para ser vivido, deve ser fundamentado — e nenhum mundo

pode surgir do caos da homogeneidade e relatividade do espaço profano. A

descoberta ou projeção de um ponto fixo — o centro — equivale à criação do

mundo. A orientação dada pelo ritual e a construção do espaço sagrado têm um

valor cosmogônico; porque o ritual, através do qual o homem constrói um

espaço sagrado, vale na medida em que reproduz o trabalho dos deuses, ou

seja, a cosmogonia.

Gaston Bachelard (1978, p. 184), em meio à formulação de uma poética para o

espaço, questiona: “Por si só, a atitude ‘prudente’ não será uma recusa em obedecer à

dinâmica imediata da imagem?” É nesse campo do racionalismo objetivista que a

“prudência” em não obedecer à percepção da imagem como um saber, parece ter mais

poder. Diz ele: “Aí está, para um racionalista, um pequeno drama diário, uma espécie de

desdobramento do pensamento que por mais parcial que seja seu objeto — uma simples

imagem — não deixa de ter uma grande repercussão psíquica”. De fato, a imagem é o

campo de nascimento de nossa cosmogonia, sua matéria, mas é também o nosso

“Calcanhar de Aquiles”.

A imagem pode ser uma fonte de produção de dados que defina compreensão

epistêmica, e em profundidade, de um objeto? A partir dessa questão, Bachelard recria a

leitura da imagem como o que chamou de “o paradoxo de uma fenomenologia da

imaginação” (Idem; Ibidem). Assim, busca a compreensão de uma poética do mundo

material a partir do imaginário, considerando que,

[...] essa transubjetividade da imagem não podia ser compreendida em sua

essência só pelos hábitos das referências objetivas. Só a fenomenologia — isto

é, o levar em conta a partida da imagem numa consciência individual — pode

ajudar-nos a restituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a

força, o sentido da transubjetividade da imagem. Todas essas subjetividades,

transubjetividades, não podem ser determinadas definitivamente.

(BACHELARD, 1978, p. 185).

A fenomenologia das imagens pode ser, portanto, uma possibilidade finita e

transitória de leitura enquanto experiência. Sendo assim, ler as imagens de “caras

pintadas” (em uma organização que se mapeie como uma cosmogonia disso) é também a

transubjetivação dessas imagens em um trânsito de significação que pode ter valor

epistêmico.

Desse modo, a cosmogonia pode nos evidenciar o valor intrínseco das imagens

como campo de aprendizagem. Conforme conclui Bachelard, a exemplo da leitura de

imagens para dimensionar a compreensão que o poeta tem do que o cerca:

42

[...] O poeta está sempre pronto para ler o grande e o pequeno. Por exemplo, a

cosmogonia de um Claudel assimilou rapidamente, beneficiada pela imagem,

o vocabulário — senão o pensamento — da ciência de hoje. Claudel escreve

em Les Cinq Grandes Odes (As Cinco Grandes Odes) (pg. 180):

"Como a gente vê as pequenas aranhas ou certas larvas de insetos como

pedras preciosas bem escondidas em sua bolsa de algodão e de cetim.

"Foi assim que me mostraram uma porção de sóis ainda embaraçados nas

barras frias da nebulosa".

Olhe um poeta no microscópio ou no telescópio, vê sempre a mesma

coisa. (BACHELARD, 1978, p. 185).

A cosmogonia de imagens que buscamos elaborar para uma categorização das

formas e modos pelos quais os humanos “pintam a cara” tem esse valor de objeto passível

de uma percepção fenomenológica e de sentimento de “transubjetividade”. E, por certo,

ainda se organiza como uma síntese de nossas experiências de ver e reconhecer as “caras

pintadas”.

Sempre vi, percebi, senti as “caras pintadas” e nelas reconheço:

1) A dimensão tribal;

2) O lúdico essencial;

3) A beleza como política civilizatória;

4) A subjetivação do desejo de ser;

5) A dramaturgia da “cara pintada”.

Nesse primeiro capítulo, trabalharemos as quatro primeiras categorias dessa

proposta de cosmogonia. “A dramaturgia da ‘cara pintada’”, embora também parte dessa

cosmogonia, é o assunto fundante dessa dissertação e será amplamente estudada no

terceiro capítulo.

43

1.1 A DIMENSÃO TRIBAL

A dimensão tribal é uma alegoria da qual nos apropriamos para tentar criar uma

possibilidade explicativa do mundo e seus mundos. Por certo, nem mesmo os estudos

antropológicos e sociológicos tenham dado fim às questões que perpassam essa dimensão.

Muitos dos caminhos das ciências humanas e das ciências sociais estão vinculados à

constituição de objetos de estudo que se caracterizam por serem a base do que se instituiu

como “o tribal” ou, por conseguinte, das organizações coletivas e suas práticas.

O antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss abriu caminho para grandes

bases do pensamento ocidental acerca das culturas, da mitologia e das relações sociais.

Em sua obra As estruturas elementares do parentesco (1982), ao analisar e formalizar

um método de abordagem do conflito civilizatório, separa a Cultura da Natureza. Para

ele, ao procedermos de modo a nos considerar humanos (por atendermos a engenhos e

protocolos de distanciamento do mundo natural), se estabelece a civilização humana.

Na separação entre Natureza e Cultura, Lévi-Strauss aborda as diversas lacunas e

inconsistências que haviam se organizado nos estudos que o precederam para tratar desses

conceitos; bem como das dificuldades que, do ponto de vista inerente à construção de um

caminho investigativo, se interpõe à tentativa de estabelecer um limite definido entre o

ser em si da Natureza e aquilo que consideramos Cultura.

É através de uma “significação histórica aceitável” que o antropólogo se mune

para vir a conceber a distinção entre estado de natureza e de sociedade. Para ele, “o

homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social” (LÉVI-STARUSS,

1989, p. 41). Sendo assim, sugere que tudo que nos faz entender a cultura é caracterizado

pela norma e tudo o que se refere à natureza é de caráter universal.

Nesta sequência ainda embrionária dos estudos antropológicos da cultura –

sobretudo, ainda de modo estruturalista –, encontramos um dos pilares da compreensão

da dimensão tribal: a desigualdade do humano do resto da existência como marco

civilizatório. Ser um humano é, em primeira perspectiva, não ser natural.

Se assim o é, a organização tribal se estabelece como “lugar” manifesto da

Cultura. Compreendemos cultura conforme se estabelece nos estudos das ciências sociais:

A cultura possui aspectos materiais e não-materiais. A cultura material inclui

o que é feito, modelado ou transformado como parte da vida social coletiva, da

44

preparação do alimento à produção de aço e computadores, passando pelo

paisagismo que produz os jardins do campo inglês. A cultura não-material

inclui SÍMBOLOS – de palavras à notação musical –, bem como as ideias que

modelam e informam a vida de seres humanos em relações recíprocas e os

sistemas sociais dos quais participam. As mais importantes dessas ideias são

as ATITUDES, CRENÇAS, VALORES e NORMAS. (JOHNSON, 1997, p.

59).

Seguindo tais premissas, o antropólogo Clifford Geertz (1989) nos apresenta uma

perspectiva dos estudos da cultura centrados na ideia de interpretação como método. Para

tanto, faz dialogar, numa encruzilhada epistemológica, o sujeito investigador versus a

cultura investigada; o “Ethos” que se constitui como modo de vida desta cultura versus a

“visão de mundo” que os sujeitos dessa cultura elaboram como formas organizadas de

civilização (p. 93-103).

O sociólogo Michel Maffesoli (1995) dando continuidade aos estudos do que

chamou “O Tempo das Tribos”, análises sociológicas que realiza dos sujeitos ditos pós-

modernos a partir de princípios manifestos da “sociedade de consumo” nos indica que a

estética se organiza, na sociedade tribal (Antiga ou Contemporânea) como um estilo

discursivo de valor político.

[...] de fato, seja por atração ou por repulsão, a algo que me empurra para ou

contra o outro. É, pois, em relação ao outro que me situo. Pode-se ver que isso

forma uma antinomia com o ideal democrático moderno, que repousa em uma

concepção de indivíduo autônomo, dono de si e de sua história, entrando em

relação contratuais com outros indivíduos autônomos, para fazer a História e a

sociedade. (MAFFESOLI, 1995, p. 56).

A dimensão tribal, como nós a compreendemos e como nos interessa, está ligada

diretamente à manifestação não-material dos exercícios de “criação” do mundo.

Consubstancia-se, portanto, numa lógica discursiva que tem a Imagem como princípio

material significante. O conceito de cultura e, dentro dele, o conceito de tribo, de sujeito

e de alteridade, com o qual trabalhamos, não descende filosoficamente da antropologia

estrutural nem da sociologia materialista. Estamos mesmo assentados na ideia de leitura

imagética das identidades tribais.

Para o recorte que fazemos, torna-se necessário empreender uma pequena

digressão acerca dos conceitos de Imagem. Para tanto, nos fundamentamos no verbete

Imagem do Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2007), concernente, exatamente à

dimensão moderna e contemporânea do termo.

45

[Na] Idade Média [os conceitos de Imagem] foram utilizados com fins

teológicos, para esclarecer a relação entre a natureza divina e a humana [...].

Na filosofia moderna, [...] "é ato de sentir e só difere da sensação assim como

o fazer difere do fato" [...]. Mas, em filosofia, o termo [Imagem], em seu

significado geral, começou a perder terreno para idéia[sic], em Descartes, e

representação, em Wolff. A preferência por esses dois termos persiste na

filosofia contemporânea, que só lança mão do termo [Imagem], em seu 2º

significado, quando quer acentuar o caráter ou a origem sensível das idéias[sic]

ou representações de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson:

"Vamos fazer de conta, por um instante, que nada sabemos das teorias sobre a

matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as (discussões acerca da

realidade ou da idealidade do mundo externo. Estaremos então em presença da

[Imagem] no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, [Imagem]

percebidas quando abro meus sentidos, não percebidas quando “os fecho”)

(ABBAGNANO, 2007, p. 537).

Elaboramos, então, a partir da discussão acima, um léxico interpretativo das

imagens da dimensão tribal da “cara pintada”, considerando a Imagem como a

materialidade perceptível (sensível e significante), conforme a seguinte lógica:

1) Imagens que rompem com a natureza do corpo e sua condição biológica;

2) Imagens que se constituem como material cultural, com valor simbólico e

histórico;

3) Imagens dadas à percepção pública de sujeitos observadores;

4) Imagem do rosto/corpo como cultura;

5) Imagens que se constituem como um “Ethos” de grupo;

6) Imagens que se constituem como “visão de mundo” de dado grupo;

7) Imagem como instrumento mediador da constituição da alteridade.

1.1.1 Grupos de “nativos”

O que consideramos grupos de “nativos”, como veremos nas figuras a seguir, é

parte do recorte fundamentado na Antropologia Cultural (BOAS, 2005). A etimologia da

frase corresponde ao conceito antropológico a ela subjacente. No entanto, não deixa de

refletir a limitação do método comparativo da Antropologia, no tocante a não ter como

classificar os grupos humanos das sociedades originárias, anteriores ao advento da cultura

europeia, sem um ranço colonialista etnocêntrico universalizante, massificador.

As imagens abaixo recortadas de diversas fontes, sobretudo sites de grupos ou

pesquisadores localizados na Internet, foram escolhidas segundo a lógica do léxico que

46

elaboramos. Neste ponto, nossa pesquisa faz aproximar-se a cognição da semiologia

tradicional à livre observação da etnografia fotográfica.

A etnografia com a qual nos munimos para realizar a leitura das imagens que

compõem a cosmogonia da “cara pintada” se dá a partir do pensamento do antropólogo

americano Clifford Geertz (1989). Para ele, a etnografia é estabelecida através das

relações que se estabelecem entre atores que circundam no mesmo grupo social. E, para

que ela se estabeleça, faz-se necessário que os levantamentos de genealogias e os

mapeamentos de campos de atuação (sua língua, trabalho, religião e manifestações

materiais entre outras), a partir dos quais se organizam os textos e as informações desse

grupo cultural. E, para o autor, este protocolo rigoroso é o “[...] esforço intelectual que

ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’”. (GEERTZ, 1989, p. 15).

Entende-se por descrição densa o método de observação criado por Clifford

Geertz (1978), que objetiva proporcionar a compreensão das estruturas

significantes implicadas na ação social observada, que necessita

primeiramente ser apreendida para depois ser apresentada. [...] A descrição

densa é produto de uma experiência intercultural vivida pelo observador e

deriva, portanto, de percepções subjetivas e intersubjetivas. Aqui se aponta

para o fato de que o pesquisador estabelece comunicação interpessoal tanto

com os sujeitos de sua pesquisa, membros de outra cultura, quanto com seus

pares no âmbito acadêmico, e essas comunicações são de naturezas diferentes,

na medida em que compartilham de códigos corporais e de significados

linguísticos distintos. [...] Ora, se o objetivo das pesquisas qualitativas é

justamente o aprofundamento do conhecimento em detrimento de sua

quantificação, os elementos ofertados pela observação podem e devem ser

explorados com mais liberdade pelo pesquisador, que deve poder descrever em

vez de transcrever uma determinada realidade observada. (TALAMONI, 2014,

p.54 - 66).

Assim, inspirado em tudo o que dissemos anteriormente, para realizarmos nossa

leitura que fazemos de cada imagem, adicionamos, como escopo metodológico de

“descrição densa”, um comentário textual reflexivo nosso, que é provocado pela

dimensão imagética das figuras. Tal acréscimo de um comentário descritivo sobre um

fenômeno visual é compreendido, na pesquisa contemporânea das artes do espetáculo e

da performance, como um Écfrase, isto é, “[...] uma ex-plicação, uma ex-pressão, um[sic]

des-crição de um fenômeno visual” (PAVIS, 2017, p. 87). Que aqui usamos para

“comentar” e conduzir o entendimento de nossa percepção, desde quando vimos essas

imagens (Figuras) pela primeira vez em nossa pesquisa.

Vejamos, a seguir, figuras de exemplos do que consideramos como a dimensão

tribal da “cara pintada” de grupos de “nativos”.

47

Figura 1: Guerreiro Asurini (Tocantins - Brasil). Fotografia de Giordano Cipriani (S/D). 14

Percebe-se (Figura 1) o rosto pintado de um guerreiro nativo, com traços de

rusticidade, nas cores vermelho e delineado em linhas pretas, que perpassam,

horizontalmente, a parte superior das bochechas e o nariz, além de linhas pretas finas,

diagonais, que descem da altura das orelhas até os cantos da boca, descendo em linhas

verticais da base inferior dos lábios até a ponta do queixo, demarcando o maxilar.

Em sua cabeça um cocar de penas coloridas com base feita em palha. Um pedaço

de madeira adornando a orelha, um colar de palha, barbante e sementes em volta do

pescoço, a partir de onde surge uma pintura preta que cobre todo o dorso do guerreiro.

Nos braços adornos de penas nas mesmas cores do cocar. A luz vem de seu lado direito,

de um ponto abaixo do rosto, que ajuda a vivificar as cores de seu rosto.

A estética Asurini nos remete à ideia de que os elementos que constituem sua

aparência refletem códigos convencionados desse grupo cultural. Portanto, podemos

compreender que o tipo de maquiagem que se materializa no guerreiro Asurini garante

que sua imagem seja lida no conjunto cosmológico de uma pintura tribal.

Na Figura 2, observa-se que, assim como o guerreiro Asurini (Figura 1), no rosto

dos guerreiros Pataxós há uma pintura tribal evidenciada pelos elementos comuns

utilizados por vários membros da tribo para transmitir o sentido da pintura, que pode estar

relacionado a questões ritualísticas ou socioculturais. Eles usam uma base amarela sobre

toda a parte superior do rosto, até a linha que vai da ponta dos lábios até a altura da orelha.

14 As figuras, neste trabalho, foram espalhadas no percurso do texto. Suas referências estão em formato de

legenda abaixo de cada uma das imagens utilizadas.

48

Sobre o amarelo, linhas vermelhas e pretas formam desenhos variáveis de um indivíduo

para outro. A parte inferior do rosto está pintada de preto, também com detalhe vermelho

no meio do queixo.

Figura 2: Guerreiro Pataxó em passeata realizada em Brasília (2019) na Cúpula dos Povos Indígenas.

Fotografia de Fabio Rodrigues (S/D).

O cocar, que o guerreiro em destaque no primeiro plano da imagem usa, é

composto por penas azuis, vermelhas e amarelas. A um só tempo semelhante e diverso

dos demais guerreiros. No pescoço todos usam colares, criados a partir do uso de

sementes vermelhas que descem pelo torso nu e sem pintura. Os braços estão vestidos

com adornos de penas nas mesmas cores do cocar e nas mãos levam chocalhos e bastões.

Na imagem, conseguimos perceber que há vários indivíduos caminhando juntos. No

momento registrado na figura em questão, os sujeitos utilizam suas pinturas ritualísticas

para denotar a importância do momento de luta pelos direitos de seu povo.

Figura 3: Tribo Dessana Tucana (Amazônia – Brasil). Fotografia de Diego Imai (S/D).

49

Na mesma linha de organização imagética das figuras anteriores, percebemos

(Figura 3) algumas mulheres da tribo Dessana Tucana, em sua dimensão tribal, que estão

inseridas e que se destaca a partir dos rostos pintados de preto e vermelho aos moldes dos

guerreiros mencionados anteriormente, bem como dos materiais utilizados tanto nas

pinturas, quanto nos adornos. Percebemos, através da imagem, que as mulheres mais

velhas têm os rostos mais pintados, o que sugere que essa pintura também serve como um

elemento de definição de status (talvez de idade, de função na tribo, de relacionamento

etc.).

As mulheres Dessana, da fotografia, também usam adornos com penas e sementes

que caem nas laterais dos rostos e vários colares sobre os dorsos desnudos. As mulheres

estão dentro de um ambiente forrado com palha. A luz vem de um ponto à frente delas.

As mulheres mais velhas adotam a mesma postura corporal, enquanto a menina que está

no protagonismo da imagem aparenta atitude mais impositiva.

Figura 4: Tribo Huli – Papua Nova Guiné. Fotografia de Wolfgang Kaehler (S/D).

Acima, observamos que, com os rostos pintados com uma cor amarelo vivo e

detalhes delineados em vermelho e preto, os guerreiros da tribo Huli tem uma imagem

impactante. Ao invés dos cocares que estamos habituados a ver nas imagens dos índios

brasileiros, os guerreiros dessa tribo utilizam adornos de cabeça mais similares a chapeis

bem extravagantes, feitos de couro, palha, penas e plantas. Seus dorsos são pintados de

vermelho e eles também utilizam adornos de couro e sementes ao redor dos pescoços,

além de galhos de plantas nos braços.

50

Nessa imagem os guerreiros estão parados na floresta, que parece um cenário

simples diante da imagem deslumbrante através da qual esse grupo se identifica. Apesar

da diferença de uso de cores e materiais, o elemento conectivo desses indivíduos com a

dimensão tribal do grupo dos nativos que podemos observar através da imagem é

percebido no estilo de uso de elementos naturais em seus adornos e da sobreposição da

identidade do grupo por sobre a dos sujeitos.

Figura 5: Homens de Barro da tribo Asaro (Papua Nova Guiné). Fotografia de Danita Delimont (S/D).

Vemos aqui os temíveis guerreiros Asaros, demonstrados na Figura 5, que

utilizam máscaras feitas de barro, gravetos e chifres de animais para se camuflar como

fantasmas ou seres assombrados. Eles cobrem seus corpos com argila (ou barro) e

alongam seus dedos com tocos de bambu com pontas afiadas ou carregam armas como

arcos e lanças. Essa imagem, que acreditam ser horripilante, busca afugentar os inimigos,

oriundos de tribos rivais, garantindo a proteção aos Asaros.

Suas máscaras têm caráter belicoso, feitas artesanalmente por cada guerreiro,

garantem a singularidade de cada uma. No entanto, ainda que cada máscara tenha

características únicas, a base de construção estética dos guerreiros dessa tribo pode ser

percebida como uma só: uso do barro esbranquiçado para cobrir tanto o rosto, quanto o

corpo dos indivíduos com o intuito de alcançarem o bem comum: a segurança da tribo.

Assim como os mencionados anteriormente, esses guerreiros estão, portanto, colocando

a necessidade de seu grupo por sobre suas necessidades individuais e, por isso, fazem

parte da cosmologia da dimensão tribal.

Ao contrário dos indivíduos das tribos mencionadas até então, as mulheres da tribo

Apatani, que vemos na Figura 6, não trazem elementos de pintura que se destaque em

seus rostos, no entanto, nas laterais de seus narizes elas utilizam alargadores de madeira

51

que lhe garantem um visual bem diferente do convencionado na sociedade ocidental

contemporânea. Os tamanhos dos alargadores parecem ter relação com a idade das

mulheres, sendo maiores aqueles usados por mulheres que aparentam idade mais

avançada.

Figura 6: Mulheres da tribo Apatani – Arunachal Pradesh (Índia). Fotografia S/A e S/D.

Além dos alargadores, as mulheres têm tatuada uma linha vertical que desce pelo

meio de seus rostos, do couro cabeludo até o nariz, além de linhas também verticais

tatuadas nos queixos. O que permite a leitura dessa imagem como parte da dimensão tribal

é a consideração do comportamento de grupo que podemos observar nas mulheres, que

adotam o mesmo estilo estético. A aparência, que causa um estranhamento, foi adotada

por questões de segurança, já que as mulheres dessa tribo eram consideradas muito

bonitas e sofriam constantemente ataques sexuais, sobretudo por parte de tribos rivais.

Figura 7: Menina da tribo Himba (Angola). Fotografia de Jimmy Nelson (S/D).

52

Na Figura 7, vê-se uma menina com a pele pintada de barro vermelho, que tem

uma aderência tão boa na pele que parece ser sua coloração natural, utiliza o barro como

base para outros adornos utilizados em seu corpo, como nos dreads feitos com os cabelos,

cobertos por esse barro e no colar de barro, ossos e sementes. A imagem da menina com

belas cores se destaca no cenário pálido da região desértica em que vive.

Figura 8: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).

Fotografia de Hans Silvester (S/D).

No entanto, ela não se destaca como indivíduo e sim como membro pertencente a

um grupo ou tribo, uma vez que quando a olhamos já fazemos a ligação de sua imagem

com a imagem de seu grupo identitário e, por isso, a consideramos parte da dimensão

tribal. O que também ocorre quando vemos a Figura 8, em que um dos integrantes das

tribos Mursi e Surma, que vivem na região do Vale do rio Omo, na Etiópia.

Apesar de identificarmos as diferenças estéticas de indivíduo para indivíduo,

lemos essas pessoas como parte de um grupo. Nessa imagem o menino tem o rosto

pintado de barro branco e laranja misturados. Há linhas feitas com remoção do barro,

destacando a pele preta sob a pintura que lhe garante um aspecto mascarado. Sua cabeça

está adornada por plantas que se assemelham a grama, que escorrem pela testa como se

fossem cabelos.

O menino que vemos, a seguir, (Figura 9) utiliza-se do barro branco e laranja para

pintar seu rosto, os mesmos elementos utilizados no menino tribal que aparece na foto

anterior (Figura 8). No entanto, sua pintura divide seu rosto em duas partes, sendo metade

pintada de branco e a outra de laranja. Como a divisão não é exata e a pintura não tem as

53

mesmas proporções de ambos os lados, temos a impressão de que há uma considerável

assimetria no rosto dele. Sua cabeça está adornada com uma espécie de tiara feita com

frutos amarrados e em seu pescoço há alguns cordões coloridos.

Figura 9: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).

Fotografia de Hans Silvester (S/D).

Na Figura 10, a menina que vemos também utiliza o barro de cor amarela em sua

pintura facial, com uma mistura nas cores branco e laranja. Ela circunda o rosto com uma

linha branca, pinta um dos lados de amarelo e desenha detalhes brancos no lado oposto.

Sua cabeça está adornada com galhos de flores, seu pescoço com colares de contas

coloridos e no busto a pintura floral e circular cobre os seios.

Figura 10: Menina das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).

Fotografia de Hans Silvester (S/D).

54

Figura 11: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).

Fotografia de Hans Silvester (S/D).

O menino da Figura 11 pertencente à mesma tribo das outras crianças das figuras

anteriores. Da mesma maneira, ele utiliza o barro nas cores laranja, branca e a mistura

dos dois para garantir um tom mais amarelado para pintar seu rosto. Na sua testa, podemos

observar pequenos círculos vermelhos sobre a base branca. O restante do rosto, que está

coberto de um tom mais amarelado, tem destaque mais escuro nas bochechas. Nas orelhas

vemos alargadores e a testa está ornada com flores cores de rosa e laranjas. O pescoço

rodeado de colares de conta e linha.

Figura 12: Irmãos das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).

Fotografia de Hans Silvester (S/D).

55

Percebemos, com a sequência de figuras de infantes pertencentes à mesma tribo

que os significados de coletividade se assentam na possibilidade de um projeto visual que

se repete, bem como no uso dos mesmo materiais plásticos expressivos, entretanto,

podemos reconhecer, mediante o uso da estética e da expressão particular de cada, uma

singularidade identitária do uso da cara pintada. Assim, podemos pensar que de uma

mesma maneira, a construção da cara pintada dos membros dessa tribo possa ser, a uma

só vez, identitária da condição de coletividade e de particularidade.

O que podemos verificar nas caras pintadas presentes na Figura 12, em que vemos

dois meninos que se utilizam de uma mesma tonalidade de pintura (tanto nos rostos,

quanto nos corpos), que dividem espaço com o tom próprio de suas peles, nas partes em

que estas aparecem como detalhes. Essas crianças adornam suas cabeças com plantas e

frutos e utilizam colares de linhas nos pescoços.

A particularidade parece ser matéria da expressão pintada nos rostos, bem como

a unidade estética buscada na ação de auto significação dos indivíduos dessa tribo, como

podemos observar nas fotos. Muitos dos integrantes dessas tribos mudam de pintura e

adornos, várias vezes por dia, para se expressar. No entanto, apesar de parecer haver neles

uma necessidade de se destacar, de se expressar individualmente através de sua estética,

eles ainda estão fazendo isso a partir da organização estética de seu grupo identitário e,

portanto, de sua dimensão tribal.

Figura 13: Guerreiro Maori (Nova Zelândia). Fotos de Jimmy Nelson (S/D).

56

Essa percepção pode se alastrar por outras tribos. É o caso dos guerreiros Maoris,

que são conhecidos por tatuagens que têm aspecto bem particular. As tatuagens que

cobrem seus rostos, além de ter função informativa dentro da tribo, onde os símbolos

tatuados são elementos significantes dentro de sua cultura, tem também a função de

intimidar indivíduos de tribos inimigas, dando ao guerreiro aspecto assustador.

A Figura 13 mostra um guerreiro com os cabelos em dreadlocks 15, que são

ornados com penas e no pescoço um colar de sementes e presas de animais. O Maori usa

uma capa feita com couro e penas que lhe cai sobre os ombros. Quanto mais tatuado o

rosto do guerreiro, mais reconhecido e respeitado ele é dentro da tribo.

Figura 14: Guerreiro Maori Aborígene (Nova Zelândia). Fotos de Jimmy Nelson (S/D).

Na Figura 14, observamos outro guerreiro Maori, que também tem o rosto tatuado,

mas ao contrário do primeiro, seus cabelos são raspados e as tatuagens sobem até o couro

cabeludo. Na cabeça ele utiliza um adorno feito de osso e sobre os ombros uma capa feita

15 Dreadlock ou “Lock-dread”, “Rasta” ou simplesmente “Dread”, é como são conhecidos popularmente

alguns penteados na forma de mechas emaranhadas, ou uma forma de se manter os cabelos que se tornou

famosa com o movimento Rastafari (Movimento estético e político surgido na Jamaica em meados de

1930). Os primeiros registros do termo "Dread" são da época da escravidão. Durante a travessia para outro

continente, as pessoas eram mantidas presas umas às outras, sem espaço para higiene pessoal e de

organização do aspecto do cabelo, assim no desembarque os fios estavam embaraçados e crescidos em

tufos. Devido essa aparência, foram chamados pelos moradores da América do Norte com o termo

"Dreadful". Este foi encurtado décadas depois para perder o tom pejorativo.

57

com couro e penas. Seu colar é composto por um cordão simples onde está amarrada uma

bela pedra azul escura.

Assim como as imagens mencionadas anteriormente, nessas últimas percebemos

a individualidade de cada guerreiro Maori, mas também fazemos a leitura de que eles

fazem parte de um mesmo grupo identitário, pois os elementos utilizados para que se

destaquem esteticamente enquanto indivíduos, segue a lógica estética de sua tribo.

Um aspecto comum às imagens dos indivíduos das diferentes tribos que

trouxemos para demonstrar o que entendemos como a dimensão tribal dentro da nossa

organização de cosmogonia, é que suas aparências servem como elemento identitário de

grupos que descendem de uma tradição aborígene. Cada indivíduo protagonizando uma

imagem nos remete a dimensão a qual ele pertence. O que nos traz essa percepção é o uso

das cores e formatos das pinturas usadas, bem como os elementos que compõem seus

adornos e a forma como eles são utilizados.

1.1.2 Grupo de “naturalizados”

Na mesma perspectiva do item anterior, o que consideramos grupos de

“naturalizados” (BOAS, 2005), corresponde a um conceito aproximado do campo

antropológico, mas que aqui, ao invés do item anterior, é utilizado para descrever grupos

humanos das sociedades da cultura de matriz europeia que, seguindo os princípios do

tribalismo originário, se organizam em grupos identitários e, para isso, “pintam a cara”

em suas manifestações grupais.

Como no item anterior, as imagens abaixo recortadas de diversas fontes, sobretudo

sites de grupos ou pesquisadores localizados na Internet, foram escolhidas segundo a

lógica do léxico que elaboramos. Neste ponto, nossa pesquisa faz aproximar-se a

cognição da semiologia tradicional à livre observação da etnografia fotográfica.

Vejamos, a seguir, figuras de exemplos do que consideramos como a dimensão

tribal da “cara pintada” de grupos de “naturalizados”:

Na mesma linha de pensamento das imagens demonstradas no grupo das tribos

nativas, podemos perceber que alguns grupos urbanos, socialmente inseridos em uma

sociedade ocidentalizada “não tribal”, seguem a mesma lógica tribal. Nas imagens desses

grupos identificamos como “chave” para o seu comportamento tribal e, ainda, parte da

estética de grupo.

58

Tais chaves podem ser identificadas pelo uso de fardamentos (quando são grupos

institucionalizados) e de elementos simbólicos (de união, de força, de corporativismo, de

materialidade espetacular e de performance), como o uso de tatuagens, piercings, adornos

nas roupas, braços e pescoços. O uso da cor (preta), do couro e do jeans tem sido base de

unidade semântica dos puns londrinos, por exemplo.

Dessa forma, seguindo a mesma lógica de pensamento analítico de leitura das

imagens, compreendemos que as freiras dispostas na Figura 15, constituem um tipo de

tribo “naturalizada”, em que podemos ler suas vestes e faces límpidas como composições

que as classificam como parte do que convencionamos como a personagem “Freira”. Para

isso, ao lermos sua imagem social em coletividade, ignoramos suas particularidades,

subjugando o individual ao “tribal”.

Figura 15: “Freiras”. Aparecida (São Paulo – Brasil). Fotografia de Eliária Andrade (2007).

Figura 16: “Skinheads in Chelsea” (Londres – Reino Unido). Fotografia de Derek Ridgers (1982).

Assim como vem sendo construído na leitura de todas imagens tribais que

recortamos em nossa pesquisa, ser parte de um grupo se sobrepõe à condição de

59

individualidade. Como podemos ver na Figura 16, em que skinheads, estão dispostos e se

afirmam através dos elementos físicos (visuais) e de sua ação social de aglomerados

urbanos, que os “forma” enquanto grupo, no qual esses indivíduos se identificam (estética

e politicamente), atribuindo às tatuagens, às cabeças raspadas e às vestimentas com base

em jeans e couro, suas identidades de indivíduos-grupo. Os cabelos raspados são marcas

identitárias que dá nome a alguns desses grupos, de forma alusiva às tribos nativas que os

antecederam.

De outro modo, com a moça gótica, da Figura 17, em contraposição à outra moça

surfista, apresentada na Figura 18, percebemos a mesma estratégia de “pintura” para dois

grupos tribais, naturalizados, definitivamente distintos.

Figuras 17 e 18: Mulher no festival Wave-Gotik-Treffen (Leipzig – Alemanha). Fotografia de Tobias

Schwarz (S/D); Surfista com óxido de zinco para proteção solar. Fotografia S/A e S/D.

Com essas figuras em aproximação, podemos observar que tanto o uso da pintura

“sombria”, do rosto gótico, com cores marcantes (geralmente contrastes de branco e

preto) e roupas em negrume; quanto a pintura “solar”, com pintura facial feita à base de

protetor solar, e uso de roupas de tecidos sintéticos de microtexturas (que se destacam nas

praias), produzem sentido de organização estético-identitária que nos permite

compreendê-las, cada uma, em estado de pertencimento às suas tribos.

Nas figuras a seguir visualizamos representantes de manifestações políticas, como

os Caras Pintadas, e grupos de torcedores desportistas. Ambos os grupos fazem uso de

elementos estéticos, como a pintura do rosto com as cores de suas bandeiras, para se

identificar como parte da manifestação em que estão inseridos e, por isso,

compreendemos suas imagens como pertencentes a grupos identitários, ou de tribos

naturalizadas. Tal estratégia expande-se em diversos grupos tribais naturalizados, como

os expostos nas figuras a seguir.

60

Figura 19: “Caras Pintadas”, mobilização popular pelo impeachment do presidente Fernando Collor (Rio

de Janeiro – Brasil). Fotografia de Eder Chiodetto (1992).

Figura 20: “Torcedor brasileiro comemora primeira vitória do Brasil” (São Paulo – Brasil). Fotografia de

Fernando Dantas (2018).

Figura 21: “Portugueses prestigiam o vinho do Porto”. Autor Desconhecido (2014).

Figura 22: Hooligans (Renânia do Norte – Alemanha). Fotografia S/A e S/D.

61

1.2 O LÚDICO ESSENCIAL

O termo “essencial” é aqui utilizado como maneira discursiva de se dizer, de modo

eficaz e rápido, o que se constitui como um limite mínimo significante da presença da

ludicidade na vida humana. Porque esse conceito é relevante para que se entenda a

categorização do que reconhecemos como ludicidade da “cara pintada”, quando esta se

dá na experiência do jogo.

Há, no entanto, conforme os estudiosos do tema, inúmeras formas de jogo e de

jogar. Aqui, a definição de jogo deve aludir à lógica da distinção entre grupo e indivíduo.

Assim, compreendemos que o jogo é o “corte” que separa o indivíduo de seu grupo.

Nos exemplos das Imagens que veremos a seguir, encontraremos sujeitos

“pintando a cara” para se separarem do grupo social a que pertencem, sem com isso

provocar nenhuma ruptura ou conflito. Pelo contrário, tal jogo de “diferenciação” é

fundante para a definição de sociedade.

Figuras 23 e 24: Monge Sadhu pintando o rosto; Monge Sadhu pintado. Fotografias S/A e S/D.

Podemos observar isso nas Figuras 23 e 24, em que vemos que os monges Sadhus

destacam-se da população que fazem parte através da pintura e da vestimenta,

diferenciando-se para assumir a sua função como um indivíduo destacado de seu grupo.

Esse destaque, nesse caso, se dá pelo posicionamento espiritual-religioso deste indivíduo

em relação a sociedade em que está inserido. Essa diferenciação faz parte do jogo

estabelecido no grupo social em que ele está inserido.

Pensamos o caráter de “jogo” como estratégia de destaque, baseado no que diz

Huizinga (2001),

O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo

ar de mistério em que freqüentemente[sic] se envolve. Desde a mais tenra

62

infância, o encanto do jogo é reforçado por se fazer dele um segredo. Isto é,

para nós, e não para os outros. O que os outros fazem, "lá fora", é coisa de

momento não nos importa. Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da

vida quotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas

diferentes. Esta supressão temporária do mundo habitual é inteiramente

manifesta no mundo infantil, mas não é menos evidente nos grandes jogos

rituais dos povos primitivos. Na grande festa de iniciação em que os jovens são

aceitos na comunidade dos homens, não são apenas os neófitos que ficam

isentos das leis e regras da tribo; há uma trégua geral de todas as querelas e

uma suspensão de todos os atos de vingança. Desta suspensão temporária da

vida social normal, durante a época dos jogos sagrados, existem também

numerosos indícios em civilizações mais evoluídas. Todas as saturnais e

costumes carnavalescos são exemplos disso. Ainda recentemente entre nós, em

época de costumes locais mais rudes, privilégios de classe mais acentuados e

uma polícia mais tolerante, aceitavam-se as orgias dos jovens de classe alta

como "estudantadas". (HUIZINGA, 2001, p. 15-16).

A importância dos jogos para a construção da sociedade, segundo outro estudioso

da sociabilidade pela ludicidade, Roger Caillois (2001), em sua obra Os Jogos e os

Homens, está na base do que chamamos civilização. Para ele, os jogos praticados pelos

humanos, independente das regras a eles postas, bem como à sua contextualização (social,

psicológica, material, temporal), perpassam os interesses da Antropologia, Psicologia,

Sociologia e Etnografia.

Figuras 25, 26 e 27: Banda Kiss; David Bowie; Marcel Marceau. Fotografias S/A e S/D.

Segundo Caillois, o jogo significa a imersão do indivíduo na história, sob diversos

aspectos e nas mais variadas culturas (CAILLOIS, 2001, p. 9). Esse autor considera que

as atividades lúdicas podem até não trazer grandes consequências reais para a vida dos

seres humanos, mas funcionam como dispositivo para que a sociedade possa descobrir e,

sobretudo, pensar sobre seus próprios hábitos cotidianos, bem como sobre as estruturas

básicas que a definem.

