SUMÁRIO - MPSP

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_______________________________________________________________ REVISTA DA ESMESC, v.28, n.34, 2021 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Maximiliano Losso Bunn 5-6 ARTIGOS JURISDIÇÃO POLIVALENTE: novos tempos, virtudes antigas Bruno Makowiecky Salles 07-26 ESCORÇO SOBRE A FIGURA DO ATENTADO COM BASE NO PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DE MEIOS Eduardo de Avelar Lamy, Eduardo Passold Reis 27-50 O CONTRATO DE RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL NA JURISPRUDÊNCIA CATARINENSE Leandro Ernani Freitag 51-74 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E EFICIÊNCIA PROCESSUAL Luiz Fernando Pereira de Oliveira 75-94 OS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS COMO INSTRUMENTOS PARA AEFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA Juliana Araújo de Mello Canova, Pedro Manoel Abreu 95-115 CONSTELAÇÃO FAMILIAR E A PROMOÇÃO DA ECONOMIA DO MEDO: mais uma das muitas formas de violência contra a mulher Cláudia Galiberne Ferreira, Heitor Ferreira Gonzaga, Romano José Enzweiler 116-145

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_______________________________________________________________ REVISTA DA ESMESC, v.28, n.34, 2021

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Maximiliano Losso Bunn

5-6

ARTIGOS JURISDIÇÃO POLIVALENTE: novos tempos, virtudes antigas Bruno Makowiecky Salles

07-26

ESCORÇO SOBRE A FIGURA DO ATENTADO COM BASE NO PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DE MEIOS Eduardo de Avelar Lamy, Eduardo Passold Reis

27-50

O CONTRATO DE RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL NA JURISPRUDÊNCIA CATARINENSE Leandro Ernani Freitag

51-74

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E EFICIÊNCIA PROCESSUAL Luiz Fernando Pereira de Oliveira

75-94

OS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS COMO INSTRUMENTOS PARA AEFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA Juliana Araújo de Mello Canova, Pedro Manoel Abreu

95-115

CONSTELAÇÃO FAMILIAR E A PROMOÇÃO DA ECONOMIA DO MEDO: mais uma das muitas formas de violência contra a mulher Cláudia Galiberne Ferreira, Heitor Ferreira Gonzaga, Romano José Enzweiler

116-145

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FUNDAMENTOS CONTEMPORÂNEOS DA IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA E A FUNÇÃO SOCIAL DO TRIBUTO Clovis Demarchi Demarchi, Tomás José Medeiros Lima

146-166

A APLICABILIDADE DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS À LUZ DO PARADIGMA SOCIAL DE PUNIÇÃO EM PROL DA EDUCAÇÃO - uma análise crítica Isabel Helena Almeida de Albuquerque, Enio Gentil Vieira Junior

167-193

A REMIÇÃO DA PENA PELA LEITURA: uma análise da Resolução nº 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça e das novas perspectivas de reinserção social Guilherme Augusto Volles, Ana Luisa Fernandes Naatz

194-220

A POLARIZAÇÃO E A INTOLERÂNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Flávia Laurindo da Rosa

221-247

A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: impactos e inovações Karine Jacinto Farias Pacheco da Silva

248-269

AS INFLUÊNCIAS DO PACOTE ANTICRIME NAS PROGRESSÕES DE REGIME Marcus Vinícius Fidélis Wagner Garbelotto, Marília da Silva Araújo

270-297

ALIENAÇÃO PARENTAL: principais aspectos no âmbito familiar Nathália Carneiro Neves

298-321

DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS, LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A INFLUÊNCIA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL Paula Büttner Büttner

322-351

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O TRIBUNAL DO JÚRI E A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DAS CONDENAÇÕES: uma análise à luz dos precedentes e da máxima da proporcionalidade Natacha Back

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APRESENTAÇÃO

A publicação de uma revista científica é sempre momento especial para aqueles que se dedicam à pesquisa e ao estudo de temáticas afetas a uma área do conhecimento. É, certamente, oportunidade sublime na difusão do saber, no compartilhamento de informações, mesmo porque “Não existe transformação sem aprendizado e conhecimento” (Aristó-teles).

Torna-se extremamente gratificante saber que a Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (Esmesc), ao completar 35 anos de trabalhos prestados à formação jurídica, e sendo muitos dos magistrados de Santa Catarina egressos dos seus quadros, mais uma vez lança sua Revista, publicada anualmente.

A Revista da ESMESC destes 35 anos inaugura uma nova fase na Escola. É a primeira Revista totalmente eletrônica, lançando a Esmesc de modo definitivo também no ambiente virtual, campo, a propósito, no qual a partir do segundo semestre deste ano (2021) passamos igualmen-te a realizar nossos cursos regulares (Módulos Conteúdos Jurídicos, Práticas Jurídicas e Residência Judicial).

Se a magistratura e o sistema de Justiça precisam acompanhar as novas tecnologias e respirar os ares da modernidade (aí estão os ro-bôs humanoides recém anunciados e que não me deixam mentir), como efetivamente necessitam, também a Esmesc se prepara para continuar na vanguarda do ensino preparatório ao concurso da magistratura do Estado, fazendo-o, agora, inclusive neste presente, mas ainda desco-nhecido, inesgotável ambiente virtual.

Enfim, é um novo momento. Se a Pandemia que nos atingiu de modo inesperado é – como é – irresistível (assim foi no mundo todo), aqui na Esmesc nós percebemos as dificuldades daí surgidas e criamos oportunidades, facilidades e desenvolvimento de competências pedagógicas para os nossos discentes. Não nos resignamos, em absoluto!

E é justamente por isso que tenho a certeza de que esta Revista, em especial, sobretudo pelos temas selecionados e pela qualidade dos au-

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tores, não representa apenas 35 anos de bons serviços à comunidade acadêmica e jurídica. O presente periódico científico verdadeiramente exprime toda a competência e expertise da Escola na preparação ao concurso da magistratura do Estado de Santa Catarina. Que venham, portanto, tantos outros anos de sucesso!

Maximiliano Losso Bunn Diretor-Geral da Esmesc

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p07

JURISDIÇÃO POLIVALENTE: NOVOS TEMPOS, VIRTUDES ANTIGAS

POLYVALENT JURISDICTION: NEW TIMES, OLD VIRTUES

Bruno Makowiecky Salles1

Resumo: Este artigo reúne reflexões sobre o exercício da Jurisdição em um contexto de Acesso à Justiça, de Judicialização e dos desafios qualitativos e quantitativos hoje existentes. Para tanto, fornece-se um panorama do cenário vigente e articulam-se aspectos do desempenho da Jurisdição com novos fatores como a crise do Positivismo jurídico, a aplicação de normas e os princípios constitucionais, o Ativismo e a Au-tocontenção e as funções cotidianas dos juízes. O objetivo é o de expor, com humildade científica, diretrizes que priorizem uma atuação técni-ca, criteriosa e ponderada dos juízes no ambiente democrático, dentro da antiga ideia de equilíbrio simbolizada na balança da justiça.

Palavras-chave: Jurisdição. Acesso à Justiça. Judicialização. Ativismo Judicial.

Abstract: This article brings reflections on the exercise of Jurisdiction in a context of Access to Justice, Judicialization and the currently exis-ting qualitative and quantitative challenges. To this end, an overview of the current scenario is providedand, subsequently, aspects of the exerci-se of the Jurisdiction are articulated with new factors such as the crisis of Positivism, the application of constitutional rules and principles, Ju-dicial Activism and Self-restraint and the functions of the judges. The

1. Pós-Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), com estágio pós-doutoral na Delaware Law School – WidenerU-niversity. Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNI-VALI). Dottore di Ricercain Scienze Giuridiche pela Università Degli Studi di Perugia - UNIPG, Itália (2019). Exerce o cargo de Juiz de Direito no Es-tado de Santa Catarina (2009). CV: http://lattes.cnpq.br/7479543022697803. E-mail: [email protected]

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objective is to expose, with scientific humility, guidelines that prioritize technical, judicious and thoughtful performance by judges in the demo-cratic environment, within the old idea of balance.

Keywords: Jurisdiction. Access to Justice. Judicialization. Judicial Ac-tivism.

1. INTRODUÇÃO

Os movimentos do Acesso à Justiça, impulsionados sobretudo na dé-cada de 1970 do século XX, e o fenômeno da Judicialização, exponen-ciado a partir dos anos de 1990 do mesmo século, contribuíram para projetar na Jurisdição na sociedade complexa um arco-íris de novas ex-pectativas, encargos e possibilidades, intensificando desafios de ordem qualitativa e quantitativa.

O presente artigo reúne reflexões sobre o exercício da Jurisdição no contexto anteriormente referido. Para tanto, inicia-se fornecendo um retrato do atual panorama. Na sequência, articulam-se aspectos do de-sempenho da Jurisdição, em tal panorama, com fatores como a crise do Positivismo jurídico, a aplicação de normas e princípios constitucio-nais, o Ativismo e a Autocontenção Judiciais e as funções cotidianas dos juízes.

O objetivo do texto, longe de fornecer roteiros ou lições pretensiosas, é o de compartilhar, com humildade científica, algumas diretrizes soltas que priorizam uma atuação técnica, criteriosa e ponderada dos juízes no atual ambiente democrático, dentro da antiga ideia de equilíbrio, simbolizada na balança da justiça.

Relativamente à metodologia, cabe o registro de que, na fase de in-vestigação, foi utilizado o método indutivo. Na fase de tratamento de dados, empregou-se o método cartesiano. Por fim, o texto foi composto sob a base lógica indutiva. As diversas fases da pesquisa foram auxilia-das com recurso a técnicas do referente, categoria, conceito operacional e pesquisa bibliográfica (PASOLD, 2015).

2. UM PANORAMA

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Embalada pelos movimentos de Acesso à Justiça (CAPPELLETTI, 1979, p. 53-60), a presença do Poder Judiciário intensificou-se nas de-mocracias ocidentais a partirda década de 1970 do século XX. O stan-dard metodológico dominante em tais movimentos consiste em identifi-car óbices de acessibilidade ao Judiciário e aos Direitos para prescrever soluções voltadas a rZZemover tais óbices (FRIEDMAN, 1994, p. 21).Somada a outros fatores, semelhante concepção pavimentou uma larga avenida rumo ao Judiciário.

Na mesma direção, especialmente da década de 1990 em diante, testemunhou-se o fenômeno da Judicialização, que envolve a ideia de conferir a algo a forma de um processo judicial (VALLINDER, 1995, p. 13), seja mediantea transferência ao Judiciário de assuntos tradicio-nalmente decididos pelos Poderes Legislativo e Executivo, seja com a incorporação, por tais Poderes, de métodos decisórios, maneiras de agir, habilidades e conhecimentos próprios do Judiciário (TATE, 1995, p. 28).

Na atual quadra histórica, verifica-se uma onda de Judicialização que engloba desde questões de vida ou morte até trivialidades cotidianas. Trata-se de um fenômeno multicausal ligado às peculiares interações entre direito e política. Por meio dele, o Judiciário é recorrentemente instado a decidir macroquestões e microquestões potencializadas pela repetição. Ao fornecer respostas criativas não dadas pelos demais agen-tes ou consideradas inidôneas e submetidas à reanálise judicial, o Judi-ciário expande tanto (i) o escopo das decisões judiciais quanto (ii) os métodos judiciais de tomada de decisão para a esfera política classica-mente reservada aos demais Poderes (SALLES, 2021).

Tal dinâmica é turbinada nas Sociedades Complexas contemporâneas. Nelas convivem cenários antagônicos, como tradicionalismo e pós-mo-dernidade, miséria e consumismo, produção primária e desenvolvimen-to tecnológico, analfabetismo e sofisticação intelectual (CÁRCOVA, 1996, p. 144). Vive-se um choque entre realidades no qual múltiplos discursos se entrecruzam, inclusive no ciberespaço. A massificação tor-na-se regra, a pessoalidade se dissipa e as distâncias são reduzidas pela tecnologia e superadas pela velocidade, gerando uma sensação coletiva

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de imediatismo “em que tudo é instantâneo” e a “morosidade”, seja do que for, “é sentida de forma especialmente dolorosa” (GUEDES, 2009, p. 36). As tensões entre os sistemas social, econômico e político, asso-ciadas às estruturas de poder, ao primado da economia, ao ritmo célere da vida e à revolução tecnológica intensificam conflitos de distintos matizes, levando a juízo macro e microquestões.

Os movimentos do Acesso à Justiça e a Judicialização, alinhados e avolumadosnas sociedades complexas nos anos que lhes seguiram (SALLES, 2016, p. 277-305), forjaram novos desafios à magistratu-ra, tantono planoqualitativo como noquantitativo. Afirma-se, inclusive, que “a explosão dos contenciosos transformou silenciosamente o acto de julgar, a tal ponto que já não se sabe muito bem qual foi o mais de-terminante, se o desafio quantitativo ou o desafio qualitativo” (GARA-PON, 1998, p. 255) hoje existentes.

Do ponto de vistaqualitativo, os juízes passaram a ser crescentemen-te acionados para solucionar problemas cotidianos e hard cases2varia-dos. Temas ambientais, bioéticos, carcerários, científicos, comerciais, criminais, culturais, econômicos, educacionais, étnicos, familiares, hu-manitários, imigracionais, infanto-juvenis, morais, políticos, religiosos, sanitários, tecnológicos, urbanísticos, bem como sobre questões de fe-deralismo, liberdades individuais, terrorismo, privacidade e outras são submetidas à decisão judicial antes mesmo, em certas ocasiões, de um pronunciamento dos ramos governamentais. Postula-se, amiúde com base em princípios e normas abertas,que os juízes atuem ativamente, desempenhando papéis de outros Poderese/ou inovandoem sentidos e na criação do direito e de políticas públicas. Paradoxalmente, vilaniza--se o que quer que se considere Ativismo Judicial, sobretudo quando o conteúdo da decisão desagrada o censor (ROOSEVELT III, 2006, p. 3), seja ele conservador ou progressista. E, nessa interação, quanto maiores

2. Casos difíceis são aqueles nos quais, por força do grau de incompletude que sempre haverá nos ordenamentos jurídicos, ou da incapacidade de o legis-lador antecipar todas as situações, inexiste uma solução jurídica clara na lei ou nos precedentes, gerando dificuldade de decisão.

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os níveis de Ativismo, maiores os incentivosà Judicialização (TATE, 1995, p. 33), num ciclo que se retroalimenta.

Sob a perspectiva quantitativa, a avalanche de ações é sentida de formamarcadamenteimpactante, numa realidade quase autoevidente. Qualquer um que atue no cotidiano forense percebe-a via empirismo, e mesmo quem não vivencia o dia a dia das Cortes pode visualizá-la. Em razão disso, torna-se desnecessária a exposição de dados estatísti-cos, facilmente encontráveis alhures (CNJ, 2020; CEPEF, 2014; USC, 2018). O que importa aqui é a ideia de que “Litigation hás gonetotally out ofcontrol”, mostrando-se, às vezes, epidêmica (FEIEDMAN, 1994, p. 9) e causando demora e incertezas que fazem do processo judicial “blacklogged” (HAZARD JR., 1986, p. 271), isto é, lento e incerto.

É importante notar que a Judicialização e a intensa litigiosidade di-zem respeito não apenas ao controle de constitucionalidade e às ações coletivas de vasta repercussão, mas também a lides individuais varia-das, de direito público ou privado, relevantes ou não, e a microquestões que, deduzidas em massa e potencializadas pela repetição, acabam os-tentando impactos em atividades políticas (SHAPIRO, 1995, p. 57) e regulatórias. Deve-se lembrar que os desafios da jurisdição não moram unicamente nos casos difíceis (hard cases) objeto de discussão pública (ALLARD; GARAPON, 2005, p. 24) ou que ofereçam dificuldades na resolução fático-jurídica, embora tais espécies de casos assumam maior notoriedade e atenção. Eles radicam também em um número maior e silencioso de situações cotidianas, cujas decisões são tomadas com ur-gência, no improviso, automatizadas, sem luxos ou preocupações teóri-cas (GARAPON, 1998, p. 172), mas cujo volume suscita o congestio-namento do sistema.

Pressionados por uma miríade de demandas, os sistemas jurídicos e a magistratura, na busca por resultados, incorporam novos componen-tespara o contexto da Jurisdição. Em sua essência, a Jurisdição é tida como a atividade própria do Estado mediante a qual as normas jurídi-cas, vazadas em regras ou em princípios, são aplicadas por juízes para a composição de conflitos subjetivos ou normativos com força de coisa julgada, compreendendo a dicção do direito e eventualmente sua exe-

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cução (SALLES, 2021b). Agora, vêm sendo entronizadas no dia a dia da magistratura, além de algumas tipologias de reformas em sistemas judiciais3, soluções como a adoção de modelos gerenciais voltados a processos e pessoas, o fomento às autocomposições em juízo, as análi-ses jurimétricas, o avanço da inteligência artificial (SALLES, 2020, p. 70-95), entre outros.

Referidos componentes são importantes e contribuem para a eficiên-cia dos sistemas de justiça. Contudo, inviável descurar alguns de seus reflexos questionáveis a fortalecer a máxima de que quase tudo na vida apresenta duas ou mais facetas.

A natureza e a quantidade das questões Judicializadas indicam, en-fim, que, por diversas causas que não cabe aqui aprofundar, o Judiciário expandiu-se como locus de reivindicação. Passaram a lhe ser direcio-nadas expectativas e competências decisórias em setores cada vez mais vastos das demandas sociais, convolando-o em “um espaço de exigibi-lidade da democracia” (GARAPON, 1998, p. 46), de correção de le-gislações e de oposição política. Como consequência, o juiz deixou de atuar em sua função técnica de dizer o direito, de agir como julgador de relações jurídicas concretas, controlador de constitucionalidade ou me-diador institucional das relações políticas, para passar a ser considerado um árbitro dos bons costumes e da moralidade política, investido, por vezes, em funções clericais e paternais, agindo ainda como o gestor, “o conciliador, o apaziguador das relações sociais e até mesmo o animador de uma política pública”(GARAPON, 1998, p. 20).

Diante da diversidade dos assuntos que lhe são submetidos e da ne-cessidade de solucioná-los adequadamente, o juiz da atualidade vem sendo:

[...] obrigado a dotar-se de uma personalidade multifacetada, já que é diretamente chamado a se mover em um mundo, da densa teia de leis, agora pulverizado. Deve, portanto, ser, de acordo com a época

3. São exemplos o (i) aumento dos recursos destinados aos juízes e à es-trutura e criação de Tribunais, a (ii) modificação da atuação judicial e dos processos, a (iii) tentativa de redução do número das ações que ingressam no sistema, ou, ainda, a (iv) combinação desses elementos.

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e as circunstâncias, um juiz legislador, um juiz mediador, um juiz administrador, um juiz herói, um juiz controlador, um juiz operador social e assim por diante. (Tradução livre)4 CERETTI; GIASANTI, 1996, p. 10).

A polivalência que se exige da magistratura não pode vir desacompa-nhada, todavia, de questionamentos sobre que postura os juízes devem assumir em face do que deles se reclama, da vastidão das demandas que lhes são endereçadas e da possibilidade ou não de atenderem a essas demandas à luz dos papéis e limites assinalados à função judicial no re-gime democrático. As linhas que seguem trazem algumas ponderações, sem qualquer pretensão de exaurimento sobre essa complexa e delicada temática, além de possíveis reflexões sobre o exercício da magistratura no instável cenário contemporâneo.

3. REFLEXÕES COMPARTILHADAS

As circunstâncias destacadas até aqui projetam, na Jurisdição, um arco-íris de novas expectativas e possibilidades, que precisam ser bem equacionadas pela magistratura. Além disso, e já avançando em espe-cificidades, elas permitem sustentar a defasagem, em largas bases, da aplicação judicial do direito baseada no paradigma do positivismo jurí-dico (RADBRUCH, 1959, p. 183), afirmação que vale para o positivis-mo exegético, para o positivismo normativista e também para versões do neopositivismo (BOBBIO, 1995, p. 25-112). Entre outros aspectos, elas ainda provocam meditações no que se refere à aplicação de normas constitucionais e princípios jurídicos, ao Ativismo Judicial e às atribui-ções dos juízes no cotidiano, como se passa a expor em breves linhas.

Em relação ao paradigma positivista (ZANON JÚNIOR, 2014, p. 229-230)5, tem-se que o espaço ocupado pelas normas-princípio (ALE-

4. Do original: [...] costretto a dotarsidi una personalitàpoliedrica in quan-to èchiamatodirettamente a muoversi in un mondo, quellodellafitta trama delleleggi, cheèormaipolverizzato. EgliDovràCosìEssere, secondo i tempi e lecircostanze, giudicelegislatore, giudicemediatore, giudiceamministratore, giudiceeroe, giudicecontrollore, giudiceoperatoresocieale e così via.5. Essa referência contém conceito bastante fiel do Positivismo Jurídico.

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XY, 2008, p. 88; e DWORKIN, 2011, p. 39-42) e pelas técnicas de ponderação debilita a preponderância das normas-regra e a lógica da subsunção. A ficção de completude de um ordenamento jurídico dota-do de normas a serem meramente aplicadas torna-se surreal perante a velocidade das demandas sociais, econômicas e tecnológicas, que não aguardam o tempo do processo legislativo. A busca por padrões jurídi-cos para a resolução dos casos difíceis substitui a defesa da discriciona-riedade judicial. Dá-se, ainda, uma constante penetração da moral e da política nas lides jurídicas. Todos esses aspectos abalam as fundações positivistas (ZANON JÚNIOR, 2014, p. 89-122). Soma-se a eles a cres-cente sofisticação de técnicas de controle de constitucionalidade, como as sentenças manipulativas e aditivas, o instituto do apelo ao legislador, a interpretação conforme a Constituição com ou sem redução de texto, a modulação temporal dos efeitos da decisão (SEGADO, 2011, p. 128; e BARROSO; MELLO, 2019, p. 295-334), além de outros leques de opções que fazem obsoleta a concepção de Judiciário como legislador meramente negativo.

É certo que essa conjuntura não legitima um retorno ao Jusnaturalis-mo, àquela ordem universal de valores metafísicos ou resultantes da ra-zão (KELSEN, 2001, p. 21) que, aplicáveis a todos os tempos e lugares, se impregnam de uma carga tal de subjetividade que mina a certeza do direito. Todavia, ela encoraja os juízes a um passo adiante na direção do Pós-positivismo, o qual, entre outras coisas, valoriza o papel da ponde-ração e dos princípios, objetiva reduzir a discricionariedade, não encara o direito como um produto acabado com normas já postas (ATIENZA, 2013, p. 29) e reconhece um grau de indeterminação e certa abertura nos conteúdos da Constituição (LEAL, 2007, p. 95-96), a pressupor atitudes interpretativas diferentes.

Entre as principais correntes pós-positivistas, situam-se o substan-cialismo, o procedimentalismo e o pragmatismo, que convivem, ainda, com importantes teorias dialógicas como os diálogos institucionais e o minimalismo judicial (SALLES, 2021b). Trata-se de aportes teóricos fundamentais, que auxiliam os juízes nos desafios dos novos tempos e

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nas discussões atuais sobre os limites e as possibilidades de suas atua-ções em regimes democráticos (SALLES, 2021b).

A adjudicação baseada em normas constitucionais deve partir do pressuposto de que a Constituição não impõe projetos políticos prontos, senão desenhos que devem ser coloridos de modo plural na democra-cia (ZAGREBELSKY, 2003, p. 12-14). A Constituição não se acha sob monopólio judicial, possuindo a intepretação e a concretização abertas aos demais órgãos estatais, cidadãos e grupos na sociedade (HABER-LE, 2002). Assim, mostra-se curial aos juízes ao exercerem o controle de validade da legislação infraconstitucional e das políticas públicas, tendo em conta certo grau de deferência à liberdade de conformação dos demais ramos. Similarmente, ao aplicarem as normas constitucio-nais de maneira direta, é prudente que observem a taxonomia e o nível de eficácia de tais normas (AFONSO DA SILVA, 1998, p. 126), aferi-das a partir da estrutura redacional, da matéria versada e das condições fáticas subjacentes à previsão abstrata. Isso tudo sem prejuízo da força normativa da Constituição (HESSE, 1991) e do necessário dever de responsividade (NONET; SELZNICK, 2010, p. 55), cabendo-lhes ba-lancear os elementos dessa difícil equação.

Quanto aos princípios jurídicos, sabe-se que, entre outras funções e ao lado de sua carga de abstração, eles exercem o papel de atribuir aos fatos um valor normativo próprio. Os princípios como que sinergizam norma e fato. Ao entrarem em contato com os princípios, os fatos (ser) adquirem vida e valor, conduzindo a uma tomada de posição jurídica (dever ser) por parte do juiz, o que aproxima a aplicação do direito do caso concreto, mitigando a prevalência de abstrações (ZAGREBEL-SKY, 2003, p. 122). Significa que os princípios guiam, orientam, con-duzem e fecham a interpretação do direito face a face com o fato. Tal concepção, como se vê, em nada é compatível com uma principiolo-gia fundada em slogans vagos, na qual um princípio é utilizado como artifício retórico para, como mecanismo de abertura e em desatenção ao seu conteúdo nuclear, justificar uma solução preferencial qualquer. Tampouco é consentânea com a invenção de um cipoal de princípios,

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conferindo-se tal distinção a valores ou máximas que não exercem uma função constitutiva da ordem e dos institutos jurídicos.

A aplicação e a ponderação dos princípios estão longe de traduzir tarefas puramente subjetivas. Elas observam um dever de coerência e integridade (DWORKIN, 2007, p. 203), condicionando-se à avaliação de aspectos fáticos e normativos e ao estudo doutrinário. A dogmática pode auxiliar na tarefa, por meio de descrição da norma ou do conteúdo do princípio, da submissão a uma análise conceitual e sistemática e da proposição de uma solução para o problema jurídico. Em especial, a tabulação de precedentes exerce papel determinante para que se criem parâmetros sobre o conteúdo, a extensão e o emprego dos princípios em casos análogos. Embora seja difícil, nas lides cotidianas, seguir fórmu-las matemáticas (ALEXY, 2015, p. 15), daí não se justifica o extremo oposto de uma ponderação ad hoc ou discricionária, seletiva, apartada do sentido do ordenamento. Uma decisão judicial consistente deve per-mear-se por toda essa consciência, necessariamente observando, quanto aos fatos e ao direito, um dever de fundamentação (SUNSTEIN, 2001, p. 31)6 que a legitime e lhe confira racionalidade.

Seria um equívoco pensar, em todo esse contexto, que a Judicialização, o Pós-positivismo, os princípios, as normas abertas e as novas técnicas de controle jurisdicional endossam uma espécie de cheque em branco ao Ativismo Judicial, seja no plano substancial, seja no plano processual. Por outro lado, e em sentido inverso, a utilização dolosa ou mal-inten-cionada da expressão Ativismo não há de incutir nos juízes uma eficácia intimidatória, ressuscitando a mitologia de que atuam como mera boca da lei.

Em rigor, o Ativismo Judicial reflete uma atitude jurisdicional de ten-dências transformadoras, mais que contemplativas, que se manifestam (stricto sensu), conjunta ou isoladamente, nos âmbitos (i) interpretativo ou aplicativo, mediante um acentuado voluntarismo na criação do direi-to em detrimento da legislação, de precedentes ou de padrões jurídicos

6. A exigência de fundamentação incrementa a qualidade das decisões e re-duz a discricionariedade dos agentes públicos. Ela também atua como um veículo de transparência.

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em geral, e (ii) institucional ou relacional, por meio de uma interferên-cia mais direta nas atribuições dos demais Poderes. Em ambas as situa-ções, deposita-se nos juízes uma missão que vai além do dever clássico de aplicar o direito a disputas subjetivas ou normativas e moderar os ex-cessos dos outros ramos, podendo isso se verificar na Jurisdição cons-titucional e na ordinária, tanto coletiva quanto individual, bem como em várias dimensões práticas de operação do direito (SALLES, 2021).

Todavia, não costuma sercientífico o parâmetro utilizado para a afe-rição cotidiana de eventual Ativismo nas decisões judiciais.As análises não se baseiam em conceitos jurídicos aplicados a estudos de caso, mas em opiniões que circulam em redes sociais e espelham a maior ou me-nor simpatia de parcela da opinião pública sobre o tema. É preciso, no ponto, cuidado para filtrar situações de uso ideológico e manipulatório do termo, ocorridas quando aqueles que objetivam conter os poderes dos juízes ou reter o controle de legalidade utilizam-no, sem bases ade-quadas, como discurso para frear a magistratura (ACCATTATIS, 2008, p. 88), adjetivando como Ativismo algo que configura o mero adimple-mento de funções jurisdicionais.

Quando efetivamente configurada, a postura ativista atrai inúmeros questionamentos acerca da legitimidade democrática. Aos juízes não cabe função governativa, tampouco a pura e simples invenção do di-reito. Compete-lhes, pelo contrário,enunciar ou reforçar os valores fundamentais apreendidos dentro da estrutura constitucional, legal ou jurisprudencial do regime democrático no qual operam. Assim, alude--se a algo como um dever metodológico de os juízes pensarem com as suas cabeças, com as cabeças dos outros e de modo coerente ao direito (CHIODI, 1996, p. 44-45). Atuar para além ou diversamente disso pode provocar, a médio prazo e a depender da intensidade, a erosão da ima-gem dos juízes como agentes técnicos, neutros e apolíticos (SHAPIRO, 1995, p. 62), criando, ainda, risco de retaliações da opinião pública e do sistema político.

Se o Ativismo Judicial rotineiro não é adequado como pauta de atua-ção à magistratura, tampouco é aceitável generalizar a filosofia da Au-tocontenção. Esta se reflete numa tendência jurisdicional oposta ao Ati-

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vismo, nos planos (stricto sensu) (i) interpretativo ou aplicativo e (ii) institucional ou relacional, notabilizada por atitudes judiciais de pru-dência e deferência às escolhas políticas dos demais ramos, manifesta-das no judicial review e na judicação ordinária, coletiva ou individual, aí compreendidas as inúmeras dimensões da prática jurídica (SALLES, 2021). Embora Autocontenção não seja sinônimo de uma magistratura mortificada, apagada, ausente, indiferente ao direito e aos princípios (SHAPIRO, 2002, p. 165) e curvada a normas extremamente injustas (RADBRUCH, 1959, p. 112-113)7, nem sempre o contexto histórico, social e jurídico será compatível com uma postura de deferência à po-lítica em detrimento das normas constitucionais abertas ou principioló-gicas.

Ativismo e Autocontenção não se submetem a vereditos absolutos. Ambos enfrentam seus dramas, devendo os juízes equilibrarem-se nas virtudes e nos defeitos dessas faces gêmeas da função judicial (BA-RAK, 2006, p. 271 e 278-281). Em certos conflitos ou períodos históri-cos, o comportamento ativista pode mostrar-se adequado; em outros, a contenção talvez se mostre mais acertada. Porém, em qualquer situação, não devem os magistrados decidir por intuição (BARAK, 2006, p. 263 e 308), senão ter em mente os parâmetros teóricos que balizam a diver-gência e decidir consciente e fundamentadamente, após tudo sopesado.

O conjunto das mudanças no papel clássico dos juízes vai além. Ele tende a agregar à função de julgar atribuições gerenciais, miste-res conciliatórios e, para alguns, até terapêuticos, como as constelações familiares, além de imersões tecnológicas, análises jurimétricas e su-pervisões sobre atos produzidos por algoritmos. Todavia, quanto mais o juiz administra, menos tempo dispõe para ler as petições, refleti-las, avaliar os aspectos da lide e confeccionar sentenças, lembrando-se que “Ler, pensar e escrever são, portanto, os aspectos essenciais da senten-ça como fato” (COUTURE, 1946, p. 202-203). Quanto mais incentiva procedimentos conciliatórios, negociativos ou terapêuticos, menos en-toa as normas vigentes, menos reforça os padrões de legalidade e menos

7. O registro relaciona-se à clássica fórmula da injustiça extrema de Gustav Radbruch.

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promove a segurança jurídica, desligando-se da estatalidade e da lei para incorporar procedimentos de ordem privatística, práticas sociais e barganhas (CHIODI, 1996, p. 40-41).Quanto mais automatiza atos ou supervisiona algoritmos, na necessária busca por estatísticas e eficiên-cia, mais mecaniciza e desumaniza o direito, incorpora processos opa-cos de tomada de decisão e reproduz precedentes de modo irrefletido (SALLES, 2020, p. 89).

Todas essas mudanças, embora ostentem pontos positivos e possam conviver com a Jurisdição propriamente dita, apresentam algumas com-plicações e não têm o efeito de se sobrepor a ela ou desmerecê-la, per-sistindo o ato de julgar como o carro-chefe e a prioridade da atividade jurisdicional.

Inúmeros desafios, enfim, movem-se na esteira dos novos tempos. Para enfrentar tais desafios, inexiste um roteiro. As reflexões acima ser-vem como algumas diretrizes soltas que priorizam uma atuação técni-ca, criteriosa e ponderada dos juízes. A ideia subjacente a todas elas remete, ainda, à mediania aristotélica de que a virtude está no meio termo (ARISTÓTELES, 1991, p. 36)8, na harmonia entre os extremos, na busca pelo equilíbrio refletido na balança, que simboliza a equação entre castigo e culpa, entre lei e justiça, entre direitos e deveres, entre novo e antigo, ao lado de tantas outras dicotomias.

4. CONCLUSÃO

Os movimentos do Acesso à Justiça, a Judicialização, as interações nas Sociedades Complexas, a crise do Positivismo Jurídico, o Ativismo e a Autocontenção Judiciais, os percalços quantitativos dos sistemas de justiça, os impactos na atuação cotidiana dos juízes e outros são fenômenos ricos que envolvem a magistratura em uma série de encru-

8. “Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtu-de. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio termo”.

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zilhadas contemporâneas, incrementando as dificuldades da função ju-risdicional.

Sem qualquer pretensão de fornecer roteiros ou lições, pode revelar--se útil, todavia, compartilhar algumas reflexões sobre o exercício da Jurisdição no atual quadro. Escapando um pouco do rigor metodológico e dos limites assinalados às considerações finais, passa-se doravante, neste tópico conclusivo, não só a condensar as observações lançadas ao longo deste artigo, mas a sintetizá-las em formulações objetivas, já mais concretas e direcionadas.

Aos juízes da atual era abre-se, entre outras, a possibilidade de equi-librar-se entre os fatores destacados de modo a: (i) aplicar o direito sem inovações abruptas, concretizando normas e padrões jurídicos construídos ao longo dos anos, modernizados para o presente e proje-tados para o futuro; (ii) preencher vácuos normativos, quando necessá-rio, com o cuidado de não atalhar pura e simplesmente a democracia, abstendo-se de usurpar atribuições legislativas e executivas; (iii) lidar com normas constitucionais e princípios de maneira criteriosa, técnica e fundamentada, não os tratando como um freepass para a discriciona-riedade; (iv) balancear a permanente tensão entre segurança jurídica e justiça, cientes de que a fuga do direito legislativo ou jurisprudencial constitui medida excepcionalíssima; (v) observar os precedentes sem reduzir a Jurisdição a níveis de redundância próprios de autômatos; (vi) conciliar independência judicial e liberdade decisória com a necessária organicidade do direito, fazendo uso parcimonioso de técnicas como distinguishing e overruling; (vii) ter consciência de que o direito não é um produto pronto e, ao mesmo tempo, não agir como o capitão dos mares desconhecidos ou o mentor da vanguarda iluminista; (viii) atin-gir eficiência sem descurar da singularidade dos casos, harmonizando padronização e individualização; e (ix) priorizar o ato de julgar sobre as demais atividades recentemente incorporadas à rotina judicial, as quais, ainda assim, podem ser aproveitadas de sua melhor forma.

Essas reflexões buscam promover uma atuação técnica, criteriosa, ra-cional e ponderada dos juízes nos novos desafios presentes no ambiente democrático nos novos tempos. A ideia subjacente a todas elas remete,

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ainda, ao equilíbrio traduzido na balança da justiça, antiga simbologia que permanece valiosa, mesmo com transformações milenares.

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Recebido em: 01/06/2021Aprovado em: 05/07/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p27

ESCORÇO SOBRE A FIGURA DO ATENTADO COM BASE NO PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DE MEIOS

FORESHORTEING OF THE FIGURE OF THE ATENTADO BASED ON THE USAGE OF MEANS PRINCIPLE

Eduardo de Avelar Lamy1

Eduardo Passold Reis2

Resumo: Com o Código de Processo Civil de 2015, o atentado deixou de ser tratado como procedimento cautelar. A opção legislativa prestigia respeito ao diálogo processual participativo e atribui ao instituto o cará-ter expresso de dever processual de conteúdo negativo. Contudo, com o fim das cautelares típicas, perdeu-se meio processual para denúncia do atentado e lócus específico para sua análise. Urge pensar em formas de sistematizar meios processuais para tratamento do tema. O princí-pio do aproveitamento de meios pode apontar caminhos para cuidar da questão.

Palavras-chave: Direito. Processo Civil. Comportamento processual. Atentado. Aproveitamento de meios.

Abstratct: With the 2015 Brazilian Civil Procedure Code, the atenta-do was no longer treated as a precautionary procedure. The legislative

1. Advogado. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina nos cur-sos de graduação e pós-graduação. Pós-Doutor em Direito pela UFPR. Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão de Conformidade e Compliance da OAB/SC. Membro da ICA, do IIDP e do IBDP. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/30231553401152102. Magistrado membro do Poder Judiciário de Santa Catarina. Aluno do Curso de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Direito e Gestão Judiciária pela Academia Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (2012). Formador credenciado pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3345257600221255.

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option reveals honors the respect the participative procedural path, attributing to atentado institute the express character of procedural negative duty. However, with the end of the typical precautionary measures, an express procedural mean for denouncing the atentado and specific locus forit´s analysis was lost. It is urgent to think of ways to systematize procedural means for dealing with the issue. The usage means principle may point out ways to take care of the issue.

Keywords: Law. Civil Procedure Law. Procedural behavior. Atentado. Usage os means.

1. INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 deixou de ver a figura jurídica do atentado como procedimento cautelar (art. 879 e ss., CPC/1973). A partir da nova legislação, o instituto passou a ser visualizado como dever das partes e de todos aqueles que participam do processo (art. 77, VI, CPC/2015).

A opção legislativa, segundo este estudo que se empreende, veio re-velar boa técnica e prestigiar o respeito devido ao caminho processual compartilhado pelas partes, atribuindo ao instituto do atentado o caráter expresso de dever processual. Ele está expressamente vinculado a prin-cípios regentes da relação processual, como o contraditório e a boa-fé.

Sob enfoque pragmático, entretanto, com o fim das cautelares típicas, perdeu-se meio processual expresso para denúncia do atentado e, por conseguinte, locus específico para debate, reconhecimento e repressão de tais atos. É imperioso que se possa sistematizar meios processuais para análise dessas questões. O princípio processual do aproveitamen-to de meios está apto a indicar caminhos para tanto, sob premissas de efetividade, participação e segurança, além de maior adequação ao caso concreto. O método do estudo que ora se traz à lume é o dedutivo, e a pesquisa se desenvolve pela análise doutrinária e legislativa.

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2. O ATENTADO NA CENA PROCESSUAL CONTEMPORÂNEA

Constitui atentado toda inovação material em estado de fato ou de direito litigioso, em desconformidade com a ordem jurídica. São ele-mentos básicos do conceito de atentado: a) status quo originário da si-tuação/relação processual controvertida; b) inovação material no status litis estabelecido com consequências de ordem objetiva; c) danos de-correntes dessa inovação material; d) antijuridicidade da intervenção no estado de fato. A doutrina especializada aponta ainda como elemento essencial para ter lugar a figura jurídica do atentado a pendência de lide. Defende a doutrina clássica que, para ter lugar o atentado, é necessária a presença de lide pendente, sem o que a interferência, malgrado ilícita, é estranha ao Direito Processual (SILVA, 1990, p. 45). Recorde-se ainda que, segundo Baptista da Silva, (2009, p. 545):

O atentado é instrumento destinado a preservar o princípio da inal-terabilidade da demanda que se estabelece processualmente com a angularização da relação processual decorrente da citação. O instru-mento, assim, está intimamente ligado mais ou menos “duelística” do processo como um jogo, ou como uma disputa entre contendores privados, onde haverá de sagrar-se vitorioso aquele que, com habi-lidade e sabedoria, tenha melhor engendrado seu ataque ao adversá-rio, ou melhor se tenha dele defendido. Nesta perspectiva, uma vez estabelecidas as posições de cada uma das partes, toda modificação porventura introduzida na demanda provocaria um desequilíbrio em suas posições e por isso haveria de ser proibida.

O atentado foi tratado de forma pragmática como procedimento cau-telar específico nos Códigos de Processo Civil de 1939 (arts. 712 a 716, CPC/39) e de 1973 (arts. 879 a 881, CPC/73). Mas, a bem da verdade, constitui-se, em seu étimo e ontologia, mais em um ato de desconformi-dade ou improbidade contra o correto e esperado andamento do estado de coisas no correr de uma demanda judicial. O objeto litigioso – jus-tamente por ser objeto de disputa entre dois ou mais interessados em sua fruição –deve ter seu estado de fato respeitado pelos contendores no Processo. Aqueles que optam e se submetem a resolver seus confli-tos pela esfera da jurisdição oficial estatal devem abster-se de inovar

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no estado de fato da coisa ou do objeto sob controvérsia. Não há livre disposição ou disponibilidade sobre o objeto litigioso: as possibilidades de modificação do seu estado são restritas (v.g. art. 109, CPC/2015), e a inovação não pode causar dano nem ser desconforme à ordem jurídica. Nesse caso, haverá abuso e, via de consequência, atentado processual.

No sistema do Código revogado, que adotava um modelo mais estri-to, ao consagrar tipicidade aos atos de atentado processual, a configura-ção do atentado se dava, basicamente, quando realizados e provados os atos de inovação previstos no art. 879 do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973), consoante se transcreve:

Art. 879. Comete atentado a parte que no curso do processo: I – viola penhora, arresto, sequestro ou imissão na posse; II – prossegue em obra embargada; III –pratica outra qualquer inovação ilegal no estado de fato.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a tipicidade dos atos de atentado foi abolida. O legislador implementou cláusula aberta de proibição de atentado processual, encartando-o como dever processual (BRASIL, 2015):

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:[...]VI – não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou objeto litigioso.

Evidentemente estruturada como cláusula geral, a proibição de co-meter atentado está inserida como comportamento esperado, como de-ver de conduta das partes e intervenientes no processo. A utilização de cláusulas gerais na legislação codificada é forma de abertura do Códi-go às multifacetárias dinâmicas da vida cotidiana. Elas possibilitam a construção dos sentidos normativos como que por “janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extrajurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais”. (MARTINS--COSTA, 1998, p. 131).

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A multiplicidade de fatos da vida não pode ser abarcada por comple-to pelo legislador, por mais minudente que seja. Por isso, agiu bem o legislador ao elencar possibilidades de realização do atentado de forma aberta, sem vinculação taxativa. A criatividade é, em si, uma boa coisa, mas pode ser – e muitas vezes é – usada para a implementação de frau-des. A capacidade de inovação pode ser usada para promover progresso, mas também para malabarismos astuciosos e inidôneos. O dia a dia no Foro demonstra a verdade da assertiva. A norma precisa estar atenta à realidade da vida para poder regê-la com sabedoria.

Por outro lado, forçoso atestar que a caracterização dos atos de aten-tado – agora que deixada de lado a tipificação de condutas configura-doras - nem sempre será simples. Sua implementação dependerá das circunstâncias desenhadas no feito, das evidências angariadas casuisti-camente, de uma percepção acurada e um discernimento perspicaz dos operadores jurídicos. O ato configurador de atentado – como ato de abuso que é - será sempre um exercício disfuncional de uma posição jurídica, um exercício desconforme a premissas regentes de um sistema jurídico.

A punição judicial de atos de atentado não deixa de ter penalidade especificada em Lei – nem se poderia objetar contrariamente, porque nullapoenasine lege. O que se vem assentar é que, diante do emprego de técnica legislativa de cláusula aberta, a presença dos elementos con-figuradores do atentado e seu reconhecimento e decretação judiciais contará mais e mais com recursos à interpretação analógica e teleoló-gica, com a fixação de padrões decisórios pela jurisprudência e com a análise de vetores sociais e axiológicos envolvidos. Nesse campo, a experiência jurídica do foro e a prática cotidiana dos julgamentos de ca-sos, a sufragar padrões de construção judiciária de soluções, exercerão função de aporte análogo à norma positivada (cf. ZANETTI JÚNIOR, 2014, p. 105).

Com o ocaso da tipicidade para os casos de atentado processual, o enfoque passa à argumentação específica, ao atribuir valor ao contra-ditório qualificado e à participação dialogal, e à realização decisional

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sensível, esteada em discurso de racionalidade e correção fornecidos pelo sistema jurídico.

Apresentado sob roupagem de cláusula geral, o dever de não cometer atos de atentado está disposto textualmente pelo legislador, amoldado no art. 77, VI, CPC. Trata-se de um comportamento processual pro-pugnado e que se pode e deve esperar das partes e de intervenientes no processo. O descumprimento da norma – ou seja, o cometimento de atentado –, será punido com restabelecimento do estado anterior e penalidades específicas dispostas na legislação.

Daqui, divisa-se que o atentado, malgrado em concreto ser ato de cariz material, é instituto especificamente do Direito Processual. É que, com seu tratamento legislativo, o que se deseja resguardar é, por exem-plo, o comportamento probo dos litigantes na destinação jurisdicional da coisa, do objeto ou do direito litigioso. Procura-se assegurar o virtual equilíbrio no estado de fato quando da instauração da lide, e que não deve ser rompido por atos voluntaristas de algum dos contendores. A in-tenção do instituto é a de promover segurança e confiança aos litigantes e respeito ao caminho oficial e compartilhado do Processo.

O atentado existe e se configura, pois, como instituto de Direito Pro-cessual e para servir ao Processo. A justificativa e destinação eminen-temente processual do instituto em voga já foi assentada por Theodoro Júnior (2008, p. 398) para quem “a tutela cautelar serve ao processo e não ao direito material da parte porque este [...] não está em jogo quando se admite a ação de atentado e pode até ser negado na sentença da ação principal”. Esse também é o parecer de Silva (1990, p. 60) em monografia específica sobre o tema, concluindo que, apesar de ser ação, atitude, ato com inflexão material própria dos atos, o atentado traz efei-tos e consequências diretas para o processo e é, pois, um fato processual e também um ilícito processual.

Especialmente por sua ressignificação topológica promovida pelo le-gislador de 2015, o dever de não cometer atentado deve ser lido sob as luzes dos princípios da boa-fé objetiva e da cooperação, e que quaisquer atos atentatórios a essas premissas podem e devem sofrer consequên-cias temperadas de rigor.

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Ainda que não textualmente prevista na legislação revogada, a abs-tenção a atos de atentado já era comportamento processual esperado. Já se cuidava de, por meio da ação de atentado, regrar o comporta-mento das partes – buscando, pela tipificação das infrações processuais, concitar à abstenção de tais práticas. Um exemplo claro de nexo entre atentado e comportamento das partes vem da doutrina de Baptista da Silva (2009, p. 568) ao verter o atentado como “ofensa ao íntegro litis-pendente”(grifou-se). A pecha de “atentante”, em toda assemelhada ao chicaneiro litigante de má-fé, faz ver que a origem e o desenvolvimento do instituto estão esteados em profundos vetores axiológicos, éticos e metajurídicos.

Ao cuidar de temas relacionados à litigância de má-fé e lealdade pro-cessual, em obra específica, Iocohama (2009) classifica os atos de aten-tado como atos ofensivos à boa-fé processual exigida de todos os que litigam em juízo. Afirma, com referências ao CPC/1973, que “o atenta-do, nos termos do art. 879 do CPC também tem natureza sancionatória voltada à lealdade processual, bastando notar o que reza o art. 881 do CPC, ao retratar as consequências de sua procedência” (IOCOHAMA, 2009, p. 261). Na mesma senda, Milman (2009, p. 210-211) assenta que “o atentado configura ilícito processual visto que é fato contrário ao direito que ocorre no curso do processo, importando na prática de ato positivo ou omissivo em desacordo com as normas procedimentais”.

Se mesmo sob a égide da legislação anterior, quando era previsto em procedimento cautelar específico, em apartado das linhas gerais acerca de deveres das partes e dos provimentos acerca da lealdade processual, ainda mais agora. É que a forma de classificação na novel codificação, com expressa menção a deveres processuais e com cominação de mul-tas e sanções específicas por descumprimento de dever lealdade proces-sual, ao lado das penas do atentado, não parece mais haver dúvida que se está sim diante de ato relacionado a uma postura ética, a um com-portamento esperado e exigível das partes e intervenientes no processo.

Em reforço, observa-se que o legislador de 2015 – em singular avan-ço ao de outrora– preconiza que o atentado dará lugar ao retorno do estado de coisas à situação anterior à sua ocorrência (art. 77, §7º, CPC),

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concomitante à responsabilização da parte por seu ato de improbidade processual (art. 77, §2º, CPC).

Ao atribuir dever ao Juiz de providenciar o retorno do estado de coi-sas ao anterior ao da prática do atentado, alvitrando à jurisdição o uso de técnicas processuais adequadas conforme a prática iníqua perpe-trada; e, principalmente, ao reconhecer o atentante de forma expressa como improbus litigator, impondo-lhe sanções processuais específicas, e reconhecendo a possibilidade de reparação de danos em outras instân-cias, a norma é clara a atribuir seu feixe de implementação a balizas do princípio da boa-fé objetiva – regente do comportamento das partes no processo.

Evidenciou-se, até agora, pois, que o atentado configura comporta-mento processual indevido; que sua configuração não se limita a fat-tispecies estanques; que, para seu reconhecimento, argúcia e tino são necessários ao aplicador da norma; e que sua repressão deve se dar com austeridade.

3. O APROVEITAMENTO DE MEIOS PROCESSUAIS E A ADEQUAÇÃO DE FORMAS DE TUTELA

Cediço que o Código de Processo Civil brasileiro de 2015 tratou de forma inovadora a tutela cautelar, em contraposição aos anteriores Có-digos de 1939 e 1973. A tutela cautelar permanece presente na legisla-ção codificada, como se pode entrever, verbi gratia, dos arts. 294, pará-grafo único, 301 e 305 a 310. Mas, o novo Código deixou de prover-se de Livro específico a regrar o Processo Cautelar e, com isso, foram revogadas as ações cautelares típicas. As ações cautelares fundiram-se, pois, em técnicas cautelares.

Não é objetivo dissertar longamente sobre o tema nem sobre o acerto ou não da medida legislativa. De qualquer modo, e volvendo ao objeto deste estudo, surge a questão: com o fim da ação cautelar de atentado, procedimento típico idealizado pelo legislador de outrora para análise, reconhecimento e reparação de atos de atentado, como proceder, hoje, para denúncia desses atos?

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Para abordagem que se pretende desenvolver, é elucidativo apresen-tar lição de Baptista da Silva (2009, p. 566-567), para quem o atentado só é ação cautelar pelos apelos de urgência que pretende atender, mas, quanto ao mais, é ação de provimento satisfativo. Defendia o Professor gaúcho que a sentença nessa modalidade de demanda não tem cunho cautelar, pois faz coisa julgada material e também dada a eficácia da sentença nessa modalidade de demanda. Leciona que tais sentenças contam com eficácia mandamental preponderante – pois o juiz ordena o restabelecimento do estado de fato –, ladeada por eficácias condena-tória – que condena ao pagamento de prejuízos advindos do atentado – e declaratória – que reconhece a existência do atentado. A posição ilustrada não é imune a críticas, mas revela caráter que se pretende ex-plorar para firmar posição: as múltiplas eficácias da sentença da ação de atentado fazem surgir elemento sincrético nessa espécie de tutela – sincretismo este que, com vênia aos puristas, é um desafio ao forma-lismo exacerbado, à rigidez procedimental e à padronização típica de ações, técnicas e procedimentos. É preciso repensar a forma de exercer jurisdição e praticar o Processo Civil, valorando menos a interesses de coesão e disciplina inférteis e atentando mais acuradamente aos direitos fundamentais daqueles que necessitam da tutela jurisdicional.

Os reclamos do tempo – e de falta de tempo – da (s) cultura(s), a velocidade e a complexidade com que se moldam e movem interações sociais na modernidade líquida, a tecnologia que assombra e conduz, as ideologias políticas, e tantos mais, são elementos que influenciam dire-tamente a ordem jurídica, o Direito, disciplina reguladora das relações entre pessoas, e, por consequência, o Direito Processual Civil.

Novas hipóteses e situações surgem dia a dia, dificuldades inéditas, arranjos e rearranjos que reclamam solução tópica e segura pelo Po-der Judiciário. A mudança de paradigmas dos problemas do “mundo da vida” faz surgir como imperiosa a mudança de paradigmas também nas soluções a esses problemas no “mundo do processo”. E isso não é um truísmo. A implementação de respostas e soluções aos casos postos em pauta são a razão de ser da jurisdição. Deixar de prestar tutela efetiva

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e tempestiva, por meio de procedimento probo e seguro, deslustram a jurisdição e minam sua esfera de credibilidade social.

Diante das complexidades no cenário, também se desenham comple-xas as respostas aos novos problemas que surgem. Mais e mais se vol-verá ao sincretismo de tutelas anteriormente aludido – e em preceitos a ele relacionados como o princípio do aproveitamento de meios proces-suais, também denominado de princípio da fungibilidade3.

Inolvidável, aqui, o papel ressignificado da argumentação jurídica, do diálogo processual em contraditório e da construção dialética de so-luções jurídicas, tendo a jurisprudência como fonte primária de Direito, ao lado da Lei. A atividade decisional deve ser precedida e coordenada com diálogo efetivo e participativo com os participantes do processo, “possibilitando a participação dos jurisdicionados [...] legitimando o exercício do poder” (ZUFELATO, 2019, p.56).

E, para essa construção de soluções jurídicas processuais, há de se atentar, como dito, aos reclamos e às exigências no campo material, aos problemas enfrentados e que demandam resposta. Não há solução processual adequada sem atentar para o caso concreto e suas especifici-dades. Divorciar a resposta processual da hipótese material vivenciada é semelhante ao construtor que ergue edificação ao léu, sem projeto prévio ou planejamento, ou ao caminhante que sai a passear a esmo, sem cuidar do caminho ou destino; invariavelmente, todos, o jurista, o construtor e o caminhante, terminarão perdidos, com elevados gastos de tempo e recursos e longe do que poderiam obter com um pouco de prudência, cuidado e aviso.

Cediço, pois, que o incremento de técnicas sensíveis às especificida-des da hipótese enfrentada é medida que contribui para a efetividade do Processo. Daí se entrevê que a adequação de procedimentos ou flexibi-lização podem contribuir para tornar determinada ação ou medida mais apropriada para cuidar de dada hipótese vivenciada no campo material.

3. Sobre a evolução de nosso pensamento acerca do tema, confira-se: LAMY, Eduardo de Avelar. Aproveitamento de Meios no Processo Civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, Introdução; e LAMY, Eduardo de Avelar. Princípio da Fungibilidade no Processo Civil. São Paulo: Dialética 2007.

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Mesmo sem previsão legal expressa, mas obedecidos vetores principio-lógicos e ordenadores do sistema jurídico em questão, pode-se cogitar de implementar alterações procedimentais em exercício de flexibiliza-ção atípica.

Apresentando o conceito de flexibilização procedimental atípica, Oli-veira (2018, p. 30-31) atesta que normas processuais erigidas por meio de cláusula aberta – como aquela que rege a vedação ao atentado pro-cessual (art. 77, VI, CPC) – têm rotas procedimentais mais alargadas, abstendo-se o legislador do desenho procedimental e possibilitando aos operadores soluções mais criativas e adequadas à situação vivenciada.

Trata-se de campo fértil para erigir-se a aplicação do princípio do aproveitamento de meios. Nessa tessitura, importante assentar que a essência desse princípio é muito maior que os fins de correção de even-tuais equívocos, de conversão de medidas ou de instrumentalidade das formas. Ainda que possa se prestar a tais desideratos, dependendo de circunstâncias objetivamente verificáveis, tal princípio deita raízes em solo mais profundo. Tem bases constitucionais na efetividade e na ina-fastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, Constituição Federal), da promoção do devido processo legal (art. 5º, LIV, Constituição Federal) e do contraditório (art. 5º, LV, Constituição Federal) (BRASIL, 1988).

A ideia-base do princípio em questão está na ductibilidade dos pro-cedimentos, na atendibilidade de situações-problema concretas, na pos-sibilidade de tornar medidas judiciais melhor adaptadas à realidade prá-tica vivenciada, a torná-las mais conformes aos desafios visualizados no campo material. É uma tentativa de extrair do sistema graus maiores de potencialidade, adequando-se aos fins de tutela dos direitos e sem se prender apenas aos meios típicos previstos pelo Código (LAMY, 2021, p. 111). Haure daí íntima ligação com as ideias da adequação e adapta-bilidade e da flexibilização procedimental.