Ainda, na mesma perspectiva de jogo de diferenciação entre o sujeito e a

sociedade através do elemento da ludicidade (Figuras acima), alguns artistas cujas

63

pinturas são imagens icônicas para a sociedade ocidental atual. Quando vemos cada um

desses indivíduos, identificamos suas especificidades a partir das imagens construídas

para destacá-los de sua conjuntura social, agregando ao seu fazer artístico a marca

registrada através do apelo visual.

Figuras 28, 29 e 30: Caboclo de lança do Maracatu Rural (Pernambuco). Fotografia S/A e S/D; Mateus,

brincante do Boi de Reis (Rio Grande do Norte). Fotografia do arquivo pessoal do artista Sebastião Silva;

Caveirinhas de açúcar em comemoração do Día de Los Muertos. Ronaldo Shemidt (S/D).

Nas Figuras acima, os indivíduos se destacam dentro do mesmo jogo de aspecto

lúdico dentro de uma manifestação artístico-cultural sujeitando-se as convenções

previamente estabelecidas em seu contexto sociocultural.

CAILLOIS (2001, p. 29-30) descreve os jogos como atividades civilizatórias e

elabora uma síntese de elementos que considera preponderantes à constituição dos jogos,

que possuem as seguintes características:

1) Livre – uma vez que o jogo se joga por sua natureza espontânea;

2) Delimitada – circunscrita a limites de espaço e de tempo, sob regras

rigorosas e previamente estabelecidas;

3) Incerta – já que o seu desenrolar não pode ser determinado, nem o resultado

obtido previamente; o enredo do jogo é obrigatoriamente deixado à iniciativa

das ações de jogar, há nisso uma liberdade essencial que promove no jogo a

potencialização da invenção e da criatividade;

4) Improdutiva – porque não gera bens, nem riquezas nem elementos novos

de espécie alguma; salvo a própria condição de sociabilidade lúdica;

5) Regulamentada – sujeita às convenções que suspendem as leis normais e

que instauram momentaneamente uma legislação nova – suas regras;

6) Fictícia – acompanhada de uma consciência específica de uma realidade

outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.

64

Figuras 31, 32 e 33: Carlitos (Charles Chaplin); Ferrugem (Gena Leão); Carequinha (George Savalla

Gomes). Fotografias S/A e S/D.

Cabe ressaltar que para Caillois (2001, p. 29) as duas últimas características estão

em franca oposição, pois “os jogos não são regulamentados e fictícios. São, antes ou

regulamentados ou fictícios”. Essa é constituição dialética fundante da dimensão do jogo,

centrada nos paradoxos da contradição e da complementaridade:

a) ficção versus realidade;

b) apropriação versus inserção;

c) sociabilidade versus individualização;

d) gozo versus aprendizagem (desafio).

A primeira alusão à separação do indivíduo de seu grupo social e que se

materializa como jogo é a própria dimensão divinatória da existência do paradoxo do

conhecimento que se estabelece através do Mito.

Na Alegoria da Caverna, Platão (Livro VII – A República) descreve a fábula

segundo a qual alguns homens, do período arcaico, se encontram confinados, desde

sempre, em uma caverna. Ali, não possuem identidade individualizada, nem liberdade e

nem mobilidade. Estão na caverna, assentados sobre suas existências, cumprindo as

regras do viver coletivo, virados de costas para a entrada da gruta e vendo, em uma parede

à sua frente, as sombras do que ocorre lá fora, no mundo real.

Atrás deles há uma fogueira que permanece acesa, de onde escapa a luz que se

projeta na parede à sua frente e onde parecem enxergar por este artifício de simulacro, a

realidade, outros homens “livres” fazendo coisas. Mas como esses homens estão sentados

de costa para a boca da caverna, veem as coisas projetadas, meras sombras do que pode

ser o mundo.

65

Certo dia, seguindo a narrativa do mito, um desses homens que estava aprisionado

no interior da caverna consegue levantar-se e escapar. Ao sair de sua condição de

impossibilidade, se depara com a realidade. No entanto, a claridade que enxerga (vinda

tanto da fogueira, quanto do exterior da caverna) fere seus olhos, que nunca tinha visto a

luz. Esse homem, então, depara-se frente a um grande conflito: 1) volta para a caverna e

mantem-se inerte e protegido dos riscos que a realidade o trouxe? 2) esforçar-se para sair

à vida e se habituar à nova realidade?

Platão inscreve-se na categoria dos filósofos Clássicos, de onde se acentuam as

bases do pensamento ocidental. O Mito da Caverna nos é apresentado por Platão como

principal elemento narrativo de afirmação do conhecimento como desafio. Tal mito

sugere a analogia estabelecida pelos Gregos Antigos que aproximam os conceitos de

escuridão à ignorância; e de claridade ao conhecimento.

Figuras 34, 35 e 36: Monsenhor Jonas Abib, Padre Marcelo Rossi e Padre Fábio de Melo. Fotografia S/A

e S/D; Yalaxé Isa de Nanã. Fotografia S/A (2018); Sacerdotes em cerimônia judaica. Fotografia de Adam

Propp (2018). (Leitura em sentido horário).

Dentro do jogo da ludicidade os palhaços (Figuras 31, 32 e 33) representam uma

persona construída para romper com as regras postas na sociedade em que esse indivíduo

se destaca. Esse rompimento não se dá apenas através de suas ações no trato com o

público, mas mesmo em sua construção estética podemos observar a quebra de regras

pré-estabelecidas pelo contexto sociocultural deles.

Os indivíduos das Figuras 34, 35 e 36 destacam-se de seu grupo dentro da

perspectiva de um jogo em que as regras rigorosas e previamente estabelecidas são

reafirmadas através de sua imagem enquanto agente de ensina, fornece e cobra o

cumprimento das regras.

66

Abaixo (Figuras 37 e 38), observamos o indivíduo que diante do jogo lúdico

oferece-se ao santo e se tornar um indivíduo destacado de seu grupo identitário no

momento da manifestação.

Figura 37: Uma Yaô em feitura de santo no Candomblé. Fotografia de Pierre Verger (S/D).

Figura 38: Feitura de santo no Candomblé. Fotografia de Pierre Verger (S/D).

Como entendemos, o jogo que aqui se estabelece é exatamente a proposição que

o indivíduo deve se fazer no processo de evolução do Homo Sapiens para conseguir

pensar e entender o mundo ao seu redor. Da mesma forma, esse jogo é carregado de

67

desafios e perigos; de condições de mudanças extremas e de complicações. No entanto,

não pode haver crescimento sem que haja desafios nesse modo de jogar.

Em outro exemplo divinatório – agora do povo Judaico-Cristão – é encontrado no

Livro do Gêneses (1:2) “E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do

abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”. No ato da “criação” ocorre

a diferenciação conflitante do sentido de “face”: ora no sentido de mal – como quando é

“abismo” (escuridão, vazio, nada); ou no sentido de bem – como quando é o “espelho”.

Assim, uma vez que o deus da criação nos fez à sua imagem e semelhança, podemos

entender que refletir-se é o mesmo que criar-se.

Em seguida, a narrativa bíblica nos conta que Adão preferiu separar-se de Deus,

rompendo assim com sua condição de “ente querido” do Paraíso, tornando-se o “primeiro

homem”, passando a ter que viver do “suor do seu rosto”.

Aludimos à condição de jogo, presente nesses mitos e em suas formas

desdobradas, para compreender um dos traços especiais da ação cosmogônica da “pintura

da cara”, exatamente, como o instante em que o sujeito se separa da tribo e se faz

indivíduo.

68

1.3 A BELEZA COMO POLÍTICA CIVILIZATÓRIA

“Alta e, bronzeada e, jovem e amável” 16, poderíamos ainda dizer: loira, poliglota,

com olhos azuis, inteligente, com dentes brancos, sexy, “pacífica”, com status social e

econômico e herdeira de uma tradição familiar – eis a mulher ideal na civilização

ocidental. É bem assim que nosso imaginário funciona na busca de construir padrões de

beleza como instrumentos de definição do viver para o belo, para o bom e para o bem.

Para ilustrar essa construção, a imagem na capa de uma revista de moda e beleza

serve como exemplo. Nesta imagem (Figura 39) vemos uma jovem loira, magra, de olhos

claros em uma pose construída para acentuar suas formas físicas diante de uma praia

paradisíaca. A estratégia de uso da imagem da jovem loira e magra como um modelo de

beleza impresso na capa de um editorial de moda, como um ideal a ser alcançado, é usado

para atrair a atenção das leitoras para as “soluções” ofertadas pela revista para

“necessidades” criadas pela indústria para seu público alvo.

Figura 39: Capa da revista Vogue Brasil n° 447 /Novembro (2015).

16 Alusão aos versos da canção popular da Bossa Nova de 1962: Garota de Ipanema (Vinícius de Moraes

e Tom Jobim), em sua versão para o idioma inglês Girl of Ipanema (Tom Jobim).

69

Para tanto, a capa da revista escolhe o modelo de beleza a ser alcançado e estipula

as medidas através das quais seu público poderá alcançá-lo, criando a ilusão de que se

seguirmos as sugestões dispostas em suas páginas conseguiremos, em alguns meses, estar

por dentro das “novidades quentíssimas da moda”; ou utilizar os “3 aparelhos, uma dieta

e o guia de exercícios para arrasar no biquini” como método de alcançar a necessidade

criada por essa indústria para nos impelir ao consumo de seus serviços e produtos.

Indivíduos de diferentes grupos sociais ao redor do mundo expressam-se através

de sua imagem de diferentes maneiras. O que se faz relevante aqui não é a especificidade

de significado de cada elemento agregado à aparência dos indivíduos, mas sim a

reprodução dessa sistemática de aparecer como algo a mais do que a pele ao “natural”

seria capaz de mostrar.

Essa necessidade de trazer para a aparência a expectativa imagética dos indivíduos

movimenta a indústria de cosméticos – que mantém-se em ascensão há décadas – assim

como tudo aquilo que a circunda: revistas e editoriais de moda, profissionais que

trabalham com a construção da aparência – tanto de celebridades, quanto das pessoas que

almejam aparentar tal como elas –, canais de mídias sociais que oferecem os mais diversos

tutoriais sobre métodos, técnicas e ideias de como alterar a aparência etc.

Figuras 40, 41, 42 e 43: Tutorial de beleza: “passo a passo” da maquiagem feita pelo maquiador

Da'Vandre Terrelle. Fotografia retirada do perfil do artista em rede social (S/D).

70

Nesse sentido, vemos uma jovem que tem seu rosto redesenhado através da

maquiagem (Figuras 40, 41, 42 e 43), aos moldes de milhares de tutoriais que ficaram

populares nas redes sociais, para aproximar-se do que está convencionado como belo.

No entanto, ainda que a tecnologia facilite a propagação desse tipo de conteúdo,

sobretudo, a partir do advento da Internet e das mídias distribuídas em multiplataformas

que tal advento propicia, a busca pela mudança da aparência não é uma questão pertinente

à atualidade. O antropólogo Steven Mithen descreve em seu livro A pré-história da

mente (2002) que pigmentos com cerca de mil anos encontrados no interior de uma

caverna foram considerados cosméticos pré-históricos, uma vez que, a falta de pintura

nas paredes da caverna, indicavam que esse produto era utilizado para pinturas faciais e

corporais. Este episódio coloca a pintura do rosto e do corpo como anterior à importantes

manifestações culturais humanas, como o aparecimento de tecnologias complexas e das

religiões, que segundo o autor, apareceram entre sessenta e trinta mil anos atrás.

Como vimos anteriormente, muitas tribos nativas de diversos países ao redor do

mundo, mantém até hoje o costume de adornar-se com pinturas e outros elementos. Mas

esta não era apenas uma prática tribal. Mesmo na Antiguidade 17, em sociedades mais

organizadas e tecnológicas, as pessoas também faziam uso de adornos e pinturas para

compor suas aparências, à exemplo, citamos a que talvez seja a mais famosa no

imaginário das pessoas: o Egito Antigo.

Pesquisadores apontam o uso de maquiagem no Egito Antigo entre 30 e 40 mil

anos atrás (FERRAZ; YABRUDE; THIVES, 2011). E, além de seu senso de estética se

aproximar do que as sociedades urbanas reproduzem até hoje, também suas paletas o

faziam. Ou seja, ainda na antiguidade os cosméticos já haviam evoluído bastante e, apesar

do caráter artesanal de sua fabricação, as paletas antigas conseguiam conter quase todas

as cores que são reproduzidas nas paletas de cosméticos atuais.

Em um breve percurso histórico podemos perceber a vinculação da maquiagem

com os arranjos políticos e sociais de algumas sociedades. Nestes, dois aspectos se fazem

presentes: a relação de status social com o embranquecimento da pele e as relações de

gênero com a liberdade de uso da maquiagem, que serão abordadas em seguida como dois

elos atados, posto que, “(...) although it’s not something we might consciously think

17 Período da história contado a partir do desenvolvimento da escrita, entre 4000 e 3500 anos a.C., até a

queda do Império Romano do Ocidente, em 476 da Era Cristã.

71

about, skin tone is also closely connected to gender” [(...) embora não seja algo sobre o

que pensamos conscientemente, o tom da pele também está intimamente ligado ao gênero

– Tradução nossa] (ELDRIDGE, 2015, p. 40). Encontramos diversas referências

históricas que reafirmam essa ligação em algumas sociedades ao longo do tempo,

atrelando o desejo ou imposição do embranquecimento da pele aos direitos e deveres –

de expressão e cuidados – das mulheres através do uso de cosméticos.

Diversas civilizações – tanto no Ocidente, quanto no Oriente – buscavam o

embranquecimento da pele que, na maioria das vezes, era associado a nobreza, já que a

plebe geralmente precisava trabalhar fora de casa, sob o sol, o que resultava no

escurecimento da tez devido ao bronze ou a manchas causadas pela exposição constante

aos raios solares. Por outro lado, aqueles que possuíam bens e patrimônios não

precisavam se expor, conseguindo manter a pele mais clara e livre de manchas.

Civilizações que nunca haviam se encontrado e nem sabiam da existência da outra

tinham o mesmo desejo de clarear a pele, conforme afirma Eldridge (2015) usando como

exemplo: China (uma das primeiras civilizações que usou maquiagem para empalidecer

a pele) e Grécia que, além de partilhar o mesmo desejo de embranquecimento, também

usava ingredientes muito similares para a fabricação de seus cosméticos. “No mesmo

compasso, na Babilônia, Suméria e Assíria, buscava-se ter uma pele clara”, complementa

a pesquisadora Tânia Lobo (2015, p. 39), dizendo ainda que, mesmo no Egito, “[...]

consideravam que as mulheres deveriam ter a pele bem mais clara que os homens, elas

pintavam a face com argila ou uma mistura feita com leite de cabra e miolo de pão para

parecerem mais claras” (LOBO, 2015, p. 39).

E apesar dessa imposição do clareamento, as mulheres egípcias tinham o direito

de usar a maquiagem para pintar seus rostos como bem entendessem, conta Eldridge

(2015), enquanto na Grécia Clássica

[...] mulheres eram seres destituídos de direitos cívicos. Elas tinham, porém o

dever de manter sua pele branca, o que demonstrava que ficavam em seu

domicílio e não saíam ao sol, e não deveriam usar maquiagem, exceto para

receber seu marido ou amigos. (LOBO, 2015, p. 41).

Assim, a mulher Grega precisava cumprir o seu papel social de “ser virtuosa” e

ficar em casa supervisionando o seu funcionamento e, como eram excluídas do mundo

exterior, ter a pele clara e intocada pelo sol – o que era o objeto de desejo dos homens da

época – era, para elas, uma imposição.

72

Se essa imposição nos parece familiar, é porque a relação das mulheres com o uso

da maquiagem em muitos momentos esteve relacionada à subjugação do feminino em

sociedades patriarcais, fortalecido principalmente pelo cristianismo, em que o exemplo

de beleza a ser seguido era o da virgem Maria. Assim sendo, a conexão da imagem da

mulher virtuosa e recatada que ficava em casa cuidando da família com uma pele bem

cuidada e uso modesto de cosméticos – bastante reforçada durante o período

Renascentista –, perdura até hoje.

Figuras 44 e 45: Aeromoça. Fotografia promocional (S/A e S/D); Vendedoras de ‘O Boticário’, em loja.

Fotografia S/A (2014).

O uso forte de produtos de maquiagem, e de maneira extravagante, foi incumbido

ao teatro ou às mulheres de “pouca moral”, ou seja, as marginalizadas e meretrizes.

Curiosamente desde a Grécia antiga essas últimas detinham bem mais direitos sociais que

as demais, podendo controlar o próprio dinheiro e, ainda, participar de simpósios,

segundo Eldridge (2015), que, elucida ainda, que o domínio de direitos – e de uso livre

de maquiagem – para essas mulheres, era um padrão recorrente ao longo das eras em

diversos lugares do mundo, o que estabelece, conforme afirma a autora, que “(...) the

freedom and rights accorded to women during a given period are very closely linked to

the freedom with wich they painted their faces” [ (...) a liberdade e os diretos concedidos

às mulheres durante um dado período estão intimamente ligados a liberdade com que

elas pintavam seus rostos – Tradução nossa] (Idem, p. 24).

Esse padrão ainda pode ser observado na atualidade se considerarmos que quanto

mais independente (financeiramente, emocionalmente) for a mulher, mais liberdade ela

tem para manipular sua aparência. Vale salientar que mesmo as mulheres que têm

empregos e conseguem arcar sozinhas com seus custos de vida, não são totalmente

73

independentes financeiramente, uma vez que precisam se adequar ao padrão de beleza

atrelado à sua profissão.

Essas imagens (Figuras 43 e 44) trazem exemplos de algumas profissões que

convencionam o padrão estético vigente na sociedade contemporânea ocidental como

sendo o perfil de trabalho aceitável. Para estar de acordo com a política da empresa, as

pessoas que trabalham nessas áreas precisam seguir o padrão de beleza adotado pela

empresa, que é reflexo do padrão adotado pela sociedade. Nesse caso o padrão sobrepõe-

se à liberdade de manipulação da própria aparência, dado que as pessoas aqui não podem

optar pelo não uso dos cosméticos como dispositivo de alinhamento da imagem do

indivíduo com o grupo.

O que se pode destacar da relação que se estabelece entre o indivíduo e o uso da

“pintura da cara” como elemento de subjetivação é que, ainda que intente destacar-se de

seu grupo sociocultural, o indivíduo não pode ignorar as normas estéticas vigentes no

grupo. De modo que ao “criar” sua imagem, este individuo não irá diferir totalmente do

modelo imagético, uma vez que,

[...] estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas imagens que nos

rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos: imagens que

criamos e imagens que emolduramos; imagens que compomos fisicamente, à

mão, e imagens que se formam espontaneamente na imaginação; imagens de

rostos, [...] e imagens daquelas imagens – pintadas, esculpidas, encenadas,

fotografadas, impressas, filmadas. (MANGUEL, 2001, p.20).

Figura 46: Clarice Falcão. Fotografia (2015).

74

Na acima, vemos a cantora Clarice Falcão utilizando o batom vermelho aos

moldes da “pintura de guerra” que era utilizada pelos soldados. A imagem refere-se ao

videoclipe da música Survivor, publicado em 13 de novembro de 2015 em seu canal na

plataforma de vídeo YouTube. No referido vídeo a artista faz um jogo com o batom

vermelho, que tem sido utilizado como um símbolo de resistência à imposição da imagem

da mulher nas sociedades urbanas contemporâneas no Ocidente. A pintura de “guerra”

visa passar a ideia do combate contra as opressões de gênero, muitas vezes materializadas

nas imposições ou proibições de manifestações de personalidade através da autoimagem.

Na atualidade, o fenômeno do embelezamento como advento social pressupõe

atitudes mais efetivas por partes dos indivíduos, para que se tornem desejáveis através de

sua aparência. Para tal, homens e mulheres se submetem a diversos procedimentos e

cuidados que os enquadram nas categorias de belo a qual “cada um pertence”. A mulher,

à própria categoria do “feminino”, à qual atrelaram o ideal de beleza – geralmente ditado

pelos editoriais de moda – e de “bom comportamento”. O homem, em uma nova categoria

criada para flexibilizar o ideal de masculinidade, sem ferir o modelo hegemônico vigente.

“Desse modo, é nesse quadro diacrônico, de flexibilidade, de um novo/outro

(re)ordenamento dos corpos, dos gêneros, que se encontra o ‘Metrossexual’.”

(OLIVEIRA JÚNIOR; CANCELA, 2012, p. 22).

Figuras 47, 48 e 49: Tutorial de maquiagem de contorno masculino para a dimensão metrossexual que o

homem contemporâneo se permite. Fotografias S/A e S/D.

Muito embora a maior pressão em relação ao senso estético ainda seja atribuída

ao gênero feminino, os homens já não estão isentos das cobranças de um padrão de beleza

que, na maioria das vezes, também só é alcançável através de intervenções estéticas. Com

75

isso, mesmo entre o público masculino os tutoriais de beleza e moda fazem sucesso, como

exemplificado nas Figuras 47, 48 e 49, uma vez que criam a ilusão de que possibilitam

aos indivíduos o alcance da beleza ideal.

Identificados na categoria de metrossexuais, atendendo a padrões de aparência

física global, os homens se permitem (re)construir esteticamente a sua aparência. Isto é,

ceder aos comportamentos de embelezamento a partir de padrões de beleza que antes

eram votados ao universo das mulheres. Para tal, esses homens submetem-se a cuidados

estéticos – uso de cosméticos, de serviços especializados com o cuidado de cabelos e

barba, depilação, cirurgias estéticas, clareamento dental, harmonização da face etc. e

cuidados com o corpo, geralmente relacionados à prática de exercícios físicos e dietas.

Na busca pela aparência desejada (e desejável), esses homens não poupam gastos

ou esforços, o que os coloca como um novo campo de exploração da indústria da beleza,

que logo se adapta ao novo nicho, elaborando linhas de produtos e tratamentos voltadas

para esse público – que “assume” seu lugar no consumismo estético, antes tido como

tradição do universo estético feminino.

A aceitação e uso do termo metrossexual como “sinônimo” de “belo” e de “bem

cuidado” obriga este “novo” homem a sair de um lugar de “confortável” desleixo –

“naturalizado” em sua tradição cultural – para fazê-lo adentrar em um fluxo ativo da

economia da beleza e tornar-se um “homem” que deseja se vê enquadrado em um padrão

aceitável e que, ainda, se denuncia como um homem desejável, parte do que se

compreende como o que tem “bom” gosto. Nesse sentido a metrosexulidade também é

uma “necessidade” criada pela indústria, para atingir um público que, antes, não se via

pressionado a consumir os produtos e serviços relacionados aos “cuidados” com a

autoimagem.

Neste “novo” contexto, é possível entender a aproximação das relações que se dão

entre o parecer e o ser, na estreita medida da aceitação social. Cada vez mais, à medida

em que os sujeitos podem escolher como querem ser vistos e se dedicam a se transformar

no que veem de si, refletido no espelho ou nas imagens fotográficas, que produzem; e

discursivas, que recebem do imaginário de seu grupo social, torna-se mais difícil delimitar

até que ponto esse “novo” homem se constrói a partir de seu próprio desejo (e) de (seu)

ser. E até que ponto sua subjetivação é contaminada pelas expectativas projetadas no

individuo pelo seu grupo social.

76

Com o advento das redes sociais, o aparecer se fragmenta, criando na imagem do

sujeito uma possibilidade de afirmação de um seu ser virtual, que não está muito mais

para o que se deseja, do que para o que se é; e o que se deseja dialoga diretamente com a

construção econômica vigente na sociedade, uma vez que:

Como reflete Trinca (2008, pp. 114-115): “Aparecer, assistir, consumir, adorar

e se projetar nas imagens e nos modos de vida dos ricos, poderosos e famosos

passou a constituir a nova moral, um novo ideal de felicidade que tem a vida

como entretenimento”. Através da mídia a sociedade acompanha o espetáculo

da vida do outro: bens materiais, o corpo dito perfeito, todos indicando uma

vida feliz e de sucesso (LOPES; MENDONÇA, 2016, p. 22).

Portanto, o ser virtual se localiza em um mundo paralelo, construído nas mídias

sociais interativas, para suprir as expectativas indistintas do ser na sociedade, de modo a

fragmentar os indivíduos em imagens que constroem um Storytelling 18 de sua vida – mais

desejada do que vivida – que, de modo espetacular, busca aproximar-se do estilo de vida

com seguem traços potentes de espetacularidade que, por sua vez, são o modelo

fundamental de vida das celebridades.

Figura 50: Moça com cabelo moicano. Fotografia S/A e S/D.

Vale salientar que “não é cabível a todos os indivíduos ostentar riqueza e poder,

tampouco fazer parte da rede de influências que os sustenta na mídia, [então] resta

aproximar-se do que se encontra mais acessível a qualquer um: a aparência corporal”

(LOPES; MENDONÇA, 2016, p. 22). Assim, o mundo virtual se mostra como um espaço

18 No inglês, derivação de Storyteller: a person who tells a story, conjugando o verbo no infinitivo, portanto

“uma pessoa que está contando uma história”, ou “uma história sendo contada por uma pessoa”. (Easier

English Student Dictionary – S/D).

77

ideal para a construção do que Stuart Hall (1992) chamou de “narrativa do eu” (p. 13),

em que o homem pós-moderno é tido como um

[...] sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável

[que] está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá

fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades”

objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças

estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual

nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório,

variável, problemático. (HALL, 1992, p. 12-13).

Ou seja, a “narrativa do eu” pós-moderno, sobretudo se identificada através das

redes sociais, não precisa condizer com a identidade “real” do indivíduo, aliás, não precisa

assumir uma identidade fixa desse indivíduo. Ele, fragmentando-se, assume posturas na

construção de seu Storytelling que variam de acordo com a situação vivida (e apresentada

ao “público” através dos recortes escolhidos para serem postados em suas mídias sociais).

Mas é preciso levar em consideração que, como afirma Hall (1992, p. 13), se acreditamos

que existe “uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque

construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do

eu’ [...]”.

Acreditar em uma “verdade” identitária sobre nós mesmos pode ser tranquilizante,

mas as possibilidades que se abrem no mundo virtual dentro da busca por visibilidade,

confronta essas identidades, modificando-as a serviço do parecer.

Figura 51: Ana Flávia Santos e seu cabelo Black Power. Fotografia S/A e S/D.

O indivíduo almeja visibilidade, que nas redes sociais é alcançada através da

interação com o outro. Essa interação é provocada a partir da exposição de si, daí a

78

importância dos “likes” 19, que demonstram que a foto publicada está agradando um

público “sem rosto”, ou seja, querer agradar ao público através das redes sociais não é

senão querer satisfazer seu próprio desejo de autoafirmação como uma pessoa de

aparência desejável. Para tal realização, tornou-se comum o uso das Selfies 20, em que o

indivíduo produz ele mesmo a fotografia (retrato) e é ele mesmo o objeto fotografado,

expressando sua identidade – ou uma delas, se levarmos em conta o pensamento de Hall

(1992) sobre o homem pós-moderno – através da imagem de seu rosto/corpo, que será,

obviamente, compartilhada em suas redes sociais “uma vez que elas [as selfies] não são

absolutamente um produto privado para uso privado” (SANTOS, 2016, p. 3).

Escolhendo os elementos que constituem a imagem, tais como enquadramento,

luz, posição do rosto e cabelos, filtros etc., estamos, portanto, através das Selfies

publicadas nas redes sociais, criando uma narrativa pessoal dentro da perspectiva da

dramaturgia da “cara pintada”.

Figuras 52 e 53: Norma Jeane Baker e sua Alter ego, Marilyn Monroe. Fotografias S/A e S/D.

As imagens da transformação (figuras acima) da “pessoa” Norma Jane Baker no

“fenômeno” Marilyn Monroe, glamoroso ícone pop de beleza e sensualidade feminina,

considerada o maior Sex appeal de todos os tempos, nos levam a compreender a ideia da

virtualidade estética como construção de valor imagético. O que a indústria cultural

19 “Like” ou “curtir” é a forma mais básica de interação em redes sociais como Instagram, Facebook e

Twitter, usada para demonstrar sua aprovação em relação a determinado conteúdo publicado.

20 “[...] as selfies – no feminino, que passa por ser o de emprego mais utilizado pela mídia brasileira –

constituem uma nova forma não só de nos expressarmos e nos apresentarmos aos outros, mas de nos

comunicarmos uns com os outros através de imagens, além de fazê-lo por meio de textos (Gunthert, 2014;

Rawlings, 2013). Daí seu caráter fundamentalmente [de rede e] social.” (SANTOS, 2016, p. 2).

79

conseguia executar com pesados mecanismos de propaganda e marketing, hoje qualquer

garota parece poder alcançar com estratégias de autopromoção pelas redes sociais.

Ocorre que ao compartilhar com as pessoas que acessam nossas “páginas” (sítios

na Internet) nas redes sociais, em tempo real, a imagem que construímos de nós e não a

aparência “natural” que temos, acessamos um jogo perigoso de oferta do que pensamos

que somos para comportamentos de valoração imagética de nós e do que de fato somos.

Nossa imagem, enquanto indivíduo, pode ser compreendida como a imagem de uma

“Norma”, enquanto as nossas imagens esteticamente produzidas e postadas nas redes

sociais, estariam sendo entendidas como a simbolizada da Marilyn. Assim, através do

número de acessos e “likes” que nossa imagem “Marilyn” recebe, nos tornamos mais

“belos”, “aceitos”, célebres. Ou seja, o valor que passamos a ter, através de estratégias de

pontuação no mundo virtual, nos torna indivíduos que esperamos ser reconhecidos como

pertencente ao grupo considerado como “de sucesso”.

Figura 54: Rapaz com cabelos azuis. Fotografia S/A e S/D.

Um ponto interessante dessa divergência de autoimagem no mundo material e no

virtual é que às pessoas não importa se quem irá receber aquelas selfies bem trabalhadas

nas redes sociais são as mesmas pessoas com quem elas se encontram em suas atividades

cotidianas, nas quais serão vistas sem os recursos (filtros, luz, poses etc.) utilizados para

adequar suas imagens virtuai, desde que no âmbito da virtualidade sua imagem seja

apreciada e reconhecida como bela, atraente, desejável.

Criar para si uma imagem, portanto, esbarra nas normas estéticas vigentes no

grupo social do qual se faz parte. Estas normas definem de maneira muito objetiva o que

80

é belo e o que é feio. Umberto Eco (2007) expõe que “Belo – junto com ‘gracioso’,

‘bonito’, ou ‘sublime’, ‘maravilhoso’, ‘soberbo’ e expressões similares – é um adjetivo

que usamos freqüentemente[sic] para indicar algo que nos agrada. Parece que, nesse

sentido, aquilo que é belo é igual àquilo que é bom [...]”, portanto não é de se estranhar

que as pessoas persigam o ideal de beleza de seu grupo social.

Figura 55: Mulher com franja colorida. Fotografia S/A e S/D.

Essa questão da liberdade de se manifestar através da aparência ainda é complexa,

visto que, o mesmo ideal que pode fazer o indivíduo sentir-se feliz com sua própria

aparência, pode torná-lo escravo de medidas estéticas que visem alcançar para ele a

condição de belo que ele não considera ter naturalmente. Devido a diversos aspectos

socioculturais, a imposição de um ideal estético de beleza está muito mais atrelada – nas

sociedades civilizadamente organizadas – à figura da mulher do que do homem.

Figura 56: Mulher com cabelo estilo rastafári. Fotografia S/A e S/D.

De certo modo, a cobrança de uma aparência perfeita para a mulher é mais

contundente (ou violenta), chegando a determinar sua existência na dimensão do consumo

81

desenfreado de produtos e serviços que prometem o alcance da imagem de “perfeição

ideal”, na exata forma como tal ideal está organizado como “beleza”, em sua sociedade.

Daí, para as mulheres, nessas sociedades, a imagem da falta de beleza pode estar

diretamente ligada à existência de problemas de saúde física e psicológica, gerando um

fenômeno cultural universalizado da ansiedade, causada pela insatisfação e pelos esforços

extremos empregados nessa empreitada de ser “o ideal desejado”.

Assim, a mudança da imagem pelo viés da caracterização, não significando uma

implicação definitiva no padrão estético-comportamental dos corpos das mulheres é

aceita sem muitos conflitos, na maioria das sociedades ocidentais. Pelo contrário, chega

a ser uma transformação desejada, elogiada, acatada como sinônimo de civilização e

sofisticação.

Figuras 57 e 58: A atriz Keira Knightley sem maquiagem e com maquiagem. Fotografias S/A e S/D.

Nas imagens acima, podemos ver o rosto de uma celebridade hollywoodiana,

Keira Knightley (famosa por participar de diversos sucessos de bilheteria, dentre eles a

franquia Disney “Piratas do Caribe”), submetida a um enunciado de “Antes e Depois” de

editorial de maquiagem. A prática desse dispositivo imagético (recorrente e banal em

páginas de sites da Internet) busca formular críticas às “belezas” dessas celebridades do

mundo glamoroso. Para isso, contrastam as imagens “naturais” (sem uso de cosméticos)

das mulheres famosas com suas imagens “usuais”, célebres.

Podemos, por esse mecanismo, observar como nem mesmo as personalidades que

são colocadas nas capas de revista como modelo de perfeição a ser alcançado, alcançam

82

esse almejado padrão estético a não ser através do uso de cosméticos e/ou outros

elementos.

Algumas pessoas, como pudemos verificar nas figuras acima, adotam, portanto,

elementos estéticos com os quais se identificam, utilizando a própria aparência como

símbolo de sua liberdade de expressão. Mas, no caso desses indivíduos dispostos nas

imagens, é possível perceber que essas construções ainda estão de acordo com as normas

estéticas vigentes no grupo social do qual fazem parte. No caso dessas pessoas a

intervenção estética visível lhes modifica basicamente aspectos externos (cabelos, roupas,

maquiagem).

Se implicar socialmente em uma “imagem”, uma construção eventual, uma

efemeridade do seu modo de ser temporário é um ato de liberdade, sem dúvida, de busca

pela coerência de se parecer visualmente com o que imagina ser, pelo menos, nos

momentos de expressão. No entanto, implicar-se em uma transformação mais aguda,

fisiológica, como uma ruptura brutal da naturalidade de sua imagem é outra coisa. Implica

um valor mais aprofundado da forma de que se possa ter da própria auto compreensão e

do valor de seu modo de ser no grupo social em que vive.

A esse respeito, nos afinamos com os pesquisadores da área da psicologia, Caio

César Sousa Camargo Próchno, Maria José de Castro Nascimento e Maria Lúcia Castilho

Romera, que, partindo da ideia de “corpo virtual”, de sexualidade e das algumas histórias

do travestismo e transexualismo, abordam a busca pelo feminino, que se dá na vida de

alguns homens (e também por mulheres), utilizando-se do conceito de “Body building”.

Segundo PRÓCHNO; NASCIMENTO; ROMERA (2009) seria o “Body

building” um fenômeno que, tendo origem no período do pós-guerra (aproximadamente

em 1946), se solidificou na atualidade devido ao desenvolvimento da ciência, sobretudo

na área de cirurgia plástica, para o desenvolvimento de “métodos de construção do

corpo”. 21

No texto, os autores discutem a inadequação do uso termo “travestismo”, uma vez

que nesta perspectiva de “Body building” a “caracterização” do feminino não está na

mudança de vestes, adereços etc., mas na reconstrução do corpo. Portanto, o “Body

building” é uma outra enunciação corporal dessas “novas pessoas”, sujeitos das

21 Acreditamos que este campo teórico pode ser melhor tratado em estudos futuros, na continuidade dessa

pesquisa.

83

sociedades atuais, que desafia conceitos teóricos e padrões culturais do mundo que se

organizou na civilização ocidental. E o caso das imagens que vemos nas figuras a seguir.

Note-se o “Body building” em ação na imagem da atriz Angelina Jolie (Figuras

abaixo), que alterou sua face tornando sua aparência menos arredondada, com traços mais

angulares. Tal construção não alterou apenas a aparência da atriz. Essa mudança

acompanha uma revolução que faz em sua carreira, passando a exigir um tratamento de

similitude ao dispensado aos actantes de sua geração na indústria cinematográfica

universal, de modo a não fazer mais o “tipo” glamoroso da heroína romântica e passando

a figurar em “trailer” de ação, como heroína feminista.

Figuras 59 e 60: Angelina Jolie antes e depois de passar pelos procedimentos indicados para sua

harmonização facial. Fotografias S/A e S/D.

Figuras 61 e 62: A cantora Gretchen antes e depois de passar pelos procedimentos indicados para sua

harmonização facial. Fotografias S/A e S/D.

84

Algo similar ocorreu com a cantora Gretchen, que buscou revisão sua aparência

estética através do “Body building” para recuperar a juventude perdida e mudar de estilo,

na tentativa de alcançar uma imagem de mulher desejável. Ocorre que, por algum motivo,

o procedimento cirúrgico teve problemas e a artista se viu desfigurada de qualquer beleza

que ocorrem nos padrões (Figura 61). O que a levou a se submeter a outros procedimentos

de cirurgia estética até conseguir modificar sua estrutura facial (Figura 62).

O garoto (e a artista) Pablo Vittar emegem como imagem ícone do universo pop,

baluarte do Movimento LGBT 22 brasileiro e latino, e super sucesso da industria

fonográfica e do show business e pode ser compreendido, no Antes e Depois (Figuras

abaixo), por sua transição de gênero como uma construção de identidade pela

manipulação da imagem.

Figuras 63 e 64: O jovem cantor e a artista transformista Pablo Vittar. Fotografias S/A e S/D.

Vittar, ao que os comentários das redes sociais indicam, supera os modelos de

beleza vigentes, ao romper com a estética e a definição biológica de gênero. Com isso,

embora não promova transformações fisioógicas, ao modelo “Body bulding”, adota a

identidade visual como construção social de feminilidade.

Diferentemente de Alexander Colter (Figuras 65 e 66), com quem podemos fazer

uma aproximação de Pablo Vittar, pela identificação com a mudança de aparência e

22 (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) [Nomenclatura anterior, dedicada ao tema dos movimentos populares

internacionais em favor dos direitos humanos e de diversidade de gênero e sexualidade] foi substituída por

GLBT (com a inclusão de Bissexuais e Transgêneros e exclusão dos Simpatizantes). A sigla aqui adotada,

LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trangêneros), segue deliberação da I

Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008. Há controvérsias quanto à nomeação de todos os Ts, a

inclusão de um Q (para queers) ou um A (para assexuais), um I (para intersexos), mas há consenso na busca

por inclusão das mais variadas dimensões da construção das desigualdades trazendo à tona pertencimentos

sexuais e de gênero. (VIANNA, 2015, p. 4).

85

condição social, a partir da mudança de gênero. Entretanto, Colter se “transformou” para

além da aparência, se reconstruiu fisico e simbolicamente por vias do “Body bulding”.

Figuras 65 e 66: Colter Alexander (Homem transgênero antes e depois da transição).

Fotografias S/A e S/D.

86

1.4 A SUBJETIVAÇÃO DO DESEJO DE SER

Figura 67: Denis Avner, o “Homem-gato”. Fotografia S/A e S/D.

O desejo é a chave da motivação humana para ações da existência. Através da

subjetivação 23 do desejo, os indivíduos buscam aparecer para a sociedade como aquilo

que consideram (ou desejam) ser. A aparência, portanto, se torna um dispositivo através

do qual se manifesta a realidade abstraída dos indivíduos. Rompendo com as regras da

beleza como política civilizatória, Avner nos aparece como um sujeito que faz uso de sua

imagem para expor o seu desejo subjetivo de ser algo que não está convencionado em seu

grupo social.

O desejo de construção de uma aparência como realização de uma subjetividade

é fruto de um grande esforço, no cotidiano, de exercer uma transfiguração de si como

uma estratégia que os sujeitos usam de “pintar a cara”. Pintar a cara, aqui, não é apenas

usar tintas ou cosméticos removíveis; próteses, ou apliques deslocáveis, mas fazer uso de

23 O termo subjetivação, conforme utilizamos aqui, diz respeito a uma tentativa de produção de sentido em

sintonia com a psicologia cognitiva contemporânea, na forma como o utiliza o professor Larossa: tentando

condensar numa única palavra os termos experiência e sentido, no tocante a fazer uso concreto da ação de

subjetivação como uma ação que transcende a percepção, tornando-se experiência de sujeitos através de

suas formas sensíveis (LAROSSA, 2002, p. 20-21).

87

tatuagens, piercings, próteses e apliques fixos, que afirmem “para sempre” a aparência

como subjetivação.

Considerando o que nos contam os registros historiográficos, a aparência era

compreendida pela Filosofia “clássica” em duas visões dicotômicas, como encontramos

em ABBAGNANO (2007). Por um lado, considerava-se a aparência como um

subterfúgio para a realidade das coisas e, por outro, supunha-se que esse dispositivo seria

a forma manifesta da realidade. Parmênides de Eléia foi o primeiro filósofo a pontuar a

diferença entre aparência e realidade, considerando que: “a ‘via da verdade e da

persuasão’, que tem por objeto o ser, a sua unidade, inevitabilidade e necessidade” seria

diametralmente oposta “[...] à ‘via da opinião’, que tem por objeto o não-ser, isto é, o

mundo sensível no seu devir. Mas o mundo da opinião e o mundo da [Aparência]

coincidem [...]” uma vez que a verossimilhança das coisas parte de sua Aparência, a partir

da qual construímos a nossa opinião sobre elas (ABBAGNANO, 2007, p. 68).

Platão também constrói um paralelo entre aparência e opinião, e opinião e

sensação a partir do pensamento de Protágoras que afirma que “tal como as coisas

aparecem para mim, tais são para mim” (apud ABBAGNANO, 2007, p. 68). Essa visão,

ainda que não especificamente exposta nos termos que se utilizam na Filosofia

Contemporânea, já parecia levar em consideração a identificação de mundo (das

aparências) por um viés das sensações (fenomenologia) (Idem, Ibidem).

Por outro lado, o mundo da opinião é, segundo a República, o mundo sensível

dividido nos seus dois segmentos de sombras e imagens refletidas e de coisas

e seres vivos [...]. Segundo Platão, desse mundo das [Aparência(s)] sensíveis

só se pode ter conhecimento verossímil ou provável, dada a sua natureza

incerta e fugaz: conhecimento que não difere em grau, mas em qualidade, do

conhecimento científico ou racional que tem por objeto o ser [...]. O mesmo

Platão, porém, afirmando que o objeto da opinião está para o objeto do

conhecimento como a imagem está para o modelo [...], admitiu uma relação de

semelhança ou de correspondência entre [Aparência] e realidade.

(ABBAGNANO, 2007, p. 68-69)

Portanto, para Platão, ainda que haja uma aproximação da aparência com a

realidade, estas não podem ser consubstanciadas, uma vez que uma não é, senão, uma

leitura superficial e inconstante da outra. Contudo, Aristóteles, um outro filósofo grego

clássico reconhecia que a “Aparência sensível” habitava um lugar de neutralidade, no

qual poderia “ser tão verdadeira quanto falsa [de modo que não contém] nenhuma garantia

de verdade e só o juízo intelectual a respeito dela pode certificá-la ou refutá-la”

(ABBAGNANO, 2007, p. 68-69).

88

Desta via, a aparência no pensamento aristotélico é considerada um importante

dispositivo no fazer científico, uma vez que, para o filósofo, a construção de saberes parte

da aparência para estabelecer a busca do real, da verdade científica.

No último período da filosofia grega, a noção de [Aparência] torna-se

proeminente. De um lado, os céticos fazem da [Aparência] o critério da

verdade e da conduta, julgando impossível passar além dela e julgar sobre ela

[...]. Do outro lado, os neoplatônicos são levados a considerar todo o mundo

sensível como [Aparência], isto é, manifestação do mundo inteligível, e este

último como [Aparência] ou imagem de Deus: pensamento que será herdado

por Scotus Erigena: “Tudo o que se entende e se sente nada mais é do que a

aparição do aparente, a manifestação do oculto” [...]. Desse ponto de vista, “o

mundo é uma teofanía, toda obra da criação manifesta a essência de Deus, que,

portanto, se torna aparente e visível nela e por ela” [...]. (ABBAGNANO, 2007,

p. 69).

Como podemos ver na elucidação acima, a Filosofia Grega manteve certa

dualidade no significado filosófico da palavra Aparência, muito embora houvesse uma

variação dos significados a ela atribuídos desde sua primeira aparição – no período Pré-

socrático – até o que se estabelecia no último período da Filosofia Grega (período

Helenístico).

Após o conceito de representação objetiva proposto por Pedro Aureolo na

Escolástica do século XIV, que considerava que a coisa vista era a forma do ser que

aparece, compreende-se que “A distinção entre o sentido e o intelecto não depende,

portanto, da natureza do objeto apreendido, mas do modo de apreender” (ABBAGNANO,

2007, p. 69). No entanto,

[...] é só no mundo moderno, a partir do séc. XVII, que a filosofia reconhece

explicitamente o caráter real da [Aparência]. Hobbes talvez seja o primeiro a

reconhecer isso de maneira bem clara. “De todos os fenômenos que nos

circundam”, diz ele, “o mais maravilhoso é justamente o aparecer. É certo que

entre os corpos naturais alguns possuem em si os exemplares de todas as coisas

e outros, de nenhuma. Conseqüentemente[sic], se os fenômenos são os

princípios para conhecer as outras coisas, é preciso dizer que a sensação é o

princípio para conhecer os próprios princípios e que dela deriva toda a ciência.

Para indagar as causas da sensação não se pode, portanto, partir de outro

fenômeno que não seja a própria sensação”. (ABBAGNANO, 2007, p. 69).

Desta forma Hobbes, ao mesmo passo que reconhece a potencialidade subjetiva

da Aparência, também a constrói como o único fundamento do conhecimento humano,

dando forma ao empirismo moderno. Outros filósofos, tais como Locke, Hume e Berkley

irão tratar “aparências sensíveis” como “fenômeno de aparições”, como um elemento que

89

habita no campo das ideias, mas que se faz real a partir do fenômeno, perdendo, assim,

seu caráter ilusório (Idem, Ibidem).

No pensamento kantiano, a dicotomia entre aparência e ilusão se pauta pela

consideração da primeira enquanto fenômeno que “são realidade, aliás as únicas

realidades que o homem pode conhecer e de que pode falar”. Enquanto Hegel considera

a aparência como a própria essência do ser, que existindo enquanto essência, é o próprio

fenômeno (Idem, p. 70).

Na filosofia contemporânea, esse ponto de vista teve a melhor expressão na

obra de Heidegger. “Como significado da expressão ‘fenômeno’ deve-se

estabelecer o seguinte: o que se manifesta em si mesmo, o revelado...

Definimos esse manifestar-se como aparecer (Scheineri). Também em grego a

expressão phainomenon tem esse significado: o que tem o aspecto de aparente,

[Aparência]... Só porque alguma coisa, em virtude do seu sentido, pretende em

geral manifestar-se, isto é, ser fenômeno, é possível que ela se manifeste como

algo que não é, que tenha o aspecto de... Reservamos para o termo 'fenômeno'

o significado positivo e original de ‘phainomenon’ e distinguimos fenômeno

da [Aparência], considerando esta última como uma modificação particular de

fenômeno” (ABBAGNANO, 2007, p. 70).

A visão de Heidegger mantinha a distinção entre o ser manifesto em si, e sua

aparência, considerando que esta era apenas parte do fenômeno que se instaura na

manifestação do ser. Porém, essa dicotomia entre o ser e o aparecer (ou parecer ser) passa

a inexistir à partir da influência da Fenomenologia “tanto no que se refere ao dualismo

entre esses dois termos quanto no que se refere aos outros dualismos com que em geral

[a Aparência] era interpretada, como entre sensação e pensamento, entre subjetividade e

objetividade, etc.” (Idem, Ibidem).

Merleau-Ponty coloca a percepção no âmago da experiência humana e contrária

ao pensamento cartesiano. E elucida que “ser um corpo é estar atado a um certo mundo”

e, ainda, que esse “estar no mundo” condiz com não estar alheio, mas ser parte desse

mundo, uma vez que o corpo não pode existir apenas “em-si-mesmo” (MERLEAU-

PONTY apud LETCHTE, 2002, p. 44). Desta via, a percepção também não acontece

alheia ao corpo, uma vez que é através desse corpo que o indivíduo é capaz de se

“perceber” dentro do mundo do qual faz parte. Nas palavras de Letchte (2002, p. 44),

“[...] a percepção não é simplesmente o resultado do impacto do mundo externo sobre o

corpo; pois, mesmo que o corpo seja distinto do mundo que habita, dele não está

separado”.

90

Também partindo de sua subjetivação, a professora Duda Salabert (Figura abaixo)

rompe com os moldes socialmente convencionados e traz para a sua forma estética

exterior, aquilo que ela compreende como sua identidade. A transição do gênero

masculino (que lhe foi imposto durante anos devido aos aspectos biológicos de seu corpo

no nascimento) para o gênero femino, no qual se reconhece e com o qual se identifica, se

reafirma através da autoimagem.

Figura 68: Professora Duda Salabert, primeira mulher transgênero candidata ao Senado no Brasil.

Fotografia (2018).

Do mesmo modo, a cartunista e chargista Laerte (Figuras abaixo) abandonou a

estética masculina, sob a qual foi conhecida durante pelo menos cinquenta anos de sua

vida, e optou por identificar-se como transgenero, assumindo características

convencionadas como parte da estética femina (de uso de roupas, acessórios e

cosméticos).

Figuras 69 e 70: Laerte antes e depois da transição de gênero. Imagens do arquivo pessoal da cartunista.

91

A compreensão do organismo como parte desse mundo, bem como de seus limites

está na base da percepção descrita pelo filósofo francês. Ou seja, apenas através das

experiências vividas no mundo é possível perceber o mundo. Assim, conforme Merleau-

Ponty (1996), a percepção é a base psíquica sobre a qual os acontecimentos se organizam

e se materializam, em si já pressuposta no próprio acontecimento. Para a “fenomenologia

da percepção” o pensamento é fato, que se compreende como o modo de ser do “ser no

mundo”, isto é, o que sentimos e pensamos já é uma experiência viva de nós. O mundo,

portanto, não existe (pré)posto na existência abstrata, mas é um agir do ser perceptível

em estado de comunicação em sociedade.

Ao contrário do pensamento proposto por Descartes, a fenomenologia anunciada

por Merleau-Ponty não abarca “certezas ideais e universais no nível das idéias[sic]”

(LETCHTE, 2002, p. 44), além disso, diverge da associação da percepção enquanto

pensamento e, sobretudo, enquanto algo universalizável. Segundo o filósofo “pensar é

experimentar, operar, transformar, com a única reserva de uma verificação experimental,

na qual não intervêm senão fenômenos, altamente “trabalhados”, e que os nossos

aparelhos mais que registarem, produzem” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 14).

A aparência em uma dimensão fenomenológica está, portanto, diretamente ligada

ao ser humano, ao ser a partir do parecer. Por isso, estamos diariamente alterando nossos

rostos, corpos e pelos a fim de transmitir, através da nossa aparência, a natureza

característica que cada indivíduo identifica em si mesmo, posto que “a interioridade do

sujeito é um esforço constante de aparência” (LE BRETON, 2004, p. 21).

Entretanto, mesmo com este contínuo esforço de constituir uma subjetividade na

aparência, não podemos esquecer que no mundo que vivemos as aparências também são

constructos sociais fundamentados no valor econômico do consumo.

Segundo Bauman (1998), se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida,

da felicidade e mesmo da decência humana, então foi retirada a tampa dos

desejos humanos. Os excluídos dessa sociedade de consumo, aqueles cujos

meios não estão à altura dos seus desejos, segundo os moldes liberais, e que

antes eram encarados como um malogro coletivamente causado e que

precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser, agora, redefinidos

como classes perigosas, e/ou então classes criminosas, uma vez que, nesse

mundo globalizado, não ter poder de consumo se consolida como crime. Ou

seja, poder-se-ia definir uma estrutura social não mais pautada na divisão de

classes econômicas, mas sim entre um grupo de consumidores e não

consumidores. (COLOMBO, 2012, p. 29).

92

Perdura, portanto, a necessidade de criar intervenções sobre a aparência, ainda que

estas variem dentro de cada contexto social e econômico no qual cada sujeito encontra-

se. Criar intervenções desta natureza estabelece uma relação do indivíduo com uma série

de elementos que se tornam narrativos dentro da perspectiva de que “as imagens, como

as histórias, nos informam” (MANGUEL, 2001, p.21) e, em vista disso, cada pessoa está

criando para si uma mensagem, uma narrativa, a partir da imagem de seus corpos, seus

cabelos, seus cuidados com higiene pessoal (ou a falta deles), suas roupas e demais

acessórios que alterem a aparência – tais como tatuagens, piercings, além do que

socialmente convencionou-se chamar de maquiagem.

Figuras 71, 72 e 73: (Leitura em sentido horário) Silvério Pereira (Travesti Elis Miranda na

teledramaturgia A força do querer, da Rede Globo. Fotografia de João Miguel Jr. (2017); Ikaro Kadoshi

(Drag Queen. Fotografia de Thiago Mota (S/D); Divina Shakira e Jarida Night and Day (Kengas/Drag

Queen. Fotografia S/A (2017).

As Travesti, as Kengas 24 e as Drag Queens (Figuras acima) representam, assim

como Duda e Laerte, uma ruptura com o modelo vigente de beleza. No entanto, a estética

24 [...] bloco de rua que ocorre no carnaval potiguar, ou seja, na cidade de Natal, capital do Estado do Rio

Grande do Norte, no Nordeste brasileiro[...] As Kengas, enquanto fenômeno espetacular, são

compreendidas [...] considerando a maneira como nelas se organizam o carnaval, a folia de rua, o teatro

popular, o desenvolvimento de personagens-tipo, a caracterização, a performance, a diversidade de gênero,

enfim, algumas de suas matrizes culturais. [...] Compreende-se ainda que estas atitudes de afirmação da

diversidade de gênero são construtos corporais destes sujeitos em espetacularidade. (BARBOSA, 2005).

93

dessas personas parte de um exagero de uso dos elementos convencionados como padrões

para a construção da beleza.

Assim como o “homem-gato”, os “homens-pássaro, leopardo e lagarto” (Figuras

abaixo) sentem a mencionada necessidade de intervir sobre suas próprias aparências para

adotar uma identidade visual que rompe com os ideais de beleza e chega ao território do

estranhamento, buscando um hibridismo entre a aparência humana e a dos animais com

os quais eles se identificam.

Figuras 74, 75, 76 e 77: (Leitura em sentido horário) Ted Richards, o “homem-papagaio”; Tom

Woodbridge, o “homem-leopardo”. Erik Sprague, o “homem-lagarto”. Fotografais S/A e S/D.

Em suma, a organização da imagem pessoal – ou seja, da aparência – apesar de

demonstrar seguir certas regras firmadas nos signos comuns à sociedade em que o

indivíduo está inserido, pode não seguir outro modelo senão o que é captado a partir da

percepção de cada um acerca de si e do que é belo para si.

A imagem que o sujeito cria para passar para o mundo a compreensão de como se

percebe a si, busca propor para o outro a leitura fiel da percepção que construiu de si.

Cada um dos sujeitos vai apreender os signos contidos naquela imagem com base em

94

muitos fatores que não se pode mensurar – dada a subjetivação do desejo de ser pela

aparência.

Neste sentido os critérios que identificamos para a escolha das imagens-exemplo

são os que aceitam o “pintar a cara” como a construção da aparência de si pela

subjetivação do desejo: um gesto, uma atitude, que, conforme BARBOSA (2005, p. 118),

“[...] atribui valores simbólicos a este aparato da indumentária, como propiciador da

construção de personagens. Assim, a máscara é uma vestimenta, ou mídia, da invenção

de alteridades, de outros, em nós”.

95

CAPÍTULO II

O FENÔMENO DA “CARA PINTADA”

Figura 78: Frame de cena do filme Náufrago (20th Century Fox - 2001) em que o actante Tom Hanks

contracena com a bola de vôlei. 25

Toda gente conhece aquela história do homem que, depois de um terrível acidente

aéreo, cai numa ilha deserta e passa dias e mais dias prisioneiro da condição selvagem de

25 Nesse Capítulo, buscamos homenagear algumas “luzes” da actância, ponteando nossas reflexões com

imagens que ilustram o texto – fotografias de agentes significantes da cena, como “caras pintadas”.

96

náufrago. Isso mesmo! O filme Náufrago 26, em que o protagonista, vivendo sofrimento

e solidão, depois de um quase apagamento de sua condição humana, “pinta” um rosto

humanoide em uma bola de Vôlei, da marca Wilson e passa tratar a bola como um

humano, um “ser em si”; a conviver com ela, votando-lhe atenção e consideração. Passa

a tratá-la de Mr. Wilson, seu necessário e precioso parceiro de naufrágio, ponto de

resistência e de conexão com o mundo que conhecera antes da tragédia, seu antagonista

nos diálogos, uma outra voz humana, mesmo que simbólica, no espaço da solidão, uma

esperança.

Figura 79: O cantor Al Jolson realiza a primeira performance de “um branco que canta como um negro”,

para o show business americano, em meados da primeira metade do século XX. 27

Entretanto, para além da narrativa fílmica, poderíamos crer que uma “cara

pintada” numa bola de vôlei nos devolvesse a condição humana em uma situação de

naufrágio? É aceitável que o Mr. Wilson seja um “ser humano” sociocultural? Que há por

trás da “pintura” na bola? Mr. Wilson, antes de ser o coadjuvante na situação dramática

do filme, é uma bola de vôlei. Assim como no cinema, no teatro nos munimos de

26 Película produzida pela 20th Century Fox, dirigida por Robert Zemeckis, lançada mundialmente em

janeiro de 2001. < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-27770/> (Acesso em 12.11.2018; às 23:06h).

27 Nesta imagem vemos o ator Al Jolson com o rosto pintado de preto para interpretar um personagem negro

na televisão. A ação que ganhou o nome de “black face” era muito comum na primeira metade do século

XX, quando aos negros não era dada a devida visibilidade e, por isso, atores brancos eram selecionados

para os papeis de negros retratados pejorativamente. Atualmente esse tipo de ação discriminatória ainda

vem sendo discutida, sobretudo por integrantes de movimentos de luta antirracista, já que a prática não foi

extinguida e ainda podemos ver registros de celebridades fazendo esse tipo de pintura por motivos diversos.

Não iremos nos aprofundar na problemática questão, mas trouxemos a imagem como exemplo da marca

que as “caras pintadas” deixam nas pessoas e na história. (ROGIN, 1996).

97

subterfúgios simbólicos como a narrativa que abriga Mr. Wilson. Mas, antes que lhe

pintem um rosto, Mr. Wilson é uma bola. O que nos leva a questionar, no tocante ao

teatro, há um rosto anterior à maquiagem?

Pintar um rosto (de um Mr. Wilson ou de qualquer personagem) é materializar a

possibilidade de uma crença na existência de sujeitos humanos em cena; pessoas que

viverão no palco os seus conflitos, problemas, sonhos, bloqueios, taras, desejos,

deficiências, enfim, gente como a gente. Pintar um rosto é compor uma dramaturgia, ou

seja, usar a pintura do/no rosto dos actantes como condição da narrativa teatral.

Sabemos que não é apenas a pintura do rosto que determina a construção da

personagem para a cena. Há outros elementos que também possibilitam isso. O que

destacamos, aqui, é que, compreendida por muito tempo apenas como materialidade

plástica da cena, a pintura do rosto comumente é acatada como mera maquiagem.

Considerá-la dramaturgia é reconhecê-la como parte da teatralidade, que pode ser lida,

isolada ou coletivamente, no fluxo da instauração do fenômeno teatral em seu caráter

narrativo e discursivo.

98

2.1 “OUTRO TEATRO”: VOZES DE OUTROS CANTOS

O “outro teatro” será feito nas fábricas, nas escolas, nos

conjuntos habitacionais. O criador não será mais um pássaro

isolado em um galho cortado; outros criadores devem lhe

responder, outros cantos devem nascer, as vozes de milhões de

homens que ainda se calam; um canto do qual não duvidamos

nem da força, nem da beleza, nem da clareza.

(Terceiro salto para a frente –

Alsthom-Bull-Belfort apud RYNGAERT, 1998, p. 49).

O teatro contemporâneo não pertence mais ao texto. E isso parece ser unanimidade

entre os teóricos dos estudos teatrais. O teatro contemporâneo parece ter migrado dos

“lugares” de “beleza” e “arte” para a vida: concreta e orgânica, como são as pessoas que

fazem e assistem teatro. De fato. O teatro contemporâneo sequer se contentou em aceitar

a alcunha de arte na modernidade, se insurgiu contra o pensamento que se tornou parte

de um mundo sem diversidade, sem contradição, sem arestas étnico-sociais, sem

confrontos estéticos, teóricos, essenciais. O teatro contemporâneo também não é mais

refém da encenação, abriu espaço para discussões que permitem o corpo vivo exercer

papel fundamental nos acontecimentos da cena. Aproximou-se das tecnologias e das

linguagens, refutando parte do que se determinou como modelo, convenção, arbítrio. O

teatro, enfim, contemporâneo se humanizou.

2.1.1 O Teatro do Século XX ou “Um canto de revolta pelos ares” 28

Em um primoroso estudo histórico-crítico acerca do teatro, desde Aristóteles até

o teatro produzido nos anos de 1980, com especial dedicação à herança europeia, o

professor e crítico teatral Marvin Carlson (1997) nos apresenta com minúcia o transcurso

vivido nos centros de produção de teatro. Seu livro As Teorias do Teatro deve ser notado

como um instrumento acadêmico de profundo valor formativo para os estudos teatrais. A

partir dele, norteamos todo o estudo historiográfico que se fez necessário nessa pesquisa

para dar sustentabilidade à compreensão que buscamos da dramaturgia teatral e seus

desdobramentos.

28 Trecho da canção Canto das três raças – Mauro Duarte; Paulo César Pinheiro (1976).

99

Obviamente, o livro de Marvin Carlson (1997) ultrapassa as questões pertinentes

ao texto e a semiologia teatral. Para além das origens e manifestação do teatro – dos

Gregos até nós – CARLSON (1997, p. 241-523) promove uma revisão crítica singular,

nos capítulos que vão do 17 ao 22, em que discute os primórdios do século XX; as grandes

revoluções ocorridas nesse século; os pontos de continuidade e ruptura da representação,

da teatralidade, da autoria, das dinâmicas de grupos, da produção e da estética do teatro;

e culmina com uma síntese do que passou a se denominar teatro contemporâneo, inclusive

aproximando-o da filosofia, da linguística, da psicologia e dos estudos culturais,

prováveis matrizes do teatro do século XXI.

Nesta perspectiva, estudando o que chamou de “ruptura com a tradição romântica

alemã” (CARLSON, 1997, p.241-263) e “abandono das estéticas do classicismo francês”

(Idem, p. 265-294), Carlson perpassa com seu olhar crítico: 1) a teoria simbolista do teatro

– apresentando as principais ideias que fomentam uma possível atualização do teatro

frente a sociedade industrial de massa; 2) a emergência do “realismo” – sua genealogia

russo-polonesa, seu apogeu no Teatro de Arte de Moscou (Stanislavski) e seu declínio a

partir da compreensão ampliada do sentido de drama, com a presença de Meierhold (e o

naturalismo biomecânico) e Maiakovski (e o futurismo abstracionista); o aparecimento

do teatro abstrato, surrealista, dadaísta, que se notabilizara pela aproximação do teatro

com teorias da psicologia e das vanguardas artísticas em ebulição entre os séculos (Idem,

p. 230-328); 3) o início do século XX, com a politização do teatro, a crítica à

representação, o futurismo “formista” e o expressionismo (Idem, p. 329-338).

2.1.1.1 Songs: Brecht e o Teatro Épico 29

Não é de hoje que a cena teatral tem se esforçado para romper com a tradição

clássica. Com isso, o teatro passou a ter novo valor na sociedade e cultura de massa. Um

sintoma muito específico da historicidade do teatro do século XX é Bertolt Brecht e sua

revisão do teatro a partir de uma dinâmica materialista histórica, centrada no paradigma

filosófico da dialética sociológica. Tal revisão implica o nascimento do Teatro Épico de

Brecht, que se ampliara para além do épico que sempre existiu na tradição teatral

(BORNHEIM, 1992, p. 317-318).

29 Aqui, aludimos às songs brechtianas: canções no Teatro Épico, “[...] que ilustra uma situação ou um

estado d’alma.” (PAVIS, 1999, p. 367).

100

Dessa forma, na fricção entre o estado geral das coisas, que se apresentam como

condição política da sociedade pós-guerra e a própria falência do teatro em sua face

pública, essencial à sociedade reflexiva, Brecht compreendera que era necessário

ultrapassar o “teatro de ilusão”, ou seja, “o drama burguês”, que tivera assunção a partir

da crise romântica, com:

[...] Ibsen (1828-1906), Tchékhov (1860-1904), Strindberg (1849-1912),

Maeterlinck (1862-1949) e Hauptmann (1862-1946), pois a busca pelo

contexto de origem da peça moderna começa necessariamente por uma

confrontação das obras do final do século XIX com os fenômenos do drama

clássico [...] o drama desenvolvido no Renascimento [...] — a dramaturgia

moderna. (SZONDI, 2001, p. 35).

O dramaturgo alemão reformula seu ataque crítico, antes endereçado apenas à

dramaturgia “clássica”, com uma crítica generalizada à produção teatral que surgira na

Europa a partir da retomada dos estudos das obras de Aristóteles, encontrada em

fragmentos, por historiadores dos séculos XVII e XVIII.

Para Brecht, a carga ideológica do drama burguês escamoteava a dimensão

trágica, pertinente à dimensão humana. Bem como, os modos de produção do teatro

estavam contaminados pelos princípios gerais do capitalismo, sobretudo, na

hierarquização do comando e da potência dos discursos dirigidos a públicos e actantes.

No que tratou como uma “dramaturgia Não-Aristotélica”, Brecht distingue a sua

dramaturgia justamente no tocante à relevância emprestada ao “jogo das contradições”

(BORNHEIM, 1992, p. 316), dentro do fazer poético do teatro.

[...] a chamada dramaturgia não-aristotélica avantajou-se em muito em relação

aos velhos procedimentos teatrais. Enquanto a tradição aristotélica revela-se

formalmente exangue e repetitiva, a outra reformula tudo e persegue a

pluralidade formal. Assim, de um lado, descobre-se que o teatro não

aristotélico oferece uma bela tradição: os medievais, os espanhóis, do século

de Ouro, as “histórias” de Shakespeare e seus colegas e, mais recentemente, as

incursões românticas, como as de Grabbe e Büchner. E, de outro lado, impõe-

se um novo tipo de estética dramatúrgica, e isso já "em pleno século XX: de

Paul Claudel à Thornton Wilder, de Schéadé à Lorca, de Brecht [...]”

(BORNHEIM, 1992, p. 318).

Para Brecht, o Teatro Épico tinha como intenções:

1. A relativização da ação - Quando o espectador vê a ação cênica não deve

pensar apenas nela, mas também na vida social concreta, extra teatral que se

encontra na base daquela ação. Nesse sentido, o que se vê no palco é

relativizado, a ação cênica se torna relativa a algo que ela não é, à própria vida

social;

101

2. A interrupção da ação – [...] "corpos estranhos" (a expressão é de Brecht)

refere-se às canções (ou songs, como prefere Brecht). Mas neste item poder-

se-iam incluir também os comentários que, do ponto de vista formal, recebem

o mesmo tratamento das canções. A canção funciona como um corpo estranho

porque não se insere na continuidade da própria ação cênica, não brota de

dentro de uma situação como que para coroá-la, à maneira do cinema musical

americano. A canção brechtiana deve de certo modo perturbar a continuidade

da ação. Tal perturbação acontece em diversos níveis. [...] Um segundo

expediente está no modo de apresentação das canções por parte dos atores.

Modifica-se a “personalidade estética” dos atores, precisamente porque eles

substituem a função de ator pela de cantor. [...] O cantor deve dirigir-se

abertamente, diretamente ao público. [...] Nesse sentido, o cantor impede o

simples fluir da ação cênica — ele a interrompe. E essa ambiguidade vai além

disso, porque define a própria "natureza" e a canção: ela apresenta caráter de

exemplaridade. [A partir da ruptura pela ambiguidade do papel do ator durante

a canção, a] ação é rompida pelo espectador. Sublinhe-se aqui, mais uma vez,

a participação do público.

3. O distanciamento da ação – O distanciamento é realizado por meio de dois

aspectos. [...] O primeiro refere-se às questões do espaço e do tempo: não há

unidade de espaço e de tempo, [...] já por aí, o espaço propriamente cênico,

onde acontece a ação, é distanciado. É como se o espectador já não visse

diretamente a ação cênica [...] rompe-se a unidade tempo. [...] E o resultado é

que o tempo dramático se deixa distanciar, já não se dá ao espectador de modo

imediato, ou a dimensão de imediatez é constantemente interrompida pelo

canto ou pelo comentário; [...] dessa duplicidade de espaço e tempo que o palco

tende a abrigar cenas simultâneas. [...] Já não se pode falar em ação cênica em

toda a sua pureza, posto que ela chega a desdobrar-se em duas ações, em ações

simultâneas. [...] Um segundo ponto prende-se à realidade estética da

dramaturgia. [...] drama enquanto espetáculo. Busca-se, ao contrário, distinguir

duas esferas estéticas, relativamente autônomas e relativamente independentes

uma da outra. [...] A esfera dramática é dominada pelo princípio da percepção,

e é passageira assim como a percepção é passageira. Já a esfera épica mostra-

se relativamente muito mais pobre de realidade, não ostenta o mesmo colorido.

4. A ação enquanto instigadora de tomada de decisões – Neste tópico

sublinha-se melhor o que já se apontou acima: a participação do público. A

relativização, a ruptura e o distanciamento da ação têm por finalidade fazer

com que o público tome decisões. E é precisamente a dimensão épica, o

representar dirigido para o público, que propicia a tomada de decisões. Nesse

sentido, o espetáculo propõe uma espécie de solicitação ao público, para que

ele se decida, o que deve acontecer invariavelmente dentro de um contexto

ético-social. A ação instiga a tomar decisões de diversas maneiras, em diversos

planos. [...] Brecht sintetiza esse procedimento dizendo que aquele que mostra

também deve ser mostrado. Compete, pois, ao ator mostrar o personagem, e

mostrar-se a si próprio mostrando o personagem.

5. A continuação da ação (no sentido de que ela não termina com o fim da

peça) – O cuidado aqui está em que o espectador não se possa fixar na

linearidade compreendida como um todo acabado da ação, justamente um dos

pontos de honra da dramaturgia aristotélica. [...] há diversas possibilidades de

verificar-se, ou não, a continuação, e o tema pode ser sintetizado nos seguintes

termos: em (a) a continuação se concentra dentro da estrutura interna da peça;

por serem as cenas independentes, elas trazem implícitas em si o princípio da

102

continuação: o que chamei de descontinuidade exige a continuação. Em (b) a

continuação da ação se prolonga depois de concluída a peça: não há conclusão.

Em (c) não há propriamente uma solução. A solução oferecida é puramente

exterior às exigências da ação dramática; essa exterioridade deixa aberto o

problema da continuação, mas ao mesmo tempo o esconde. Em (d) há solução

final que decorre de dentro da ação dramática; desse modo, a continuação da

ação é suspensa. (BORNHEIM, 1992, p. 319-326).

Além dessa mudança de paradigma em relação a cena, Brecht também propõe

uma mudança de paradigma em relação a organização estética do espetáculo, que não

mais busca uma naturalização da cena pautada pela ilusão da verossimilhança, como

aponta Barthes (1955) usando a indumentária como exemplo, em uso de um conceito que

acreditamos cabíveis às outras forças componentes da cena teatral e suas respectivas

organizações de signos:

A indumentária como Gestus nada tem a ver com o naturalismo ou com a

exibição tradicional. Ela é, antes, um argumento baseado num “meticuloso

código de vestuário” e selecionado para comunicar “ideias, informações,

sentimentos.

Esse elemento não deve ter natureza parasitária, mas ligar-se organicamente

aos outros componentes da produção, um signo solidário com outros signos.

(BARTHES apud CARLSON, 1997, p. 400-401).

No Brasil, a presença marcante do Teatro Épico se desenvolve em consonância

com a própria afirmação de uma história do moderno teatro brasileiro, conforme estudos

do professor e crítico de teatro, Décio de Almeida Prado ( ), e da professora Iná Camargo

Costa (1996).

Costa (1996, p. 35 - 50) aponta a resistência dos encenadores brasileiros da década

de 1950 não apenas em aplicar as técnicas de Brecht, mas até mesmo em procurar

entender as reflexões que levaram o dramaturgo a romper com o teatro e a dramaturgia

clássicos. E ainda mais resistentes se mostravam os críticos, que afirmavam que “o teatro

épico [era] um empobrecimento da linguagem teatral, um retrocesso estético, decorrente

de uma clara estratégia política – já identificada como com o comunismo” (p. 42) e que

as obras escritas de Brecht até poderiam atrair, mas que as cenas provenientes delas não

era tão interessantes.

Devido às razões supracitadas, às dificuldades impostas pela Estado Novo ao tipo

de reflexão que o trabalho de Brecht propunha, a fidelidade dos artistas brasileiros ao

103

teatro francês, bem como a resistência por parte dos críticos, o teatro épico demorou a

participar do fazer artístico brasileiro (COSTA, 1996, p. 51).

Figura 80: “Cara Pintada” do actante Cláudio Tovar em Dzi Croquettes. Fotografia S/A e S/D. 30

30 Em 1972, um grupo de rapazes vestindo roupas consideradas femininas, utilizando muita maquiagem e

purpurina, apresentou números de dança e teatro em um clube de Niterói e em um programa de televisão

bastante popular na época. Batizaram-se de "Dzi Croquettes", o que aguçou ainda mais a curiosidade do

público sobre quem eram eles, que tipo de espetáculo faziam e qual o significado do nome que utilizavam.

A dissertação de mestrado de Rosemary Lobert, defendida na UNICAMP em 1979, sob a orientação do

professor Peter Fry, é agora publicada como o livro A Palavra Mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes.

[...] Na vida e no palco, os Dzi Croquettes esquivavam-se de enquadramentos, classificações e definições

fechadas, o que quer dizer que eles evitavam classificar a si mesmos e aos outros. [...] A centralidade das

classificações mostrou-se desde a divulgação do espetáculo, que precisava ser definido quanto a um "tipo"

artístico. A opção escolhida (pelos próprios Dzi Croquettes) foi enquadrá-lo como um "show de travestis".