O aproveitamento de meios tem elementos práticos para implemen-tação, como a ausência de erro grosseiro e de má-fé e a presença de dúvida objetiva e razoável, advinda do próprio sistema, a propiciar con-versão, ou interpretação permissiva. Não é intuito explorar esses aspec-tos aqui. O que se propugna é fazer ver que o princípio da fungibilidade

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– auxiliado pelos vetores da adequação e flexibilização procedimental – pode e deve ser usado para compreender a questão inicial e trazer lócus específico para debate de ocorrências de atentado processual, sem desorganizar o andamento da lide principal pendente.

É que o hiato criado pelo legislador com a extinção das cautelares típicas não pode causar solução de continuidade às pretensões dos pre-judicados pela prática desairosa de atentado no curso da lide. A proscri-ção da demanda cautelar típica do texto codificado não deixa de tornar necessária a análise das ocorrências que se amoldem ao conceito de atentado. Afinal, não é por estar revogado do texto legal algum remédio ou meio jurídico que ele simplesmente deixa de existir no plano onto-lógico. Os institutos jurídicos existem e se mantêm por sua história, seu desenvolvimento prático e necessidade de seu uso cotidiano, pela experiência e experimentação jurídicas e judiciárias; não por constarem ou deixar de constarem em róis legislativos. O Direito e a Lei, tomada em sentido estrito, se enfeixam, conformam e comunicam um ao outro, numa relação de expressividade, iluminação, diálogo e interação, e não de mero silogismo.

A ausência de regra específica sobre o tema e a presença de cláu-sula aberta não tipificada nem estanque, para balizar comportamento processual de abstenção ao atentado (art. 77, VI, CPC), fazem ver que o sistema apresenta dúvida razoável sobre como se pode proceder na prática para denunciar, debater e julgar atos de atentado. E, diante da perplexidade objetiva extraída do próprio sistema, torna-se plenamen-te permitido o recurso à adaptabilidade, à variabilidade procedimental e ao aproveitamento de meios para prover o prejudicado de meios a remediar seus danos e a jurisdição de instrumentos a policiar o procedi-mento principal dos atentados promovidos pela parte atentante.

Para a correção jurisdicional de atos de atentado, mister a realização de atos de eficácia variada, como se viu, de cunho declaratório, conde-natório e mandamental. Mas, como obter essas tutelas se, agora, não há mais ação de atentado? Em incidente instaurado por petição no próprio processo originário? Por ação ordinária própria em que se visa reconhe-cer, provar e discutir a ocorrência do atentado? Como o atentado pres-

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supõe lide pendente, seria cabível a ação cautelar preparatória do art. 305? Existe apenas uma resposta válida ou é viável crer, com os contri-butos a que se aludiu anteriormente, pensar noutras visões possíveis de solução para os problemas postos? É o que se busca responder adiante.

4. ANÁLISE DE OUTROS MEIOS PROCESSUAIS POSSÍVEIS PARA RECONHECIMENTO DO ATENTADO

O aproveitamento de meios processuais anda em sincronia com a simplificação procedimental com vistas ao acesso à Justiça e à tute-la dos direitos fundamentais. O que lhe dá molde e vivacidade são as ideias de flexibilização de tipos jurídicos e de tolerância na admissão de possibilidade jurídicas oriundas e permitidas pelo próprio sistema.

Obviamente que lançar mão desse preceito não permite ingressar no arbítrio ou na informalidade: aproveitamento de meios não é cheque em branco, não é vale-tudo. Não há dúvida que os tipos e as formas processuais têm relevância fundamental na apresentação dos pleitos, no correr procedimentalizado das pretensões, na mediação equilibrada do diálogo processual, na composição reta do litígio e na entrega efetiva do objeto da tutela àquele a quem assiste razão. As formas não deixaram de ter importância no Processo Civil, mormente quando insertas em regras. Seu conteúdo tem fundamento metajurídico nas necessidades de previsibilidade e segurança, evitando-se o arbítrio e tutelando espe-cificamente o princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, CF).

Contudo, o respeito às formas e ao formalismo deve ter por funda-mento os interesses e os anseios dos destinatários finais da norma pro-cessual, as pessoas que perseguem a tutela de direitos e interesses por intermédio dos processos judiciais. O repensar do papel das formas no Processo, refundado sob as premissas de tutela de direitos fundamen-tais, entretanto, não deixa de saber certo que existem limites e pressu-postos elencados pela doutrina para ter lugar o recurso à flexibilização, sem que se descambe ao arbítrio ou à insegurança jurídica. Isso porque “o informalismo só pode ocorrer se atendida a finalidade jurídica pri-macial do processo de realização do direito material, em tempo adequa-

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do e preservados os direitos fundamentais” (ALVARO DE OLIVEIRA, 2010, p. 282).

Os meios passíveis de escolha ou adaptação são, portanto, meios jurígenos – colhidos do próprio sistema jurídico, seja por uso históri-co consagrado, por práticas observadas reiteradamente, ou mesmo por praticidade no alcance dos objetivos, desde que ausentes prejuízos e ofensas a garantias constitucionais. Efetividade de tutelas e atendibi-lidade às necessidades vêm em primazia à tipicidade de formas. Os meios devem ser permitidos pelo Direito – não devem ser ofensivos aos princípios e sistemas jurídicos nem estranhos aos usos judiciários –, mas não necessariamente precisam estar previstos taxativamente em instrumento normativo.

Compreende-se, à luz do que foi tratado, que as cautelares típicas incidentais (não preparatórias) são meios que não foram proscritos ou proibidos do sistema jurídico processual brasileiro. Apesar de não encartadas tipicamente pelo Código, quando surgir a necessidade de tutela urgente e de natureza especificamente cautelar, e em meio inci-dental – mostrando inadequado o manejo de medida preparatória, pois já ajuizado o feito principal –, será plenamente possível lançar mão da medida cautelar autônoma. Não há aqui repristinação legislativa em sentido estrito – nem é o que se está a sugerir. Há apenas recurso a meio juridicamente válido para fazer frente à necessidade de tutela específica surgida no mundo dos fatos.

Propõe-se, assim, dentro de circunstâncias específicas que entrever o mundo dos fatos e a necessidade premente de tutela de direitos, um réquiem à ação cautelar autônoma incidental. A cautelar autônoma res-guarda o interesse do autor, que poderá ter em demanda especificamen-te cautelar – com natureza urgente e rito acelerado – provimento que, se viesse disposto no curso da causa principal, somente viria para dilatar e complicar o trâmite desta – o que faria soçobrar, por vezes, tanto o pleito cautelar quanto transtornar a demanda principal.

Implementando-se a alternativa à dita medida cujo réquiem se suge-re, o réu – alegado causador da situação cautelanda – tem possibilidades processuais mais francas de resposta, o que prestigia o contraditório.

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Ambas as partes ganham com um procedimento apartado com melhor qualidade e maior especificidade na eventual produção de provas que se fizer necessária e um diálogo mais focado no problema urgente que deu azo ao ajuizamento da cautelar.

Dependendo das circunstâncias fáticas, a possibilidade de uma limi-nar initio litis ou mesmo de uma sentença na cautelar sem aguardar o julgamento da principal podem ser muito mais eficazes aos interesses em jogo que aguardar todo o leito processual da demanda principal.

Para a própria atividade judicial, a cautelar autônoma – ainda que seja uma ação a mais – soa positiva. Ainda que se trate de nova demanda, ela tem alcance bem mais restrito e rito menos dilargado. A questão urgente a ser resolvida com medidas de cautela no curso do processo poderia ser tratada, assim, em autos próprios com tratamento mais organizado e apropriado. O feito principal continuaria normalmente seu trâmite, sem dilações, sem miríades de petições intermediárias, noticiando fatos cuja resolução se reclama urgente ou contrapondo-se a eles, sem decisões complexas e variadas, cuidando de temas surgidos apenas no correr da causa, relacionados apenas indireta e circunstancial com os pedidos e as matérias de defesa. Sugere-se que as ações, principal e cautelar, sejam apensas – ao menos enquanto não resolvida e julgada e cautelar – para conferência, documentação e inter-relação melhor elaborada.

Especificamente para o caso do atentado, cuja existência era criticada por alguns como anacrônica e obsoleta (BAPTISTA DA SILVA, 2009, p. 549), ainda sob regência da legislação anterior, defendia-se com ve-emência a manutenção da autonomia da medida cautelar autônoma. Doutrina especializada aduziu sobre a importância de medida autôno-ma para denúncia, debate e responsabilização por atos de atentado:

Em situações dessa natureza, se faz imperioso provar a inovação e seus efeitos, criando-se procedimento incidental a tal fim, com contraditório específico a permitir, inclusive, defesa plena ao aten-tante. Claro está que, nessas circunstâncias, não seria conveniente, sob pena de grave tumulto processual, transportar a controvérsia incidente para o processo principal. (SILVA, 1990, p. 102)

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Também fundada em critérios pragmáticos é a doutrina de Grinover (2004, p.31) para quem “essa autonomia e tipicidade muito mais se justificam pela cognição que deve ter lugar (para saber da ocorrência de alteração ilícita) e pelos atos necessários à restituição”.

A implementação de caminhos processuais alternativos aos tipos expressos e às formas legisladas não permite recursos ao aleatório, às invencionices ou ao puro e simples arbítrio. O recurso à adaptabilidade procedimental tem como regramáter não ofender regra expressa nem estipular casuisticamente regramentos em franco confronto com a lei. O aproveitamento de meios, como se disse, exige dúvida objetiva haurida da interpretação do próprio sistema a permitir mais de uma alternativa viável.

A proposta deste trabalho é apresentar meios processuais possíveis para reconhecimento, discussão e reparação dos atos de atentado. Já foi exposta a possibilidade de manejo de cautelar autônoma incidental. Mas, quem alude a aproveitamento de meios, como dito, alude à tole-rância. Mormente diante de clara consagração de cláusula legislativa aberta (art. 77, VI, CPC), sem ação de tipo específico a dar vazão à referida pretensão. Não havendo construção legal de tipos específicos para cuidar do problema surgido, este pode ser resolvido por mais de uma forma permitida pela legislação.

A adesão ao princípio de aproveitamento de meios processuais retira sua razão de ser da multiplicidade de formas com que os problemas se apresentam na vida cotidiana e tem sua força motriz na tentativa de ser capaz de dar cobro a esses problemas, de forma criativa e com foco na atendibilidade ao caso concreto. Daí seu enfoque no direito funda-mental de busca por tutela jurisdicional justa e efetiva, entendida como uma tutela que se amolde o quanto possível, e a um só tempo, ao litígio específico e o confronte e resolva de acordo com regramentos confor-madores do sistema jurídico-processual. Cuida-se de um constante ba-lanceamento entre o particular e o geral.

Para tanto, renova-se o papel de princípios constitucionais regentes do Processo, como o do contraditório, em seus aspectos formal e mate-rial. Trata-se não apenas de bilateralidade de audiência, mas da efetiva

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participação para aposição de seus argumentos e pontos de vista, com direito a vê-los como formadores da decisão judicial final sobre o caso: não basta mais a passividade do poder ouvir; entra em cena o aspecto ativo de poder ser ouvido. Uma abertura do sistema a meios mais dialo-gais redundará em soluções mais próximas das necessidades das partes no caso concreto e fará realização mais bem ajustada das normas de Direito Material ao problema posto em pauta.

Por isso, a depender das circunstâncias observadas, a ação cautelar autônoma será o meio mais efetivo e reto para análise das situações de atentado. Mas nem sempre! Haverá casos em que outras soluções pos-síveis no sistema jurídico poderão ser implementadas com vantagem sobre a ação cautelar. Como não há, na Lei, construção de tipo, meio específico, é possível falar-se em aproveitamento de meios, em fungibi-lidade, sem incidir nisso em qualquer erronia jurídica ou nulidade pro-cessual. O que importa é que, argumentativamente, seja demonstrado que, na circunstância observada, uma ou outra via eleita pelo prejudica-do é a mais adequada (LAMY, 2021, p. 253-256).

A denúncia da situação de atentado poderá ocorrer, por exemplo, por simples petição ajuizada no processo principal em que determinada or-dem tenha sido dada ou situação jurídica construída. Essa solução pode ser viável em casos mais evidentes, de constatação ictuoculi e com es-clarecimento rápido e presente. São casos em que o retorno à situação anterior pode ser abreviado, mediante determinação, ordem judicial e meios mandamentais de cumprimento. O pleito reparatório não chega a desenhar-se concretamente, bastando a “mandamentalidade” do pre-ceito, a execução de ordem nos próprios autos em que a discussão é travada para restabelecer equilíbrio antes vigente.

É comum esse tipo de ocorrência no Foro, em casos de atentado. Exemplo disso é o genitor ou parente não detentor da guarda de infante que o toma consigo por alguns dias para exercer direito de visitação ou convivência e, ao cabo do termo, não o apresenta a quem de direito exerce sua guarda, estando pendente discussão judicial sobre o tema. Para esse tipo de situação, não há necessidade de implementar ação própria. A antiga ação de busca e apreensão de menor, hoje, convolou-

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-se em técnica cautelar, passível de aplicação pronta por pleito interme-diário na ação principal. Se não houve ação principal em curso, então, sim, é possível demanda autônoma. Mas, havendo ação já em curso, tudo pode ser resolvido nesta. É que, na hipótese, não há prejuízos ma-terialmente aferíveis a reclamar pronta reparação. Basta a efetividade da tutela mandamental – a devolução da criança ao seu correto local de estada – nada havendo mais a reparar ou restabelecer que o status quo da pessoa tutelada.

Propõe-se ainda outra forma de pensar a questão. Conforme o grau de destempero do atentante e as circunstâncias objetivas e consequên-cias do atentado, é possível entrever ainda outra possibilidade de solu-ção, que não a petição intermediária nos autos principais e tampouco a cautelar autônoma. A situação pode ser cunhada por gravidade tal que perpassa o caráter mandamental – cuja técnica poderia ser perseguida no processo principal – e mesmo o de demanda cautelar, com aspec-tos de mandamento e reparação imantados pela urgência e autonomia procedimental. Hipóteses em que os atos de atentado, além de trans-tornar os envolvidos, impliquem direitos de terceiros, ou prejudiquem a coletividade – a reclamar tutelas inibitórias ou de remoção de ilícito – podem conclamar ao uso de remédio jurídico de espectro mais lato, com atuação mais ampla e vigorosa. Nesse ponto, entende-se mesmo ser possível ajuizar ação de conhecimento, pelo procedimento comum, como ação própria para reconhecimento e punição pelo atentado, com a possibilidade de pleitear medidas de urgência antecipatórias, inibitórias ou outras, que se mostrem mais adequadas às situações concretas.

Suponha-se que o atentante, ao prosseguir em determinada obra ou serviço ou contrato, ofenda posição jurídica de seu adversário, mas vá além, causando danos ambientais, por exemplo, expelindo poluentes tóxicos em curso de água ou ofendendo a relações de vizinhança. No caso, os prejudicados com os danos ambientais ou os vizinhos podem ter danos a reclamar – e dependendo das circunstâncias tanto o causa-dor do atentado quanto a vítima dele poderiam ter responsabilidade pe-rante esses terceiros. O atentado, nesse caso, não tem efeitos limitados às partes envolvidas na discussão principal. Pela envergadura dos danos

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causados e suas consequências, terceiros tiveram direitos violados, e a ordem pública foi atingida, com possibilidade de responsabilização em outras esferas (administrativa, criminal, por exemplo).

Em hipótese tal, o manejo de um processo autônomo, com os plei-tos de antecipação ou urgência necessários e possibilidade de discussão mais ampla e instrução mais dilargada, mostra melhor molde à hipótese fática tão complexa. Nesse caso, haveria uma demanda específica para retratar, provar e responsabilizar os atos de atentado, sem descurar das medidas de urgência para sua cessação. Terceiros poderiam habilitar--se como interessados na demanda para o acertamento de seus danos. A participação se daria de modo mais pleno e efetivo que numa ação cautelar interpartes ou que na simples menção do fato no processo prin-cipal. E o postulado de Responsabilidade Civil, de responsabilização na medida da extensão do dano– art. 944, Código Civil (BRASIL, 2002) –, seria privilegiado por meio de uma instrução plenária, com participação ampla e diferenciados meios de prova.

Demonstra-se, pois, que a opção legislativa de prever o atentado pro-cessual como cláusula aberta privilegia a possibilidade de seu reconhe-cimento por várias formas possíveis e permitidas pela legislação pro-cessual, denotando-se, assim, campo fértil para aplicação do princípio do aproveitamento de meios no Processo Civil.

Não há caminho unívoco e exclusivo para denúncia e apreciação de atos de atentado. E a extinção de previsão legislativa de demanda espe-cífica não deixou o sistema sem possibilidades, ao contrário. Novas for-mas de debate são possíveis para as ocorrências de atentado, com base no aproveitamento de meios, e iluminadas pelos vetores de adequação e flexibilidade procedimental.

Em resposta aos questionamentos outrora lançados na busca de um mais elaborado exame da questão, tem-se que o dever de não come-ter atentado é comportamento processual exigível e vigente. Para sua obediência, cumprimento e reparação, o princípio da fungibilidade e as técnicas de flexibilização procedimental são guias e apresentam fer-ramentas, formas instrumentais de pleitear. O uso dessas formas será justificado argumentativamente e de acordo com os direitos materiais

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violados, cuja tutela se persegue, além das circunstâncias fáticas envol-vidas na hipótese. Destaca-se que são viáveis e possíveis, pois, tanto a cautelar autônoma incidental, como o peticionamento nos autos princi-pais, e ainda o ajuizamento de ação própria, de cunho ordinário, e com pleitos de urgência ou antecipatórios. Atendendo às especificidades que se desenharem no plano fático, o princípio do aproveitamento de meios abona a adoção de qualquer uma das técnicas instrumentais de aciona-mento da jurisdição.

5. CONCLUSÃO

Ofende a boa ordem do processo judicial e o espírito de decoro e boa-fé que deve nortear o litigante em juízo aquele que pratica atentado processual. Inovar em estado de fato sobre objeto ou direito litigioso, de forma antijurídica, é conduta que merece reprimenda. O instituto do atentado foi aposto taxativamente pelo Código de Processo Civil de 2015 como dever de conduta das partes e intervenientes no processo. Trata-se de um mandamento negativo, de abstenção, que visa tutelar o estado de coisas da lide pendente; é, pois, instituto do campo do Direito Processual. A ocorrência de atentado deve ensejar ordem judicial que venha ensejar restabelecimento do estado anterior e determinação de punição por ato de improbidade processual, nomeadamente, ato aten-tatório à dignidade da justiça. Por isso, o atentado, hoje, amolda-se ao conceito de contempt of court.

Como disposto em cláusula aberta no novo Código de Processo, a configuração do atentado e sua denúncia no processo judicial passa in-duvidosamente por um processo de construção, fundado em argumen-tação sensível e produção de prova específica para analisar se a con-duta perpetrada pode ou não ser considerada atentado. A sindicância procedimental do atentado deve ser prévia à punição e deve preceder procedimento apropriado – ainda que de natureza sumarizada –, suge-rindo-se medida cautelar, mantendo-se tradição das legislações codifi-cadas anteriores.

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Com o fim das cautelares típicas, objetiva-se que o princípio do apro-veitamento de meios, plasmado pela ideia de flexibilização e adaptabi-lidade, possa apontar caminho para o modus operandi de denunciar, co-nhecer de questões, produzir provas, reparar danos e reprimir condutas de atentado processual.

Entende-se ser possível o ajuizamento de medida cautelar autônoma – malgrado não tipificada em Lei, mas viável pelo uso e compreendi-da dentre os meios dispostos pelo sistema jurídico –para o desiderato perseguido. A ação autônoma, de natureza cautelar urgente, com eficá-cia mandamental e condenatória, correria de forma incidente ao feito principal. O procedimento principal ficaria, assim, resguardado de dis-cussões diversas de sua causa de pedir e teses a analisar, sem maiores dilações. E haveria meio procedimental específico, elaborado com fim adequado a analisar unicamente a prática do atentado com discussão e instrução restrita, ganhando ambos os feitos – o principal e o cautelar relacionado – em organização e efetividade.

Objetiva-se ainda que, a depender do suporte fático da hipótese ver-sada, o atentado poderá ser conhecido, denunciado e enfrentado ainda de outras maneiras. Com o fim da “ação própria” prevista na legislação anterior, e presente cláusula aberta para assentar o tema na Lei Proces-sual vigente, o sistema ganha abertura, o que permite erigir possibilida-des juridicamente viáveis para análise da existência ou não de atentado.

Em questões simples, em que o objeto ou direito litigioso sofreu dano menos intenso, de baixa complexidade ou de simples evidenciação, a cautelar autônoma será substituída com vantagem pelo peticionamento com pleito específico nos autos da ação principal, cujo equilíbrio de forças foi maculado pelo atentado.

Em contrapartida, ocorrerão hipóteses sobremaneira complexas, cuja especificidade escapará à análise no feito principal e mesmo às possi-bilidades oferecidas pela demanda cautelar autônoma. Casos em que o atentado gera danos não somente inter-partes, mas para terceiros ou ofender outras searas de responsabilização – como o caso em que o atentado configure também uma infração penal – podem, dependendo de circunstâncias especiais, ter de ser tratados de modo mais lato e cui-

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dadoso, o que somente pode ser propiciado por ação própria, de rito or-dinário, pelo procedimento comum, com possibilidade de antecipar-se efeitos da tutela jurisdicional.

A conclusão é que o princípio do aproveitamento de meios tem am-plo espectro de utilização no tema estudado. A atendibilidade ao caso concreto, a possibilidade de flexibilização procedimental e a análise da tutela adequada que clama o direito material ofendido são aspectos es-senciais ao se considerar o tratamento processual da cláusula aberta prevista no art. 77, VI, do Código de Processo Civil, com vistas à repa-ração de atos de atentado e à promoção dos institutos da boa-fé objetiva e da lealdade processual.

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Recebido em: 28/06/2021Aprovado em: 05/07/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p51

O CONTRATO DE RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL NA JURISPRUDÊNCIA CATARINENSE

CONSIGNABLE MARGIN RESERVE CONTRACT IN THE STATE OF SANTA CATARINA’S JURISPRUDENCE

Leandro Ernani Freitag1

Resumo: O presente trabalho trata sobre o tema do contrato de reserva de margem consignável e sua recepção na jurisprudência catarinense. Primeiramente, é analisada a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, e quais as principais consequ-ências de tal incidência, notadamente ante o caráter protetivo da legis-lação consumerista como expressão da eficácia diagonal dos direitos fundamentais, e em especial no que pertine à inversão do ônus da prova. Apresentam-se os conceitos de empréstimo consignado e de reserva de margem consignável, diferenciando-os com a indicação da lei e de regulamento aplicável a esta última modalidade. Com isso, objetiva-se situar o tema e possibilitar a compreensão sobre as possíveis irregulari-dades atinentes à mencionada espécie contratual, com ênfase nos prin-cipais vícios que são comumente arguidos pelos contratantes em ações judiciais que debatem acerca da reserva de margem consignável. Após, analisam-se julgados sobre o contrato em questão, no âmbito das Tur-mas Recursais de Santa Catarina e do Tribunal de Justiça catarinense, separadamente, com o intuito de apresentar os atuais entendimentos do-minantes em tais órgãos, sobre sua higidez e validade, ou abusividade e, neste último caso, quais as consequências determinadas pelo órgão julgador decorrentes do reconhecimento da nulidade da avença, bem

1. Juiz de Direito da Vara Única da Comarca de Catanduvas/SC. Especialis-ta em: Direito Constitucional (Uniderp); Direito Público e Privado: Material e Processual (Unoesc/Esmesc); Direito Penal e Processual Penal (UGF); Di-reito Civil (UGF); Direito Administrativo (UGF); Direito Tributário (AVM); Direito Processual Civil (Unyleya); Direito e Gestão Judiciária (Academia Judicial/TJSC). E-mail: [email protected].

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como quais os fundamentos utilizados pelos julgadores como razão de decidir.

Palavras-chave: Contrato bancário. Reserva de margem consignável. Legalidade. Abusividade.

Abstract: The present work deals with the topic of the consignable margin reserve contract, and its reception in the jurisprudence of Santa Catarina. Firstly, it is analyzed the applicability of the Consumer Pro-tection Code to financial institutions, and which are the main conse-quences of such incidence notably in view of the protective nature of consumer legislation as an expression of the diagonal effectiveness of fundamental rights, and in particular regarding the inversion of the bur-den of proof. There are presented the concepts of consignable loan and of consignable margin reserve, differentiating them, with the indication of the law and regulation applicable to the latter modality. With that, it is aimed to situate the topic and make possible the comprehension about the possible irregularities regarding the aforementioned contrac-tual species, with an emphasis on the main flaws that are commonly alleged by contracting parties in lawsuits that discuss the consignable margin reserve. After that, judgments are analyzed on the contract in question, within the scope of the Santa Catarina Appeals Panels and the Santa Catarina Court of Justice, separately, with the goal of presenting the current prevailing understandings in such bodies, about its veracity and validity, or abusiveness; and, in the latter case, which are the con-sequences determined by the judging body arising from the recognition of the nullity of the agreement, as well as what are the grounds used by the judges as a reason to decide.

Keywords: Bank contract. Consignable margin reserve. Legality. Abu-siveness.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo destina-se a analisar a atual visão da jurisprudên-cia catarinense acerca da validade do contrato de reserva de margem consignável (RMC). A pesquisa se justifica pela existência de um alto número de ações judiciais questionando a validade do contrato, sob a alegação da ocorrência de diversos vícios contratuais – ocasionando,

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em um expressivo número de casos, não somente a nulidade do pacto e o retorno das partes ao estado anterior, mas também a condenação da instituição financeira ao pagamento de indenização por danos morais, bem como repetição em dobro do valor por ela anteriormente cobrado.

Assim, o estudo ora apresentado procura responder às seguintes in-dagações: é válido o contrato de reserva de margem consignável? Em caso negativo, que condições são determinantes para o reconhecimento de sua nulidade e quais as consequências que resultam desse entendi-mento?

Para os fins do presente texto, inicialmente, analisam-se as principais características do Código de Defesa do Consumidor (CDC) no sistema jurídico pátrio, e sua aplicabilidade às instituições financeiras, inclusive quanto à inversão do ônus probatório, circunstância que pode impactar diretamente no resultado das ações judiciais sobre o contrato em des-linde.

O capítulo seguinte destina-se ao exame das espécies contratuais de empréstimo consignado e reserva de margem consignável para estabe-lecer suas diferenças e semelhanças, bem como à indicação da legisla-ção que rege tal modalidade contratual.

Na sequência, são estudados os vícios que geralmente são alegados pelos contratantes ao judicialmente pleitearem a nulidade do contrato como erro, dolo, onerosidade excessiva, falta de informações adequadas e ausência de plena compreensão do teor do contrato pelo consumidor.

Por fim, é feito um apanhado dos julgados das Turmas Recursais e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que versam sobre o contrato de reserva de margem consignável, verificando-se a presença de decisões em sentido antagônico e analisando-se as bases de suas fundamenta-ções.

A pesquisa far-se-á pela forma qualitativa, utilizando-se análise e in-terpretação de dados e de fontes bibliográficas, além de pesquisa juris-prudencial, com o objetivo de compreender a questão posta e apresentar uma solução para o problema. O método pelo qual se desenvolve a pesquisa é o dialético, de modo que são expostas e debatidas as argu-

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mentações e contra-argumentações a respeito da questão, a fim de se atingir uma síntese do assunto.

2. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), editado em cumprimento a mandamento constitucional (art. 5°, XXXII, e art. 170, V, da Constituição Federal de 1988, e art. 48 de suas Disposições Tran-sitórias), enfeixa uma série de dispositivos de índole protetiva ao con-sumidor, o qual é compreendido como parte mais vulnerável na relação consumerista, a merecer especial proteção do ordenamento jurídico.

Assim, por exemplo, o direito à informação adequada e clara (art. 6º, III), a proteção contra publicidade enganosa e abusiva (art. 6º, IV), a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII; art. 12, § 3º; art. 14, § 3º; art. 38), a proibição de cláusulas abusivas (art. 51), a viabilidade de tutela jurisdicional individual ou coletiva (art. 81), en-tre outros, são marcas características do sistema consumerista, que de-monstram a preocupação do legislador atinente à efetiva proteção e ao amparo do consumidor.

Tais expressões demonstram o que parte da doutrina denomina de eficácia diagonal dos direitos fundamentais: além da eficácia vertical (aplicável nas relações entre Estado e cidadão) e da eficácia horizontal (incidente nos relacionamentos entre particulares), a eficácia diagonal implica existência de relações entre particulares, marcada pela peculia-ridade de existência de um desnível de forças, uma acentuada vulnera-bilidade de uma das partes pela subordinação ou desigualdade de poder, típicas, exempli gratia, das relações de consumo e laborais (PRAZE-RES, 2019, p. 226). Nessa tessitura, não é apenas natural, mas necessá-rio que o sistema jurídico ofereça meios protetivos da parte mais débil, com o desiderato de equilibrar a relação travada e possibilitar a solução de eventuais imbróglios da forma mais adequada possível.

Após o CDC entrar em vigor, as instituições tentaram subtrair as re-lações travadas com seus clientes do âmbito de sua aplicação – tese que

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há muito foi rejeitada, entendendo-se pela aplicabilidade do diploma consumerista, seja pela literalidade do art. 3º, § 2º, do CDC, que ex-pressamente menciona serviços de natureza bancária, seja porque o Có-digo, norma de ordem pública e natureza cogente, aplica-se a todas as relações de consumo, “[...] mesmo quando a atividade tenha legislação específica, como ocorre com a incorporação, o parcelamento do solo, o contrato bancário, pois em todas elas, guardadas as peculiaridades de cada caso, incidem os princípios do CDC sobre abusividade, boa-fé, di-reito de informação etc”. (STJ, REsp 106.888/PR, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Segunda Seção, j. em 28/3/2001, DJ 5/8/2002, p. 196). O entendimento culminou com a edição do enunciado 297 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, verbatim: “O Código de Defesa do Con-sumidor é aplicável às instituições financeiras”, de modo a pacificar a questão em definitivo.

Consequentemente, às avenças de natureza bancária, tem incidência o específico regime protetivo ao consumidor, merecendo destaque, em meio a várias outras, no concernente à espécie contratual analisada no presente texto, além da já mencionada inversão do ônus probatório, as disposições sobre: interpretação contratual mais favorável ao consumi-dor (art. 47, CDC); forma do contrato de adesão (art. 54, CDC); vedação de aproveitamento da fraqueza ou ignorância do consumidor, conforme sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços, e de exigência de vantagem manifestamente excessiva (art. 39, IV e V, do CDC).

Não obstante, a inversão do ônus da prova com base no diploma con-sumerista não exime o consumidor de comprovar os fatos constitutivos do direito invocado ou, ao menos, início de prova apta a roborar suas alegações – inclusive para evitar a transferência ao fornecedor de ônus intransponível, id est, de prova impossível de ser por ele produzida. Nessa trilha: “Ainda que haja a inversão do ônus da prova em decor-rência da hipossuficiência do consumidor, isso não exime o autor de trazer aos autos provas dos fatos constitutivos de seu direito ou, ao me-nos, inícios de prova para comprovar suas alegações” (TJSC, Apelação

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Cível n. 0016929-87.2011.8.24.0064, de São José. Rel. Des. Fernando Carioni, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 5-11-2019).

De outra mão, tem-se entendido que, se o banco alega que os descon-tos foram efetuados em função de contrato regularmente pactuado, a ele incumbe comprovar sua alegação, exibindo o instrumento contratual respectivo – o que, de fato, independe da inversão do ônus probatório e decorre da aplicação da regra geral prevista no art. 373, II, do CPC, pois, de acordo com a regra geral, quem faz uma afirmação deve prová--la; conforme tradicional parêmia, “alegar e não provar é o mesmo que não alegar” (allegarenihil et allegatum non probare paria sunt). Não o fazendo, não terá se desincumbindo do ônus, que conforme a lei lhe cabia, de comprovar a existência de fato impeditivo do alegado direito do autor.

3. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO E RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL

O empréstimo consignado consiste na possibilidade de o interessado adquirir financiamento em instituição financeira, a ser quitado por meio de desconto do respectivo valor das parcelas diretamente pelo empre-gador – ou pelo órgão previdenciário, no caso dos aposentados e pen-sionistas. O desconto, nessa sistemática, é efetuado no momento do re-cebimento da verba salarial ou do benefício previdenciário, implicando, na prática, na sua retenção, de modo a inviabilizar que o consumidor tenha acesso ao valor da parcela.

Há vantagens para o consumidor e para a instituição financeira: para esta, a atenuação do risco de inadimplência, já que o valor da parcela, como dito, já é descontado quando o cliente aufere sua verba salarial ou previdenciária; para aquele, quanto aos juros, que costumam ser con-sideravelmente menores que os praticados em mútuos que não seguem tal modalidade, o que se justifica pela citada minimização da possibili-dade de inadimplência (POMODORO, 2019, p. 12). Além disso, ambos (banco e cliente) já sabem, na contratação, qual o valor disponibilizado e o número fixo de parcelas.

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Já a reserva de margem consignável nada mais é que o limite reser-vado no valor da renda mensal do benefício, destinado exclusivamente para uso no cartão de crédito. Nessa modalidade, o crédito é limitado e emprestado para pagamento da fatura mensal do cartão, com os gastos que se acumulam mensalmente pelo uso; ao final do período mensal, é descontado do contracheque do contratante ou de seu benefício previ-denciário tão somente a parcela mínima para pagamento. Ou seja, o va-lor restante, que não é descontado, deve ser pago pelo cliente, por meio da fatura que é enviada à sua residência ou disponibilizada em portal eletrônico da instituição financeira.

A forma em questão torna inviável conhecer previamente o valor fi-nanciado e o número de parcelas no momento da pactuação, o que de-pende de ação futura do consumidor, a variar, pois, conforme o uso do cartão e o pagamento das faturas mensais. Assim, o banco tem a certeza apenas do pagamento da parcela mínima, razão pela qual os encargos são maiores do que aqueles praticados no empréstimo consignado.

As modalidades foram alvo de diversas alterações legislativas ao longo do tempo (inclusive por medidas provisórias). Dispõe a Lei n. 10.820/2003, quantos aos aposentados e pensionistas:

Art. 6º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS a proceder aos descontos refe-ridos no art. 1º e autorizar, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS. [...]§ 5º Os descontos e as retenções mencionados no caput não poderão ultrapassar o limite de 35% (trinta e cinco por cento) do valor dos benefícios, sendo 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente para:I - a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de cré-dito; ou

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II - a utilização com a finalidade de saque por meio do cartão de crédito (BRASIL, 2003).

Idêntica trilha segue o regulamento (Instrução Normativa INSS n. 28/2008), cujo art. 3º prevê que, no momento da contratação, os des-contos não poderão exceder ao limite de 35% do valor da renda mensal do benefício, sendo 30% para operações de empréstimo pessoal e 5% para operações de cartão de crédito.

Tais dispositivos, contudo, têm eficácia suspensa temporariamen-te; nos termos do determinado pela Lei n. 14.131/2021, convertida da Medida Provisória n. 1.006/2020, até 31 de dezembro de 2021, o percentual máximo de consignação será de 40% (quarenta por cento), dos quais 5% (cinco por cento) ficam reservados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito. A Ins-trução Normativa INSS n. 14/2021 regulamenta, na mesma senda. Tal aumento “moderado e temporário” do limite do crédito “[...] representa opção mais vantajosa para lidar com a contração no mercado de crédito por ser a que representa menores riscos para as instituições financeiras e a que menos onera os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social - RGPS” (BRASIL, 2020) e, conforme constou na ementa da mencionada medida provisória, fundamenta-se nos impactos econômi-cos advindos da pandemia da Covid-19.

4. RMC E VÍCIOS CONTRATUAIS

Geralmente, em ações judiciais que discutem sobre o contrato de RMC, o consumidor não impugna a veracidade do pacto ou sua assina-tura nele aposta. A insurgência se volta contra o conteúdo – no mais das vezes argumentando existência de vícios como dolo, erro, informação inadequada, abusividade e venda casada.

Sobre o primeiro, ensina a doutrina que “dolo é o artifício ou expe-diente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato que o prejudica, e aproveita ao autor do dolo ou a terceiro. Consiste em sugestões ou manobras maliciosamente levadas a efeito por uma parte,

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a fim de conseguir da outra uma emissão de vontade que lhe traga pro-veito, ou a terceiro” (GONÇALVES, 2018, p. 414-415). Aqui, há uma ação de um dos contratantes, para obter uma vantagem, em detrimento do outro contratante, ludibriado.

Já o erro “é um engano fático, uma falsa noção, em relação a uma pessoa, ao objeto do negócio ou a um direito, que acomete a vonta-de de uma das partes que celebrou o negócio jurídico” (TARTUCE, 2020, n.p.). A teor do art. 138 do Código Civil, o erro torna o negócio anulável, desde que o erro seja substancial, isto é, possa ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias em que o negócio foi celebrado.

Quanto a esses dois vícios, muito embora frequentemente alegados, o reconhecimento é, entende-se, problemático, já que geralmente ine-xistem testemunhas que presenciaram o contrato sendo firmado, de sor-te que apenas o consumidor e o preposto da instituição financeira é que tiveram ciência direta da pactuação quando de sua formação. Em virtude disso, há, a respeito, no mais das vezes, tão somente a alegação do contratante, tanto acerca do dolo do banco quanto do erro dele pró-prio – sendo mister recordar a alhures mencionada impossibilidade de inversão do ônus da prova em desfavor do fornecedor, quando resulta em ônus impossível de ser vencido (prova diabólica).

Nesse tema, comumente se alega a condição particular do consumi-dor, notadamente quanto à idade, condições psicológicas, necessidade financeira e pouca instrução, como fatores que seriam capazes de de-monstrar tanto o ardil e o dolo por parte da financeira quanto o erro por parte do contratante. O problema, contudo, é que não há prova concreta do erro ou do dolo; sua existência, regra geral, deve ser aferida do con-junto de indícios e circunstâncias, o que impede o uso da mesma medi-da e de idêntica resposta para todos os casos postos a Juízo, tornando a análise necessariamente casuística.

De toda sorte, justamente para salvaguardar os direitos dos consumi-dores que buscam tal negócio jurídico é que o regulamento exige uma série de formalidades para a validade da avença. A respeito, dispõe a Instrução Normativa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) n.

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28/2008, em seu art. 3º, III, que a autorização deve ser dada “[...] de for-ma expressa, por escrito ou por meio eletrônico e em caráter irrevogá-vel e irretratável, não sendo aceita autorização dada por telefone e nem a gravação de voz reconhecida como meio de prova de ocorrência”.

Ainda, tangenciando o ponto, para garantia do cumprimento do ade-quado dever de informação, prevê a mesma normativa, em seu art. 21, que é preciso dar ciência ao consumidor, no mínimo, dos seguintes elementos: valor total com e sem juros; taxa efetiva mensal e anual de juros; todos os acréscimos remuneratórios, moratórios e tributários que eventualmente incidam sobre o valor do crédito contratado; valor, número e periodicidade das prestações; soma total a pagar com o em-préstimo pessoal ou o limite máximo previsto para cartão de crédito; data do início e fim do desconto; valor da comissão paga aos terceiriza-dos contratados pelas instituições financeiras para a operacionalização da venda do crédito, quando não for efetuado por sua própria rede; o número do cadastro nacional de pessoas jurídicas (CNPJ) da agência bancária que realizou a contratação quando realizado na própria rede, ou CNPJ do correspondente bancário e o número do cadastro de pes-soas físicas (CPF) do agente subcontratado pelo anterior, acrescido de endereço e telefone.

Além disso, a atual redação da normativa citada, no dispositivo sub-sequente, exige que o contrato seja acompanhado de “termo de consen-timento esclarecido”. In verbis:

Art. 21-A. Sem prejuízo das informações do art. 21, nas autoriza-ções de descontos decorrentes da celebração de contratos de Cartão de Crédito com Reserva de Margem Consignável, o contrato firma-do entre o beneficiário do INSS e a instituição consignatária deverá, obrigatoriamente, nos termos da decisão homologatória de acordo firmado na Ação Civil Pública nº 0106890-28.2015.4.01.3700, ser acompanhado de Termo de Consentimento Esclarecido - TCE, que constará de página única, reservada exclusivamente para tal docu-mento, constituindo-se instrumento apartado de outros que forma-lizem a contratação do Cartão de Crédito Consignado, e conterá, necessariamente:

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I – expressão “TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO DO CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO”, inserida na parte superior do documento e com fonte em tamanho quatorze;II – abaixo da expressão referida no inciso I do caput, em fonte com tamanho onze, o texto: “Em cumprimento à sentença judicial profe-rida nos autos da Ação Civil Pública nº 106890-28.2015.4.01.3700, 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Luís/MA, proposta pela Defensoria Pública da União”;III – nome completo, CPF e número do beneficio do cliente;IV – logomarca da instituição financeira;VI – necessariamente como última informação do documento, es-paço para preenchimento de local, data e assinatura do cliente;VII – as seguintes inscrições, todas registradas em fonte com tama-nho doze e na ordem aqui apresentada:a) Contratei um Cartão de Crédito Consignado; b) Fui informado que a realização de saque mediante a utilização do meu limite do Cartão de Crédito Consignado ensejará a incidên-cia de encargos e que o valor do saque, acrescido destes encargos, constará na minha próxima fatura do cartão; c) A diferença entre o valor pago mediante consignação (desconto realizado diretamente na remuneração/benefício) e o total da fatura poderá ser paga por meio da minha fatura mensal, o que é recomen-dado pelo (nome da instituição financeira), já que, caso a fatura não seja integralmente paga até a data de vencimento, incidirão encar-gos sobre o valor devido, conforme previsto na fatura; d) Declaro ainda saber que existem outras modalidades de crédito, a exemplo do empréstimo consignado, que possuem juros mensais em percentuais menores;e) Estou ciente de que a taxa de juros do cartão de crédito consig-nado é inferior à taxa de juros do cartão de crédito convencional;f) Sendo utilizado o limite parcial ou total de meu cartão de crédito, para saques ou compras, em uma única transação, o saldo devedor do cartão será liquidado ao final de até (número de meses), contados a partir da data do primeiro desconto em folha, desde que:1. eu não realize outras transações de qualquer natureza, durante todo o período de amortização projetado a partir da última utiliza-ção; 2. não ocorra a redução/perda da minha margem consignável de cartão;3. os descontos através da consignação ocorram mensalmente, sem interrupção até o total da dívida;

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4. eu não realize qualquer pagamento espontâneo via fatura; e5. não haja alteração da taxa dos juros remuneratórios; g) Para tirar dúvidas acerca do contrato ora firmado, inclusive so-bre informações presentes neste Termo de Consentimento, o cliente poderá entrar em contato gratuitamente com o (nome da instituição financeira) através do Serviço de Atendimento ao Consumidor - SAC (identificar número telefônico) e de sua Ouvidoria (identificar número telefônico) (BRASIL, 2008).

Como se vê, exige-se termo com inúmeros detalhes especificamente declarados no documento, merecendo destaque a alínea “d” do inciso VII do art. 21-A, que prevê a inserção de frase atinente à ciência de que existem outras modalidades de crédito em que incidem juros menores (como o anteriormente indicado empréstimo consignado). Tais especi-ficações, que explicam o pacto em suas minúcias, são absolutamente suficientes para que a instituição financeira cumpra o dever legal de informação.

No tocante à abusividade, a tese é a de que, justamente por existirem outras modalidades negociais em que os juros do empréstimo são me-nores, estaria a instituição financeira atuando em descompasso com os deveres legais, ao deixar de oferecer ao cliente a opção que lhe é mais vantajosa.

Nesse tópico, há que se anotar que o contrato de RMC não é idêntico ao de empréstimo consignado; embora em ambas o banco disponibilize valor ao devedor, somente neste a instituição tem garantia do pagamen-to do valor integral. Lado outro, naquele, a garantia é relativa somente ao valor mínimo mensal, de modo que incumbe ao consumidor efetuar o pagamento do valor restante, que consta na fatura. Tal fato, aliado à existência da concessão do cartão de crédito, justifica a incidência de juros maiores no contrato de RMC – que, mesmo assim, costumam ser menores que os juros afetos aos cartões de crédito convencionais.

Demais disso, há casos em que o consumidor já tem comprometida a parcela disponível de sua renda para empréstimo consignado (30%), mas a lei ainda lhe disponibiliza outra porcentagem para ajuste quanto à RMC (5%). Nessa hipótese, a tese é derruída de modo ainda mais

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contundente, já que (a) a lei veda a realização de empréstimo consig-nado, pois o limite máximo já foi atingido; (b) ao mesmo tempo, a lei permite a contratação de RMC; (c) os pactos livremente efetuados pelas partes, em obediência ao sistema normativo vigente, devem ser cum-pridos (pacta sunt servanda). Em arremate, o termo de consentimento esclarecido supracitado serve também para esclarecer ao consumidor essa circunstância, isto é, existência de juros menores em outros tipos de empréstimo, como exposto anteriormente.

Também por razão já mencionada – expressa previsão legal –, enten-de-se inviável o argumento de que ocorre venda casada. Fosse o caso, estar-se-ia entendendo que uma lei (Código de Defesa do Consumidor) é superior a outra (Lei n. 10.820/2003). Ocorre que ambas estão em idêntico patamar, inexistindo, entre ambas, superioridade hierárquica. Além disso, inviável também o uso do critério cronológico para se con-siderar aplicação do CDC em detrimento da Lei n. 10.820/2003, já que a segunda é posterior. Na verdade, não há conflito normativo, mas mero conflito aparente, por uma razão mui singela: é impossível interpretar que um determinado negócio jurídico é ilegal, se há lei especial que expressamente o admita e regulamenta. A única forma de afastá-lo seria declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n. 10.820/2003, ponto que sequer costuma ser agitado.

Em suma, se o negócio jurídico firmado não se revelou vantajoso à parte autora, gerando arrependimento posterior ao uso dos recursos financiados, trata-se, tão somente, de questão inerente ao mercado de consumo, não havendo como atribuir ao banco seu descontentamento em relação aos termos da avença celebrada – desde que, por óbvio, te-nham sido rigorosamente obedecidos os ditames das outrora indicadas normativas de regência.

5. RMC NOS JULGADOS DAS TURMAS RECURSAIS DE SANTA CATARINA

No âmbito das Turmas Recursais catarinenses, o tema em liça foi submetido à Turma de Uniformização dos Recursos Cíveis e Criminais

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e Fazenda Pública do TJSC, tendo sido firmado o entendimento de que a contratação de cartão de crédito consignado com autorização para desconto em benefício previdenciário é válida, desde que obedecidos os requisitos legalmente exigidos e de que inexiste dano moral presumível em caso de sua inobservância. Cita-se a íntegra da elucidativa ementa, que transcreve, ao final, os enunciados resultantes do julgamento:

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES C/C INDENI-ZAÇÃO POR DANO MORAL. RMC - RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL. EMPRÉSTIMO POR MEIO DE SAQUE VIA CARTÃO DE CRÉDITO. PRETENSÃO DE DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DA CONTRATAÇÃO DO EMPRÉSTIMO VIA CARTÃO DE CRÉDITO COM RESERVA DE MARGEM CON-SIGNÁVEL, RESTITUIÇÃO EM DOBRO DOS DESCONTOS REALIZADOS E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SEN-TENÇA DE PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. RECURSO DA PAR-TE REQUERIDA. ACÓRDÃO PROVIDO EM PARTE PARA EX-CLUSÃO DA RESTITUIÇÃO EM DOBRO E DANOS MORAIS. PREVISÃO LEGAL E REGULAMENTAR DA RMC. MEDIDA PROVISÓRIA 681/2015, CONVERTIDA NA LEI N. 13.172/2015 ALTERANDO DISPOSITIVOS DA LEI 10.820/2003. CONTRA-TAÇÃO QUE VEIO A SER COMPROVADA PELA INSTITUI-ÇÃO FINANCEIRA. VALORES LIBERADOS EM FAVOR DAS PARTES CONTRATANTES, ESTAS QUE ADERIRAM LIVRE E CONSCIENTEMENTE AOS CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO CONSIGNADO, POR MEIO DE SAQUES VIA CARTÃO DE CRÉDITO. VALIDADE AMPARADA POR LEGISLAÇÃO E RE-GULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA. IMPOSSIBILIDADE DE SE AVENTAR ILEGALIDADES NAS CONTRATAÇÕES. INEXIS-TÊNCIA DE IMPUGNAÇÕES DAS ASSINATURAS E, TAM-BÉM, DE VÍCIOS A MACULAREM AS MANIFESTAÇÕES DE VONTADES EXTERNADAS NA ACEITAÇÃO DOS TERMOS DOS CONTRATOS. INEXISTÊNCIA DE NULIDADES. POR CONSEQUÊNCIA, NÃO CABE TAMBÉM A CONVERSÃO DO CONTRATO EM EMPRÉSTIMO CONSIGNADO, VEZ QUE TAL MODALIDADE DE CRÉDITO ESTÁ AMPARADA EM LEI. INVIÁVEL, NO MAIS, READEQUAÇÃO DOS TERMOS DOS CONTRATOS, POSTO QUE AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS NÃO INCORRERAM EM QUALQUER PRÁTICA QUE CA-

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RACTERIZE VANTAGEM EXCESSIVA OU ABUSIVA, CAPAZ DE SUBMETEREM OS CONSUMIDORES A SITUAÇÃO DE DESVANTAGEM EXAGERADA OU DE ENCERRAR ILEGA-LIDADE. POR VIA DE CONSEQUÊNCIA, INEXISTE ABALO ANÍMICO INDENIZÁVEL. DIVERGÊNCIA RECONHECIDA - INTERPRETAÇÃO UNIFORMIZADA PARA ATESTAR A LE-GALIDADE DOS CONTRATOS DE CRÉDITO CONSIGNADO COM RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL - RMC. DANO MORAL INEXISTENTE. EDIÇÃO DE ENUNCIADOS PARA ORIENTAÇÃO DO SISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS, NA FORMA DO ART.66J, §4º DO REGIMENTO INTERNO DAS TURMAS DE RECURSOS DO SISTEMA DOS JUIZADOS ES-PECIAIS DO ESTADO DE SANTA CATARINA COM AS SE-GUINTES REDAÇÕES: “XIII - O Juizado Especial é compe-tente para discussão dos contratos que tratam da reserva de margem consignável na Lei n.10.820/2003.” “XIV - Observados os termos da Lei n.10.820/03 a da Instrução Normativa n.28/2008-INSS, é válido o contrato de cartão de crédito consignado com autorização para desconto em benefício previdenciário, não havendo dano moral presumível no caso de sua contratação com inobservância daquelas regras.” (TJSC, Pedido de Unifor-mização de Interpretação de Lei n. 0000027-49.2018.8.24.9009, de Sexta Turma de Recursos - Lages, rel. Des. Edison Zimmer, Turma de Uniformização, j. 21/10/2018, grifo nosso).

Como pontos de destaque, colhe-se do julgado acima: (a) a validade do contrato de RMC, desde que obedecidas as normativas aplicáveis à espécie e se inexistentes vícios no pacto, do que decorre (b) a impos-sibilidade de convolar o negócio em empréstimo consignado e (c) a inexistência de dano moral, além de ser assentada (d) a competência do Juizado Especial para julgamento de causas afetas a tal objeto, quando o autor opta pela tramitação pelo rito sumaríssimo. Desse modo, em suma, o entendimento consolidado no âmbito das Turmas Recursais é pelo reconhecimento da validade da contratação da RMC, quando au-sente prova do vício e se obedecidos os pressupostos legais aplicáveis à espécie.

Por outro lado, verificam-se em seus julgados casos em que o banco, ao responder à ação, não exibiu o instrumento contratual respectivo,

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mesmo tendo afirmado sua existência. Tem-se entendido, então, que não comprovou o banco suas alegações no sentido de que houve re-gular pactuação entre as partes, não se desincumbindo do ônus que a lei processual civil lhe atribui (art. 373, II, CPC). Nessas hipóteses, a maioria dos julgados condena a instituição financeira ao pagamento de danos morais e determina repetição em dobro do valor do financia-mento (seguindo nesse sentido, exemplificativamente: Recurso Inomi-nado n. 0308863-31.2017.8.24.0033, de Itajaí, rel. Marco Aurélio Ghisi Machado, Segunda Turma Recursal, j. 27-10-2020; Recurso Inominado n. 0324202-83.2015.8.24.0038, de Joinville, rel. Alexandre Morais da Rosa, Terceira Turma Recursal, j. 23-09-2020; Recurso Inominado n. 0311566-02.2018.8.24.0064, de São José, rel. Antonio Augusto Baggio e Ubaldo, Terceira Turma Recursal, j. 16-09-2020), havendo, ao que se pesquisou, poucos julgados que, ante tal panorama, negam a indeniza-ção pelo abalo moral e determinam repetição na forma simples (como é o caso do Recurso Inominado n. 0300632-66.2017.8.24.0113, de Cam-boriú, rel. Ana Karina Arruda Anzanello, Segunda Turma Recursal, j. 27-10-2020).

Além disso, em pesquisa aos julgados das Turmas Recursais, vê-se que foram inadmitidos pedidos de uniformização de interpretação de lei ante a existência de situações fáticas distintas (por exemplo: Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei n. 0000007-53.2021.8.24.9009, de Turmas Recursais, rel. Vitoraldo Bridi, Turma de Uniformização, j. 08-03-2021; Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei n. 0000057-16.2020.8.24.9009, de Itajaí, rel. Vitoraldo Bridi, Turma de Uniformização, j. 08-03-2021; Pedido de Uniformização de Interpre-tação de Lei n. 0000016-49.2020.8.24.9009, de Itajaí, rel. Vitoraldo Bridi, Turma de Uniformização, j. 09-10-2020) – pontuando-se, então, que a ocorrência de danos morais ou do dever de restituição em dobro são aspectos que exigem análise casuística, com base na apreciação da prova, o que impede a concessão da uniformização pretendida.

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6. RMC NOS JULGADOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA

Na seara do Tribunal de Justiça catarinense, o entendimento majo-ritário é em sentido diverso do externado pelas Turmas Recursais, po-sicionando-se a corrente majoritária pela irregularidade da contratação da reserva de margem consignável por abusividade quanto aos direitos do consumidor.

Mister ressaltar que a Corte inadmitiu dois incidentes de reso-lução de demandas repetitivas (IRDR) a respeito da temática: o pri-meiro (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 0000718-27.2018.8.24.0000, da Capital, rel. Rejane Andersen, Grupo de Câmaras de Direito Comercial, j. 08-08-2018) buscava pacificar o entendimento sobre a (in)existência de dano moral em contratações de cartão de cré-dito com margem consignável, enquanto o segundo (Incidente de Re-solução de Demandas Repetitivas n. 0000507-54.2019.8.24.0000, da Capital, rel. Monteiro Rocha, Grupo de Câmaras de Direito Comercial, j. 12-06-2019) tinha por tema a própria (in)validade da contratação de cartão de crédito com margem consignável. Em ambos os casos, pon-derou-se que as questões controvertidas orbitam sobre juízo de valor a respeito da matéria fática, e não apenas da matéria jurídica, o que, conforme se decidiu, inviabiliza o uso do IRDR, pelo desatendimento ao requisito insculpido no art. 976, I, do CPC.

Via de consequência, inexiste, no Tribunal catarinense, julgado de caráter vinculante (art. 927, CPC) sobre a validade ou não da RMC. De toda sorte, o que se percebe, em consulta à jurisprudência da Corte, é que a maioria dos julgados perfilha corrente pela qual referida con-tratação é abusiva – consignando expressiva parte dos julgados que ao consumidor seria mais benéfica a contratação de empréstimo consig-nado (principalmente em razão dos juros menores, além de ser certa a duração no tempo), e que a instituição financeira tinha o dever de expor o fato ao cliente, de modo adequado e claro, dever este que se entende não demonstrado pela instituição financeira.

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Ainda, profusa quantidade das decisões reconhece ocorrência de dano moral, inclusive in reipsa; quanto à repetição dos valores, há divergência sobre a forma – havendo decisões pela repetição simples (caso da Apelação n. 5001137-42.2021.8.24.0004, do Tribunal de Jus-tiça de Santa Catarina, rel. Rodolfo Tridapalli, Quinta Câmara de Di-reito Comercial, j. 10-06-2021) ou pela repetição em dobro (hipótese da Apelação n. 5003779-59.2020.8.24.0024, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Tulio Pinheiro, Terceira Câmara de Direito Comer-cial, j. 27-05-2021), com fundamento no parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor.