Segundo Lobert, a escolha deve ser compreendida no contexto em que a terminologia "travesti" estava

enraizada na produção artística e comercial dos anos 70, enquanto o termo "homossexual" remetia ao

sensacionalismo do noticiário criminal ou ao universo da prostituição masculina. [...] O uso do termo

[travesti] remete a uma das cenas do espetáculo, na qual o protagonista de "As Borboletas" afirma que de

"um novo renascimento" havia surgido um "novo ser" que trazia "toda a força do macho e toda a graça da

fêmea". Apesar de o artista inicialmente evitar nomear este "novo ser" ("eu só não sei explicá-lo", em suas

palavras), a definição é lançada: "é o Andrógino!", que sai em um grito [...] "andrógino" passou a significar

uma simples alternativa à categoria "homossexual" [...] Embora a filosofia dos Dzi Croquettes apontasse

para uma não segmentação das identidades (entre negros, brancos, gays ou heterossexuais), a tendência

geral do público - em boa parte catalisada pela mídia, ou vive-versa - foi relacioná-los a movimentos como

104

2.1.1.2 Do Teatro “do absurdo” e do “transe” do corpo teatral

A Europa do final da Segunda Grande Guerra, ainda rescaldada pelos fracassos

da Primeira Grande Guerra e mais avassalada do que nunca, destruída e sem nenhuma

possibilidade de crença no futuro, engendrara uma produção teatral de “suas ruínas”. É a

partir deste cenário caótico que o teatro do pós-guerra se caracterizou como um fenômeno

de denúncia e reflexão acerca das profundas migrações e perdas: de direitos, de

estabilidades, de matrizes culturais e de práticas civilizatórias. O teatro que emerge deste

caos é calcado na crítica absoluta à esperança, à lógica do mundo, aos sistemas, dentre

eles, o próprio teatro – tal manifestação ganhara a partir da crítica ao teatro de Jean

Cocteau (Idem, p. 334), de Eugène Ionesco (Idem, p. 399-400) e Samuel Beckett (Idem;

Ibidem) a alcunha de Teatro do Absurdo.

É a partir dessa ruptura com a lógica ascendente da civilização humana, sobretudo,

calcada na crítica à própria lógica do drama, dos modos de produção teatrais e da presença

do actante em cena (sua arte, suas técnicas, sua vivacidade) que o teatro contemporâneo

pôde se organizar como um fértil campo de estudos para as mais diversas possibilidades

discursivas e narrativas.

Os anos 60 assistiram ao regresso de uma utopia da preeminência de uma

teatralidade ancorada no corpo e na imaginação do ator. o “teatro de texto” é

então suspeito de propagar uma cultura morta e inerte, na linha direta de

valores denominados ora literários, ora burgueses. O questionamento radical

do teatro de repertório e dos “clássicos” que constituem seu esqueleto tornou

suspeito, então, qualquer texto de teatro, mesmo contemporâneo, a tal ponto

que os outros autores vivos conheceram ainda maiores dificuldades para ter

suas peças representadas nesse período. (RYNGAERT, 1996, p. 27).

As suspeitas sobre o valor filosófico, antropológico e histórico dos textos de teatro

refletem dinâmicas não apenas do pensamento ou dos modos de pensar. Como vimos, há

uma ansiedade da própria poética teatral contemporânea em fazer acontecer, nos

fenômenos teatrais, a manifestação dos diversos elementos que a compõem, reiterando o

próprio ideal de ruptura com a hegemonia da palavra sobre os outros elementos da

narrativa teatral.

O teatro tornou-se mais culinário e ao mesmo tempo mais espartano do que

nunca, mais intelectual e subjetivo, gosta de posar de antiteatro. Ele está

tentando verificar até onde pode ir, no questionamento da sua própria validade

conta com a possibilidade de servir-se de todos os mecanismos teatrais

o "Gay-Power" norte-americano. Sublinhando a particularidade do grupo ao mesmo tempo em que o

associava a determinado contexto, falou-se em "Croquette-Power". (LACERDA, 2011).

105

modernos concebíveis ou de provar, ao contrário, que não necessita de

absolutamente nenhum acessório cênico. (BERTHOLD, 2001, p. 522).

Partindo desse pressuposto, é de se considerar que muito do que se pensa que o

teatro perdeu ao abandonar o modelo estruturante “clássico”, pode ser reconhecido como

ganho, uma vez que emerge em sua realização outros valores que não apenas aqueles de

matriz europeia. O texto ou a encenação ganham em condicionamento de novas culturas,

novas fontes, de corpos vivos, de valores semânticos, de novas formas de enquadramento

do mundo a partir do que se chamou de teatro intercultural 31.

Ionesco dá a sua obra A cantora careca o subtítulo de “antipeça”. Os críticos

forjaram, provavelmente com base neste modelo, “antiteatro”, que se refere a

formas dramatúrgicas que negam todos os princípios da ilusão teatral e toda

sujeição às convenções dramáticas admitidas. O termo aparece à propósito de

Esperando Godot, de Samuel Beckett, o que traduz então a dimensão negativa

de obras que recusam a imitação, a ilusão, a construção lógica e que se

consagrariam a destruir os princípios admitidos até então pelo teatro burguês.

(RYNGAERT, 1998, p. 224)

Alguns fatos ocorridos na Europa, a partir de 1968, tais como a tomada do Théâtre

National de l’Odéon (em Paris) por estudantes e a contestação do público à representação

de Paradise Now de Jean Vilar, foram de suma importância para a mudança que ocorreria

com a prática teatral, desde aquela época até nós, ainda que de maneira indireta. Os

autores transpuseram para seus trabalhos o reflexo das mudanças que começavam a se

fazer pungentes no cenário artístico e político da sua atualidade.

Essas mudanças, não apenas no pensamento, mas nas práticas, buscavam tocar o

espectador através de seus sentidos e, sobretudo, causar nele uma transformação

psicológica, que para ser atingida necessitava de um meio de comunicação mais imediato

do que a linguagem verbal (RYNGAERT, 1998).

31 A queda do muro de Berlim e o fim do comunismo em 1989 marcam uma virada decisiva para o

pensamento intercultural. Esse pensamento significa o desaparecimento do princípio de universalidade, o

do humanismo ocidental, assim como o do internacionalismo proletário, florão fanado do socialismo. [...]

nos anos de 1970 e 1980, o interculturalismo foi antes bem acolhido pelos poderes de direita como os de

esquerda, pois ele parecia querer estabelecer uma ponte, um diálogo entre culturas separadas ou grupo

étnicos que se ignoravam. Após o 11 de setembro de 2001, todavia, um temor em relação a culturas mal

conhecidas pode conduzir a certa desconfiança com respeito às performances interculturais. Talvez seja

este o sinal de que a metáfora da troca entre uma cultura e outra, entre o presente e o passado, não funciona

mais tão bem e que seria preciso ao menos rever a sua teoria. A teoria e a prática do teatro intercultural dos

anos 1980 se vêem como que superadas pela mise em scène e a performance atuais. Como se não pudesse

mais pensá-las em termo de identidade nacional ou cultura. (PAVIS, 2017, p. 169-170).

106

A prática teatral tornara-se, portanto, referência à constituição de uma nova

linguagem para o teatro. Essa nova linguagem vai se pautar pelo aspecto imagético, já

que o texto falado precisa formular um percurso narrativo para se conectar com o

espectador; “as imagens, porém, se apresentam à nossa consciência instantaneamente”

(MANGUEL, 2001, p. 25) e, portanto, se fazem mais eficientes nesse novo teatro

proposto.

Figura 81: “Cara Pintada” do actante Procópio Ferreira, nos primórdios do Teatro Brasileiro Moderno,

no espetáculo O Avarento. Fotografia S/A e S/D.

Em contraposição complementar à questão imagética da linguagem, o corpo e a

imaginação do actante tornaram-se o centro das operações que envolviam os processos

criativos. A partir do advento do Existencialismo filosófico, sobretudo a partir da

compreensão da “percepção” como saber do/no corpo (MERLEAU-PONTY, 1996) e da

“impossibilidade” da palavra de suprir as vagas afetivas que o corpo constrói como

linguagem (BAKHTIN, 2006), ocorrera um retorno ao pensamento de Antonin Artaud

que vigorou como chancela libertária do teatro contemporâneo até o final do século XX.

“O teatro... deve romper com a atualidade..., seu objetivo não é resolver conflitos

sociais ou psicológicos..., mas exprimir objetivamente verdades secretas.” (ROUBINE,

2003, p. 189), é assim que Artaud influencia as experiências teatrais para que evoquem

mergulhos profundos no âmago dos organismos vivos (actantes/espectadores), que

buscavam recriar “o princípio da atualidade”, determinando o afastamento do teatro de

toda atualidade circunstancial, efêmera, de superfície.

São o corpo e suas forças secretas e profundas que devem governar o teatro,

pensava-se. O living theatre, nos Estados Unidos e depois na Europa,

Grotowski na Polônia e na esteira deles muitos dos partidários da criação

coletiva, entregaram-se a vertigem da improvisação, apelando por vezes a

Antonin Artaud. Este havia sonhado com uma ressacralização do teatro, com

uma eliminação do texto em favor do gesto e do movimento, com um contato

direto entre o criador demiurgo e o palco. (RYNGAERT, 1996, p. 27).

107

Assim, os últimos séculos do teatro ocidental foram marcados por diversas

“crises” e tentativas de solução de “crises”. Haveria mesmo essas crises? Em nossos dias,

é diferente? Não seria a própria condição de profunda dinâmica que, com ou sem crises,

marca o teatro, exatamente, por sua aproximação intrínseca com a vida, o conhecimento,

a história e a sociedade? Se suas raízes românticas foram abandonadas no século XX, sem

elas o teatro conseguiu adquirir proporções, enquanto fenômeno, poética e linguagem,

muito maiores.

Dentre os ganhos que nisso reconhecemos encontra-se o fato de que

[...] O ator começa a ser valorizado sob muitos aspectos: pantomima,

acrobacia, canto, dança etc. E se essa maior amplidão é exigida pelo teatro

teatral, ela também deve ser compreendida a partir da própria dramaturgia. Ao

tempo de Ibsen, o drama, à maneira do próprio Ibsen, era praticamente o único

gênero dramático admitido: os outros não existiam, ou só eram praticados em

condição de inferioridade. De nossos dias, ao contrário, pode-se dizer que

todos os gêneros dramáticos são cultivados. (BORNHEIM, 2007, p. 18).

Em decorrência dessa ampliação do valor do actante e da teatralidade, o corpo (e

suas infinitas formas discursivas) passa a se constituir como significante, em outras

chaves, além de sua condição instrumental ou psicológica. O teatro não é mais literário;

o corpo não é mais “a casa” da alma; as texturas sociais não são mais positivistas;

inclusive, em certos casos, o palco passa a ser compreendido apenas como palco, e não

como a sombra da divinização do teatro das esferas mitológicas e nem “clássicas”. A

sacralização que se percebe, neste teatro do nosso tempo, não reside na transcendência do

“mito” nem dos “transes”, mas na poética que se perpetua entre o actante e o espectador,

mediada por infinitas possibilidades discursivas, tecnológicas, narrativas.

“Pintar a cara” (bem como o corpo, da qual não a dissociamos) é uma das mais

antigas manifestações humanas de transmutação registradas na história da humanidade,

como mencionado anteriormente.

2.1.2 Da pele e sua sacralização

Encontramos menção, tanto na história da maquiagem (ELDRIDGE, 2015, p. 13),

quanto na história do teatro (BERTHOLD, 2001, p. 1-4) de pinturas corporais feitas por

tribos primitivas, desde a era do gelo, para diferentes rituais – sobretudo de cunho

108

espiritual – que podemos conjecturar como sendo uma versão primitiva do que viria a ser

a maquiagem/caracterização cênica, posto que essas pinturas tinham a intenção de

informar que aquele indivíduo estava fora do seu eu cotidiano, muitas vezes

representando as divindades a quem prestavam suas homenagens. Ou seja, há dezenas –

talvez até centenas – de milhares de anos, através da pintura, o indivíduo sai do seu eu

para tornar-se outro, um outro transcendente.

Escondendo em si a característica visual do ego – o rosto e suas feições – o

indivíduo (brincante/actante) é capaz de transcender (quer seja em rituais espirituais para

manifestar suas entidades divinas ou em narrativas cênicas, comuns à tradição teatral) e

se conectar, através da pele, ao ser poético (divino ou teatral), pela pintura ritualística, em

um mesmo fenômeno. Portanto, a transcendência ocorrida no rosto dos actantes pelo uso

da pintura é o principal ponto de convergência entre a corporeidade e sua significação

simbólica no teatro, isto é, o advento da dramaturgia da “cara pintada”.

2.1.2.1 A Flor

Termo de Zeami (1363-1443), autor e teórico japonês do Nô. A flor é “o

sentimento do insólito tal como o experimenta o espectador” [Zeami, 1960,

p.104]. Ela é efêmera, ligada à idade do ator, em “um momento antes dos 30

anos (1960, p.79). É igualmente a imagem ideal do espetáculo descrito na sua

beleza transitória, misteriosa. (PAVIS, 2017, p. 136).

Zeami encontra na flor a figura que descrevem os poetas. A figura que, além de

sua condição biológica de delicadeza e efemeridade, carrega em si o mistério que sua

transitoriedade lhe permite adquirir. Desta via, a flor, assim como a poética do actante,

atrai um olhar que pretende, mais do que admirá-la e atestar sua condição de beleza fugaz,

desvendá-la.

Essa noção, assaz inapreensível, é, no entanto, retomada pelo pensamento

contemporâneo do teatro, tão logo este procura se emancipar de uma teoria

semiótica dos signos da representação, como em Lyotard: “Sob o nome de flor,

busca-se a identificação energética do dispositivo teatral” [1973, p. 98]. O ator

ou a representação não são mais então analisados como sistemas de signos,

porém como “afetos de intensidade muito alta” [idem, p. 99]. A flor torna-se

uma metáfora cômoda para os momentos em que “a magia do teatro se instala”

[Brook, 2007, p. 45], “em que aquilo que faz o ator e aquilo que faz o público

atinjam um ponto em que a vida circula – como ato de criação – quando, do

nada, alguma coisa é criada” [idem, p. 46]. (PAVIS, 2017, p.136).

109

A flor é o “resultado” da planta. Parte de sua pele que desabrocha para o mundo

em sensibilidade, estesia, poesia. Talvez por isso tantos poetas tenham se encantado por

sua superfície efêmera e a usado para traduzir suas emoções. Uma vez que “as imagens

que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias” (MANGUEL,

2001, p.21), o actante, enquanto poeta da cena, se utiliza dessa linguagem para criar

também a “sua flor”, embora não na perspectiva do discurso-palavra-falada, mas, como

um ser que oferece aos sentidos (através do desafio da percepção e compreensão de sua

beleza, seu cheiro, seu néctar) um pouso atraente para uma troca, uma experiência que

visa transformar aquele que dela se aproxima para saborear sua existência através dos

sentidos.

Assim também faz o actante: abre sua flor nos palcos para exalar para o público a

sua poética. “A flor é uma das mais belas imagens para exprimir o inefável do ator, a

intensidade e o prazer de seu encontro com o público, o momento insólito de fusão entre

espetáculo e espectador”. (PAVIS, 2017, p.136).

Ao andar pela rua asfaltada e ver à frente uma bela xanana 32 que rompe o cimento

e se projeta para o sol, um olhar demora-se, uma respiração suspende-se, um sorriso abre-

se... enfim, somos tocados pela flor, ou, mais precisamente, pela experiência desse

encontro. Portanto, embora não se costume pensar na flor como uma potência, o encontro

com sua beleza é potencialmente transformador. Este mesmo momento de suspensão e

encanto rege o encontro do actante com seu público quando este se faz presente no

momento cênico.

Não há no corpo do actante superfície e atmosfera mais análogas à flor que sua

comunicação facial. O rosto do actante, muito mais do que a face humana reconhecível,

é um campo de mistério e prazer que se estabelece pela expressão. A flor é a “máscara”

que o actante constrói a partir de si.

[...] a partir do momento em que alguém aceita esse fato como verdadeiro e se

começa a interrogar a seu respeito, pode-se verificar que a expressão facial

costumeira ou oculta, que não está em sintonia com aquilo que não está

acontecendo por dentro (sendo uma máscara nesse sentido), ou passa uma

versão embelezada: representa um processo interno num viés mais lisonjeador

ou atraente; apresenta uma impressão mentirosa. A expressão cotidiana se

constitui numa máscara na medida em que não passa de uma ocultação, ou de

uma mentira; não está em harmonia com o movimento interno. Assim, se o

32 Flor da espécie Turnera que é conhecida no Nordeste brasileiro pelo nome popular de chanana e, em

outros lugares do país como “flor-do-guarujá”. Crescem em subarbustos e frutificam e florescem o ano

inteiro. (BARBOSA; SILVA; AGRA, 2007).

110

rosto de alguém opera tão perfeitamente enquanto máscara, qual é o objetivo

de assumir outro rosto? (BROOK, 1995, p. 288).

A flor de Zeami afirma-se como uma metáfora eficaz para a dramaturgia da “cara

pintada”. Da mesma forma, compreende em si a dimensão metonímica do gesto universal

de ser a “arte” do actante. Pensando em uma pragmática para essa metáfora (ORLANDI,

1993, p. 34-36), também não falamos em maquiagem e nem em máscaras. Falamos na

delicada ação de manter-se em presença física, material, por conta das imagens que se

podem construir nas faces e, com elas, abrir índices de significados capazes de serem

reconhecidos no conjunto da encenação, como parte da total narrativa que se conta no

teatro, isto é, uma dramaturgia inscrita na pele.

Figura 82: “Cara Pintada” da actante Fernanda Montenegro. Fotografia S/A e S/D.

2.1.2.2 A Pele

A pele é essa barreira fronteiriça entre o indivíduo e o mundo ou, quem sabe, o

elo que os mantém unidos na mesma dimensão de materialidade, que permite a percepção

do que está dentro, pela superfície delineada. Esse importante órgão do sistema nervoso

que, “além de demonstrar o estado exterior e interior de nossos órgãos, mostra também

111

nossos processos e reações psíquicas em geral” (HOFFMANN; ZOGBI; FLECK;

MÜLLER, 2005, p. 53). Ou seja, praticamente tudo o que vivenciamos e que

exteriorizamos para o mundo, precisa passar por nossa superfície: a pele, que “é o espelho

do funcionamento do organismo: sua cor, textura, umidade, secura, e cada um de seus

demais aspectos refletem nosso estado de ser, psicológico e também fisiológico”

(MONTAGU apud HOFFMANN; ZOGBI; FLECK; MÜLLER, 2005, p. 30).

Figura 83: “Cara Pintada” da actante e militante feminista brasileira Ruth Escobar. Fotografia S/A e S/D.

A pele, portanto, forma um canal da comunicação pré-verbal, em que os

sentimentos podem ser vivenciados e observados pelo outro, independente de nosso

interesse em expressá-los (PINES apud HOFFMANN; ZOGBI; FLECK; MÜLLER,

2005, p. 67).

Como exemplo, Silva (2002) cita que o rubor (enrubescimento da face) é

encontrado, habitualmente, em pessoas que, temendo mostrar seus

sentimentos, os exprimem de forma involuntária associando-se, com

freqüência[sic], a emoções ou pensamentos proibidos, com conteúdo sexual ou

agressivo. A sudorese intensa é também citada pelo autor, visto que exprime

um estado de ansiedade crônica.

Anzieu (1989) segue a mesma linha de raciocínio, ao afirmar que a pele é o

envelope do corpo, assim como este é o envelope do psíquico. É por meio das

experiências do próprio corpo e com a mãe que a criança desenvolve seu eu

psíquico, daí este autor chamar de “Eu-pele” esta representação, que se mostra

físico-psíquica. (HOFFMANN; ZOGBI; FLECK; MÜLLER, 2005, p. 78).

112

A construção do “eu” é, portanto, tanto psicológica, quanto fisiológica. Para além

dos estudos da psicologia, tão caros ao fenômeno teatral e seus estudos, as Artes Cênicas

e artes do espetáculo parecem carecer de um estudo mais aprofundado da dimensão

fisiológica do corpo, talvez, como os estudos da dança nos tem demonstrado.

No tocante à constituição fisiológica do actante, a dimensão de sua existência

materializa-se a partir da construção de um “Eu-pele”, condição orgânica de

expressividade e da própria manifestação do ser, conforme vimos na citação anterior.

Encontramos também referência em Magalhães de que o corpo como Eu-pele “é um corpo

cinestésico, um invólucro suscetível de funcionar como superfície de inscrição, e de

engendrar por debreagem [33] o conjunto dos suportes semióticos, os substratos materiais

do plano da expressão” (FONTANILLE apud MAGALHÃES, 2010, p. 54).

Figura 84: “Cara Pintada” da atriz Tereza Raquel, no espetáculo A Mãe. 34 Fotografia S/A e S/D.

33 Nota de rodapé da autora supracitada, que nos contempla em relação ao termo: O conceito das operações

de debreagem (...) não será utilizado neste trabalho. Verificar GREIMAS e COURTÉS. Dicionário de

Semiótica, 2008, p. 159; e FONTANILLE e ZILBERBERG. Tensão e significação, 2001, p. 200.

(MAGALHÃES, 2010, p. 55).

34 Escrita em 1924 pelo filósofo, pintor e dramaturgo polonês Stanislaw Witkiewicz, A Mãe é uma

realização da Companhia Tereza Raquel que traz o diretor francês Claude Régy para remontar, com atores

brasileiros, o espetáculo que, em 1970, obteve grande sucesso em Paris. (Fonte: MICHALSKI, 2004. p.

171.).

113

Quantas manifestações ocorrem na pele do actante, instintivas ou expressivas, que

são fenômenos fisiológicos da pele? Assim como o “rubor” ou a “sudorese”, as contrações

musculares que reverberam na superfície, o ressecamento, as urticárias nervosas, os

tremores involuntários, todas estas são manifestações comuns da pele enquanto “o ponto

zero” da dramaturgia da “cara pintada”. Bem antes do actante destinar-se a um esforço de

criar com seu rosto usando pigmentos e cosméticos, a pele já é expressa e expressiva, dela

os actantes fazem uso para construir e realizar sua arte.

Mexer nessa dimensão discursiva do corpo, alterando-a a ponto de torná-la

reconhecível por um viés contrário ao de sua realidade cotidiana, é criar uma narrativa,

uma dramaturgia e, por isso, “todas as culturas teatrais procuram dramatizar os aspectos

faciais acentuando-os, deformando-os ou alargando-os” (BARBA; SAVARESE, 1995, p.

116).

Focamos na dramaturgia da cara pintada como recorte desta pesquisa, no entanto,

em nenhum instante, no presente trabalho, desconsideramos a dimensão corporal como

construção actante. Não afirmamos a individualidade do poder da cara pintada. Não há

cara (rosto) sem um corpo (presença). No entanto, cremos que a cara pintada (material) e

sua construção (gesto poético de se pintar) são parte fundantes do fenômeno que

consideramos “presença” ou que se estabelece como a dramaturgia do corpo.

Figura 85: “Caras Pintadas” dos actantes José Wilker e Tereza Raquel, em A Mãe. Fotografia S/A e S/D.

A pele tem sido a tela do indivíduo, através dela ele se expressa e manifesta signos

que dialogam com a sociedade em que ele está inserido. Podemos observar alguns

114

exemplos de sociedades cuja imagem física das pessoas cumpre uma função narrativa

especifica, como, por exemplo, as tribos Maori, nativas da Nova Zelândia que, há séculos

pintam seus corpos e rostos com tinta preta permanente, atribuindo diversos significados

políticos, sociais e espirituais através das marcas tatuadas. Neste grupo social, quanto

mais tatuagens tem o indivíduo, mais influência política e social ele tem dentro de sua

tribo.

A etnia Mursi e Karo do Vale do Omo, no sul da Etiópia (África) tem diversos

rituais relacionados à beleza. Os Mursi praticam a escarificação desde cedo nos rituais de

transição das crianças para a vida adulta. Estas marcas servem como elemento estético –

sendo consideradas símbolo de beleza – e como elemento narrativo, informando a

maturidade dos Mursi, e sua disposição para o casamento e geração de filhos. Além disso,

é comum que se utilizem de diversos elementos agregados ao corpo a fim de embelezá-

lo, tais como discos de madeira colocados como alargadores de orelhas e bocas, chifres

de animais usados como brincos ou adornos para a cabeça, além de vegetais, metais e

outros elementos que encontram em suas terras. Já os nativos da tribo Karo são exímios

pintores faciais e corporais, e utilizam-se dessa caracterização inscrita na pele com

elementos naturais (como carvão vegetal, giz branco, terra amarela, entre outros) como

um elemento valioso de seus rituais e cerimônias.

As tribos indígenas brasileiras também adornam seus corpos com pinturas, colares

e pulseiras feitos com sementes, penas de aves e palhas, sendo possível encontrar

semelhanças imagéticas entre elas, sobretudo em relação ao uso de cores e elementos. No

entanto, seus grafismos variam de acordo com cada tribo, tendo também caráter

informativo dentro daquele grupo social.

No Japão temos a figura icônica da gueixa, cujos trajes e a pintura facial marcada

pela máscara branca com destaque nos olhos e boca, advém de uma antiga tradição do

país. E na Índia, é comum que o uso do bindi, um ponto vermelho (feito com vermilion

35, tradicionalmente), usado por mulheres casadas para sinalizar seu estado civil.

35 Ou “vermelhão” é um pigmento opaco alaranjado que tem sido usado desde a antiguidade. O pigmento

ocorrente na natureza é conhecido como zinabre. Quimicamente, o pigmento é sulfeto de mercúrio e [...] é

tóxico. Hoje, vermelhão é na maior parte comumente produzido artificialmente reagindo mercúrio com

enxofre derretido. A maior parte do vermelhão produzido naturalmente vem de zinabre extraído na China,

daí seu nome alternativo vermelho China ou vermelho chinês. (Cf. GETTENSFELLER; CHASE, 1993, p.

159).

115

Assim como os supracitados, muitos outros grupos sociais em diversas partes do

mundo e momentos históricos distintos, fazem ou fizeram uso de elementos estéticos para

alterarem de alguma maneira suas imagens. Portanto, compreendemos aqui a pele como

imagem a partir da qual construímos nosso mundo e, além disso, nos construímos no

mundo, uma vez que

[...] estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas imagens que nos

rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos: imagens que

criamos e imagens que emolduramos; imagens que compomos fisicamente, à

mão, e imagens que se formam espontaneamente na imaginação; imagens de

rostos, árvores prédios, nuvens, paisagens, instrumentos, água, fogo, e imagens

daquelas imagens – pintadas, esculpidas, encenadas, fotografadas, impressas,

filmadas.” (MANGUEL, 2001, p.20).

Figura 86: “Cara Pintada” da actante Cacilda Becker (Estragon), em Esperando Godot, (de Samuel

Beckett, direção de Antunes Filho, levado pelo Teatro Brasileiro de Comédia (1978). Fotografia: Dedoc.

2.1.2.3 A Flor na Pele

O que será a flor na pele? Que mistérios tem a pele – que nos protege, nos

circunscreve – que nos dá forma? Que perfume dorme na flor da pele? O que somos com

a pele ou pela pele? O que há na pele que nos faz rosa?

Conforme afirmamos, anteriormente, consideramos a pele como imagem, como

conceito anterior à construção da maquiagem. Neste sentido, estudamos a “cara pintada”

como estratégia de uma poética da cena. A partir da relação que os actantes constroem

com sua própria aparência, através das intervenções estéticas que agregam ou modificam

informações nos seus corpos, os actantes constroem traços de caráter ou da narrativa que

intentam externar para o público como um meio de comunicação mais imediato. Essas

116

intervenções ora se dão pela consciência do actante como um “duplo de si” estilizado para

a cena – ou seja, pela construção de uma “cara pintada” que não se pauta pela adesão de

elementos materiais –, ora pelo acrescimento de elementos materiais (cosméticos,

próteses, objetos etc.).

Assim como o teatrólogo Jean-Jacques Roubine afirma a condição da maquiagem

ainda que o rosto do actante se encontre nu, maquiado ou mascarado para a cena

(ROUBINE apud MAGALHÃES, 2004, p. 47), compreendemos também que a criação

do actante exteriorizada em sua “cara pintada” sobre a pele pode existir sem os artifícios

materiais da maquiagem ou da máscara (externa), mas não podem existir sem a criação

poética do actante.

É nessa dimensão que ocorrerá a presença, o momento do encontro e do elo que

se cria entre o actante e o espectador a partir da condição narrativa que primeiro lhes

chega: a imagem. O ato divinatório de transcender através da imagem propõe ao outro da

cena, àquele que vê, também uma transcendência através do fenômeno dramatúrgico da

“cara pintada”.

A imagem é, portanto, o suporte e o sistema comunicacional pelos quais se dão o

entendimento a proximidade do homem com seu universo; quer seja na representação

tribal, nas cavernas antigas, quer, na liturgia, quando o texto diz que “somos feitos” à

imagem do “criador”. Na Bíblia, por exemplo, a primeira referência da similaridade do

homem com o divino se dá através da aparência: “Criou Deus o homem à sua imagem

[...]” (Gênesis 1:27). Ainda que esta frase seja passível de diversas interpretações,

podemos considerar que a superfície discursiva da mesma revela porquê através da

imagem, irá o homem buscar a aproximação com o divino.

Embora o ser humano considere-se “reflexo” do divino, sem a condição de

mascaramento, de construção de uma dramaturgia desse divino no seu corpo mortal, ou

seja, sem a dimensão material da “pintura” que a teatralidade manifesta na sua cara, não

se estabelece em si a imagem desse divino a que se busca. Uma vez que a “cara limpa”

não é a sua potência transcendente, ele precisa ser “outro” para alcançá-la: daí a

necessidade da “cara pintada”.

A necessidade de transcender o indivíduo também desponta para representar

questões civilizatórias – como a própria compreensão humana de divindade – a atuação.

Acerca do “trabalho do ator” como uma Arte que vai além da dimensão de imitação, o

117

teatrólogo Bernard Dort, em seu livro O Teatro e sua Realidade (1977), destaca a

importância da formação da “Suma” – o sistema que se originou na escrita sistemática e

profícua de Constantin Stanislavski, o mestre russo. Para Dort (1977), a herança que

Stanislavski lega ao teatro ocidental moderno vai além de enriquecer uma epistemologia

do processo de encarnação. Stanislavski organizou seu “Sistema” (ou método) de

preparação do actante para a encenação teatral, considerando que, para além da leitura e

entendimento da dramaturgia, da recitação do texto ou ação que correspondia à fábula, o

indivíduo actante se entendesse capaz de usar seu “instrumento psíquico interior”

transfigurado na realização das ações psicofísicas da personagem.

Figura 87: “Cara pintada” do actante Konstantin Stanislavski. Em After My Life in Art, Part 4: The

System. Fotografia: Routledge Performance Archive (S/D).

A partir da leitura da obra A construção da personagem (1998) Dort (1977)

compreende que o trabalho de Stanislavski (1998) transcende a dimensão, ainda que

simplificada do moderno teatro europeu, quando implica a prática do actante como

poética de intérprete. Ou seja, para Dort, o trabalho do actante, na forma como

Stanislavski organizou, vai além da compreensão da vida interior do actante emprestada

ao personagem. “[...] o intérprete tem condições de colar a sua própria vida afetiva a

serviço da vida afetiva da personagem. O ator deverá então sentir sua própria vida no

interior da vida da personagem e a vida de sua personagem como idêntica a sua própria

vida.” (DORT, 1977, p. 105).

118

Segundo Dort, é exatamente a partir das técnicas desenvolvidas no livro A

construção do personagem (1998) que Stanislavski transcende a si (e sua “Suma”) ao

propor, descrever e sistematizar que o actante possa “[...] dar uma forma cênica visível a

sua criação, ou seja, encarnar a personagem em vez de contentar-se em vivê-la.” (DORT,

1977, p.111).

Para Stanislavski (1997, p. 1-5), ao executar determinada ação, é preciso que o

actante se faça crível, buscando uma autenticidade. Definia-se assim o senso do real, que

nos permite também um gancho com o conceito de “se”, em que o actante estabelece uma

proximidade com o personagem, agindo como “se” fosse tal personagem. Portanto, a

ideia de “partiturar” determinada ação cria possibilidade de se provocar no actante a

prática de agir como “se” fosse tal personagem, e assim, criar condições de verdade

cênica.

Portanto, o que pode ser aceito como a grande contribuição para o teatro que vivia

a crise do drama moderno (SZONDI, 2001, p. 35-88) fora exatamente a emergência do

actante como parte poética do processo de encenação.

O actante, a partir de então, passa a ser considerado como partícipe do processo

teatral, como um agente que tem os meios de atingir o público em um sistema superior à

recitação e à imitação da vida desses. Trata-se do objetivo de compor o processo criador

do actante, no nascimento natural da personagem. O trabalho do actante passa a compor

integralmente o processo da encenação. É nessa dimensão do corpo enquanto arte que se

instaura o fenômeno dramatúrgico da poética do movimento e, por conseguinte, da “cara

pintada”, do actante. Passa, mesmo, a tornar-se sinônimo de teatro, de arte, como afirma

a atriz e pesquisadora Márcia Strazzacappa (1997) ao dizer que:

A percepção de que o corpo do artista cênico é, ao mesmo tempo, o agente o

produto de sua obra de arte conduziu a esta conscientização de que o

desenvolvimento de um trabalho corporal interfere no resultado final da obra

cênica [...]. Enquanto agente, o corpo é técnica; enquanto produto ele é arte.

(STRAZZACAPPA, 1997. p. 164).

Em A Construção da Personagem (1998), Stanislavski etnógrafa de modo

alegórico o processo criativo do actante que, ao que nos parece, consegue encontrar sua

personagem quando, sem intenção, descobre a dramaturgia da “cara pintada” 36.

36 A citação é longa para que não haja interferência da linha de raciocínio construída pelo autor original.

119

[...] esperava dar com algum traje que me sugerisse uma imagem atraente. Um

simples fraque velho chamou-me a atenção. Era de um tecido notável, que eu

nunca vira antes – uma espécie de pano cor-de-areia, esverdeado, parecendo

desbotado, coberto de manchas de pó misturado com cinza. Tive a impressão

de que um homem com aquele fraque pareceria um fantasma. Uma sensação

quase imperceptível de asco, mas, ao mesmo tempo, um senso de fatalidade

ligeiramente aterrador apossara-se de mim ao fitar a velha roupa.

Combinando com um chapéu, luvas, sapatos empoeirados e maquilagem e

cabeleira da mesma cor e nos mesmos tons do tecido do fraque – tudo

acinzentado, amarelado, esverdeado, desbotado e penumbroso – obter-se-ia

um efeito sinistro mas, de certo modo, familiar. Qual seria esse efeito eu não

podia ainda determinar.

Os encarregados da rouparia separaram o fraque que escolhi e prometeram

procurar acessórios que combinassem com ele: sapatos, luvas, cartola, bem

como peruca e barba. Mas eu não estava satisfeito e continuei procurando até

o último instante, quando a amável chefe de rouparia disse-me, finalmente, que

precisava se preparar para a representação daquela noite. Não havia nada a

fazer senão retirar-me sem ter chegado a uma decisão final e deixando

reservado para mim apenas o fraque manchado.

Emocionado, perturbado, saí da rouparia, levando comigo este enigma: que

personalidade deveria assumir quando envergasse aquele velho fraque

estragado?

[...]

Ainda me achava nesse estado de divisão interior, de insegurança e de

incessante busca de alguma coisa que não conseguia achar quando entrei no

camarim geral onde teríamos de envergar nossos trajes e fazer nossas

maquilagens, todos juntos, em vez de isoladamente.

[...]

Nosso camarim retumbava de exclamações tal como se se tratasse de alguma

representação comum de amadores.

[...]

⸻ “Alguma coisa está errada... não sei bem o que é... quem é ele?” “não

entendo, quem é que você quer ser?”

Como era horrível ouvir essas observações e perguntas sem ter nada para

responder!

Quem é que eu queria representar? Como ia saber? Se pudesse adivinhar seria

o primeiro a dizê-lo.

[...]

Finalmente saíram todos e foram para o palco da escola a fim de serem

inspecionados por Tórtsov. Sozinho no camarim sentei-me, prostrado de todo,

fitando desamparadamente no espelho meu rosto teatral desprovido de feições

próprias. No íntimo, já me convencera do fracasso. Resolvi não me apresentar

ao Diretor e tirar o traje, remover a maquilagem com auxílio de um creme

esverdeado de horroroso aspecto que estava à minha frente. Já metera um dedo

nele e começara a esfrega-lo na cara. E... continuei esfregando. Todas as outras

cores se esfumaçaram, como aquarela que tivesse caído em algum líquido. Meu

rosto ficou amarelo-cinzento-esverdeado como uma espécie de réplica ao meu

traje. Era difícil distinguir onde estava o meu nariz, ou os olhos, ou os lábios.

Espalhei um pouco do mesmo creme na barba e no bigode e, finalmente, em

toda a cabeleira. Alguns fios grudaram em pelotas... e então, quase como se

estivesse delirando, pus-me a tremer, meu coração batia, apaguei as

sobrancelhas, empoei-me a esmo, lambuzei as costas das mãos com uma cor

esverdeada e as palmas com um rosa-claro. Estiquei o casaco e dei um puxão

na gravata. Fiz tudo isso com um toque seguro e rápido, pois desta vez sabia

120

quem estava representando e que tipo de sujeito ele era! (STANISLAVSKI,

1998, p. 27-32).

Das questões que emergem nesse relato, as que mais nos saltam aos olhos referem-

se a “cara pintada” como um fenômeno que não se instaura pelo simples ato de passar

cosméticos no rosto, uma vez que, se observarmos a história contada, podemos perceber

que o actante, mesmo tendo o rosto “desenhado” pelo maquiador de seu grupo, não havia

encontrado uma dramaturgia para sua criação, nem para sua realização no palco. Foi

preciso que o actante se entregasse ao fenômeno criativo para conseguir encontrar sua

cara “por acidente”.

Figura 88: “Cara pintada” do actante Konstantin Stanislavski. Fotografia: Daily Express (2018).

Na continuação da etnografia poética de Stanislavski (1998), é possível

compreender que o instante criativo que acometeu Kóstia – o citado ator com fraque velho

– se prolonga desde seu encontro com a personagem, até o seu encontro com o público

no palco, onde o Crítico que emergiu em seu ímpeto criativo se mostrou ao outros como

um ser em si.

121

Considerando que “preparar dramaticamente alguma coisa é criar, no âmbito de

uma peça, indicações através das quais o público possa, consciente ou inconscientemente

acompanhar a evolução dos personagens [...]” (PALLOTTINI, 1988, p. 33),

compreendemos que a ação dramática de “pintar a cara” enseja o actante a criar a

experiência dramatúrgica que tanto ele, quanto o espectador vivenciarão na relação com

a teatralidade em cena. Esse encontro, não enuncia apenas informações relacionadas a

idade, gênero, etnia, classe social, etc., permitindo a identificação, mas propõe uma

relação, em que, como se conversassem cara a cara, é possível ao espectador imergir na

relação, aceitando a personagem que se faz presente à sua frente como um ser verossímil

dentro do universo que se instaura.

Os traços delineados através do uso dos cosméticos, bem como de próteses,

perucas e adereços adicionam informações a esse rosto que dialogam com o acervo de

imagens que habitam o imaginário do espectador. Mas, o que dizer da presentificação da

“cara pintada” sem o artifício a adição de elementos materiais?

Encontramos em Richard Boleslavski, desde a primeira publicação d’A Arte do

ator, em 1933, referência a uma composição que não secciona a criação poética do

actante de sua caracterização, ao contrário disso, propõe que o personagem se construa

integralmente: intenção, corpo, maquiagem, figurino, Gestalt, significado, performance:

Eu – [...] faltou uma coisa.

A Criatura – O quê?

Eu – A caracterização.

A Criatura – Oh, isto é simples. Quando eu puser o meu traje e fizer a minha

maquiagem.

Eu – Não acontecerá nada, minha querida. [...] antes de pôr a sua vestimenta e

a sua maquilagem, você precisa dominar a sua caracterização. [...] O ator cria

toda a extensão da vida de uma alma humana no palco, cada vez que cria um

papel. Essa alma humana deve ser visível em todos os seus aspectos, físico,

mental e emocional. Além do que, deve ser única. Deve ser a alma. A mesma

alma que o autor imaginou, que o diretor lhe explicou e que você trouxe à

superfície das profundezas do seu ser. Nenhuma outra, somente esta. E a

personagem que possui esta alma criada no palco é única e diferente de todas

as demais. [...] Isto significa estudo organizado e apropriação, através da

prática intensiva, de todos os elementos que a tornaram, em seu papel, uma

personalidade física única e distinta. A caracterização da mente, como parte de

um papel no palco, é em grande medida uma questão de ritmo. O ritmo do

pensamento, eu diria. (BOLESLAVSKI, 1992, p. 75-80).

A “cara pintada”, portanto, não apenas é decorrência de uma tradição teatral, mas

complementa a cena naquilo que ela carece de organização narrativa de significados. Para

122

tanto, se apropria de matérias plásticas e materiais expressivos (seja com tintas,

maquiagens e elementos extensivos) ou mesmo apenas com a definição simbólica de

ideias significantes construídas sobre rosto do actante. A “cara Pintada” possui potencial

expressivo em si, ou seja, quando se vê o actante em cena, mira-se em seu rosto (o ser em

si) o rosto de um outro (o ser narrativo) que não pertence ao actante, mas ao conjunto de

texturas que constrói a cena teatral.

Aquilo que pode ser denominado Carácter (voz narrativa, pessoa, persona,

personagem), ainda que esteja formulado no corpo de um ser humano (igualmente:

pessoa, persona, sujeito, ser) não prescinde de uma construção simbólica que defina sua

face como a marca mais preponderante de sua existência espetacular.

Desse modo, sobre a tez do actante, ainda que esteja aparentemente nua, se

estabelece a “máscara” que unifica em significados palco e plateia. Encontra-se naquele

rosto a agonia que se estabelece como a matriz do drama. De tal sorte, as intensões, os

anseios, os objetivos, as paixões e os conflitos que permeiam a vida no universo dramático

não pertencem ao actante, por mais que ele haja construído toda essa carga emocional e

a ressignificado em um papel; pertence, assim, ao personagem que a ele se liga pelo corpo,

inclusive, pela dimensão da pele, através da “cara pintada”, ainda que esta não traga os

efeitos transfiguradores da aplicação da maquiagem. Ainda em A construção da

personagem (1998) Stanislavski faz menção a essa construção da “máscara facial” que

não depende da pintura, quando Tórtsov questiona o grupo e Kóstia sobre sua construção

poética:

⸻ [...] será que ele teria a coragem de nos mostrar essas mesmas emoções sem

usar a máscara de uma imagem criada? Quem sabe se, nas profundezas de seu

ser, não haveriam sementes capazes de produzir uma outra personalidade

repulsiva? Suponhamos que o fizéssemos demonstrá-lo agora, aqui, sem

maquilagem e sem traje adequado. Acha que teria coragem?

Tórtsov disse esta última frase em tom de desafio.

⸻ Por que não? – retruquei – afinal tentei muitas vezes representar o papel

sem nenhuma maquilagem.

⸻ Mas usou as expressões faciais, os gestos e o modo de andar adequado?

⸻ Naturalmente ⸻ respondi.

⸻ Bem, então foi o mesmo que uma maquilagem. Mas isso não é o mais

importante. Pode-se apresentar a máscara mesmo sem maquilagem [grifo

nosso]. Não, o que eu quero é que nos mostre os seus próprios traços, sejam

eles quais forem: bons ou maus, mas que sejam os mais íntimos e secretos, e

que seja você mesmo, sem se ocultar atrás de qualquer imagem ⸻ insistiu

Tórtsov.

⸻ Eu teria vergonha de fazê-lo ⸻ confessei. (STANISLAVSKI, 1998, p. 46).

123

Assim como os actantes apresentados nos exemplos de Bolesvaski e Stanislavski,

é comum incorrermos no erro de considerar a maquiagem (ou a pintura da cara) ora como

um adorno, um elemento de pouca importância que pode ser agregado a cena de última

hora, sem que seja preciso construí-lo; ora como um elemento que carece de materialidade

externa para existir (tais como uso de cosméticos, próteses etc.). No entanto em ambos os

exemplos os actantes recebem de seus mestres respostas que ampliam suas visões sobre

a condição da “cara pintada”, tanto como um fenômeno que necessita ser criado, como

enquanto um fenômeno que independe de elementos externos (materiais) para acontecer.

É nesse lugar, que existe a partir de um acontecimento, de um fenômeno, mas que

não depende senão da poética do actante para compor-se, que se instaura a “cara pintada”

enquanto dramaturgia.

124

2.2 DRAMATURGIA: TEATRALIDADE DA FIGURA E DA PRESENÇA

Uma poética do actante pode ser reivindicada como presença. Tal processo pode

ser mapeado nos estudos teatrais do século XX. Em sua tese de doutoramento, o professor

Dr. José Sávio Araújo, nosso grande parceiro nessa pesquisa, apresenta uma síntese que

enuncia a necessidade de compreensão de tal “dramaturgia” para compreendermos o

teatro do nosso tempo, que promoveu, por seus inúmeros caminhos trilhados, uma

ampliação do conceito de dramaturgia, para acolher o trabalho do ator, com o qual se

pode imaginar . Para o professor Sávio,

Em alguns processos da criação teatral contemporânea, usa-se também o termo

“dramaturgia de ator” para designar uma partitura de representação cênica

destes materiais pessoais. [...] Esta particular contribuição de Grotowski foi

incorporada e ampliada por outros encenadores do séc. XX, como Peter Brook

e Eugênio Barba, os quais fortaleceram o papel do “ator criador” em suas

produções teatrais, influenciando profundamente o pensamento teatral

contemporâneo. [...] Propostas como esta vêm possibilitando alternativas ao

formato centralizador assumido pela figura do diretor/encenador no processo

de criação cênica, ampliando o leque de opções do teatro ocidental

contemporâneo. Resta saber se é uma alternativa a este sistema monocêntrico,

ou apenas a substituição da figura centralizadora do diretor pela figura

centralizadora do ator. (ARAÚJO, 2005, p. 52).

Assim, uma “poética” da “cara pintada” que se torna presente no rosto (corpo) do

actante, enquanto dimensão plástica, também é uma “dramaturga do ator”, quando se faz

presente no processo de criação e como resultado, na cena, independente dos elementos

materiais dos quais ele faça uso para se pintar. Desta via, a flor na pele, para nós, é a

poética do actante que se organiza como uma dramaturgia: teatralidade e presença.

Tradicionalmente, os estudos da dramaturgia nos remetem à Arte Poética-Arte

Retórica (ARISTÓTELES), na busca da compreensão dos modos pelos quais se

realizavam as tragédias como um espelho das paixões dos seres superiores. Da mesma

forma, dos modos como se definiam as paixões passíveis de serem levadas ao ritual

trágico.

Tais estudos nos legaram a herança de que o fenômeno teatral prescinde,

absolutamente, da verossimilhança como elemento fundante da credibilidade e crença no

mito dramatizado. Desta forma, crer no que o palco construía não era essencialmente a

capacidade de ler o fenômeno cênico como um fenômeno organizado materialmente; mas,

125

antes disso, crer era compreender a “ideia” autoral do que se tinha organizado no palco

como a manifestação dramática das paixões.

Descende desta herança o que compreendemos como dramaturgia dos sécs. XIX

e XX. Fundamentalmente, dramaturgia se estabeleceu como o resultado escrito do que

haja se manifestado como matéria cênica.

Inversamente, a partir do século XVIII rompendo o fluxo de entendimento do

escrito teatral como um fenômeno “do palco à página” (CHARTIER, 2002, p. 69-125) os

estudos teatrais nos legaram a compreensão literária da dramaturgia, aprisionando-a à

criação autoral, laboral, anterior à cena.

Até o período clássico, a dramaturgia, amiúde elaborada pelos próprios

autores, tinha por meta descobrir regras, ou até mesmo receitas, para compor

uma peça e compilar para os outros dramaturgos as normas de composição

(PAVIS, 1999, p.113).

Essa visão considerava apenas o trabalho do autor (dramaturgo) e a estrutura

narrativa da obra como um fenômeno dramatúrgico, dando ao acontecimento cênico um

lugar adjunto na obra teatral. Desta via, a dramaturgia não tinha apenas o seu significado

engessado, mas a própria construção dramatúrgica seguia um modelo que se estabelecia

a partir de um conjunto de regras que deveriam ser seguidos para que se configurasse o

drama.

Pautado na Ação Dramática, o drama clássico pressupunha a unidade dos

acontecimentos do início ao fim, buscando, através do conflito (estruturação do nó: ação

crescente, cerne do problema, resolução), atingir uma grandeza ideal (mudança de

estado). Neste modelo dramatúrgico que se baseia na potencialidade textual, o texto é

construído com foco na ação, sendo os demais elementos (personagens, linguagem)

suportes para essa construção. Patrice Pavis (2003) delineia uma evolução histórica a

respeito do texto e a cena, inicialmente trazendo uma “posição logocêntrica” em que:

A cena (o “espetáculo”, o opis, como diz ARISTÓTELES) só vem em seguida

como expressão superficial e supérflua, ela só se dirige aos sentidos e a

imaginação e desvia o público das belezas literárias da fábula e da reflexão

sobre o conflito trágico. Uma assimilação teológica produz-se entre o texto,

refúgio do sentido imutável da interpretação e da alma da peça, e a cena, local

periférico da lantejoula, da sensualidade, do corpo em falta, da instabilidade,

em suma, da teatralidade. (PAVIS, 2003, p.406).

126

Durante todos esses anos em que os estudos teatrais se fundamentaram na

verossimilhança – dos gregos até nós – a teatralidade está diretamente ligada à crença que

se estabelece na plateia acerca dos fenômenos que ocorrem no palco. É, portanto, o

primeiro aspecto da teatralidade, a qualidade verossímil da poética teatral.

Dessa forma, a atualização neoclássica da garantia das unidades de tempo, espaço

e ação como necessidades prementes da dramaturgia, é também a atualização do valor

intrínseco da teatralidade no fenômeno teatral moderno.

Bertolt Brecht vai provoca uma mudança no conceito de dramaturgia,

expandindo-o e passando a compreender o fenômeno cênico como relevante para a

construção dramatúrgica. Para tal, irá explorar uma dramaturgia que leva em

consideração não só a forma, mas, sobretudo, o conteúdo; que parte de uma ação

dramática existente a partir da relação dialética intersubjetiva com o interlocutor para,

descrevendo sua realidade social, produzir sobre este, um efeito transformador. Além

disso, Brecht renega a empatia provocada através da criação de ilusões cênicas, que vinha

sendo usada desde Aristóteles até o naturalismo, defendendo que as pessoas precisam

estar conscientes de que estão vendo uma peça e que esta não lhes servirá como mero

entretenimento, ao invés disso, será um instrumento sociopolítico de transformação

(MENDES, 1995, p. 12-16).

A ideia de catarse, que atenderia a essas ilusões como um “apelo meramente

emocional às reações do espectador (...)” (MENDES, 1995, p.17) também são

questionadas pelo dramaturgo alemão, que busca utilizar elementos épicos organizados

de maneira consciente para subverter o modelo de drama vigente, abalando o modelo

catártico de tal maneira que se constitui a ruptura da teoria aristotélica.

Esse modelo compreende como dramaturgia não somente o texto dramatúrgico de

onde se origina a encenação, mas também os meios pelos quais essa é engendrada e “[...]

o teatro dramático termina quando esses elementos não mais constituem o princípio

regulador, mas apenas uma variante possível da arte teatral”, conforme o crítico e

professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann, em seu O teatro Pós-Dramático (2007,

p. 26).

Há, entretanto, outras relações da dramaturgia com os modos de ser da cena.

Conforme destaca Bonfitto (2011),

127

Se por um lado o termo “dramaturgia” remete à arte de escrever textos

dramáticos, que implica por sua vez a existência de princípios e regras que

devem ser seguidos a fim de que tais textos sejam produzidos, por outro se

pode reconhecer uma expansão significativa no uso desse termo ao longo do

século XX. Ao relacionar a dramaturgia com os modos de confecção de textos

dramáticos, percebe-se que a partir do Simbolismo emergem de maneira mais

profunda algumas tensões em relação à representação. Os textos dramáticos se

tornam a partir de então não somente a reprodução de uma realidade objetiva,

mas passam a ser a representação de “realidades”, de mundos interiores, de

abstrações, de sonhos, do que é impalpável. (BONFITTO, 2011, p. 56).

A partir do trabalho desenvolvido por Brecht, conforme nos informa Pavis (1999),

a dramaturgia passa a englobar as escolhas estéticas que a equipe de realização do

espetáculo faz no processo de sua concepção. Ou seja, dentro dessa ótica, “[...] a noção

de dramaturgia passa a estar relacionada não somente com a escritura de textos

dramáticos, mas com a articulação dos diversos elementos que compõem a cena”

(BONFITTO, 2011, p. 56).

E, a partir de então, podemos compreender a figura de quem efetua a dramaturgia

– dramaturg – como a pessoa responsável não apenas pelo texto, mas por sua análise,

interpretação e, em consequência, pelas escolhas que levarão à realização cênica do texto

(PAVIS, 1999, p. 113).

Chegar à figura moderna do dramaturgo é de extrema importância para a

compreensão da ampliação de uso do termo dramaturgia, uma vez que ela se desgarra do

texto escrito e percebe – e mais do que isso, aceita – a potencialidade expressiva de todos

os elementos que compõem a cena, conceito que já eram empregados em manifestações

espetaculares clássicas em países orientais, a exemplo da ópera de Pequim e do Teatro de

Bali, em que Brecht e Artaud encontram referência para suas práticas (BONFITTO, 2011,

p. 57).

Assim como o conceito de dramaturgia, também o de teatralidade perdurou, desde

o século XVIII, como uma dimensão similar da crença na verdade do drama. Sendo assim,

a teatralidade, o caráter que definiu a especificidade do texto teatral. Com o advento do

teatro do século XX – leia-se a passagem do romantismo para o realismo e o naturalismo

– a teatralidade é libertada de sua preponderância dramatúrgica e encontramos referência

em Barthes de que ela

[...] É o teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações que se

edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção

ecumênica dos artifícios sensoriais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes,

128

que submerge do texto sob a plenitude de sua linguagem exterior. (BARTHES

apud PAVIS, 1999, p. 372).

Numa linha de pensamento um pouco diversa, quando decide experimentar novas

formas do fazer teatral Artaud aponta uma noção diferente de teatralidade, uma visão

ampliada que compreende o termo para além da relação com o texto dramático e seu

emprego oral. Ele compreendia a teatralidade como um conceito que engloba toda a

tessitura poética da cena e a expressividade narrativa de todos os elementos que a

compõem (PAVIS, 1999).

No entanto, a discussão acerca do significado e do emprego do termo é extensa,

posto que “Nossa época teatral se caracteriza pela busca dessa teatralidade que foi por

muito tempo ocultada. Mas o conceito tem algo de místico, generalizante, talvez até

idealista e etnocêntrico” (PAVIS, 1999, p. 372).

A dramaturgia passa a se valer da imagem como um dispositivo através do qual

dialoga com o espectador. Dizemos dialoga por compreender que as informações

construídas nas imagens possibilitam ao espectador permear um território que, ao mesmo

tempo que lhe oferece informações construídas, também lhe oferece uma vasta gama de

interpretações que só ele irá produzir ao presenciar o fenômeno que se desdobra em cena,

com base em diversas referências que o envolvem, desde o lugar de espectador, à

percepção das demais linguagens imbricadas no fenômeno cênico, até o que ele já trouxe

consigo de bagagem cultural. Esse fenômeno – dramatúrgico – se instaura através da

teatralidade.

A forma como acatamos teatralidade não será investigada ou problematizada nesta

pesquisa. Apontaremos como compreendemos esse termo e como o utilizamos em nossa

pesquisa, ou seja, como um conjunto de dispositivos organizados que se engendram para

possibilitar o acontecimento do jogo cênico e sua leitura. Tais dispositivos vão desde o

espaço físico, corpo e poética do actante (ator/performer), dramaturgia da luz,

dramaturgia do som, dramaturgia do cenário, dramaturgia do figurino, até a dramaturgia

da “cara pintada”.

A questão que emerge na compreensão do “dispositivo” como poética, processo e

produto, nos obriga a um retorno às reflexões do século XX sobre o teatro: o teatro é arte

dramática ou prática da encenação? Para o professor Sávio Araújo,

129

Se o teatro não é só a arte da dramaturgia, a arte do ator ou a arte da cenografia,

não há de ser também apenas uma arte do encenador, mesmo reconhecendo a

importância da contribuição deste artista para a harmonização e economia do

conjunto dos elementos que estarão em cena. (ARAÚJO, 2005, p. 53).

Pavis (2017, p. 82) afirma que “O dispositivo é uma máquina para jogar

(representar), pois ‘diante de um dispositivo que faz corpo com o drama, que não é um

cenário anedótico, mas um instrumento de trabalho, nossa atenção fica presa’.”. Desta

via, as diversas dramaturgias que se engendram para instaurar o fenômeno cênico,

apresentam-se como este dispositivo que prende a atenção do espectador, ou melhor, o

arrebata para dentro da narrativa, onde ele passa a construir para si a encenação a partir

de suas percepções.

Portanto, o uso da dramaturgia da “cara pintada” como um “[...] dispositivo

psíquico, tal como imaginado por Freud, não se afasta verdadeiramente da metáfora

teatral, visto que esta lhe serve para designar o aparelho psíquico como uma cena na qual

evoluem as instâncias do consciente, inconsciente e pré-consciente.” (PAVIS, 2017, p.

83).

2.2.1 Teatralidade: contemporaneidade e leitura

Para nós, está implícita a condição de “se pintar” como uma ação universal do

humano de construção de um tipo de narrativa de sujeitos que usa o corpo e suas

ressignificações visuais e pictográficas na tentativa de uma interferência poderosa no

mundo. E constatamos, a partir de levantamentos bibliográficos, que, de fato, existe a

possibilidade do actante que se pinta para a cena estar realizando processos de criação ou

composição dramatúrgica.

A dramaturgia entendida como a arte de compor e tecer a materialidade cênica

passa a sugerir novas articulações conceituais. Dramaturgia da luz, propõem

os artistas da área. Dramaturgia da imagem, ensaiam os estudiosos de um teatro

mais imagético e plástico. A percepção das múltiplas textualidades permite

vislumbrar a polifonia constitutiva da cena teatral. Dramaturgia da cena,

concluem os criadores debruçados sobre a pluralidade sígnica e polissêmica de

gestos, sons, palavras, imagens, luz, espaço. (MENCARELLI, 2010, p. 17).

A teatralidade se estabelece, assim, como um dos engenhos da codificação do

teatro pela dimensão do uso de sua linguagem, em nível perceptível, na própria tradição

cultural em que se estabelece a figura do espectador. A teatralidade muda, à medida em

130

que muda o espectador. Sendo ele o leitor, parte fundamental de qualquer sistema

comunicacional, esse espectador de teatro possui, na dimensão dessa teatralidade, parte

da compreensão da organização do processo que o faz ler e compreender o espetáculo.

Em sua potência imagética, graças ao desenvolvimento de uma sociedade humana

que conhece a imagem, as cinematografias e fotografias, assim como, em grande parte,

os ritos de edição e difusão de conteúdos pelo cinema e meios de comunicação

imagéticos, enfim, por todo o aparato significante dos modos de ser da sociedade da

imagem, o teatro contemporâneo absorveu, também, este conhecimento e se estabeleceu

no fluxo do domínio desse mundo imagético. É parte de sua manutenção e eternidade a

capacidade de confluência com as demais linguagens e comportamentos socioculturais.

Foi graças a esse modo de assimilação das mudanças pelas quais a civilização

passa que o teatro sobreviveu até hoje. Como quando se aliou à estética e lógica do mito

clássico, na Antiguidade; como se adequou à dimensão metafísica, em toda a Era

Moderna; como se aliou à literatura e filosofia neoclássica, a partir do século XVIII; e

como se alia à condição de interatividade, dialogismo (polifonia) tecnológico e

discursividade imagética, como em nossos dias.

A herança que trazemos do teatro psicofísico, que emergiu no final do século XIX,

como já demostramos, é, na atualidade, aprimorada em diversas possibilidades de

fiscalização, jogo, materialidade imagética, ritual etc.

A caracterização psicológica de cada personagem torna-se, a partir de então,

fundamental na definição do encadeamento da ação e na sustentação da

coerência da trama. O drama burguês se compõe a partir da “psico-lógica”, em

que a constituição dos aspectos individuais torna-se eixo para a composição da

lógica das ações. Se na antiguidade o destino geria as peripécias dos heróis, em

tempos iluministas, de constituição de sujeitos livres e de rompimento com a

inexorabilidade das determinações divinas, a trajetória de cada ser humano

precisa ser composta por seus próprios atos. A constituição da trama se dá a

partir da caracterização individual, são os “personagens que criam suas

próprias ações, que movem por si mesmos a grande máquina, de forma

autônoma e inelutável, sem precisar das divindades e das nuvens” (Lenz, 2006,

p. 38). (DESGRANGES, 2008, p. 13).

A caracterização individual da personagem já não é mais a dimensão de

isolamento do aspecto material e plástico da personagem que, para ter vida, carece do

jogo emocional que se estabelece no corpo do actante. Há, agora, uma dramaturgia da

imagem que dialoga com uma dramaturgia do corpo. E essas grandes “formas” de

manifestação dos códigos (produção de sentido na cena), que são lidas pelo espectador

131

(destinatário/emissário – pois atua na cena em pé de igualdade com o actante), se

organizam em uma nova condição de linguagem, agora, muito menos literária (e literal)

e muito mais imagética (e subjetivada).

Recolhemos, assim, aspectos de uma dramaturgia da “cara pintada” na

“dramaturgia do corpo” e na “dramaturgia da imagem”. Como no exemplo do Teatro

Físico, modalidade contemporânea de produção de espetáculos teatrais a partir de uma

dramaturgia do corpo, de uma composição do corpo e seus limites, de uma compreensão

do corpo como matéria manifesta e expressiva.

Segundo a pesquisadora Lúcia Romano (2008, p. 203), “[...] para compreender o

teatro físico, é preciso observar a organização do seu código teatral, considerando a

combinação de uma série de itens – atores, objetos, cenário, iluminação, figurino,

movimento, som, etc. – que se inter-relacionam para a produção de seus códigos legíveis”.

Nesta modalidade de criação, a totalidade poética dos elementos cênicos passou a ser

considerada tanto ou mais que o texto dramatúrgico para a construção da cena,

possibilitando, assim que a corporeidade do actante, dentro dessa mesma premissa,

passasse a ter sua potência dramatúrgica reconhecida.

O actante encontra, portanto, seu lugar de protagonista no fazer teatral através do

uso de seu corpo como veículo capaz de expressar algo além do que o dramaturgo

conseguiu imprimir nas linhas do texto escrito. No entanto, seu “lugar” não é apenas seu.

As “vozes de outros cantos”, dos “pássaros em outros galhos” (ALSTHOM-BULL-BELFORT

apud RYNGAERT, 1998, p. 49) que produzem também sua poética, assumem-se nesse mesmo

lugar como um coro. Desta via,

Numa representação, as ações (isto é, tudo que tem a ver com a dramaturgia)

não são somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes, e as

mudanças no espaço. Num nível mais levado de organização, as ações são

episódios da história ou as diferentes facetas de uma situação, os espaços de

tempo – ou mesmo a evolução da contagem musical, a mudança de luz e as

variações de ritmo e intensidade que um fator desenvolve seguindo certos

temas físicos precisos (maneiras de andar, de manejar bastões, de usar

maquiagem). (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 68).

Nesse sentido, acreditamos pensar em “dramaturgia” como uma ação de múltiplos

referenciais que constrói narrativas cênicas. No tocante à compreensão do “pintar a cara”

como dramaturgia, compreendemos que seja esta uma ação que articula os elementos

imagéticos, poéticos, significantes, das diversas “realidades” corporais que se constituem

132

na polifonia do teatro. Através da composição material do rosto que vem à cena, também

se institui as tessituras de significados da teatralidade, com a qual se dá a enunciação e a

leitura da narrativa da cena.

2.2.2 Dramaturgia: figura, presença e dramaturgia visual

Em diversos escritos e pesquisas da área das artes da cena, é comum que se

acessem o termo presença cênica. No entanto, este termo não aparece com uma única

abordagem ou um significado unificado. Como acontece com muitos dos termos

empregados nos estudos das artes, bem como das ciências humanas, presença cênica é

um desses termos que não é consenso, nem em relação ao seu significado; muito menos,

sua utilização. Sendo assim, abordaremos o termo a partir das ideias de autores com os

quais dialogamos e cujos entendimentos acerca do vocábulo condizem com nossa

compreensão em relação ao mesmo.

Presença cênica está sendo considerada aqui como um acontecimento

(fenômeno), algo que se estabelece no momento presente (tempo), em que (se) há um

sujeito observado (actante) e ou observador (espectador), ambos em presença (espaço de

significação) um do outro, ou seja, ambos se percebendo, se lendo...

A fim de oferecer uma imagem que exemplifique tal fenômeno, podemos fazer

uma aproximação do termo presença cênica com uma famosa teoria experimental da

física quântica, “o gato de Schrödinger” 37, que se define pelo momento em que um dado

observador olha para um gato (partícula) e, nessa ação – e somente neste momento –,

define a presença (estado) do gato no espaço-tempo. No caso, só se é possível atestar a

condição de presença do gato se, assim, também houver um observador que o observe.

De outro modo, não se pode atestar que exista um gato presente.

37 Eriwn Schroedinger, físico austríaco, elaborou em 1932 uma teoria da física quântica que afirma que as

partículas subatômicas existem em todos os seus estados ao mesmo tempo enquanto não estão sendo

observadas. A interferência do observador, portanto, faz com que a partícula se apresente em um único

estado. Para explicar tal fenômeno o físico propõe o exercício mental que elabora que um gato está em uma

caixa totalmente fechada com um elemento radioativo que pode ou não entrar em ação, em uma

probabilidade de 50% para qualquer dos resultados. Caso a radioatividade seja liberada, envenena o gato,

gerando sua morte. Caso permaneça como está, o gato segue vivo. Na teoria de Schroedinger, enquanto a

caixa não é aberta, ambas possibilidades se mantêm, de modo que o gato segue, ao mesmo tempo, vivo e

morto; apenas quando ela for aberta será possível assumir um dos estados como “real”, uma vez que o olhar

do observador constatará o estado do gato. (GRECA; MOREIRA; HERSCOVITZ, 2001).

133

Do mesmo modo, se dá com a presença cênica: só é possível definir que haja um

estado de presença cênica de um actante se, e somente si, houver presente um espectador

que o perceba, que o leia, que com ele forme um elo de teatralidade, que reconheça seus

significados, do mais elementar (sintagma) ao mais complexo (paradigma), que ateste sua

presença em meio a uma narrativa própria da linguagem teatral e da cultura do espetáculo.

Com isso se define o estado de percepção do espectador que constitui a cena e sua

espetacularidade. Dessa maneira, constatar a presença do actante em cena pode ser o

“grau zero” da codificação teatral, como podemos deduzir da concepção do uso do termo

pelo semiólogo Roland Barthes 38, nos estudos da “escrita”. É neste momento da presença

cênica se estabelece a (re)lação, o encadeamento das partes do “sistema da linguagem”

(emissor, meio, código, mensagem, receptor, resposta), fechando o ciclo dialógico,

conforme se dá nos processos estudados pela semiologia. (BARTHES, 2007, p. 75-78).

Sendo assim, entendemos que só na “leitura” (percepção, conexão, compreensão,

sentimento, entendimento, notação) se materializa a enunciação. A linguagem não é o

todo que se manifesta no fenômeno, mas parte dele, uma vez que o objeto legível “se dá”

a ler em um dado contexto, isto é, a vida social, com todas as suas variáveis da herança

tradicional da cultura e com as subjetivações próprias à comunicação humana. (Idem; p.

95-99).

A presença, assim reconhecida, é um dispositivo que reúne o ato, a linguagem, a

tradição, o contexto e o leitor. E se estabelece como o sentido semântico (físico) e

paradigmático (simbólico) da cena.

Conforme Icle (2011), “A presença é, portanto, uma construção no plano da

linguagem – falamos sobre a presença e, ao falarmos repetidas vezes, criamos a

possibilidade de ela existir –, não podemos perceber, entrementes, senão efeitos de

presença [...]”. Mas, mais do que estar ali, a presença cênica pressupõe um estar

“eficiente”, no sentido de que atrai o observador e estabelece com ele a relação de troca

que o faz atentar-se ao fenômeno performático. Esse fenômeno se estabelece não apenas

38 Semiólogo e ensaísta francês Roland Barthes (1915-1980) é um dos fundadores da semiologia como

disciplina aplicada às ciências sociais. Trabalhando conceitos de diversas temáticas e áreas do

conhecimento, Barthes colaborou na elaboração de teorias que constituíram a base fundamental do

pensamento do século XX, sobretudo, nos estudos da linguagem e das poéticas. Em seu livro Elementos

de semiologia, estuda a formação da cadeia significante tendo o signo como princípio fundante, aos moldes

da semiótica e semiologia tradicional, como Pierce e Saussure. Assim, reorganiza a linguagem como

fenômeno da comunicação social e propõe um modelo de relação entre ambos as potências do significado

e do significante, estabelecendo a relação entre forma e função de forma.

134

pela presença do corpo em cena, mas por toda textura dramatúrgica que compõem a cena,

incluindo o corpo do actante e, nele, a “cara pintada”.

Compreendemos, então que a “cara pintada” se anima nessa dimensão da presença

enquanto momento em que se estabelece uma relação entre público e actante. Então seria

correto supor que não havendo o encontro do actante/personagem com o público, através

do qual este último terá acesso a “cara pintada”, a construção da “pintura” (física ou

poética) não existe, uma vez que não toca, não informa, não dialoga e, portanto, não se

torna linguagem, dramaturgia? Ou a própria construção poética do actante, o momento

presente em que ele se encontra com sua personagem através da “cara pintada” já é o

suficiente para instaurar tal fenômeno?

Encontramos em Pavis (2003) a referência ao entendimento que Eugênio Barba

tem do termo presença, em que ele afirma que ser "[...] marcadamente presente, e, no

entanto, nada apresentar, é, para um ator, um oximoro, uma verdadeira contradição [...] o

ator de pura presença [é um] ator representando sua própria ausência". (PAVIS, 2003, p.

305). Podemos, portanto, assumir que o ato de estar presente para o actante se dá no

momento em que ele se ausenta de seu eu cotidiano para que seja um dispositivo através

do qual a personagem assumirá a cena. No entanto, para representar, pressupõe-se um

outro para quem se apresenta. Ao que complementamos com o que localizamos no

pensamento da professora Christine Greiner (2010, p. 94) ao dizer que a presença não é

apenas "[...] um certo tônus muscular que se pronuncia no momento em que um corpo é

exposto ao olhar do outro, suscitando inúmeros deslocamentos" (GREINER, 2010, p. 69),

mas, mais do que isso, é um fenômeno que se pronuncia no momento que a poética do

actante, através de sua construção, se expõe ao olhar do outro.

LEHMANN (2007) por sua vez, destaca a presença a partir de dois vieses: 1) o

fenômeno do tempo presente; 2) e a produção de presença. Enquanto a primeira está mais

próxima da função semântica da palavra, relacionando-a com o que se apresenta no aqui

e agora; a segunda tem cunho alusivo, referindo-se a algo que se anseia. Neste sentido,

talvez seja no campo da dualidade proposto por Lehmann, em que se distingue a presença

apenas do se fazer presente no momento atual que se encaixe o fenômeno da “cara

pintada”, uma vez pode-se considerar que este se faz presente no momento em que ele

acontece perante o seu criador (actante), bem como ao se presentificar diante do público.

Além da figura (do latim figura: forma, configuração, efígie, maneira de ser) o

sentido das figuras de estilo retórica, a noção de figura conhece na estética, na

filosofia, nas ciências humanas e nas artes visuais um largo destino. A figura

135

é, tanto na origem impressa na cera quanto no traçado geométrico, no desenho

de uma coreografia, na disposição dos atores na cena (a marcação ou blocking),

a imagem onírica na sua dimensão plástica. A figura é aquilo que se ressalta

da representação, aquilo que se coloca e se recorta no primeiro plano contra

um plano de fundo. É também o aspecto exterior, o contorno das coisas que

percebemos. (PAVIS, 2017, p. 127).

A representação simbólica de algo ou alguém através de sua ligação direta com a

aparência ou forma exterior ganha a alcunha gramatical de figura. No entanto, conforme

elucida o professor Pavis (2017), o termo ganha sentidos variados a partir do campo que

o estuda. Nas artes cênicas podemos nos valer do sentido desenvolvido nos estudos dos

diversos campos citados pelo autor para compreender a relação da visualidade da cena

com a figura.

Afirmando que “A noção de figura permite pensar o funcionamento ao mesmo

tempo discursivo e visual do teatro” (Idem, ibidem) Pavis nos mune de uma compreensão

da figura como um elemento narrativo, capaz de chegar ao espectador como parte da

tessitura que compõe a cena.

A figura, no sentido clássico, é de início uma atitude, uma silhueta percebida

à distância, figurino ou efígie. É também um habitus, o que Bourdieu denomina

“um modo de comportamento aprendido”. A figura une a atitude, no sentido

concreto e no abstrato, de stance: a tomada de posição. Ele se revela útil para

o ator e o encenador quando devem encontrar a atitude e a figura (a silhueta)

da personagem, sua maneira gestual e discursiva de se exprimir e de aparecer,

pois “cada época histórica e cada classe social em cada época apresenta uma

atitude característica, uma atitude que é o produto de certa imagem dominante

do homem no mundo”. (PAVIS, 2017, p. 127).

A construção da figura do personagem perpassa as inúmeras figuras que nos

rodeiam de modo que ao “pintar a cara” o actante precisa estar ciente da imagem que quer

e, também, daquela que não quer construir para sua persona, visto que todas as

informações dessa figura – presentes e ausentes – farão parte da leitura do público, seja

ela feita de maneira geral, ou de modo sensível.

Nos termos da fenomenologia, ainda segundo Pavis (2017, p.128), “A figura é

sempre mediatriz entre figuração concreta e abstração”, ou seja, usando a personagem

como exemplo podemos considerar que diante da figura posta o espectador fará uma inter-

relação na leitura da imagem apresentada com os demais signos da cena. Nessa relação

entre os signos e a composição poética do actante para figura da personagem, a leitura

que emerge do espectador é a “cara pintada”.

136

Na mesma perspectiva, compreendemos essa “nova dramaturgia”, assentada no

campo da Visual Dramaturgy, como tem sido tratada nos estudos teatrais mais recentes.

Essa Dramaturgia Visual, com a qual identificamos a dramaturgia da “cara pintada”.

Segundo Pavis (2017, p. 206),

Assistimos ao mesmo tempo ao triunfo e ao estilhaçamento da dramaturgia,

não somente da dramaturgia no sentido da escrita dramática, mas ainda dá

análise dramatúrgica, ou seja, a leitura e a preparação efetuadas pelo

conselheiro literário do encenador [...] Um sobrevoou do estado e dos métodos

da dramaturgia atuais, assim como de suas recentes mutações em inúmeras

dramaturgias específicas, deixa entrever uma paisagem tão rica e variada

quanto confusa e atormentada.

A proposta de reflexão do ato de pintar a cara para a cena teatral, a que nos

obrigamos, desde 2009, tem nascedouro em parte do material recolhido na análise dos

estudos da dramaturgia que aparece na Europa, a partir dos anos de 1950, configurada

como uma dramaturgia pós-brechtiana.

Neste escopo, nos sintonizamos com a perspectiva de retorno ao trágico,

acentuada no teatro de Arthur Miller, conforme aponta Peter Szondi (2001, p. 170-181),

quando compreendemos a “reminiscência” como estratégia de composição. Ou seja, a

lembrança do rosto, posta no próprio ato de se maquiar, é a memória do que se haja

estabelecido como virtualidade da face humana. Neste sentido, o trágico se reestabelece

como elemento de conexão limite entre a face a ser pintada e as marcas históricas e

memoriais de todas as faces humanas.