Há, ainda, situações em que, como forma de preservar a existência em si da pactuação, a RMC foi convertida em empréstimo consignado (nesse sentido: Apelação n. 5000031-48.2021.8.24.0003, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Rodolfo Tridapalli, Quinta Câmara de Direito Comercial, j. 10-06-2021), igualmente porque considerado negócio mais vantajoso ao consumidor, e por se decidir, ainda, que essa era a espécie contratual à qual ele realmente tencionava aderir.

De outra mão, existem também decisões considerando improceden-tes (nessa linha: TJSC, Apelação Cível n. 0301424-39.2017.8.24.0042, de Anchieta, rel. Des. Guilherme Nunes Born, Primeira Câmara de Di-reito Comercial, j. 18/7/2019) os pedidos do consumidor, quando este, ao tempo da contratação, não poderia ter celebrado empréstimo con-signado, ante a prévia existência de outros contratos deste jaez e pela impossibilidade de ser excedido o limite de 30% da renda (v. item 3 supra), o que demonstra, segundo a tese, a certeza de que o consumidor tinha plena ciência da espécie contratual a qual estava, então, aderindo.

Outra circunstância determinante para um resultado pela rejeição dos pedidos do consumidor é a efetiva utilização do cartão de crédi-to (plástico), o que revelaria, assim, a concreta intenção deste de ade-rir à específica modalidade contratual – cartão de crédito com reserva de margem consignável –, a afastar, desse modo, as teses de vício na declaração de vontade (como exemplo: TJSC, Apelação n. 5007502-46.2020.8.24.0005, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Sérgio Izidoro Heil, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 08-06-2021).

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Alfim, há ainda, em menor número, julgados que peremptoriamente rejeitam a tese do consumidor, reconhecendo a higidez do pacto, quan-do obedecidos os requisitos legais a respeito (como pode se ver do se-guinte julgado: Apelação n. 0300857-60.2019.8.24.0002, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Zanelato, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 10-06-2021).

O estado atual da maioria da jurisprudência da Corte Barriga-Verde, contudo, como exposto supra, continua sendo pelo reconhecimento da abusividade, inclusive condenando-se o banco ao pagamento de inde-nização por dano moral e repetição em dobro do valor do financiamen-to. Inobstante, verifica-se um número crescente de julgados em sentido oposto, ou seja, pela manutenção do pacto contratual objeto do presente texto, utilizando-se de fatores como o prévio uso do limite de 30% do rendimento (que impossibilita novo empréstimo consignado, mas per-mite apenas contratação de via RMC para uso de mais 5%) ou a efetiva utilização do cartão de crédito pelo consumidor após a contratação – ou ainda a simples observância dos requisitos legais e regulamentares. Tais circunstâncias fundamentam, como visto anteriormente, decisões que reconhecem a higidez da contratação de RMC, o que pode ser um indicativo de possível guinada na jurisprudência.

7. CONCLUSÃO

O contrato de cartão de crédito com reserva de margem consignável é, indubitavelmente, uma prodigiosa fonte de onde emanam ações judi-ciais: em consulta à jurisprudência realizada via site do Tribunal cata-rinense no dia 10 de junho de 2021, com o termo de pesquisa “reserva de margem consignável”, há o retorno do expressivo número de 21.456 resultados, dos quais são 3.553 no âmbito dos Juizados Especiais e 17.903 na seara do Tribunal de Justiça. E isso apenas em segundo grau.

Destaca-se que o primeiro julgado encontrado conforme a pesqui-sa supracitada, em ordem cronológica, é do final de 2011 – ou seja, o tema ainda sequer completou a primeira década na jurisprudência cata-rinense. Tal fato demonstra uma litigiosidade extremamente expressiva

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quanto à matéria, ainda mais quando se considera que todas essas ações judiciais são relativas a apenas uma das várias espécies de contratos bancários existentes em nosso país.

A existência de mais ações no Tribunal e menos ações nos Juizados Especiais é de fácil explicação: no Juizado Especial, a parte sabe de an-temão que existe entendimento consolidado (o supratranscrito Enuncia-do XIV), que reza, se obedecidos os requisitos legais, pela regularidade da contratação – enquanto, no Tribunal, o entendimento majoritário é pelo reconhecimento da abusividade. Demais disso, no Juizado não há honorários em primeiro grau, a teor do art. 55 da Lei n. 9.099/1995. Tais fatores, aliado à relativa facilidade de concessão de gratuidade da justiça (uma vez que a maioria das pessoas que busca empréstimo via RMC não possui ganhos financeiros muito expressivos e, com isso, quase invariavelmente obtém justiça gratuita), conduzem a um número de ações pelo rito comum muito maior que pelo rito sumaríssimo do Juizado Especial.

À guisa de conclusão, da parte deste autor, e ressalvados respeitáveis entendimentos em sentido contrário, tem-se imensa dificuldade em en-xergar abusividade na contratação de RMC, por um motivo deveras sin-gelo: o contrato conta com expressa previsão legal. Como exposto alhu-res, a lei e o regulamento não apenas preveem o negócio, mas também o detalham, em suas minúcias e pormenores, exigindo, inclusive, para afastar qualquer dúvida quanto à intenção e ciência do contratante, não apenas o instrumento do contrato, mas também um termo de consenti-mento esclarecido (art. 21-A, Instrução Normativa INSS n. 28/2008).

Nessa tessitura, na existência do contrato e do termo regularmen-te assinado pelo consumidor, somente há, entende-se, duas formas2 de afastar os termos pactuados: (a) existência de efetiva prova de vício na

2. Uma terceira via para se desconsiderar a lei posta, em tese, seria pensar a pontual possibilidade de derrotabilidade (defeasibility) da regra jurídica, con-forme teoria preconizada por Herbert Hart. Contudo, a altíssima frequência dos casos impede, de forma absoluta, o uso da teoria – cuja excepcionalidade, conforme Ávila (2018, p. 139-146), é um dos requisitos.

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declaração de vontade (como, v.g., erro ou dolo); ou (b) reconhecimen-to de inconstitucionalidade da lei vigente que rege a matéria.

Quanto à primeira hipótese (prova do vício), defende-se que deve se tratar de prova concreta, a ser produzida pelo consumidor, já que impossível de ser presumida tão somente pela idade do consumidor, ou mesmo pela inversão do ônus da prova em desfavor da instituição financeira, pela impossibilidade de ser produzida – ou seja, seria para o banco uma prova diabólica.

Frise-se, por oportuno, quanto às condições pessoais do consumidor, particularmente sua idade, que “o fato de ser idoso não transforma o consumidor em alguém incapaz de compreender e se responsabilizar pelas obrigações que assume decorrentes dos negócios jurídicos por ele firmados” (TJSC, Apelação n. 0300857-60.2019.8.24.0002, do Tribu-nal de Justiça de Santa Catarina, rel. Luiz Zanelato, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 10-06-2021), sendo descabida, portanto, in-terpretação que automaticamente conduza o idoso à incapacidade de contratar, sem profunda análise das circunstâncias do caso concreto.

Acerca do ponto em questão, já decidiu o Superior Tribunal de Justi-ça que pressupor que os idosos possuem capacidade cognitiva e discer-nimento menores que a população em geral é entendimento que, “[...] a pretexto de realizar os fins protetivos colimados pela Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e também pela Lei nº 8.078/1990 (CDC), acabou por dispensar tratamento discriminatório indevido a essa parcela útil e produtiva da população. 8. Idoso não é sinônimo de tolo” (STJ, REsp 1.358.057/PR, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 25/06/2018).

Já no que pertine à segunda hipótese anteriormente aventada (incons-titucionalidade), compreende-se simplesmente não ser o caso, ante a ausência de norma constitucional efetivamente vulnerada pela anterior-mente citada legislação.

Sem isso, interpretação que indiscriminada e automaticamente re-conhece a invalidade da espécie contratual, divorciada da análise dos meandros do caso concreto, torna a lei em letra morta e, consequente-

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mente, vulnera a segurança jurídica que se espera garantida por meio da liberdade de contratar.

Por tais razões, entende-se pela validade da contratação de reserva de margem consignável, desde que ausente concreta prova de vício na declaração de vontade do contratante e, ainda, se obedecidos os requi-sitos pormenorizadamente previstos na lei específica e no regulamento da matéria.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-cao.htm. Acesso em: 2 jun. 2021.

BRASIL. Lei n. 10.406 (2002). Código civil. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 2 jun. 2021.

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p75

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E EFICIÊNCIA PROCESSUAL

CUSTODY HEARING AND PROCEDURAL EFFICIENCY

Luiz Fernando Pereira de Oliveira1

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de avaliar a possibilidade de a audiência de custódia ser utilizada para a citação do réu. A partir de uma abordagem histórica e jurídica do direito à liberdade, bem como por intermédio de uma correta compreensão do princípio da eficiência administrativa, acredita-se ser possível defender a criação, por meio de lei, de novas modalidades de citação e intimação fictas. No dia da audi-ência de custódia, o juiz poderia definir um prazo para que o custodiado retornasse ao fórum para se inteirar sobre o andamento do seu processo, sob pena de ser considerado citado. Ainda, no dia de seu compareci-mento, seria desde já intimado para, querendo, participar da audiência de instrução e julgamento. A proposta é compatível com o regime das liberdades, com o direito de defesa e também com a obrigação constitu-cional de alocação eficiente dos limitados recursos públicos brasileiros.

Palavras-chave: Liberdade. Audiência de custódia. Princípio da efici-ência. Direito de defesa. Citação.

ABSTRACT: The present paper aims to examine the possibility of using the custody hearing for summons to a defendant. From a histo-ric and legal approach of the right of freedom, as well as through of a correct understanding of the principle of administrative efficiency, it is possible to defend the creation, by law, of new modalities of supposed summon and intimation. On the day of the custody hearing, the judge could define a deadline for the person in custody to return to the court in order to take notice of the progress of your lawsuit, under sentence of being considered summoned. Likewise, on the appointed day to re-turn, the person would be also notified to attend the trial, if he wants.

1. Juiz Substituto da 24ª Circunscrição Judiciária (Balneário Camboriú/SC). E-mail: [email protected]

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The proposal is compatible with the rights of freedom, of defense and, also, with the constitutional obligation of efficient allocation of Brazil’s limited public resources.

Keywords: Freedom. Custody hearing. Efficiency principle. Right of defense. Summons.

1. INTRODUÇÃO

Para o bem ou para o mal, a audiência de custódia presencial é uma realidade no Brasil2. Já que o juiz e os servidores necessariamente irão se encontrar com o cidadão preso em flagrante, não seria adequado, em

2. Em outra oportunidade, seria conveniente analisar a real necessidade da audiência de custódia presencial no Brasil. Aparentemente, a obrigação do ato presencial sobrecarrega o erário, desaloca recursos públicos que poderiam estar sendo melhor empregados na (re)estruturação, por exemplo, do sistema carcerário e, o que é mais grave, lança indevida suspeição não apenas sobre o Ministério Público, a quem compete o controle externo da atividade policial, mas também sobre o próprio defensor, a quem caberá todo o patrocínio técni-co do acusado ao longo (e mesmo depois) de todo o processo penal. Fosse o Brasil um país rico, com boa estrutura carcerária, boas estradas e contingente adequado de servidores nos órgãos de persecução criminal, talvez a apresen-tação física se justificasse. Infelizmente, não é o caso. O que parece, e o que demanda maior aprofundamento, é que existe, no Brasil, uma preocupação excessiva com o cumprimento de certas formalidades, como se isso bastasse para o reposicionamento do país em termos de adequada tutela e promoção de direitos fundamentais. Algumas formas são absorvidas à rotina judicante de maneira apressada e, na prática, no conjunto, se prestam apenas a oferecer um simulacro, um invólucro de civilização avançada. O Brasil, mesmo com todas as suas dificuldades, assegura ao cidadão preso a presença física de um juiz em menos de 24 horas de sua prisão, pouco importando os custos e as dificuldades logísticas para tanto. Todavia, tão logo encerrado o ato, já não se preocupa mais com as condições de tempo e espaço, do encarceramento daquele cidadão. Ou seja, além do prejuízo para a generalidade das pessoas, a audiência presencial também não satisfaz as reais necessidades do encarce-rado, que, mais do que receber uma pequena e rápida amostra de um sistema funcional, certamente anseia por um procedimento globalmente mais atento à tutela e promoção de seus direitos fundamentais.

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termos financeiros e de eficiência administrativa, aproveitar o ato para outros fins?

Como se sabe, salvo raras exceções não previstas em lei, o proce-dimento é o seguinte: após a realização da audiência de custódia, se o indivíduo for solto, o máximo que se obtém em termos de eficiência administrativa é a fixação da medida cautelar de manutenção do ende-reço atualizado nos autos, facilitando, com alguma sorte, o trabalho dos poucos oficiais de justiça do sistema de justiça brasileiro. Nada mais.

Portanto, a prática exige que os escassos servidores confeccionem e distribuam mandados de citação para que seja localizado aquele indiví-duo que há poucos meses saiu pela porta do fórum. Com sorte, ele será encontrado no endereço disponibilizado no dia da audiência de custó-dia. Caso contrário, a via crucis já é conhecida: os autos permanece-rão em incontáveis idas e vindas entre o gabinete judicial, o Ministério Público e o oficial de justiça, todos em busca do cidadão recentemente entrevistado, até que, finalmente, depois de expressivo gasto de tempo e recurso, o processo será suspenso com fundamento no art. 366 do código de processo penal.

Neste espaço, pretende-se defender uma via alternativa: o aproveita-mento da audiência de custódia para a fixação de um calendário de cita-ção/intimação do acusado, dispensando a prática de atos cartoriais e de diligências pelos oficiais de justiça, e reconhecendo na pessoa presa um ser humano capaz, livre e autônomo para deliberar sobre os caminhos de sua própria vida, sem espaço para qualquer tipo de voluntarismo paternalista judicial.

2. A DEFESA DA LIBERDADE

É preciso, agora, fixar duas premissas, uma mais geral, que diz com o próprio desenvolvimento da liberdade humana, e outra jurídica, que parece suficiente para sustentar a conclusão apresentada ao final.

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2.1 A liberdade no pensamento histórico

A relação entre o Estado e o particular é objeto de uma série de dis-cussões ao longo da história do pensamento ocidental. Para os fins do que se pretende sustentar, é desnecessário percorrer toda a evolução da defesa da liberdade do indivíduo.

Aqui, basta analisar o pensamento de Karl Popper, um dos mais im-portantes filósofos liberais contemporâneos. A escolha de Popper se deu por conta de sua vigorosa defesa da liberdade e do reconhecimento do ser humano como um agente autônomo e capaz de fazer as escolhas substantivas de sua própria vida, arcando, naturalmente, com as conse-quências daí decorrentes.

Llosa (2019, p. 114), analisando a obra do pensador austríaco, faz duas importantes reflexões:

Provavelmente nenhum pensador fez da liberdade uma condição tão imprescindível para o ser humano como Popper. Para ele, a li-berdade não só garante formas civilizadas de existência e estimula a criatividade cultural: ela é o resquício básico do saber, o exer-cício que permite ao homem aprender com seus próprios erros e, portanto, superá-los (...) Popper enxerga um pânico inconsciente à responsabilidade que a liberdade impõe ao indivíduo, que por isso mesmo tende a sacrificar esta para se livrar daquela.A liberdade, filha e mãe da racionalidade e do espírito crítico, põe nos ombros do ser humano uma carga pesada: ter que decidir por si mesmo o que lhe convém e o que o prejudica, como enfrentar as in-contáveis provocações da existência, se a sociedade funciona como deveria ser ou se é preciso reformá-la. É um fardo pesado demais para muitos homens. E, por isso, diz Popper, ao mesmo tempo que despontava a sociedade aberta – na qual a razão tomou o lugar da irracionalidade, o indivíduo passou a ser protagonista da história e a liberdade começou a substituir a escravidão de outrora – também nascia, e pela mão de pensadores notáveis como Platão e Aristóte-les, um impulso contrário, para impedi-la e negá-la, e para ressus-citar ou conservar aquela velha sociedade tribal na qual o homem, abelha dentro da colmeia, fica isento de tomar decisões individuais, de enfrentar o desconhecido, de ter que resolver por sua conta e risco os infinitos problemas de um universo emancipado dos deuses

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e demônios da idolatria e da magia em permanece desafio à razão dos indivíduos soberanos.

Do pensamento de Popper, pretende-se extrair a seguinte conclusão: um indivíduo verdadeiramente livre não precisa da tutela de quem quer que seja, muito menos do Estado, para escolher, dirigir e protagonizar os rumos de sua própria história.

A liberdade pressupõe a ausência de censura na tomada de decisões estritamente individuais. Um país que trata seus cidadãos como pessoas livres franqueia a cada um deles a plena capacidade de deliberar sobre a sua vida, sem rotas ou determinações. Reconhece que ninguém melhor que o próprio indivíduo para decidir e determinar o que lhe convém. Admite que escolhas infelizes poderão ser realizadas, mas, justamente por terem sido desimpedidas, serão suportadas por seus próprios e ex-clusivos autores.

Em outras palavras: é autoritário, porque contrário à liberdade, su-por que pessoas adultas e plenamente capazes não saberão defender os seus próprios interesses, necessitando, em consequência, do apoio de um agente externo, alguém que lhe direcione os passos e organize suas necessidades e ambições.

Uma segunda contribuição importante de Karl Popper é o método de progresso social que ele chama de “engenharia gradual ou fragmentá-ria”. Prossegue-se na descrição de Llosa (2019, p. 122):

Uma vez que nos damos conta de que não podemos trazer o céu para a terra, mas só podemos melhorar um pouco as coisas, vemos também que só podemos melhorá-las pouco a pouco: mediante con-tínuos reajustes nas partes, em vez de propor a reconstrução total da sociedade. Avançar assim tem a vantagem de que a cada passo pode-se avaliar o resultado obtido e retificar o erro a tempo, apren-der com ele. O método revolucionário impede essa possibilidade porque, em seu desprezo pelo particular, em sua fixação obsessiva pelo todo, rapidamente se afasta do concreto. Transforma-se numa atividade distante do real, que só obedece a um modelo abstrato, alheio à experiência, frente ao qual, por querer fazê-lo coincidir com a realidade social, terma sacrificando o resto, do racionalismo até a liberdade, e até mesmo, às vezes, o simples bom senso.

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O método proposto é um convite ao progresso. Em vez de se buscar reformas substantivas e complexas, que, em uma democracia delibera-tiva de dimensões continentais, exige amplos e improváveis consensos, deve se concentrar em pequenas alterações. Avanços parcelares e con-tínuos, com entusiasmo mais sobre o rumo do que quanto à velocidade.

2.2 A liberdade no direito brasileiro

Neste tópico, o que se pretende demonstrar é que o conceito de li-berdade proposto, com todas as suas nuances e implicações, por Karl Popper está expressamente previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

Em 2011, enquanto esteve em período de pesquisa na Universidade de Harvard, o professor Luís Roberto Barroso se dedicou ao estudo do princípio da dignidade da pessoa humana, disposto como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa brasileira).

Em sua conclusão, o professor decompõe conteúdo mínimo do prin-cípio da dignidade humana em três partes: (i) valor intrínseco, (ii) auto-nomia e (iii) valor comunitário.

Neste estudo, interessa o conceito proposto de autonomia. Conforme a análise de Barroso (2012, p. 81):

A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. É o funda-mento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a de autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida [...]. A autonomia, portan-to, corresponde à capacidade de alguém tomar decisões e de fazer escolhas pessoais ao longo da vida, baseadas na sua própria concep-ção de bem, sem influências externas indevidas.

A descrição do professor, coincidente com o liberalismo popperiano, parece ser reforçada por uma análise abrangente da legislação brasi-leira. É que a plena capacidade civil é alcançada aos 18 anos, quando

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então as intervenções do Estado na vida privada se tornam episódicas e pontualmente justificadas3.

Em parcial conclusão, pode-se dizer que também o direito brasileiro exige que o indivíduo seja tratado como um fim em si mesmo, como um agente moral autônomo e capaz de, sem qualquer influência ou condi-cionamento externo, decidir por si mesmo os rumos de sua própria vida, assumindo os riscos e benefícios de suas escolhas desembaraçadas.

3. A DEFESA DA EFICIÊNCIA

A emenda constitucional nº 19/98 acrescentou a eficiência dentre os princípios basilares da administração pública brasileira. A ideia exis-tente à época era promover verdadeira transformação cultural do setor público do país, que deixaria o modelo burocrático rumo ao programa gerencial.

Bresser Pereira (2006, p. 24), Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e, portanto, artífice da reforma constitucional, a de-fendeu nos seguintes termos:

A explicação é simples: os cidadãos estão se tornando cada vez mais conscientes de que a administração pública burocrática não corres-ponde às demandas que a sociedade civil apresenta aos governos no capitalismo contemporâneo. Os cidadãos exigem do Estado muito mais do que o Estado pode oferecer. E a causa imediata da lacuna que assim se cria não é apenas fiscal, como observou O’Connor (1973), nem apenas política, como Huntington (1968) destacou; é também administrativa. Os recursos econômicos e políticos são por definição escassos, mas é possível superar parcialmente essa limitação com o seu uso eficiente pelo Estado, quando não se pode contar com o mercado, isto é, quando a alocação de recursos pelo mercado não é solução factível, dado seu caráter distorcido ou dada

3. Dentre os institutos, pode-se citar o da curatela, que pressupõe o prévio reconhecimento da incapacidade civil. Quanto à legislação, o estatuto do índio (lei nº 6.001/73) e a lei de inclusão da pessoa com deficiência (nº 13.146/15) são exemplos da excepcionalidade da intervenção estatal na vida privada, so-mente justificada, e ainda assim em níveis mínimos, quando se reconhece que determinado grupo de pessoas não se encontra em plena condição de deliberar sobre a integralidade de suas necessidades.

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sua incompletude. Nesse caso, a função de uma administração pú-blica eficiente passa a ser valor estratégico, ao reduzir a lacuna que separa a demanda social e a satisfação dessa demanda.

Ou seja, ao menos desde 1998, a gestão eficiente do dinheiro público (do povo) é uma obrigação de natureza constitucional.

É regra básica de economia, de acordo com Mankiw (2020, p.4), que “a tomada de decisões exige escolher um objetivo em detrimento de outro (tradeoff)” e que “o custo de oportunidade de um item é aquilo que você abre mão para obtê-lo”.

Em outras palavras: não existem escolhas neutras. Decisões alocati-vas são implicitamente desalocativas, de modo que, se o Estado gasta dinheiro com determinado procedimento, ele estará, necessariamente, deixando de investir em outras áreas. Se, no âmbito da administração judicial, um servidor se ocupa de determinado processo ou expediente, ele, por consequência, estará preterindo outros tantos.

Em um país como o Brasil, com invencíveis demandas sociais e no qual tramitam, de acordo com o relatório do CNJ de 2019, quase 78 milhões de ações no Poder Judiciário, é especialmente relevante que a alocação de seus escassos recursos (dinheiro e tempo) seja realizada da forma mais racional possível.

4. A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E O CALENDÁRIO PROCESSUAL

A tese que se pretende defender é a seguinte: no dia da audiência de custódia, o juiz terá a opção de fixar determinado prazo para que o flagranteado retorne para ser citado. Se ele comparecer, será pessoal-mente citado, bem como desde já intimado para o dia da audiência de instrução e julgamento. Caso contrário, será considerado revel, prosse-guindo-se o processo penal normalmente.

Conforme exposto anteriormente, vive-se em um país livre, que trata e reconhece as pessoas como iguais, como agentes autônomos e am-plamente capazes de tutelarem seus próprios interesses, sem qualquer necessidade de intervenção de quem quer que seja. Excepcionalmente,

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quando as circunstâncias exigem (regime das incapacidades), aí sim o Estado está autorizado a avançar sobre a vida privada, rompendo a histórica barreira representada pela liberdade frente à força do poder político.

Além de se viver em um país que trata seus cidadãos capazes como pessoas adultas e plenas, esse país é obrigado, por expressa determina-ção constitucional, a alocar seus recursos de maneira adequada e racio-nal, deles extraindo toda a potência. Neste ponto, não se trata apenas de cumprir simples comando legal, mas sim de reconhecer que o país é essencialmente pobre, carente em quase tudo em termos sociais.

O projeto constitucional, assentado sobre a generosa promessa de superação de um persistente histórico de desigualdade, somente pode ser viabilizado mediante o emprego satisfatório do dinheiro do povo.

Volta-se ao tema central: não se justifica o gasto de tempo e de di-nheiro para localizar a citar uma pessoa que há poucos meses deixou a porta do fórum. É totalmente adequado às premissas acima de que o juiz tenha condições, de acordo com a realidade de sua unidade, de fi-xar um prazo adequado para que o custodiado, em liberdade, retorne ao fórum, caso queira, para ser cientificado do andamento do seu processo.

O desperdício dos escassos recursos públicos não se justifica em ne-nhuma perspectiva. Sendo o flagranteado uma pessoa adulta, maior, capaz e tecnicamente representada no ato da audiência de custódia, nin-guém melhor do que ele para decidir se há interesse, ou não, em acom-panhar o desenrolar do procedimento. O Estado não precisa nem deve pretender tutelar esse indivíduo, presumindo que ele não será capaz de elaborar a escolha mais adequada à satisfação de seus interesses.

4.2 Possíveis objeções

Para prosseguir a exposição, é preciso enfrentar alguns possíveis questionamentos.

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4.2.1 Celeridade em excesso?

Não se trata propriamente de ter pressa, mas sim de reconhecer o desperdício de tempo e de dinheiro público.

A legislação brasileira torna absolutamente excepcional a rejeição da denúncia, pois, como se sabe, nessa etapa prevalece a presunção em favor da sociedade, bastando indícios de autoria, aliados à comprova-ção da materialidade, para a deflagração do processo penal. O mesmo raciocínio se aplica à absolvição sumária, viável apenas em hipóteses restritas.

Portanto, por imposição legal, o caminho frequente é o recebimento da denúncia e a não absolvição sumária.

É por isso que o juiz, contribuindo para a alocação eficiente de re-cursos, já pode antever o rumo procedimental e evitar a desnecessária feitura do mandado de citação para posterior cumprimento pelo oficial de justiça.

4.2.2 Rejeição da denúncia e absolvição sumária

Se a denúncia for eventualmente rejeitada ou o réu absolvido suma-riamente, surgirão duas possibilidades.

A primeira é o juiz não aplicar essa nova modalidade de citação quan-do ele não vislumbrar a probabilidade de persecução penal na hipótese. O magistrado, por exemplo, diante de um caso de insignificância, pode não determinar esse comparecimento, já imaginando que provavelmen-te não haverá o oferecimento de denúncia.

A outra hipótese é a inversão do procedimento atual. Vale dizer: se não houver denúncia ou se a peça for rejeitada, aí sim o juiz pode se antecipar à data de comparecimento e determinar a intimação pessoal do investigado. Nesse caso, somente naquelas excepcionais hipóteses de rejeição da denúncia ou de absolvição sumária é que haveria a ne-cessidade de deslocamento do servidor para a comunicação pessoal, se não disponibilizado meio eletrônico de contato.

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Ainda assim, o deslocamento seria único. É que, se não encontra-do no endereço disponibilizado, o procedimento seria arquivado, sem qualquer prejuízo ao investigado.

4.2.2 A ordem dos atos procedimentais

Aqui, questiona-se: haveria a determinação de citação antes de ini-ciado o processo e da intimação para comparecimento em audiência antes da análise de eventual absolvição sumária?

A citação é um conceito jurídico-positivo, assim como a ordem dos atos procedimentais. Prova disso são as frequentes reformas processu-ais que criam novas modalidades de comunicação (edital, hora certa, eletrônica etc.).

Portanto, não há um conceito universal do que seja a citação. Seus contornos, limites e possibilidades são aqueles previstos em lei.

O que verdadeiramente importa é que não exista qualquer possibili-dade de uma pessoa ser processada sem ter a real oportunidade de ciên-cia da acusação formalizada pelo Estado a fim de que possa se defender.

Na hipótese proposta, esse risco simplesmente não existiria. Veja: o indivíduo foi preso, em regra pela Polícia Militar. A seguir, foi levado a uma Delegacia de Polícia, interrogado e posteriormente escoltado para o fórum, quando, então, diante do juiz, do seu defensor e do promotor de justiça, foi ouvido e expressamente advertido do dia em que deveria voltar ao fórum e quais as consequências do seu não comparecimento.

Diante dessa sequência de eventos naturais ao auto de prisão em fla-grante, não existe qualquer justificativa lógica para defender que esse indivíduo teria a legítima expectativa de que seu procedimento simples-mente desapareceria. Ou seja, se ele acabou de ser preso em flagrante e acusado (não se pode esquecer de que a indicação do crime atribuído é uma das exigências legais) de praticar um crime, por qual razão se poderia supor que ele seria surpreendido com os desdobramentos or-dinários do procedimento? Poderia essa pessoa, que foi expressamente advertida por um juiz na presença física de seu defensor, futuramente

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dizer que não fazia a mínima ideia de que estava sendo investigada (e poderia ser processada) por determinado crime?

Parece que a única forma de defender esse agente é infantilizando--o, é tratando-o não como uma pessoa livre, capaz de entender os fa-tos (embora tenha culpabilidade para fins penais, frisa-se!) e de decidir como pretende exercer o seu direito de defesa.

Ocorre que essa possibilidade afronta o texto constitucional e com-promete a alocação adequada de recursos públicos.

Embora o sujeito tenha culpabilidade penal, embora possa constituir família e empreender, embora tenha sido preso (via de regra) na rua, embora possa votar e ser votado, ainda assim o Estado, inadimplente em quase tudo, decide presumir que essa pessoa não tem condições de retornar ao fórum dentro de alguns dias para,se quiser, cientificar-se do desenrolar da acusação criminal iniciada em seu desfavor. Pelo contrá-rio, o Poder Público se sente confortável em despender recursos para deslocar um oficial de justiça, geralmente sobrecarregado, para ir em busca daquele cidadão que deixou as portas do fórum há pouquíssimos dias.

Perde a sociedade, com o atraso de todos os demais processos em andamento e com a possibilidade da não apuração dos fatos, caso o indivíduo não seja posteriormente encontrado. Perde o acusado, pois tratado como não merecedor de respeito como pessoa adulta. Perde, finalmente, o Poder Judiciário, que se vê obrigado a praticar atos des-necessários, sobrecarregando os poucos servidores e comprometendo o bom andamento da pauta judicial.

4.2.3 Compatibilidade com o direito de defesa

O invólucro da forma deve ceder diante do poder da substância. Para que o sistema funcione de modo racional e adequado, não se pode ad-mitir a invocação de argumentos que interditem o avanço da discussão.

É justamente do que se trata ao se analisar o direito de defesa, invo-cado excessiva e genericamente para inviabilizar o aperfeiçoamento da legislação criminal brasileira.

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Não se vê qualquer necessidade de destacar as conquistas históricas representadas pelo reconhecimento do amplo direito de defesa na histó-ria da humanidade. Incorreria em verdadeira tautologia, pois basta ver que a premissa teórica da exposição do autor deste artigo é justamente a defesa da liberdade do homem frente ao Estado. Ora, se o processo penal é o mecanismo legítimo para a imposição da máxima restrição suportada pela liberdade humana (a física), é evidente que se reconhece no mais amplo, livre e desembaraçado exercício do direito de defesa uma das conquistas mais expressivas e relevantes na luta do homem pela contenção do poder do Estado.

Todavia, defender o direito de defesa não pode significar a infantili-zação de pessoas adultas. Não pode significar o desperdício de dinheiro público em um país pobre e carente. Não pode significar a complacên-cia com o uso predatório do sistema recursal brasileiro. Não pode sig-nificar o congestionamento invencível na máquina pública. Não pode significar, enfim, a impunidade pelo cansaço, e não pela inocência, ain-da que duvidosa.

No caso, não há nenhuma possibilidade de ofensa ao direito de defe-sa. Conforme visto, o custodiado, se tratado como um adulto livre, terá a ampla possibilidade de escolher se participa ou não do procedimento. Se quiser participar, a ele serão deferidas todas as faculdades inerentes à autodefesa. Caso contrário, a tutela de seus interesses ficará a cargo da defesa técnica, pública ou particular.

A única forma de reconhecer ofensa ao direito de defesa, insiste-se, é se presumir que o agente será surpreendido pela existência do processo penal, sobre o qual não pôde, portanto, se manifestar. Todavia, somente se o tratar como incapaz de gerir seus próprios interesses, em desconsi-deração à sua condição de homem livre, é que tal conclusão seria viável.

4.2.4 E, quanto aos casos específicos em que não for possível, por qualquer razão o comparecimento pessoal posterior?

Grau (2020, p. 77), citando Aristóteles, faz uma observação bastante útil ao enfrentamento da questão:

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Aristóteles distingue a equidade e o equitativo, relacionando-os ao justo. O equitativo, embora seja justo, não é o justo segundo a lei, senão um corretivo da justiça legal. A razão disso está em que a lei é sempre geral, e há casos em relação aos quais não é possível estipular um enunciado geral que se aplique com retidão. A lei não toma em consideração senão os casos mais frequentes, sem ignorar os erros que isso possa importar. Nem por isso ela é menos cor-reta, porque a culpa não está na lei, nem no legislador, mas, sim, na natureza das coisas. E assim é porque, em razão de sua própria essência, a matéria das coisas da ordem prática se reveste do caráter de irregularidade.

O que se pretende dizer é o seguinte: sempre haverá hipótese em que o indivíduo flagranteado não poderá comparecer ao fórum. Pode ser, por exemplo, que haja alguma dificuldade de locomoção ou financeira. No entanto, tais circunstâncias não invalidam a tentativa de aprimorar o procedimento judicial, pois as singularidades da vida naturalmente escapam do alcance do legislador. A rigor, acredita-se que o caráter ex-cepcional desses casos apenas confirmará o acerto da proposta, útil à generalidade das hipóteses.

O que se defende, portanto, é que os casos específicos sejam resol-vidos de acordo com as suas nuances. Conforme já exposto, essa nova modalidade de citação será opcional, o que, por si só, parece resolver as possíveis dificuldades práticas de sua implementação. Se não houver a real possibilidade de comparecimento, basta que sejam aplicadas as hipóteses tradicionais de comunicação processual.

Especificamente no que diz respeito às dificuldades financeiras, tal-vez seja conveniente uma análise econômica do efetivo custo da citação tradicional, pois é possível que a disponibilização de vale-transporte re-presente uma alocação mais adequada e eficiente do dinheiro do povo.

Outro ponto que parece importante: a impossibilidade de compareci-mento ao fórum deve ser absoluta. Diz-se isso já antecipando às even-tuais discussões envolvendo pessoas hipossuficientes do ponto de vista financeiro.

Neste específico ponto, é importante não perder de vista que pessoas financeiramente vulneráveis devem ser tratadas com o mesmo respeito

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e a mesma consideração. Do Estado, não precisam de tutela, pois são pessoas adultas e igualmente capazes, não havendo autorização legal ou constitucional para que se presuma que tais indivíduos, só pelo fato de terem pouco dinheiro, sejam incapazes de decidir os rumos da pró-pria vida. A ausência de dinheiro deve ser resolvida, portanto, no plano estritamente econômico, por meio de benefícios financeiros. Ou seja, se a pessoa, por ser pobre na acepção legal, não puder pagar as custas processuais e contratar um advogado particular, então o Estado afasta essas duas barreiras, dispensando o pagamento das custas e direcio-nando o indivíduo à Defensoria Pública ou ao advogado dativo. Nada mais. Qualquer tentativa adicional de tutela, ainda que sob generosas pretensões, parece não apenas embaraçoso aos profissionais habilitados à representação do hipossuficiente, mas também exercício de vedado paternalismo estatal, pois parte da premissa de que o agente público reúne melhores condições de deliberar sobre os rumos e os propósitos da vida de um semelhante.

É verdade que pessoas financeiramente carentes possuem, via de re-gra, pouca instrução formal, justamente por conta dos conhecidos per-calços existentes no acesso a uma educação de qualidade em um país tão desigual como o Brasil. Todavia, novamente se insiste em dizer que isso não permite que o Estado se arvore na condição de protetor da vida privada. Afinal, questões técnicas serão decididas por um profissional do direito muito bem preparado, e a premissa implícita de quem prati-ca um crime é a potencial consciência da ilicitude, como elemento da culpabilidade. Vale dizer: a pessoa processada é maior de idade, está bem representada tecnicamente e possui capacidade de compreender o caráter ilícito do fato que lhe é imputado, de modo que também reúne plenas condições de entender a necessidade de comparecimento ao fó-rum no dia designado.

Finalmente, convém uma palavra sobre a boa-fé processual. Didier (2019, p. 137), sobre o princípio:

[...] Sempre que exista um vínculo jurídico, as pessoas envolvidas estão obrigadas a não frustrar a confiança razoável do outro, devendo comportar-se como se pode esperar de uma pessoa de boa-fé. Como

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acontece com qualquer relação jurídica, a boa-fé recai também so-bre as relações processuais [...] se mesmo na guerra a ética há de ser preservada, como não defender a existência de um princípio da boa-fé processual, em que, ainda que apenas metaforicamente, de modo civilizado e sob supervisão do juiz, as partes ‘guerreiam’ por seus interesses?

Se se considerar que o princípio da boa-fé está previsto no código de processo civil, aplicado analogicamente ao processo penal, bem como que pode ser extraído da Constituição Federal, a consequência neces-sária é que também os autores do processo penal devem se comportar com lealdade.

O direito de defesa no Brasil possui contornos amplos e abrangentes. Basicamente todas as conquistas civilizatórias nesse campo estão con-sagradas neste país. Aqui, no momento em que é preso em uma das es-pecíficas hipóteses de flagrante, o indivíduo somente pode ser algemado excepcionalmente. Seu telefone, se apreendido, não pode ser acessado. Após a prisão, é levado a uma Delegacia de Polícia. Ali, o conduzido será informado de todos os seus direitos, dentre os quais, o de ficar em silêncio. Ainda, será informado quem são os responsáveis por sua pri-são e terá acesso a advogado. Sua família será comunicada. Em menos de 24 horas, será apresentado a um juiz, a um advogado e a um promo-tor de justiça. Será novamente ouvido para que sejam conhecidas as cir-cunstâncias de sua prisão, a fim de que seja resguardada sua integridade psicofísica. Após, o juiz deverá conceder a liberdade, aplicando ou não uma das medidas cautelares diversas da prisão, que só pode ser manti-da em casos excepcionais devidamente motivados. Mantida a prisão, o cidadão pode, mesmo sem advogado, impetrar sucessivos Habeas Cor-pus em todas as instâncias judiciais no país. Se denegados, poderá vol-tar a impetrá-los outras tantas vezes ao longo do procedimento. Iniciado o processo penal, será citado e poderá esclarecer se deseja a nomeação de um Defensor Público ou advogado dativo. Poderá apresentar suas testemunhas e produzir todas as provas que desejar, gratuitamente. No dia da audiência, será ouvido por último. Se preferir, poderá se manter em silêncio, sem qualquer prejuízo à sua defesa. Suas alegações finais

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serão protocoladas por último. A condenação pressupõe robusta prova produzia pela acusação. A dosimetria da pena, de igual forma, é cada vez mais vinculada pela jurisprudência. Após a condenação, o condena-do tem à sua disposição amplo catálogo recursal. Se houver divergência entre os julgadores coletivos, novos recursos lhe são disponibilizados. Em todas as instâncias, a defesa tem o direito de, além de razões escri-tas, apresentar seus argumentos oralmente. O início da execução penal está condicionado à chancela da Suprema Corte do país. Mesmo assim, ainda que iniciado o processo de execução penal, a todo momento os fatos poderão ser reapreciados por meio da revisão criminal.

Em suma: o direito de defesa no Brasil é levado a sério. Em um país com tantas carências como o Brasil, uma das faltas não é o de direito de defesa.

Excessivas ou não, são essas as regras do jogo do processo penal brasileiro. A defesa pode, portanto, manusear cada uma delas da forma que lhe for mais conveniente. Ao fazê-lo, estará dento da legalidade.

No entanto, diante de um sistema que tutela e promove direito de de-fesa e que exige a boa-fé e a lealdade de todos os contentores, o que se espera é que o réu mantenha com o processo judicial a mesma relação de seriedade e respeito.

Volta-se ao ponto: a impossibilidade de comparecimento ao fórum deve ser absoluta. Não se pode admitir, por exemplo, que um indiví-duo preso em flagrante delito em plena via pública, depois, inexplica-velmente, negue possuir condições de comparecer ao fórum dentro de poucos dias. A alegação não pode ser validamente inserida dentre as múltiplas prerrogativas inerentes ao direito de defesa, pois parece levar pouco a sério o sistema de justiça, tratando-se, na verdade, de ato con-trário à boa-fé processual4.

4. Outro abuso do direito de defesa é o pedido de interrogatório de réus fo-ragidos, o que merece aprofundada reflexão.

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4.3 Formas de implementação da proposta

Inicialmente, foram pensadas duas alternativas para concretizar a proposta, mas, ao fim, ambas se revelaram insuficientes.

A primeira opção seria a invocação do art.191 do código de processo civil, que regulamenta o calendário processual em âmbito cível. Em-bora não haja aparentes obstáculos para a importação do instituto ao processo penal, a sua voluntariedade, na prática, dificultaria a imple-mentação da proposta.

Outra possibilidade seria a fixação do comparecimento para a citação como medida cautelar diversa da prisão, admitindo aqui a existência do poder geral de cautela em âmbito penal. Todavia, nesse caso, pensa-se que incorreria em contradição. É que a premissa teórica que se susten-ta é a defesa da liberdade, o reconhecimento de que pessoas adultas, capazes e residentes em um país livre podem decidir sozinhas os ru-mos de sua própria vida. No entanto, se fixado como medida cautelar, o não comparecimento importaria na decretação da prisão preventiva. Na prática, então, o indivíduo seria obrigado a se apresentar, o que colide com esta tese, que é no sentido da disponibilidade da autodefesa penal. Sendo o procedimento criminal, em relação ao réu, um instrumento de defesa, a ele cabe decidir, como pessoa livre, se pretende ou não acom-panhar o andamento do feito.

Assim, diante da inconsistência das duas alternativas, o ideal é que a nova modalidade de citação seja prevista e regulamentada por lei. O parlamento, afinal, é o local adequado para o debate de ideias.

5. CONCLUSÃO

Antes de concluir, entende-se importante voltar à questão do método de Popper.

Nos termos explorados anteriormente, ele defende uma metodologia de avanço gradual e parcelar. Em vez de se buscar uma solução global e universal aos problemas, propõe que se avance progressivamente, pas-so a passo, o que permite corrigir os rumos na hipótese de erros.

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A proposta do método parece ser muito adequada. O Brasil é um país complexo, desigual e de proporções continentais. O nível de consenso exigido para grandes e profundas reformas dificilmente é alcançado, especialmente diante da fratura política a que se está exposto.

Por isso é que, identificado o problema, o ideal é que se esteja dis-posto ao primeiro passo, relegando os demais a seu devido tempo e processo de maturação.

Diante desse método de trabalho e análise é que se propõe o presente texto. A sugestão formalizada por estas páginas é apenas um passo para o reconhecimento da liberdade humana como vetor da relação estabe-lecida entre Estado e particulares. Um passo para a contribuição, ainda que mínima, para a diminuição da sobrecarga das unidades criminais, dos oficiais de justiça e, em última análise, um passo para que o pro-cesso criminal, independentemente do resultado do julgamento e obser-vando todas as garantias históricas que se agrupam sob a proteção do direito de defesa, possa ser concluído em tempo razoável.

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DIDIER Jr., Fredie, Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 21. ed. Salvador, JusPodivm, 2019.

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Recebido em: 30/06/2021Aprovado em: 05/07/2021

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OS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS COMO INSTRUMENTOS PARA AEFETIVAÇÃO

DO ACESSO À JUSTIÇA

ALTERNATIVE METHODS OF CONFLICT RESOLUTION AS TOOLS FOR EFFECTIVE ACCESS TO JUSTICE

Juliana Araújo de Mello Canova1

Pedro Manoel Abreu2

1. Mestranda em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação Stric-to Sensu em Ciência Jurídica (PPCJ) da Universidade do Vale do Itajaí (UNI-VALI), por meio do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUC/CAPES), na linha de pesquisa de Direito e Jurisdição. Pós-graduanda em Direito Público pela Escola Superior da Ma-gistratura de Santa Catarina (ESMESC). Graduada em Direito pela Universi-dade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogada licenciada. Residente Judicial no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). E-mail: [email protected]. Concluiu Pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com Projeto e Plano de Estudos sob o título “Processo e Jurisdição: Novas Perspectivas na Cena Contemporânea”, sob a Supervisão do Prof. Dr. António Pedro Barbas Homem. Doutor e Mestre em Direito pela Universi-dade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito e em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente titular dos Cur-sos de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor, em nível de especialização, da disciplina Sociologia Judiciária da Academia Judi-cial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Professor convidado do Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em nível de Mestrado. Magistrado Estadual desde 1975. Foi Juiz titular do TRE/SC, ocupando os cargos de Vice-Presidente e Corregedor. Foi 2º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e Presidente da Corte no biênio 2006-2008. Ex-Diretor Executivo da Acade-mia Judicial e do Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR). É Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). E-mail: [email protected].

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Resumo: Sabe-se que viver em sociedade corresponde à inevitabilida-de de conflitos tendo em vista a pluralidade de opiniões, ocorrendo, as-sim, o surgimento de novas demandas e novos apelos sociais de acordo com as transformações originadas em determinado contexto e momento histórico. Foi, desse modo, que os conflitos deixaram de ser resolvidos unicamente na esfera privada e passaram a ser discutidos pela chamada jurisdição estatal. Todavia, com o passar do tempo, e com a chegada de novas mudanças ocasionadas pela modernidade que afetaram a socie-dade, o Estado deixou de ser célere o suficiente quando da prestação da tutela jurisdicional, passando o Poder Judiciário a estar abarrotado de novas contendas a serem resolvidas, na mesma proporção em que as ações já propostas iam sendo finalizadas, dando ensejo à crise do judi-ciário e, consequentemente, dificultando o acesso à justiça. Entretanto, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, o legisla-dor buscou a adoção de medidas que objetivassem a resolução de con-flitos de forma mais célere e com maiores proveitos para os litigantes, sem que estes ficassem à mercê da morosidade jurisdicional. Nesse pa-norama, o presente artigo objetiva apresentar uma análise dos métodos alternativos de resolução de conflitos como mecanismo de efetivação do direito de acesso à justiça. Para tanto, destaca-se acerca dos meios não adversariais de resolução de litígios, primeiramente, por meio da indicação das modalidades existentes e suas principais características, e, então, da explanação de como é possível tornar efetivo o acesso à justiça mediante a aplicação de tais métodos.

Palavras-chave: Métodos alternativos de resolução de conflitos. Aces-so à justiça. Litígio.

Abstract: It is known that living in society corresponds to the inevita-bility of conflicts in view of the plurality of opinions, hence the emer-gence of new demands and new social appeals according to the trans-formations that took place in a given context and historical moment. It was in this way that conflicts were no longer resolved solely in the pri-vate sphere and began to be discussed by the so-called state jurisdiction. However, over time, and with the arrival of new changes caused by modernity that affected society, the State stopped being quick enough when providing jurisdictional protection, and the Judiciary became full of new disputes to be resolved, in the same proportion as the actions already proposed were being finalized, giving rise to the crisis of the

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judiciary, and, consequently, hindering access to justice. However, with the entry into force of the Brazilian Code of Civil Procedure, in 2015, the legislator sought to adopt measures aimed at solving conflicts more quickly and with greater benefits for litigants, without leaving them at the mercy of judicial delays. In this context, this article aims to present an analysis of alternative methods of conflict resolution as a mechanism to enforce the right of access to justice. Therefore, it stands out about the non-adversarial means of resolving disputes, firstly, by indicating the existing modalities and their main characteristics, and then by ex-plaining how it is possible to make access to justice effective through the application of such methods.

Keywords: Alternative methods of conflict resolution. Access to justi-ce. Litigation.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objeto realizar uma análise da possibi-lidade de se utilizar os métodos alternativos de resolução de conflitos como forma de tornar efetivo o direito de acesso à justiça, e, como objetivo específico explanar brevemente acerca dos diferentes tipos de meios não adversariais de solução de contendas existentes, a exemplo da conciliação e da mediação, e, na sequência, discutir efetivamente sobre a indagação central desta pesquisa, que consiste na análise da uti-lização dos meios consensuais de solução de litígios como ferramentas capazes de auxiliar na efetivação do acesso à justiça (PASOLD, 2007).

Para tanto, este artigo encontra-se dividido em dois itens.No primeiro, tecer-se-ão algumas considerações acerca dos métodos

alternativos de resolução de conflitos propriamente ditos. Desse modo, destacar-se-ão as principais características de cada uma das figuras classificadas como formas não adversariais de se resolver uma lide, além de se rascunhar brevemente pontuais anotações a respeito de seus conceitos, surgimento e desenvolvimento.

Já no segundo item, abordar-se-á a problemática central deste estudo, que consiste na discussão quanto à utilização dos métodos alternativos de resolução de conflitos como mecanismo de efetivação do direito de

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acesso à justiça, destacando-se, com isso, tópicos pertinentes no que tange à crise do judiciário brasileiro, causada por um abarrotamento jurídico; ao surgimento da jurisdição estatal e, com ela, a criação do direito de acesso à justiça; e à análise de se considerar os meios não adversariais de solução de conflitos como uma maneira capaz de tor-nar efetivo o acesso à justiça contemplado pelo ordenamento jurídico vigente.

Ademais, o presente artigo se encerra com as considerações finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a possi-bilidade de os direitos humanos contribuírem para o debate de gênero e, igualmente, apresentarem mecanismos de proteção para as mulheres que vivem em países com regimes totalitários na atualidade, seguidas das referências bibliográficas das obras consultadas.

Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de inves-tigação foi utilizado o método indutivo; e, na fase de tratamento de dados, o método cartesiano. E o relatório dos resultados expresso no presente artigo é composto na base lógica indutiva (LEITE, 2001) e (PASOLD, 2007).

Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas do refe-rente, da categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica (PASOLD, 2007).

2. MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: MODALIDADES E CARACTERÍSTICAS

De antemão, imprescindível realizar alguns apontamentos introdu-tórios acerca da ideia de conflito, posto que se pretende destacar, neste primeiro momento, sobre as formas existentes para se dirimir uma con-trovérsia. Assim, faz-se cabível delimitar o que se deve entender por conflito.

Sobre isso, valendo-se da definição de Antônio Rodrigues de Freitas Júnior (2009, p. 518):

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[...] situações em que estejam presentes, simultaneamente:1. no plano objetivo: um problema alocativo incidente sobre bens tidos por escassos ou encargos tidos como necessários, sejam os bens e os encargos de natureza material ou imaterial; 2. no plano comportamental: consciente ou inconsciente, intencio-nal ou não, contraposição no vetor de conduta entre dois sujeitos; e 3. no plano anímico ou motivacional: sujeitos portadores de per-cepções diferentes sobre como tratar o problema alocativo, como função de valores de justiça.

Dito isso, destaca-se que as demandas podem ser solucionadas por meio da utilização de técnicas de composição adversarial, também co-nhecida como heterocomposição, ou não adversarial, igualmente cha-mada de autocomposição, além da possibilidade de se empregar a auto-tutela ou a autodefesa (GIL, 2020).

No que tange aos métodos adversariais, as partes envolvidas reali-zam uma espécie de terceirização da resolução da lide, de modo que um terceiro imparcial fique responsável por julgar e empregar o direito ou a equidade. Nesse caso, habitualmente, encontra-se a jurisdição estatal, a jurisdição administrativa e a arbitragem (quando se tratar de jurisdição privada). Ademais, ressalta-se que em nada implicam os sentimentos da parte sucumbente nessa modalidade, bem como é importante sublinhar que a coerção existente aqui se trata de prerrogativa exclusiva da juris-dição estatal, ou seja, do Poder Judiciário (GIL, 2020).

De outro lado, no que concerne à autocomposição, as partes, entre elas ou com o auxílio de terceiros, agem na direção de encontrar a solu-ção para o problema. Isso acontece, comumente, na transação, na con-ciliação e na mediação, com a possibilidade qualitativa de solucionar a contenda em sua totalidade, levando em consideração a questão socio-lógica (paz social) e o psicológico das partes conflitantes (paz interior) (GIL, 2020).

Ademais, acerca da terceira e última classificação, grifa-se que a au-totutela, também conhecida por autodefesa, consiste, basicamente, na força, ou seja, no poder de coação em si, o que faz com que qualquer noção de justiça seja deixada de lado em segundo plano. Em relação

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ao presente instituto, pode ser resumido como “a busca da justiça pelas próprias mãos” (CUPERTINO, 2002).

Tendo isso em vista, observa-se que a presente pesquisa visa dar ên-fase ao segundo grupo de resolução de conflitos, ou seja, à autocompo-sição, que contempla os métodos alternativos de solução de controvér-sias, os quais serão apresentados de forma breve, mas separadamente, na sequência deste item, a fim de que seja possível traçar suas defini-ções e apontar suas principais características.

Nesse panorama, pertinente iniciar com uma reflexão feita pela ju-rista Fernanda Tartuce, apud Rudolf von Ihering (2018, p. 102), em sua obra, no que diz respeito à utilização dos meios não adversariais. Veja-se:

Rudolf von Ihering, em sua lapidar obra sobre a luta pelo direi-to, mencionava a possibilidade de, em certas circunstâncias, a au-tocomposição ser a melhor saída para o conflito: em um simples choque de interesses em que está em jogo só o valor pecuniário do bem, entende-se que o contendor raciocine em termos de relação “custo-benefício” para decidir se irá entrar em juízo ou transigir; em tal caso, a composição dos litigantes, ponto de encontro de um cálculo de probabilidades, seria não só uma saída plausível, mas a melhor das soluções possíveis.

Feito isso, chega o momento de realizar os destaques cabíveis e ne-cessários sobre os mecanismos alternativos de solução de litígios, quais sejam, a conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem.

No que se refere à primeira delas, aponta-se que, de acordo com Alan Junqueira Gil (2020, p. 103), “a conciliação é um processo autocompo-sitivo em que as partes ou os interessados são auxiliados por um tercei-ro, neutro ao conflito, que visa chegar a uma solução ou a um acordo espontaneamente adotado pelas partes”.

No mesmo viés, completa Adolfo Braga Neto (2020, p. 150-151):

A conciliação, genericamente, é uma forma de resolução pacífica de disputas e de lides administrada por um terceiro investido de autoridade decisória ou validatória na questão posta ou delegado por quem a tenha, judicial ou extrajudicialmente, a quem compe-

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te aproximar as partes, gerenciando e controlando as negociações, aparando arestas, sugerindo e formulando propostas, no sentido de apontar vantagens e desvantagens, sempre visando um acordo. Caso as partes não cheguem a esse acordo, na hipótese de frustração da conciliação, a autoridade proferirá a sua decisão.

No mais, cabe ressaltar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a prática encontra regulamentação no Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) (BRASIL, 2015), podendo ser aplicada nos mais diversos campos do direito, desde a área trabalhista, familiar e empresarial, até a societária e ambiental (GIL, 2020).

No que diz respeito à sua normatização, mais uma vez, nas palavras de Alan Junqueira Gil (2020, p. 113), importante salientar o seguinte:

A conciliação é compulsória, na modalidade judicial, tendo em vista que o artigo 334 do Código de Processo Civil impõe ao juiz a determinada de audiência. A realização da audiência de conci-liação no procedimento comum só não ocorrerá se ambas as artes dispensarem a composição consensual ou quando não for admitida a autocomposição, nos termos do §4º do artigo 165 do Código de Processo Civil.A conciliação pode ser estipulada por cláusula contratual no intuito de evitar que a controvérsia alcance diretamente à heterocomposi-ção. A cláusula que prevê a conciliação pactuada pelas partes rece-be o nome de cláusula escalonada.O inciso I do artigo 98 da Constituição Federal previu a criação dos juizados especiais pelos Estados e pela União, todavia, os juizados só foram implantados com a Lei n. 9.099/95. [...] Os Juizados Es-peciais Federais só foram instituídos pela Lei n. 10.2589/2001. [...] Em 2009, a Lei n. 12.153 criou os Juizados Especiais Estaduais da Fazenda Pública [...].

Quanto ao próximo método alternativo de solução de conflitos, pode--se fazer uso da definição concisa de Roberto Portugal Bacellar (2016, p. 107), que estabelece mediação como:

[...] um processo transdisciplinar, é técnica lato sensu e arte que se destina a aproximar pessoas interessadas na resolução de um con-flito e induzi-la a perceber no conflito a oportunidade de encontrar,

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por meio de uma conversa, soluções criativas, com ganhos mútuos e que preservem o relacionamento entre elas.

Ainda sobre a figura indicada acima, cumpre ressaltar que as partes em conflito contarão com a ajuda de um terceiro, este devendo ser neu-tro à lide, ou com um painel de pessoas que não possuam qualquer tipo de interesse no conflito, cujo papel é o de auxiliá-las a chegarem em uma composição. O terceiro em questão é tido como um agente facili-tador, ficando responsável por tentar restaurar o vínculo existente entre as partes em discussão (GIL, 2020).

Para terminar, válido, também, apresentar as palavras de Mauro Ga-glietti (2013, p. 167-202) em relação ao tema:

[...] Trata-se de um processo de gestão humana de conflitos no qual intervém um terceiro para construir uma situação possível ao (re)estabelecer as condições para que o amor se faça efetivo na vida das pessoas. De modo a ensejar a construção das bases sobre as quais se sustentará a realização da cidadania e a vida social.[...] Os instrumentos mediadores transformam os desejos e as ne-cessidades dos conflitados, possibilitando a interação, o diálogo e o entendimento, poupando as partes de um desgastante enfrenta-mento.

Já no que concerne ao instituto da negociação, em suma, definem ge-nericamente Roger Fisher, Willian Ury e Bruce Patton (2005, p. 15) que “a negociação é um meio básico de conseguir o que se quer de alguém, e seja nos negócios, no governo ou na família, as pessoas chegam à maioria das decisões por meio da negociação”.

Na mesma linha, outro conceito que se pode adotar é aquele cons-truído por Luiz Antonio Scavone Junior (2019, p. 271), que define o instituto da negociação como sendo:

[...] o conjunto de atos que visam a solução de conflitos das mais variadas espécies, como os conflitos pessoais, profissionais, políti-cos, diplomáticos, familiares, jurídicos, trabalhistas, empresariais, comerciais etc.

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Outrossim, destaca-se que, na negociação, as partes possuem total controle do processo e do seu resultado, ficando a cargo delas fixar todo e qualquer protocolo a ser seguido. Nesse caso, deve-se ter bem claro que o problema de um é considerado o problema de todos, posto que to-das as partes envolvidas apresentam interesse na solução do litígio, de-sejando, com isso, uma resolução mútua das adversidades (GIL, 2020).

Ademais, de acordo com os ensinamentos de Adolfo Braga Neto (2020, p. 155, grifo nosso), a negociação, no que tange às partes envol-vidas, pode receber três classificações distintas. São elas:

A negociação, em relação ao aspecto “partes”, pode ser classificada em: Negociação simples: Caracteriza-se por dela participarem ape-nas dois polos, sejam eles coletivos, difusos ou individuais. Como exemplos: 1) a negociação direta entre um grupo comprador e um vendedor de um estabelecimento comercial; e 2) a negociação de um consumidor com um fornecedor de serviços. Negociação multipolos: Nela, há mais de dois polos na negocia-ção, sejam eles coletivos, difusos ou individuais. Por exemplo: uma negociação de compra e venda de um imóvel, em que estão pre-sentes o comprador, o vendedor, o corretor, o cartório e o banco financiador. Negociação coletiva: Identifica-se pela existência de um ou mais grupos de sujeitos participantes de um dos polos da negociação, podendo ser coletiva simples ou multipolos. Exemplos são as nego-ciações de um sindicato com determinada indústria pela redução de jornada de trabalho; ou do Poder Público com um grupo social para a desocupação de uma área invadida.

Por último, mas não menos importante, encontra-se o instituto da arbitragem, que, conforme Carlos Alberto Carmona (2004, p. 51), “[...] de forma ampla, é uma técnica para solução de controvérsias por meio da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção, sem in-tervenção do Estado [...]”.

Pelo mesmo caminho segue Mariana de Souza Saraiva (2019, p. 28), que conceitua arbitragem como “[...] um meio privado e adequado de solução de controvérsias, pelo qual as partes, fazendo uso da autonomia

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privada, delegam a terceiros, geralmente especialistas na matéria que será discutida, a solução de determinado litígio surgido entre si”.

Além disso, grifa-se que o instituto da arbitragem se encontra regu-lamentado legalmente pela Lei n. 9.307/1996 (BRASIL, 1996) e pelo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), arts. 3º, §1º; 189, IV; e 359, bem como sua instauração está autorizada a acontecer de duas manei-ras, seja pela consolidação contratual, hipótese de inserção de cláusula específica, ou pelo compromisso arbitral, que se desenvolve por meio de livre negociação entre as partes no instante em que surgem os confli-tos (MARASCA, 2013).

Sobre a figura estudada aqui, cabe indicar, ainda, que se trata da mo-dalidade mais adequada para os conflitos que precisam de algum tipo de conhecimento técnico para o seu deslinde, podendo ser utilizada sem restrições em relação às demandas que envolvam direito patrimonial disponível, ou seja, aqueles direitos nos quais as partes envolvidas po-dem livremente transacionar (contratos em geral, tanto na área civil, comercial, trabalhista e relações de consumo, bastando que o alienante possua plena capacidade jurídica para o fim pretendido) (MARASCA, 2013).

Realizadas tais considerações, encerra-se este item com a certeza de que as informações expostas são capazes de elucidar o que é um con-flito, quais as formas existentes para se dirimir uma contenda e, nesse sentido, no que consiste os meios consensuais de solução de controvér-sias, reunindo, de forma sucinta e didática, as principais características de cada uma das técnicas que integram à autocomposição (conciliação, mediação, negociação e arbitragem), o que torna possível avançar na discussão do tema proposto.

3. OS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS COMO FORMA DE TORNAR EFETIVO O ACESSO À JUSTIÇA

Diante das definições já estabelecidas anteriormente acerca das prá-ticas que se classificam como meios não adversariais de resolução de

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conflitos, é o momento, então, de passar à análise da problemática cen-tral deste artigo. Para tanto, coerente dar início a este segundo item com algumas breves anotações no que toca ao direito de acesso à justiça.

Primeiramente, pertinente apresentar o significado do termo que, segundo José Maria Rosa Tesheiner e Rennan Faria Kruger Thamay (2015, p. 52), objetiva garantir “a possibilidade de levar seus reclames ao Poder Judiciário e deste poder receber uma resposta, qual seja a mais adequada ao caso concreto, visando a uma prestação da tutela jurisdi-cional efetiva”.

Nesse tocante, evidencia-se o pensamento de Fabiana Marion Spen-gler e Gabriel de Lima Bedin (2013, p. 92-93):

O direito de acesso à justiça é importantíssimo na sociedade con-temporânea e possui status de direito fundamental. Ao longo da história, porém, o direito de acesso à justiça passou por inúmeras transformações, sendo entendido e exercido de forma diversa na época antiga, medieval, moderna e contemporânea.A problemática do direito de acesso à justiça se fez perceber mais intensamente nos Estados liberais burgueses dos séculos XVIII e XIX. O embrião do direito ao acesso à justiça, porém, pode ser apreendido no período antigo, pois se visualizam no Código de Hamurabi as primeiras garantias que podem ser entendidas como inibidoras de opressão entre os indivíduos, bem como o incentivo a estes a procurarem a instância judicial, no caso, o próprio soberano.

Sobre o aspecto história, pontua-se, ainda, nas palavras de Fabiana Marion Spengler e Gabriel de Lima Bedin (2013, p. 94-95):

Na Idade Antiga, portanto, a figura do julgador passou do soberano, por todos os cidadãos, pelo sacerdote e chegou ao pretor, sendo neste último o início da justiça pública, isto é, da jurisdição.Na modernidade, sobretudo nos Estados liberais burgueses dos sé-culos XVIII e XIX, os procedimentos adotados para o tratamento de controvérsias refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos. Dessa forma, o acesso à justiça restringia-se ao direito formal do cidadão perante o Poder Judiciário de propor ou contestar uma ação.Enquanto o direito de acesso à justiça era consolidado na Europa (mesmo no período do sistema laissez-faire dos séculos XVIII e

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XIX), no Brasil andava de passos lentos. Do ponto de vista legisla-tivo, havia pouquíssimas referências a um direito próprio e exigível de acesso à justiça.

Quanto a isso, destaca-se que as questões envolvendo o direito de acesso à justiça fizeram-se notar de forma mais acentuada com o sur-gimento dos Estados liberais burgueses, nos séculos XVIII e XIX, momento no qual o acesso à justiça, ou seja, ao próprio soberano, en-contrava-se fortemente conectado à religião. Com o avançar do tempo, durante a Idade Média, a figura do julgador modificou-se: passou do soberano, por todos os cidadãos, na sequência pelo sacerdote, chegan-do, então, ao pretor, sendo este o marco inicial do que se conhece por justiça pública, em outras palavras, a jurisdição (BEDIN; SPENGLER, 2013).

Com a chegada da Modernidade, o acesso à justiça do cidadão era bem limitado junto ao judiciário, podendo somente iniciar um contes-tar, uma demanda. Nesse mesmo período, ao passo em que tal direito se mostrava crescendo e ganhando força na Europa, aqui no Brasil a mes-ma pretensão caminhava vagarosamente, tendo ganhado força apenas na década de 1980 com a edição de diversas leis que ajudaram a tornar concreto o direito de acesso à justiça, a exemplo das seguintes: Lei fe-deral nº 7.019/82 (BRASIL, 1982); Lei federal nº 6.938/81 (BRASIL, 1981); Lei federal nº 7.224/84 (BRASIL, 1984); Lei federal nº 7.347/85 (BRASIL, 1985); Lei federal nº 7.853/89 (BRASIL, 1989); Lei federal nº 7.913/89 (BRASIL, 1989); Lei federal nº 8.069/90 (BRASIL, 1990); Lei federal nº 8.078/90 (BRASIL, 1990); e Lei federal nº 9.099/95 (BRASIL, 1995), esta última responsável por instituir os Juizados Es-peciais Cíveis e Criminais (BEDIN; SPENGLER, 2013).

Ainda no que tange ao direito de acesso à justiça em solo brasileiro, a garantia em questão somente veio a apresentar maior relevância e maior efetividade, conforme mencionado acima, posteriormente a promulga-ção da Constituição Federal de 1988, o que ocorreu por conta das prá-ticas políticas e jurídicas que ensejaram a universalização da jurisdição diante da adoção de diversas medidas, dentre as quais se pode indicar: a contemplação do princípio da igualdade, a consagração do princípio

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da igualdade material (art. 3º); alargamento do conceito de assistência judiciária gratuita (art. 5º, LXXIV), compreendendo também o direito à informação, às consultas e à assistência judicial e extrajudicial; e a previsão de criação dos juizados especiais para julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade e penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I) (BEDIN; SPENGLER, 2013).

Visto isso, novamente nas palavras de Fabiana Marion Spengler e Gabriel de Lima Bedin (2013, p. 92-93 e 97-104, grifo nosso), pode-se concluir que:

Dessa forma, o direito ao acesso à justiça sofreu inúmeras transfor-mações importantes ao longo da história, passando da influência direta da religião para o monopólio do Estado laico; de mero direito formal e abstrato para se tornar uma garantia essencial ao Estado Democrático de Direito, bem como fundamental para efetivar a rea-lização de todos os direitos. Com efeito, [...] adquiriu cada vez mais protagonismo, passando a ser entendido como um direito essencial e garantidor dos direitos humanos. [...] evoluiu e se complexou juntamente com a sociedade. Os conflitos deixaram de ser julga-dos pelo soberano para ser tratados pelo Estado; abandonou-se a inspiração divina como fundamento de decidir, passando a respon-sabilidade para o Estado laico; e deixou de ser um direito formal do Estado liberal para se transformar em um direito concreto do Estado social, responsável pela concretização dos direitos humanos.

Delineado esse breve panorama histórico dando conta do conceito, surgimento e desenvolvimento do direito de acesso à justiça, depara-se com outro cenário, esse agora, muito atual, fácil de se prever, porém difícil de se modificar, e eis aqui que reside o ponto central deste estudo.

Pois bem.Sabe-se que fazer parte de uma sociedade complexa e desenvolvida

acarreta, inevitavelmente, o surgimento de inúmeras novas demandas e apelos sociais a todo momento. Quando se está em constante movimen-to e transformação, é esperado que os cidadãos precisem da prestação da tutela jurisdicional cada vez mais, posto novas lides se formarem to-dos os dias. Entretanto, nota-se, de primeira, que costuma haver muito mais criação e novas contendas que finalização daquelas já existentes.

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E é nesse ponto que o acesso à justiça descarrilha, uma vez que não deve ser garantido tão somente o ingresso junto ao poder judiciário, mas, também, o processamento com celeridade e a resolução da contro-vérsia levada a juízo.

Nesse panorama, defende Elisângela Nedel Marasca (2013, p. 55):

Diante da grande complexidade da sociedade atual, não é difícil perceber que o monopólio da Justiça pelo poder Judiciário está em crise e necessita de reformas urgentes para suportar o aumento da demanda, bem como para conseguir dar efetividade ao princípio do acesso à Justiça a todos os cidadãos, sem distinção. Diante dos problemas que essa função de poder do Estado enfrenta constata-se que a mesma não possui condições de atingir os resultados que visa a alcançar, ou seja, a composição e a mantença da paz social.

E, na mesma linha, corroboram Pedro Manoel Abreu e Ricardo Ta-deu Estanislau Prado (2018, p. 47):

A incapacidade do Poder Judiciário em assimilar a demanda gerada ao longo dos anos culminou em um número estrondoso de proces-sos que aguardam uma solução definitiva, revertendo-se numa Jus-tiça lenta, obstruída e engessada que se rumou para uma crise insti-tucional, a qual se convencionou a denominar “Crise do Judiciário”.

Sobre isso, pode-se elencar outros motivos como igualmente res-ponsáveis pela referida crise, a qual encontra base na precariedade dos meios que direcionam aos órgãos jurisdicionais do Estado, quais sejam, a ineficácia dos meios de acesso à justiça; a ausência de investimen-tos para manutenção e ampliação da estrutura dos órgãos do jurisdi-cionado; bem como a natureza ritualista dos instrumentos processuais nacionais. Outrossim, o período de duração do processo e o seu custo também correspondem a uma barreira considerável para a tranquilida-de da coletividade. Tais componentes, como é de se notar de imediato, coincidem para diminuir e tornar mais difícil o canal de acesso à justiça por meio do processo estatal (CUPERTINO, 2002).

É nesse contexto, tendo em vista o aumento considerável do número de ações propostas que precisam alcançar a prestação da tutela juris-dicional, encontrando-se o judiciário, desse modo, abarrotado, que os

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métodos alternativos de solução de conflitos entram em cena como uma forma de tornar o direito de acesso à justiça efetivo, visto que carregam, com suas técnicas, a possibilidade de solucionar as lides de maneira muito mais célere, garantindo que um grande número de litigantes pos-sa ver suas pretensões satisfeitas, bem como oportunizar àqueles que se declaram financeiramente menos favorecidos a resolução dos seus litígios, os quais, por muitas vezes, por conta da classe social a que pertencem as partes envolvidas, não chegam sequer a ser discutidos no judiciário, ou acabam não seguindo o curso processual que é esperado, posto os entraves que podem surgir.

Sobre o tema, Elisângela Nedel Marasca (2013, p. 56) faz algumas observações importantes e esclarecedoras:

Obstáculos econômicos, sociais, culturais, psicológicos e legais im-pedem o acesso à Justiça. Em virtude dessas várias barreiras ocorre uma descrença da população em relação às instituições estatais encarregadas de distribuir justiça, acreditando-se que ela não é destinada aos indivíduos pobres, mas somente para aqueles que desfrutam de grande poder econômico.Em virtude de os métodos tradicionais de resolução dos conflitos não conseguirem atender às necessidades sociais cada vez mais crescentes e complexas da população, os próprios indivíduos pas-saram a buscar, com mais frequência, meios consensuais para solu-cionar seus conflitos.

Nesse espectro, ainda nas palavras de Elisângela Nedel Marasca (2013, p. 56), conclui-se que:

Assim, a sociedade espera ansiosa pela instituição de novas téc-nicas de solução dos conflitos que venham, não como salvadoras, mas como auxiliares e incrementadoras das que já aplicamos hoje, pois só assim a população carente de oportunidades e recursos, que já é tão penalizada pelo destino, vivendo à margem da sociedade, poderá realmente ter acesso efetivo à Justiça e, conseqüentemente (sic), a realização da cidadania de forma plena.

Cumpre destacar, ainda, segundo André Gomma de Azevedo, que atualmente (2011, p. 14) “[...] o conceito de acesso à Justiça está intrin-

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secamente ligado à contínua redução de insatisfações com o sistema público de resolução de conflitos”.

Assim, ao olhar para o atual cenário brasileiro, é preciso prestar aten-ção às vantagens que as modalidades não contenciosas de resolução de controvérsias podem proporcionar a todos, em especial no que tange ao direito de acesso à justiça. Deve-se ter em mente, e bem claro, que não se trata de técnicas visando diminuir o trabalho dos profissionais da advocacia, muito menos modificar a competência do Judiciário, longe disso, uma vez que são encaradas por diversos juristas como procedi-mentos que existem na intenção de ajudar, acrescentar, fomentar, e não para prejudicar (MARASCA, 2013).

Nesse panorama, vislumbra-se, em suma, um sistema judiciário que atravessa uma fase conturbada, marcada por um número de ajuizamen-to de novas demandas muito superior à finalização das lides já em an-damento e que, no meio desse cenário um tanto quanto caótico, encon-trou, nas formas não adversariais de resolução de conflitos, um forte mecanismo aliado para que se consiga efetivamente garantir o direito de acesso à justiça para todos.

4. CONCLUSÃO

Verifica-se que fazer parte de uma sociedade significa que, inevita-velmente, com o passar do tempo, novas demandas surgirão, trazendo as mais diversas matérias a serem tuteladas. Tais contendas, por conta das modificações promovidas e sofridas pelo contexto em que se está inserido, culminarão em novos desafios a serem enfrentados e proble-mas a serem resolvidos, devendo, para tanto, sempre ser levada em con-sideração a necessidade de se refletir acerca da melhor resposta que se pode dar e como ela pode ser dada.

Dito isso, pontua-se que, em relação à temática abordada neste ar-tigo, foi possível aprender que os conflitos deixaram de ser resolvidos única e exclusivamente na esfera privada e passaram a ser discutidos pela chamada jurisdição estatal. Ocorre, entretanto, que, com a chegada de novas mudanças ocasionadas pela modernidade, o Estado deixou de

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ser célere o suficiente quando da prestação da tutela jurisdicional, dei-xando, então, de prestar assistência a muitas pessoas, não conseguindo, assim, dar efetividade ao direito de acesso à justiça.

Nesse panorama, conclui-se que, basicamente, o sistema judiciário brasileiro vem atravessando uma fase um tanto quanto conturbada, a qual se convencionou chamar de crise do judiciário, marcada por um número de ajuizamento de novas demandas muito superior à finalização das lides que já estão em andamento. No meio desse cenário um tanto quanto caótico, encontra-se, nos métodos alternativos de resolução de conflitos (conciliação, mediação, arbitragem e negociação), um forte mecanismo aliado para que se consiga efetivamente garantir o direito de acesso à justiça a todos, visto que as técnicas aqui mencionadas, muitas vezes, são invocadas de forma voluntária pelas partes envolvi-das, bem como se tratam de procedimentos que só acrescentam positi-vamente à relação jurídica.

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CONSTELAÇÃO FAMILIAR E A PROMOÇÃO DA ECONOMIA DO MEDO:

MAIS UMA DAS MUITAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER1

FAMILIAR CONSTELLATION AND THE PROMOTION OF THE ECONOMY OF FEAR: ANOTHER OF THE MANY

FORMS OF VIOLENCE AGAINST WOMAN

Cláudia Galiberne Ferreira2

Heitor Ferreira Gonzaga3

Romano José Enzweiler4

Resumo: Neste artigo, analisam-se o conceito, origens e estrutura da constelação familiar, terapia divulgada por Bert Hellinger. Evidencia--se, lado outro, a ligação havida entre constelações familiares e aliena-ção parental, elementos de um mesmo bloco de medidas que perpetuam as violências praticadas contra as mulheres. Sublinha-se o caráter ma-chista da teoria e seu intuito de nulificar o sistema protetivo dos vulne-ráveis previsto na Constituição Federal e materializado no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como na Lei Maria da Penha. É posta em discussão, também, a cientificidade da técnica aqui debatida, apre-sentando-se, depois, a teoria central como proposta pelo próprio Hellin-ger. Neste ponto, sem filtros e sem descontextualizações, são transcritos excertos da extensa obra de Hellinger, confirmando-se as hipóteses lan-

1. Texto gramaticalmente revisado pela inigualável Professora MSc. Maria Tereza de Queiroz Piacentini, da Academia Catarinense de Letras.2. Advogada. Pós-Graduada em Direito Processual Civil pelo CESUSC/Flo-rianópolis-SC. Autora de vários artigos e livros publicados no Brasil.3. Graduando em Direito pelo CESUSC/SC. Autor de artigos publicados em sites especializados.4. Juiz de Direito em Florianópolis/SC. Doutor em Direito pela Univali/SC e pela Universidade de Alicante, Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Univali/SC e pela Universidade de Alicante, Espanha.

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çadas de início. Por fim, são postas em xeque as ações do SUS quanto ao financiamento da pseudociência e, ainda, a legitimidade do Judiciá-rio na sua aplicação nos fóruns de justiça.

Palavras-Chave: Constelação familiar. Pseudociência. Poder Judiciá-rio. Financiamento SUS.

Abstract: In this article, concept, origins and structure of the family constellations are analyzed, a therapy disclosed by Bert Hellinger. It is evidenced, nonetheless, the link between family constellations and parental alienation, elements of a block of measures that perpetuate vi-olences practiced against women. The sexist nature of the theory and its intention to nullify the protective system of the vulnerables provided by the Federal Constitution and materialized in the Statute of Children and Adolescents, as well as in the Maria da Penha Law, is underlined. The scientificity of the technique here debated is also put into discus-sion, followed by the exposition of the central theory as proposed by Hellinger himself. At this point, without filters and without decontex-tualizations, excerpts from Hellinger’s extensive work are transcribed, confirming the hypotheses initially launched. Finally, the actions of the SUS regarding the financing of pseudoscience are challenged, as well as the legitimacy of the Judiciary in its application in justice courts

Keywords: Familiar Constellation. Pseudoscience. Judiciary system. Public health financing (SUS).

1. INTRODUÇÃO

A Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, de maneira inédita no Brasil, abriu neste ano espaço singular para o debate qualificado e científico acerca de um tema candente que se encontra na ordem do dia dos cursos de Direito e fóruns do Brasil e do mundo: as constelações familiares.

O programa levado ao ar pela ESMESC no começo do mês de junho deste ano de 2021, em seu canal YouTube, intitulado “contra o sen-so comum: ponderações científicas multidisciplinares acerca da ideia de constelação” contou com impressionantes 5.454 visualizações até o momento da revisão final deste texto, menos de 20 dias após sua veicu-

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lação inicial, o que demonstra a pertinência e necessidade de discussão do tema de forma franca e afastada de interesses comerciais, como aqui proposta.

As constelações guardam relação íntima com outra questão-tabu, a alienação parental, igualmente objeto de nossa investigação faz um bom tempo.

Há cerca de sete anos, publicamos na prestigiosa revista da ES-MESC5 o artigo intitulado “Síndrome da Alienação Parental: uma iní-qua falácia”, texto esse referido em incontáveis trabalhos científicos Brasil afora. Na sequência, juntamente com outros tantos especialistas e pesquisadores brasileiros e espanhóis, estarrecidos com esse estado de coisas, publicamos o livro “A invisibilidade de crianças e mulheres ví-timas da perversidade da lei de alienação parental: pedofilia, violência e barbarismo” (FERREIRA; ENZWEILER, 2019), no qual abordamos cientificamente, com ineditismo no Brasil, o tema da alienação paren-tal, que já havia se transformado em lei e começava a ser julgado pelas Cortes brasileiras.

Na época, a expressão “síndrome da alienação parental” (SAP) era quase que totalmente desconhecida pela maioria da população, até mes-mo entre os aplicadores do Direito, uma vez que a aprovação da lei que a inseriu no ordenamento jurídico havia ocorrido sem qualquer debate público ou consenso esperado.

Na verdade, o déficit democrático na feitura de leis que impactam dessa maneira a vida das pessoas, como esta da Lei da Alienação Paren-tal (Lei n. 12.318, de 26 de agosto de 2010 -LAP), tem sido uma cons-tante lamentável nos tempos dessa estranha e-democracia (GOMES, 2018), na qual influencers das redes sociais ditam comportamentos e definem o certo e o errado em absolutamente tudo, do aborto à cor da roupa que deve ser combinada.

A SAP, transmutada em norma pela mágica legislativa operada de maneira pouco ortodoxa, passou a ser utilizada pelos Tribunais, advo-

5. Consulte: https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/97.

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gados, psicólogos e partes, sem maior reflexão científica e sem crivo acadêmico qualificado.

A LAP agrada segmentos que estão animados com a “economia do medo” daí gerada, pois a teoria da ameaça engendrada por Gardner, o criador da SAP, permite aos homens mais fácil negociação da divisão patrimonial e definição dos valores da pensão.

Mães e prole, a partir disso, não raro têm tolhidas as chances de orga-nizar e refazer a vida. Vivem à sombra do fantasma do outro, que lhes exige especialmente seu tempo, o qual agora lhe pertence, para sempre. É o mais puro estado da arte da maldade.

A análise dos processos judiciais que tramitam nas varas de família revela o quadro desolador que tomou conta dos fóruns. Genitoras e fi-lhos apavorados com a possibilidade de serem afastados sob a singela acusação de haver “indícios” de ter ela dificultado o convívio da criança com o pai. Basta o genitor se sentir contrariado em quaisquer de suas cambiantes vontades para que isso, de fato, aconteça.

Hoje, em uma quantidade impressionante de litígios de família cons-tam, explícita ou sub-repticiamente, pedidos para que sejam aplicadas às mães, liminarmente, as severas punições previstas na LAP. Um ras-cunho de laudo, ou por vezes nem isso, é o suficiente para que a criança seja não só afastada da mãe, mas impedida de ter contato com ela por longo tempo. É a teoria da ameaça de Gardner em plena atividade, des-truindo vidas e almas, sob o olhar complacente do Estado e seus agen-tes, pagos para preservar e proteger os vulneráveis.

E assim, a alienação parental – teoria acientífica criada por um perito judicial (Richard Gardner) que defendia especialmente religiosos acu-sados da prática de pedofilia, teoria esta que vem sendo severamente questionada mundo afora – passou a ser tomada, no Brasil, como ver-dade incontroversa e incontrastável.

Somente após mais de dez anos, com um rastro de imenso sofrimento infligido a mães e crianças, vítimas da aplicação de tão bárbara “teoria” (e lei), teve início o debate, ainda tímido, sobre sua origem e total au-sência de seriedade.

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Alguns poucos corajosos jornalistas6 e muitas das abnegadas mães aceitaram desafiar o status quo e passaram a denunciar os abusos come-tidos pelo sistema que as pune de maneira tão grotesca. Mães e crianças vitimadas foram ouvidas por congressistas e tentativas legislativas de revogação da lei foram propostas, ainda sem sucesso.

Uma maior consciência acerca da prática de violência contra mulhe-res e crianças tem permitido que esse debate, aos poucos, floresça. Po-rém o caminho a ser percorrido para se reverter/revogar o uso e aceita-ção da LAP será muito árduo, pois solidificado não só no ordenamento jurídico mas no imaginário coletivo, contando com inúmeros simpati-zantes, movidos pelos mais diversos e escusos interesses.

Nesse contexto, com enorme preocupação e perplexidade, vimos sur-gir de forma igualmente sutil e insidiosa a defesa e aplicação em nosso país de outra teoria acientífica, tida como uma “solução” para todos os males da alma (entre eles a cura das “bruxas alienadoras”), uma técnica de resolução e mediação de conflitos, em especial no âmbito familiar.

A chamada “constelação familiar” foi criada por Bert Hellinger, cujo nome é Anton Suitbert “Bert” Hellinger, um ex-seminarista católico que, na segunda grande guerra, alistou- se no exército alemão como soldado, lutando na frente ocidental, onde foi capturado pelos aliados na Bélgica, fugindo dali para, ao final, tornar-se padre, vindo a morar na África do Sul, passando a atuar como missionário junto a tribos zulus. Hellinger deixou a batina e regressou à Alemanha, mudando-se depois para a capital da Áustria, Viena, fixando-se finalmente na Califórnia, Estados Unidos.

A leitura dos textos de Hellinger – leitura que se recomenda, é claro, para que o debate seja franco e honesto – revela, de maneira insofismá-vel, a origem e influências que compõem suas ideias. Ali fica clara a

6. Entre eles, o jornalista Tomás Chiaverini merece uma menção espe-cial, já que pioneiro no enfrentamento desse tema no Brasil. Veja os excelentes artigos por ele publicados: Lei expõe crianças ao abuso – em https://apubli-ca.org/tag/alienacao-parental/ e A lei para proteger pais divorciados que expõem suas crianças ao abuso https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/27/politica/1485522113_903880.html. Acesso em 3/6/2021.

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fixação do autor pelo adultismo, regressão, ocultismo, vidas passadas, xamanismo, panteísmo zulu, hierarquia e ordem7.

2. CONCEITO, ORIGENS E ESTRUTURA DA CONSTELAÇÃO FAMILIAR

A expressão “constelação” possui, na língua portuguesa, o significa-do de um grupo de estrelas próximas, de um grupo de pessoas brilhantes ou, ainda, “um conjunto de elementos que formam um todo coerente, ligados por algo em comum” (HOUAISS, 2009, p. 531).

Ao que se sabe, a primeira utilização registrada do termo na literatura científica em língua portuguesa é de Antonios I. Tekzis, no artigo “Cons-telação Familiar e Esquizofrenia”, publicado no ano de 1987. Neste estudo, estabelece o autor uma relação entre as dinâmicas familiares e a esquizofrenia em pacientes internados em hospitais psiquiátricos. Ali não é ofertada uma clara definição do que se entende por “constelação familiar”. Todavia, o termo nitidamente se refere ao “grupo familiar” dos pacientes hospitalizados, nomeando-se essa abordagem focada nas famílias como “Psicologia do Grupo Familiar” (TEKZIS, 1987).

Constitui-se a constelação familiar, de acordo com conceito registra-do no site mantido pela Hellinger Schule (Escola Hellinger que é gerida pela esposa de Bert Hellinger, Sophie Hellinger), num método aplicado a um grupo (mas pode ser individual) sob a orientação de um conste-lador, servindo “às pessoas para descobrir os antecedentes de fracasso, doença, desorientação, dependência ou algo semelhante”8.

7. “Muitas pessoas confundem o termo obedecer com ser subserviente ou inferior; outras confundem prepotência e beligerância com liderar. (...) Cada situação é única e as constelações servem para determinar quem deve liderar ou obedecer numa determinada família”. HELLINGER, Bert. A simetria ocul-ta do amor: por que o amor faz os relacionamentos darem certo. Tradução Gilson C. C. de Sousa. Revisão técnica Esther Frankel, Milton Corrêa e Mi-mansa Farny. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 43.8. Disponível em: https://www.hellinger.com/pt/pagina/constelacao-fami-liar/. Acesso em: 1º/6/2021.

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Em linhas gerais, inicia Hellinger sustentando a existência de um inconsciente familiar (sem descartar os outros dois já consagrados pela literatura: o inconsciente individual e o inconsciente coletivo), que atua sobre todos e cada um dos membros da família.

Para Hellinger, as “ordens do amor” constituem as leis básicas do relacionamento humano – (a) pertencimento ou vínculo, (b) ordem de chegada ou hierarquia, (c) equilíbrio – as quais atuam ao mesmo tem-po. Inobservadas as “ordens”, instala-se a desarmonia que deságua no fracasso dos objetivos da vida. Portanto, pode-se identificar a “ordem” como o primeiro elemento estrutural da teoria de Hellinger.

De acordo com os constelares, estamos inconscientemente conec-tados com o destino de nossos antepassados, presos a uma “memória celular”, ideia claramente sustentada nas formulações do inglês Rupert Sheldrake, o qual se utiliza das expressões “ressonância mórfica” e “campo morfogenético” (aquela história dos campos de energia com memória que faz com que os macaquinhos localizados em ilhas distan-tes desenvolvam habilidades semelhantes) para justificar as ligações de nosso destino com o dos que chegaram antes de nós9.

Igual fundamentação parece ser utilizada pelos adeptos doutras tera-pias que guardam semelhança com a Constelação, como Reiki, Qigong e Toque Terapêutico. Todas possuem, conforme Orsi, algo em comum com a Constelação Familiar “e cometem o mesmo erro das teorias ‘ar-queológicas’ que veem astronautas em pinturas pré-históricas. É [numa leitura inocente] uma mistura de perda de contexto e firme vontade de crer” (ORSI, 2019). Logo, identificamos a teoria dos campos morfoge-néticos como a segunda inspiração de Hellinger.

O surgimento das constelações possui, ainda e também, forte cone-xão com o que se denomina de a “nova medicina germânica”, promo-9. “Campos mórficos são estruturas que se estendem no espaço-tempo e moldam a forma e o comportamento de todos os sistemas do mundo material. Átomos, moléculas, cristais, organelas, células, tecidos, órgãos, organismos, sociedades, ecossistemas, sistemas planetários, sistemas solares, galáxias: cada uma dessas entidades estaria associada a um campo mórfico específico”. Revis-ta Galileu. Disponível em http://galileu.globo.com/edic/91/conhecimento1.htm. Acesso em 1º/6/2021.

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vida pelo ex-médico alemão Hamer, o qual afirmava que toda doença tinha origem num choque emocional, “que vírus e bactérias não cau-sam doenças, que doenças não existem e toda medicina moderna é uma conspiração dos judeus para matar não-judeus”. Hamer acabou sendo proibido de clinicar por ter diagnosticado uma criança como portadora de “conflitos” quando, na verdade, ela era portadora de um tumor de Wilms (DAMMERT Krebs, M.,2018 e WILLOW N.D, Dr. K., 2019).

Aos três elementos indicados (ordens, campo morfogenético e nova medicina germânica) juntou-se um quarto aspecto inspirador dos cons-telares: a biodescodificação, uma “terapia natural” que promete a cura física e emocional, cujo pressuposto reside na descoberta de que toda doença é consequência de nossa forma de pensar ou encarar a vida10.

O quinto elemento que forma a estrutura da constelação é o ema-ranhamento, conceito largamente utilizado por Hellinger ao longo de todos os seus livros. O termo possui inegável inspiração na expressão emaranhamento ou entrelaçamento quântico, empregado pela ciência física e foi, aparentemente, apropriado pela constelação. O fenômeno que se conhece como emaranhamento ou entrelaçamento quântico, foi inicialmente descrito por Einstein, Podolsky e Rosen, em texto datado de 1935 (HENRIQUE, 2014). Einstein, aliás, referia-se ao fenômeno como ação fantasmagórica à distância. Como exemplifica José Roberto Castilho Piqueira, “duas partículas, elétrons, por exemplo, geradas si-multaneamente e em seguida separadas, têm spin não definido em torno de qualquer eixo enquanto nenhuma medida for efetuada. Entretanto, quando o spin de uma delas é medido, assume um certo valor (horário ou anti-horário) e então o spin da outra também se torna conhecido, mesmo que não se tenha acesso a ela” (PIQUEIRA, 2011). Assim, a no-ção nuclear deste emaranhamento (fenômeno estudado pela mecânica quântica) sugere, basicamente, a existência de fortes correlações entre dois ou mais objetos, mesmo que espacialmente separados por muitos anos-luz.

10. Disponível em: https://kinepharma.es/blog/pt-pt/2019/08/13/que-es-la--biodescodificacion-y-para- que-se-utiliza/ Acesso em 2/2/2021

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É possível também, até pela formação de Hellinger, que o conceito junguiano de sincronicidade esteja presente, mesmo de maneira discre-ta, na proposta constelar. De acordo com Letícia Capriotti, sincronici-dade é “um conceito empírico que surge para tentar dar conta daquilo que foge à explicação causal. Jung diz que ‘a ligação entre os aconteci-mentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro princípio de explicação’. A física moderna tornou relativa a validade das leis naturais e assim percebe-mos que a causalidade é um princípio válido apenas estatisticamente e que não dá conta dos fenômenos raros e aleatórios”. Conforme Capriot-ti, oferece Jung três categorias de sincronicidade: a) a primeira delas refere a “coincidência de um estado psíquico com um evento externo objetivo simultâneo”; b) a segunda define a “coincidência de um estado psíquico com um evento externo simultâneo mas distante no espaço”; c) e, como terceira categoria, a “coincidência de um estado psíquico com um evento externo distante no tempo” (CAPRIOTTI s/d).

Conceituada a constelação e definidos os principais elementos que a inspiram ou sustentam, é possível passarmos ao escrutínio de sua cien-tificidade.

3. UMA DISCUSSÃO INADIÁVEL ACERCA DA CIENTIFICIDADE DA CONSTELAÇÃO

Assim como se dá com a alienação parental, as constelações familia-res fazem parte das discussões nos lares e nos fóruns brasileiros com frequência crescente. Está na moda. É suficiente uma busca na internet para localizar muitas centenas de textos, artigos, livros, blogues e ofer-tas de cursos constelares que se dizem capazes de entender e tratar toda a sorte de doenças e transtornos.

Por dever de honestidade intelectual, enorme cuidado deve ser des-pendido com a busca das origens, eticidade e cientificidade de qualquer proposta de resolução de problemas e tratamento.

Afinal de contas, sendo a constelação uma técnica aplicada inclusive nos fóruns, muitas vezes com o patrocínio público, como ocorre no

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ambiente SUS, o mínimo que se espera é a certeza de um investimento abalizado, a fim de evitar o esvaziamento da norma constitucional que exige respeito ao uso de nosso dinheiro e aos princípios da eficiência, moralidade e economicidade.

No instigante To explain the world: the discovery of modern science (WEINBERG, 2015), Steven Weinberg narra a história da ciência desde os gregos até os tempos modernos. Um dos principais eixos do texto de Weinberg passa pela discussão dos objetivos e métodos da ciência moderna e o impacto que essa descoberta teve no conhecimento e no impressionante desenvolvimento de nossa civilização. Para o autor, ga-nhador do prêmio Nobel de física, a espetacular melhoria da qualidade de vida da humanidade é fruto da aplicação rigorosa do método científi-co. Não é ele, evidentemente, infalível, mas tem sido de enorme utilida-de para nos afastar de charlatães e vigaristas, demagogos e populistas.

São os cientistas (e seus métodos), conclui Weinberg, que nos prote-gem da abundante oferta de ideias carentes de comprovação científica, como o criacionismo, o terra-planismo, a astrologia e, mais recente-mente, os movimentos antivacinação.

No “Guia contra mentiras”, comenta Daniel Levitin (2019) que a pa-lavra mais acessada no dicionário Oxford foi pós-verdade (post-truth), “definida como um adjetivo relacionado a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos influenciam menos a opinião pública do que o apelo à emoção e crença pessoal”. E lembra, ao depois, que a pseu-dociência se caracteriza exatamente pela não objetividade na coleta e tratamento dos dados para a busca da verdade. “Uma teoria”, pondera Levitin com inegável propriedade, “não é apenas uma ideia – é uma ideia baseada numa cuidadosa avaliação de evidência. E não uma evi-dência qualquer – estamos falando de evidência relevante ao assunto em questão, coletada de forma rigorosa e imparcial”. A verdade impor-ta, afinal, “pois uma era da pós-verdade é uma era de irracionalidade obstinada, que revoga todos os grandes avanços da humanidade” (LE-VITIN, 2019).

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Desta forma, não é qualquer amontoado de ideias e arranjos de pala-vras empoladas que se transforma em teoria. É preciso ciência (e méto-do) para que a transformação ocorra.

Milenaristas da new age, observa Rosas (2013), fincam sua crença em três pontos centrais, curiosamente em muito assemelhados aos apre-sentados pelos constelares: a) tudo está conectado entre si e com o uni-verso inteiro; b) todos temos uma energia ou força divina, porque todos somos (parte de) Deus e, portanto, temos um potencial ilimitado e inex-plorado; c) a filosofia do Oriente e as religiões das antigas civilizações contêm uma sabedoria universal e eterna (ROSAS, 2013).

As crenças fazem parte de nossa vida, desde sempre. Mas fé não é ciência, e o pior que se pode fazer é tentar “cientificizar” a existência de Deus, por exemplo. Na atualidade da vida que escolhemos e podemos viver, em não poucas ocasiões se opta pela fé em detrimento da certe-za proporcionada pela verdade científica. Pode ocorrer, eventualmente, que o resultado dessa escolha seja favorável à crença, o que sedimenta a esperança na existência de forças inescrutáveis, campos de energia, emaranhados, sincronia, ordem superior natural e biodescodificação ca-pazes de atender as preces dirigidas ao céu (a resposta “acausal”). Na maioria das vezes, porém, a natureza segue o curso ditado pela segura e rastreável relação de causa e efeito. Quando isso não se verifica é porque, muito provavelmente, não fomos capazes de identificar os ele-mentos da equação, seguindo então pelo caminho do esoterismo para justificar nossa incompreensão do mundo e as complexas relações que há nele.

Eleições dessa natureza, quando afetam somente a um indivíduo, tendem a ser inofensivas. Nestes casos, pode-se pagar o preço da cren-dice, pois o débito aparece apenas na contabilidade pessoal. Situação completamente diversa, porém, se dá quando são ofertadas ou impostas técnicas carentes de qualquer comprovação científica a terceiros, nor-malmente vulneráveis pelos mais variados motivos, com graves conse-quências na vida dessas pessoas.

Em nossa pesquisa acerca da constelação familiar, não foi localiza-do um único artigo publicado em revista de prestígio e com avaliação

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Qualis/CAPES afirmando (e documentando) a aplicação de métodos científicos para a comprovação da técnica proposta por Hellinger. Em consulta a instituições estrangeiras, igualmente nenhuma publicação que ateste e documente a cientificidade por trás da “teoria constelar” foi encontrada.

Da mesma forma inexiste, para além da bibliografia autorreferencia-da, qualquer estudo minimamente denso que comprove, sem se apoiar num quê de obscurantismo, a validade científica (com a utilização de métodos certificados por sociedades especializadas que gozem de res-peito internacional) das “teses” morfogenéticas de Scheldrake, da nova medicina germânica de Hamer, da biodescodificação ou do emaranha-mento (quântico) aplicado às pessoas, especialmente quando digam res-peito a vidas passadas.

Esse o ponto nodal! Constelação familiar – e o conjunto de “teorias” que a sustenta – não possui nenhum traço de ciência, e as ligações cos-turadas pelos seus defensores entre ciência (que busca a verdade, anali-sando de forma isenta os fatos e informações disponíveis) e os concei-tos constelares simplesmente não possuem sustentação. Como explica o Prof. Steven Novella, neurologista de Yale, citado por Pomeroy (2021), “a gravidade reside na ascensão de um pós-modernismo que sustenta ser a ciência simplesmente uma construção social que defende certos grupos e interesses”. No caso específico da medicina “ocidental” base-ada em evidências, destaca ele, “dizem os pós-modernistas, trata-se de um produto do colonialismo, que erroneamente relega à obscuridade outras formas de “medicina”, como a homeopatia, a medicina tradicio-nal chinesa e os sistemas de cura baseados na religião”. E conclui, com preocupação: “A verdade, colhida em pesquisas científicas, é que esses sistemas “alternativos” simplesmente não funcionam. Tratá-los como iguais à medicina baseada em evidências mata pessoas” (POMEROY, 2021).

Antônio Carlos Orsi, no texto “caricatura da ciência: a quântica da prosperidade”, comenta: “daria até para escrever um livro inteiro sobre esse hábito recorrente de proponentes de hipóteses esotéricas ou pseu-docientíficas, de achar que a ciência de ponta da época em que vivem

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deve, necessariamente, confirmar suas ideias malucas (como fazem com a Física Quântica hoje)”. E prossegue, com precisão:

As saídas usuais são propor um ‘campo de consciência’ ou trazer o olho de deus para a jogada. Ambas são manobras que destroem as pretensões científicas da área: não há evidência nenhuma de que um “campo de consciência” exista no Universo, seja lá o que isso for, e quando se põe deus no meio, bem, a conversa passa a ser sobre religião, não ciência (ORSI, 2019).

A constelação se utiliza das duas saídas: tenta vestir a capa ornada da ciência e, junto, adiciona uma boa e explícita pitada de religiosidade a essa equação.

O físico Heisenberg, por exemplo, é citado por Hellinger como se fosse o escritor de um almanaque de fácil compreensão, utilizado para emprestar nobreza ao discurso sobre o princípio da incerteza. Nada mais despropositado. Para entender ou mesmo citar Heisenberg, outro prêmio Nobel de física, seria preciso dominar conceitos mínimos de física quântica, o que, obviamente, não é o caso de Hellinger. Por isso, “enquanto o nome de Heisenberg passa a ser cada vez mais reconhe-cido como o pseudônimo de um fabricante fictício de meta-anfetami-na, figuras como Joe Dispenza (autor do imortal best-seller “You Are the Placebo: Making Your Mind Matter”), Gregg Braden (“The Divine Matrix: Bridging Time, Space, Miracles and Belief”) e Chopra apresen-tam documentários e são tratadas por parte da mídia como ‘autoridades científicas’” (SHAPPO, 2019).

A partir do argumento de autoridade conquistado com a citação de um prêmio Nobel, por exemplo, e para dar brilho e glamour ao seu jargão new age, inserem os defensores das pseudociências, em seus dis-cursos, alguns “conceitos quânticos”, com desmedida imprecisão e não aderência ao contexto real.

Essa é uma prática bastante comum nas ciências sociais, inclusive abundante no Direito. Há incontáveis livros e teses de doutoramento que se vinculam a algum ramo da ciência física, biológica ou matemá-tica para dali inferir algo, digamos, absurdo.

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Nessa mesma linha segue Morilla (2017), para quem as constela-ções familiares “configuram um perigoso método pseudocientífico”, uma vez inexistente qualquer tipo de estudo minimamente rigoroso que avalie sua eficácia, até porque nunca submetida (a técnica) a nenhum protocolo experimental sério, um modelo explicativo da realidade. Pelo contrário, “baseados na ressonância mórfica ou no misticismo quân-tico, os constelares acreditam unir os seres humanos entre si além do tempo e do espaço, através de uma “energia” completamente alheia à comprovação científica”. O perigo se agrava, ainda de acordo com Mo-rilla, “porque qualquer um pode converter-se em ‘facilitador’, não se requerendo sequer que possuam formação superior como psicólogos”. As constelações familiares, conclui, baseiam seu grande êxito na to-tal descarga de responsabilidade do indivíduo: “Ninguém é culpado de seus problemas. Tem câncer de pulmão. Não é porque fumou descon-troladamente, é porque seus avós tiveram uma separação desagradá-vel. Não encontra marido? Não é porque está fazendo algo errado, mas porque está expiando um fracasso amoroso de sua mãe quando jovem” (MORILLA, 2017).

De nossa banda, na seara do Direito, é como se afirmássemos que a sentença que julga o estuprador possui transcendência quântica, capaz de impulsionar quarks e léptons para redefinir, em nível subatômico, toda a arquitetura cerebral, a partir da ressonância mórfica causada pelo reposicionamento do córtex pré-frontal, causando um efeito borbole-ta e, no limite, a saturação e o colapso do universo. Portanto, a única maneira de evitar a ruína do mundo será respeitando e restaurando a ordem e o equilíbrio, colocando o pai de volta no círculo familiar, no seu devido lugar (ápice) pois possivelmente rejeitado e expulso, ante-riormente, pela mãe/esposa, a responsável final por todo o acontecido, uma vez ter ela violado a ordem do amor e sua ancestralidade11. Isso faz algum sentido?

11. Consulte “Direito Sistêmico” em: https://direitosistemico.wordpress.com/2015/09/22/constelacao-mostra-que-crimes-sexuais-sao-consequen-cia-da-exclusao-do-pai-da-vitima/?fbclid=IwAR2ehEnQJNYkmG4si-

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4. A PROPOSTA CONSTELAR PELO PRÓPRIO HELLINGER

Conceituada a constelação, definidos seus contornos e influências e demonstrada sua acientificidade, é possível analisar o que, de fato, pro-põe Hellinger em seus livros.

Para tanto, torna-se imprescindível consultar a fonte primária.Neste item, limitaremos nosso estudo à reprodução fiel do que é ex-

posto por Hellinger, sem emitir qualquer juízo de valor.Ten Hövel, no prefácio de uma das obras de Hellinger, nos fornece

um bom resumo daquilo que é, efetivamente, defendido pela conste-lação: “Por que é que ele [Hellinger] vê: a) amor em casos de incesto (mas isso é ultrajante!), b) a indignação como uma energia que leva à violência (mas é fundamental lutar contra a injustiça!), c) o respeito pelo masculino apesar de toda a emancipação (como ter respeito pelo masculino em vista de tanto desrespeito pelo feminino?); d) a culpa dos pais adotivos com relação à criança adotada (mas a adoção é um grande ato social!)” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.8).

O ponto de partida, a premissa primeira da constelação parte da de-finição do papel, absolutamente preponderante, do homem na família. O homem, afirma Hellinger, “tem precedência sobre a mulher. (...) De-pois da separação, os filhos precisam ficar com o progenitor que mais respeite neles o outro. Via de regra é o homem. O homem respeita mais a mulher nos seus filhos do que a mulher respeita neles o marido”. (HELLINGER, 2007, p. 39-40). Ademais, noutra passagem, assevera que “os filhos têm os pais que têm. Os pais não podem e nem precisam ser diferentes” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.24).

Outra das concepções marcantes da proposta de Hellinger refere-se ao tratamento dado a sentimentos como ódio, culpa e perdão no âmbito da extrema violência familiar. Para tanto, relata Hellinger o episódio de uma mãe que era cruel e reiteradamente espancada pelo marido na frente dos filhos, vinculando Hellinger suas conclusões, aqui também, ao protagonismo reservado ao homem, como já antes matizado. Na

2C62A6YbJP-1ZQWmsC6nYGIIqtRCmHMlrzD3DzoHfM. Acesso em 26/6/2021.

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sequência, busca ele encadear relações causais, anotando a existên-cia de “uma tentativa fracassada de amar”, até porque o pai, mesmo o violador, está a “merecer o devido reconhecimento”, pois “privado de alguma coisa”. O incesto seria, de acordo com Bert, a tentativa de “reequilibrar o dar e receber na família”. Na mesma linha, a mulher que possui uma filha e vem a se casar com outro homem que com elas se preocupa e delas cuida, tem “seus esforços e necessidades diminuídos, desdenhados, ignorados e, às vezes, até ridicularizados. O desequilíbrio entre o dar e o receber desenvolve-se quando um homem dá mais e a mulher recebe mais. Em semelhante situação, a mulher poderia restau-rar o equilíbrio se mostrasse gratidão autêntica para com o novo mari-do”. Noutra passagem, tratando do incesto, comenta Hellinger ser ele complicado e revestir diversas formas, devendo-se ter cuidado para não generalizar. Às vezes, destaca, “a violência e o abuso são tão prejudi-ciais que o aspecto sexual fica em segundo plano: e isso é completa-mente diferente do incesto cujo móvel fundamental é o sexo. Mas tem razão: já notei que muitas vezes o incesto não passa de uma tentativa fracassada de amar”. Desculpabilizando o agressor, sustenta o autor: “alguns terapeutas insistem em ver o agressor como uma besta desu-mana que força a vítima a saciar seu desejo sexual incontrolável ou suas necessidades emocionais. Eles não captam o contexto mais amplo do sistema familiar”. E conclui, quanto ao tema: “em sua forma mais comum, o incesto representa a tentativa de reequilibrar o dar e receber na família – geralmente, mas nem sempre, entre os pais. Se assim for, o agressor foi privado de alguma coisa: por exemplo, o que ele faz pela família não merece o devido reconhecimento. Sob essa forma, o incesto procura corrigir o desequilíbrio entre o dar e o receber”. (HELLINGER, 2008, p. 68-9, 83-4).

Noutro trecho, evoca Hellinger o poder ou interferência dos mortos a partir de objetos e o faz, neste caso, por meio do faqueiro da so-brinha-neta do colega de farda, Goring, produzindo um “emaranhado” que nos remete ao “misticismo quântico” (HELLINGER, 2007, p.76). “Emaranhamento”, explica Hellinger, “significa que alguém na família retoma e revive inconscientemente o destino de um familiar que viveu

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antes dele. Se, por exemplo, numa família, uma criança foi entregue para adoção, mesmo numa geração anterior, então um membro poste-rior dessa família se comporta como se ele mesmo tivesse sido entre-gue. Sem conhecer esse emaranhamento não poderá se ver livre dele” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.13).

De fato, acredita Bert explicar muitas das tantas contingências que desafiam nossa humanidade e, para tanto, ele volta sempre ao “emara-nhamento”, definido como aquela situação complexa e confusa de afeto que permeia o sistema familiar.

Mais claramente, e conforme Hellinger, “emaranhamento significa que alguém na família retoma e revive inconscientemente o destino de um familiar que viveu antes dele. Se, por exemplo, numa família, uma criança foi entregue para adoção, mesmo numa geração anterior, então um membro posterior dessa família se comporta como se ele mesmo tivesse sido entregue. Sem conhecer esse emaranhamento não poderá se livrar dele. A solução segue o caminho contrário: a pessoa que foi entre-gue para adoção entra novamente em jogo. É colocada, por exemplo, na constelação familiar. De repente, a pessoa que foi excluída da família passa a ser uma proteção para aquela que estava identificada com ela. Quando essa pessoa volta a fazer parte do sistema familiar e é honrada, ela olha afetuosamente para os descendentes” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.11 e 13).

Para os constelares, a conexão com as vidas passadas se dá, também e evidentemente, não apenas através de faqueiros das sobrinhas-netas, mas igualmente pela ligação entre pessoas, vivas ou já falecidas. De acordo com Hellinger, “a injustiça que foi cometida em gerações an-teriores será representada e sofrida posteriormente por alguém da fa-mília para que a ordem seja restaurada no grupo. É uma espécie de compulsão sistêmica de repetição. Mas essa forma de repetição nunca coloca nada em ordem. Aqueles que devem assumir o destino de um membro excluído da família são escolhidos e tratados injustamente pela consciência do grupo. São, na verdade, completamente inocentes. (...) A consciência do grupo não conhece justiça para os descendentes, mas somente para os ascendentes. (...) Quando alguém é condenado ou ex-

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pulso, isso significa: ‘você tem menos direito de pertencer ao sistema do que eu’. Essa é a injustiça expiada através do emaranhamento, sem que as pessoas afetadas saibam disso” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.14).

Bert dá como exemplo dessa forte e inextrincável ligação a história de um advogado que havia descoberto que sua bisavó fora casada e estava grávida quando conheceu outro homem. Seu primeiro marido morrera no dia 31 de dezembro, com 27 anos, havendo suspeita de que ele tenha sido assassinado. Anos mais tarde, a propriedade do imóvel que ela herdara do marido, que deveria ter ficado para o primeiro fi-lho, acabou sendo destinada ao filho de um segundo matrimônio. Aí a grande injustiça, segundo Hellinger. Esse fato foi o gatilho para que três homens dessa família se suicidassem no dia 31 de dezembro, na idade de 27 anos. “Quando o advogado soube disso, lembrou-se de um primo que acabara de completar 27 anos; e o dia 31 de dezembro se aproximava. Ele foi, então, até a casa dele para avisá-lo. Este já havia comprado um revólver para se matar. Assim atuam os emaranhamen-tos” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.14).

No que se refere ao delicadíssimo tema do abuso de crianças, afirma Hellinger existirem dois agressores: o pai, em um primeiro plano, e a mãe. Esta, sentindo-se culpada com relação ao marido, oferece a filha como substituta. Para Bert, deve-se “simplesmente ver o quadro com-pleto. Não bastaria para a criança ficar zangada com o pai; ela tem que ficar zangada também com a mãe. Pelo que pude observar até agora, os pais estão quase sempre em conluio, num pacto secreto, quando se trata do abuso de uma criança” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.27-28, 112).

Na mesma quadra da sexualidade, mas agora quanto ao estupro, refe-re Hellinger que aquela [a sexualidade] “não perde a sua grandeza. Ela não se torna nefasta nem é afetada por esse ato. (...) Se a mãe quiser co-locar em ordem para o filho as consequências negativas de um estupro, ela deveria dizer ao homem: “Você é o pai do nosso filho. Eu o tomo e o respeito como o pai do nosso filho” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.118-9).

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É esse, em linhas gerais, o contorno do trabalho das constelações como proposto por Bert Hellinger.

5. O ESTADO E O FINANCIAMENTO DA PSEUDOCIÊNCIA – O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) E A POLÍTICA NACIONAL DE PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES (PNPIC)12

Países pobres, é sabido, contam com baixa capacidade de investi-mento em ciência e tecnologia. Há, normalmente, outras emergências. Poder-se-ia argumentar, não sem razão, que se trata de um círculo per-verso, pois sem ciência e sem a incorporação de avanços tecnológicos e inovação, a desigualdade entre nações pobres e ricas tende a aumentar.