Assim, a visualidade deixa de ser matéria textual (material expressivo) para se

tornar elemento narratológico que comporá a dramaturga da ação teatral, no tocante ao

corpo, ao gesto, ao rosto, à face actante.

Neste sentido, a “cara pintada” busca entender o que se concretiza, na

contemporaneidade, como as dramaturgias que nascem de elementos visuais que

possuem, agora, múltiplas tarefas em cena, não apenas o traço cenográfico ou de uma

tecnologia da cena, mas de uma ressignificação simbólica do corpo actante.

E essas diversas tarefas realizadas no fenômeno teatral são condicionadas aos

diversos elementos que compõem a cena. E, neste sentido, a condição do teatro em

demanda educacional (de formação de actantes e expectantes) passa pela nova

137

dramaturgia, que se responsabiliza não apenas pela produção do sentido formal da

comoção teatralizável, mas na presença, na figura, que unifica público (os leitores) e

actantes (aqueles que conduzem grande parte da encenação), a partir de um campo

significante que ocorre pela visualidade.

A “cara pintada” é uma “dramaturgia visual” (PAVIS, 2017, p. 207) que pode

designar, em espetáculo com ou sem texto, uma sequência de imagens (como em Robert

Wilson ou na Dança-Teatro de Pina Bausch ou no teatro musical ou no Teatro do Gesto

ou nas Artes da Performance ou de toda a Ação Performativa) a condução visual como

dominante da produção de sentido na cena teatral.

A experiência visual que a dramaturgia da “cara pintada”, como aqui

compreendemos, não está submetida à fábula da ação nem ao relato da encenação, mas

parece opor-se à estas, como por contraste. Uma vez que pintara cara é atuar em uma

dimensão poética de si, os actantes fazem uso de sua dimensão de individualidade

plástica, dentro de um conjunto complexo de elementos da cena, para compor essa

dramaturgia/encenação de sua figura, a partir de sua presença.

Nesta perspectiva, a dramaturgia visual se estabelece em todos os elementos

plásticos da cena, no entanto, só o actante pode dispor desses elementos (luz, espaço,

corpo, movimento, indumentária, cenário, adereço, maquiagem) em ação viva, presente,

potente, frente ao seu leitor. Daí acreditarmos na visualidade do rosto como caminho para

uma dramaturgia visual.

Deste modo, a dramaturgia da “cara pintada”, enquanto dispositivo da construção

teatral, pode ser concebida como um conjunto de organizações de signos, símbolos e

imagens – presença e figura – que servem a um propósito final específico: realizar-se

enquanto fenômeno da narrativa teatral.

138

CAPÍTULO III

POR UMA DRAMATURGIA DA “CARA PINTADA”

Os conflitos em torno da compreensão da dramaturgia – que se inaugura como um

ponto de mudança conceitual, que acarretou toda uma transformação no teatro, dito

contemporâneo – estão situados em uma bacia semântica muito abrangente, fundada pela

convergência de diversas possibilidades de alternâncias de valores, da substituição do

usos de palavras-chaves antigas, da quebra de hierarquia dos modos de agir e da

emergência de novas pedagogias, para as artes cênicas. Tudo isso em comunhão com as

rupturas sociais e comportamentais que a contemporaneidade compreende.

A dramaturgia se tornou, portanto, “um país das maravilhas” e um “inferno”.

Embora, sua “nova” significação tenha dignificado dois polos de relevância para a

manutenção do teatro como fenômeno artístico e sociocultural: 1º) a dimensão poética

dos actantes; 2º) a qualificação teatral do espectador.

Quando falamos de poética dos actantes, estamos nos referindo a tudo o que ele

cria dentro de seu jogo cênico (dentro e fora do palco), tudo o que o perpassa em seu

processo criativo e que se engendra na constituição das ações da personagem.

As concepções de dramaturgia do corpo (MENCARELLI, 2010) e dramaturgia do

espectador (DESGRANGES, 2008), entendidas, aqui, como a geração de um novo

paradigma da cena, sobretudo, centrado na atividade dos corpos (ao vivo) do actante e do

espectador em relação de simbiose significante, abrem espaço para a compreensão de uma

139

concepção de “dramaturgia do actante”. Seria essa dramaturgia responsável, não pelo

descompasso da encenação, mas por outras formas de ser do espetáculo e de seus modos

de ver.

Esse Capítulo apresenta, caráter descritivo; a segunda, reflexivo e a terceira,

analítico crítico, considerando a imagem da “cara pintada” como materialidade de

primeiro nível, na pesquisa. A apresentação se dá a partir de três estratégias

metodológicas:

a) apresentação de uma escolha de um conjunto de fotografias dos actantes e

questão, com os rostos maquiados, colhidas em cena, no instante da sua apresentação,

referente à Presença do fenômeno, de um ponto de vista histórico e pictográfico;

b) descrição do conjunto de Imagens, anteriormente, feita por nós e recolhida de

nosso bloco de notas, de quando assistimos aos referidos espetáculos, acrescida de um

comentário atualizado acerca do valor dramático e imagético que têm as fotografias,

enquanto motivo significante: suporte e semântica da Objeto de estudos. Cabe aqui

mencionar que nessa notação, desde o tempo em que a fizemos, ali encerramos aspectos

de nossa percepção sensível, de nosso encontro afetuoso com o objeto;

c) análise síntese do conjunto que forma esse recorte do Corpus nesse capítulo,

ou seja, a fotografia + a descrição + o comentário + as vozes dos actantes (recolhidas nas

entrevistas) a partir da condição de “leitura transversal”, aos moldes proposto por Richard

Demarcy (1988), que se baseia na ruptura com o olhar despreparado, “neutro”, que

produziria, segundo o semiólogo, uma recepção horizontal no sentido de apenas aceitação

dos códigos apresentados como referências legíveis.

140

3.1 QUATRO ACTÂNCIAS DA “CARA PINTADA”

A composição realizada pelos actantes, em suas corporeidades, são parte do jogo

de significação que, na cena contemporânea, se instituem como fundamento do conjunto

da encenação, no qual a experiência (como presença e vivência) torna actante e espectador

corpos justapostos em uma cadeia de blocos significantes, legíveis (em unidade ou

sequência), que, dentre muitas funções, servem como ponto de superação do enredo

dramático (tanto o clássico; quanto o moderno).

O caminho que percorremos, até aqui, nos faz enxergar na ação individual de cada

actante, que empresta sua “cara” a servir de imagem, uma dramaturgia desse novo

paradigma da cena. Assim, a “cara pintada” que se instaura na criação poética do actante

é a própria cena.

3.1.1 Travessia

Em 2018, o artista Híkel Brawn, o ilusionista Hórus, realizou a ação performativa

Travessia, como um aporte prático para a sua pesquisa de mestrado, realizado sob a

orientação da professora Drª Naira Ciotti, no PPGArC 39. É desse ato performativo que

passaremos a tratar, mas, sobretudo, do que Hórus construiu como uma dramaturgia com

sua “cara pintada”.

Travessia é um título sugestivo que nos faz pensar em jornada, percurso, caminho,

e por si já coloca em ação um sujeito. Inicialmente, precisamos dizer que, por uma questão

de compreensão fenomenológica, trataremos o campo da performatividade do

ilusionismo como espetáculo. Abordaremos o que se instaura no espaço/tempo da ação

do actante Hórus como uma figura que se faz imagem através de um dispositivo cênico

muito específico que é a observação.

O jogo que se estabelece entre o ilusionista e seu espectador é, desde o primeiro

instante, um jogo de “olhar” para “ver” e, ao mesmo tempo, “olhar” e “não ver”, uma vez

que é próprio desse tipo de espetáculo a estratégia da dissimulação como regra.

39 Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

141

Para isso, Hórus assume uma persona cuja figura se pauta pela ideia de

naturalidade imagética, ou seja, não há nada em sua figura no espaço da cena que destoe,

em excesso, da sua figura cotidiana. A similaridade, aqui, tem a função estratégica de

sugerir ao espectador a crença na “normalidade”, exatamente, numa não espetacularidade.

Vem desse recurso discursivo a qualidade do “truque” que o ilusionista realiza.

Assim, a “cara pintada” de Hórus necessita de poucos ou nenhum recurso material

(cosmetológico) para se compor como uma dramaturgia. A própria ausência de tais

elementos faz parte da composição do ilusionista de Travessia, que busca extrair do

espectador um tipo de reação muito específico de comoção: a surpresa.

Figura 89: Cena da ação performática Travessia, de Hórus – o ilusionista.

Fotografia de Paula Araújo (2018).

No palco uma figura que não difere das pessoas com quem cruzamos em nosso

cotidiano. Um homem, alto, cabelos e olhos castanhos escuros, vestindo um figurino

composto de calça jeans preta e camisa de botões na mesma cor. Um homem “comum”,

como percebemos na primeira leitura que fazemos de sua imagem. Para o ilusionista esse

142

lugar de “homem comum” é interessante, pois não chama a atenção do público para suas

práticas de prestidigitação.

A realização da dramaturgia da “cara pintada” do ilusionista se completa e se

organiza junto à tessitura da cena a partir da não utilização de cosméticos, ou da utilização

em pequena escala. É uma pintura que não chama atenção para sua figura na interação

como o público, exatamente como o ilusionista precisa que seja.

Em uma segunda parte de seu ato, Hórus opta por usar uma venda nos olhos,

criando no seu espectador a tensão provocada pelo símbolo do perigo eminente.

Figura 90: Outra cena da ação performática Travessia, de Hórus. Fotografia de Paula Araújo (2018).

A ludicidade aqui está presente justamente no efeito contraditório de ver algo

extraordinário (a ilusão que acontece diante de nossos olhos) partindo de algo que

consideramos ordinário, que reconhecemos (a figura de um homem comum). A partir da

teatralidade existente nesse contexto, acreditamos na verossimilhança da “mágica”. Estar

143

com o rosto “limpo”, sem adição de cosméticos, próteses e adereços não significa estar

com o rosto desnudo. O actante precisou construir a figura ou, em suas palavras, “uma

atitude” que se personifica em sua imagem, através da qual o público se ligará com o

fenômeno da teatralidade. O que, corrobora o pensamento de MAGALHÃES (2010):

A relação que o atuante mantém com sua personagem dependerá da estética

cênica proposta. Por exemplo, na de cunho naturalista o atuante deve manter a

atuação ininterruptamente, sem quebras, e levar o espectador a se identificar

com a personagem, provocando uma ilusão contínua de que ela é uma pessoa

complexa como qualquer ser humano real. A maquiagem, desse modo, segue

a estética proposta e deve ser extremamente natural. Qualquer alteração facial

pela maquiagem deve ser imperceptível aos olhos do espectador, produzindo

o efeito de que o que ele vê é verdadeiro, real, verossímil. (MAGALHÃES,

2010 p. 177).

Ao ser questionado sobre como deveríamos nos referir ao seu trabalho, Hórus nos

deu uma a seguinte resposta:

Meu trabalho em mágica, ao longo de dez anos, tem influência do estilo de

mágica de palco e rua, uma mescla. Há também elementos da mágica de

mentalismo, da magia clássica de palco (manipulação) e do escapismo. Minha

poética atual mescla elementos da performance (tanto na maneira de atuar,

quanto de compor a ação), trabalho com work in process, estado de

performance, pesquisa de material. 40

Para Hórus, em sua atuação ele se coloca “[...] na situação de performance, em

ação, me concentro no que realizo no momento”. Para ele, no Travessia, “[...] não há

personagem, mas uma atitude, então, a atuação sofre alguns desdobramentos, dependendo

do nível de interação da plateia e da organização do ambiente da ação”.

Essa perspectiva que ele apresenta confirma nossa compreensão na experiência

como atitude do actante e fenomenologia do espectador. Neste fluxo dialógico, a

composição da personagem desaparece. Para Hórus o que prevalece é que o seu “[...]

treinamento-processo parte de exercícios técnicos, pesquisa referencial (por vídeos, livros

ou assistindo ao vivo a outros artistas) e experimentação com público”. Mas se não há

construção de personagem, ainda podemos considerar que em cena Hórus está de “cara

pintada”?

40 Entrevista colhida em 12 de fevereiro de 2019, conforme Anexo I.

144

É considerável a relevância que tem a “dramaturgia do corpo” nos processos que

ele desenvolve como actante. No tocante aos aspectos materiais da performance, seu

figurino, seus adereços, como compõe o cabelo, a maquiagem, como se coloca na luz e

no espaço, Hórus diz que em Travessia “[...] utilizo um figurino mais neutro, que não

desloque o olhar do público para o que estou realizando. Trabalho com materiais reais,

ou seja, sem preparação especial (vidros de garrafas, tecido de algodão, moedas, fita

adesiva)”. Mas que valor tem essa materialidade para a narrativa que está construindo?

No seu processo criativo, será que ele constrói a imagem material do que fará na

performance? E ele responde: “A imagem é um dos primeiros elementos que dou

importância, sua construção vem ganhando modificações no decorrer do processo.

Normalmente, utilizo poucos recursos de maquiagem, uso mais para reforçar um olhar,

uma presença, uma atitude”.

Acreditamos que a partir do momento em que o actante emprega sua energia

criativa, sua poética, na criação dessa persona, ele está criando sua “cara pintada” que

será apresentada ao público com o intuito de construir com eles a ligação que permitirá

que eles façam parte da cena junto com Hórus. A presença, a atitude que ele alega que

pode reforçar através do uso de maquiagem já está, nesse caso, construída como sua “cara

pintada”.

Figura 91: Outra cena da ação performática Travessia, de Hórus – o ilusionista.

Fotografia de Paula Araújo (2018).

O fato de Hórus não utilizar elementos cosméticos para a organização estética de

seu rosto em cena não diminui a sua construção, uma vez nessa construção era preciso

levar em consideração o que ele queria “tirar de sua cartola”, caso contrário ele corria o

145

risco de colocar sua relação com o público em um lugar diferente do que considerava

como necessário para a concretização de sua ação ilusória.

Aqui podemos verificar que imagem, presença e atitude (ou seja, experiência e

percepção) são os grandes campos semânticos que o artista manipula para construir sua

narrativa. Da mesma forma, “pintar a cara” é para Hórus uma atitude “Confortável e

desconfortável. Mas me passa a sensação de completude da proposta”. Assim, “pintar a

cara”, para este actante, o coloca em estado de percepção do que projetou para a

performance.

Da mesma forma, quando o actante adiciona à sua composição o elemento que

lhe venda os olhos antes da caminhada sobre os cacos de vidro, aceitamos a ideia de que

ele está se colocando em uma situação de risco, ainda que imaginemos que não é a

primeira vez que o actante realiza aquela ação, pois compartilhamos, enquanto grupo

social, a convenção de que os cacos de vidro no chão representam perigo e que caminhar

sobre eles sem o agenciamento da visão para nos guiar aumenta ainda mais as chances da

pessoa se ferir.

No caso, em suas próprias palavras, “Alguém cego. Um eremita. Alguém em

situação de risco”. Ou seja, de fato, ao se construir enquanto imagem reflete o que pensa

como ação e, portanto, dramaturgia.

Figura 92: Outra cena da ação performática Travessia, de Hórus – o ilusionista.

Fotografia de Paula Araújo (2018).

Entretanto, é possível que nessa performance Hórus utilizasse outra maquiagem,

com outro entendimento, outra aceitação? Ao que ele responde: “Sim. Já imaginei realizar

somente a caminhada sobre os vidros, sem uso de venda, mas com o corpo todo pintado,

146

uma imagem próxima a do brâmane indiano, do faquir. Ainda pretendo experimentar com

o público”.

Apesar de considerar que é possível realizar Travessia com uma “cara pintada”

diferente e de estar disposto a tal experimentação, Hórus traz como ponto de referência

para o segundo momento de sua performance em que supostamente se coloca em situação

de risco, o faquir indiano, do qual nós, enquanto membros de uma sociedade ocidental

organizada a partir de uma matriz europeia, temos um pré-conceito formado que se baseia

na imagem construída do faquir em meios de divulgação de mídia, mas, em grande

maioria, ignoramos as questões religiosas, filosóficas, antropológicas, culturais que

circundam estes “personagens” orientais. A imagem do faquir nos remetera a cama de

pregos e à ideia de que, submetendo-se aquela situação de possível risco a persona não se

machucaria, pois estava em “lugar” sobre humano, em que os efeitos físicos da gravidade

sobre um corpo que se deita em uma cama feita de pregos pontiagudos não se aplicam.

De qualquer forma, é partindo da imagem que identifica no mundo ao seu redor

como um dispositivo para chegar a uma sensação que, em sua criação, Hórus constrói a

imagem que assumirá nos palcos, sua “cara pintada”, com a intenção muito clara não só

de conduzir suas próprias ações, mas também de como essas ações serão recebidas pelo

público e o que será gerado nessa interação, tanto do ponto de vista da construção de

sentido, quanto de todos os elementos perceptivos e imaginativos, sensoriais e emocionais

que provocarão no seu espectador a catarse surpreendente do ato mágico.

Notadamente, para o performer ilusionista Híkel Brawn – Hórus – a composição

da imagem é parte definitiva na sua construção cênica.

3.1.2 Saudades Z(é)

Em 2017, o actante, professor, pesquisador e brincante Sebastião Sales da Silva,

o Tião Silva, finalizou o processo de construção do espetáculo Saudades Z(é), que teve

início ainda em sua graduação, passou-se como objeto de trabalho no seu Mestrado 41 e

agora circula, como espetáculo e pesquisa dos estudos teatrais. Quem é Tião?

Tenho dito que sou um ator-brincante... Essa minha fala inicial marca o registro

das minhas descobertas no mundo do fazer teatral – brinquei nos circos

tradicionais que passaram pelo interior do Estado, mais precisamente na

comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN. Ator de rua, construtor em

41 Realizado no PPGArC da UFRN, em 2017, sob a orientação do professor Dr. Robson Carlos Hadershpek.

147

minha comunidade de espaços não formais do fazer artístico. [...] Capoeira [...]

ator [...] laboração biográfica [...] “Revoada” [...] “Éter” [...] Arkhétypos [...]

“Saudades Z (é)” [...] “Pérola” [...] mundo afora. 42

“Saudades Z (é) contribui para a minha formação integral”. É assim que Tião

analisa a sua participação no espetáculo que realiza. Sua análise transcende nossa

expectativa. Tião, de fato, reflete em sua fala a pesquisa que realizou na sala de ensaio.

“[...] percebo que [...] depois de apresentar o “Zé”; tenho realizado uma anamnese”.

Refere-se a fato de que o espetáculo recorda fatos de sua vida, “[...] atravessa as minhas

memórias”.

O verbo está correto, com a pesquisa e o espetáculo, Tião montou uma grande

cartografia de suas lembranças, que traspassam seu entendimento dos festejos populares

de sua terra, muito especialmente, do Boi de Reis e do Mestre Zé de Moura. Saudades Z

(é) tem pontos que “[...] colocam em xeque a minha existência”. Tião considera que o

espetáculo é “[...] uma análise na tentativa do autoconhecimento, de ‘verdades’

intrínsecas”.

Figura 93: Tião Silva, “Menino Brincante”, em seu Saudades Z(é).

Fotografia: Alexandre Santos (2017).

Podemos recortar que esta compreensão que o artista tem da narrativa cênica

realizada é também parte intrínseca do que constrói como poética, corporeidade, trajeto

perceptivo, fenômeno de si (MERLEAU-PONTY, 1996). Por outro lado, desprendendo-

se do romantismo do que chama de atravessamentos, Tião nos diz que “[...] participar do

42 Entrevista colhida em 13 de dezembro de 2018, conforme Anexo II.

148

“Zé” é um desafio além do trabalho de ator, pois exige pensar [...] desde a sua concepção,

produção, perpassando a atuação, a análise e a autogestão, ou seja, a minha participação

no Saudades Z(é) é parte de um todo, para que ele se fazer presente!”.

Partindo da anamnese que o actante vem realizando de seu trabalho, ele nos

descreveu sua personagem Mateus de Zé de Moura, que compôs e realizou nesse

espetáculo da seguinte maneira:

Carinhosamente, tenho chamado ele de “Zé”,

“Zé” é uma figura intrigante, por ora ele é um ser engraçado, bobo, cortês e

maestro da boa companhia, por vezes ele usa de sua seriedade, esperteza e não

faz questão de fazer as honras da casa.

“Zé” é uma figura alta, magra, retilínea e negra.

“Zé” é um transeunte, malandro, brincante, bebum, criança, homem, mulher,

bicho, animalesco, empregado (de si, do outro – do capitão, da mulher ou dele

mesmo).

“Zé” representa o terceiro lado da moeda, é a anti-estrutura da sociedade; ele

está à margem da margem entre as probabilidades exatas de /cara ou coroa/

“Zé” sou eu, é você, é Mateus, é Catirina, é o Boi, é o festejo, é o fogo que faz

a roda do terreiro girar!

“Zé” é tanto Zés do Brasil e do mundo afora. Ele é um presente em minha vida

artística. Ele é o avesso do avesso do meu corpo – somos um – vivemos esse

trânsito!

A maneira como Tião descreve a actância brincante que vive em seu festejo-

espetáculo, a quem deu o nome de Zé, toca aqueles que tiveram a oportunidade de

vivenciar a cultura dos brincantes de Boi de Reis, trazendo às nossas memórias outros

brincantes e brincadeiras que, vistos a partir da mesma superfície (rosto pintada de carvão,

roupa de couro e fitas coloridas etc.) criam uma espécie de avatar, uma forma que, através

da imagem, materializa uma série de significados construídos através de anos de história

e tradição.

Tião pontua, como mencionamos anteriormente, que o início da composição do

Zé se deu a partir das entranhas de sua memória de infância, em que sua mãe lhe “[...]

contava histórias de Reis, mas não são desses Reis que moram em castelos, que tem uma

filha princesa e que estão à espera de um príncipe. Ela me contava histórias de Bois de

Reis”. Essas histórias eram justamente sobre o Boi de Mestre Jovelino e do brincante Ze

de Moura, homenageado na criação apaixonada de Tião quando este chegou a “uma

cidade grande, chamada Universidade. Nela, ele conheceu o professor Makarios Maia e

juntos foram construindo as fitas, as fibras e a couraça desse Boi, ora homem ora bicho!”.

149

Figura 94: Professor Makarios Maia, Mestre Jovelino e Tião Sales, nas pesquisas de campo acerca do

Boi de Reis de Vera Cruz (RN), preparatórias para Saudades Z(é). Fotografia: Lenice Lins (2009).

Quanto a relevância dos aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e

maquiagem) na realização dessa personagem Tião afirma que “devemos pensar primeiro

o quão estes são fundamentais para a construção de uma narrativa” e afirma que em seu

espetáculo o figurino – composto pela capa do Boi; o paletó do Mateus; a camisa e calça

customizadas e sapatos – é “a ‘roupagem’ que reveste a alma da brincadeira [...] faz parte

da laboração da arquitetura da cena [...], é se (trans)formar a partir de uma indumentária

e vestir a alma da brincadeira.

O actante destaca ainda a importância dos adereços, tais como o chapéu de couro,

que representa a couraça, a proteção do homem sertanejo quando sai para caçar; “o

‘macaca’ 43 [...] instrumento [...] representa o chicote do boiadeiro, que tange o boi no

curral, na capoeira” e o matulão 44, que

[...] representa a chegança das figuras animalescas na brincadeira (como o

próprio Boi), além de simbolicamente representar o gado, o mundo sertanejo,

43 “[...] instrumento [musical feito com] um bastão de madeira com uma corda amarrada em sua ponta em

umas extremidades segurando uma bola de meia [...]” – definição dada pelo artista através de entrevista

realizada em 16 de janeiro de 2019, conforme Anexo II.

44 “[...] instrumento confeccionado por um pedaço de colchão e com diversos chocalhos pendurados” –

definição dada pelo artista através de entrevista realizada em 16 de janeiro de 2019, conforme em Anexo

II.

150

o ciclo do gado marcado por ferro; demarcando este animal e pelos sinos que

anunciavam por onde andavam os gados que fugiam dos cercados. [...] Nesse

aspecto, os adereços em “Zé” compõem a estrutura de paramentos (vistos não

apenas como um adorno), mas como signos que comunicam e se reestruturam

dentro da linguagem da cena do referido espetáculo.

A leitura que Tião faz da importância dos adereços como elementos que compõem

a tessitura dramatúrgica do espetáculo, alinham-se com a visão que se erigiu na cena

contemporânea, em que os

[...] elementos cênicos macroscópicos (música, atores, cenários, figurinos,

texto, mídias, disposição do público etc.) que por meio de seus encontros

geram tensões, relaxamentos, buracos, saltos, desvios e assim proporcionam

um TECIDO, uma TESSITURA em multiplicidade complexa. Esse tecido (ou

tecidos) dinâmico flutuante gerado por essas linhas-cênicas, deitadas sobre o

tecido complexo do espaço-tempo (que também pode ser agenciado como uma

linha de opção dramatúrgica) gera o que podemos chamar de dramaturgia

cênica. Podemos dizer que optar por uma dramaturgia-tecido pensada dessa

forma abre potências para novos encontros e posturas em relação ao próprio

fazer cênico (FERRACINI, 2011, s/p).

Figura 95: Tião Silva “brincando” seu “Zé de Moura” durante o Encontro da ABRACE 45.

Fotografia de Sarah Wollermann (2018).

O menino Tião despindo-se de seus conceitos criados a partir da vivência com a

brincadeira e com os brincantes na infância, tenta compreender as diversas camadas, as

diversas caras que foram pintadas com o mesmo carvão, para a mesma brincadeira. Nesse

caso, a alma da brincadeira não é algo que toma o actante de dentro para fora, mas sim

um conjunto de elementos que parte da organização estética externa, firmada no rosto

pintado de carvão e nas vestes aos moldes tradicionais que permitem que, tanto o actante,

45 Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (http://portalabrace.org).

151

quanto o espectador acessem essa dimensão lúdico-essencial onde o jogo dos brincantes

é estabelecido.

No que diz respeito aos cabelos, Tião acredita que seu aspecto não é relevante

para a construção da figura do Zé, no entanto, afirma sua preocupação em “não cortar o

cabelo com stylos mais modernos (como moicano, dégradé, com listinhas e outros; por

uma questão de estética do homem sertanejo [...])”. A informação se torna um tanto

contraditória, uma vez que sua preocupação afirma a relevância da informação construída

em todos os elementos que compõem a imagem da personagem, inclusive o cabelo

“comportado”.

Sobre a maquiagem, último aspecto da composição da “cara pintada” da

personagem avaliado pelo actante, Tião traz importantes informações, objetivas e

subjetivas que o guiaram em seu processo poético:

[...] quando penso na maquiagem do Zé, aqui tenho um dos principais

elementos da composição desta personagem.

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

Pega esta criança que tem medo de careta.

Não, não, não

Não o coitadinho

Ele está chorando, porque ele é bonitinho!

[...] quando via o brincante que anunciava o início da brincadeira com a cara

preta (ao mesmo tempo tinha medo por ser o “Boi da cara preta que pega as

crianças que tem medo de careta”, apaixonava-me pela espetacularidade, pela

expressividade daqueles traços do rosto dos brincantes mascarados –

mascarados pela tinta do carvão).

O relato encantado do actante aponta a “cara pintada” como rito poético da cena

dos brincantes, em que eles não só repetem as ações que costumam fazer em cada uma de

suas apresentações, mas, mantendo de uma tradição muito mais antiga e profunda,

reproduzem as ações de seus antepassados, de tantos outros Mateus e Biricos que

passaram cansados por aqueles terreiros e transcenderam na brincadeira.

A pintura, portanto, ganha um contorno histórico importante, tanto para o actante

que ao pintar a sua cara, está imprimindo na superfície de sua pele um pouco das caras de

todos os outros brincantes, quanto para o espectador, que também reconhecerá nessa “cara

pintada” a histórias das centenas de “caras pintadas” que a precederam na mesma

brincadeira e também serão tocados pela espetacularidade desse jogo.

152

Figura 96: Brincantes do Boi de Reis (Marujada de Rezes).

Fotografia do arquivo pessoal de Tião Silva (1975).

Não estamos, nesta reflexão, ignorando o elemento individual e único que cada

actante traz em sua própria dramaturgia, mas levamos em consideração o poder da figura

do brincante com sua “cara pintada” à maneira tradicional, como um signo potente que

atravessará a construção (e, portanto, a leitura) da personagem com a essência poética do

que já foi arraigado no imaginário das pessoas (que atuam ou que veem).

Dentro da dimensão poética do Boi de Reis, os actantes “brincam” com seriedade,

como nos conta Tião:

Ao realizar o ritual, disserto sobre o segundo ponto, a expressividade dos rosto

pintado, olhava e tive a certeza: não são as mesmas pessoas – eles se

transfiguravam, acessavam estados corporais que os olhos nunca tinham visto

e dali rompiam o muro da casa do Mestre Jovelino e ganhavam as casas dos

vizinhos, transitavam entre um lugar e outros – ao escrever, recrio em meu

corpo, memórias dos meus amigos gritando: “lá vem o bicho da cara preta”, lá

vem o Boi” – eu estava extasiado, parado por fora e pulsando por dentro

perante tudo que vi.

Tomado pela brincadeira o actante, enquanto espectador, vivenciou a experiência

de uma teatralidade putada no fenômeno da “cara pintada”, o que, segundo ele, foi muito

relevante para sua construção enquanto brincante. Do outro lado da cena, Tião reproduz

o rito poético que aprendeu com os brincantes a partir da observação, conforme nos conta:

153

[...] quando eu pinto a minha cara com carvão, eu tenho certeza que não sou

mais eu, transformo-me e me coloco em estado de poesia, de trânsito,

transgressão e vivo a brincadeira de ser outros em meu corpo. [A “cara

pintada”] um elemento fundamental para a composição do “Zé”.

O relato denuncia a importância da “cara pintada” como construção da

dramaturgia do actante, uma vez que esse, se construindo enquanto persona, é também

um espectador de sua própria “cara pintada”; sua pele é “vista” por ele através dos seus

outros sentidos e de sua imaginação. Pintar-se, saber-se pintado, sentir-se pintado coloca

o actante em seu estado triplo de: dramaturgo; dramaturgia e espectador.

Figura 97: “Boi da cara preta”, Tião Silva em seu Saudades Z(é).

Fotografia: Tiago Lima (2017).

Haveria a possibilidade de Saudades Z(é) ser recebido pelo público com a mesma

aceitação, no caso do brincante Tião não “pintar a cara”? E ele responde: “[...] acredito

que não teria e não faria sentido outra maquiagem para este personagem. O ‘Zé’ é um

homem, um Boi da cara preta, da cara pintada!”.

154

3.1.3 Jacy

O actante, diretor, dramaturgo e gestor cultural Henrique Fontes, um dos artistas

que compunham o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare 46, quando fundaram a Casa

da Ribeira 47, realizou, em 2017, juntamente com a atriz Quitéria Kelly, o espetáculo

Jacy, uma produção do Grupo de Teatro Carmin 48. O actante, com quase 30 anos de

carreira, nos conta um pouco sobre sua trajetória:

[...] sou formado em Comunicação Social, com mestrado em Ciências Sociais,

mas desde antes da universidade eu já trabalhava com Teatro. Trabalhei nos

grupos Ahazragiva, Beira, Atores à Deriva e Carmim (em todos estes participei

da fundação). Também trabalhei com os Clowns de Shakespeare por 8 anos. 49

Em relação a sua participação no espetáculo Jacy, Henrique anuncia o ponto de

partida da peça como sendo uma frasqueira encontrada no lixo, que junto ao desejo

recíproco de trabalhar com a atriz Quitéria Kelly, instigaram o desenvolvimento de um

espetáculo que visava versar sobre o envelhecimento de ambos. Devido ao seu desejo de

atuar, o actante se propôs a construir a dramaturgia, e afirma que “[...] iria ter um diretor

46 Criado em 1993, em Natal (RN), o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare desenvolve uma investigação

com foco na construção da presença cênica do ator, da musicalidade da cena e do corpo, teatro popular e

comédia, sempre sob uma perspectiva colaborativa. Mesmo sem trabalhar diretamente com palhaço, a

técnica do clown está presente na sua estética, seja na lógica subvertida do mundo, seja na relação direta e

verdadeira com a plateia, seja no lirismo que compõe o universo desses seres. Além, é claro, de toda a sua

carga cômica. As comédias shakespearianas vieram a contribuir para essa pesquisa. Sem adotar uma atitude

“museológica” sobre o bardo, no entanto sem desrespeitar a sua genialidade, o desafio tem sido encontrar,

na universalidade da obra do dramaturgo, o que faz sentido para o grupo. (Cf.

https://www.clowns.com.br/o-grupo/).

47 Em março de 2001, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare mobilizou a classe artística e de produtores

culturais da cidade do Natal (RN) para, através de um conjunto de ações coletivas de vários atores sociais

e via incentivos culturais de empresas da região, fundar o Espaço Cultural Casa da Ribeira (Em atividade

há 18 anos), que habita um casarão construído em 1911 (Tombado pelo IPHAN como Patrimônio Cultural

Brasileiro), e comporta: um Teatro (com 164 lugares), uma Sala de Exposições, um Laboratório de Ideias,

um Acervo Literário (com mais de 1400 títulos) e um Café Cultural. (Cf. www.casadaribeira.com.br).

48 O Grupo Teatro Carmin foi criado em janeiro de 2007, em Natal (RN), para pesquisar temas urbanos que

pudessem ser retratados de forma cômica. A busca pelo riso não era gratuita e deveria proporcionar abertura

para reflexão ou, como quis Georges Bataille, para uma “atitude filosófica”. Motivados pela pesquisa

proposta pelo Grupo Clowns de Shakespeare sobre moradores de rua do bairro da Ribeira, as atrizes

Quitéria Kelly e Titina Medeiros convidaram o diretor e dramaturgo Henrique Fontes e o cenógrafo

Mathieu Duvignaud para juntos aprofundarem a pesquisa e, daí, nasceu a peça “Pobres de Marré” que já

realizou mais de 60 apresentações, percorreu o Brasil e a França. Em 2013, o grupo estreia Jacy, uma peça

cômico-trágica que revela fatos sobre o abandono dos idosos, a política e o crescimento desenfreados das

cidades que, por muitas vezes, ignoramos. Na atualidade, o Grupo Carmin mantém em cena “A Invenção

do Nordeste”, um espetáculo sobre identidade e xenofobia. E o grupo busca aprofundamento estético na

linguagem de Teatro Documental. (Cf. http://www.grupocarmin.com/o-grupo#/historia/).

49 Entrevista colhida em 16 de janeiro de 2019, conforme Anexo III.

155

de fora, mas acabou que, no processo, a gente não conseguiu esse diretor e decidimos

fazer nós mesmos. E, eu acabei dirigindo.”.

Figura 98: O actante Henrique Fontes em Jacy. Fotografia: Wladimir Alexandre (2014).

O espetáculo Jacy é apontado como um divisor de águas para o Grupo Carmim,

uma vez que este trabalho marca o encontro do grupo com o Teatro Documentário, “[...]

que foi fruto de duas idas [de Henrique] ao ‘Santiago a Mil’”. Este festival que acontece

em Santiago, no Chile, permitiu o encontro do actante com “as peças da Lola Arias, que

é uma argentina que trabalha com Teatro Documentário”, conta. Segundo ele, esse

encontro permitiu ao Carmin voltar seu olhar para a dramaturgia.

Quando questionado acerca da importância dos elementos de composição da

tessitura imagética da cena no espetáculo Jacy, o actante afirma que

[...] o formato de teatro que a gente trabalha é um teatro onde o ator ele não

busca a mimese da personagem ou a criação de um corpo que é externo ou

forjado para a cena. O corpo do ator é o corpo do suposto personagem. [...] pra

mim a maquiagem não tem nenhuma importância; o figurino ele tem

importância no sentido de ser algo que dê forma e sentido à criação anterior –

então, não é ele que influencia, ele vem como um complemento pra isso – tanto

que, muitas vezes, a gente nega figurino, né? dizendo assim – “ah não, isso não

dá certo, isso não funcional, tal” – porque a gente já tá muito fortemente ligado,

ou se apropriou de estar em cena, né? Obviamente que quando o figurino chega

ele é utilizado, potencializado para a cena, mas eu não diria que ele tem um

papel preponderante, fundamental, não.

156

As imagens do actante Henrique Fontes no espetáculo Jacy, assim como as do

ilusionista Hórus, mencionado anteriormente, nos mostram um “homem comum”. Ainda

que este espetáculo não faça uso dos mesmos artifícios de uso da aparência de

“normalidade” para construir o seu desfecho surpresa, como no ilusionismo, a imagem

de um “homem comum” também tem a sua função em Jacy.

Segundo Fontes, o espetáculo parte de uma estética que não busca grandes

composições de personagens através de elementos estéticos ou mesmo psicológicos

porque,

Na verdade, o personagem sou eu. Em Jacy, a gente se trata, inclusive, pelos

próprios nomes. O que nós temos é uma diferença de narrativas. Tem uma

narrativa que é mais “depoimental”, mais próxima. O mais próximo da gente

mesmo. E a grande dificuldade tá aí, né? Em ser você de forma artificial no

palco. Mas ela tem dispositivos que a gente cria na própria forma de falar; que

a gente entendeu que dão esse tom mais “depoimental”, um pouco mais

próximo da plateia, como uma conversa mesmo.

Ressaltamos que, apesar de afirmar que não existe personagem ou de se colocar

como sendo ele o próprio o personagem, o actante aponta para uma “diferença de

narrativas”, bem como para a “dificuldade em ser você de forma artificial no palco”. Essas

questões, para serem resolvidas no jogo cênico, devem provocar a criação de estratégias

que possibilitem ao actante a manutenção desse jogo na relação com o público. Essa

relação, se estabelecendo a partir da teatralidade, pressupõe que o lugar do actante seja

visto – do lugar do espectador – como “[...] um portador de signos, um cruzamento de

informações sobre a história contada” (PAVIS, 1999, p. 31), de modo que, o próprio ato

de estar em cena coloca o actante em um “lugar” fora de si – ou de seu eu cotidiano.