No Brasil, onde a disputa por financiamento na área científica é acir-rada, o que se espera de agentes públicos responsáveis pela alocação dos escassos recursos é transparência, organização e escolhas criterio-sas que resultem em conhecimento e resolução real de problemas.

Também na área da saúde pública, onde falta de tudo, desde medica-mentos, salários decentes, leitos hospitalares e até, como se viu recente-mente, oxigênio, a situação é igualmente complexa e delicada.

Daí serem de todo pertinentes a preocupação e o alerta externados pela Diretora da Sociedade Brasileira de Física. Sem dinheiro para as ciências sérias e para a medicina baseada em evidências, foram inclu-ídas no Sistema Único de Saúde (SUS), além das 19 já existentes, dez novas “Práticas Integrativas e Complementares”, com destaque para a bioenergética, cromoterapia, imposição de mãos, Reiki, florais de Bach, medicina antroposófica, shantala e biodança e, claro, constelação fami-liar13.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina, destinou o Ministé-rio de Saúde “ao programa que financia estas práticas pseudocientíficas impressionantes R$ 17,2 bilhões, mais de quatro vezes o orçamento de

12. Disponível em: https://revistaquestaodeciencia.com.br/edito-rial/2019/09/10/camara-faria-bem-em- rejeitar-lei-que-sacramenta-terapias--alternativas-no-sus. Acesso em 20/6/2021.13. Portaria nº 702, de 21 de março de 2018, do Ministério da Saúde.

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todo o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações. O uso de dinheiro público para custear tratamentos que não possuem nenhum fundamento científico deveria ao menos ser discutido de forma ampla com as sociedades científicas”14.

Carlos Orsi, no texto “Constelação familiar, machismo às custas do SUS”, publicado na revista Questão de Ciência, comenta com absoluta propriedade:

No livro Acknowledging What Is: Conversations with Bert Hellin-ger, o pai da Constelação Familiar afirma que vítimas de abuso sexual infantil que se tornam prostitutas fazem isso por amor in-consciente ao abusador – para carregar a culpa dele. Essas não são “meras” opiniões: são visões paradigmáticas que orientam ações terapêuticas. O paciente ouve que deve encontrar seu lugar adequa-do no sistema familiar, e esse lugar é definido por uma hierarquia rígida e sexista. Vítimas de abuso sexual ou violência doméstica devem “reconhecer” o laço de amor que as une ao abusador, bem como assumir uma parcela da culpa. Os efeitos disso na cabeça de pessoas que já estão, de algum modo, confusas ou precisando de ajuda – afinal, foram procurar a terapia – pode, para usar um eu-femismo, não ser dos melhores. A Constelação Familiar passou a fazer parte do PNPIC em março do ano passado; o Ministério da Saúde divulgou a notícia com indisfarçado orgulho. Grupos que de-fendem as PICs, achando – ou fingindo achar – que não defendem nada menos inocente do que chá de boldo e rodas de costura para idosos, não levantaram objeção. A Fiocruz até fez um par de vídeos promocionais a respeito, vídeos que curiosamente omitem o papel autocrático do macho na “ordem do amor” propagada pela doutrina. Já há casos de ações judiciais em que a Constelação Familiar foi usada na conciliação entre as partes, principalmente em Varas de Família. Dado o caráter machista e hierárquico da doutrina, não é difícil imaginar para que lado essas “conciliações” pendem. É o seu dinheiro trabalhando.15

14. Disponível em: http://www.sbfisica.org.br/v1/home/index.php/pt/acon-tece/679-um-basta-a- pseudociencia. Acesso em 10/5/2021.15. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/arti-go/2019/12/20/constelacao-familiar- machismo-e-pseudociencia-custas-do--sus. Acesso em 7/6/2021.

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6. CONSTELAÇÃO E JUDICIÁRIO

Diante de tantos e tão documentados argumentos dando conta da acientificidade da constelação familiar e, para dizer pouco, da enorme fragilidade de seus fundamentos e, ainda, em face do papel constitucio-nalmente reservado ao Poder Judiciário, há sentido em permitirmos o financiamento dessa prática com dinheiro público e, nalguns casos, até mesmo exigir que as partes se submetam à “terapia” de Hellinger?

Marino e Macedo (2018) no artigo “A constelação familiar é sistêmi-ca?” questionam, justamente, o porquê de o Poder Judiciário – ao invés de se dedicar à sua função primeira e essencial, que é solucionar proble-mas de maneira justa e rápida dentro do seu campo de estudo, o que já não é tarefa simples – imiscuir-se na seara do místico e do insondável, descrita ao longo deste texto.

Assim, por exemplo,

o que dizer sobre a inexistência de um código de ética para a atua-ção dos conciliadores? Quem fiscaliza e regulamenta sua atuação? Como se dá a capacitação dessas pessoas? “Como se garante que as questões emocionais dos juízes não influenciarão sua conduta na própria constelação e no processo jurídico? O sistema judiciário não estaria impondo uma técnica que tem influência religiosa cristã em detrimento das outras crenças religiosas? Sendo o Brasil um país laico, sua Constituição garante essa liberdade de escolha? O Estado, por meio do sistema judiciário, pode interferir na privaci-dade de seus cidadãos em prol da redução de processos jurídicos promovendo acordos influenciados pela posição de poder dos juí-zes que aplicam a técnica? O sistema judiciário – quando incentiva juízes a atuarem no fórum como consteladores e representantes da lei – pode assegurar que os cidadãos terão livre-arbítrio para decidir se desejam ou não fazer acordo? E os cidadãos podem se assegurar que seus direitos foram preservados? Os fóruns do Brasil não esta-riam se transformando em espaços colonizadores de uma suposta religião correta? Os fóruns de juízes consteladores não estariam se transformando em palcos de desigualdade de gênero entre homens e mulheres, na medida em que a técnica acredita que a mulher deve seguir os passos do homem e que possui um papel específico de “guardiã do bem-estar da família” enquanto que o homem deve se responsabilizar por sua segurança externa? As mulheres podem

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confiar na isenção dos juízes consteladores ao incentivar acordos? Como o Estado garantirá que os direitos das mulheres serão preser-vados?16

E, acrescentamos, quem será responsabilizado (responsabilidade ob-jetiva, sem dúvidas) em caso de eventuais e potenciais problemas daí derivados? Como compatibilizar esses “serviços” com o Código de De-fesa do Consumidor?

Com efeito, as constelações estão na moda em todo o mundo, sendo levadas a cabo por pessoas desqualificadas para trabalhar em tal con-texto e, portanto, não disciplinadas por nenhum código deontológico ou conselho profissional. Assim, não há a mínima proteção ao consumidor submetido à terapia, uma vez que o que se está oferecendo é um produto sob a forma de ato médico (FASCE, 2015).

São esses, destaque-se, apenas alguns dos muitos questionamentos que se poderiam apresentar contra a presença da constelação familiar nos fóruns brasileiros.

7. CONCLUSÕES

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina publicou, no final do mês de janeiro de 2020, os trágicos dados estatísticos relacionados ao feminicídio no Estado. Ao todo, diz a matéria, “foram 57 assassi-natos de mulheres motivados por discriminação de gênero no âmbito doméstico”, ou seja, mais de um assassinato por semana. “Já o número de feminicídios tentados chegou a 160 no mesmo período”. Durante o ano de 2019, “foram concedidas pela justiça catarinense mais de 16.000 medidas protetivas”, o que revela um espantoso aumento de 28%, se comparados os dados com os do ano passado.17

16. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttex-t&pid=S0104- 78412018000300003. Acesso em 9/2/2021.17. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/media--de-um-feminicidio-por-semana-em-sc-durante-2020-exige-pron-ta-acao-da-justica?inheritRedirect=true&redirect=%2F. Acesso em 09/02/2021.

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De acordo com o Instituto Avon – Data Popular, “aproximadamente 52 milhões de brasileiros conhecem pelo menos um homem que já tenha sido violento com a parceira. Ainda assim, somente 16% dos homens assumem ter cometido violência contra a mulher, pois na concepção deles, fazer sexo contra a vontade, humilhar em público, impedir de sair de casa ou de vestir determinada roupa não é uma forma de violência” (CONTE, 2021).

Leis como a conhecida Maria da Penha trouxeram um pouco de alen-to às esposas e companheiras vítimas da agressividade insana. Como reação, mas de forma mais intensa, a lei da alienação parental e “tera-pias” como a constelação familiar fizeram os poucos direitos conquista-dos pelas mulheres retroceder à estrutura da família medieval.

A violência sexual, os feminicídios, as agressões demonstram, à sa-ciedade, o quão cruel, perverso e descolorido tornou-se o mundo para as mulheres e meninas no Brasil.

O “sistema constelar” apresentado por Hellinger é assumida e funda-mentalmente machista, e sua lógica parte da anulação absoluta daqueles familiares de segunda categoria – mãe, filhas e filhos –, o que contribui para que mais mulheres sejam espancadas na frente das crianças e se sintam culpadas por não terem dado ao marido aquilo que ele merecia. É isso que afirma a “terapia” calcada na “ordem do amor”, que se dá através de relações fundadas numa espécie de “contabilidade” (o dar e o receber), na gratidão da mulher para com o marido, o que explicaria, então, o “equilíbrio” que deve presidir a vida familiar. Esse equilíbrio, espantosamente, deve inclusive ser buscado praticando a maldade. Nas palavras de Hellinger: “Um homem que magoa a mulher, dizendo-lhe talvez algo como ‘você é igualzinha à sua mãe’. Se a mulher fica muito sentida, ela tem de feri-lo também para restaurar o equilíbrio e dizer-lhe algo que o magoe. Essa é a lição que muitos não entendem: o equilíbrio precisa ser restaurado tanto no bem quanto no mal” (HELLINGER; HÖVEL, 2007, p.44).

Estamos presenciando, de fato e atônitos, um verdadeiro massacre de gênero, e os que deveriam promover a segurança dos vulneráveis se calam e se omitem.

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A constelação familiar, objeto deste estudo, pretende ser o outro lado da história das famílias, contrapondo-se às verdades científicas. Toda-via, só existem dois lados quando há evidências que os embasem. A constelação não se sustenta em evidências, mas no poder da sugestão. Podemos ter opiniões próprias, inclusive sobre a fé. Mas não podemos, para defendê- las, deformar a ciência e a verdade, porque, como aqui já afirmado, a verdade importa, pois está umbilicalmente ligada à ética (ECO; MARTINI, 2000, p.153). Essa “pós-verdade” nos está levando pelo caminho da irracionalidade obstinada e aniquilando os melhores avanços arduamente conquistados pela humanidade.

Com premissas falsas, misticismo e pseudociência, somos capazes de criar explicações fantásticas, mas destituídas de qualquer utilidade, quando não perigosas.

Ao longo de nossa história, já acreditamos que sacrifícios humanos aplacariam a fúria dos deuses e auxiliariam na colheita, que a sangria era benéfica à saúde, que queimar mulheres acusadas de bruxaria faria com que suas almas fossem destruídas, que a terra era plana, que Deus criou o mundo e nos criou e que, portanto, a tese evolucionista é falsa. Muitos inocentes, por conta da ignorância e maldade, foram mortos de-vido à histeria coletiva que de tempos em tempos nos assombra.

Podemos acreditar que o emaranhamento de Hellinger seja respon-sável pelo nosso destino, que os fatos da vida (um bom emprego, pais carinhosos, casamento infeliz, traição do cônjuge) são decorrência das ligações que temos com os mortos através de um faqueiro, por exemplo, e que a adoção de crianças [um dos gestos de amor mais maravilhosos e completos de que somos capazes como espécie] vulneráveis e even-tualmente violentadas seja, para a concepção constelar, um equívoco. É possível acreditar, como quer Bert Hellinger, que quando uma criança é vítima de violência e abuso sexual, há dois agressores – o pai e a mãe – que agem em conluio, por meio de um pacto secreto, e que, portanto, a criança deva ficar zangada com ambos, uma vez que a mãe oferece a filha porque não é ela mulher suficiente para o marido. Portanto, para Bert, o terapeuta deve se ligar ao agressor a fim de restabelecer o equilí-brio familiar. Em sua forma mais comum, comenta ele, o incesto repre-

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senta a tentativa de reequilibrar o dar e receber na família – geralmente, mas nem sempre, entre os pais. Podemos assim, adotando as ideias de Hellinger, revitimizar a criança, destruindo suas ligações de afeto com a mãe, aquela que a salvou da barbárie paterna. Temos o supremo poder, enfim, de matá- la deixando-a viva, retirando dela qualquer chance de uma vida plena e feliz. Ainda nesse tema doloroso e repugnante, é pos-sível seguir Hellinger e afirmar que, mesmo no estupro, a sexualidade não perde sua grandeza, devendo a mãe, se quiser restabelecer a ordem, dizer ao estuprador ser ele o pai do “nosso filho”, respeitando-o como “o pai do nosso filho”.

Temos com Hellinger, portanto, a oportunidade de retirar das vítimas (mães, filhas e filhos) os últimos resquícios de sua dignidade humana.

Lado outro, o ser humano está apto, também, a rechaçar quaisquer propostas delirantes e patológicas que subvertam as conquistas civi-lizatórias e inflijam dor e sofrimento aos já desdenhados pela sorte. É também capaz de perceber a obscenidade por trás da tentativa de “nor-malização” de práticas como o estupro e o incesto, aceitas por Hellin-ger, mas rejeitadas por qualquer pessoa sã e que tenha um mínimo de respeito pelo outro.

Podemos, ainda, acreditar que o curioso caso dos suicídios dos ho-mens de uma dada família – todos ocorridos no dia 31 de dezembro à idade de 27 anos, narrado por Hellinger e reproduzido neste ensaio, se efetivamente comprovado – foi obra do “emaranhamento” constelar, quando a bisavó de alguém deixou de herança o imóvel ao filho “B” quando, em princípio, o herdeiro seria o filho “A”. Essa dita “injustiça terrível” teria desencadeado uma maldição inimaginável, pois durante gerações os homens da família, incomodados com o fato, acabaram se suicidando.

Mas somos também capazes de deixar de lado essa fantasia espectral e verificar que apenas no Brasil, todos os dias, cerca de 30 pessoas ti-ram a própria vida. Esse número é maior do que as mortes das vítimas de AIDS e de diversos tipos de câncer. De cada 100 brasileiros, 17 já pensaram, ao menos uma vez, em tirar a própria vida. Não se trata de uma decisão pessoal ou uma expressão do livre-arbítrio, nem de um ato

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de coragem. O que ocorre, na verdade, é que as “pessoas que concreti-zam esse ato estão passando quase que invariavelmente por uma doença mental que altera, de forma radical, a sua percepção da realidade. Quem toma esse tipo de atitude sempre está muito cheio de sofrimento e acaba ficando cego por conta disso. Não enxergam nenhuma solução possível no momento. Então, o tratamento da doença mental é um dos pilares mais importantes de prevenção” (CONTE, 2014).

É possível, se se quiser, acreditar que o suicídio de várias pessoas de uma mesma família tenha ligação com a bisavó deles, por conta de um imóvel de herança. Mas isso faz, realmente, algum sentido? Pode-se, entretanto, optar pela verdade científica e consultar dados estatísticos e médicos a respeito da saúde mental das pessoas e verificar que há doen-ças, como a depressão, que possuem componentes genéticos (CRAFT; PERNA, 2004) o que pode, eventualmente, levar ao suicídio. Isso é ciência.

Podemos aceitar que tumores não existem, que câncer é bom, que as doenças são fruto de choques emocionais, que vírus e bactérias não causam mal algum, que a cura de toda e qualquer enfermidade está no nosso agir, pensar e querer, isto é, está em nós mesmos. O médico Ha-mer, criador da “nova medicina germânica”, disse isso aos pais da pe-quena Olivia, de apenas 6 anos de idade, portadora de um tumor de Wilms, um câncer renal comum em crianças. Hamer afirmou à família de Olivia que ela não tinha um tumor, mas “conflitos”.

Temos o poder de acreditar em fantasmas, e até de criá-los em nossa mente, mas também temos condição de optar pelo mundo dos pensa-mentos coerentes, racionais e saudáveis.

O que não podemos tolerar, em nome da “flexibilidade dos valores”, é que se violentem mais mulheres e crianças impunemente, que o pró-prio Estado patrocine terapias pseudocientíficas ineficientes e, muitas das vezes, perigosas. O que se mostra inadmissível é assistir o SUS gastando dinheiro público ao patrocinar terapias sem qualquer validade científica, deixando a ciência verdadeira sem recursos para pesquisa e inovação. O que impressiona é verificar as terapias constelares tomando conta, inclusive, dos fóruns judiciais.

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Finalmente, o que estarrece é perceber a invisibilidade das vítimas, a empáfia dos agressores e a insensibilidade dos que, devendo falar e agir, emudecem e paralisam.

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Recebido em: 30/06/2021Aprovado em: 01/07/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p146

FUNDAMENTOS CONTEMPORÂNEOS DA IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA E A FUNÇÃO SOCIAL DO TRIBUTO

CONTEMPORARY FOUNDATIONS OF TAX IMPOSITION AND THE SOCIAL FUNCTION OF TAX

Clovis Demarchi1

Tomás José Medeiros Lima2

Resumo: A percepção científica e social sobre os fundamentos da im-posição tributária tem acompanhado as alterações do exercício do poder de tributar durante a história. Para formular um esboço de como se ma-terializa, na atualidade, em tempos de reformas na legislação tributária, é necessário revisitar o comportamento histórico do instituto, além de analisar o arcabouço jurídico que atualmente rege o poder tributário. Nesse sentido, o presente estudo aborda a temática da fundamentação contemporânea da imposição tributária, focando especialmente nos seus aspectos controvertidos, por meio da revisão da literatura das principais teorias apresentadas pela doutrina tradicional. Para alcançar o objetivo, são analisados temas, como Ciência do Direito, Direito Positivo, poder tributário, imposição tributária. O resultado alcançado é que o poder tri-butário se revela como principal mecanismo de satisfação do Estado de arrecadar recursos financeiros, mas que tem prevalecido a percepção de

1. Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Ita-jaí (UNIVALI), Itajaí, SC, Brasil. Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – UNIVALI, Itajaí, SC, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0853-0818.2. Mestrando em Ciência Jurídica da Univali-SC, em convênio com a Fa-culdade Católica de Rondônia. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Procurador de Estado de Rondônia, com lotação na Procuradoria Fiscal. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5717-4357.

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que a imposição tributária se encontra inserida numa relação de poder, importando na sua rejeição. Foi desenvolvido o trabalho sob o método indutivo, sendo operacionalizado com as técnicas do referente, da cate-goria e do conceito operacional, mediante pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Poder tributário. Imposição tributária. Função social do tributo.

Abstract: The scientific and social perception of the fundamentals of taxation has accompanied changes in the exercise of the power to tax throughout history. For formulating an outline of how it materializes today, especially in times of reforms in tax legislation, it is necessary to revisit the historical behavior of the institute, in addition to analyzing the legal framework that currently governs tax power. In this sense, the present study addresses the theme of contemporary reasoning of taxation, focusing especially on its controversial aspects, through a lite-rature review of the main theories presented by traditional doctrine. For achieving this objective, topics such as Science of Law, Positive Law, tax power, tax imposition are analyzed. The result achieved is that the tax power is revealed as the main mechanism of satisfaction of State to raise financial resources, but the perception that the tax imposition is inserted in a power relation has been prevailed, implying its rejection. The work was developed under the inductive method, being operatio-nalized with the techniques of the referent, the category and the opera-tional concept, through bibliographic research.

Keywords: Tax power. Tax imposition. Social function of the tax.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo científico se centra no escopo de analisar os fun-damentos da imposição tributária na atualidade e apresentar alguns ele-mentos da função social dos tributos, dada a relevância da questão em tempos de reforma tributária, bem como identificar como a atividade exacional é (ou como se supõe que deveria ser) percebida pelo ente tributante e pelo contribuinte.

No Brasil contemporâneo, atravessa-se um momento notadamente marcado pelo desejo de mudanças constitucionais e infraconstitucio-

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nais na legislação tributária, oportunidade na qual é propício repensar os fundamentos da imposição tributária, refletindo sobre onde irá re-pousar a atividade legislativa de reforma do ordenamento fiscal.

Tal situação de mudança é costumeira e acontece com certa frequ-ência, visto que qualquer sistema tributário precisa ser constantemente revisado, sendo natural que sejam repensadas novas soluções que per-mitam o seu aperfeiçoamento, no sentido de melhorar a eficiência e a justiça fiscal.

Há necessidade de uma reforma profunda na percepção do poder de tributar, tanto pelo Fisco, no sentido de compreender a necessidade de se promover uma política tributária mais eficiente e simplificada, como pelo próprio contribuinte, a quem cabe enxergar a sua sujeição ao tri-buto como um dos caminhos que viabiliza ao Estado concretizar os interesses públicos.

Pois, se ficar clara a aplicação desses recursos que são recolhidos, o cidadão entenderá que pagar tributos não é uma simples obrigação como cidadão, mas a sua contribuição para a cidadania, visto que a arrecadação dos tributos é necessária e fundamental para o desenvolvi-mento econômico e social de todos.

O texto apresenta a discussão e fundamentação do tema em quatro momentos específicos, além da introdução e das concussões. Trata da Disciplina Jurídica do poder tributário em que se analisa o poder de tributar; em momento seguinte, dispõe sobre a imposição tributária e sua regulamentação no ordenamento jurídico vigente, momento em que se analisa a necessidade de o Estado angariar recursos para a adminis-tração da sociedade; no seguinte, trata dos fundamentos contemporâ-neos da imposição tributária em que há a preocupação do Estado em arrecadar, mas também de tornar a sociedade ciente da necessidade de contribuir com os tributos; e, no próximo momento, trata sobre a função social do tributo e a cidadania.

Ressalta-se que, após a análise da necessidade de a sociedade estar ciente da importância dos tributos, observa-se que a correta aplicação das receitas caracteriza a função social dos tributos. O conhecimento por parte da sociedade da engrenagem tributária, por mais complexo

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que seja o sistema, é fundamental para que os contribuintes entendam e saibam o porquê e para que estão contribuindo.

Quanto à metodologia adotada, seguiu-se o magistério de Pasold (2018), utilizando-se o método indutivo, sendo operacionalizado com as técnicas do referente, da categoria e do conceito operacional, me-diante pesquisa bibliográfica.

2. DISCIPLINA JURÍDICA DO PODER TRIBUTÁRIO

Um dos debates mais acalorados da Ciência Jurídica se centra no estudo da dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Na dogmática tributarista, todavia, essa discussão perde terreno, na medida em que, contemporaneamente, a positivação é condição de validade da norma tributária.

Segundo Nogueira (1990, p. 122), tratando-se do Estado de Direi-to Constitucional, a possibilidade ou o exercício do poder de tributar está em primeiro lugar, submetido à disciplina da Constituição, dentro da qual, explícita ou implicitamente, se encontram as bases do Direito Constitucional Tributário Positivo.

Cabe apenas ressalvar que isso não significa ser facultado ao legisla-dor edificar um ordenamento jurídicos e valendo unicamente das regras do Direito Positivo, afastado das “normas naturais” da realidade social a qual se pretende regular.

Nesse sentido, Martins (2010, p. 369-370) propõe uma visão conci-liadora de tais ramos do Direito na formação do Estado, verificando que a conformidade do plano jurídico formal somente estará perfeitamente delineada se regida pelo imperativo lógico das leis naturais, justificando que o Estado ideal apenas existe “[...] no plano formal, se subordina à lei produzida por quem detém o poder, por livre e universal escolha, e, no plano real, promove a conjunção das leis positivas com as leis naturais”.

Dito isso e avançando para além de tal dissenso, que não é objeto deste apertado estudo, é forçoso reconhecer que a temática da norma-tização tributária atualmente se insere, invariavelmente, no campo do

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Direito Positivo, uma vez que a ela se encontra estabelecida no seio do Estado de Direito.

Por isso, é preciso retroceder às origens históricas dessa atividade normativa para compreender como o poder tributário se exprime na atualidade, ressalvando-se novamente que o Direito Tributário se exte-rioriza por meio da norma tributária positivada.

Coêlho (2020, p.4) relembra que, há cerca de três séculos apenas, o jus tributandi e o jus puniendi eram atributos do poder sem limites dos governantes, o que foi gradualmente sendo restringido por meio de princípios impostos: capacidade contributiva, igualdade, legalidade, tipicidade, proibição do confisco, irretroatividade entre outros.

O mesmo autor (2020, p. 13) coloca que o Direito surge no meio da sociedade e se desenvolve nela como técnica de disciplinação e contro-le social, restando formalizado por meio da linguagem escrita ou oral e se assemelhando às prescrições, tratando-se de ordens respaldadas por ameaças.

Martins (2005, p. 226) dispõe que foi pelo Iluminismo Cultural e pelo Positivismo Filosófico do século XVIII que a Ciência Jurídica foi decisivamente influenciada, dissociando-se de todos os valores pré e meta-jurídicos de que antes era impregnada, trazendo “[...] o princípio de que a razão e a humanidade eram os valores supremos e só aquilo que estivesse no mundo cognoscível representaria a realidade a ser in-vestigada [...]”.

O referido tributarista pontua que tais correntes filosófica e cultural, respectivamente, terminaram por influenciar o pragmatismo político dos governos do século XIX e, no plano jurídico, foram o arrimo para a construção da teoria da Ciência Pura do Direito de Hans Kelsen, em que restou estabelecido o próprio campo de pesquisa desta, exclusivamente na norma jurídica positivada, extirpando toda a contaminação de outras ciências. Alude ainda que, segundo tal teoria, devem ser ignorados pelo jurista a Economia, a História, a Sociologia e a Política, cabendo ao Estado o poder de impor a norma e fazê-la ser obedecida, independen-temente de ser justa ou injusta.

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Assim, é no arranjo piramidal do ordenamento jurídico proposto por Kelsen, no qual a Constituição se posiciona hierarquicamente acima das normas infraconstitucionais, que o Direito Positivo se estabelece como mecanismo de elaboração e construção da Ciência do Direito.

Sobre a Ciência do Direito, Ferrajoli (2015, p. 36) apresenta sua tese no sentido de que a formulação em normas de direito positivo das normas sobre a produção jurídica é a técnica pela qual foram, histori-camente, democratizadas as regras que disciplinam tanto a forma de produção quanto a substância do direito produzido.

Importa observar que tais conceitos de “Ciência do Direito” e o “Di-reito Positivo” não se confundem. Nesse sentido, Carvalho (2019, p. 41) infere haver uma relação nivelada entre estes, dispondo que a Ci-ência do Direito é uma sobre linguagem (ou linguagem de sobrenível) com relação ao Direito Positivo, estando acima e discorrendo sobre ela, transmitindo notícias de sua compostura como sistema empírico.

Nesse tocante, basilar apresentar as lições de Carvalho (2019, p. 41) sobre tal distinção:

Por isso, não é demais enfatizar que o direito positivo é o complexo de normas jurídicas válidas num dado país. À Ciência do Direito cabe descrever esse enredo normativo, ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógicas que governam o entrela-çamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteú-dos de significação.

Cabe ainda uma relevante constatação histórica de Martins (2005, p. 228), no sentido de que o positivismo jurídico alicerçou as pretensões do nazismo e do fascismo, já que estes adotaram a teoria kelseniana, restando notável o papel de plano de flagramento da 2ª Guerra Mun-dial, “[...] pois o Direito deixou de buscar a ordem social justa, passan-do a ser apenas justificado pelo poder coercitivo exercitado em nome do Estado – representando ou não o povo – para impor a obediência à norma e a sanção pelo seu descumprimento”.

Por essa razão, impende alertar os perigos de o Estado se valer do poder de tributar centrado unicamente no Direito Positivo, ignorando

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os demais ramos científicos, ou mesmo as “leis naturais” que norteiam o que é bom, moral e justo.

Nessa linha, Machado (2018, p. 142-143) critica a influência do pen-samento positivista no ramo tributário, alegando que nele há a equivo-cada compreensão de que o Direito prescinde da ética, observando que sob tal paradigma o Fisco não se preocupa com o conteúdo ético das normas de tributação, ou mesmo em promover uma tributação justa, desejando somente aumentar o volume dos recursos financeiros arre-cadados e se valendo, para tanto, da edição desenfreada de normas, o que torna impraticável o conhecimento seguro do conteúdo destas pelos contribuintes. Diante desse quadro, o autor é levado a propor uma fundamentação ética da norma, que realoca o Direito em sua posição de especial instrumento da harmonia social.

Por sua vez, Carvalho (2019, p. 168-169) sugere a aplicação da dou-trina da autopoiese, que supera as visões de sistemas abertos ou fecha-dos, propondo uma compreensão intermediária e sistemática do Direito Positivo, que consiste no seu fechamento no plano operacional, mas aberto em termos cognitivos. Segundo propõe, o Direito deve se comu-nicar com os outros subsistemas sociais, como economia, política, mo-ral, religião etc., mas de forma exclusivamente cognoscitiva, devendo o sistema jurídico ser operado totalmente alheio a qualquer influxo do meio exterior, o que permite manter a sua autonomia.

A ressalva anterior é relevante para o estudo, porquanto, para se de-senvolver uma adequada compreensão da imposição tributária no orde-namento jurídico, o jurista deve conhecer os demais fatores sociais so-bre os quais aquela orbita, cuja percepção vai além do restrito conteúdo normativo indicado pela Ciência Pura do Direito.

3. DA IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA E SUA REGULAMENTAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE

Como visto no item anterior, o poder tributário se encontra delimita-do no Estado de Direito à norma jurídica positivada.

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Coêlho (2020, p. 26) menciona que, nos tempos atuais, o poder de tributar é exercido por delegação do povo ao Estado Constitucional, uma vez que é produto da Assembleia Constituinte, expressão básica e fundamental da vontade coletiva, sendo que “a Constituição, estatuto fundante, cria juridicamente o Estado, determina-lhe a estrutura básica, institui poderes, fixa competências, discrimina e estatui os direitos e as garantias das pessoas, protegendo a sociedade civil”.

Desse exercício do poder tributário, nasce a imposição tributária, de-finida por Martins (2010, p. 15) como decorrência das necessidades do Estado em gerar recursos para sua manutenção e a dos governos que o administram, cujo fenômeno é oriundo “[...] no campo da Economia, sendo reavaliado na área de Finanças Públicas e normatizado pela Ci-ência do Direito”, consubstanciado na tríplice fato-valor-norma (Eco-nomia-Finanças Públicas-Direito).

Em outra obra do mesmo autor (2005, p. 280), é explicitado em mais detalhes essa percepção:

O aspecto valorativo do “substractum” econômico, que determina por desaguar em solução de regulação tributária ou meramente ad-ministrativa, visto pelo prisma de uma teoria tripartida do direito de conteúdo unitário, traz como consequência do ato de valorara escolha definitiva da solução normativa, que, quando adentrando o campo tributário, necessita instrumental mais abrangente de per-cepção e mais limitado de execução [...].

Adentrando na normatização, relembra Coêlho (2020, p. 26) que o poder de tributar, modernamente, é o campo predileto de labor do le-gislador constituinte, especialmente por duas razões: “A uma, porque o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins, sempre crescentes, quanto para utilizar o tributo como instrumento extrafiscal [...]”.

Na mesma linha, Martins (2010, p. 375) evidencia que a imposição tributária abrange as facetas fiscal, parafiscal e extrafiscal, aduzindo que, qualquer que seja o campo próprio de ação e a finalidade da recei-ta obtida ou desenvolvimento estipulado, “[...] o instrumental jurídico

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existente visualiza essa relação de índole econômica, de participação em determinadas atividades, mesmo que a título de paralelo desenvol-vimento social”.

Em continuidade ao estudo, Nogueira (1990, p. 122) leciona que cabe à Constituição disciplinar o exercício do poder de tributar, bem como “[...] catalogar, outorgar e distribuir competências tributárias, de-limitá-las, classificar os tributos, dispor sobre sua partilha e arrecada-ções, impedir conflitos de competências e garantir o status do cidadão contribuinte”.

No caso brasileiro, Melo (2010, p. 9) recorda que é por meio desses recursos que o Brasil atinge seus objetivos fundamentais, dispostos no art. 1º, §3º, da Constituição Federal, “[...] consistentes na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, no desenvolvimento nacional, na erradicação da pobreza e marginalização, na redução das desigualdades sociais e regionais, bem como na promoção do bem-estar da coletivida-de”, além das inúmeras e diversificadas atividades que os entes federa-dos executam com tais recursos.

O mesmo autor (2010, p. 10) ainda informa que o sistema tributário é constituído por princípios e normas específicas, expressamente disci-plinados em capítulo próprio da Constituição Federal (arts. 145 a 156) e em outros dispositivos esparsos (arts. 7º, III; 195; 212, §5º; 239, §§ 1º; e 4º e 240), sendo que, para examinar a matéria tributária, deve-se proce-der “[...] a análise e a compreensão dos postulados e regras hauridas na Constituição, como lei fundamental e suprema do Estado, conferindo poderes, outorgando competências e estabelecendo os direitos e garan-tias individuais”.

Coêlho (2016, p. 224) constata que, na Constituição pátria, há uma repartição das competências pela natureza dos fatos jurígenos, sendo que, para taxas e contribuições de melhoria, há uma renúncia expressa em relação a fatos jurígenos genéricos, enquanto, para os impostos, o constituinte não declina os fatos jurígenos autorizativos da instituição destes para os legisladores competentes.

É importante observar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mais especificamente no seu §1º do art. 145, dispõe

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de forma explícita sobre o princípio da capacidade contributiva aos im-postos, como se observa:

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão gra-duados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades eco-nômicas do contribuinte. (BRASIL, 2020).

Diante disso e nos dizeres de Machado (2019, p. 72), encontra-se hoje dominante na consciência jurídica universal como de observância obrigatória e “[...] deve ser visto como um princípio de justiça, e assim deve ser seguido pelo intérprete das normas tributárias em geral [...]”.

Nessa oportunidade, as lições de Coêlho (2016, p. 53) novamente se fazem necessárias, mais especificamente o seu apanhado doutrinário sobre o referido princípio:

Griziotti, há quase meio século, dizia que a capacidade contributiva indicava a potencialidade das pessoas de contribuir para os gastos públicos. Moschetti a conceituou como “aquela força econômica que deva julgar-se idônea a concorrer às despesas públicas”, e não “qualquer manifestação de riqueza”, acentuando assim a capacida-de econômica real do contribuinte e, pois, personalizando o con-ceito. Aliomar Baleeiro avançou um pouco mais, fazendo surgir a capacidade contributiva como o elemento excedentário, sobrante, da capacidade econômica real do contribuinte; seria a “sua idonei-dade econômica para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com a dignidade humana, uma fração qualquer do custo total dos serviços públicos” [...].

Mais recentemente, Maria e Luchiezi Junior (2010, p. 17) susten-tam que “este princípio integra o princípio da isonomia, que consiste em tratar os desiguais de modo desigual, podendo, assim, o tributo ser cobrado de acordo com as possibilidades de cada um”, inferindo ainda que ele serve de alerta ao poder tributante, o qual não deve, ao propor as normas instituidoras dos tributos, suas alíquotas e bases de cálculo, atuar em sentido contrário.

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Por fim, Coêlho (2020, p. 51) conclui que, embora o dispositivo seja restrito aos impostos, a abrangência do princípio da capacidade contri-butiva é maior, traduzindo-se na aptidão de o indivíduo ser sujeito pas-sivo de tributo se concorrer para os gastos públicos, sendo a capacida-de contributiva “[...] o motor operacional do princípio da igualdade na esfera tributária, tendo o condão, por isso mesmo, de realizar o próprio valor justiça”.

4. FUNDAMENTOS CONTEMPORÂNEOS DA IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA

No Brasil contemporâneo, atravessa-se um momento notadamente marcado pelo desejo de mudanças constitucionais e infraconstitucio-nais na legislação tributária, oportunidade na qual é propício repensar os fundamentos da imposição tributária, refletindo sobre onde irá re-pousar a atividade legislativa de reforma do ordenamento fiscal.

Tal situação de mudança é costumeira e acontece com certa frequ-ência, visto que qualquer sistema tributário precisa ser constantemente revisado, sendo natural que sejam repensadas novas soluções que per-mitam o seu aperfeiçoamento, no sentido de melhorar a eficiência e a justiça fiscal.

Antes de se tecer qualquer proposta que vise fundamentar o fenôme-no da imposição tributária, é imperioso alertar que a manifestação do poder de tributar tem acompanhado os mais diversos arranjos sociais ao longo da História, motivo pelo qual a fluidez deste impacta diretamente na percepção do seu próprio conceito.

Nogueira (1990, p. 5-6) recorda que, desde os mais remotos tem-pos, verificam-se diversas denominações ao tributo, nas mais variadas línguas, sendo que já foram considerados como auxílios, doações, pre-sentes, despojos de guerra, confiscos, contribuições arbitrárias (para os mais diversos fins) e, mais recentemente, como forma de obtenção de receita no sentido de “[...] proteger, com mais intensidade, não apenas os direitos individuais, mas, igualmente, os sociais”.

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Em apertada recapitulação histórica, Greco (2012, p. 277) relembra que as raízes do tributo remontam ao uso da força na Antiguidade, ati-nente ao espólio da guerra exigido pelo vencedor ao vencido, passando pela investidura divina dada ao rei absolutista e ao seu poder ilimita-do de tributar, apenas sendo possível observar alguma restrição de tal exercício no século XVII, por meio do Bill of Rights,e, em seguida, na Revolução Francesa, quando finalmente se consolidou uma verdadeira limitação à atividade exacional, por meio da instauração de uma fonte de legitimação racional normativa, qual seja, o Estado de Direito.

Nogueira (1990, p. 6) observa que, no Estado de Direito, os homens são governados pelo poder da lei e não pelo poder de outros homens, revelando-se uma proposição jurídica que trata igualmente todos que estejam na mesma situação, bem como se impondo como pessoa direi-tos e obrigações tanto aos particulares, quanto aos agentes do Estado e ao próprio Estado.

Quanto à Revolução Francesa, Martins (2005, p. 63-64) discorre que nela “[...] a predominância foi de o povo ser o verdadeiro destinatário do poder e das ações públicas, mas à luz, não de subordinação irrestrita, mas de participação efetiva”, evidenciando-se o Estado como institui-ção teoricamente criada para a sociedade viver segundo sua livre esco-lha, nos padrões considerados ideais, seguindo o perfil delineado na sua lei suprema.

Schoueri (2019, p. 17,24/28) aponta que dificilmente hoje se encon-tra alguém que sustente qualquer outra forma de organização política que não seja o Estado, o qual pressupõe a busca de recursos financeiros para sua manutenção prioritariamente por meio de tributos, em proces-so gradativo histórico de substituição do modelo do “Estado de Polícia” pelo “Estado Fiscal”, registrando ainda que este assumiu incialmente uma feição minimalista, sob inspiração do liberalismo para, em segui-da, adotar uma função distributiva e alocativa, especialmente em seu viés indutor.

Assim, pode-se, contemporaneamente, indicar como principal fun-damento da imposição tributária a necessidade de o Estado arrecadar recursos para o custeio da máquina pública, devendo se tratar de ins-

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tituto de aceitação voluntária e racional de tal condição pela própria sociedade, já que as atividades estatais visam à proteção e ao progresso social, estando, assim, inserido na noção de contrato social, que adere à ideia de civilização.

Além disso, Machado (2019, p. 69) recorda que hoje o poder tri-butário apresenta a função extrafiscal, em que é “[...] largamente uti-lizado com o objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia”, além da função parafiscal, “[...] quando o seu objetivo é a arrecadação de recursos para o custeio de atividades que, em princípio, não integram funções próprias do Estado, mas este as desenvolve atra-vés de entidades específicas”.

Em outra obra, Machado (2018, p.154) ainda distingue o interesse primário do Estado, na condição de titular do poder de tributar, justifi-cando a edição da norma que institui ou aumenta o tributo para a obten-ção dos meios necessários para à consecução dos seus fins (e que com ela se exaure), do interesse secundário ou instrumental do Estado, que pertence a este como pessoa, sujeito de direitos e obrigações na ordem jurídica, sendo igual ao interesse de qualquer outra pessoa na observân-cia e na aplicação da norma.

Todavia, não se pode olvidar que, na prática, mesmo se estando cien-te de todo o arrazoado que corrobora contemporaneamente a imposição tributária, registra-se ainda uma verdadeira admoestação social em su-portar o referido ônus, magistralmente captada nas lições de Martins (2005, p. 79):

O tributo, que a sociedade jamais deseja pagar no nível em que os governos lhe cobram, é, talvez, a norma de rejeição social mais clara, mais nítida, no direito moderno, sempre suportada pela classe dominada em benefício da classe dominante. Pois que os homens não são iguais e os detentores do poder têm sempre mais direitos do que os pobres mortais não participantes, direta ou indiretamente, da direção do país.

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Assim, mesmo sendo possível visualizar todos os robustos funda-mentos que justificam a atividade exacional do Estado, a percepção de que a ela está inserida numa relação de poder, enquadrada numa dinâ-mica injusta e conflitiva de classes, importa na sua clara rejeição.

Nos dizeres de Greco (2012, p. 284.), tal resistência da sociedade civil em face do fenômeno tributário necessita de evolução da própria experiência estatal, buscando o equilíbrio da relação fisco/contribuinte, no sentido de reconhecer que o seu núcleo finalístico se centra em con-ceber a tributação como exercício de uma atividade no desempenho de uma função instrumental de emancipação, superando o velho paradig-ma de dominação, “[...] pois isto implicará deslocar a sociedade civil de mera destinatária e submetida ao poder formal, para assumir o papel de protagonista positiva do direcionamento a imprimir a esta função”.

Na mesma linha, Paulsen (2019, p. 23) posiciona a tributação como instrumento da sociedade para a consecução dos seus próprios objeti-vos, não se tratando de uma submissão ao Estado, tampouco um mal necessário. Por isso, aduz não se sustentar mais “[...] os sentimentos de pura e simples rejeição à tributação. A figura de Robin Hood, que em algumas versões atacava os coletores de impostos para devolver o dinheiro ao povo, hoje já não faz sentido”.

Ferraz Júnior (2014, p. 124) também enxerga essa conformação es-tatal de garantidor dos direitos sociais, aduzindo que “o estado social trouxe o problema da liberdade positiva, participativa, que não é um princípio a ser defendido, mas a ser realizado. Com a liberdade positi-va, o direito à igualdade se transforma num direito a tornar-se igual nas condições de acesso à plena cidadania”.

Por sua vez, Melo (2010, p. 10) vislumbra no Direito Tributário uma efetiva dignidade constitucional em razão do peculiar e minucioso tra-tamento que lhe foi conferido pelo constituinte, “[...] o que tem o con-dão de revelar sua considerável importância no ordenamento jurídico, pela circunstância especial de, por um lado, representar fonte de receita para o Poder Público e, de outro, acarretar ingerência no patrimônio dos particulares”.

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Seguindo a linha, Machado (2019, p. 24) sustenta que, pelo viés eco-nômico, o tributo é o instrumento de que se tem valido a economia capi-talista para sobreviver, na medida em que é por meio dele que o Estado realiza os seus fins sociais, inegavelmente se tornando, talvez, a única arma contra a estatização da economia.

Nogueira (1990, p. 129) acrescenta que, se fosse suprimido o tributo:

[...] acarretaria o fim da vida coletiva e a paralisação da vida indi-vidual, tendo em vista o elevado grau em que os serviços públicos, cujo funcionamento é assegurado pelo tributo, fazem parte da eco-nomia contemporânea. O tributo é, portanto, uma despesa individu-al tão essencial como a que é consagrada à habitação, à alimentação e ao vestuário.

Nesse escopo, Martins (2010, p. 375-376) aponta a necessidade de uma base de tributação mais elástica, visando reduzir a excessiva con-centração de carga tributária sobre determinadas áreas, o que influen-ciaria a própria concepção de uma sociedade mais engajada no cumpri-mento de suas obrigações essenciais, dentre as quais, o pagamento do tributo legítimo e justo, levando a concluir da seguinte forma:

Este sentido de justiça da norma tributária é aquele de transcen-dental relevância para a compreensão da fenomenologia impositi-va. Dele decorre a estruturação própria do sistema tributário, que terá de se adequar, em sua formulação obrigacional, com densidade maior na espécie sanção que aquela pertinente ao tributo, se mais distante se colocar dos princípios inerentes a uma desejada política fiscal.

De todo o apanhado, sobressai-se a necessidade de uma reforma pro-funda na percepção do poder de tributar, tanto pelo Fisco, no sentido de compreender a necessidade de se promover uma política tributária mais eficiente e simplificada, como pelo próprio contribuinte, a quem cabe enxergar a sua sujeição ao tributo como caminho que viabiliza o Estado a concretizar os interesses públicos.

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5. FUNÇÃO SOCIAL DO TRIBUTO E CIDADANIA

Como demostrando anteriormente, os tributos são fontes de recursos para o Estado, mas é importante lembrar que os tributos não devem se resumir a apenas serem pagos pela sociedade. Melhor que isso é mostrar à sociedade como os recursos recolhidos são revertidos em me-lhorias para a qualidade de vida de todos, visando, assim, à garantia da dignidade humana por meio da efetivação dos direitos sociais. Confor-me afirmam Liebl e Demarchi (2018,p.87), os direitos sociais garantem aos indivíduos as “condições imprescindíveis para o pleno gozo dos seus direitos” e, ao realizar esses direitos, o Estado necessita de um arcabouço financeiro para intervir socialmente e, dessa forma, reduzir as desigualdades sociais.

Dessa forma, ao se concretizar a função social do tributo e da jus-tiça social tributária, concretiza-se a dignidade humana e se ga-rante o mínimo existencial. Como se vive uma realidade em que isso não é perseguido como prioridade do governo brasileiro, está-se fadado a não se alcançar a dignidade da pessoa humana, assim como o mínimo existencial se encontra prejudicado.

Por outro lado, se ficar clara a aplicação desses recursos que são re-colhidos, o cidadão entenderá que pagar tributos não é uma simples obrigação como cidadão, mas a sua contribuição para a cidadania, pois a arrecadação dos tributos é necessária e fundamental para o desenvol-vimento econômico e social de todos. Nessa aplicação das receitas é que reside a função social dos tributos. A correta aplicação e o atendi-mento às necessidades da sociedade representam a contribuição de cada um para o conjunto da sociedade.

Diante da realidade atual em que se está repensando o sistema tribu-tário nacional, impõe-se um processo de educação e conscientização fiscal em que tributador e contribuinte tenham o dever social de corre-tamente contribuir com a arrecadação e, também, corretamente aplicar o tributo arrecadado, garantindo, assim, uma justiça fiscal.

Nesse contexto, necessário que o cidadão participe mais do controle fiscal e social dos tributos, bem como da correta aplicação com a fina-

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lidade de atender às reais necessidades da sociedade e não aos interes-ses de quem administra ou governa o estado, pois, com a compreensão da natureza da tributação e das suas finalidades, pode-se entender e se aceitar algo compulsório.

Por isso, a necessidade de um processo de educação que resgate a noção de tributo como instrumento de obtenção do bem comum e de responsabilidade social. Para que isso aconteça, é necessário que a so-ciedade seja participante no processo de organização orçamentária e, consequentemente, beneficiária dos bens e serviços realizados.

É importante que a sociedade esteja ciente dos tributos como meio para a construção do bem comum, na qual todos devem participar da sua escolha, do monitoramento e dos benefícios. Assim como que eco-nomicamente todos estejam cientes e sejam sabedores da proposta e das ações tributárias, ou seja, que entendam por que determinados setores pagam mais que os outros, ou qual a razão de haver isenções e benefí-cios em vigor, ou, ainda, qual a necessidade de se abolir ou aumentar tributos. Por mais complexo que seja o sistema, deve ser facilitado para que os contribuintes entendam e saibam o porquê e para que estão con-tribuindo.

Com essa consciência e atuação, a questão fundamental que deve pairar sobre os tributos é que a equidade certamente se fará presente na prática. Ou seja, o governo, deixando claro o custo tributário e a forma como está distribuído entre os contribuintes, facilitará a sua aceitação e contribuição.

Até porque a dignidade como ofício, vinculada diretamente à noção de cidadania, conforme Demarchi e Fontana (2019, p. 575), tem o reco-nhecimento de deveres do indivíduo para com a comunidade, “deveres estes que, quando contidos na Constituição, são deveres fundamentais que podem e devem ser exigidos pela sociedade, como garantia de pre-servação do bem comum”. Dessa forma, pagar impostos, conforme Demarchi e Fontana (2019, p. 575), contribui e possibilita a preserva-ção da dignidade da pessoa humana, “mediante comunhão de esforços de todos, na medida da responsabilidade de cada indivíduo perante o próximo e para consigo mesmo”.

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Quando isso está claro para a sociedade, há a percepção de que o sistema tributário é administrado, visando ao interesse de todos e com base em valores. Dessa forma, a imposição tributária não possui somen-te a face de arrecadadora de recursos e com a ideia de diminuir a capa-cidade econômica do contribuinte, mas se apresenta como o elo entre a captação e a construção do bem comum da sociedade.

6. CONCLUSÃO

Como disposto no início do trabalho, o objetivo principal do presen-te artigo científico foi analisar os fundamentos da imposição tributária na atualidade e verificar a sua função social neste momento, marcado notadamente por anseios de reforma tributária no Brasil, visando iden-tificar como a atividade exacional é (ou como se supõe que deveria ser) percebida pelo ente tributante e pelo contribuinte.

Foi necessário, inicialmente, revisitar a disciplina atinente ao poder de tributar, passando pela conceituação e análise histórica da imposição tributária e sua regulamentação no ordenamento jurídico vigente.

Das constatações realizadas, observou-se que o poder de tributar tem se manifestado nos mais diversos arranjos sociais ao longo da História, motivo pelo qual a fluidez deste impacta diretamente na percepção do seu próprio conceito, mas, contemporaneamente, prevalece como seu principal fundamento a necessidade de o Estado arrecadar recursos fi-nanceiros para o custeio da máquina pública.

Foi também possível identificar que a percepção fática da sociedade deveria ser no sentido da aceitação voluntária e racional da imposição tributária, já que esta visa à proteção social e ao progresso. Todavia, tem prevalecido a percepção de que o tributo se encontra inserido numa re-lação de poder, enquadrada numa dinâmica injusta e conflitiva de clas-ses, importando em sua rejeição.

Destaca-se como ideias fundamentais: a sujeição ao tributo é um ca-minho que viabiliza o Estado a concretizar os interesses públicos; os tributos não devem se resumir a apenas serem pagos pela sociedade; importante mostrar à sociedade como os recursos recolhidos são rever-

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tidos em melhorias para a qualidade de vida de todos; o cidadão deve estar ciente que pagar tributos não é uma simples obrigação como cida-dão, mas a sua contribuição para a cidadania; na correta aplicação das receitas é que reside a função social dos tributos; por mais complexo que seja o sistema, deve ser facilitado para que os contribuintes enten-dam e saibam o porquê e para que estão contribuindo.

Finalmente, sugere-se uma reforma profunda no exercício do poder de tributar pelo Fisco, visando promover uma política tributária mais eficiente, simplificada e transparente para que o contribuinte esteja ciente e de acordo com a proposta que viabiliza o Estado a concretizar os interesses públicos e não simplesmente apresentar-se como um ór-gão de arrecadação e com aparência de querer diminuir o poder aquisi-tivo das pessoas.

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Recebido em: 29/06/2021Aprovado em: 05/07/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p167

A APLICABILIDADE DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS À LUZ DO PARADIGMA SOCIAL DE PUNIÇÃO EM PROL DA

EDUCAÇÃO - UMA ANÁLISE CRÍTICA

THE APLICABILITY OF CORRECTIONAL MEASURES UNDER THE SOCIAL PARADIGM OF PUNISHMENT TO

EDUCATE - A CRITICAL ANALYSES

Isabel Helena Almeida de Albuquerque1

Enio Gentil Vieira Junior2

Resumo: O presente artigo científico abordará as medidas socioe-ducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90, com enfoque na sua aplicabilidade e sua eficácia/alcance. Cumpriu analisar todo o procedimento do ato infracional e a aplicação das medidas socioeducativas dispostas no referido diploma legal. Para tanto, estudou-se tanto a doutrina quanto o entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, assim como o de outros Tribunais de Jus-tiça do Brasil. A pesquisa desenvolveu-se, inicialmente, por meio da análise do procedimento do ato infracional e toda a aplicabilidade de sua singularidade, fazendo um breve comparativo ao Direito Penal. Por fim, examinou-se a aplicabilidade/alcance das medidas socioeducati-vas, analisando-as individualmente e as diferenciando, conforme suas características, para, na sequência, estudar a sua eficácia e a real razão de ser aplicada, além de seus requisitos, com a ideia de ressocialização e não de punição. Confirmou sobre a aplicabilidade das medidas e de seus requisitos, bem como de seus limites. O método de abordagem da pesquisa foi o dialético, realizado de maneira comparativa e jurídica

1. Isabel Helena Almeida de Albuquerque, bacharel em Direito pela Facul-dade CESUSC. E-mail: [email protected]. Enio Gentil Vieira Junior, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, advogado da Infância e da Juventude do Tribunal de Justi-ça. E-mail: [email protected]

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por meio de consulta ao acervo da Biblioteca da Faculdade e pessoais, bem como em sites especializados na internet.

Palavras-chave: Direito da Criança e do Adolescente. Medidas socio-educativas. Eficácia e alcance. Ato infracional. Aplicabilidade das me-didas. Paradigma social da punição.

Abstract: The article that follows bellow will approach the correctional measures foreseen on the Child and Adolescent Statue – 8.069/90 Law, focusing on their applicability and their efficiency/reach. Was analyzed all the procedure of the infractional act and the correctional measures application. For that matter, was studied doctrines and jurisprudence of the Santa Catarina Court of Law, as well as other’s State’s Courts of Law. The research began, initially, approaching the whole infractional act and each applicability of each correctional measure were described and explained, outlining a comparative to Criminal Law. At the end, the applicability/reach of the correctional measures was examined. Stu-dying each one of them individually, according to their differences and characteristics. In the aftermath, was deeply studied the efficiency and real application of each correctional measures, through the thought of resocialization and not punishment. Was confirmed about their appli-cability and requirements, as well as their limits. The approach me-thod was the dialectical and was done by comparison and legal search through the Santa Catarina Court of Law’s Library archive, as well as specialized sites on the Internet.

Keywords: Child and Adolescent Law. Correctional measures. Effi-ciency and reach. Infractional act. Applicability of the measures. Pu-nishment as a social paradigm.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo abordará tema bastante sensível na seara do Direito da Criança e do Adolescente, qual seja, a avaliação de um suposto binô-mio entre rigor/gravidade das medidas socioeducativas e a efetividade/alcance dos objetivos aparentemente pretendidos, mormente, ainda que pareça repetitivo, a ideia de socioeducação.

É primordial que se faça essa análise, porquanto é necessário que a sociedade não se mantenha indiferente e exija que a ressocialização do

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adolescente sirva para que ele se transforme em um adulto melhorado pelo sistema vigente, consistente no ordenamento jurídico.

O trabalho analisará a aplicação das medidas socioeducativas ponde-rando com o entendimento social atual de que a medida mais rigorosa imposta ao adolescente obtém maiores êxitos na sua ressocialização.

Nesse sentido, busca-se provocar uma reflexão a respeito do conceito de justiça construído atualmente para que seja possível obter entendi-mento de que o adolescente não necessita cumprir a medida socioe-ducativa mais rigorosa para se reintegrar à sociedade ou para que se entenda de fato os atos cometidos.

Dessa feita, o espaço de estudo foi delimitado a partir da análise de alguns casos nos quais é viabilizada a medida socioeducativa de in-ternação. Entretanto, é possível perceber a sua aplicação com voz de punibilidade e repressão ao adolescente.

A hipótese do trabalho baseia-se na aplicação das medidas socioedu-cativas de maneira justa e de acordo com a legislação vigente, sempre observando o caso concreto e a real necessidade de punir o adolescente com o equivalente à medida mais rigorosa.

O objetivo geral da pesquisa é discutir o ato infracional e as medidas socioeducativas, assim como sua aplicação. Já os objetivos específicos estão divididos em explicitar o ato infracional e as medidas socioedu-cativas: quais são; como se aplicam–na perspectiva legal – e, por fim, a sua aplicabilidade – atual – como meio de punição do adolescente.

A justificativa do trabalho se baseia na análise atual do pensamento social punitivo – “custe o que custar” –, que acaba ceifando jovens vidas pela aplicação severa sem a real necessidade e/ou análise correta e concreta. Logo, é de suma importância o estudo desse tema e sua aplicação no cotidiano do judiciário brasileiro para que a juventude, em outras palavras, o futuro da nação, não acabe corrompido e mal inter-pretado diante do cenário social de desigualdade e delinquência juvenil.

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2. O ATO INFRACIONAL E AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

O Estatuto da Criança e do Adolescente surgiu para regulamentar e garantir a imposição à família, à sociedade e ao Estado de assegurarem os direitos da criança e do adolescente, bem como disciplinar os meca-nismos para efetivação e garantia desses interesses inerentes à criança e ao adolescente.

Nesse sentido, passa-se a analisar o ato infracional e a consequente aplicação das medidas socioeducativas.

2.1 O ato infracional

Conforme o disposto no art. 103 do Estatuto da Criança e do Adoles-cente, o ato infracional vem a ser toda conduta tipificada na lei como crime ou contravenção penal.

Karyna Batista Sposato (2006, p. 113) explica que a conduta pratica-da pelo adolescente se afigurará como ato infracional somente se con-tiver os mesmos aspectos que identifiquem a definição do crime, da in-fração penal, ou seja, o critério de identificação dos fatos de relevância infracional está diretamente condicionado ao princípio da legalidade.

É de suma importância registrar que a definição de crime como fato típico, antijurídico e culpável não se aplica à criança e ao adolescente, uma vez que tais agentes não preenchem o requisito da culpabilidade, o que é um dos pressupostos para a aplicação da pena.

Assim sendo, excluído o pressuposto da culpabilidade do ponto de vista da imputabilidade penal, os demais elementos da culpabilida-de hão de ser considerados. Assim, há que se ter em vista, quando o Estado pretende sancionar o adolescente com alguma medida so-cioeducativa, sua potencial consciência da ilicitude e a exigibilida-de de conduta diversa, circunstâncias que levam à reprovabilidade da conduta (SARAIVA, 2009, p. 103).

O Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe o princípio da inim-putabilidade penal para os menores de dezoito anos, tornando impossí-vel a responsabilização penal de crianças e adolescentes pela prática de um crime, logo ficando sujeitas às normas de uma legislação especial.

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Após verificadas e comprovadas a autoria e a materialidade do ato infracional, aos adolescentes (maiores de doze e menores de dezoito anos) serão aplicadas as medidas socioeducativas previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e as crianças (menores de doze anos) autoras de ato infracional ficarão sujeitas às medidas prote-tivas estabelecidas no art. 101 do mesmo diploma legal.

2.2 As medidas socioeducativas

Para que o adolescente seja sancionado, ele deverá ter cometido um ato infracional, conduta que está descrita no art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Estatuto, em capítulo próprio, dispõe as chamadas medidas so-cioeducativas. No art. 112, o legislador apresenta o elenco de medidas, asseverando que, “verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – ad-vertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI” (medidas especiais de proteção (SHECAIRA, 2008, p. 183).

O rol de medidas é taxativo, limitado que está pelo princípio da lega-lidade, sendo vedada a imposição de medidas diversas daquelas enun-ciadas no artigo supracitado (MAIOR NETO, 2000, p. 362).

As medidas elencadas no art. 112 do Estatuto da Criança e do Ado-lescente somente poderão ser aplicadas pelo Juiz da Infância e da Ju-ventude, o qual deverá observar a capacidade do adolescente de cum-pri-la, bem como as circunstâncias e a gravidade do ato infracional em si (§1º do art. 112 do ECA).

Saraiva (2005, p. 76) bem elucida que:

O jovem, em certas situações, insusceptível de medida socioedu-cativa, poderá necessitar de medida de proteção, como o acompa-nhamento e orientação temporário, dentre as demais listadas no art. 101, em face de alguma situação pessoal ou social que reclame esta

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medida protetiva, nos termos do art. 98 do ECA. [...] A medida de proteção neste caso será aplicada sem caráter sancionatório, não decorrerá do que o agente praticou, mas sim se certa circunstância pessoal que a reclame, sem a cogência própria da medida socioe-ducativa.

Konsen (apud PEREIRA, p. 988) afirma que as medidas socioeduca-tivas são como:

[...] a responsabilização do adolescente autor de ato infracional, com o significado de evidenciar a inadequação de uma determinada conduta penal e determinada a prevenir a prática de novas infrações e propiciar a adequada inserção social e familiar, através da adesão voluntária ao fazer incidir de vivências pedagógicas corresponden-tes às necessidades do infrator.

No mesmo viés, discorre Shecaira (apud SARAIVA, p. 50), frisando que:

As normas que regulam a responsabilidade penal dos menores per-tencem ao Direito Penal por contemplarem situações nas quais se impõem sanções aos autores da infração [...]. A medida socioedu-cativa é, tal qual a pena, um ato de intervenção estatal na esfera de autonomia do indivíduo que tem evidente natureza de sanção.

Em que pese a natureza da medida socioeducativa, há certa diver-gência na doutrina. Segundo Liberati (2006, p. 142), há os que susten-tam que a medida socioeducativa possui caráter sancionatório e, assim, punitivo e, por outro lado, há os que afirmam que as medidas têm um caráter educacional.

Nesse sentido, Volpi (2005, p. 20) explica que as medidas compor-tam:

[...] aspectos de natureza coercitiva, vez que são punitivas aos in-fratores, e aspectos educativos no sentido da proteção integral e oportunizar o acesso à formação e informação, sendo que, em cada medida, esses elementos apresentam graduação, de acordo com a gravidade do delito cometido e/ou sua reiteração.

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Shecaira (2008, p. 187) pontua que “pode-se afirmar que a medida sócio-educativa (sic)é uma sanção de caráter pedagógico e educativo, com finalidade de reforçar os vínculos familiares e comunitários do adolescente [...]”.

Em sentido semelhante, Antonio Fernando do Amaral e Silva bem assevera:

É cediço que a expressão pena pertence ao gênero das respostas sancionatórias e que as penas se dividem em disciplinares, admi-nistrativas, tributárias, civis, inclusive sócio-educativas (sic). São classificadas como criminais quando correspondem a delito pratica-do por pessoa de 18 anos ou mais, imputável frente ao Direito Penal comum. Embora de caráter predominantemente pedagógico, as me-didas sócio-educativas (sic), pertencendo ao gênero das penas, não passam de sanções impostas aos jovens (2006, p. 58).

Nesse mesmo sentido, discorre Martha Toledo Machado (2003, p. 241-242 apud SHECAIRA, 2008, p. 187):

[...] a medida sócio-educativa (sic) é sanção, ancorando a diferen-ça da pena na própria Carta de 1988. Diz a autora que é a própria Constituição Federal que estabelece a dualidade pena/sanção, ao dispor que a sanção que deve ser imposta ao adolescente é distinta daquela reservada ao adulto. A Carta de 1988 busca excluir o jovem da aplicação da pena, por reconhecer nele a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; ainda que venha a ter a aplicação de qualquer medida privativa de liberdade, deverá ser internado, res-peitadas as suas particularidades [...].

Ainda, completa Carlos Nicodemos (2006, p. 75) que, se as medidas socioeducativas têm tal caráter pedagógico, sua fixação é impositiva, decorrendo de um procedimento que se referencia nos parâmetros dos processos em que os adultos são os acusados, devendo ter todas as ga-rantias inerentes ao devido processo legal. Desse modo, o sistema é sancionatório, tanto quanto a medida é pedagógica.

Outrossim, de modo que se aplique a medida socioeducativa, é ne-cessário observar as necessidades pedagógicas do indivíduo (art. 100 da Lei n. 8.069/90), ao contrário do que acontece com a pena criminal do

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adulto, na qual se avalia o tamanho da culpa para a fixação da reprimen-da, “[...] a finalidade da pena criminal pauta-se [...] por sua proporcional carga retributiva. A finalidade da medida socioeducativa pauta-se pela necessidade pedagógica do adolescente”, segundo bem expõe Konsen (apud PEREIRA, 2008, p. 988).

Nessa lógica, sendo a medida socioeducativa tal qual como a pena, logo um ato de intervenção estatal na esfera de autonomia de um in-divíduo, não se deseja que o adolescente tenha o que há de pior no sistema punitivo do adulto – a punição em cárceres –, muito menos que a sua sanção socioeducativa tenha um conteúdo meramente retributivo (SHECAIRA, 2008, p. 190).

Prioriza-se a humanização das respostas institucionais. A melhor for-ma de se obter isso está na adoção de garantias plenas de legalidade, do devido processo legal e de todos os consectários naturais desse princí-pio (COSTA, 2005, p. 80).

Um exemplo bastante relevante para a adoção de padrões penais para a execução das medidas socioeducativas é o reconhecimento da pres-crição destas. O entendimento atual predominante é no sentido de afir-mar que a prescrição da pretensão das medidas tem como referência os prazos prescricionais dispostos no Código Penal, reduzidos à metade por conta de os agentes terem menos de vinte e um anos (SHECAIRA, 2008, p. 191).

3. A APLICABILIDADE DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS E A IDEIA DE PUNIÇÃO

Partindo da premissa de que a medida socioeducativa é uma forma de sanção penal, ao lado da pena criminal destinada aos imputáveis e das medidas de segurança previstas aos adultos inimputáveis, cabe analisar as diferentes modalidades em conformidade com os princípios penais básicos e os princípios fundamentais do direito penal juvenil.

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3.1 Das modalidades de medidas socioeducativas

O art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente demanda que o nexo de causalidade entre a conduta praticada pelo adolescente e o dano causado esteja bem claro. A conduta dolosa ou culposa e a lesão ao bem jurídico são critérios para a imposição de medida socioeducativa. “[...] visam prevenir e reprimir a delinquência juvenil, vale dizer, fazê--la parar relativamente ao agente e impedir ou moderar o fenômeno em relação aos demais adolescentes”. (PEREIRA, 2008, p. 991).

Ainda, é expresso, no Estatuto, a aplicação preferencial de medidas que não prejudiquem a socialização dos adolescentes, segundo o art. 100 da Lei: “Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessi-dades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.

As medidas se dividem em não privativas de liberdade (advertência, reparação de dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade as-sistida) e medidas privativas de liberdade (semiliberdade e internação).

Para Sandrini (1997, p. 65), a classificação teria diferente nomencla-tura: as medidas “[...] podem ser divididas em três categorias: medi-das auto-aplicáveis (sic), medidas aplicáveis em meio aberto e medidas cuja aplicação pressupõe a restrição ou privação”.

3.1.1 Medidas socioeducativas não privativas de liberdade

As quatro primeiras medidas dispostas no artigo são aplicadas por meio de programas de execução em meio aberto, sem restrição ou pri-vação de liberdade, sendo equivalentes às penas alternativas do sistema penal adulto (COSTA, 2005, p. 83).

Entende-se que não há relação entre a medida socioeducativa e o ato infracional. No entanto, em interpretação contrária ao art. 122 do Estatuto, o qual estabelece os requisitos para a aplicação de medida de internação, pode-se dizer que “as medidas em meio-aberto destinam-se a atos infracionais de natureza leve, sem violência ou grave ameaça

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à pessoa e destinam-se a adolescente não reincidentes”, segundo Ana Paula Motta Costa (2005, p. 83).

Conforme Sérgio Salomão Shecaira (2008, p. 195), a menos grave das medidas não restritivas da liberdade do adolescente é a advertência.

A medida socioeducativa da advertência está disposta no inciso I do art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e “[...] trata-se da repreensão verbal feita ao adolescente pelo Juiz, na presença dos pais, do defensor do adolescente e do Promotor Público [...]” (SANDRINI, 1997, p. 70).

Quanto ao procedimento, Karyna Sposato (2006, p. 120) esclarece que se dá pela leitura do ato infracional, em audiência admonitória, na presença dos responsáveis legais do adolescente, e o caráter pedagó-gico da medida se pressupõe em um “procedimento ritualístico”, com vistas a obter do adolescente um comprometimento de que tal fato não se repetirá.

Shecaira explana:

[...] Por ser mais branda das medidas, tem sido constantemente apli-cada para pequenos delitos como lesões leves, furtos em lojas de departamento, supermercado etc. Não se pode deixar de ter em con-ta, no entanto, que a advertência é uma técnica de controle social, praticada dentro de qualquer relação de poder (família, escola etc.), e que a admoestação pode vir a ser um forte, embora sutil, mecanis-mo de repreensão (2008, p. 196).

Na sequência, encontra-se a obrigação de reparar o dano, a qual é aplicada nos casos em que houve reflexos patrimoniais. Logo, a obriga-ção de reparar o dano traz um ressarcimento material à vítima quando o ato infracional atinge o patrimônio desta.

É considerada uma medida coercitiva e educativa, levando o adoles-cente a reconhecer o erro e repará-lo, sendo, em alguns casos, determi-nada a aplicação de medidas de proteção cumulativamente, segundo Sposato (2006, p. 120).

Nesse mesmo sentido, segundo Tânia da Silva Pereira (2008, p. 995):

[...] tem o mérito de despertar no adolescente infrator a noção da responsabilidade pelo ato praticado e a ideia de que todo dano cau-

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sado a outrem deve ser ressarcido. Visa oferecer-lhe a oportunidade de refletir sobre o dano causado e a necessidade de repará-lo de alguma forma. Assim, possui natureza eminentemente pedagógica.

Para Sérgio Shecaira (2008, p. 197), a instituição da reparação do dano teve como objetivo devolver à vítima um certo protagonismo no processo penal.

Já a terceira medida socioeducativa prevista no rol taxativo do art. 112 é a prestação de serviços à comunidade.

A medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade guar-da semelhanças com a pena restritiva de direitos dessa natureza, intro-duzida ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 7.210/1984, a Lei de Execução Penal, e posteriormente prevista como pena substitutiva à prisão na Lei n. 9.714/1998, conhecida como Lei das Penas Alternati-vas (SPOSATO, 2006, p. 121).

[...] diferentemente da pena de prestação de serviço social comuni-tário, a medida socioeducativa não é aplicada em substituição à me-dida de privação de liberdade. Sua imposição se dá em adequação ao ato infracional praticado e às condições pessoais do adolescente, não podendo exceder o período máximo de seis meses. (SPOSATO ,2006, p. 121).

Se bem aplicada, a medida pode trazer grande senso de responsabili-dade, apego às normas comunitárias e respeito ao trabalho, bem como produz, na comunidade, uma sensação de obediência às regras, que é fundamental para a confiança coletiva (SHECAIRA, 2008, p. 199).

Nessa lógica, pontua Karyna Batista Sposato (2006, p. 122):

Percebe-se que essa medida possui um forte apelo comunitário e educativo tanto para o jovem infrator quanto para comunidade, que por sua vez poderá responsabilizar-se pelo desenvolvimento inte-gral desse adolescente.

E ainda:

[...] em seu bojo vantagens que se alastram sobre três esferas: Es-tado, Comunidade e Adolescente. Para o Estado surge como uma medida barata que combate com eficácia a questão da delinquência;

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a Comunidade, por sua vez, participa de forma ativa na solução do problema que a incomoda diretamente e também traz para o meio social um sentimento de responsabilidade na transformação do pró-ximo; e, por fim, o adolescente consegue reconhecer que é possível dar um rumo diferente a sua vida, e que pode contribuir, de alguma forma, na mudança do meio social em que vive (SOUZA apud PE-REIRA, 2008, p. 1000).

O período máximo de cumprimento da medida é de seis meses em jornada máxima de oito horas semanais, que deverão ser cumpridas preferencialmente aos sábados, domingos e feriados ou durante os dias de semana, desde que não afete a frequência escolar ou jornada de tra-balho, conforme o art. 117 do Estatuto.

A seguinte medida socioeducativa que está prevista no inciso IV do art. 112 do Estatuto é a liberdade assistida, que, dentro das medidas restritivas de direito, é considerada a mais grave.

É considerada um “[...] instituto legal aplicado ao adolescente autor de ato infracional sujeito a orientação e assistência social por técni-cos especializados ou associações (art. 118), descreve Wilson Liberati (2002, p. 93).

Sérgio Shecaira (2008, p. 200) aduz que “trata-se de um substitutivo penal, à semelhança do sistema do probation system, e que, na legisla-ção aplicável aos adultos, recebeu o nome de suspensão condicional da pena (sursis)”.

Ainda, Karyna Sposato (2006, p. 122) bem elucida que a medida de liberdade assistida substituiu a antiga medida de liberdade vigiada, pre-sente em legislação menorista anterior (Código de Menores de 1927), e tal alteração é uma forma de superar o caráter de vigilância sobre o adolescente e a introdução do acompanhamento, do auxílio e da orien-tação ao adolescente.

A liberdade assistida tem “[...] caráter educativo preventivo de fun-damental importância, em que o adolescente infrator será atendido em meio aberto”, segundo Flávio Cruz Prates (2001, p. 45).

Ainda, Ana Paula Motta Costa explica que a medida:

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Destina-se a acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, para o que é nomeado pela autoridade judiciária um orientador, o qual po-derá ser recomendado por entidade ou programa de atendimento, ou mesmo pode tratar-se de técnico pertencente à equipe interdiscipli-nar do Juizado da Infância e da Juventude (2012, p. 90).

O principal objetivo da medida é impedir a reincidência e obter a certeza da reeducação (CHAVES, 1994).

No entender de Olympio de Sá Sotto Maior Neto (2000, p. 340):

[...] a medida que se mostra com as melhores condições de êxito é a liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a in-terferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, suas potencialidades. O acompa-nhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho, certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que estarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência e comunidade.

O prazo mínimo de aplicação da medida em comento é de seis meses e, decorrido esse prazo, a equipe técnica responsável por sua execução realizará uma avaliação que será encaminhada ao magistrado compe-tente, oportunidade em que será verificada a possibilidade de extinção da medida, de acordo com as considerações descritas no relatório.

3.1.2 Das medidas socioeducativas restritivas ou privativas de liberdade

Trata-se, respectivamente, das medidas de semiliberdade e de inter-nação, as quais, para Ana Paula Motta Costa, “[...] são equivalentes, no sistema penal adulto, aos regimes semiaberto e fechado, visto que são as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente que implicam institucionalização” (2005, p. 86).

João Batista Costa Saraiva pontua que as medidas socioeducativas privativas de liberdade são norteadas por princípios que decorrem do art. 227, §3º, inciso V, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, da

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brevidade e excepcionalidade, os quais foram consagrados pelo art. 121 do Estatuto, “respeitada a peculiar condição de pessoa em desenvolvi-mento” (2009, p. 171).

Sobre isso, Antônio Carlos Gomes da Costa afirma:

Três são os princípios que condicionam a aplicação da medida pri-vativa de liberdade: o princípio da brevidade, enquanto limite cro-nológico; o princípio da excepcionalidade, enquanto limite lógico no processo decisório acerca de sua aplicação; e o princípio do res-peito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, enquanto limite ontológico, a ser considerado na decisão e na implementação da medida (apud CURY; AMARAL E SILVA; MENDEZ, 1996, p. 125).

A medida socioeducativa restritiva de liberdade prevista no Estatuto é a semiliberdade, a qual visa reintegrar de forma gradual o adolescente à sociedade. Desse modo, o adolescente permanece internado durante a noite, saindo para trabalhar e estudar durante o dia.

Nesse sentido:

As principais consequências da medida implicam no afastamento do adolescente do convívio familiar e da comunidade de origem, ao restringir sua liberdade, sem, no entanto, privá-lo totalmente de seu direito de ir e vir. As atividades externas, especialmente de es-colarização e profissionalizantes, juntamente com atividades peda-gógicas que devem ser promovidas no interior dos semi-internados, são a garantia do conteúdo pedagógico estratégico que toda medida socioeducativa deve conter (FRASSETO, 2001, apud SPOSATO, 2006, p. 127).

Ainda, a semiliberdade poderá ser determinada desde o início ou como progressão decorrente da medida de internação.

Liberati (2002, p. 95) explica que:

O primeiro é aquele determinado desde o início pela autoridade ju-diciária, através do devido processo legal; o segundo caracteriza-se pela progressão de regime: o adolescente interno é beneficiado com a mudança de regime [...].

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A medida não possui prazo definido para a aplicação ou duração, ou qualquer critério claro quanto à sua aplicação, embora a ela se apli-quem, naquilo que seja cabível, os dispositivos referentes à medida de internação (art. 120, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente) (COSTA, 2005, p. 87).

Sobre esse tema, Alessandro Baratta assevera que a semiliberdade, bem como a internação, deve ser considera uma medida excepcional, independente da gravidade do ato infracional, sendo costumeira a apli-cação de medidas em meio aberto, as quais favorecem na integração social dos adolescentes (2001, p. 372).

Já a internação é a medida socioeducativa mais enérgica, pois acar-reta a limitação da liberdade do adolescente. Ana Paula Motta Costa (2005, p. 86) complementa que a medida é destinada aos atos infracio-nais cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, ou, ainda, em caso de prática reiterada de atos infracionais, como bem pontua o art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Shecaira explica que:

Por ser a mais grave intervenção no destino dos adolescentes in-fratores, a privação da liberdade deve ser pautada pelos cuidados que três grandes instrumentos internacionais – Convenção Interna-cional sobre os Direitos da Criança, Regras de Beijing, e Regras Mínimas da ONU para jovens privados de liberdade – preveem quando envolvem o aprisionamento de adolescentes: ultimaratio da intervenção, caráter excepcional, menor duração possível. Todos aqueles que são privados de liberdade – e, reafirme-se, devem ser poucos – só o serão como condição para o cumprimento da medida sócio-educativa (sic). Isto é, a contenção é o meio para que o fim pedagógico seja cumprido (2008, p. 205).

José de Farias Tavares reforça:

Para uns, o dispositivo adota o princípio penal da proporcionalidade da pena com relação à gravidade do delito. Para outros, o Estatuto, com sua filosofia protetora da criança e do adolescente, afasta tal princípio que somente pode ser aplicado no sistema punitivo, que é o destinado aos imputáveis. Sustentam que aqui o sentido inarredá-vel é para a pessoa em desenvolvimento, pois as medidas aplicáveis

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não punem, mas protegem o adolescente com o atendimento da ree-ducação, o que é para seu proveito, visando a sua reabilitação social (2006, p. 119).

Como bem-visto, a medida socioeducativa de internação deverá ser aplicada de forma excepcional, destinando-se a adolescentes que te-nham praticado ato infracional com violência ou grave ameaça à pes-soa, ou em casos de reiteração de atos infracionais graves ou descum-primento de outras medidas, que é o caso da regressão do meioaberto, prevista pelo prazo máximo de noventa dias.

A medida não possui prazo definido nem proporcionalidade prevista com relação aos tipos de atos infracionais praticados, tendo apenas a definição de tempo máximo de três anos (art. 121, §3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente) e a previsão compulsória ao completar vinte e um anos (art. 121, §5º, do Estatuto).

Quanto à sua aplicação, é importante ressaltar que há de serem obser-vados os requisitos do art. 122 do Estatuto:

A primeira razão para a internação é a prática de ato infracional co-metido mediante violência ou grave ameaça à pessoa. Como é cedi-ço, violência constitui o emprego da força física, enquanto ameaça diz respeito à promessa de mal sério. Na primeira hipótese a força física vence a resistência real ou suposta, de forma a impedir a re-sistência da vítima, resultando lesões ou até a morte. Na segunda hipótese mal prenunciado deve se revestir de certeza, ter verossimi-lhança, estar prestes a acontecer (iminente) e ser inevitável (SHE-CAIRA, 2008, p. 210).

Para Wilson Liberati (2002, p. 103), “[...] o elenco das condições é taxativo e exaustivo, não havendo possibilidade da medida fora das hipóteses apresentadas”, ou seja, não sendo cumprido os requisitos des-critos no art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não há falar em aplicação da medida de internação.

Outrossim, como o Estatuto é pautado pelo princípio da legalidade, é de suma importância frisar que a violência e a grave ameaça devem integrar o tipo penal comosua elementar.

Nesse sentido, João Batista Costa Saraiva assevera:

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A violência ou a grave ameaça devem integrar o tipo penal enquan-to elementar. Assim, não há falar em violência ou grave ameaça no tráfico de entorpecente cujo, embora crime hediondo, não contém em suas elementares essas características. Qualquer hipótese nesse sentido será admitir o inadmissível, a analogia em malam partem, insuportável em um Estado Democrático de Direito (2005, p. 176).

A segunda hipótese que enseja a medida de internação é a reiteração de outras infrações graves. A única reiteração cabível é a de reiteração de outras infrações graves que não estejam alcançadas pela figura do inciso anterior (SHECAIRA, 2008).

Em que pese a reiteração, é necessário destacar que esta não se con-funde com a reincidência. O instituto da reincidência, previsto no art. 63 do Código Penal, é a realização de novo crime depois do trânsito em julgado de sentença que o tenha condenado por crime anterior.

Logo, para Joao Batista Costa Saraiva (2005, p. 176), a reiteração é muito mais abrangente que a reincidência, “[...] alcançados casos que a doutrina penal define em relação ao imputável como ‘tecnicamente primário’”.

A terceira e última hipótese de internação é conhecida como uma forma de sanção, pois decorre do descumprimento reiterado e injustifi-cável da medida anteriormente imposta.

Nesse caso, a aplicação da medida tem natureza assecuratória e com-porta o prazo máximo de três meses – §1º do art. 122 do Estatuto –, “[...] uma vez que visa apenas a compelir o adolescente a cumprir me-dida anteriormente imposta [...]”, complementa Tânia da Silva Pereira (2008, p. 1005).

3.2 Da eficácia das medidas socioeducativas

O objetivo das medidas socioeducativas é trazer a reeducação do adolescente autor de ato infracional, de modo que não volte a reincidir na prática de atos criminosos.

A respeito das medidas socioeducativas, Saraiva (2006, p. 46) aduz:

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O Estatuto prevê e sanciona medidas socioeducativas e medidas de proteção eficazes. Reconhece a possibilidade de privação pro-visória de liberdade ao infrator, inclusive ao não sentenciado em caráter cautelar – em parâmetros semelhantes aos que o Código de Processo penal destina aos imputáveis na prisão preventiva – e ofe-rece uma gama larga de alternativas de responsabilização, cuja mais grave impõe o internamento sem atividades externas.

Prates (2002, p. 46-47), no mesmo sentido, afirma:

O sistema penitenciário brasileiro encontra-se falido. A nossa situ-ação carceraria é calamitosa. Ao contrário do apregoado por mui-tos, de que os presidiários possuem benefícios exagerados, como alimentação farta, período diário de banho de sol e descanso, em suma, uma vida “fácil” às custas do contribuinte, o que é no mínimo grosseira distorção da realidade, a verdade é que nossos presídios são verdadeiros depósitos humanos sem a mínima condição de so-brevivência.

Para Silvia da Silva Tejadas (2007, p. 18-19), a vulnerabilidade so-cial interfere diretamente no tocante à reincidência. Dessa forma:

A vulnerabilidade social aproxima o sujeito de um outro tipo de vulnerabilidade, a penal, ou seja, o jovem pobre, muitas vezes ne-gro, com baixa escolaridade, morador de periferia das grandes ci-dades, torna-se alvo do Sistema de Justiça. Ele corresponde ao este-reótipo e, sem encontrar outras possibilidades de ressignificação de sua própria identidade, torna-se reincidente, passando a se utilizar da violência como forma de se impor e relacionar-se com o mundo social.

Já Flávio Cruz Prates (2001, p. 24) discorre que a grande maioria dos adolescentes autores de ato infracional está em meio à situação familiar e social desfavorável:

Em meio a esta calamitosa situação social é que crescem os nossos adolescentes, com suas características básicas de sujeitos em desen-volvimento, que estão constituindo sua identidade adulta; fazendo o luto pela identidade infantil, com especial propensão à contestação de autoridade, à variação de humor e ao imediatismo. Como poderá responder este jovem em sua crise normal de adolescência se não acobertado por um ambiente familiar sadio?

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De igual forma, os adolescentes que estão inseridos no sistema de justiça possuem cenários em que o crime é rotineiro. Tal convivência diária vislumbra, no mundo do crime, uma forma de subsistência.

Por esta razão, o legislador estabeleceu medidas que se destinam a remoldar, a reeducar e à formação do tratamento tutelar, visando atingir a normalidade da integração social. São essas as medidas socioeduca-tivas e protetivas.

As medidas socioeducativas, quando efetivamente aplicadas, soma-das a outras de caráter geral, tais como educação, atendimento à saúde, proteção à família etc., impediram o alto grau de crimina-lidade dominante, especialmente nas grandes cidades (PEREIRA, 2008, p. 942).

Entretanto, não basta direcionar o adolescente à uma entidade exe-cutora de internação e aguardar o cumprimento da medida. É preciso dar-lhe oportunidades de socialização por meio de programas públicos disponíveis, bem como providenciar atendimento às famílias dos ado-lescentes.

De fato, o adolescente institucionalizado, ao se deparar novamente com a sociedade, tem dificuldades em compreender as regras sociais vigentes, sentindo-se excluído e incapaz de realizar qualquer espécie de função. Assim, a tendência é retornar ao grupo de origem, no qual é aceito e no qual se sente seguro por conhecer as regras de comporta-mento. As experiencias carcerarias aumentam, de fato, a probabilidade de reincidência após a liberação (PEREIRA, 2008, p. 981).

Diante disso, muito se critica quanto à medida de internação, pois há uma dificuldade de educar em regime fechado. Assim, poderia ser reduzida ou superada com melhor estrutura física e maior atenção para a capacitação do pessoal envolvido.

A medida socioeducativa de internação, para Cury, Silva e Mendez, é:

[...] a medida sócio-educativa (sic) com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de projeto da vida, os adolescentes internados aca-bam ainda mais distantes da possibilidade de um desenvolvimento

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sadio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais [...], a probabilidade [...] é de que os adolescentes acabem absorven-do a chamada identidade do infrator, passando a se reconhecerem, sim, como de má índole, natureza perversa, alta periculosidade, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinquência (1992, p. 340-341).

Por outro lado, esses mesmos autores pontuam que a medida de liber-dade assistida é “[...] a que se mostra com melhores condições de êxito [...]”, porquanto tal medida se desenvolve com a interferência direta na realidade familiar e social do adolescente, resgatando, assim, median-te apoio interdisciplinar, as potencialidades do jovem (CURY, SILVA, MENDEZ, 1992, p. 340).

Entretanto, há divergência nessa seara:

A situação atual é de amplo descrédito em relação à Liberdade As-sistida, que, em alguns casos, chega a ser vista por juízes, promoto-res, mídia, opinião pública e até mesmo pelos próprios adolescen-tes como uma forma de (des)responsabilização e de impunidade. A falta de investimento na capacitação do corpo técnico encarregado de orientar os adolescentes inseridos nessa modalidade de atenção contribui para que sua efetividade como alternativa eficaz e humana à privação de liberdade seja questionada em face dos baixos níveis de eficiência e eficácia verificados no dia a dia (COSTA, 2008, p. 53).

O Estado possui responsabilidade de reeducar o adolescente e reco-locá-lo em convívio em sociedade, de maneira adequada e aceita legal-mente. No entanto, o que se verifica, após trinta e um anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, é que ainda há descaso, omis-são e ineficiência das entidades responsáveis pela execução e fiscaliza-ção das medidas socioeducativas.

Parte-se da premissa de que o Estado está em risco não por ser frágil ou equivocado nas suas proposições, mas pelo fato de seu texto não estar sendo compreendido, ou melhor, que as práticas não se encontram à altura de sua utopia (BAZÍLIO, KRAMER, 2003, p. 30).

Sobre essa carência, Paula Gomide (1998, p. 28) assevera:

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Uma breve consulta aos estatutos das instituições de proteção ao menor existentes em nosso país colocará o leitor diante de objetivos gerais bastante semelhantes. Todas elas apresentam como seus prin-cipais objetivos a reeducação e a reintegração do menor à sociedade e à família. Semelhantes também são as justificativas encontradas para o não cumprimento desses objetivos, a saber, a ausência de infraestrutura, o despreparo da equipe técnica e de apoio, a falta de verbas, o sistema capitalista atrasado etc.

E o resultado dessa situação se reflete no elevado número de rein-cidências e na inclusão de jovens com dezoito anos, que, na maioria das vezes, não concluíram suas medidas socioeducativas em sistemas prisionais.

Encontra-se um momento de “[...] ausência de propostas (metodolo-gia) de atendimento ou alternativas educacionais para os adolescentes em conflito com a lei”, conforme Bazílio e Sonia Kramer (2003, p. 30).

A situação atual é que o sistema de internação, além de privar os adolescentes em conflito com a lei de sua liberdade (direito de ir e vir), acaba privando-os também dos direitos ao respeito, à dignida-de, à privacidade, à identidade e à integridade física, psicológica e moral (COSTA, 2008).

Ainda, a prática demonstra uma infraestrutura e operacional pre-cários, faltando o amparo necessário para a ressocialização. Liberati (2003, p. 35) destaca que “deveriam ser unidades especiais, dotadas de todos os serviços psicossociais, as mais variadas e modernas formas de terapias, sejam elas com fins exclusivamente terapêutico ou de ocupa-ção, recreação e educação religiosa”.

De imediato, o caráter educativo proposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ficam esquecidos no papel, pois, na prática, são ine-ficazes.

Outro ponto que merece destaque é que o Estatuto, apesar de revolu-cionar o trato à população infanto-juvenil, ainda possui um corpo legal com lacunas, principalmente em que pese as medidas socioeducativas.

Há que se ter em mente que o arbítrio deve ser combatido pelo garantismo. Que a existência da norma traz segurança e afirma o

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direito. A ausência de norma tende a produzir a discricionariedade, o subjetivismo, e daí para o autoritarismo é um passo. (SARAIVA, 2005, p. 89).

Percebe-se que a ideologia que o Estatuto bem descreve não é efeti-vada e, até mesmo, compreendida pelos responsáveis por sua aplicação.

Alguns doutrinadores apresentam soluções ao dilema, como Bazílio e Kramer (2003, p. 50), para que seja alterado o Estatuto, de maneira que o torne mais programático, buscando um direito penal juvenil mais eficaz – com apenação, culpabilização e reciprocidade; ou que seja im-plantado, de fato, o espírito da lei promulgada em 1990, garantindo as condições materiais políticas para a fruição de direitos, ou melhor, cumpra-se o conteúdo do Estatuto.

Meneses (2008, p. 121), por seu turno, acredita que, para se obter plena eficácia das medidas socioeducativas, é necessário um trabalho conjunto, em rede, não podendo haver um garantismo isolado: o jurídi-co, o social e o educativo. Deve haver uma harmonia entre todos esses setores.

Velasquez (2014, p. 120) assevera que o Estatuto da Criança e do Adolescente precisa de melhorias em alguns pontos, como o aumento de prazo de internação para aqueles adolescentes que forem autores de atos infracionais mais graves. Entretanto, reforça que o Estatuto possui um texto inspirado e aduz que a existência da lei não é suficiente, sendo necessário colocá-la em prática:

A questão, enfim, é urgente, o problema é muito grave, e a indigna-ção que todos nós sentimos é mais do que justa, mas nossos esfor-ços devem ser dirigidos para soluções reais, e não para tapeações como a redução da maioridade penal, que só agravará o quadro. Não podemos nos dar ao luxo de não começar já. Reconheçamos desde logo que estamos falhando em proteger nossas crianças e adolescentes, e passemos a assumir responsabilidade por eles, e por todos eles, inclusive pelos mais pobres. O caminho, portanto, é exigir e contribuir para a efetivação do Es-tatuto da Criança e do Adolescente, até convertê-lo inteiramente em realidade, com a criação de políticas públicas de atendimento bási-co e de assistência integral à infância e à juventude. Vamos assegu-

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rar desde já uma existência digna às nossas crianças e adolescentes, para que depois eles não acabem pagando por erros que, no fundo, são nossos.

Dessa forma, assim como também no sistema penal, as medidas so-cioeducativas obtêm melhores resultados quando aplicadas de forma individualizada e coerentes ao caso concreto. No entanto, a sua aplica-ção requer trabalho em equipe e interdisciplinar em harmonia, situação que nem sempre é possível no ordenamento jurídico pátrio.

4. CONCLUSÃO

Diante do exposto, verifica-se que o estudo da aplicabilidade das me-didas socioeducativas e sua eficácia são de suma importância, pois, no cenário atual, se vivencia uma instabilidade entre a eficiência real para os envolvidos no procedimento e a punição que a sociedade proclama.

Em uma análise mais superficial do tema, é possível observar que a reiteração de atos infracionais e o crescente aumento da vulnerabilidade social produzem um efeito negativo perante o Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial suas medidas socioeducativas, pois, apesar do seu conteúdo e suas promessas, a prática se demonstra inexitosa em grande parte.

No entanto, como bem demonstra o trabalho, o objetivo das medi-das socioeducativas é de transformar a vida dos adolescentes. Embora possuam perspectiva sancionatória, as medidas têm caráter educativo e objetivam ressocializar e reeducar o adolescente, resgatando e aco-lhendo, de modo que esse adolescente não volte a reintegrar o quadro de infratores.

Como se pode colher da pesquisa supramencionada, todas as medi-das socioeducativas possuem como objetivo final a reeducação e o redi-recionamento do adolescente, independente de ato praticado ou medida aplicada. Por isso, alguns doutrinadores chamam o Estatuto da Criança e do Adolescente de “texto inspirado” e um “suspiro” após tantos anos negligenciando as crianças e os adolescentes.

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Assim, conclui-se que, embora sua teoria objetive os melhores re-sultados, a prática necessita caminhar lado a lado. Ou seja, é de suma importância que o trabalho interdisciplinar, em rede, o jurídico, o social e o educativo trilhem lado a lado, coexistindo em harmonia, bem como seja ponderado caso a caso a individualização da medida socioeducati-va aplicada, atentando-se aos minuciosos detalhes, às condições sociais e às características de cada adolescente.

Somente assim a eficácia da medida socioeducativa irá transcender seu objetivo e sua verdadeira finalidade. Será aplicada para repreender e educar e não apenas punir por punir sistematicamente.

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Recebido em: 24/04/2021Aprovado em: 05/07/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p194

A REMIÇÃO DA PENA PELA LEITURA: UMA ANÁLISE DA RESOLUÇÃO Nº 391/2021 DO CONSELHO NACIONAL DE

JUSTIÇA E DAS NOVAS PERSPECTIVAS DE REINSERÇÃO SOCIAL

THE REMISSION OF SENTENCE FOR READING: AN ANALYSIS OF THE RESOLUTION Nº 391/2021 OF NATIONAL COUNCIL OF JUSTICE AND THE NEW PERSPECTIVES OF

SOCIAL REINSERTION

Guilherme Augusto Volles1

Ana Luisa Fernandes Naatz2

Resumo: No direito contemporâneo, a sanção penal tem como obje-tivo punir o indivíduo responsável pela prática da conduta considera-da criminosa e prevenir o cometimento de novos delitos. Seu caráter preventivo não é fundado apenas no medo da punição, mas também na reinserção gradual do indivíduo transgressor na vida em sociedade. Em um Estado de Coisas Inconstitucional, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal e marcado por sucessivas violações aos direitos fun-damentais das pessoas presas, é necessário que os órgãos da execução penal incentivem a aplicação de mecanismos capazes de enfrentar as

1. Pós-graduando em Direito Aplicado e em Gestão do Conhecimento na Magistratura pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Aluno do Módulo “Práticas Jurídicas” da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Integrante dos Grupos de Pesquisa “Estado, Sociedade e Relações Jurídicas Contemporâneas” e “DTIn-FURB - Direito, Tecnologia e Inovação”, certificados pela FURB junto ao CNPq. Residente Judicial na 1ª Vara Criminal de Blumenau, vinculado ao Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. Graduanda em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Estagiária na 3ª Vara Criminal de Blumenau, vinculada ao Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

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dificuldades do cenário de crise presente. Nesse panorama, a pesquisa busca compreender de que forma a remição da pena pela leitura, após a edição da Resolução nº 391/2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pode contribuir para a concretização de um modelo constitucio-nal de cumprimento de pena que permita a reinserção dos indivíduos presos na vida em sociedade. Desse modo, inicialmente se dispõe sobre os fundamentos da pena e os princípios aplicáveis, com enfoque no ins-tituto da remição e em suas balizas legais para, na sequência, identificar as mudanças normativas advindas da regulamentação do tema pelo CNJ e as possibilidades decorrentes do estímulo à leitura e ao letramento das pessoas privadas de liberdade. O estudo parte do método de abordagem dedutivo, adotando os procedimentos histórico e descritivo e fazendo uso das pesquisas documental e bibliográfica. A pesquisa revelou que a remição da pena e, em especial, a remição pela leitura contribuem para o enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional que atinge o sis-tema prisional brasileiro, notadamente porque o acesso à literatura e à informação complementa os esforços pedagógicos empenhados com a oferta dos demais níveis de ensino às pessoas presas. Ao permitir a ofer-ta à pessoa privada de liberdade de uma formação cultural completa, o acesso às obras literárias fornece as bases para evitar novas condutas delitivas, de modo a promover a reinserção na vida em sociedade e con-cretizar a garantia fundamental de individualização da pena.

Palavras-chave: Sanção penal. Remição. Estado de Coisas Inconstitu-cional. Estímulo à leitura. Formação cultural.

Abstract: On Contemporary Law, the penal sanction aims to punish the individual responsible for the conduct considered to be criminal and to prevent commission of crimes. Its preventive character is not only based on fear of punishment, but also the gradual social reinsertion of the transgressor into life in society. In an Unconstitutional State of Affairs, recognized by the Supreme Court and marked for successive violations of prisoner´s fundamental rights, it is necessary that the crim-inal enforcement agencies encourage the application of mechanisms capable of facing the difficulties of the present crisis scenario. In this situation, this research aims to understand how the remission for read-ing, after the edition of Resolution nº 391/2021 by the National Council of Justice, can contribute to the achievement of a constitutional model of serving a sentence that allows the reinsertion of prisoners in soci-

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ety. Thus, initially it lays out the fundamentals of the criminal penalty and the applicable principles, focusing on the institute of remission and its legal guidelines, to identify the normative changes arising from the regulation of the subject by the National Council and the possibilities arising from stimulate reading and literacy of people deprived of lib-erty. The study starts from the deductive approach method, adopting historical and descriptive procedures and making use of documentary and bibliographic research. The research revealed that the remission of the sentence and, in particular, the remission for reading, contribute to the confrontation of the Unconstitutional State of Affairs that affects the Brazilian prison system, notably because the access to literature and information complements the pedagogical efforts made with the offer of other levels of education to prisoners. By allowing the person deprived of liberty to be offered a complete cultural education, access to literary works provides the basis for avoiding commission of crimes, in order to promote the reintegration into life in society and fulfill the fundamental guarantee of individualization of the sentence.

Keywords: Penal sanction. Remission of the sentence. Unconstitution-al State of Affairs. Encouragereading. Cultural education.

1. INTRODUÇÃO

O fundamento do poder punitivo do Estado historicamente foi objeto de intensas discussões teóricas, o que refletiu na construção de concei-tos oriundos dos mais diversos contextos sociopolíticos e culturais. Em comum, tais propostas costumam embasar-se na retribuição pela prática de crimes e no desestímulo para que estes sejam cometidos.

Em um panorama contemporâneo, a finalidade da pena comporta uma retribuição pelo injusto causado ao bem jurídico tutelado e à socie-dade afetada pela violação de uma regra geral imposta pela legislação penal. Ao mesmo tempo, possui um caráter preventivo, fundado tanto no medo de uma sanção, como na reinserção do indivíduo transgressor na vida social.

Para que sejam alcançados tais objetivos, necessário serem observa-dos os princípios e as diretrizes constitucionais e infraconstitucionais que norteiam o cumprimento de pena. Previstos expressamente na Car-

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ta Magna, na Lei de Execução Penal (LEP) ou resultantes de uma inter-pretação sistemática da doutrina pátria, tais preceitos funcionam como verdadeiros comandos a serem observados pelos órgãos que intervêm na execução. Trata-se, em outros termos, de buscar a concretização de um modelo constitucional de Estado, construído em um contexto demo-crático e pautado no reconhecimento e na valorização dos direitos e das garantias individuais fundamentais.

Em um cenário marcado pela existência de sérias dificuldades de assegurar direitos fundamentais às pessoas presas, denominado de Estado de Coisas Inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347/DF, tais ponderações são ainda mais prementes. Isso por-que se reconheceu como dever dos diversos órgãos da execução penal adotar e estimular mecanismos idôneos para enfrentar – ou, ao menos, minimizar – as mazelas do sistema prisional brasileiro.

Nesse cenário, a remição pode ser trazida à análise como um instituto que prevê a redução do tempo de cumprimento de pena pela dedicação do preso ao trabalho e ao estudo. Por meio dela, objetiva-se o desen-volvimento pessoal do apenado e o fornecimento de meios para que seja reinserido na vida social, sem que torne a delinquir. Do mesmo modo, por razões de política criminal, evita-se que o indivíduo perma-neça encarcerado em condições por vezes precárias ao tempo em que já demonstrou condições de retornar ao estado de liberdade.

Ocorre que, para além da previsão expressa na Lei de Execução Pe-nal, a prática forense tem ampliado as hipóteses de seu cabimento. O maior exemplo da evolução do instituto é a possibilidade de remição da pena pela leitura, regulamentada de maneira detalhada e em caráter nacional com a Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A partir dessas premissas, este artigo foi idealizado com o propósito de delinear os principais contornos jurídicos para compreender de que forma a remição da pena pela leitura, após a edição de um regramento nacional pelo CNJ, pode contribuir para a concretização de um modelo constitucional de cumprimento da sanção penal e que permita a reinser-

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ção dos presos na vida em sociedade. Para tanto, estrutura-se a pesquisa em três grandes momentos: o primeiro destinado a identificar os funda-mentos da pena e a principiologia aplicável, notadamente com enfoque no instituto da remição e em suas balizas legais; o segundo direcionado à compreensão das mudanças normativas advindas da edição da Re-solução nº 391/2021 do CNJ para o implemento de programas de estí-mulo à leitura nas unidades prisionais; e o terceiro orientado ao estudo conjunto das premissas da remição e das possibilidades decorrentes do estímulo à leitura e ao letramento das pessoas privadas de liberdade.

2. A EXECUÇÃO PENAL NO DIREITO CONTEMPORÂNEO: FUNDAMENTOS E PREMISSAS DA REMIÇÃO DA PENA

No momento em que o sujeito imputável pratica um ato definido como crime, transgredindo a norma jurídica vigente, surge para o Es-tado o direito de puni-lo. A sanção penal é, portanto, o exercício do direito estatal de limitar um direito subjetivo do transgressor, aplicando uma pena proporcional à conduta lesiva. Para tanto, é necessário que o agente seja culpável, que exista prévia proteção jurídica ao bem tute-lado atingido e que a punição esteja legalmente prevista. Em todos os casos, deve a punição observar as regras inerentes ao devido processo legal e às demais garantias constitucionais.

Por evidente, o fundamento do poder punitivo não é unívoco. A de-pender da matriz teórica adotada e do contexto histórico vertente, tal compreensão transmuta-se em um ou mais fundamentos, que perpas-sam ideais de retribuição pela prática de ilícitos ou de prevenção ao seu cometimento (BITENCOURT, 2012). A seguir, serão abordadas, de maneira suscinta, as premissas que dão suporte ao poder-dever de punir estatal para, após, adentrar ao estudo do instituto da remição.

2.1 Os fundamentos da pena e a principiologia aplicável

No Iluminismo, o direito de punir e as penas tiveram origem e fun-damento na teoria contratualista, baseada na compreensão de que os homens, cansados de viver em estado de terror, sacrificam parte de sua

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liberdade para gozar do restante com segurança. Entretanto, como os próprios autores daquele tempo afirmavam, a consequência da forma-ção do pacto social é o despotismo: o desejo não era somente retirar da massa comum sua porção de direitos, mas de usurpar as dos demais. A solução para reprimir essas tendências despóticas dos indivíduos foi a criação das penas. Assim, o direito de punir repousa justamente na soma de todas as porções de direitos e liberdades cedidas no contrato social (BECCARIA, 1988).

Não se inclui no escopo deste estudo uma compreensão extensiva dos fundamentos do poder-dever de punir por parte do Estado. Busca--se, entrementes, identificar suas premissas em um modelo constitucio-nal, notadamente porque pela “formalização de base democrática do controle social [...] o exercício do poder punitivo por parte do Estado vê-se limitado pelos princípios e garantias reconhecidos democratica-mente pela sociedade” (BITENCOURT, 2012, p. 330). De outro modo, ainda que seja adotada atualmente uma teoria preventiva e prospectiva, de base relativista, não se abandona o princípio da culpabilidade como suporte da imposição da pena por um fato passado, na ideia de retribui-ção, sem incorrer em qualquer contradição teórica quanto à compreen-são da pena a partir de diversas finalidades.

No âmbito judiciário, a pretensão punitiva ou jus puniendi, na acep-ção latina, é materializada em uma sentença condenatória, que contém a pena aplicada ao indivíduo, proporcional ao delito cometido e demais circunstâncias subjetivas e objetivas relacionadas ao ato lesivo e ao in-frator em questão. Consoante o art. 59 do Código Penal, a pena imposta serve tanto como retribuição ao mal causado ao bem jurídico tutelado e à sociedade, como possui caráter preventivo. Segundo Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 281), esse caráter preventivo se desdobra em quatro aspectos: geral negativo, que corresponde ao poder intimidatório que causa em todo o corpo social; geral positivo, que demonstra a efi-ciência do Direito Penal; especial negativo, que significa a intimidação do infrator em questão para que não reincida ao ato criminoso; e, por fim, especial positivo, com vistas à reinserção do indivíduo na socie-dade, por meio da disponibilização das estruturas e dos mecanismos

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necessários para ressocialização do apenado, notadamente na execução penal.

A execução penal é a fase processual em que se executa o título ju-dicial, ou seja, a sentença condenatória ou decisão criminal, com vistas a atingir as finalidades da pena. Além desse conceito, entende-se a exe-cução penal como o conjunto de normas e princípios que tem por ob-jetivo efetivar o comando judicial determinado tanto na sentença penal quanto nas medidas de segurança (AVENA, 2015). Para além dessas premissas, a própria Lei de Execução Penal (LEP) (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) estabelece, em seu art. 1º, que o objetivo da execução é “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcio-nar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL, 1984). Nesse sentido, é possível compreender a preferência do legislador sobre a teoria mista dos objetivos da pena, conforme já indicado.

Para efetivar o comando judicial e alcançar os objetivos previstos da pena, é necessário observar os princípios que norteiam o cumprimento da pena. Construídos extensivamente pela doutrina jurídica a partir do modelo constitucional de Estado e pelos dizeres da legislação penal vigente, seus preceitos funcionam como verdadeiros comandos a serem observados por todos os órgãos da execução penal (art. 61, LEP).

Nessa toada, a estrita observância do título exsurge como regra basi-lar dos processos de cumprimento de pena. Cabe ao juízo da execução conduzir e fiscalizar a execução da pena aplicada no processo de conhe-cimento, sem deduzir maiores incursões quanto ao mérito da pretensão punitiva estatal. Evidencia-se que a coisa julgada, que torna indiscutível o comando da sentença condenatória, é instrumento de pacificação so-cial, de manutenção da ordem jurídica, e perfectibiliza o princípio da segurança jurídica.

Sobre sua importância da coisa julgada para o Direito Penal, Miguel Teixeira Souza (1997, p. 568) destaca:

[...] o caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obsta

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a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e ga-rante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chama-dos a dirimir. Ela é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica.

Segundo o princípio da inderrogabilidade, havendo condenação e trânsito em julgado, a pena deve ser aplicada e integralmente cumprida. Oportuno destacar que não há qualquer contrariedade com outros ins-titutos e benefícios previstos na lei de execução, como é o caso da pro-gressão de regime, da suspensão condicional e da remição. Todas são práticas que contribuem para o alcance do propósito ressocializador da pena, isso porque fornecem oportunidades para que o condenado seja gradualmente reinserido na vida em sociedade (AVENA, 2015).

Tais institutos e, em especial a remição, foco desta pesquisa, são também reflexo do princípio da individualização da pena em sua fase executória. De matriz constitucional (art. 5º, XLVI, CF), preceitua que não há estrita padronização do cumprimento da condenação, pois cir-cunstâncias e comportamentos individuais devem ser considerados. Em similar perspectiva, a intranscendência também constitui garantia fun-damental a ser observada, pois “o processo e a pena, bem como a me-dida de segurança, não podem ir além da pessoa do autor da infração” (MARCÃO, 2021, p. 14).

Em se tratando de garantia fundamental, também é aplicado, no curso da execução, o chamado princípio da humanidade, decorrente da pro-teção da dignidade da pessoa humana, que veda as punições de caráter cruel e degradante (art. 5º, XLVII, CF). Não por outro motivo, a sanção penal historicamente abandonou os grilhões, as correntes e os castigos corporais para incorporar um modelo que preserva a integridade cor-poral do preso e o respeito aos seus direitos como indivíduo (BRITO, 2020). Em proteção à própria natureza do ser humano, a observância de seu mínimo existencial “sempre permanece, em maior ou menor escala, até no pior delinquente” (DOTTI, 1998, p. 222).

Como se abordará oportunamente, o instituto da remição atua como um dos instrumentos que dão concretude a tais balizas constitucionais e infraconstitucionais, porque estimula o trabalho e o estudo para prepa-

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rar o indivíduo para o reingresso na vida social. Sendo de conhecimento geral as condições precárias de significativa parcela dos estabelecimen-tos prisionais brasileiros – nos quais faltam recursos e estruturas ade-quadas para comportar o quantitativo de detentos –, a oferta de opor-tunidades que permitam afastar do mundo do crime aqueles que uma vez transgrediram a legislação penal mostra-se ainda mais importante socialmente.

2.2 O instituto da remição da pena

Conforme a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, a in-serção da remição no ordenamento jurídico pátrio remonta ao direito penal espanhol das décadas de 1930 e 1940. A despeito de sua origem controversa – teria sido concebido durante a vigência de um governo adepto do fascismo que obrigava os prisioneiros de guerra ao trabalho em obras públicas –, atualmente o instituto representa notável conquista que prestigia a dignidade da pessoa humana e o princípio da individua-lização da pena (LEAL, 2012).

Em relação ao conceito em si, a remição se constitui no direito do sentenciado “reduzir o tempo de cumprimento da pena, contanto que se dedique rotineiramente ao trabalho e/ou estudo” (MARCÃO, 2021, p. 93). Seu fundamento legal exsurge dos art. 126 a 128 da Lei de Exe-cução Penal, que definem os requisitos necessários para a obtenção do benefício e a proporção aplicada em seu cálculo.

Por expressa previsão legal, o desconto da pena pelo trabalho somen-te é cabível quando o apenado estiver alocado no regime fechado ou semiaberto (art. 126, LEP), uma vez que no regime aberto o exercício da atividade laboral lícita já é condição estabelecida na audiência ad-monitória – sendo requisito, portanto, para a progressão a esse regime. Por outro lado, a remição pelo estudo é admitida aos presos em regi-me aberto, em benefício do livramento condicional ou mesmo detidos cautelarmente (art. 126, § 6º, LEP), em razão da mudança legislativa trazida pela Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011. Procurou-se, em re-

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sumo, incentivar a alfabetização e a escolarização, corolários do dever de assistência educacional previsto pela própria lei de execução.

Embora a remição seja direito do apenado que labora ou frequen-ta programas de ensino formal dentro do ergástulo, a homologação de dias remidos não constitui direito adquirido nem faz coisa julgada. Isto porque, conforme dispõe o art. 127 da LEP, “em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da in-fração disciplinar” (BRASIL, 1984). Não difere o entendimento juris-prudencial do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece se tratar de expectativa de direito:

[...] 8. A perda dos dias remidos em razão do cometimento de falta grave pelo sentenciado não ofende o direito adquirido ou a coisa julgada. O instituto da remição, como prêmio concedido ao apena-do em razão do tempo trabalhado, gera, tão-somente, expectativa de direito, sendo incabível cogitar-se de reconhecimento de coisa julgada material. A própria Lei de Execução Penal estabelece nos arts. 50 e 127 que as faltas disciplinares de natureza grave impõem a perda dos dias remidos. Aplicação da Súmula Vinculante n.º 9 do Supremo Tribunal Federal. [...] (BRASIL, 2012)

Sem o objetivo de esgotar o tema e de abordar as discussões dou-trinárias pertinentes à perda dos dias remidos, convém destacar que o Supremo Tribunal Federal assentou a constitucionalidade da medida ao editar a Súmula Vinculante 9. O fundamento da sanção repousa justa-mente no fato de que o mau comportamento viola o objetivo do institu-to, de promover o desenvolvimento pessoal do apenado e sua reinser-ção social (AVENA, 2015).

É de destacar, ainda, que a edição da Lei nº 12.433/11 resolveu di-vergência outrora existente e definiu que “o tempo remido será com-putado como pena cumprida, para todos os efeitos” (BRASIL, 1984). Trata-se de alteração de considerável importância, porque diferentes interpretações impactavam diretamente nos prognósticos de benefícios e resultavam em cômputos diferentes, a depender do efeito considerado (MARCÃO, 2021).

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O cálculo do benefício é feito conforme a razão prevista no art. 126, § 1º, I e II, da Lei de Execução. Desse modo, considera-se remido 1 dia de pena a cada 12 horas de estudo ou 3 dias de trabalho. Ressalta-se ser possível a cumulação de ambas as formas de desconto, hipótese em que a jornada do preso será definida de modo compatível para o desempe-nho de ambas as atividades (art. 126, § 3º, LEP).