Assim, a maquiagem servirá como vetor acumulador quando agrupar

conjuntos de personagens definidos (raça, profissão, famílias, entre outros).

Quando a maquiagem possibilita ao espectador se localizar nas oposições, ou

seja, ler um corpo ou um rosto maquiado em relação aos outros, captando,

desse modo, o sistema de regularidade, ela funciona como um vetor conector.

As interrupções entre séries de cenas, com mudanças de aparência entre elas,

proporcionadas pela maquiagem, a tornam um vetor secionante.

(MAGALHÃES, 2010 p. 179).

A maquiagem é mesmo um vetor acumulador, como no diz MAGALHÃES. A

partir dela, o actante, mesmo que não a use como artifício da cenografia, terá na sua

dimensão simbólica, codificada na própria existência do teatro, o rosto armado com o

distanciamento implícito que separa a cena do cotidiano, o actante “[...] é sempre um

intérprete e um enunciador do texto ou da ação” (PAVIS, 1999, p. 30) de modo que,

157

construindo uma artificialidade de si mesmo, está construindo uma “cara pintada” para a

persona que ele vivencia em cena.

Como o próprio artista menciona, a construção de sua “cara pintada”, através do

figurino que “dê forma e sentido à criação”, da escolha de não usar maquiagem para

reforçar a ideia de ser uma “versão artificial de si mesmo” são apresentadas ao público

como dispositivo que fortalece a dramaturgia “depoimental”, utilizada no espetáculo.

Henrique continua falando sobre outras personas representadas em Jacy:

[...] a gente tem tipos, que não chegam a ser personagens, mas são a suposta

representação de Luiz, o irmão de Jacy; um velho que eu retrato como “um

processo inicial”, que aí, sim! a gente trabalhava com mimese, trabalhava com

a coisa da observação e da composição, né? E aí, esse personagem que não tem

nome, mas que é velho, ele tem ali uma construção, sim, de corpo, de voz,

enfim, de estado. Mas acho que o que a gente mais preza é a fluidez da

narrativa... das narrativas diferentes.

No seu processo criativo, Fontes afirma dar importância à imagem material do

personagem apenas quando chegam à fase “[...] dos ensaios gerais. Já no último terço da

montagem”. E não utiliza a maquiagem como elemento de composição. Também, não

considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar ou não

pintar a cara para entrar e cena.

Figura 99: O actante Henrique Fontes em Jacy. Fotografia: Daniel Torres (S/D).

158

Segundo relato do actante, a ideia da composição das personas nesse espetáculo

é afirmar que quem está em cena é a mesma pessoa fora da cena, ou seja, que não há

divergência entre “ator” e “personagem”, para que estas duas personas estejam o mais

próximas possíveis na cena, garantindo o caráter depoimento do espetáculo.

No entanto, como o próprio actante afirma no relato, essa aproximação reforçada

pela imagem traz uma “dificuldade em ser você de forma artificial no palco”.

Considerando que “ser de forma artificial” não é apenas ser, mas interpretar uma espécie

de simulacro do que se é, encontramos também nesse relato, portanto, o “lugar” da “cara

pintada” como parte da composição dramatúrgica desse “eu-outro” simulado na dimensão

tribal naturalizada pelo reconhecimento do grupo identitário com quem interage.

Portanto, a “cara pintada”, como a compreendemos, está presente em todo o espetáculo

Jacy. Tanto quando o actante entra em cena como ele mesmo, quanto quando assume

outras personas, como o velho mencionado, para o qual também foi criado um corpo, uma

voz, um estado, ou seja, uma “cara pintada”.

3.1.4 Sua Incelença, Ricardo III

Figura 100: O actante César Ferrario vivendo Clarence, em Sua Incelença, Ricardo III.

Fotografia: Lenise Pinheiro (2010).

159

Em 2010, o actante, músico, dramaturgo e pesquisador César Ferrario, participou

do espetáculo Sua Incelença, Ricardo III – inspirado na tragédia de William

Shakespeare –, que ajudou a construir, junto com os Clowns de Shakespeare (Já

mencionados), em uma pesquisa teatral que teve a direção de Gabriel Villela 50.

César, quando perguntamos sobre seu trabalho artístico, encara a questão com

profundidade,

[...] eu lhe digo que me considero – referindo-me ao teatro – como um homem

da cena. Eu acho que eu sou um homem da cena, é isso. Daí as necessidades e

as circunstâncias acabam me colocando os desdobramentos possíveis: por

vezes sou dramaturgo, por vezes sou ator, por vezes também dirijo. Mas eu

gosto de acreditar que todas essas coisas vêm de um mesmo centro pulsante,

pois no final das contas – sem desmerecer as competências e as expertises

necessárias aos cumprimentos de cada uma dessas funções citadas – o que eu

lhe digo é que eu sou um homem da cena. 51

O trajeto do actante César Ferrario é, em síntese, o de quem despertou, desde

sempre, dentro da cena.

[...] caí nesse espaço cênico por uma casualidade. Foi quando eu fazia o

segundo grau e [...] muito prontamente entendi o poder e as necessidades das

narrativas teatrais, não só para o mundo, mas para mim, para minha existência.

E desde então não larguei mais. Durante esse mesmo período funda-se [...] Os

Clowns de Shakespeare [...] a minha jornada artística durante 24, quase 25 anos

[...] no início do ano passado [...] vim a concluir [...] que não estava mais no

coletivo. [...] Daí então, seguir em mar aberto, disposto a construir novas

oportunidades ao final de cada trabalho concluído.

Perguntado como se analisa no espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, César

responde:

O espetáculo Ricardo III marca o encontro do Grupo Clowns de Shakespeare

com o encenador Gabriel Villela. Gabriel Villela dispensa comentários, é uma

pessoa que faz parte dos anais do Teatro Brasileiro, principalmente na sua

história mais recente. E Gabriel trouxe pra mim [...] através dos seus

procedimentos e conduta na direção do espetáculo [...] um conjunto de

conhecimentos [...] uma visão de mundo, uma forma de ver a arte, que até então

eu não acessava e que, pra mim, foi absurdamente transformador. [...] diz

respeito a precisão, a métrica, a colocação, ao tempo das atuações [...] me

ensinou muito. Por exemplo, foi durante o processo de montagem do Ricardo

III [...] que eu encontrei entendimento, inspiração e [...] escrevi todo o texto

50 Antônio Gabriel Santana Vilela é um diretor de teatro, cenógrafo e figurinista brasileiro que já dirigiu

mais de 40 espetáculos, entre adultos e infantis. Formou-se no curso de Formação de Diretores, da Escola

de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e tem em seu currículo muitos espetáculos de teatro

e música. Em 2010, dirigiu o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, na montagem de Sua Incelença,

Ricardo III.

51 Entrevista colhida em 14 de janeiro de 2019, conforme Anexo IV.

160

Guerra, Formigas e Palhaços 52 [...] que nem tem uma relação direta com

Ricardo III, mas não deixa de ser fruto desse encontro.

A análise que o actante faz de seu trabalho é profunda, de modo que, para

responder as questões sobre o espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, ele esquadrinha

todo o universo que se instaurou ao redor do processo experienciado. Porém, focando

mais na busca de nossa pesquisa, ele afirma que

[...] o mais interessante pra mim, dado o contexto que eu encontrei em Gabriel

[Villela], diz de uma percepção construída, física da personagem. Ele entende

que o ator está um palmo atrás da personagem e de fora dela e, de maneira

consciente, ele a articula. Tudo... todo o processo narrativo, segundo Gabriel

Villela – ou pelo menos da forma como ele trabalhou com a gente – se

estabelece a partir de uma pele, de uma derme. A partir do entendimento dessa

derme, dessa pele, dessa máscara, dessa caracterização é que o ator começa a

entender e a manipular a persona cênica ou personagem. Tanto que – lembro-

me até hoje – no primeiro dia de trabalho, ele, sem saber bem para onde ia,

nem como seria o desenrolar do processo, nos vestiu e nos maquiou a todos e

disse: “a partir daqui a gente começa a nossa montagem”. E claro, no instante

em que as coisas iam caminhando ele ia ressignificando, mudando figurinos,

mudando a maquiagem, mas desde o primeiro dia de trabalho, quando

chegamos na sala de ensaio, ele já instaurou essa manifestação concreta, visual,

na caracterização, na configuração, na construção de cada personagem e, a

partir dali, aquele elemento concreto, físico, tratava da síntese de uma

mediação entre o ator e o diretor. Lógico que esse material ia sendo

ressignificado, mas ele nunca deixou de existir, desde o primeiro momento.

Isso para mim foi muito significativo, inclusive no meu entendimento do ator,

ou do processo de atuação enquanto filosofia.

O processo iniciado pelo diretor Gabriel Vilela nos instiga a curiosidade por partir

de uma dramaturgia da “cara pintada” como matriz da criação não apenas das

personagens, mas de todo o espetáculo desenvolvido com o Clowns de Shakespeare. A

partir dos relatos de César, compreendemos que a criação de toda a tessitura do referido

espetáculo se deu de maneira isocrônica, semelhante ao modo referido por Ferracini

(2011, s/p), em que no “[...] tecido (formado pela ação ativa do tecer das linhas-cênicas)

descarta-se qualquer centro hierárquico, ou seja, [...] Todo o conjunto de linhas agrupadas

enquanto opção são igualmente importantes para a ação do tecer, ou do fazer o tecido

dramatúrgico”.

52 Com forte teor político e filosófico, sem abrir mão da ludicidade, da subversão e da comicidade, Guerra,

Formigas e Palhaços conta a saga de dois militares, últimos remanescentes de um batalhão de combate,

que se encontram perdidos em uma guerra à espera de reforços. Porém, quando todas as saídas parecem se

fechar, um fato inusitado acontece: o batalhão de dois homens finalmente se depara, estupefato, diante

daquele que pode carregar o último fio de esperança: um palhaço. O texto é de César Ferrario, os atores são

Rogério Ferraz (que também dirige o espetáculo), Ênio Cavalcante e Pedro Queiroga ou Thiago ou Caio

Padilha. A produção é do Grupo Estação de Teatro. (Cf. www.grupoestacaodeteatro.com.br).

161

Apesar do reconhecimento da construção imbricada do espetáculo, o entrevistado

procura, à guisa de focar nos aspectos em que investigamos, destacar sua experiência

enquanto actante, descrevendo sua composição poética de actante

[...] Eu tive três personagens no Ricardo III: O Clarence, que era um dos

irmãos mais velhos do Ricardo III – e, por isso, morto por ele, por encontrar-

se na linha sucessória direta [...] como obstáculo à coroa que Ricardo tanto

almejava – [...]; fazia também um matador chamado Tyrrel Jararaca. Tyrrel no

original de Shakespeare e Jararaca talvez já advindo de uma inspiração de

Gabriel num cangaceiro; e fazia também a Rainha Mãe de Ricardo. Vou me

valer aqui do caso de Clarence, o irmão dele. Gabriel me viu um dia brincando

com um bonequinho lá, que tinha no Clowns, e pediu uma boneca dessas de

bebê, da qual arrancou a cabeça e botou na minha mão. O Clarence, portanto,

era um boneco ostentado pela minha mão. Como eu usava um bigode que era

usado nos outros personagens ele pôs um bigode no boneco, caracterizando um

duplo [através da imagem], e eu acho que essa é a chave de compreensão de

todo o resto. Eu dava voz a Clarence, enquanto de fora olhava o bonequinho

que eu empunhava com os dois dedos centrais da minha mão – o indicador e

seu vizinho, e as mãozinhas dele que ficavam pro polegar, e os dois últimos

dedos, inclusive o mindinho – e, enquanto eu operava a voz do personagem,

de fora eu promovia, analisava, entendia, via todos os seus movimentos. Eu

acho que essa é uma síntese de como lidar com os personagens na visão de

Gabriel Vilela, mesmo aqueles em que a gente veste por completo [...].

Figura 101: O actante César Ferrario vivendo Tyrrel Jararaca, em Sua Incelença, Ricardo III. Ao fundo,

desfocados, Dudu galvão, Marco França e Titina Medeiros, do mesmo elenco.

Fotografia: Thiago Coutinho (2010).

César nos relata também que a direção de Gabriel Villela era bastante vertical,

embora não desconsiderasse a liberdade poética do actante, desde que sua criação

dialogasse com a proposta que estava sendo construída. Ele esperava de seus actantes

uma entrega ao que estavam vivenciando similar à sua própria. Compreendendo os

162

meandros de sua criação que se pautam em uma “[...] música que ele imprime, que é uma

música, um bit, um pulso, de frequência alta”, como nos conta César, os actantes

compreendem sua proposta e passam a dialogar com sua criação de maneira mais ativa,

“[...] servindo-lhe também de elementos que eu acreditava harmonizar com o que ele

estava propondo para a linguagem do espetáculo”.

[...] tenho um dos personagens, que é a Duquesa de York, a mãe de Ricardo,

[...] que eu, entendendo a proposta dele e vendo a metragem do tecido que

tinha, disse: “Gabriel, vamos fazer em cima do banco”. Isso deu à figura um

aspecto longilíneo. Talvez aquela figura tivesse ali dois metros e meio de

altura, porque dizia o tamanho do meu corpo em cima do tamborete, então a

estrutura ficava oculta por um longo vestido que ia do pescoço até o chão. [...]

tudo diz respeito de uma pronta resposta com os esclarecimentos que a

linguagem ia tendo a partir do processo. Na medida em que ele [Villela]

explicitava [...] pra gente [...] o espaço criativo do ator.

Cada elemento, portanto, que era agregado à composição da cena e das

personagens, refletia na tessitura do que estava sendo desenvolvido também como

dramaturgia da “cara pintada”. Desse modo, a criação gradual dessa dramaturgia atua

como se fossem pinceladas se sobrepondo em uma pintura, para a construção da imagem

final da figura. Daí a importância de manter o diálogo entre todos os aspectos materiais

durante o processo de construção do espetáculo vivenciado por César, uma vez que,

segundo seu relato

[...] no Ricardo III, isso são coisas indissociáveis (o figurino, os adereços, o

cabelo) na composição da personagem. Para além dos exemplos dados, eu

aproveito então para dar mais um: Tyrrel Jararaca (que era o matador) tinha

um colete que era feito a partir da sela de um cavalo que ficava no peitoral e

duas perneias de vaqueiro que vinham até a bacia, e essa estrutura, quando eu

acabei de vestir que eu tentei andar com essa estrutura – que literalmente é uma

armadura – isso me limitava completamente as articulações da espinha e dos

joelhos. Isso me dava um andar muito específico que prontamente eu

aproveitei para o personagem. Então acho que essa é literalmente um exemplo

de como a fisicalidade do personagem, ou como a composição do personagem

surge a partir do seu “exoesqueleto” – no caso, a caracterização que ele nos

oferecia. E era impressionante, porque eu não sabia oferecer a fisicalidade do

“Tyrrel” se eu não estivesse com o figurino. Eu só conseguia imprimir o jeito

do personagem andar, subir no palco, fazer suas matanças, subir na carroça, se

eu estivesse vestido com o figurino. E esse figurino me oferecesse os seus

limitadores. Só assim o personagem poderia ser observado.

Obviamente, não estamos considerando que todos os processos teatrais, mesmo

os que escolham partir da composição externa das personagens para a criação das cenas,

como foi o caso do Sua Incelença, Ricardo III, terão experiências iguais às que foram

aqui relatadas pelo actante. No entanto, percebemos o valor que a análise de um processo

163

como esse tem para o nosso estudo e, por isso, o tratamos com o mérito que tanto a

linguagem teatral quanto a poética de criação merecem. Nele, a imagem pode ser

considerada em sua materialidade, tanto significante quanto sensível. César continua,

[...] cada processo é um processo e cada processo tem seus ditames -, mas eu

gosto de dividir, ainda que teoricamente o espetáculo em dois estágios: o

primeiro diz do recolhimento, da coleta – aquela que você vai ler o texto, que

você vai buscar imagens, que você vai pra rua atrás de informação, que você

vai conversar com pessoas, que você vai ler, que você vai assistir filmes, então

essa diz de uma fase, na minha concepção, aberta. [...] e uma segunda parte em

que você parte para o arremate do processo, ou da construção propriamente

dita, entende? Então pra mim essa fisicalidade, essa materialidade do

personagem, essa imagem material, dado o processo que Gabriel nos apresenta,

acredito que precisa existir desde um primeiro momento. Eu acho que essa

história de você pegar a construção de um personagem pelo sentimento, pela

temperatura interna, por um reviver de experiências e memória é, em algum

aspecto (respeito muitos as escolhas alheias, mas no meu caso é) um pouco

arriscado. A materialidade da personagem pra mim, ainda que num primeiro

instante, ou desde um primeiro instante (entendendo que ela pode ir se

transformando ao longo do processo) é fundamental como um chão, como algo

que eu posso ver, me apoiar, relembrar e repetir e reativar aquela estrutura a

cada dia, sem riscos da volatilidade, da fugacidade, a que outros sentimentos

mais subjetivos podem nos levar.

Nesse fluxo, Roubine (1985, p. 64) afirma que “Desde a aurora do século XX,

várias teorias estéticas contribuíram para a utilização dos recursos de representação facial

numa perspectiva não psicológica”. A construção pautada na ideia do rosto da

personagem como um elemento narrativo ganha força. No entanto, a construção da

materialidade da personagem, como um dos elementos iniciais da encenação, não

significa um engessamento de uma composição plástica. É, como bem foi ressaltado pelo

actante em vários momentos, mais um elemento significante que, junto aos demais

elementos que compõem a tessitura dramaturgia da encenação, conduzirão a narrativa.

Porém, ainda que acredite na importância do acesso a esse elemento nos

primórdios da criação, o actante nos conta sobre a diversidade dos processos,

reconhecendo que

[...] Já trabalhei com profissionais como Gabriel [Villela], que essa maquiagem

é parte fundante do personagem e já trabalhei com outros diretores que não

utilizaram maquiagem alguma, por exemplo. [...] eu diria que para mim a

maquiagem é a máscara. Ela pode ser vista da mesma forma pra mim como a

máscara teatral. A Commedia Dell’arte em seu sentido mais extremado nos

aponta esse caminho. Para todas as outras experiências ou utilizações que eu

já passei, senão de forma tão contundente e demarcada como a Commedia

Dell’arte, de formas mais tênue, mas pra mim o princípio é bem próximo.

E compreendendo a “cara pintada” – de modo distinto ao que construímos neste

texto - como a dimensão mais plástica da construção do rosto do actante (ou seja, das

164

aplicações cosméticas sobre a pele), César também nos fala que sua importância “[...] vai

depender da linguagem, da montagem, do diretor, das escolhas... e eu não acho que deva

ser uma regra fechada dizer que pintar a cara ressignifica a interpretação”.

Figura 102: O actante César Ferrario vivendo a Rainha Mãe (Duquesa de York), em Sua Incelença,

Ricardo III. Foto: Thiago Coutinho (2010).

Apesar de percebermos que ao falar aos actantes sobre a “cara pintada” os mesmos

reduziam o significado do termo a pintura literal do rosto, ou seja, a maquiagem,

resolvemos não intervir em suas respostas com a finalidade de explicar melhor o que

compreendemos como esse fenômeno para que os relatos permanecessem mais fiéis às

165

suas vivências, não sendo modificados pela sugestão de nossa compreensão acerca do

objeto de estudo.

Na última questão que lhe fizemos, César reafirma a conjunção criativa de todos

os elementos que compõem a tessitura da cena, citando mais um exemplo de como sua

“cara pintada” foi sendo lapidada a partir dos estímulos que emergiam da criação como

um todo

No caso do Ricardo III, sim. Foi tudo criado junto. O exemplo maior que eu

lhe dou é que meu personagem, num determinado instante do espetáculo,

assume a figura do Freddie Mercury e eu uso um bigode característico, que

esse bigode foi pra a Rainha Mãe e foi também para o Clarence, como eu disse

[...] E o Freddie Mercury entra porque achou-se interessante, num determinado

momento do espetáculo, a música Bohemia Rhapsody do Queen, que também

é inglês, então, nesse caso, a música que pauta o Freddie Mercury, que pauta o

meu bigode, que pauta o boneco do Clarence, por exemplo. Então é pra mostrar

como no Ricardo III essas coisas são imbricadas, são relacionadas. [...] pra

ser bem suscinto e objetivo a maquiagem – como a música, como a cenografia,

como o texto – pra mim, é um elemento narrativo. É um elemento que tá lá na

composição da narrativa, ou seja, na contação daquela determinada história.

Investigando a singularidade poética de cada actante, de cada processo e de cada

instante em que se coloca em situação de criação, questionamos o entrevistado acerca de

sua crença na possibilidade de que o espetáculo tivesse outro entendimento, outra

aceitação, desde que a dramaturgia da “cara pintada” – portanto a construção poética

realizada por César nesse processo, com esse elenco, esse diretor, nesse momento de suas

vidas – fosse outra (construção de outro actante, outro momento etc.), ao que nos

responde:

Sim, claro que eu acho que era possível. Quantos “Ricardos terceiros” não já

foram feitos por visões distintas? Eu sou uma pessoa que acredita muito na

sobrescrita. [...] Então eu tenho certeza que se o texto fosse Ricardo III, o

diretor fosse Gabriel [Villela], mas um outro ator fizesse os meus personagens

[...] principalmente se participasse desde o seu processo de construção, que

seria um pouco diferente.

O argumento utilizado por César é muito claro. Cada elemento que fosse

modificado no jogo poderia alterar parcialmente, ou, como cremos, totalmente seus

resultados. Cada elemento que o atravessou durante essa construção o guiou para a

construção poética de seus personagens. Cada elemento que fosse modificado nas suas

vivências durante essa construção traria novos resultados, ainda que similares, que

também proporcionariam para o público um encontro diferente. Um encontro com uma

“cara pintada” por outras “cores”.

166

CONCLUSÃO

A importância que a arte do ator apresenta para o conjunto da produção de

conhecimentos acerca da representação teatral produziu, como efeito colateral,

um direcionamento da produção teórico metodológica em ensino de teatro

voltada predominantemente para aspectos ligados ao trabalho do ator. O que

resultou numa notável escassez de produções que também dialoguem com

outros aspectos da representação teatral como, por exemplo, o ensino da

direção/encenação, da cenografia, da iluminação, da sonoplastia, do figurino,

da dramaturgia, da maquiagem, entre outros. (ARAÚJO, 2005, p. 61).

Não há como não partir dessa premissa que o professor Sávio Araújo nos

apresenta como uma das chaves mais relevantes dos estudos teatrais do século XXI: “[...]

produções [acadêmicas] que também dialoguem com outros aspectos da

representação teatral” – eis o ovo da serpente. Estudar a maquiagem em nova chave é

o principal resultado dessa pesquisa.

Assim, à guisa de conclusão, se faz necessário dizer, desde o princípio, o quanto

foi importante reformular a estrutura da pesquisa a partir da revisão crítica que tivemos

na banca de qualificação deste mestrado. Só fomos capazes de perceber a relevância da

presente pesquisa – como um estudo teatral e, mais que isso, como a abertura de um

campo de possibilidades de investigações em torno de se “pintar a cara” como um ato

corriqueiro e, em dimensão diametralmente oposta, civilizatório – quando fomos levados

a nos confrontar, a mergulhar no ofício e no esforço mais contundente daqueles que

perscrutam, questionam, investigam, se afirmam como parte da construção de um saber.

Com isso, não estamos aqui nos aferindo nenhuma condição de superioridade ou

de vaidade; aqui reconhecemos com humildade a dimensão paradigmática que se dá na

pesquisa acadêmica e, sobretudo, em sua condição coletiva, por isso mesmo democrática,

necessária, didática, eficaz, ética.

167

Como afirmamos anteriormente, o presente trabalho, durante muito tempo,

buscava a compreensão dos processos criativos de actantes que usam a maquiagem para

a “construção de um rosto” para sua personagem. A mudança a que nos propusemos e

realizamos nessa investigação é um grande ganho desta pesquisa, pois ampliamos o

recorte da hipótese original de que esta seria uma das manifestações da poética de atuação,

para o reconhecimento da maquiagem (cara pintada) como construção de narrativas no

território da cena, em diversos “lugares” de saber: desde o mito, à tradição antropológica,

o cotidiano, a performance, o teatro.

A cisão na base epistemológica – que nos fez compreender a necessidade do

distanciamento da pesquisa e a partir da qual passamos a considerar o “erro” como um

importante aliado no processo de aprendizagem – nos possibilitou ouvir “vozes de outros

cantos” 53, reconhecendo e nos aproximando dos estudos filosóficos, linguísticos,

psicológicos e culturais, que foram importantes para as grandes revoluções ocorridas no

Teatro desde o século XX até a atualidade e, sobretudo, para construção epistemológica

desse campo. Ou seja, distanciar (ou dar um passo atrás) nos permitiu uma aproximação

mais efetiva com o Objeto de estudo e seu Recorte, uma vez que cada passo dado na

direção da reaproximação com eles partiu da detalhada problematização realizada acerca

do que viria a tornar-se o escopo desta pesquisa.

Um dos pontos cruciais para uma melhor delimitação do Objeto de nossa pesquisa

foi revisitar o trabalho que vinha sendo desenvolvido por outros pesquisadores da área,

nos últimos dez anos, a fim de compreender seus pontos de convergência e divergência

e, desta forma, ter uma visão mais ampliada do Corpus da pesquisa. Esse processo nos

permitiu a observação do fenômeno de “pintar a cara” como parte constitutiva dos estudos

acerca da caracterização, ainda que este afluísse apenas como um subtexto presente nas

entrelinhas da semiótica discursiva de cada pesquisa.

O estudo aqui realizado é fruto da convergência de diversas questões e

problemáticas que surgiram em todo o percurso formativo da pesquisadora – desde a

graduação inicial – que acreditamos que não se concluem aqui, mas ao contrário,

permitem que o caminho continue a ser trilhado dentro da perspectiva da construção de

novos saberes a serem erigidos em novos desdobramentos do trabalho como pesquisadora

das ciências humanas e, sobretudo, da maquiagem teatral.

53 Alsthom-Bull-Belfort apud RYNGAERT, 1998, p. 49 (conforme referido anteriormente).

168

Quiçá, o ponto mais relevante construído nesta investigação tenha sido o de

reconhecer o valor da “cara pintada” para a construção teatral, destacando seu potencial

dramatúrgico e considerando sua importante contribuição para as dramaturgias do

espetáculo, uma vez que não atribuímos a ela apenas o caráter material. Descobrimos que

o próprio ato de “pintar a cara” tem significativo poder para a instauração da presença

cênica.

Portanto, “pintar a cara”, além de fazer parte do conjunto de elementos que

constituem os aspectos plásticos da cena – seja com elementos cosméticos ou apenas

como ato simbólico de colocar-se em cena com um rosto “artificial” –, produz-se como

uma dramaturgia absolutamente fundamental para a condução dos significados

organizados na teatralidade, isto é, produz-se como dispositivo e fenômeno teatral.

Por outro lado, descobrimos que o fenômeno da “cara pintada” – ou de pintar a

cara como um fenômeno primordialmente humano –, também pode e deve ser observado

no cotidiano. Há no secular gesto de “pintar a cara” aspectos relevantes da condição

civilizatória humana, para além da tradicional herança espetacular. O comportamento

humano pode mesmo ser mapeado, em sua condição significante, a partir da presença ou

ausência do referido gesto da “cara pintada”, conforme organizamos em uma cosmogonia

que busca ser uma semântica mínima do Gênesis, da mitologia, da narratividade e dos

principais gestos da sociabilidade humana.

Em nossa proposta de cosmogonia, elencamos categorias em que grupos

socioculturais que pintam a cara foram reconhecidos e os exemplificamos através de

imagens colhidas do universo imagético da rede internacional de computadores, com o

objetivo de aproximar o leitor, tanto quanto possível, da sensibilidade presente nas figuras

pintadas nas imagens. A cosmogonia da “cara pintada” visa, assim, nortear o fluxo de

produção de sentido que emerge na sociabilidade do fenômeno do uso da pintura sobre o

rosto (transfiguração a partir do aplique de elementos artificiais sobre a pele).

Tal proposição cosmogônica divide-se nas seguintes categorias: 1) A dimensão

tribal: cujos sujeitos que “pintam a cara” o fazem a partir do desejo de integração e

identificação de si com o grupo social no qual estão inseridos; 2) O lúdico essencial: que

é ponto da ruptura do sujeito com seu grupo tribal, ou seja, os sujeitos absortos no desejo

de destaque, na busca de dada transcendência, pintam a cara; 3) beleza como política

civilizatória: em que ao desejo de pertencimento de grupo é agregado um valor de fetiche

como um valor de destaque, não mais do sujeito sobre o grupo social, e sim a partir de

169

subjetividades; 4) A subjetivação do desejo de ser: parte da lógica do embelezamento

como atitude de destaque de sujeitos, mas, subverte o ideal de beleza instituído como

patrimônio ou fetiche, e utiliza a aparência como lugar de manifestação do desejo de ser

da subjetividade e; 5) A Dramaturgia da Cara Pintada, que reúne todas as facetas acima

descritas, utilizando-se da imagem que, através do fenômeno da teatralidade, se

estabelece como linguagem no encontro com o observador.

O fenômeno dramatúrgico da “cara pintada” se instaura através da presença, ou

seja, da leitura feita pelo observador através de sua percepção. Nessa leitura o sentido

semântico se estabelece, atrelando à figura uma infinidade de significados que variam de

acordo com o observador e suas subjetivações própria condição de humano.

Consideramos portanto que a dramaturgia da “cara pintada” acontece no processo

poético do actante, uma vez que este, ao mesmo tempo que cria e vivencia a personagem,

também a percebe (através de sua pele, imagem e imaginação) e, no encontro deste com

o espectador, em que ele é observado e faz parte do processo de produção de sentido e

leitura que este irá permear.

Ao entrevistarmos os actantes para termos um vislumbre de suas experiências e

percepções acerca da dramaturgia da “cara pintada”, pudemos perceber que, quando

falamos em “cara pintada” ou em “maquiagem” – mesmo no âmbito das artes cênicas e

com actantes que já acumulam vários anos de prática e, portanto, já participaram de uma

vasta gama de processos a partir de diferentes matrizes – a visão que eles tem em relação

a esse fenômeno o restringe à dimensão plástica (e, muitas vezes até cosmética) da

composição da personagem, ao contrário da leitura que temos feito nesse transcurso. A

“cara pintada” que enxergamos, está para além da materialidade da composição da

personagem, uma vez que essa se estabelece no campo da fenomenologia, ou seja, na

percepção e na subjetividade da leitura entre o que o actante criou e o que será lido.

Dessa forma, a potencialidade narrativa da cara pintada não se limita a passar

informações codificadas a partir de símbolos desenhados no rosto dos actantes, ela vai

além, agregando uma especificidade de informações que reside na intertextualidade do

fenômeno dramatúrgico, informações que apenas na presença do fenômeno transitarão

entre espectador e cena, como uma dramaturgia.

170

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176

ANEXOS

177

ANEXO I

“TRAVESSIAS”

Entrevista de Híkel Brawn (Hórus)

Actante: Híkel Brauwn

Persona: Hórus

Performance: Travessia

Ficha Técnica:

Travessia é uma performance que trata da percepção humana e domínio do corpo e movimento.

Trabalha com a atitude presente do performer e o olhar concentrado da plateia. Explora a ideia da

superação de limites, impossibilidade e de seguir, mesmo que o caminho pareça muito arriscado.

O ato em questão consiste em caminhar com os pés descalços e com a visão completamente

bloqueada, em um caminho com vidros quebrados. Na segunda parte, sem a venda nos olhos,

caminhar sobre estes vidros.

Questões

1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia

artística sua.

Meu trabalho em mágica, ao longo de dez anos, tem influência do estilo de mágica de palco e rua,

uma mescla. Há também elementos da mágica de mentalismo, da magia clássica de palco

(manipulação) e do escapismo. Minha poética atual mescla elementos da performance (tanto na

maneira e atuar quanto de compor a ação), trabalho com work in process, estado de performance,

pesquisa de material.

2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Travessia?

Me coloco na situação de performance, em ação, me concentro no que realizo no momento.

3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?

Não há um personagem, mas uma atitude, então a atuação sofre alguns desdobramentos

dependendo do nível de interação da plateia e da organização do ambiente da ação.

4) Como foi o processo de composição dessa personagem?

Meu treinamento-processo parte de exercícios técnicos, pesquisa referencial (por vídeos, livros,

ou assistindo ao vivo outros artistas) e experimentação com público.

5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na

realização dessa personagem?

No ato em questão eu utilizo um figurino mais neutro, que não desloque o olhar do público para

o que estou realizando. Trabalho com materiais reais, ou seja, sem preparação especial (vidros

de garrafas, tecido de algodão, moedas, fita adesiva)

178

6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem

material do personagem em que fase da montagem teatral?

A imagem é um dos primeiros elementos que dou importância, sua construção vem ganhando

modificações no decorrer do processo.

7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da personagem?

Normalmente utilizo poucos recursos de maquiagem, uso mais para reforçar um olhar, uma

presença, uma atitude.

8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar

ou não pintar a cara para entrar e cena?

No ato em questão necessito vendar meus olhos, isso modifica a imagem que o público tem do

que estou realizando, aparentando maior dificuldade, é extremamente necessário usar os

elementos que uso para vendar o rosto, na quantidade e exagero do que uso também.

9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto com

os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,

sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?

Sim, mas foi criada pensando na ideia de uma maneira de bloquear completamente a visão, de

modo que qualquer outra pessoa no meu lugar perderia total referência de espacialidade se cobrir

o rosto da mesma maneira.

10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?

Confortável e desconfortável. Mas me passa a sensação de completude da proposta.

11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na aceitação

da sua personagem pela plateia?

Alguém cego. Um eremita. Alguém em situação de risco.

12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o

espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?

Sim. Já imaginei realizar somente a caminhada sobre os vidros, sem uso de venda, mas com o

corpo todo pintado, uma imagem próxima a do brâmane indiano, do faquir. Ainda pretendo

experimentar com o público.

179

ANEXO II

“SAUDADES Z(É)”

Entrevista de Tião Silva (Sebastião)

Actante: Tião Silva

Personagem: Mateus de Zé de Moura

Espetáculo: Saudades Z (é)

Ficha Técnica:

Direção: Tião Silva

Texto: Tião Silva

Elencos:

1ª fase – laboratórios de construção: Makarios Maia, Thulho Cezar;

2ª fase – encenação: Adriel Bezerra, César Ferrario, Igor Barboà;

3ª fase – marujas do Zé: tentativas de um caminho solo.

Cenografia/Figurino: Jane Gregório

Iluminação: Hilca Honorato

Maquiagem: Tião Silva

Música: Adriel Bezerra, César Ferrario e Igor Barboà

Questões

1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia

artística sua.

Tenho dito que sou um ator-brincante,

Essa minha fala inicial marca o registro das minhas descobertas no mundo do fazer teatral –

brinquei nos circos tradicionais que passaram pelo interior do Estado, mais precisamente na

comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN. Ator de rua, construtor em minha

comunidade de espaços não formais do fazer artístico.

Quando adentro a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2011), conheço o Grupo de

Capoeira da professora Lara Machado, início o meu processo de trabalho de ator, mas é no

Arkhétypos Grupo de Teatro, que dou o ponta pé na laboração biográfica do Tião ator. No

Arkhétypos; faço parte de dois espetáculos, quais sejam: “Revoada” – com participação efetiva

(desde do processo dos laboratórios de criação até as apresentações em si) e do “Éter” – com

participação no processo de construção, mas não fiz as apresentações.

Depois de uma temporada com o Arkhétypos, seguir com a apresentação do meu Espetáculo

(“Saudades Z (é))”, resultado da prática do meu Mestrado em Artes Cênicas pela UFRN. No

ano de 2018 fiz uma breve participação na Cia. Pérola de Teatro com o espetáculo “Pérola”.

Atualmente, sigo na tentativa de marujar com o “Saudades Z (é)” mundo afora.

2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Saudades Z(é)?

180

Realizando uma análise qualitativa da minha participação no referido espetáculo, percebo que o

“Saudades Z (é)” contribui para a minha formação integral; depois de apresentar o “Zé”; tenho

realizado uma anamnese – e essa compreendida não só como o fato de recordar os fatos de

minha vida (já que o espetáculo atravessa as minhas memórias), mas de pontos que colocam em

xeque a minha existência, é uma análise na tentativa do autoconhecimento, de “verdades”

intrínsecas.

Por outro lado, desprendo-me do romantismo do Tião atravessado; vejo que participar do “Zé” é

um desafio além do trabalho de ator, pois exige pensar o todo – desde a sua concepção,

produção, perpassando a atuação, a análise e a autogestão, ou seja, a minha participação no

“Saudades Z (é) ” é parte de um todo, para que ele se fazer presente!

3) Como você descreveria o personagem Mateus de Zé de Moura que você compôs e

realizou nesse espetáculo?

Carinhosamente, tenho chamado ele de “Zé”,

“Zé” é uma figura intrigante, por ora ele é um ser engraçado, bobo, cortês e maestro da boa

companhia, por vezes ele usa de sua seriedade, esperteza e não faz questão de fazer as honras da

casa.

“Zé” é uma figura alta, magra, retilínea e negra.

“Zé” é um transeunte, malandro, brincante, bebum, criança, homem, mulher, bicho, animalesco,

empregado (de si, do outro – do capitão, da mulher ou dele mesmo).

“Zé” representa o terceiro lado da moeda, é a antiestrutura da sociedade; ele está à margem da

margem entre as probabilidades exatas de /cara ou coroa/

“Zé” sou eu, é você, é Mateus, é Catirina, é o Boi, é o festejo, é o fogo que faz a roda do terreiro

girar!