Mais recentemente, a prática forense tem ampliado as hipóteses de cabimento da remição da pena, ainda que sem mudança legislativa na esfera federal. O maior exemplo é desconto da pena pela leitura, a se-guir tratada, cuja regulamentação advém da publicação da Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021, do Conselho Nacional de Justiça.

3. A REMIÇÃO DA PENA E O ESTÍMULO AO ESTUDO E À LEITURA: UMA ANÁLISE DA RESOLUÇÃO Nº 391/2021 DO CNJ

Nos termos já expostos, por meio do instituto da remição o sentencia-do pode reduzir o tempo de cumprimento de sua pena, desde que se de-dique ao trabalho e/ou ao estudo de forma rotineira e com a observância às regras constantes nos arts. 126 a 128 da Lei de Execução Penal. Uma vez que se constitui “a reeducação uma das finalidades da pena, não há dúvida que o trabalho e o estudo são fortes instrumentos para tanto, impedindo a ociosidade perniciosa no cárcere” (NUCCI, 2021, p. 208).

Não se pode ignorar, todavia, que o desconto da pena pela frequência no estudo somente surgiu após intenso debate doutrinário e jurispru-dencial, que resultou na edição da Súmula 341 do Superior Tribunal de Justiça. Na oportunidade, a corte assentou que a frequência a curso de ensino formal seria causa de remição de parte do tempo a cumprir nos regimes fechado ou semiaberto (BRASIL, 2007). Somente com a edição da Lei nº 12.433/11, que alterou dispositivos da LEP, o impasse foi resolvido em definitivo, e a legislação passou a prever de maneira expressa a possibilidade.

Nota-se que a reforma legislativa na LEP, à época, representou avan-ço em relação ao entendimento do STJ, vez que permitiu a remição pelo

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estudo ao preso em regime aberto, durante o benefício do livramento condicional e, inclusive, ao indivíduo preso cautelarmente (art. 126, §§ 6º e 7º, LEP). O intuito da ampliação das hipóteses legais, além de uma adequada individualização da pena, foi estimular a reinserção social e propiciar a consciência da ilicitude por meio da alfabetização, do letra-mento e da cultura (BITENCOURT, 2012), temas de fundamental rele-vância para a construção de um sistema prisional aderente aos valores consagrados pela Constituição Federal.

Apesar dos notáveis avanços legislativos da década passada, outras modalidades de remição da pena não foram expressamente incluídas na Lei de Execução Penal, ainda que concebidas como iniciativas promis-soras. Encaixam-se, nessa categoria, a remição pela prática de esportes, pela participação em atividades culturais e comunitárias e pela leitura, sendo que esta última representa o cerne deste estudo. Em comum, to-das sofrem com a falta de disciplina normativa e, em razão disso, ficam, em sua maioria, restritas a iniciativas pontuais de determinados estabe-lecimentos prisionais e de varas especializadas (ROIG, 2016).

Segundo Rodrigo Duque Estrada Roig (2016), os alicerces da remi-ção pela leitura surgiram com a Resolução nº 14/1994 do Conselho Na-cional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que estabeleceu a necessidade dos estabelecimentos prisionais contarem com bibliote-ca organizada de livros de cunho informativo, educativo e recreativo. Ainda segundo o autor, a Resolução nº 03/2009 do mesmo órgão teria estabelecido que a educação no ambiente prisional deve estar associada a ações de fomento à leitura. No mesmo sentido, o Decreto Presidencial nº 7.626/2011 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional (PEESP).

Essa forma de remição da pena também surge como decorrência do direito que as pessoas presas possuem de manter contato com o mundo exterior pela leitura ou outros meios de informação (art. 41, XV, LEP). Lembra-se que o art. 21 da Lei de Execução Penal, ao tratar da assis-tência educacional, dispõe que, “em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas

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as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos” (BRASIL, 1984).

Na falta de dispositivos específicos que fornecessem balizas objeti-vas para concessão do direito à remição da pena pela leitura no âmbito federal, algumas unidades da federação – como é o caso dos Estados do Paraná e de São Paulo – editaram leis ou expediram portarias para regu-lamentar o instituto. O fundamento de tal disciplina decorre da natureza da questão em análise, que assume contornos de direito penitenciário, cuja competência legislativa é concorrente (art. 24, I, CF).

O cenário de carência normativa começou a ser enfrentado com a publicação da Recomendação nº 44, de 26 de novembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça. Por meio do ato, o órgão de controle do Poder Judiciário passou a orientar uma disciplina única para aferição e cálculo das horas a serem remidas pela prática de atividades de natureza cultural, esportiva e de saúde, desde que integradas a projetos político--pedagógicos das unidades prisionais. Quanto ao estudo, recomendou--se a concessão de bonificação de dias remidos nos casos de conclusão no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

No tocante à leitura, o CNJ previu expressamente que era recomen-dado aos tribunais “estimular, no âmbito das unidades prisionais estadu-ais e federais, como forma de atividade complementar, a remição pela leitura, notadamente para apenados aos quais não sejam assegurados os direitos ao trabalho, educação e qualificação profissional” (BRA-SIL, 2013, p. 3). Ainda que o ato consistisse apenas em recomendação, traduziu-se em significativa evolução no implemento dessa forma de desconto de pena nos estabelecimentos prisionais do país. Afinal, pela primeira vez um órgão de expressão nacional regulamentou – ainda que em poucos dispositivos – um tema de tamanha relevância.

Fundado no aprofundamento gradual das discussões sobre a impor-tância da remição – e do estímulo à educação e à cultura como um todo no sistema prisional –, o Conselho Nacional de Justiça finalmente edi-tou a Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021. Trata-se, sem se olvidar da existência de diversas regulamentações locais, da mais significativa

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disciplina normativa sobre o “reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade” (BRASIL, 2021a, p. 1). Isso porque reúne, em um úni-co texto, as principais regras procedimentais sobre tal modalidade de desconto de pena, a partir do entendimento mais recente dos tribunais superiores.

Destaca-se que a referida resolução foi editada considerando a deci-são da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal proferida em sede de agravo regimental no HC nº 190.806/SC, julgado em 30 de março de 2021, e de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski. Na oportunidade, a Corte reconheceu o direito à remição da pena pela leitura em razão do papel ressocializador em que se inserem as atividades educacionais e determinou a expedição de recomendação ao CNJ para que tomasse as medidas cabíveis para implementar a prática no sistema prisional e penitenciário brasileiro (BRASIL, 2021b).

Delineado o contexto que norteou a edição da Resolução nº 391/2021, importa identificar que o texto normativo tratou expressamente de reco-nhecer, em seu art. 2º, que o direito à “remição de pena por meio de prá-ticas sociais educativas considerará as atividades escolares, as práticas sociais educativas não-escolares e a leitura de obras literárias” (BRA-SIL, 2021a, p. 3).Em relação à primeira, o ato consolida o entendimento firmado pelo STF quanto à base de cálculo para o cômputo de horas remidas pela aprovação no ENCCEJA e no ENEM (art. 3º, § único), ou seja, 1.600 horas para os anos do Ensino Fundamental e 1.200 horas para o Ensino Médio ou educação profissional. Em relação à segunda, foram exigidos requisitos para que projetos fossem considerados como atividades educativas não escolares, dentre as quais, a definição de ob-jetivos, a adoção de referenciais teóricos e metodológicos, o registro de frequência e participação e a definição de carga horária e de responsável pelo acompanhamento (art. 4º).

No tocante à leitura, previu-se, em seu art. 5º, que farão jus ao direito de desconto “as pessoas privadas de liberdade que comprovarem a lei-tura de qualquer obra literária, independentemente de participação em projetos ou lista prévia de títulos autorizados” (BRASIL, 2021a, p. 5).

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A atividade terá caráter voluntário, diferentemente do que ocorre com o trabalho e com o ensino de primeiro grau, que são obrigatórios por expressa previsão legal (arts. 18 e 31, LEP).

As obras literárias a serem utilizadas no programa de remição serão aquelas constantes no acervo da biblioteca da unidade prisional, que poderá ser renovado por meio de doações de visitantes ou organizações da sociedade civil (art. 5º, I e II). O acesso ao acervo será assegurado a todas as pessoas em cumprimento de pena ou medida de segurança, independentemente do regime ou situação disciplinar, bem como aos presos ou internados cautelarmente (inc. III). Trata-se, novamente, de inequívoco desdobramento do dever do Estado de prestar assistência educacional ao preso, inclusive mediante o fornecimento de livros ins-trutivos, recreativos e didáticos (art. 21, LEP), bem como ao direito que o detido possui de manter contato com o meio exterior através da correspondência escrita, da leitura e de outros recursos de informação (art. 41, XV, LEP).

A resolução em análise fez questão de destacar em, ao menos, três oportunidades que é “vedada toda e qualquer censura a obras literárias, religiosas, filosóficas ou científicas, nos termos dos art. 5º, IX, e 220, § 2º, da Constituição Federal” (BRASIL, 2021a, p. 5). Procurou o CNJ, em efetivo, concretizar os preceitos constitucionais da livre expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação, tal como o direito de acesso à informação, protegendo-o de práticas expressas ou veladas de censura.

Em relação aos procedimentos a serem seguidos para a obtenção do benefício, a atual normativa partiu dos critérios já traçados pela Reco-mendação nº 44/2013 do CNJ. Em suma, será necessário que a pessoa em privação de liberdade registre o empréstimo da obra desejada, mo-mento em que terá o prazo de 21 a 30 dias para realizar a sua leitura. Em até 10 dias após esse período, o interessado deverá apresentar um relatório de leitura sobre a obra em questão, conforme roteiro fornecido pelo juízo da execução ou por uma Comissão de Validação especial-mente designada (art. 5º, IV).

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Cada obra lida corresponderá à remissão de 4 dias de pena, limitan-do-se, durante o período de 12 meses, a até 12 obras efetivamente lidas e avaliadas (art. 5º, V). Desse modo, assegura-se a possibilidade de o preso remir até 48 dias de sua pena a cada intervalo de um ano. Im-portante destacar que a validação do relatório de leitura “não assumirá caráter de avaliação pedagógica ou de prova, devendo limitar-se à ve-rificação da leitura e ser realizada no prazo de 30 (trinta) dias contados da entrega do documento [...]” (BRASIL, 2021a, p. 6).

A análise do relatório competirá à Comissão de Validação, que de-verá ser instituída pelo juízo competente (art. 5º, § 1º). Inovando em relação à Recomendação nº 44/2013 do CNJ, a Resolução nº 391/2021 previu que o grupo de trabalho terá composição multipartite e contará com a participação de membros do Poder Executivo ligados aos órgãos gestores da educação e responsáveis pelas políticas educacionais no sistema prisional, de docentes e bibliotecários que atuam na unidade, de representantes da sociedade civil, de iniciativas autônomas e de ins-tituições de ensino privadas ou públicas, além de pessoas privadas de liberdade e familiares de indivíduos detidos.

No exercício de suas atividades, a Comissão aferirá o registro elabo-rado pela pessoa privada de liberdade segundo seu grau de letramento, alfabetização e escolarização, e considerará a estética textual, a fidedig-nidade e a clareza do texto. Como esse grupo não exerce atividades de natureza educacional – atribuição de outros órgãos dentro do sistema prisional –, “a validação do relatório de leitura não assumirá caráter de avaliação pedagógica ou de prova, devendo limitar-se à verificação da leitura [...]” (BRASIL, 2021a, p. 6).

O CNJ também procurou garantir o aproveitamento dessa modalida-de de remição por presos de diversos níveis de escolaridade, porque “a isonomia ou igualdade não equivale à simples equiparação de todos os condenados, mesmo porque os homens não são iguais, e suas diferenças são importantes e devem ser consideradas na execução de sua pena” (BRITO, 2020, p. 66). Assim, as unidades prisionais e as Comissões de Validação deverão prever formas de auxílio para fins de validar relató-rios de pessoas em fase de alfabetização. Podem, para tanto, estimular

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o uso de técnicas de leitura de audiobooks, permitir a apresentação do relatório de forma oral ou o registro do conteúdo lido por outras formas de expressão, como a realização de pinturas ou desenhos, a depender da condição do indivíduo (art. 5º, § 2º). Do mesmo modo, o Poder Público deverá assegurar a disponibilização de livros em braile ou audiobooks para pessoas com deficiência visual ou intelectual (§ 3º).

A resolução também previu que a possibilidade de a pessoa privada de liberdade participar de projetos de remição pela leitura ou por práticas sociais educativas não escolares não afastará a remição pelo trabalho ou pela educação formal escolar (art. 7º). Desse modo, em atendimento ao comando previsto no art. 126, § 3º, LEP, “as horas diárias de trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem” (BRASIL, 1984), sendo plenamente cabível a cumulação dos benefícios.

Para que seja realizada a homologação dos dias remidos, a direção do estabelecimento encaminhará semestralmente a relação das pessoas que adquiriram o direito, podendo esse prazo ser individualmente reduzido para os casos dos indivíduos que estejam na iminência de progredir de regime (art. 7º, I). Em homenagem ao dever de informação e de trans-parência, o preso deverá ter acesso à relação dos dias que conseguiu remir (inc. II).

Mais que estabelecer regras operacionais para a validação da leitura como forma de remir a pena, a Resolução nº 391/2021 do CNJ ainda inovou ao definir, de maneira expressa, que compete ao juiz da exe-cução zelar para que as unidades prisionais desenvolvam projetos de fomento e qualificação da leitura (art. 6º). Para tanto, poderão desenvol-ver parcerias com iniciativas de indivíduos presos ou seus familiares, organizações da sociedade civil, instituições de ensino ou órgãos públi-cos de educação, cultura e direitos humanos.

Por último, previu-se que o Poder Judiciário, por meio dos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, articulará com os demais órgãos da execução penal e da sociedade civil a garantia do direito às práticas sociais educativas a todas as pessoas presas ou inter-nadas. Dentre as atribuições, incluem-se: assegurar o acesso universal aos livros, trabalhar em prol da renovação do acervo, permitir o acesso

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às informações quanto aos programas e às práticas desenvolvidos nas unidades, garantir a articulação com os planos estaduais de educação e zelar pela célere comunicação entre os estabelecimentos prisionais e penitenciários e as varas de execução.

4. O EXERCÍCIO DA LEITURA NO CURSO DA EXECUÇÃO DA PENA: EM BUSCA DE NOVOS SENTIDOS E PERSPECTIVAS DE REINSERÇÃO SOCIAL

Delineadas as premissas jurídicas que sustentam o instituto da re-mição e seu atual panorama normativo, necessário pontuar sua impor-tância – especialmente quando operada pela leitura – para o alcance de um modelo constitucional de cumprimento de pena. O emprego de institutos que possibilitem a efetiva reinserção do indivíduo na vida em sociedade faz parte desse cenário.

Nesse sentido, tem-se que remição é um instituto completo, pois ree-duca o indivíduo, “prepara-o para sua reincorporação à sociedade, pro-porciona-lhe meios para reabilitar-se diante de si mesmo e da socieda-de, disciplina sua vontade, favorece a sua família e sobretudo abrevia a condenação, condicionando esta ao próprio esforço do penado” (DIAS, citada por MIRABETE, 2000, p. 425-426). Logo, seu propósito trans-cende em muito a simples redução do tempo de cumprimento de pena, vez que se relaciona com a própria busca de uma harmônica integração social do condenado, um dos objetivos trazidos pela Lei nº 7.210/84 e que norteia toda a execução.

Não por outro motivo, a remição se transformou desde a edição da Lei de Execução Penal, pois, se originalmente abarcava apenas hipóte-ses relacionadas ao desempenho de atividades laborativas, mudanças legislativas pacificaram divergências travadas pela doutrina e pela ju-risprudência quanto à possibilidade de o instituto englobar também a atividade de estudo regular. Recentemente, a Resolução nº 391/2021 do CNJ disciplinou nacionalmente a possibilidade de remição pela leitura, o que consolida iniciativas promissoras desenvolvidas em diversas uni-dades prisionais e encampadas por vários tribunais.

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Tal evolução decorre da revalorização da execução como instrumen-to de reinserção do condenado na vida social. A faceta preventiva da pena – ou seja, o desestímulo à prática de condutas criminosas – tam-bém perpassa a reabilitação do indivíduo, sobretudo possibilitando o acesso a direitos até então não lhe assegurados. Nesses termos:

[...] considerando que o trabalho e a educação são direitos sociais (art. 6º da CF) e que a remição é instituto concebido para o be-nefício das pessoas presas, sua interpretação, aplicação e extensão devem ser as mais amplas possíveis, inclusive com a admissão da analogia in bonam partem. (ROIG, 2016, p. 242, grifo no original).

Assim, assume-se que a interpretação mais adequada da própria le-gislação relativa ao cumprimento de pena é aquela “que mais favoreça a sociedade e o preso, e por aqui não é possível negar que a dedicação ro-tineira deste ao aprimoramento de sua cultura contribui decisivamente para os destinos da execução” (MARCÃO, 2021, p. 94). Na esteira do raciocínio do autor, o estudo em sentido amplo – não somente o ensino regular – contribui de maneira decisiva para a readaptação do indivíduo à vida social em liberdade. Ao se possibilitar que este acesse programas de formação e desenvolvimento pessoal, está-se tomando medidas que diminuem as chances de que volte a delinquir.

Não se olvida da existência de severas barreiras impostas pela própria sociedade na inclusão desses indivíduos, poisa estigmatização da figura dos egressos do sistema prisional, reforçada pelas mídias tradicionais, envolve a sociedade numa atmosfera do medo, que tende a perpetuar a marginalização e negar-lhes, não raros os casos, oportunidades de trabalho.A oferta de trabalho e do estudo, inclusive profissionalizante, além do acesso à leitura, exsurge como um instrumento potencialmente eficaz de minimização dessa tendência.

A ampliação do número de hipóteses de cabimento da remição, desse modo, é notável incentivo à formação intelectual e profissionalizante do apenado, fornecendo-lhe meios adequados para sua ressocialização. Em similar perspectiva, é a lição de Renato Marcão (2021, p. 94), se-gundo o qual “não raras vezes o estudo acarretará melhores e mais sen-

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síveis efeitos no presente e no futuro do sentenciado, vale dizer, durante o período de cumprimento de pena e no momento da reinserção social, do que o trabalho propriamente dito”.

As mesmas razões que justificam a oferta do ensino regular e profis-sionalizante aos presos (art. 17, LEP) e que sustentam a remição pelo estudo (art. 126, LEP) aplicam-se à leitura. Isso porque o direito do preso à informação e à leitura, previsto no art. 41, XV, da Lei de Exe-cução Penal, é decorrência dos direitos fundamentais à informação e à educação, este último também um dever do Estado (art. 205, CF). Por essa razão, “situa-se na esfera da garantia do mínimo existencial, espe-cialmente naquilo em que este [...] abrange uma dimensão sociocultural e não se limita a um mínimo vital” (SARLET; MARINONI; MITIDIE-RO, 2017, p. 691).

Por sua vez, na ótica político-criminal, a educação é um elemento irrenunciável e representa uma intervenção especialmente dirigida a assegurar interesses humanos, culturais e profissionais da pessoa pre-sa (BRITO, 2020). Com a atual normativa do CNJ, a leitura passa a, efetivamente, ser incluída nesse panorama, situação que afasta vozes contrárias ainda presentes, que rejeitavam ou viam com desinteresse a chegada das bibliotecas às unidades prisionais. Com a edição da Reso-lução nº 391/2021 do CNJ, passou a ser inequívoca a necessidade de o Poder Judiciário exercer papel fiscalizador na realização de projetos e iniciativas que concretizem esse direito fundamental.

À vista de um direito fundamental, descabe a alegação de que faltam recursos financeiros para aparelhar a estrutura dos estabelecimentos prisionais com vistas a permitir a educação dos apenados, seja pelo ensino regular, seja pela leitura. Mais que isso, a implementação de tais programas admite expressamente a formação de parcerias com órgãos públicos e instituições e organizações privadas, não sendo admissível a negativa genérica ao oferecimento dessa possibilidade ao detento:

A concretização da política penitenciária de desconto da pena pela leitura, portanto, além de constituir verdadeiro incentivo à educa-ção do preso, passou a proporcionar ampla democratização do aces-so às formas de remição penal para a população carcerária, já que

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sua realização prescinde de grande estruturação do estabelecimen-to penal, bastando que a penitenciária disponha de uma biblioteca, com no mínimo 20 exemplares de cada obra literária, além de uma equipe responsável pelo acompanhamento da medida. (OÑORO; SPEXOTO, 2020, p. 23).

Ainda, tem-se que o incentivo à leitura promovido pela remição está de acordo com a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), institu-ída pela Lei nº 13.693, de 12 de julho de 2018. O objetivo da legislação é, em resumo, universalizar o acesso aos livros, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas de acesso público no Brasil, o que não exclui aquelas situadas no interior dos estabelecimentos de cumprimento de pena.

Com a resolução do CNJ, o cenário também é favorável à difusão de novas iniciativas de leitura para remição da pena, assim como contribui para o fortalecimento das já existentes. No Estado de Santa Catarina, por exemplo, elenca-se o projeto “Despertar pela Leitura”, desenvol-vido desde o ano de 2016 e originado de uma parceria entre a Secre-taria de Administração Prisional e Socioeducativa (SAP) e a Secreta-ria de Educação (SED). Conforme o último levantamento da Gerência de Educação, do Departamento de Administração Prisional (Geduc/DEAP), cerca de 6.600 pessoas privadas de liberdade participam do programa e buscam diminuir seu tempo de pena por meio da leitura em, ao menos, 48 estabelecimentos prisionais e penitenciários (REGRA-MENTO..., 2021).

Apesar da dimensão assumida com o passar dos anos, as condições aplicadas por diversos juízes do Estado eram fundadas na jurisprudência prevalecente dos tribunais e na recomendação do Conselho Nacional de Justiça então vigente. Agora, com um regramento nacional unificado, a tendência é de que as decisões sejam proferidas com mais segurança, em razão de afastadas as controvérsias existentes.

Igualmente, é de se destacar que o incentivo à leitura contribui tam-bém para o desencarceramento no sistema prisional, uma vez que, por meio dessa forma de remição, se reduz o tempo de pena a cumprir. Não se pode esquecer que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, na

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ADPF 347/DF, julgada em 9 de setembro de 2015, de relatoria do Min. Marco Aurélio, a existência de Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro, marcado por violações reiteradas aos direi-tos humanos das pessoas presas e pela ausência de estrutura e recursos para a manutenção adequada dos estabelecimentos. Para enfrentar esse cenário de crise estrutural, a Corte também assentou que cabe a todos os órgãos da execução penal traçar planos e propor alternativas idôneas com vistas a resguardar direitos e contribuir para a melhoria das condi-ções impostas aos indivíduos privados de sua liberdade.

Assim, o instituto analisado passa a ser um meio de amenizar o im-pacto do cárcere sobre os direitos fundamentais dos apenados. Além disso, como política criminal, pode ser um instrumento promissor no enfrentamento da superlotação dos presídios e penitenciárias brasilei-ros, desde que seja oportunizado de maneira séria e responsável.

Logo, apesar da intrigante inspiração do legislador quanto à origem da remição – como visto, ligada ao trabalho desempenhado pelos pre-sos de guerra –, o instituto se transformou em notável conquista do direito penal brasileiro. A partir dela, pode-se promover o desencarce-ramento e concretizar a garantia fundamental de individualização da pena, decorrência da máxima da dignidade da pessoa humana. Além disso, viabiliza-se, de maneira mais efetiva, a reinserção da pessoa pre-sa na vida social, contribuindo para o alcance das finalidades da pena e o aprimoramento do modelo democrático de Estado encampado pela Constituição Federal de 1988.

5. CONCLUSÃO

A execução penal é uma fase processual em que se executa o títu-lo judicial, com vistas a atingir os objetivos da pena. Apesar de ser o reflexo do poder punitivo do Estado, não se limita a cumprir as dis-posições da sentença condenatória, pois está ainda incumbida de, ao fazê-lo, aplicar os princípios e as garantias constitucionais inerentes ao cumprimento da sanção.

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Nesse sentido, necessário que todos os órgãos da execução estejam conscientes de que a sanção penal tem como finalidade reprimir a prá-tica de condutas criminosas e prevenir seu cometimento. No panorama contemporâneo do direito penal, em específico o caráter preventivo da pena transcende o simples medo da punição, mas também se refere ao dever estatal de ofertar condições para reinserir o indivíduo transgres-sor na vida em sociedade. De outro modo, trata-se da busca por uma harmônica integração social do condenado, diretriz constante do art. 1º da Lei de Execução Penal.

Assim, a remição da pena surge como importante ferramenta de rein-serção do preso na vida em sociedade, notadamente porque beneficia os indivíduos que se dedicam rotineiramente ao trabalho e ao estudo durante o período em que estão privados de liberdade. Mais que uma obrigação imposta aos apenados (arts. 18 e 31, LEP), o desempenho de atividades laborativas e a frequência ao ensino básico são direitos so-ciais protegidos constitucionalmente e, como tal, compõem seu mínimo existencial na dimensão sociocultural.

Como decorrência do próprio direito fundamental à educação, mais recentemente a remição pela leitura foi admitida pela prática forense como uma forma de desconto de pena. Apesar dos avanços, somente houve uma disciplina nacional unificada sobre o assunto com a edição da Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021, pelo Conselho Nacional de Justiça. A partir dessa normativa, é perceptível o incentivo à forma-ção intelectual e profissional do apenado, notadamente porque o acesso à literatura e à informação complementa os esforços pedagógicos em-penhados com a oferta dos demais níveis de ensino às pessoas presas.

Mais que fornecer subsídio para o desenvolvimento pessoal e forma-tivo do preso, nota-se que o incentivo à leitura contribui para o enfren-tamento das mazelas do Estado de Coisas Inconstitucional que atinge o sistema prisional brasileiro. Em um ambiente marcado por violações reiteradas aos direitos fundamentais e pela falta de estrutura para a ma-nutenção dos estabelecimentos, o fortalecimento de programas de for-mação cultural pelo acesso aos livros pode ser um meio de amenizar o impacto do cárcere sobre os apenados.

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Assim, a remição da pena e, em especial, a remição pela leitura, po-dem ser vistas como notáveis conquistas do direito penal contemporâ-neo. A partir delas, é possível promover a reinserção do transgressor na vida em sociedade, ao mesmo tempo em que se concretiza a garantia fundamental de individualização da pena. O acesso às obras literárias, ao mesmo tempo, permite a oferta ao preso de uma formação cultural completa, que lhe fornece bases para evitar novas condutas delitivas. Desse modo, contribui-se para o alcance das efetivas finalidades da san-ção criminal, ao passo em que se fornece uma alternativa idônea para resguardar direitos no cenário de crise estrutural do sistema penitenci-ário brasileiro.

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 30/06/2021Aprovado em:10/08/2021

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A POLARIZAÇÃO E A INTOLERÂNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

POLARIZATION AND INTOLERANCE IN THE DEMOCRATIC STATE OF LAW

Flávia Laurindo da Rosa1

Resumo: O presente artigo trata da análise da polarização e da intole-rância em um Estado Democrático de Direito, com ênfase no momen-to social contemporâneo, consubstanciado na sociedade brasileira. O objetivo principal dessa reflexão é fomentar uma cultura baseada na valorização de conquistas sociais, com a relevância da democracia em um país, de forma colaborativa com a justiça e com a sociedade. Ain-da, após a delimitação sintética dos campos disciplinares aplicáveis, o presente texto destaca a importância da liberdade de expressão em um Estado Democrático de Direito para que diferentes concepções sejam debatidas em um cotejo analítico, com respeito aos participantes de um processo dialético.

Palavras-chave: Polarização. Intolerância. Estado Democrático de Di-reito.

Abstract: This article deals of the analysis of polarization and intole-rance in the Democratic State of Law, with emphasis on the contempo-rary social moment, embodied in Brazilian society. The main objective of this reflection is to foster a culture based on valuing social achieve-ments, with the promotion of democracy in a country, in a collaborative

1. Flávia Laurindo da Rosa; Especialista em Direito Público pela Universi-dade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, com convênio com a Escola Supe-rior da Magistratura no Estado de Santa Catarina – ESMESC. Pós-Graduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Bacharela em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catari-na – UNISUL.Atualmente, estagiária de pós-graduação no Ministério Público do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

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way with justice and society. Still, after the synthetic delimitation of the applicable disciplinary fields, the present text highlights the importance of liberty of the expression in the Democratic State of Law, so that di-fferent conceptions are debated in the analytical collation, with respect to the participants of the dialectical process.

Keywords: Polarization. Intolerance. Democratic State.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta uma reflexão inicial sobre a polarização e a intolerância em um Estado Democrático de Direito, de forma preju-dicial à democracia, especialmente diante da divisão política em uma sociedade.

O presente ensaio está dividido em três partes. A primeira parte está destinada a apresentar, brevemente, uma contextualização da democra-cia no Brasil, embasando o histórico da sociedade atual.

A segunda parte dedica-se à análise dos discursos de intolerância e sua expansão na política brasileira, que se, hoje, têm como o principal foco de tensão no país.

Já a terceira seção pretende alinhar algumas contribuições históricas sobre as conquistas sociais no Brasil, com um viés a propiciar melhor adequação da democracia com as demandas submetidas ao poder judi-ciário em razãoda urgência na valorização do Estado Democrático de Direito.

Para tanto, utilizou-se o método de abordagem dedutivo, com a ob-servância dos argumentos gerais presentes na sociedade. As ações ins-trumentais da pesquisa e seus métodos de procedimento condizem com o método de abordagem histórico, observando-se as consequências que a expansão da intolerância trouxe em determinados momentos funda-mentais.

Para proceder com a análise da polarização, utilizou-se a pesquisa bibliográfica com materiais já publicados, como livros, periódicos e pu-blicações em mídias digitais. Já para a pesquisa documental, utilizou-se a legislação constitucional, acrescida de jurisprudência.

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2. DEMOCRACIA NO BRASIL

O Estado Democrático de Direito, de maneira geral, está vinculado à ideia da soberania popular no sentido de cooperação de indivíduos em um determinado âmbito, instituída a partir do voto, diante da neces-sidade de estabelecer um modo comum de participação social para a formação da vontade estatal.

Entende-se que o Estado Democrático de Direito:

deve proporcionar condições efetivas aos cidadãos de escolher en-tre participar direta ou indiretamente da formação das decisões co-letivas, exercendo os seus direitos de liberdade, de expressão, de reunião e de associação. Além do exercício efetivo de direitos que viabilizam a inserção do homem na vida política (PENA; OLIVEI-RA, 2020, p. 2).

Nesse viés, esse Estado garante o respeito às liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, res-saltando-se o respeito à dignidade da pessoa humana.

Ainda, há uma finalidade do Estado para coibir abusos do aparato estatal para com os indivíduos, pelo que se limita o poder do Estado sobre eles, já que os direitos fundamentais lhes conferem autonomia e liberdade. Em suma, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito.

O Estado Democrático de Direito superou o conceito de Estado de Direito, já que houve uma abrangência das garantias fundamentais. Assim, no que se refere à cooperação por meio do voto, tem-se, na Constituição da República, que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto, que é direto e secreto, com valor igual para todos (BRASIL, 1988).

A função da Constituição em um Estado Democrático, para Barroso (2018, p. 67), divide-se em duas. A primeira função é para veicular consensos mínimos e essenciais à dignidade das pessoas, com reflexo no funcionamento do regime democrático, que não deve ser afetado por políticas ocasionais. E a segunda função é para garantir o espaço

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próprio do pluralismo político e, consequentemente, assegurar o meca-nismo democrático.

Em razão disso, a participação social assume relevânciapor se tratar da garantia da vontade e do bem-estar social. Segundo Diniz (2019):

Podemos pensar em duas categorias simples de participação social: “institucional” e “não-institucional”. A primeira se trata de proce-dimentos organizados pelo próprio Estado (as eleições para cargos políticos, por exemplo) e a segunda de procedimentos mais espon-tâneos, organizados pela sociedade em si (passeatas de movimentos sociais) (grifo no original).

Sabe-se que essa participação pode acontecer de inúmeras formas, seja por meio de comunicação social, com opinião pública, até deman-das de movimentos sociais que exigem representatividade.

Assim, a concepção do Estado Democrático de Direito é amplamente difundida. A esse propósito:

Suas principais características são soberania popular; da democracia representativa e participativa; um Estado Constitucional, ou seja, que possui uma constituição que emanou da vontade do povo; e um sistema de garantia dos direitos humanos (ENTENDA..., 2018).

Adentrando no tema da democracia, pode-se afirmar que, desde a criação do Estado Moderno, ela sempre esteve presente, de alguma for-ma, nos anseios dos indivíduos (POLAK, 2008, p. 8).

Para complementar, Polak (2008, p. 8) dispõe que:

os dois fundamentos básicos de uma sociedade democrática nunca abandonaram as mentes dos cidadãos de qualquer parte: os ideais de liberdade, consubstanciados nos direitos humanos, e de igualda-de entre os indivíduos, formando uma sociedade que, embora não constituída por iguais, é pelo menos uma sociedade na qual todos os indivíduos são reconhecidos como cidadãos e gozam de direitos a uma vida digna, à saúde, educação, tendo a possibilidade de viver e não apenas sobreviver. (grifo no original).

Com a concepção instrumental do Estado, têm-se que as eleições e os seus respectivos eleitos são um termômetro para a condução da de-mocracia no país. Entretanto, em uma pesquisa divulgada pela Revista

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Exame no ano de 2019, que ouviu 2.948 pessoas, concluiu que, no Bra-sil, “cresceu o número de pessoas que não consideram a democracia como a melhor forma de governo” (APOIO..., 2019).

Pode-se citar como os possíveis motivos para não se considerar a democracia como a melhor forma de governo os:

eleitos eternos, que acumulam ou alteram funções municipais, esta-duais, legislativas ou ministeriais, e veem a população como o elo fundamental da representação dos interesses locais; governos que fazem eles mesmos as leis; representantes do povo maciçamente formados em certa escola de administração; ministros ou assesso-res de ministros realocados em empresas públicas ou semipúblicas; partidos financiados por fraudes nos contratos públicos; empresá-rios investindo uma quantidade colossal de dinheiro em busca de um mandato; donos de impérios midiáticos privados apoderando-se do império das mídias públicas por meio de suas funções públicas. Em resumo: apropriação da coisa pública por uma sólida aliança entre a oligarquia estatal e a econômica. (RANCIÈRE, 2014, p. 93).

Com isso, há a caracterização do fim da democracia elencada por Runciman (2017, p. 7), que faz um alerta: “podemos nem sequer per-ceber que o fim está chegando porque estaremos olhando na direção errada”.

O autor, quando dispõe sobre o fim da democracia, realiza alguns comentários, como, por exemplo:

O espaço entre o pessoal e o apocalíptico, que é onde tradicional-mente se desenvolve a política democrática, transformou-se num campo de batalha para visões de mundo rivais constituídas de ex-pectativas pessoais ou apocalípticas do pior que pode acontecer. O que está faltando é uma política de nível médio. Em qualquer distribuição em forma de cauda longa, é a parte média a atingida com mais força. A democracia contemporânea não é uma exceção. Macroeventos e microexperiências (sic) ocupam todo o espaço e excluem a possibilidade de um meio-termo razoável. Quando as pessoas procuram instituições que poderiam facilitar essa interme-diação, descobrem que foram esvaziadas pela pressão de inquieta-ções e pelas frustrações políticas grandes demais ou pequenas de-mais para se ajustar a elas (RUNCIMAN, 2017, p. 191).

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Sobre o desvio de olhar mencionado anteriormente, pode-se entender pela desintegração das instituições democráticas, consoante dispõem Levitsky e Ziblatt (2018, p. 164) quando referem que se está:

abrindo um vazio desconcertante entre como nosso sistema político funciona e as expectativas há muito arraigadas de como ele deve funcionar. À medida que nossas grades flexíveis de proteção foram se enfraquecendo, nós nos tornamos cada vez mais vulneráveis a líderes antidemocráticos.

Como se vive atualmente em dois lados, Kalout (2020) apresenta um discurso oposto e otimista, em que a democracia irá continuar a existir e deve resistir. O autor arremata dispondo da forma de operar, que deve ser com “coragem e compromisso democrático, [...] se mais brasileiros animados desses sentimentos fizerem a voz ressoar, a democracia cer-tamente não perecerá”.

Entretanto, a divisão maniqueísta presente na sociedade brasileira afasta-se das suas características principais, quais sejam, “lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estran-geiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro” (HOLANDA, 1995, p. 146).

Na perspectiva de divisão do Estado é que se desenvolve os des-contentamentos coletivos, voltado, por vezes, a relevar a violência na modernidade, com a utilização principalmente das mídias sociais. Se-gundo o projeto Comunica que Muda, divulgado em 2016, que analisou o conteúdo de aproximadamente 400 milsposts, foram retratados traços de intolerância em 97,4% das postagens (SODRÉ, 2016).

Com relação ao discurso do ódio crescente nas plataformas disponi-bilizadas pela internet, principalmente nas redes sociais, pode-se dizer que, como o mundo virtual se tornou a ferramenta de interligação de pessoas, de todos os lugares do mundo, facilitando a interação social dos indivíduos, obteve-se que, de certa forma:

A possibilidade de anonimato e a velocidade na disseminação das mensagens via internet encoraja manifestações preconceituosas de todo tipo. Há uma sensação de poder e de impunidade que, em con-junto com a ignorância e o preconceito, além de outros sentimentos

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amalgamados, impulsiona o hatera destilar a sua ira, em velocidade digital (ANDRADE, 2019)

Por conseguinte, as redes sociais, de alguma forma, validam o ódio das pessoas, porque nelas é possível a sua expressão e, em razão disso, é possível receber aplausos de amigos e/ou seguidores, representado por compartilhamentos ou curtidas, dando uma dimensão pública do ato.

As redes sociais digitais, em sua configuração particular, expli-citaram a emergência de produção e de circulação de enunciados de protesto (contrapalavra), portanto, situações de enfrentamento, lutas políticas e ideológicas. Evidencia-se, assim, o potencial des-sas redes sociais de se constituírem como espaços contemporâne-os para publicizar a produção dos próprios sujeitos envolvidos no evento como alternativa a outras mídias como, por exemplo, jornais e revistas, pertencentes às grandes empresas de comunicação que, por vezes, corroboram os interesses de uma classe hegemônica re-presentante do discurso oficial (QUADRADO; FERREIRA, 2020).

O fortalecimento de um projeto de ódio, com ataques virtuais e di-vulgação de falsas notícias, instrumentaliza a intolerância no presente. Sabe-se que democracia e intolerância constituem situações antagôni-cas. Assim,

quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de um mundo plural. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas. Nela, só não há lugar para a intolerância, a desonestidade e a violência (EM DISCURSO..., 2020).

Registre-se que a disseminação da raiva e dos ataques nas redes sociais não é um fenômeno isolado da internet, mas sim um compor-tamento humano da vida real, que se manifesta, por vezes, em outra plataforma. Isso porque há uma linha tênue entre uma ameaça virtual e uma ação criminosa, em que claramente não se ampara no campo da liberdade de expressão.

Aliás, nesse panorama, elenca-se a liberdade de expressão como um importante instrumento jurídico para a compreensão da configuração do Estado. Sob a perspectiva de desenvolvimento social, é legítimo do

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processo democrático o desejo que o Poder instituído exerça a represen-tação dos eleitores. Entretanto, isso não tem relação com a intolerância, que, para Dunker (2017, apud Vasconcellos, 2017), “deriva da falta de experiência no lugar comum, ou seja, não conseguir mais se comunicar, não compartilhar valores. Em suma, não conseguir fazer as diferenças naturais se tornarem algo produtivo”.

A liberdade de expressão “é pilar fundamental de sustentação, con-dição essencial para a existência de uma verdadeira sociedade demo-crática” (PRETEL, 2010). Ela tem uma função de viabilizar e efetivar, portanto, a democracia em seus mais variados âmbitos. Para tanto, de-ve-se propiciar instrumentos normativos destinados a conter excessos para garantir, nas relações sociais, esse direito.

Isso porque, o direito à liberdade de expressão está intimamente liga-do à natureza humana e, consequentemente, na forma de se relacionar em sociedade, propiciando o diálogo da população.

Contudo, atualmente existe um discurso introdutório do ódio. O dis-curso na política passou a ser um discurso não de criação ou de compo-sição, mas de confronto. Cabe ressaltar que o processo democrático é um processo de administração do dissenso para resolver o consenso, e não para impô-lo.

3. A INTOLERÂNCIA E A SUA EXPANSÃO

Com o objetivo de demonstrar a intolerância e a polarização da de-mocracia brasileira, importante a identificação de situações em que construíram, de certa forma, uma cultura de ódio no país.

Os motivos para a crescente intolerância são inúmeros, mas podem ser, principalmente, por questões ligadas à economia, à saúde, à des-crença na política e, principalmente, à (in)segurança. Isso é o que se depreende da 138ª pesquisa do CNT/MDA, que demonstrou as áreas que mais precisam de melhorias no Brasil. Os apontamentos por meio das entrevistas realizadas em 2018 foram: saúde com 73,4%, educação com 45,6% e segurança com 37,9% (RESULTADOS..., 2018).

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Ainda, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2016) divulgou que 57% da população acredita que “bandido bom é bandido morto”. Sobre a dimensão dessa frase, deve-se atentar ao fato de qual bandido deve ser morto, uma vez que, segundo Baratta (1993, p. 50), há um pa-radoxo na identificação desse perfil:

[...] a sociologia jurídico-penal e a experiência cotidiana demons-tram que o sistema direciona sua ação principalmente às infrações praticadas pelo segmento mais frágil e marginal da população; que os grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias ações cri-minais.

Quando se define a vida de outrem em uma simples ação (evento morte), há um afastamento dos princípios democráticos amparados na Constituição da República Federativa do Brasil, principalmente o prin-cípio da dignidade da pessoa humana, em que se mostra afastado por discursos que tem como justificativa o aumento da criminalidade e a insegurança no país.

O referido princípio significa, para Ricardo Souto (2019), “respeito à condição mínima de existência humana, um valor absoluto e consti-tucionalmente consagrado que consolida o respeito à pessoa humana”.

Em virtude da importância desse princípio, cabe registrar outra con-sideração acerca dele, quando se tem que, em razão de sua existência, a dignidade da pessoa humana é atribuída às pessoas,

independentemente de suas circunstâncias concretas ou dos danos que eventualmente tenham causado à realidade externa, isto é, ela é também reconhecida aos mais cruéis criminosos, terroristas, ou a qualquer outra denominação que se queira atribuir aos indivíduos que violam os direitos dos seus semelhantes, pois eles são reconhe-cidos como pessoas e seus atos, por mais tenebrosos que sejam não são capazes de apagar esse traço inato (PADILHA; BERTONCINI, 2016).

Desse modo, a dignidade da pessoa humana é uma garantia da neces-sidade vital de todos os indivíduos, já que é um valor intrínseco, sendo um fundamento basilar da República Federativa do Brasil.

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Retomando os discursos de descontentamento com a política crimi-nal no país, em que se ampara, principalmente, na impunidade de cri-mes (ou na sensação da impunidade), crescem, de forma exponencial, outras demandas, como os pedidos de pena de morte no Brasil. O apoio para essa medida cresceu entre os brasileiros, com 57% favorável à pena de morte no ano de 2017. A pesquisa divulgada pelo Data Folha identificou que é “o maior índice da série histórica (iniciada em 1991) e, em comparação com a pesquisa anterior, de março de 2008, o índice cresceu 10 pontos (era 47%)” (DATA FOLHA, 2017).

Registre-se quanto à questão da impunidade, que se trata de uma sensação, já que o Brasil é o terceiro país com a maior população car-cerária do mundo, de tal forma que não se pode afirmar que, no país, as pessoas não vão presas.

Em 2019, o Brasil possuía 773.151 pessoas privadas de liberdade, em todos os regimes, consoante dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen. (DEPEN..., 2020).

Sobre esse quadro no Brasil, os números anteriores mostram “que o país vive um movimento de superencarceramento e, o pior, a taxa é crescente”. (SANTORO; TAVARES; GOMES, 2017).

As demandas por ações e implementações no país de medidas afas-tadas do conceito de dignidade da pessoa humana e sem conhecimento das necessidades práticas da sociedade civil acabam por desprezar, de certa forma, a dimensão da legislação constitucional e sua ideia de evo-lução, já que há a previsão de que “[...] não haverá penas: [...] de morte, salvo em caso de guerra declarada” (BRASIL, 1988).

O Estado deve ser entendido como uma categoria de coletividade, e não como um todo em si, isoladamente considerado, na medida em que não se pode admitir que um homem médio tome atitudes como: apedre-jar menina de 11 (onze) anos de idade por seguir determinada religião (ZAREMBA, 2015); atacar com ofensas na internet uma apresentadora por ser negra (‘MAJU’..., 2015); amarrar um suspeito de roubo em um poste e linchá-lo até à morte (SUSPEITO..., 2015); e, ainda, matar por homofobia, representada pelos crescentes assassinatos da população LGBT (SOUTO, L., 2018).

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Sobre o chamado “homem médio”, esse se entende por um “homem razoável, que pondera a situação, cede e tenta encontrar a decisão mais justa possível” (BRASIL, 2017).

Deve-se refletir sobre essas ações, porque atacam justamente os gru-pos minoritários e vulneráveis, envolvendo questões ideológicas que perpassam o discurso de ódio, com os desdobramentos na esfera da ação, com intenso desrespeito, já que é oriundo de um comportamento odioso.

Conforme mencionado anteriormente, àquelas situações que até en-tão eram tratadas apenas como virtuais passam a ocorrer inúmeras vezes no mundo real, com a diversificação do preconceito, da discriminação, representando a violência em um país de miscigenação sociocultural.

Além disso, considera-se um exemplo atual de intolerância aquele movimento em que pessoas foram às ruas pedir o fechamento do Con-gresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (ALVES, L., 2019).

Ainda nesse tema, Vidal e Silva (2019) dispõem que: “Cuida-se de discussão que exige um estudo crítico, por envolver questões como a crise de efetividade constitucional e a progressiva perda de legitimidade popular dos espaços deliberativos majoritários”.

Os movimentos sociais estão amparados na Constituição e em seu próprio fundamento, tornando-se legítimo no processo democrático. Entretanto, o que se tem como ilógico é quando alguns indivíduos, utili-zando desse meio disponível, muito em razão da democracia, requerem um retrocesso a ela.

Os direitos subjetivos de liberdades individuais devem conferir a plenitude dos direitos fundamentais, cunhando-se os elementos confi-guradores de um pluralismo político. Dessa forma, importante destacar a lição de Guterres (2019), que dispõe: “Para aqueles que insistem em usar o medo para dividir comunidades, devemos dizer: diversidade é uma riqueza, nunca uma ameaça”.

O pluralismo político é encontrado no texto da Constituição, quando trata dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, para garantir o respeito pela existência de várias opiniões, já que reco-

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nhece a multiplicidade da formação do Brasil, assegurando a liberdade de expressão.

Nesse sentido:

A partir do pluralismo também é reconhecido que a sociedade é estruturada por diferentes ideias, conceitos, atos, que a diversidade religiosa, de gênero, entre outras, são importantes e que os modos de vida devem ser garantidos e preservados, não importando quais sejam, desde que dentro dos impedimentos da lei. Dessa forma, ao ser reconhecido como um dos fundamentos da Constituição Fede-ral, políticas públicas para a garantia do pluralismo devem sempre estar em constante elaboração (COELHO, 2019).

Dessa forma, é possível concluir que o pluralismo político é vigente no ordenamento jurídico brasileiro, por compreender a transitoriedade das relações sociais em razão da evolução da sociedade.

Ainda, em complemento:

O pluralismo político vem demarcado como último e importante fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, sua rele-vância deriva do fato de que, para chegarmos à síntese das necessi-dades da sociedade, conveniente se faz que as diferentes vontades desta sociedade possam se expressar, defendendo seus pontos de vista, que serão avaliados e condensados pelo Estado. Portanto, de-nota-se que o conceito de pluralismo político engloba o de plura-lismo partidário, que, conforme já dito, é importantíssimo para a manutenção da democracia. O pluralismo em questão está presente em todas as áreas da sociedade, por meio da existência de diversos sindicatos, igrejas representativas de múltiplas religiões, escolas, universidades, associações civis constituídas para a defesa do inte-resse de grupos da sociedade etc. (KAMMER, 2003, p. 8).

Nesse viés, há de ser compreendido, no âmbito do presente trabalho, que a intolerância e a polarização, de forma maniqueísta, com o pre-conceito e a vontade de excluir o outro, são exemplos de manifestações autoritárias, levadas a um contexto político, contrários à democracia.

A prática histórica de excluir os grupos vulneráveis ainda é praticada, e o descontentamento dos brasileiros com a situação política do país

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não pode ser ensejador ao ataque da liberdade de expressão, ao plura-lismo político e à segurança jurídica do Estado Brasileiro.

4. CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS

Para adentrar no presente capítulo, é necessário realizar alguns co-mentários acerca dos grupos vulneráveis, que, em dado momento histó-rico, se manifestaram e conquistaram reconhecimento.

Por minorias e grupos vulneráveis, entendem-se por aqueles que:

originam-se em relações de assimetria social (econômica, educa-cional, cultural etc.). Nessa perspectiva, minoria pode ser definida a partir de uma particularização de um grupo, já que a maioria se define por um agrupamento generalizado, ou seja, por um proces-so de generalização baseado na indeterminação de traços, os quais indicam um padrão de suposta normalidade, considerada majoritá-ria em relação ao outro que destoar dele. A vulnerabilidade advém, pois, de pressões desse suposto padrão de normalidade, que pressio-na tudo e todos que possam ser considerados diferentes. A violên-cia, por sua vez, tanto pode ser física quanto simbólica, originária dessa pressão que, muitas vezes, na forma de preconceito e rejeição, marginaliza e discrimina o diferente. (CARMO, 2016, p. 5-6).

Diante disso, a situação de vulnerabilidade social relaciona-se com a exclusão de determinado grupo de pessoas, juntamente com a ausência de representatividade e oportunidades.

É possível citar como exemplo, portanto, mulheres, crianças, adoles-centes, idosos, população pobre, moradores de rua, pessoas com defi-ciências e a própria comunidade LGBT, ou aqueles que estão em uma posição não dominante no Estado, como os índios, os quilombos e os ciganos.

Especificamente sobre a situação das crianças e dos adolescentes, têm-se que, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, se tornaram detentores de direitos, e isso se deu pela participação da sociedade, na década de 1980, para expressar os interesses daqueles.

Isso é o que se conclui do seguinte trecho:

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Aproveitando o momento, organizações voltadas à infância come-çaram um conclame de toda a sociedade em prol da ‘Emenda da Criança, Prioridade Nacional’. E, assim, crianças e adolescen-tes tomaram conta do Congresso Nacional, para entregar mais de um milhão de assinaturas coletadas. Os legisladores constituin-tes, demandados, aprovaram, por unanimidade, o art. 227. (OS FI-LHOS..., grifo no original).

Em razão disso, criou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente para regulamentar àquele dispositivo constitucional, garantindo às crianças e aos adolescentes diversos direitos fundamentais.

O referido dispositivo constitucional, elenca que:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à pro-fissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Da mesma forma, deu-se o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que possui a acessibilidade universal como um eixo central, além de diver-sas outras regulamentações e reservas:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Defi-ciência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. (BRASIL, 2015).

Como visto, é possível, por meio de manifestações sociais, modifi-car uma realidade até então imposta, e isso se trata de um processo de concessões mútuas. No Brasil, após a ditadura militar, diversos acon-tecimentos simbolizaram um processo de abertura política no país, an-tes mesmo da criação dos Estatutos elencados anteriormente, e um dos mais importantes para ser citado foi o movimento “Diretas Já”.

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Esse movimento foi derivado de uma conquista popular, quando multidões foram às ruas clamar pelo voto direto para eleger o Presiden-te da República.

A luta pela normalização democrática e pela conquista do Estado Democrático de Direito começara assim que se instalou o golpe de 1964 e especialmente após o Ato Institucional nº 5, de 13.12.1968, que foi o instrumento mais autoritário da história política do Brasil. Tomara (sic), porém, as ruas, a partir da eleição dos Governadores em 1982. Intensificara-se, quando, no início de 1984, as multidões acorreram entusiásticas aos comícios em prol da eleição direta do Presidente da República, interpretando o sentimento da Nação, em busca do reequilíbrio da vida nacional, que só poderia consubstan-ciar-se numa nova ordem constitucional que refizesse o pacto polí-tico-social. (LIMA; PASSOS, 2013).

Ainda, o movimento relevou a presença da vontade por uma nova so-ciedade civil, de forma plural e participativa em que não mais aceitava ser objeto de militares, com o objetivo de tornar-se sujeito coletivo da história (REIS, 2010, p. 233).

Com relação à participação dos indivíduos na formação do Estado, Kelsen (2000, p. 109) dispõe que:

Uma vez que todos devem ser livres na maior medida possível, to-dos devem participar da formação da vontade do Estado e, con-seqüentemente (sic), em idêntico grau. Historicamente a luta pela democracia é uma luta pela liberdade política, vale dizer pela parti-cipação do povo nas funções legislativa e executiva.

Abordando outros movimentos sociais, de extrema importância é a trajetória da mulher desde o ingresso na política, por isso merecedora de destaque. Os movimentos feministas elencam a luta de mulheres pela participação não só na política, mas no trabalho e na própria sociedade. Pellanda (2018, apud Sodré, 2018) alerta que “são ao menos 140 anos de história de luta pela participação política das mulheres no Brasil e ainda temos muito caminho a percorrer para a igualdade de gênero”.

A história das mulheres possui um traço de busca por emancipação. De forma organizada, elas conquistaram (pelo menos nos textos legis-

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lativos) direitos essenciais, como a educação, a liberdade para esco-lher sua profissão, a possibilidade de votar e se candidatar (MAIS MU-LHER..., 2013, p. 12).

Entretanto, ainda carecem de maior amplitude, uma vez que as mu-lheres ainda são protagonistas de situações de desigualdade pela não efetivação dos direitos para o plano concreto (ROSA, 2020, p. 29-30).

Aliás, não só as mulheres, porque, voltando ao foco das crianças, é de conhecimento que o trabalho infantil ainda é uma realidade no país, afastando àqueles dispositivos de direitos e garantias, veja-se:

Em 2019, o Brasil tinha 1,8 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. O número representa 4,6% desta po-pulação. [...] Percentualmente, 45,9% das crianças que trabalhavam estavam ocupadas em atividades perigosas em 2019. [...] 66,4% das vítimas eram meninos e 66,1% eram pretos ou pardos. Entre as pes-soas em situação de trabalho infantil, 53,7% estavam no grupo de 16 e 17 anos de idade; 25% no grupo de 14 e 15 anos; e 21,3% no de 5 a 13 anos de idade. (ALVES, I.,2021).

Entretanto, espera-se uma evolução quanto a essas e outras questões, por meio do amparo aos anseios sociais, de que a Constituição de 1988 se baseou, uma vez que é um texto-base influenciado, por vários mo-vimentos sociais que canalizaram suas expectativas, como o já citado movimento das Diretas Já, que exigia maior participação na vida de-mocrática do país e que moldou, nesse ambiente, o conjunto de direitos que procurou consolidar a democracia no Brasil. (ROSA, 2020, p. 35).

É preciso resgatar aqueles anseios anteriormente dispostos e evoluí--los para o presente, aplicando com a conexão sobre o combate à into-lerância, já que ela se apresenta real, e, por isso, há uma necessidade de implantar ideias de combate ao ódio, nutridas de discursos das diferen-ças, da laicidade do Estado, da democracia brasileira e da preservação da dignidade da pessoa humana.

Ao se tratar da Constituição da República Federativa do Brasil, Mello (2018, p. 4) relata que:

Ao lado da estruturação do poder e da limitação diante da soberania popular, o constituinte deu especial ênfase à disciplina dos direitos

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fundamentais, todos gravitando em torno da dignidade da pessoa humana. Sem tanta ambição científica, é um projeto político de res-gate imediato da democracia, de afirmação permanente da liberdade e da igualdade, de transformação social a médio e longo prazos. É uma Constituição ousada, pretensiosa, mas passível de ser concre-tizada. Sem romantismo, tem-se uma história de êxito. Um projeto bem-sucedido!

Mayer (2008 apud Migalhas, 2008) dispõe que uma das maiores conquistas da Carta foi o estabelecimento do Estado Democrático de Direito:

O cidadão se sentiu seguro e protegido diante do Estado. Muita gen-te reclama por ser uma Carta muito detalhista. Mas isso é, de certa forma, muito bom, porque mais assuntos se tornaram constitucio-nais e realmente ajudaram na transformação histórica e social do Brasil.

No sistema jurídico brasileiro, compete ao STF – Supremo Tribunal Federal – zelar pelos direitos e pelas garantias individuais, permitindo o exercício direto da cidadania e consagrando os princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Por isso, muitos o denominam como guardião da Constituição.