“Zé” é tanto Zés do Brasil e do mundo afora. Ele é um presente em minha vida artística. Ele é o

avesso do avesso do meu corpo – somos um – vivemos esse trânsito!

4) Como foi o processo de composição dessa personagem?

Criei o “Zé” nas entranhas das memórias da minha infância. Acredito ser necessário pontuar a

partida dessa relação; desde de muito cedo (ainda quando criança), minha mãe me contava

histórias de Reis, mas não são desses Reis que moram em castelos, que tem uma filha princesa e

que estão à espera de um príncipe. Ela me contava histórias de Bois de Reis – precisamente do

Boi de Mestre Jovelino e do brincante Zé de Moura, a partir de narrativas de minha mãe fui me

apaixonando pela brincadeira e comecei a assistir as rodas de Boi.

O tempo passou e o menino Tião cresceu e chegou a uma cidade grande, chamada

Universidade. Nela, ele conheceu o professor Makarios Maia e juntos foram construindo as

fitas, as fibras e a couraça desse Boi, ora homem ora bicho!

Os laboratórios de composição dessa persona se deram inicialmente no componente curricular

de Estudos Culturais do Teatro – momento ímpar de minha formação enquanto professor de

Teatro – passou pela sala 07 (Sala que pertencia ao GPT) e ganhou as ruas da nossa cidade

Natal.

A composição atravessa o tempo de minha formação cidadã, tenho aprendido muito com essa

personagem – que mata e morre – ele transita esses espaços de fricção.

5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na

realização dessa personagem?

Quando falamos nos elementos constituintes da encenação, devemos pensar primeiro o quão

estes são fundamentais para a construção de uma narrativa. Em “Saudades Z(é)”, quando

falamos em figurino estamos falando da ‘roupagem’ que reveste a alma da brincadeira – ele

detecta é teatro, foge daquilo que é visto/vestido no cotidiano, extrapola o cunho social e ganha

181

a cena, nesse sentido, o figurino em “Zé” faz parte da laboração da arquitetura da cena, ele

ocupa o lugar de representação, é teatro, é se (trans)formar a partir de uma indumentária e vestir

a alma da brincadeira. São elementos que compõe esse figurino: 1. A capa do Boi, 2. O paletó,

3. A camisa e calça customizada e 4. Os sapatos.

No que concerne aos adereços, temos o ‘macaca’ – instrumento que podemos descrevê-lo como

um bastão de madeira com uma corda amarrada em sua ponta em umas extremidades segurando

uma bola de meia – este instrumento tem representa o chicote do boiadeiro, que tange o boi no

curral, na capoeira.

Ainda sobre este tópico, teríamos o ‘matulão’ – instrumento confeccionado por um pedaço de

colchão e com diversos chocalhos pendurados – este adereço representa a chegança das figuras

animalescas na brincadeira (como o próprio Boi), além de simbolicamente representar o gado, o

mundo sertanejo, o ciclo do gado marcado por ferro; demarcando este animal e pelos sinos que

anunciavam por onde andavam os gados que fugiam dos cercados.

E por último, o ‘chapéu de couro’, que o próprio nome já diz muito sobre este elemento, couro,

couraça, caça. Nesse aspecto, os adereços em “Zé” compõem a estrutura de paramentos (vistos

não apenas como um adorno), mas como signos que comunicam e se reestruturam dentro da

linguagem da cena do referido espetáculo.

Ao que se refere ao cabelo, este não tamanha relevância, não atrapalha e não contribui de forma

tão significativa para a composição da personagem; claro que me preocupo em não cortar o

cabelo com stylos mais modernos (como moicano, degradê, com listinhas e outros; por uma

questão de estética do homem sertanejo – que geralmente quando vai a barbearia, pedem para

cortar no estilo padrão – baixinho; por uma questão de economia, pois o cabelo vai demorar a

crescer e/ou dividido; da esquerda para direita ou vice-versa).

Sobre o último ponto aqui expressado, quando penso na maquiagem do Zé, aqui tenho um dos

principais elementos da composição desta personagem.

Boi, boi, boi

Boi da cara preta 54

Pega esta criança que tem medo de careta.

Não, não, não

Não o coitadinho

Ele está chorando, porque ele é bonitinho!

O boi da cara preta sempre foi muito intrigante aos meus ouvidos. O boi da cara preta é aquele

que pega a criança, é aquele que as crianças têm medo; é o homem pintado com a cara preta

com a lamparina na mão, é o diabo que vem pegar as criancinhas, é o feiticeiro, macumbeiro

que roda e que faz a capoeira levantar, é o homem da cara preta.

Não sei se cabem em sua investigação essas questões – homens de caras pintadas – quando via

o brincante que anunciava o início da brincadeira com a cara preta (ao mesmo tempo tinha medo

por ser o “Boi da cara preta que pega as crianças que tem medo de careta”, apaixonava-me

pela espetacularidade, pela expressividade daqueles traços do rosto dos brincantes mascarados –

mascarados pela tinta do carvão).

Custa-me caro falar de uma experiência que pedi ao Mestre Jovelino (Mestre do Boi de Reis da

cidade de Vera Cruz/RN) para assistir a um de seus rituais de passagem, de transição dos

homens comuns da comunidade em brincantes (galantes de fitas, mestre, Mateus e Birico – os

dois últimos pintados com a cara preta).

54 Disponível em: https://www.letras.mus.br/cantigas-populares/983984/ (Acesso em 16/02/19).

182

A relevância aqui da maquiagem parte aos estudos sobre o mascaramento teatral, em uma

tentativa de manter três pontos que considero relevante, quais sejam: a tradição teatral popular, a

expressividade através do rosto/máscara/pele e do rito de passagem.

Sobre o primeiro ponto; quando o Mestre Jovelino permitiu que eu adentrasse o terreiro de sua

casa para ver os brincantes “se arrumar”, vi na primeira observação sem intenção alguma

homens comuns embebecidos com cana, brincando um com outro, abraçando, “tirando onda”,

sarro do dia a dia, exauridos de um dia de trabalho no roçado. Com o passar do tempo;

começaram a se vestir do brinquedo (os galantes, muito bem vestidos; com fitas multicolores. O

Mestre como senhor do brinquedo, elegante dos pés a cabeça, uma capa de fitas, pequenos

espelhos redondos pregados em sua camisa tom de pastel, seus espelhos reluziam aos meus

olhos e ainda olhava para a sua calça azul e sapatos pretos. Os mascarados /Mateus e Birico/

estavam à margem, no final do terreiro, gargalhavam ascendendo o fogo da lamparina, raspando

o carvão e começavam o ritual, pintando a cara.

Ao realizar o ritual, disserto sobre o segundo ponto, a expressividade dos rosto pintado, olhava e

tive a certeza: não são as mesmas pessoas – eles se transfiguravam, acessavam estados corporais

que os olhos nunca tinham visto e dali rompiam o muro da casa do Mestre Jovelino e ganhavam

as casas dos vizinhos, transitavam entre um lugar e o outros – ao escrever, recrio em meu corpo,

memórias dos meus amigos gritando: “lá vem o bicho da cara preta”, lá vem o Boi” – eu estava

extasiado, parado por fora e pulsando por dentro perante tudo que vi.

Tudo isso, contribui de forma muito significativa e relevante para a construção da minha

personagem e faz parte do terceiro ponto acima exposto (o rito de passagem), quando eu pinto a

minha cara com carvão, eu tenho certeza que não sou mais eu, transformo-me e me coloco em

estado de poesia, de trânsito, transgressão e vivo a brincadeira de ser outros em meu corpo.

Diante o que do que foi escrito, referendo a importância da maquiagem, de pintar a cara como

um elemento fundamental para a composição do “Zé”.

6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem

material do personagem em que fase da montagem teatral?

Entendendo que a composição ela é processual, fui construindo aos poucos a visualidade do

personagem, mas a fase em que este material ficou laborado se deu quando o processo criativo

já tinha finalizado, já tinha passado por uma limpeza das cenas.

Nesse ponto, acho importante frisar que a pessoa que construiu o figurino e adereços não

acompanhou o processo de montagem e isso dificultou o tempo de algumas cenas, como por

exemplo, o jogo multiuso da capa, que ora é a pele do Boi ora é o vestido de Catirina (a mulher

de Mateus dentro da brincadeira – aquela de deseja comer a língua do Boi).

A partir do exposto, apresento a minha preocupação com a homogeneidade dos elementos

cênicos e dos técnicos que compõem a parte visual da encenação – encenar é um ato coletivo, é

uma costura que precisa de bons alfaiates – tanto na técnica quanto na organicidade daquilo que

está sendo laborado.

7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da

personagem?

A maquiagem é parte integrante da composição; no caso específico da construção do “Zé” já

existe uma maquiagem que faz parte da brincadeira de Boi de Reis (que é a maquiagem feita a

partir do pó do carvão); dessa forma, decidir manter a tradição em respeito aos “velhos” e bons

brincantes de Reis.

8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar

ou não pintar a cara para entrar e cena?

Acredito que já tenha respondido esta questão anteriormente; mas gostaria de reforçar a

importância, dizer que preciso literalmente pintar a cara para entrar em cena. A maquiagem da

cara pintada é parte integrante da preparação que antecede a cena – sem ela, eu não sou o

183

Mateus de Zé de Moura, preciso pintar a cara para transmutar-se em brinquedo, para cair no

estado de brincadeira. Pintar a cara faz parte do meu ritual de ator-brincante.

9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto

com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,

sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?

Compreendo a dimensão da questão; mas como já foi dito, decidi seguir o que a tradição dos

brincantes de Boi geralmente fazem – que é pintar a cara com o pó do carvão (pelo menos, os

mais antigos na brincadeira, visto que na contemporaneidade alguns brincantes tem usado tinta

guache para a maquiagem, de antemão, percebo que não é o mesmo ritual, não traz a

construção/expressividade/rosto/pele/transição de um ser para o outro).

Sendo mais direto na questão; não, não foi construído em conjunto, visto que já tinha decidido

manter o ritual de passagem que aprendi com os meus ancestres.

10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?

Pensando a partir da palavra “usar”, vislumbro que o uso da maquiagem em “Saudades Z(é)” é

indispensável para a construção da personagem. Ela é o mascaramento no sentido de permitir ao

outro ser outros, certa vez conversando com um dos filhos do brincante Zé de Moura, ele me

disse assim: “Sebastião, quando eu pinto a cara, não sou mais eu. Aprendi isso com papai. No

dia que tinha brincadeira de Reis no terreiro, papai começava a se preparar cedo. Lembro

como se fosse hoje; ele tinha o seu ritual, as suas ações sabe?!. Ele pegava o seu espelho –

aqueles laranjas, sabe?! Ia lá pra trás do terreiro e pindurava em um prego que estava na

dispensa do fogão de lenha. Papai, se olhava, tirava a barba e me chamava dizendo: “Tota,

coloca as minha coisas num saco, depois prende no bagageiro da bicicleta que daqui a pouco

eu vou sair”. Ele fazia sempre o mesmo ritual para pintar a cara”, ou seja, pintar a cara faz

parte da identidade do brincante, permite a ele o lugar da liberdade, o lugar de se presentificar

perante as outras pessoas, a viver um mundo duplo, uma suspensão do tempo real; nesse

contexto, a maquiagem é um elemento integrador e transformador do sujeito que brinca e que

faz a cena.

11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na

aceitação da sua personagem pela plateia?

Acredito que o primeiro entendimento é fazer com que o ator possa mostrar para o público que

ali não é ele. O ator anuncia a partir da cara pintada e de outros elementos cênicos que a

liberdade poética resguarda, abriga e dá sentido ao feitio artístico da construção da personagem

que se apresenta perante a plateia – isso não quer dizer que um ator sem maquiagem não possa

dá esse sentido representativo/construtivo do fazer teatral; mas, ao vermos um ator sem este

elemento, muito às vezes a convicção, as convenções de algumas estéticas teatrais necessitam

desse elemento, como por exemplo, na brincadeira do Boi de Reis, o Mateus – personagem

estruturante do brinquedo tem marca registrada como aquele que pinta a cara de preto! É uma

convenção! Faz parte da construção desse personagem.

12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o

espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?

Como um homem da tradição, arraigado, ‘crente’, convicto e brincante desse brinquedo popular,

acredito que não teria e não faria sentido outra maquiagem para este personagem. O “Zé” é um

homem, um Boi da cara preta, da cara pintada!

184

ANEXO III

“JACY”

Entrevista de Henrique Fontes

Actante: Henrique Fontes

Personagem: Não tem

Espetáculo: Jacy

Ficha Técnica: Textos: Pablo Capistrano e Iracema Macedo

Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano

Direção: Henrique Fontes

Assistente de direção: Lenilton Teixeira

Consultoria: Marcio Abreu

Atores: Quitéria Kelly e Henrique Fontes

Videomaker: Pedro Fiúza

Designer de Luz: Ronaldo Costa

Operação de som e luz: Pedro Fiuza

Técnico de som e audiovisual / Assistente de Palco: Robson Medeiros

Direção Artística e Cenografia: Mathieu Duvignaud

Trilha sonora original: Luiz Gadelha e Simona Talma

Produção executiva: Mariana Hardi

Assistente de Produção e montagem: Mateus Cardoso

Produção Artística: Daniel Torres

Questões

1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia

artística sua.

Bom, eu acho que posso dizer que eu sou ator, dramaturgo, encenador e produtor cultural, né.

Mais pra gestor cultural por conta da Casa da Ribeira, né – a criação do espaço –, do que mesmo

produtor executivo. Em 2019 estou fazendo 30 anos de carreira começada como ator e sou

formado em Comunicação Social, com mestrado em Ciências Sociais, mas desde antes da

universidade eu já trabalhava com Teatro.

Trabalhei nos grupos Ahazragiva, Beira, Atores à Deriva e Carmim (em todos estes participei da

fundação). Também trabalhei com os Clowns de Shakespeare por 8 anos.

2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Jacy?

Em Jacy, o ponto de partida da peça foi um achado – que fui eu que achei –, uma frasqueira no

lixo junto com um desejo que eu tinha e Quitéria também de a gente trabalhar juntos em cena,

atuando. E a gente começou a pesquisa até antes do encontro da frasqueira, querendo falar sobre

o nosso envelhecimento. Enfim, e aí as coisas casaram, eu passei... eu queria então atuar e me

propus a fazer a dramaturgia, e iria ter um diretor de fora, mas acabou que no processo a gente

não conseguiu esse diretor e decidimos a gente mesmo fazer e, eu acabei dirigindo. A peça, ela

foi marcante, eu acho – nesse processo, porque foi quando a gente encontrou o teatro

Documentário, que foi fruto de uma ida... duas idas minhas ao Santiago a Mil, que é um festival

que tem em Santiago, no Chile, em que eu me deparei com as peças da Lola Arias, que é uma

argentina que trabalha com Teatro Documentário, então isso foi definidor, assim, no processo. E

acho que o Jacy é um divisor de águas pro o Carmim, que é onde a gente entra no Teatro

Documentário e, a gente entra numa pesquisa mais aprofundada de Dramaturgia.

185

3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?

Na verdade, o personagem sou eu. Em Jacy – a gente se trata, inclusive pelos próprios nomes –

o que nós temos é uma diferença de narrativas. Tem uma narrativa que ela é mais depoimental,

mais próxima. O mais próximo da gente mesmo – e a grande dificuldade tá aí, né, em ser você

de forma artificial no palco – mas ela tem dispositivos que a gente cria na própria forma de falar

que a gente entendeu que dão esse tom mais depoimental um pouco mais próximo da plateia,

como uma conversa mesmo. E a gente tem tipos, que não chegam a ser personagens, mas são a

suposta representação de luiz, o irmão de Jacy; um velho que eu retrato como “um processo

inicial”, que aí sim a gente trabalhava com mimese, trabalhava com a coisa da observação e da

composição, né, e aí esse personagem que não tem nome, mas que é velho, ele tem ali uma

construção sim de corpo, de voz, enfim, de estado. Mas acho que o que a gente mais preza, né, é

a fluidez da narrativa... das narrativas diferentes.

4) Como foi o processo de composição dessa personagem?

Acho que respondi na anterior.

5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na

realização dessa personagem?

Olha, o formato de teatro que a gente trabalha é um teatro onde o ator ele não busca a mimese

da personagem ou a criação de um corpo que é externo ou forjado para a cena. O corpo do ator

o corpo do suposto personagem, né. Obviamente quando a gente trabalha com auto ficção ou

com coisas mais numa linha do ficcional eu acredito – pra Quitéria talvez seja diferente – pra

mim é, a maquiagem ela não tem nenhuma importância; o figurino ele tem importância no

sentido de ser algo que dê forma e sentido à criação anterior – então não é ele que influencia, ele

vem como um complemento pra isso – tanto que muitas vezes a gente nega figurino, né,

dizendo assim “ah não, isso não dá certo, isso não funcional, tal”, porque a gente já tá muito

fortemente ligado , ou se apropriou de estar em cena, né. Obviamente que quando o figurino

chega ele é utilizado, potencializado para a cena, mas eu não diria que ele tem um papel

preponderante, fundamental não. O cenário já é diferente. O cenário eu já acho que ele

influencia muito, ele cria... enfim, ele tá nesse lugar do espaço, né, a espacialidade que a gente

cria gera o cenário e quando esse cenário chega esse cenário também modifica a espacialidade,

então eu acho mais definidor, assim como a luz.

6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem

material do personagem em que fase da montagem teatral?

Nos ensaios gerais. Já no último terço da montagem.

7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da

personagem?

Não utilizo.

8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar

ou não pintar a cara para entrar e cena?

Não.

9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto

com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,

sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?

- Não respondeu.

10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?

- Não respondeu.

186

11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na

aceitação da sua personagem pela plateia?

- Não respondeu.

12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o

espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?

- Não respondeu.

187

ANEXO IV

“SUA INCELENÇA, RICARDO III”

Entrevista de César Ferrario

Actante: César Ferrario

Personagens: Clerence; Tyrrel Jararaca; Duquesa de York (Rainha Mãe)

Espetáculo: Sua Incelença, Ricardo III

Ficha Técnica:

Texto: William Shakespeare

Adaptação dramatúrgica: Fernando Yamamoto

Direção: Gabriel Villela

Elenco:

Camille Carvalho, Dudu Galvão, César Ferrario, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz,

Renata Kaiser e Titina Medeiros

Assistente de direção: Ivan Andrade e Fernando Yamamoto

Cenografia: Gabriel Villela

Cenografia e Figurino: Ronaldo Costa

Iluminação: Ronaldo Costa

Música instrumental original: Marco França

Diretor assistente: Leandro Orellano

Coordenação de produção: Fernando Yamamoto

Assistente de produção: Renata Kaiser

Produção executiva: Rafael Telles

Questões

1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia

artística sua.

Essa minha forma de responder – brincalhona, poética – diz da condição necessária para que eu

possa lhe falar com mais liberdade. Poderia lhe falar sério, sem preâmbulos, mas eu tenho

certeza que minha desenvoltura dentro do jogo, da brincadeira, não seria a mesma, então vou

começar por isso que não responde a sua pergunta ou as suas perguntas, mas inaugura este

canal, essa conversa. Existe o professor Eduardo Afonso (Posso lhe mandar esse texto depois)

que os brinda com mais uma pedra preciosa de nosso garimpo vernacular, ele diz que há dois

tipos de palavras: As proparoxítonas (Stéphane) e o resto (Stephâne). E ele ainda diz que sobre

qualquer ângulo as proparoxítonas têm mais crédito. É inequívoca a diferença entre o arruaceiro

e o vândalo; o inclinado e o íngreme; o irregular e o áspero; o grosso e o ríspido; o brejo e o

pântano; o quieto e o tímido. Vou mandar esse texto pra você depois, viu Stephane? E vou

começar a responder às suas perguntas.

Quando você pra nos referir a nosso próprio trabalho artístico e entregar também uma biografia

artística, eu acho que essa própria pergunta já careceria de uma dissertação. No entanto, me

arriscarei nas injustiças da brevidade, tá bom? Começarei a dizer sobre como eu poderia me

referir ao meu trabalho artístico: e nisso, eu lembro de uma passagem da análise do espetáculo,

de Patrice Pavis, onde ele diz que há várias tribos, legiões, povos africanos, eles tem uma única

palavra pra designar pulso, ritmo, dança, canto, porque pra eles, pra esses africanos, tudo diz (ou

tudo emana) de um mesmo centro pulsante. Eu gosto muito dessa definição unificada, pouco

abrangente e que abraça a todos pra se referir a música, ao pulso, ao ritmo e à dança como tendo

188

uma mesma raiz, um mesmo centro causal. Dito isso, eu lhe digo que me considero – se

referindo ao teatro – como um homem da cena. Eu acho que eu sou um homem da cena, é isso.

Daí as necessidades e as circunstancias acabam me colocando os desdobramentos possíveis: por

vezes sou dramaturgo, por vezes sou ator, por vezes também dirijo, mas eu gosto de acreditar

que todas essas coisas vem de um mesmo centro pulsante, pois no final das contas – sem

desmerecer as competências e as expertises necessárias ao cumprimentos de cada uma dessas

funções citadas – o que eu lhe digo é que eu sou um homem da cena.

Então nesse exercício injusto de resumir tudo, o que eu teria a lhe dizer é que eu caí nesse

espaço cênico por uma casualidade, né. Foi quando eu fazia o segundo grau e o professor de

literatura nos desafiou (desafiou a turma, no caso) à montagem de um espetáculo e, a partir

desse momento, o que eu tenho a lhe dizer é que eu experienciei uma realização de

arrebatamento, muito prontamente entendi o poder e as necessidades das narrativas teatrais, não

só para o mundo, mas para mim, para minha existência. E desde então não larguei mais. Durante

esse mesmo período funda-se o grupo do qual eu fiz parte durante quase toda a minha vida

profissional: Os Clowns de Shakespeare, também filhos desse professor de literatura que nos

desafiou nesse mesmo instante, nesse mesmo momento. É aí que o grupo nasce.

Atravessei a minha jornada artística durante 24, quase 25 anos com Os Clowns de Shakespeare

e no início do ano passado, em uma conversa muito franca, honesta, amigável, vim a concluir –

junto com todos – que não estava mais no coletivo. Os motivos maiores dizem de uma série de

outros trabalhos em todas essas vertentes que eu já havia lhe dito (como ator, como dramaturgo

e como diretor) que começavam a se colocar na minha frente e o entendimento que surgia a hora

de me provar diante de outros desafios. Seria esse o resumo que eu teria a lhe dizer da minha

vida profissional. Daí então, seguir em mar aberto, disposto a construir novas oportunidades ao

final de cada trabalho concluído.

2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Sua Incelença, Ricardo III?

O espetaculo Ricardo III marca o encontro do grupo Clowns de Shakespeare com o encenador

Gabriel Vilela. Gabriel Vilela dispensa comentários, é uma pessoa que faz parte dos anais do

teatro brasileiro, principalmente na sua história mais recente. E Gabriel trouxe pra mim – que

até então colhi toda a minha formação dentro do Clowns –, trouxe pra mim, através dos seus

procedimentos e conduta na direção do espetáculo, ele trouxe pra mim um conjunto de

conhecimentos... diria mais, ele trouxe uma visão de mundo, uma forma de ver a arte que até

então eu não acessava e que pra mim foi absurdamente transformador. Gabriel Vilela é por

essência uma pessoa anárquica, toda construção dele, entenda, parte de uma força causal que é

ao mesmo tempo também muito desorganizadora. Isso se manifesta não só dentro dos processos

que ele rege, como também na própria visão instaurada e no discurso final que o espetáculo

geralmente articula, ou impunha, ou expressa, né. Por mais que ele nos cobra muito – no que diz

respeito a precisão, a métrica, a colocação, ao tempo das atuações; ele também, acredite-me é

muito caótico.

Gabriel mereceria, assim, uma análise extensa e à parte, principalmente no que me diz respeito,

Stephane, porque ele me ensinou muito. Por exemplo, foi durante o processo de montagem do

Ricardo III e das coisas que Gabriel nos dizia, ou mais ainda, as coisas que Gabriel fazia com

sua batuta de maestro na mão, que eu encontrei entendimento, inspiração e eu de pronto escrevi

todo o texto Guerra, Formigas e Palhaço, por exemplo, que nem tem uma relação direta com

Ricardo III, mas não deixa de ser fruto desse encontro.

Porém, pra direcionar e ser mais objetivo a partir das necessidades ou da busca da sua pesquisa,

eu lhe digo que o mais contundente, o mais interessante pra mim e dado o contexto que eu

encontrei em Gabriel diz de uma percepção construída, física da personagem. Ele entende que o

ator está um palmo atrás da personagem e de fora dela, de maneira consciente, ele a articula.

Tudo... todo o processo narrativo, segundo Gabriel Vilela, ou pelo menos da forma como ele

trabalhou com a gente, se estabelece a partir de uma pele, de uma derme, né. A partir do

entendimento dessa derme, dessa pele, dessa máscara, dessa caracterização é que o ator começa

a entender e a manipular a persona cênica, ou personagem, né. Tanto que – lembro-me até hoje

189

– no primeiro dia de trabalho, ele sem saber bem pra onde ia, nem como seria o desenrolar do

processo, ele nos vestiu e nos maquiou todos, e disse: A partir daqui a gente começa a nossa

montagem. E claro, no instante em que as coisas iam caminhando ele ia ressignificando,

mudando figurinos, mudando maquiagem, mas desde o primeiro dia de trabalho, quando

chegamos na sala de ensaio, ele já instaurou essa manifestação concreta, visual, na

caracterização, na configuração, na construção de cada personagem e, a partir dali, aquele

elemento concreto, físico, tratava da síntese de uma mediação entre o ator e o diretor. E lógico

que esse material ia sendo ressignificado, mas ele nunca deixou de existir, desde o primeiro

momento. Isso para mim foi muito significativo, inclusive no meu entendimento do ator, ou do

processo de atuação enquanto filosofia.

3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?

Embora eu acho que já antecipei um pouco dessa resposta da terceira pergunta que você faz na

questão anterior, eu aproveito então pra exemplificar ou verticalizar. Eu tive três personagens no

Ricardo III: O Clarence, que era um dos irmãos mais velhos do Ricardo e, por isso, morto por

ele, por encontrar-se na linha sucessória direta e, por isso, se colocasse como obstáculo à coroa

que Ricardo tanto almejava, né, então eu fazia esse irmão dele, Clarence; fazia também um

matador chamado Tirreon Jararaca. Tirreon no original de Shakespeare e Jararaca talvez já uma

inspiração de Gabriel num cangaceiro; e fazia também a Rainha Mãe de Ricardo. Vou me valer

aqui do caso de Clarence, o irmão dele.

Gabriel me viu um dia brincando com um bonequinho lá, que tinha no Clowns, e pediu uma

boneca dessas de bebê e arrancou a cabeça e botou na minha mão. O Clarence era um boneco

ostentado pela minha mão. Como eu usava um bigode que era usado nos outros personagens ele

pôs um bigode no boneco, caracterizando um duplo, e eu acho que essa é a chave de

compreensão de todo o resto. Eu dava voz a Clarence, enquanto de fora olhava o bonequinho

que eu empunhava com os dois dedos centrais da minha mão – o indicador e seu vizinho – e as

mãozinhas dele que ficava pro polegar, e os dois últimos dedos, inclusive o mindinho. E

enquanto eu operava a voz do personagem, de fora eu promovia, analisava, entendia, via todos

os seus movimentos. Eu acho que essa é uma síntese de como lidar com os personagens na

visão de Gabriel Vilela, mesmo aqueles em que a gente veste por completo o personagem. Eu

acho que essa é uma boa chave de entendimento, pra o que e comecei a falar na questão

anterior, no que diz respeito da capa, da plasticidade do personagem e da consciência do ator em

manipulá-la.

4) Como foi o processo de composição dessa personagem?

Gabriel não deixa de ser também um diretor muito vertical, isso é importante a gente dizer. Ele

tem muitos demônios – e anjos também – dentro dele. Ele é uma pessoa que num processo

criativo – embora ele não tenha dito, eu tenho certeza –, ele tem dificuldade de dormir. Aquilo

povoa ele 24h por dia e por vezes na cena ele, no ensaio, no processo, ele era muito tomado por

esse sentimento criativo que se manifestava com muita violência nele a ponto – e isso ficou

muito claro) de ser difícil, às vezes, de ele gerenciar. Apesar de as vezes ele ter a mão um pouco

violenta, a mim era muito claro, era uma pessoa que mais precisava e carecia de ajuda, no que

diz respeito a cumplicidade de todo o corpus cênico que trabalhava com ele, do que

obrigatoriamente um desejo de prejudicar alguém, muito pelo contrário. Então, Stephane, o que

acontecia: quando ele começava a criar, no início, até entender o processo – talvez nos dois, três

primeiros dias – você inevitavelmente se coloca com certa passividade diante da música que ele

imprime, que é uma música, um bit, um pulso, de frequência alta. Mas ao longo do processo eu

fui entendendo como eu poderia dialogar com o diretor e prontamente fui servindo-lhe também

de elementos que eu acreditava harmonizar com o que ele estava propondo para a linguagem do

espetaculo. Por exemplo, eu tenho um dos personagens que é a duquesa de York, a mãe de

Ricardo – como eu disse na resposta anterior, chama duquesa de York – que eu entendendo a

proposta dele e vendo a metragem do tecido que tinha eu disse “Gabriel, vamos fazer em cima

do banco”. Isso deu à figura um aspecto longilíneo, talvez aquela figura tivesse ali dois metros e

meio de altura, porque dizia o tamanho do meu corpo em cima do tamborete, então a estrutura

190

ficava oculta por um longo vestido que ia do pescoço até o chão. Então a mesma coisa se deu

com Tyrrel Jararaca quando eu propus óculos, quando eu propus um andar, quando eu propus

um prazer no ato de matar, mas tudo diz respeito de uma pronta resposta com os

esclarecimentos que a linguagem ia tendo a partir do processo. Na medida em que ele

explicitava a linguagem, ia deixando claro pra gente, ele hora nenhuma também refutava o

espaço criativo do ator. Contanto, claro que se tivesse dentro de uma harmonia com o todo que

ele propunha.

5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na

realização dessa personagem?

Então, eu acho que nos próprios relatos anteriores isso já fica claro, como no Ricardo III isso

são coisas indissociáveis, né, o figurino, os adereços, o cabelo na composição da personagem.

Para além dos exemplos dados, eu aproveito então para dar mais um: Tyrrel Jararaca (que era o

matador) tinha um colete que era feito a partir da sela de um cavalo que ficava no peitoral e

duas perneias de vaqueiro que vinham até a bacia, e essa estrutura, quando eu acabei de vestir

que eu tentei andar com essa estrutura – que literalmente é uma armadura – isso me limitava

completamente as articulações da espinha e dos joelhos. Isso me dava um andar muito

especifico que prontamente eu aproveitei para o personagem. Então acho que essa é literalmente

um exemplo de como a fisicalidade do personagem, ou como a composição do personagem

surge a partir do seu “exoesqueleto” – no caso, a caracterização que ele nos oferecia. E era

impressionante, porque eu não sabia oferecer a fisicalidade do “Tyrrel” se eu não estivesse com

o figurino. Eu só conseguia imprimir o jeito do personagem andar, subir no palco, fazer suas

matanças, subir na carroça, se eu estivesse vestido com o figurino. E esse figurino me oferecesse

os seus limitadores. Só assim o personagem poderia ser observado.

6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem

material do personagem em que fase da montagem teatral?

Então, se dentro de uma relação hipotética – cada processo é um processo e cada processo tem

seus ditames -, mas eu gosto de dividir, ainda que teoricamente o espetáculo em dois estágios: o

primeiro diz do recolhimento, da coleta – aquela que você vai ler o texto, que você vai buscar

imagens, que você vai pra rua atrás de informação, que você vai conversar com pessoas, que

você vai ler, que você vai assistir filmes, então essa diz de uma fase, na minha concepção,

aberta. É uma fase que você não pode se provocar instantes conclusivos. É uma parte que seu

Norte precisa ter liberdade de variações, entende Stephane? – e uma segunda parte em que você

parte para o arremate do processo, ou da construção propriamente dita, entende. Então pra mim

essa fisicalidade, essa materialidade do personagem, essa imagem material, dado o processo que

Gabriel nos apresenta, tomando-o como exemplo, eu acredito que precisa existir desde um

primeiro momento. Eu acho que essa história de você pegar a construção de um personagem

pelo sentimento, pela temperatura interna, por um reviver de experiencias e memoria, eu acho

que isso é em algum aspecto (respeito muitos as escolhas alheias, mas no meu caso é) um pouco

arriscado. A materialidade da personagem pra mim, ainda que num primeiro instante, ou desde

um primeiro instante (entendendo que ela pode ir se transformando ao longo do processo) é

fundamental como um chão, como algo que eu posso ver, me apoiar, relembrar e repetir e

reativar aquela estrutura a cada dia, sem riscos da volatilidade, da fugacidade, né, a que outros

sentimentos mais subjetivos podem nos levar.

7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da

personagem?

Essa pergunta, para mim é um pouco difícil de responder, porque cada trabalho é um trabalho.

Já trabalhei com muitos diretores e é difícil você encontrar uma única resposta pra essa questão.

Eu diria que nem tem como, porque cada trabalho é um trabalho distinto. Já trabalhei com

profissionais como Gabriel, que essa maquiagem é parte fundante do personagem e já trabalhei

com outros diretores que não utilizaram maquiagem alguma, por exemplo.

Mas se você perguntasse “de que maneira você utiliza”, né, porque aí eu vou me valer das

recorrências e das experiências, de como você vê, eu diria que para mim a maquiagem é a

191

máscara. Ela pode ser vista da mesma forma pra mim como a máscara teatral. A Commedia

Dell’arte em seu sentido mais extremado nos aponta esse caminho. Para todas as outras

experiências ou utilizações que eu já passei, se não de forma tão contundente e demarcada como

a Commedia Dell’arte, de formas mais tênue, mas pra mim o princípio é bem próximo.

8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar

ou não pintar a cara para entrar e cena?

Eu acho que se eu for responder de forma generalista eu diria que sim, há diferença, né. A “cara

pintada”, você fala “pintar a cara”, né. Ela já nos induz ou nos remete a uma determinada

estética teatral, embora sejam várias. Agora de forma precisa eu não teria como responder essa

pergunta porque depende. Depende da situação, depende da linguagem, do diretor... veja, eu

poderia estar fazendo – como personagem – um ator que vai pra uma brincadeira popular, está

saindo de casa e está pintando seu rosto. Então ele teoricamente ele estaria de rosto pintado, mas

aquilo não interferiria na sua interpretação, pelo menos até ele chegar no brinquedo, entende?

Dando um exemplo bem radical aqui e simplista, até, pra você entender. Mas eu acho que no

fundo, no fundo, Stephane, vai depender da linguagem, da montagem, do diretor, das escolhas...

e eu não acho que deva ser uma regra fechada dizer que pintar a cara ressignifica a

interpretação. Eu acho que aí tem outras variáveis que podem confirmar ou negar a questão que

a pergunta levanta.

9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto

com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,

sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?

No caso do Ricardo III, sim. Foi tudo criado junto. O exemplo maior que eu lhe dou é que meu

personagem num determinado instante do espetáculo assume a figura do Freddie Mercury e eu

uso um bigode característico, que esse bigode foi pra a Rainha e foi também para o Clarence,

como eu disse na primeira questão. E o Freddie Mercury entra porque achou-se interessante,

num determinado momento do espetáculo, a música Bohemia Rhapsody do Queen, que também

é inglês, então nesse caso a música que pauta o Freddie Mercury, que pauta o meu bigode, que

pauta o boneco do Clarence, por exemplo. Então é pra mostrar como no Ricardo III essas coisas

são imbricadas, são relacionadas.

10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?

Sei que cabe uma série de outras análises, mas pra ser bem suscinto e objetivo a maquiagem –

como a música, como a cenografia, como o texto – pra mim é um elemento narrativo. É um

elemento que tá lá na composição da narrativa, ou seja, na contação daquela determinada

história. É a forma primeira que eu consigo ver a maquiagem.

11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na

aceitação da sua personagem pela plateia?

Eu acho que eu praticamente repetiria o que eu coloquei na questão anterior. Eu acho que é

entendimento e aceitação são dois termos que não abraçam por completo a personagem na

narrativa. Às vezes eu não entendo, mas eu admiro. Às vezes eu não entendo, mas eu me

abismo. Às vezes eu não entendo, mas eu me apaixono, num é. E a aceitação da mesma forma.

Às vezes eu não aceito e diz justamente dessa não aceitação, dessa minha discordância a

percepção da personagem na trama. Então entende como entendimento e aceitação pra mim não

são palavras que abraçam? Pra mim, colaborar no desenho final da narrativa, como eu já tinha

antecipado na questão anterior é a sua função mais contundente – em se tratando da maquiagem,

volto a dizer.

12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o

espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?

Sim, claro que eu acho que era possível. Quantos Ricardo’s III’s não já foram feitos por visões

distintas, eu sou uma pessoa que acredita muito na sobrescrita. O autor estabelece uma escrita, o

diretor tem seu espaço de escrita, o ator tem seu espaço de escrita e não obrigatoriamente esses

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espaços de escrita se negam ou precisam alterar a sua premissa – no caso, texto escrito, se foi

assim que o espetáculo teve seu início, no caso do Ricardo foi – para poder se colocar... eu não

acredito que o diretor precisa mudar o texto pra imprimir a sua linguagem. Não, eu acredito que

cada instancia dessa deixa espaço suficiente para que possam ser ocupados de formas distintas

pelos outros partícipes da encenação, entende?

Então eu tenho certeza que se o texto fosse Ricardo III, o diretor fosse Gabriel, mas um outro

ator fizesse os meus personagens, eu tenho certeza – principalmente se participasse desde o seu

processo de construção - ... eu tenho certeza que seria um pouco diferente, entende? Então eu

acho que teria várias outras formas possíveis de o espetaculo ser desenvolvido, entendido e,

também, ser aceito pela plateia.