Como a judicialização foi mais acentuada no país, diante da Consti-tuição Federal de 1988, buscando a inserção de direitos após a retomada da democracia, em um cenário que se tem ausência de políticas públicas efetivas ou soluções extrajudiciais para a resolução de conflitos, é utili-zado o ativismo judicial para assegurar direitos e garantias fundamen-tais (ROSA, 2020, p. 41-42).

Existe um crescente número de demandas judiciais em todo o país, e, conforme divulgação do CNJ, “o primeiro grau de jurisdição é o segmento mais sobrecarregado do Poder Judiciário e, por conseguinte, aquele que presta serviços judiciários mais aquém da qualidade deseja-da” (PRIORIZAÇÃO...).

Há um histórico no país de intensa judicialização, inserindo-se na cultura dos brasileiros. Isso também adveio com a Constituição de 1988, que proporcionou o acesso à justiça, que possui conceito e apli-

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cação amplamente difundido. Registre-se o comentário de como deve ser compreendido:

O Acesso à Justiça deve ser compreendido, assim, como o acesso obtido, alcançado, tanto por intermédio dos meios alternativos de solução de conflitos de interesses, quanto pela via jurisdicional e das políticas públicas, de forma tempestiva, adequada e eficiente, realizando uma ordem de valores fundamentais e essenciais que in-teressam a toda e qualquer pessoa. É a pacificação social com a re-alização do escopo da justiça. Em se tratando de jurisdição estatal, a cargo do Poder Judiciário, a tutela jurisdicional, a ser ministrada pelo Estado-juiz, deve ser voltada para a realização da justiça. É a justa composição do conflito de interesse ou da realização do direito violado ou ameaçado. (RUIZ, 2018, grifo no original).

Considerando a grande demanda de conflitos submetidos ao Poder Judiciário, juntamente com a ideia de acesso à justiça, e a morosidade também do Poder Legislativo, quando das legislações, uma vez que, muitas vezes, a realidade atual, com o advento da tecnologia e de novas formas de se relacionar e de se fazer obrigações, são diversas daquelas elencadas em lei, ou, diante da ausência de previsões, surge com força o termo de ativismo judicial.

Para Barroso (2018, p. 235):

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, nem sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios.

Assim, o ativismo judicial entra em foco quando há um descolamen-to entre a classe política e a sociedade quando determinadas demandas sociais desejam ser atendidas de maneira efetiva. O Poder Judiciário, portanto, potencializa o texto constitucional para preencher as lacunas quando há omissões. Essa é uma tendência para expandir a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico, sobretudo os fundamentais, produzindo a eficácia da norma.

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Por derradeiro, sabe-se que os conceitos de Estado Democrático de Direito, Democracia e Acesso à Justiça se complementam de forma har-mônica, porque somente terá acesso à ordem jurídica quem recebe a justiça. E recebê-la significa ser admitido em juízo e, além disso, com a participação não somente processual, mas também social, para que aquele provimento jurisdicional seja em conformidade com os valores da sociedade. Esses são os contornos do que se tem como um processo justo que todos desejam, uma vez que ele é composto pela efetividade das garantias previstas no ordenamento jurídico, com a disposição dos meios para atingir esses resultados.

5. CONCLUSÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por meio de movimentos que canalizaram suas expectativas, oriundos de todos os segmentos da sociedade, é a representação da consolidação da de-mocracia no país.

O texto constitucional que gravita em torno do princípio da dignida-de da pessoa humana tem por intuito uma sociedade pluralista e sem preconceitos, e efetivar esses valores do Estado Democrático de Direito requer interações recíprocas entre as instituições.

A necessidade de uma reação institucional é veemente, pois a intole-rância é antidemocrática e, por uma conclusão lógica, inconstitucional, uma vez que é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

É curioso refletir que, em anos passados, as pessoas foram às ruas pela normalização democrática do país, com reivindicação de eleições diretas para eleição do Presidente da República, enquanto, na atualida-de, se vê o oposto, com manifestações que requerem intervenção mili-tar, fechamento do Congresso Nacional e, por consequência, a supres-são das instituições fundantes do Estado Democrático de Direito no Brasil.

A intolerância é alimentada com acusações insensatas e bravatas vir-tuais, mas não encontra amparo no Estado Democrático de Direito, já que tolhe a liberdade de expressão, falseando a representação popular

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e, por consequência, os representantes passam a atender interesses não democráticos, o que se distancia da vontade real dos representados.

Historicamente, a luta pela democracia é, também, pela liberdade po-lítica, com a participação da população nas funções e/ou nos poderes do Estado, principalmente no Legislativo e Executivo. O contexto de lutas reafirma os valores relacionados com o Estado Democrático de Direito.

Entretanto, passadas décadas da promulgação da Constituição brasi-leira, constata-se que, para além das conquistas galgadas, há muito ca-minho para o Estado brasileiro percorrer, com vistas à implementação de efetivas políticas voltadas à sociedade.

O Poder Judiciário tem assumido grande protagonismo na imple-mentação de ações estatais almejadas pela sociedade em diversas áreas de atuação do Estado, quando se mostram insuficiente pelos indivídu-os. Assim, o aprofundamento dos preceitos democráticos, voltados à concretização das promessas constitucionais, é um caminho útil a ser trilhado para os próximos anos.

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Recebido em: 01/04/2021Aprovado em:10/08/2021

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A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: IMPACTOS E

INOVAÇÕES

THE PERFORMANCE OF BRAZILIAN JUSTICE SYSTEM DURING THE COVID-19 PANDEMIC: IMPACTS AND

INNOVATIONS

Karine Jacinto Farias Pacheco da Silva1

Resumo: A pandemia de COVID-19 causou impactos consideráveis sobre todos os setores da sociedade, entre eles saúde, educação, eco-nomia, entre outros. A necessidade de distanciamento social visando reduzir a velocidade de disseminação do vírus fez com que os sistemas judiciários do mundo tivessem que se readequar às novas demandas sem deixar de prestar os serviços de acesso à justiça que são direito dos cidadãos. Diante dessa nova realidade mundial, este estudo foi desen-volvido com o objetivo de verificar as alterações na atuação do siste-ma judiciário brasileiro frente à pandemia de COVID-19. Procedeu-se de uma revisão de literatura com base em estudos nacionais e interna-cionais. Somente artigos publicados no período de 2016 a 2021 foram considerados elegíveis. Em uma sociedade na qual a informação e as tecnologias fazem parte do cotidiano de pessoas, empresas, governos, enfim, de toda a sociedade, o Poder Judiciário não pode deixar de ade-rir ao seu uso, pois essas tecnologias representam avanço, garantia de acesso, mesmo em situações de risco para a saúde, agilidade, economi-cidade e acessibilidade a todos. No Brasil, as inovações vinham sendo lentamente incorporadas e, em face da pandemia, tiveram que ocorrer

1. Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); Especialista em Direito Público pela ESMESC/AMC/FURB; Pós-graduanda em Direito Aplicado pela ESMESC/AMC/FURB; Mediadora de Conflitos do TJSC; Consteladora Familiar e Organizacional pelo Instituto Ipê Roxo; Re-sidente Judicial na 2ª Vara Criminal da Comarca de Tubarão – SC. E-mail: [email protected]

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repentinamente, trazendo como desvantagem a falta de preparação de muitos servidores para seu uso, porém isso não impede que resultados positivos sejam alcançados.

Palavras-chave: COVID-19. Sistema judiciário. Impactos. Inovações.

Abstract: The COVID-19 pandemic caused considerable impacts on all sectors of society, including health, education, economics, among others. The need for social distance in order to reduce the speed of the spread of the virus meant that the judicial systems of the world had to readjust to the new demands, while remaining the services of access to justice that are the citizens’ right. In view of this new global reality, this study was developed with the objective of verifying changes in the per-formance of the Brazilian judicial system in the face of the COVID-19 pandemic. A literature review was carried out based on national and international studies. Only articles published in the period from 2016 to 2021 were considered eligible. In a society in which information and technologies are part of the daily lives of people, companies, govern-ments, in short, the entire society, the Judiciary cannot fail to adhere to its use, as these technologies represent advancement, guarantee of access even in situations of risk to health, agility, economy and accessi-bility for all. In Brazil, innovations were slowly being incorporated and in the face of the pandemic they had to happen suddenly, bringing as a disadvantage the lack of preparation of many servers for its use, howev-er, this does not prevent positive results from being achieved.

Keywords: COVID-19. Justice system. Impacts. Innovations.

1. INTRODUÇÃO

Os primeiros casos registrados de COVID-19 em Wuhan, na China, foram verificados em dezembro de 2019 como uma pneumonia severa, da qual o agente causador ainda era desconhecido, acometendo traba-lhadores do mercado de frutos do mar. Tamanha a capacidade de con-tágio da doença que esta ultrapassou as fronteiras chinesas e atingiu todos os países do mundo, reconhecida a situação de pandemia em 11 de março de 2020 (SOLTANI et al., 2020, tradução nossa).

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A percepção quanto à rápida disseminação, transmissão comunitária acelerada e gravidade de muitos casos, inclusive conduzindo ao óbito, fez que com os países do mundo adotassem protocolos desenvolvidos de acordo com suas especificidades para reduzir a velocidade de contá-gio e evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde, que ainda não estavam preparados para o atendimento de números expressivos desses casos. Além da falta de conhecimentos sobre a doença, inexistência de proto-colo de tratamento efetivo e necessidade de leitos de atendimento inten-sivo para intubação, muitos sistemas de saúde já vivenciavam situações caóticas e, assim, iniciaram-se os esforços para refrear a transmissão (CASCELLA et al., 2020, tradução nossa).

A transmissão ocorre pelo contato com o vírus, seja de forma direta (de uma pessoa para outra), por gotículas de saliva decorrentes de es-pirros e tosse, como indireta, por contato com objetos e superfícies con-taminados, levando-se as mãos ao rosto, permitindo que o vírus adentre às mucosas. A falta de tratamento exige medidas de prevenção, como distanciamento social, isolamento social (quando possível), higieniza-ção constante das mãos e superfícies, além do uso de máscaras (CAS-CELLA et al., 2020, tradução nossa).

Nesse ínterim, muitos países optaram pelo fechamento dos serviços não essenciais por algum período, outros limitaram o tempo de atendi-mento e o número de pessoas nos espaços compartilhados. Tais medi-das foram consideradas essenciais para reduzir a velocidade com que o vírus se propagava, porém causaram impactos consideráveis em di-ferentes âmbitos da sociedade, como na educação, na economia etc. (NICOLA et al., 2020, tradução nossa).

Assim como outras áreas, o sistema de justiça sofreu os impactos da pandemia em função da necessidade de proteger cidadãos e equipes de trabalho do risco de contaminação. Os desafios nessa área foram muitos, já que as demandas judiciais são essenciais em grande parcela desses serviços não poderiam ser interrompidos, de modo que outras formas de resolução de conflitos tiveram de ser elaboradas, evitando-se o contato pessoal entre as partes (SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

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Enquanto alguns locais viram as demandas crescer expressivamente, outros verificaram quedas consideráveis. No entanto, em todas as situa-ções, o atendimento às demandas não poderia ser postergado pela falta de conhecimentos quanto ao possível fim da pandemia. Desse modo, os tribunais de justiça de todo o mundo passaram a estudar formas de manter suas atividades, garantindo a segurança dos envolvidos, e os sistemas de resolução virtual passaram a ser aplicados (SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

Diante dessa nova realidade, o presente estudo tem o objetivo de verificar as alterações na atuação do sistema judiciário brasileiro fren-te à pandemia de COVID-19. Buscou-se compreender quais foram os impactos da pandemia sobre o sistema judiciário brasileiro em função de sua estrutura, recursos e preparação para tal situação, bem como das inovações adotadas.

Um ponto a ser destacado é que, em todo o mundo, as mídias en-fatizaram amplamente os impactos da pandemia de COVID-19 sobre os sistemas de saúde, talvez em razão da visibilidade quanto às falhas ocorridas e à falta de leitos, de medicamentos, de profissionais etc. No entanto, o acesso à justiça também foi consideravelmente impactado e, mesmo assim, pouca ou nenhuma atenção foi dedicada a essa situação (SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

A seleção do tema se deu em face de se tratar de uma questão extre-mamente atual, para a qual nenhuma nação estava preparada, porém levou todos os países a buscarem formas de compreender e atuar ade-quadamente com as novas limitações e possibilidades em todas as áreas sociais, inclusive na área de justiça.

Procedeu-se de uma revisão de literatura com base em estudos nacio-nais e internacionais. Para identificar e selecionar os artigos elegíveis, as bases eletrônicas de dados pesquisadas foram: Literatura Latino-A-mericana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Health Infor-mation fromthe National Library of Medicine (Medline), PubMed, Web of Science, Scopus, biblioteca eletrônica Scientific Eletronic Library On-line (SciELO) e Google acadêmico. Somente artigos publicados no período de 2016 a 2021 foram considerados elegíveis.

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Para a busca de artigos, os descritores aplicados foram:

Coronavírus – coronavirus infection;COVID-19 – COVID-19;Pandemia – Pandemics; eSistema judiciário – Justice system.

Esses termos foram aplicados de forma individual com o intuito de obter dados para esclarecer cada um dos temas, mas também associados (mais de um termo), para identificar quais estudos avaliaram a questão dos impactos da pandemia de COVID-19 sobre o sistema judiciário.

O estudo foi formulado em tópicos visando sua organização e melhor evolução do tema. O primeiro tópico ressalta a COVID-19; o segundo encampa os impactos da pandemia sobre o sistema judiciário no mundo; e o terceiro destaca impactos da pandemia sobre o sistema judiciário no Brasil e os esforços realizados, visando manter sua atuação adequada às demandas sociais. Por fim, são ressaltadas as conclusões alcançadas e as referências consultadas.

2. COVID-19

Em dezembro de 2019, foram identificados, em Wuhan, na China, casos de pneumonia de etiologia desconhecida. Como o número de in-divíduos com a condição aumentou, estudos para identificar a origem da infecção se intensificaram, e o agente etiológico foi identificado como sendo da família Coronaviridae, gênero Coronavírus (CoV) (GANESH et al., 2021, tradução nossa). Rapidamente, a doença espalhou-se pelo mundo, com início da transmissão comunitária, sem histórico de via-gens entre os pacientes contaminados, e foi declarada pandêmica em março de 2020 (SOLTANI et al., 2020, tradução nossa).

Holand, Zaloga e Friederici (2020, tradução nossa) esclarecem que o nome do vírus foi definido em função de seu aspecto com várias espí-culas, que geram uma imagem microscópica semelhante a coroa solar durante um eclipse. Como ocorre com outros tipos de vírus, o avanço da doença permitiu identificar que novas cepas surgiram, com sintomas

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de adoecimento, fatores de risco e gravidade diferenciados. Os corona-vírus são conhecidos de longa data, comuns em diversos mamíferos, mas ao homem tendem a causar apenas uma infecção leve, semelhante a uma gripe. Porém, surtos graves de doenças por coronavírus já foram relatados anteriormente (SALEEM et al., 2020, tradução nossa).

O surto atual causa Síndrome Respiratória Aguda Grave-Coronavírus-2 (SARS-CoV-2), levando à chamada Doença por Coronovírus-2019 (CoronavirusDisease 2019 - COVID-19) (GANESH et al., 2021, tradu-ção nossa). Deve-se ressaltar que, nos últimos 20 anos, os CoVs causa-ram epidemias graves no Leste Asiático e no Oriente Médio. Em 2002, ocorreu a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Já, em 2012, foi relatada a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), ambas tendo como agentes etiológicos os coronavírus em cepas específicas (DHAMA et al., 2020, tradução nossa).

Na COVID-19, os sintomas e a gravidade são fatores diretamente in-fluenciados pelo sistema imunológico de cada indivíduo. Pessoas com sistemas imunológicos fortalecidos podem passar pela doença sem sin-tomas, enquanto aquelas com comprometimentos imunológicos, como idosos, obesos, pessoas com doença renal crônica, problemas cardio-vasculares e cardiorrespiratórios, câncer, HIV, entre outras condições, podem evoluir rapidamente para a necessidade de intubação e até mes-mo o óbito (STRIZOVA et al., 2021, tradução nossa).

Wilder-Smith e Freedman (2020, tradução nossa) afirmam que o con-tágio da doença ocorre de modo rápido e fácil, especialmente em am-bientes fechados e nos quais há contato direto entre as pessoas sem os devidos cuidados de higiene e uso de máscaras. Nesse sentido, manter o distanciamento social é medida essencial para o controle epidemioló-gico da condição. O isolamento dos doentes, ou seja, manter as pesso-as acometidas pela condição afastadas das demais, é essencial, porém, como algumas pessoas são assintomáticas (mas seguem transmitindo), evitar o contato social, nesse período, tornou-se a melhor medida pre-ventiva possível.

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Relevantes os esclarecimentos de Brasil, Cavalcante e Cardoso (2020, p. 108) a respeito das medidas de distanciamento social para o controle da propagação da COVID-19, enfatizando que:

A referida doença, apesar da letalidade baixa, atinge rapidamente a milhares de pessoas, originando, em alguns casos, problemas pul-monares graves, sendo necessário a internação hospitalar e o uso de ventiladores pulmonares. Ante a possibilidade de contaminação rápida de pessoas, fez-se necessário o controle da propagação da doença, para que não houvesse um colapso do sistema de saúde, que, por sua vez, não suportaria boa parte da população utilizando os seus serviços no mesmo período de tempo.

Assim, a interrupção de boa parte das atividades ocorridas no con-texto social se deu com o foco central no controle da contaminação ou, pelo menos, na redução da velocidade com que isso ocorre.

Outro ponto que merece atenção refere-se ao período de incubação da doença, compreendido entre a contaminação e o início dos sintomas. Quando se tem uma visão específica do período de incubação de uma condição, é possível desenvolver medidas de atenção e prevenção de sua disseminação, porém, no caso da COVID-19, por se tratar de uma doença relativamente recente, os dados ainda são bastante restritos e heterogêneos, com uma variação de 1 a 14 dias. No período inicial dos sintomas, podem parecer outras condições, como resfriados e alergias, e, assim, ocorre a contaminação de outrem sem que o hospedeiro saiba que está colocando outras pessoas em risco, caso não esteja isolado ou afastado do convívio social (ELIAS et al., 2021, tradução nossa).

A pandemia da COVID-19, em 21 de abril de 2021, já havia alcan-çado 142.557.268 pessoas (casos confirmados), com 3.037.398 óbitos, e 889.827.023 doses da vacina foram administradas em todo o mun-do. Do total de casos confirmados, 60.062.728 ocorreram nas Américas (região com a maior incidência no mundo). No Brasil, são 13.973.695 casos confirmados, com 374.682 óbitos e 32.394.085 doses da vacina administrada até 21 de abril de 2021 (WHO, 2021).

Diante do exposto, compreende-se que não é possível saber quem são os indivíduos com ou sem risco de estarem contaminados pela CO-

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VID-19, inclusive pelo fato de que muitos sequer apresentarão sinto-mas. O período de incubação, diferente para cada indivíduo, também altera os padrões de risco de contágio.

Nessa seara, o distanciamento social é uma medida preventiva essen-cial para a segurança de todos, no entanto com impactos importantes para diferentes setores da sociedade. Neste estudo, o foco recai sobre o sistema judiciário brasileiro em função da necessidade de alteração dos padrões de atendimento presencial e número de pessoas atendidas nos tribunais brasileiros. Porém, considera-se relevante apresentar dados de tal situação no mundo antes de adentrar ao cenário brasileiro.

2.1 Impactos da pandemia de COVID-19 sobre o sistema judiciário no mundo

Pandemias são situações nas quais doenças infectocontagiosas ultra-passam as fronteiras de seu local de origem e chegam a diversos terri-tórios no mundo. Muitos países mantêm protocolos de ação em caso de situações de pandemia e, assim, conseguem atuar de forma menos problemática com uma situação semelhante à atual. Todavia, a maioria dos locais não conta com planos emergenciais para tais situações e, des-se modo, os impactos foram consideráveis e atingiram todos os setores sociais (WILDER-SMITH; FREEDMAN, 2020, tradução nossa).

Manter serviços essenciais em atuação, sempre prezando pela segu-rança de todos os envolvidos, deve ser uma preocupação central quando do desenvolvimento de políticas de ação e protocolos voltados para si-tuações pandêmicas. A necessidade de serviços de justiça não se encer-ra mediante situações de agravos em saúde amplamente disseminados, como o cenário atual. De fato, existem alguns conflitos que se tornam ainda mais comuns nesses períodos, como a violência doméstica e ou-tras condutas ofensivas (BALDWIN et al., 2020, tradução nossa; LIU; ZHANG; WANG, 2021, tradução nossa).

As rotinas diárias de todos os setores da sociedade foram impacta-das em decorrência da pandemia de COVID-19, gerando esforços para que opções fossem desenvolvidas e permitissem reduzir os prejuízos

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decorrentes de uma nova realidade de isolamento e/ou distanciamento. Atividades em grupo estão proibidas, especialmente aquelas nas quais os grupos estão em espaços fechados. Dessa forma, muitos serviços, públicos e privados, tiveram que se readequar e encontrar alternativas seguras e efetivas ao mesmo tempo. No âmbito da justiça, o momento atual trouxe consigo diversas limitações para as quais estão disponíveis opções, porém muitas delas desconhecidas e complexas. O intuito é proteger as pessoas que atuam no sistema de justiça, bem como aquelas que recorrem a ele para encontrar soluções em conflitos diversos (MIL-LER; BLUMSTEIN, 2020, tradução nossa).

Dados apontam que os tribunais pelo mundo se esforçam continua-mente para manter os parâmetros de segurança de suas equipes e dos cidadãos, sem que as operações necessárias e atendimentos gerais se-jam cancelados ou postergados. Para isso, o cenário mais comum foi a alteração do padrão de atendimento presencial para um atendimento virtual, por meio das ferramentas de informação e comunicação. Ao mesmo tempo em que as instalações físicas são fechadas para evitar a circulação do vírus, atendimentos seguem ocorrendo, porém por meio de reuniões e audiências virtuais. Existem casos de atendimento híbri-do, presencial e virtual de acordo com as especificidades de cada tipo de demanda (BALDWIN et al., 2020, tradução nossa).

Os tribunais em todo o mundo tiveram que encontrar formas de se-guir com suas atividades, já que o acesso à justiça continua sendo cru-cial, mesmo durante períodos de pandemia, entretanto tiveram que dar maior atenção a questões como prevenção e saúde de seus colabora-dores e de todos os cidadãos que buscam esses serviços. Alguns tribu-nais já realizavam parte de suas atividades pela metodologia virtual, em rede, enquanto outros centralizavam suas atividades de forma pre-sencial, de modo que os impactos e as dificuldades encontradas foram diferentes em locais diversos (SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

Muito se falou e se fala sobre o direito de acesso à saúde, porém o acesso à justiça também é de valor essencial no período de pandemia, principalmente quando do acesso à justiça depende a garantia de direi-

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tos, como atendimento e serviços de saúde. Na verdade, a ligação entre saúde e justiça é considerável, e não se pode priorizar uma e ignorar outra. Muitas populações menos favorecidas precisam recorrer à justiça para que sejam atendidas de forma adequada e rápida, evitando o agra-vamento das condições. Contudo, se o sistema judiciário interromper suas atividades, isso não será possível (BHASKAR et al., 2020, tradu-ção nossa; SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

A pandemia da COVID- 19 trouxe consigo inegáveis dificuldades que tiveram que ser conhecidas, compreendidas e avaliadas, para as quais a busca de soluções se tornou ampla e constante e, desse modo, não se pode afirmar que foi uma ocorrência positiva. Relevante destacar, toda-via, que se conduziu ao remodelamento cultural, de governança, na área de política, economia, crimes e interações sociais. No entanto, é preciso reconhecer que muitos serviços evoluíram amplamente em face dos de-safios decorrentes da situação da pandemia, reavaliaram suas ativida-des e desenvolveram formas de seguir, realizando-as de modo eficiente, com segurança, pensando nas necessidades e nos direitos da população, como ocorre com os sistemas judiciários de boa parte dos países, que se readequaram a uma realidade virtual (LIU; ZHANG; WANG, 2021, tradução nossa).

No presente, as tecnologias vêm sendo usadas de forma ampla para que se assegure o atendimento das demandas judiciais de todos os cida-dãos, porém sem que isso represente impactos para a saúde em função da elevação dos riscos de transmissão da COVID-19. As mudanças para o sistema judiciário foram muitas e, em sua maioria, podem ser manti-das com bons resultados, mesmo quando a pandemia estiver sob con-trole, elevando a praticidade e a agilidade desses serviços (SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

A necessidade de os sistemas judiciários, em todo o mundo, ava-liar as dificuldades existentes e remodelar suas atividades com foco no novo cenário vivenciado atualmente é, sem dúvidas, inquestionável e de grande importância. Porém, os estudos sobre o tema devemencon-trar formas de demonstrar que esse acesso garantido tem relação direta também com a saúde para que se amplie a compreensão de que a justiça

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atua em todas as áreas sociais e, desse modo, qualquer área impactada trará resultados para a justiça (BHASKAR et al., 2020, tradução nossa; SOURDIN; LI; MCNAMARA, 2020, tradução nossa).

Assim como impactos foram percebidos nos sistemas judiciários em todo o mundo, o cenário brasileiro também teve que passar por adap-tações e mudanças para que o atendimento aos cidadãos pudesse ser mantido.

2.2 Impactos da pandemia de COVID-19 sobre o sistema judiciário no Brasil

No momento em que foi declarada a pandemia de COVID-19, todos os países do mundo passaram a direcionar seus esforços para a altera-ção das atividades na área de saúde, educação, trabalho etc. (SÁ, 2021). Não se pode afirmar que os impactos foram menores ou maiores nas diferentes regiões. O que ocorre é que algumas possuíam estruturas me-lhores e mais bem preparadas que outras. Em todas as situações, porém, as alterações não ocorreram de forma gradativa; foram imediatas por não haver outro meio de agir diante da pandemia que não se adequar (ANTUNES; FISCHER, 2020, p. 2).

Para Lima e Ramos Neto (2020, p. 23), uma doença infectocontagio-sa, com potencial de causar óbitos e que se espalhou rapidamente por todo o mundo, gerou uma crise na área de saúde, assim como em todas as outras áreas sociais, tornando-se a responsável pela necessidade de adoção de medidas rápidas de resposta, inclusive dentro do Poder Ju-diciário.

Sobre a velocidade e agilidade com que as mudanças ocorreram em todo o mundo, inclusive no Brasil, ressalta-se que:

Uma situação sem precedentes se instaurou, conduzindo a maioria das organizações (públicas e privadas) a pedirem aos seus trabalha-dores que trabalhassem remotamente, a partir de casa. Se o risco da COVID-19 não existisse, não haveria uma implementação de práticas de teletrabalho de forma ágil e massiva como a ocorrida (ANTUNES; FISCHER, 2020, p. 2).

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Compreende-se, desse modo, que uma crise na área de saúde fez com que todos os sistemas sociais tivessem que ser repensados e readequa-dos, porém, sem muito tempo para planejamento e implementação das ações, uma resposta imediata foi exigida por uma situação de risco para todos os cidadãos.

De forma semelhante Brasil, Cavalcante e Cardoso (2020, p. 112) enfatizam que a percepção quanto à rápida disseminação da COVID-19 e em face da ocorrência de alguns casos relativamente graves, para os quais o sistema de saúde brasileiro não estava preparado, muitas ati-vidades passaram de presenciais para virtuais, como as atividades do Poder Judiciário. Desse modo, “[...] de forma repentina, sem planeja-mento ou qualquer investimento prévio, os servidores, estagiários e ma-gistrados tiveram que modificar, abruptamente, sua rotina de trabalho, sem qualquer capacitação para tal. Passando o teletrabalho, que antes era exceção, a regra”.

Em face dos riscos envolvidos com a doença, o judiciário também começou a buscar formas de atender às demandas dos cidadãos e garan-tir o acesso à justiça, ao mesmo tempo em que assegura a proteção dos funcionários e dos cidadãos. Para isso, os atendimentos presenciais fo-ram interrompidos, e a metodologia de telecomunicação entre as partes envolvidas foi a ferramenta encontrada. A conciliação virtual demons-trou ser importante e efetiva, porém o sistema judiciário brasileiro, em sua maioria, não estava completamente equipado e preparado para isso e, consequentemente, o percurso foi longo e segue em construção dia-riamente (SÁ, 2021).

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020, p. 9-11) procedeu um levantamento junto aos tribunais brasileiros e identificou que 98% dos tribunais que responderam à pesquisa editaram normas quanto ao tra-balho remoto no período de pandemia, o que não ocorreu somente no TJM-MG. Dentre as normas editadas, 64% não estabeleceram critérios de mensuração/controle de produtividade. Dos 36% dos órgãos regula-mentaram alguma forma de mensuração/controle de produtividade, em 10% dos casos a normativa aplica-se apenas para servidores e em 3% se estabeleceu obrigatoriedade para magistrados e servidores da área judi-

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ciária. Antes da pandemia, somente 5% da força de trabalho dos tribu-nais participantes atuava em regime de trabalho remoto, atividade que recebeu um acréscimo de 79%, ou seja, atualmente a parcela de 84% da força de trabalho atua de forma remota, 10% desses servidores seguem atuando de forma presencial e 6% tiveram as atividades suspensas em função de incompatibilidade com o trabalho remoto.

Destaca-se que 97% dos trabalhadores em regime remoto têm aces-so à VPN – Virtual Private Network, de modo que conseguem acessar sistemas e rede do órgão no qual atuam. Entre os entrevistados, 41% afirmam que o acesso é bom, mas medidas corretivas tiveram que ser adotadas para isso, enquanto 47% afirmam que sequer foi necessário adotar medidas corretivas para o bom funcionamento do sistema, e so-mente 12% relatam instabilidade ou lentidão (CNJ, 2020, p. 14).

Em 2019, 84% dos processos no Poder Judiciário eram eletrônicos, a tramitação eletrônica ocorre em 100% dos novos casos no TST e 97,7% nos TRTs; na justiça federal 81,8% são eletrônicos, percentual que che-ga a 82,6% na justiça estadual. Em uma análise de todo o acervo de processos, 27% ainda encontram-se fisicamente armazenados, somente 13 de 62 tribunais (19%) declararam um percentual abaixo de 90% de acervo eletrônico, sendo que, no TJES, 21% eletrônico;no TJRS, 23%; no TJMG, 31%; no TJPA, 38%; no TJSP, 53%; TJPE, 62%; no TJCE 79%; no TJSC, 84%; no TRF-1, 37%; no TRF-5, 86%; no TJM-SP, 30%; no TJM-MG57%; e no TRT-10, 83% (CNJ, 2020, p. 23).

Arena, Porto e Campos (2020, p. 11) lecionam que:

Direito e tecnologia estão atuando de forma cada vez mais con-junta no cenário mundial e no Brasil já temos iniciativas digitais no Poder Judiciário, a exemplo do Processo Judicial Eletrônico, as quais foram impulsionadas com o estado de calamidade, decorrente da pandemia de Covid-19. Isso porque o avanço da pandemia não pode consistir em barreira para o acesso à justiça e materialização de direitos.

Esses dados demonstram que, mesmo antes da pandemia, havia um esforço para maior utilização dos meios eletrônicos para abertura de processos e acervo destes, ainda que não houvesse sido alcançado um

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cenário de total virtualização. De forma semelhante, Sá (2021) enfatiza que os esforços para inserir as tecnologias de forma cada vez mais co-mum no Poder Judiciário brasileiro não se iniciaram depois da pande-mia. A nova situação, porém, exigiu maior agilidade e efetividade nessa conversão, da característica física para virtual. As iniciativas de uso das tecnologias tiveram que ser aceleradas, pois passaram a se configurar como a alternativa mais rápida e com menores impactos à eficiência que deve ser mantida.

Assim, o cenário de pandemia apenas reforçou um laço entre o direi-to e a tecnologia que já vinha sendo estabelecido anteriormente.

Em 17 de novembro de 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45 (chamada de reforma do Poder Judiciário), apresentada pelo De-putado Hélio Bicudo ainda em 1992, ou seja, um prazo de 13 anos para sua tramitação e aprovação. A EC apresentou inúmeras e importantes inovações processuais com razoável duração do processo e celeridade processual. Diante dessas novas exigências, o uso das tecnologias aden-trou paulatinamente às atividades do sistema judiciário (LENZA, 2021, p. 776).

No cenário da pandemia, porém, os esforços iniciados em 2004 ti-veram que ser aplicados repentinamente. Muitos tribunais postergaram suas audiências, pois havia a ideia de que a situação poderia ser con-trolada rapidamente. Com o passar dos dias, contudo, ficou evidente que a pandemia seria duradoura. Desse modo, os tribunais tiveram que voltar a realizar suas atividades para evitar prejuízos ainda maiores à população (BRASIL; CAVALCANTE; CARDOSO, 2020, p. 100-101).

Dados apontam que o teletrabalho tem o potencial de aumentar a produtividade e a qualidade dos serviços prestados. Por outro lado, de-ve-se ressaltar que é exigido dos trabalhadores nesse novo sistema de atuação distante dos tribunais que norteiem suas ações justamente para esses resultados: elevação de produtividade com garantia de qualidade (ANTUNES; FISCHER, 2020, p. 5).

Na concepção de Tela (2020, p. 143), as sessões virtuais atendem às demandas crescentes, o que não vinha sendo possível na sistemática tradicional. As mudanças adotadas estão, nesse sentido, contribuindo

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para que o sistema judiciário obtenha resultados positivos, o que gera maior satisfação dos jurisdicionados, mesmo durante um momento de preocupação e riscos na área de saúde. Buscas à justiça sempre ocor-rerão, seja em momento de pandemia ou não, mas, em uma situação como a atual, a resposta precisa ser efetiva para que, além das questões de saúde, não se crie um novo problema, a falta de acesso à justiça, que é direito de todos os cidadãos.

As alterações no Poder Judiciário decorrentes da pandemia de CO-VID-19 foram inúmeras, implementadas por meio de diferentes esfor-ços, algumas com resultados mais lentos que outras. Entretanto, é es-sencial destacar que não ocorreram comprometimentos na celeridade, na produtividade e no que tange a busca por presteza e eficiência nesses serviços. As partes das demandas seguem sendo atendidas, todavia o canal é virtual na maioria das vezes. Audiências, quando presenciais, ocorrem sob a manutenção de protocolos criteriosos de segurança (SÁ, 2021).

Tela (2020, p. 144-145), sobre as vantagens das audiências virtu-ais, cita a não paralização do processo, ao contrário do que ocorreu em muitos serviços por algum tempo, em razão da superação das barreiras geográficas, pois a distância entre as partes não impede a realização da audiência, da acessibilidade, isso porque portadores de necessidades especiais poderão acompanhar a audiência sem maiores dificuldades (alguns aplicativos geram legendas automáticas, por exemplo) ecom economia (eliminam-se os gastos com transporte, alimentação etc.); garantia do distanciamento social necessário; maior equilíbrio entre as partes, sem que uma delas se sinta pressionada pela presença da outra; efetivo aproveitamento de tempo; e ampliação do acesso à justiça.

Nesse ponto, Leal e Pereira (2020, p. 36-37) ressaltam que o papel do próprio juiz se expandiu dentro da pandemia, pois cabe aos magistrados analisar medidas governamentais voltadas ao controle da doença e à oferta de serviços de saúde. Os juízes precisam buscar conhecimentos cada vez mais aprofundados sobre as especificidades científicas da pan-demia para que possam tomar as decisões mais adequadas. Tudo isso

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também ocorre pela via virtual, com ampla oferta de dados para análise e compreensão dos magistrados todos os dias.

Para Tela (2020, p. 143), a pandemia é uma situação de crise, porém sua ocorrência fez com que o sistema judiciário do país tivesse que en-contrar formas para seguir com suas atividades sem elevar riscos, o que forçou todos os envolvidos a fazerem uso de inovações tecnológicas focadas nesse intuito. Os profissionais envolvidos, habilitados ou não para o uso dessas ferramentas inovadoras, não tiveram opção a não ser se adaptarem rapidamente. Essa adaptação, contudo, seguirá sendo útil mesmo quando a crise pandêmica for resolvida.

Por mais necessária que fosse a interrupção das atividades, servin-do como medida preventiva à infecção por COVID-19, o que ocorre é que os servidores não estavam preparados para essa nova realidade. Portanto, por mais modernas e avançadas que sejam as tecnologias dis-ponibilizadas, os desafios foram e ainda são amplos, exigindo que haja preparação das pessoas para seguirem com essas atividades no futuro, conforme Brasil, Cavalcante e Cardoso (2020, p. 112).

O CNJ estabeleceu o plantão extraordinário, definindo que, em todo o território nacional, deveria ocorrer a continuidade do funcionamento do Judiciário, atendendo às demandas nacionais mesmo em um cenário pandêmico. Para isso, é preciso “[...] uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à justiça no período emergencial de pandemia; tudo visando ao objetivo macro, qual seja, a prevenção do contágio pelo novo Coronavírus (COVID-19)” (LIMA; RAMOS NETO, 2020, p. 25).

Adotar o regime de teletrabalho foi uma medida essencial para que o isolamento social pudesse ser mantido, sem prejuízo do direito de aces-so à justiça em decorrência de uma possível interrupção das atividades do Poder Judiciário. Os procedimentos judiciais foram virtualizados, e esforços para auxílio no uso dos programas informatizados ocorreram, ainda que não dentro de padrões de suficiência. Os resultados obtidos em diferentes tribunais ainda não são aqueles esperados para um alcan-ce total da celeridade processual, masjá se percebe um direcionamento

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adequado e importante, que deverá ser melhorado com o perpassar do tempo (BRASIL; CAVALCANTE; CARDOSO, 2020, p. 112).

De acordo com Arena, Porto e Campos (2020, p. 12), “em tempos de pandemia de Covid-19, a solução tecnológica foi a única alternati-va para a continuidade das atividades do Poder Judiciário, antecipando ainda mais a discussão sobre a necessidade da tecnologia no sistema de justiça”.

O acesso à justiça é direito de todos os cidadãos, ainda que o país esteja enfrentando uma situação de pandemia como a atual. Não há que se falar em garantia de direitos em uma nação na qual as pessoas não conseguem acessar ao Poder Judiciário para que conflitos diversos sejam adequadamente resolvidos (SIQUEIRA; LARA; LIMA, 2020, p. 27-28).

Nesse sentido, todos os esforços realizados para a continuidade das atividades do Poder Judiciário durante a pandemia, o uso das tecnolo-gias de informação e comunicação, o teletrabalho e as demais medidas adotadas, além de se configurarem como uma importante inovação a ser ainda mais desenvolvida e utilizada mesmo após o período de dis-tanciamento social, são medidas voltadas para a garantia de direitos dos cidadãos.

Por outro lado, existem desafios que precisam ser ressaltados como pontos que exigem resolução, entre eles, a dificuldade de acesso à in-ternet em determinadas regiões; falta de equipamentos modernos e fun-cionais para a realização das audiências; falta de espaços específicos, quando necessário; confiança (a falta de conhecimentos sobre as tec-nologias pode reduzir sua confiabilidade aos olhos das partes); perda da percepção das emoções que podem auxiliar na mediação em alguns casos; as partes sentem-se mais confiantes pela distância e podem agir de forma abusiva; falta de conhecimentos aprofundados dos servidores, cidadãos, advogados etc. sobre o uso dessas tecnologias;e instabilidade de acesso, que é uma queixa recorrente em alguns locais (TELA, 2020, p. 145-147).

Os dados elencados deixam evidente que o Poder Judiciário, apesar dos impactos da pandemia, poderá utilizar-se de metodologias e apren-

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dizados para que, no futuro, a celeridade processual torne-se ainda maior, tirando-se o maior proveito das ferramentas tecnológicas exis-tentes atualmente.

3. CONCLUSÃO

A pandemia de COVID-19 atingiu todos os países do mundo, geran-do um efeito severo sobre a saúde pública das nações, especialmente aquelas com menor disponibilidade de recursos e conhecimento de me-didas a serem adotadas em cenários de pandemias. Apesar da impor-tância da manutenção da saúde, o fato é que os litígios não deixam de ocorrer. O atendimento dessas disputas judiciais não pode ser interrom-pido sem uma data para retorno, já que não se sabe qual será a duração da pandemia. Desse modo, as tecnologias vêm sendo utilizadas em todo o mundo, assim como no Brasil, como um canal para que a prestação jurisdicional não deixe de ocorrer.

As audiências remotas permitem a audição on-line das partes, ou seja, elas não precisam se apresentar no tribunal para que sejam ouvidas e a audiência validada. Comparando-se com a via tradicional, a audiência remota é eficiente, desde que haja disponibilidade de ferramentas tec-nológicas, estabilidade da rede, aceitação e confiança das partes. Com isso, evita-se o risco de contaminação dos envolvidos, sem que deixem de ter suas demandas resolvidas.

Em uma sociedade na qual a informação e as tecnologias fazem par-te do cotidiano de pessoas, empresas, governos, enfim, de toda a socie-dade, o Poder Judiciário não pode deixar de aderir ao seu uso, pois essas tecnologias representam avanço, garantia de acesso mesmo em situa-ções de risco para a saúde, agilidade, economicidade e acessibilidade a todos. No Brasil, as inovações vinham sendo lentamente incorporadas e, em face da pandemia, tiveram que ocorrer repentinamente, trazendo como desvantagem a falta de preparação de muitos servidores para seu uso, o que não impede que resultados positivos sejam alcançados.

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Recebido em: 27/04/2021Aprovado em:10/08/2021

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AS INFLUÊNCIAS DO PACOTE ANTICRIME NAS PROGRESSÕES DE REGIME

THE INFLUENCES OF THE ANTI-CRIME PACKAGE ON REGIME PROGRESSIONS

Marcus Vinícius Fidélis Wagner Garbelotto1

Marília da Silva Araújo2

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo analisar os novos re-quisitos objetivos para a progressão de regime inseridos na Lei de Exe-cuções Penais por meio da Lei n. 13.964/2019, mais conhecida como “Pacote Anticrime”. Antes da reforma, o ordenamento jurídico contava com quatro requisitos objetivos diferentes para concessão da progres-são, a saber: (a) cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior, nos casos de condenados por crimes comuns; (b) cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena quando se tratar de crime hediondo, sen-do primário o apenado; (c) cumprimento de 3/5 (três quintos) da pena quando o condenado a crime hediondo for reincidente; e (d) cumpri-mento de 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior quando se tratar de apenada gestante, mãe ou responsável por criança com deficiência, independente da condenação. Contudo, a Lei n. 13.964/2019 alterou o art. 112 da Lei de Execuções Penais, criando oito novos patamares para a concessão da benesse, além de manter aquele em relação a mulheres mães ou gestantes, sem se ater à realidade penitenciária no Brasil, em que há superlotação e falta de vagas em todos os estados da federação.

1. Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá. Pós-graduando (es-pecialização) em Direito Público, convênio entre a Universidade Regional de Blumenau (FURB) e a Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Residente judicial. E-mail: [email protected]. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós--graduanda (especialização) em Direito e Processo Penal pela Academia Bra-sileira de Direito Constitucional. E-mail: [email protected]

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Tal situação tende a piorar com os novos patamares previstos. Ademais, apesar do seu viés punitivista, o Pacote Anticrime incorreu em diver-sos erros legislativos, criando lacunas que, em alguns casos, beneficiam apenados. Por fim, acredita-se que a reforma também perdeu a opor-tunidade de pacificar diversos outros temas envolvendo a progressão de regime debatidos nos últimos anos e completamente ignorados pelo legislador.

Palavras-chave: Progressão de regime. Pacote Anticrime. Crimes he-diondos. Sistema carcerário.

Abstract: This research aims to analyze the new objective requirements for the progression of regime included in the Criminal Execution Law through Law n. 13.964/2019, better known as the “Anti-Crime Pack-age”. Before the reform, the legal system had four different objective requirements for granting progression, namely: (a) fulfillment of 1/6 (one sixth) of the sentence under the previous regime, in cases of those convicted of common crimes; (b) serving 2/5 (two-fifths) of the penalty in the case of a heinous crime, the convict being primary; (c) fulfillment of 3/5 (three-fifths) of the sentence when the person convicted of a hei-nous crime is a repeat offender; and (d) fulfillment of 1/8 (one eighth) of the penalty in the previous regime when dealing with a convicted preg-nant woman, mother or guardian of a child with a disability, regardless of the conviction. However, Law n. 13.964/2019 amended article 112 of the Criminal Execution Law, creating eight new levels for the grant-ing of the benefit, in addition to maintaining that in relation to mothers or pregnant women, without committing to the prison reality in Brazil, where there is overcrowding and shortages vacancies in all states of the federation. This situation tends to worsen with the new expected levels. Furthermore, despite its punitive bias, the Anti-Crime Package incurred several legislative errors, creating gaps that, in some cases, benefit of-fenders. Finally, it is believed that the reform also lost the opportunity to pacify several other issues involving regime progression debated in recent years and completely ignored by the legislator.

Keywords: Regime progression. Anti-crime package. Heinous crimes. Prison system.

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1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo estudar os novos requisitos objetivos para concessão da progressão de regime a partir da promul-gação da Lei n. 13.964/19. Antes da mencionada legislação, o ordena-mento jurídico contava com quatro requisitos objetivos diferentes para concessão da progressão, quais sejam: (a) cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior, nos casos de condenados por crimes comuns; (b) cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena quando se tratar de crime hediondo, sendo primário o apenado; (c) cumprimento de 3/5 (três quintos) da pena quando o condenado a crime hediondo for reinci-dente; e (d) cumprimento de 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior quando se tratar de apenada gestante, mãe ou responsável por criança com deficiência, independente da condenação.

Com o advento do Pacote Anticrime, o art. 112 da Lei de Execuções Penais foi substancialmente alterado, contando, dessa feita, com oito novos patamares para a concessão da benesse, além de manter aquele em relação a mulheres mães ou gestantes.

Malgrado o intento do legislador tenha sido recrudescer as progres-sões de regime, diferenciando as diversas situações processuais, sejam os acusados primários ou reincidentes, e o crime cometido, com ou sem violência, incorreu em diversas lacunas legislativas, permitindo que en-tendimentos não queridos fossem adotados por serem mais benéficos aos acusados/condenados, que devem ser solucionadas na esteira do que fora decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Recursos Especiais 1.910.240 e 1.918.338.

De outro norte, percebe-se que a legislação perdeu a oportunidade de positivar e sanar diversos outros imbróglios relativos às progressões de regime que geraram amplos debates no meio jurídico. Ademais, a lei ignorou o já saturado sistema penitenciário brasileiro, que se encontra em estado de superlotação, quadro este que tende a piorar.

O trabalho é dividido em cinco tópicos. O primeiro visa demons-trar, de forma sucinta, por meio de estudos históricos, o surgimento do sistema progressivo de cumprimento de pena. Já, no segundo tópico,

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pretende-se fazer uma ampla análise sobre a progressão de regime após a reforma da parte geral do Código Penal e a promulgação da Lei de Execuções Penais, abordando diversos aspectos controvertidos na dou-trina e na jurisprudência. O terceiro tópico centra-se na Lei de Crimes Hediondos e seus reflexos nas progressões de regime. No quarto item, será explanado sobre as alterações legislativas ocorridas em benefício de apenadas mães ou gestantes. Por fim, no último ponto, serão aborda-dos os novos requisitos objetivos para progressão de regime no Pacote Anticrime e suas adversidades.

2. OS SISTEMAS PENITENCIÁRIOS QUE DERAM ORIGEM À PROGRESSÃO DE REGIME

O movimento iluminista influenciou diversas esferas da arte e da ci-ência e intentou racionalizar o debate acerca da Justiça criminal da épo-ca, pela primeira vez levando-o ao campo filosófico. A partir do “Século das Luzes”, a pena de prisão, que até então era utilizada apenas para resguardar o condenado até que sua sentença fosse executada, passou a ser adotada de forma mais irrestrita e como principal meio de punir um infrator.

Tornando-se a pena de prisão a principal forma de punição, a neces-sidade de estabelecimentos apropriados para resgate da pena tornou-se imperiosa. Nessa perspectiva, em 1790, nos Estados Unidos da Améri-ca, surge um sistema de cumprimento de pena, o qual ficou conhecido como Sistema Pensilvânico ou Filadélfico, pois foi instalado na cidade de Filadélfia, Estado da Pensilvânia. Esse sistema baseava-se no total isolamento do apenado, que ficaria em uma cela orando. “Acreditava-se que, por meio da reflexão e da crença religiosa, aliadas à incomunica-bilidade, era possível a recuperação do preso, que refletiria sobre seus erros” (CAMARGO, 2014, p. 21). PRADO (2017, p. 211) comenta que referido sistema foi posteriormente aperfeiçoado, “de forma que o con-denado já podia manter contato com os diretores do presídio, os fun-cionários, médicos, religiosos, educadores, e, ainda, realizar pequenas tarefas”.

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No mesmo período histórico, surgiu o sistema auburniano, na cidade de Auburn, Estado de Nova York. Nesse sistema, “os presos desenvol-viam atividade laborais em suas próprias celas, permitindo-se, poste-riormente, que tais trabalhos fossem desenvolvidos em grupos, durante o dia, desde que em silêncio” (PRADO, 2017, p. 212). Aqui, a principal ferramenta de recuperação do condenado era o trabalho, o que acabou se popularizando muito e tornou-se prática comum no sistema peniten-ciário atual.

Os dois sistemas são bastante parecidos, não havendo diferenças substanciais entre eles, pois “ambos defendiam a separação dos con-denados, para impedir a comunicação e o isolamento noturno em celas individuais. No sistema filadélfico, porém, a segregação ocorria duran-te todo o dia, enquanto no auburniano permitia-se o trabalho coletivo por algumas horas” (PRADO, 2011, p. 646). Ademais, nenhum desses sistemas alcançou “êxito nos métodos empregados, o que acarretou o completo extermínio de suas concepções originais em algumas déca-das” (PRADO, 2011, p. 646).

Contrapondo esses sistemas de origem norte-americana, os sistema-singlês e irlandês surgiram com uma proposta de progressão de regime. A autoria do sistema progressivo é compartilhada pelo inglês Alexander Maconochie e pelo irlandês Walter Crofton. Maconochie foi diretor da colônia penal da ilha de Norfolk, na Austrália, e “criou um sistema ba-seado em marcas (mark system), exposto em sua obra ThoughtsonCon-vict Management (1838), pelo qual o condenado poderia obter vales ou marcas conforme sua conduta e rendimento de seu trabalho” (PRADO, 2011, p. 646). Esse sistema de Maconochie contava com três etapas de cumprimento da pena, sendo o primeiro o isolamento de celular, o segundo a realização de trabalho intramuros com recolhimento noturno e o terceiro uma espécie de semiliberdade, na qual, cumpridas as con-dições, culminava em uma liberdade vigiada até findar a pena imposta. Por sua vez, Crofton aperfeiçoou o sistema de Maconochie, “acrescen-do a ele uma fase intermediária, de semiliberdade, prévia a liberação do condenado, dirigida a adaptá-lo à vida social” (PRADO, 2011, p. 646-647).

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A redação original do nosso Código Penal, em 1940, já estabelecia uma espécie de progressão de regimes. MIRABETE (2014, p. 408) co-menta a opção do legislador de 1940 ao adotar o sistema progressivo, prevendo “um período de isolamento absoluto por um prazo não supe-rior a três meses na pena de reclusão, seguido de trabalho em comum durante o dia e da possibilidade de transferência para colônia penal ou estabelecimento similar, e afinal, o livramento condicional”. Mas, foi apenas com a Lei n. 6.416, em 1977, que o sistema de progressões ficou melhor delineado como é conhecido hoje.

Com efeito, determinava o art. 30, § 5º, da Lei n. 6.416, de 1977, que “o condenado não perigoso, cuja pena não ultrapasse oito anos, poderá ser recolhido a estabelecimento de regime semi-aberto (sic), desde o início, ou, se ultrapassar, após ter cumprido um terço dela em regime fechado” (BRASIL, 1977). Na sequência, o art. 30, § 5º, inciso I, de-terminava que, “se a pena não for superior a quatro anos, poderá ser recolhido a estabelecimento de regime aberto, desde o início, ou, a) se for superior a quatro até oito, após ter cumprido um terço em outro re-gime; b) se for superior a oito, após ter cumprido dois quintos em outro regime” (BRASIL, 1977).

Em 1984, uma grande onda reformista alterou toda a parte geral do Código Penal e criou a Lei de Execuções Penais, inexistente até então no ordenamento jurídico brasileiro. Tais mudanças, contudo, mantive-ram o sistema progressivo de cumprimento de pena, dando novos ares ao tema ao disporem sobre requisitos e formas de concessão da benesse.

3. A LEI DE EXECUÇÕES PENAIS, A REFORMA DO CÓDIGO PENAL DE 1984 E A PROGRESSÃO DE REGIME

Como dito, na esteira de legislações anteriores, em 1984 foi promul-gada a Lei n. 7.210/84, mais conhecida como Lei de Execuções Penais, bem como o Código Penal passou por uma ampla reforma na sua parte geral, mantendo, contudo, o sistema progressivo de penas. A própria exposição de motivos da Lei de Execuções Penais deixa claro a ado-ção do sistema progressivo de penas ao estabelecer que “as mudanças

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no itinerário da execução consistem na transferência do condenado de regime mais rigoroso para outro menos rigoroso (progressão) ou de re-gime menos rigoroso para outro mais rigoroso (regressão)”, e também que “a progressão deve ser uma conquista do condenado pelo seu méri-to e pressupõe o cumprimento mínimo de um sexto da pena no regime inicial ou anterior” (BRASIL, 1983).

Nessa perspectiva, o Código Penal passou a prever, após a ampla reforma operada em 1984, no seu art. 33, § 2º, que “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado [...]” (BRASIL, 1984). Visando efetivar tal dispo-sição, a Lei de Execuções Penais, em seu art.112, caput, inicialmente determinava que “a pena privativa de liberdade será executada em for-ma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progres-são” (BRASIL, 1984). Assim, o condenado a uma pena de 12 (doze) anos, por exemplo, somente poderia pleitear a progressão ao regime semiaberto após o cumprimento de 2 (dois) anos no regime fechado.

Contudo, o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena, por si só, não bastava (e ainda não basta) para o deferimento da progressão de regime. Isso porque, além desse requisito de ordem objetiva, o apenado deveria cumprir outro de ordem subjetiva. Até 2003, o art. 112 contava com um parágrafo primeiro, o qual previa a elaboração de um exame crimino-lógico e um parecer pela Comissão Técnica de Classificação antes da progressão de regime. A propósito, Avena (2019, p. 214) comenta que “tais elementos, sem dúvida, constituíam importante fonte de convenci-mento do julgador, permitindo-lhe uma análise global do preso a fim de verificar se estava ele apto a usufruir das benesses atinentes ao regime mais brando sem risco de tornar a delinquir”.

Ocorre que o legislador de 1984 não previu as agruras do sistema penitenciário, o que dificultou a realização dos exames criminológicos ante a ausência de profissionais suficientes. Cintra (2021, p. 11) expli-ca que a realização de tais exames poderia levar muitos meses, sendo que, em muitos casos, “a espera pelo exame criminológico superava o

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próprio requisito objetivo”. De outro lado, Nucci (2021, p. 190) argu-menta que a demora na realização do exame criminológico se dava, na verdade, por culpa dos governos estaduais, os quais não tinham inten-ção de “investir em número de funcionários para compor as diversas Comissões que seriam necessárias para um volume imenso de presos”.

De todo modo, em 2003, o art. 112 da Lei de Execuções Penais foi al-terado, passando a contar apenas com caput, o qual passou a dispor que:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeita-das as normas que vedam a progressão. (BRASIL, 2003).

Assim, a obrigatoriedade de realização do exame criminológico foi excluída da legislação, sendo substituída por mero atestado de bom comportamento carcerário a ser emitido pelo diretor do ergástulo pri-sional.

Com a nova disposição legal, passou-se a entender, por outro lado, que o exame criminológico ainda poderia ser realizado, tratando-se de uma faculdade do juiz da execução exigi-lo, e não mais uma obriga-toriedade, como o era anteriormente. O Superior Tribunal de Justiça consolidou tal entendimento com a Súmula n. 439, ao estatuir que “ad-mite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” (BRASIL, 2010). Em sentido similar, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir sobre crimes hediondos, consignou, na Sú-mula vinculante n. 26, a possibilidade de se “[...] avaliar se o condena-do preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico” (BRASIL, 2006).

Assim, embora não seja um requisito expresso em lei, o exame crimi-nológico é largamente aceito e realizado pelos estabelecimentos prisio-nais que detêm condições de realizá-lo, desde que sua requisição seja devidamente motivada pelo magistrado responsável, sob o argumento de que o juiz pode (e deve) buscar fundamentos para decidir, não se li-

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mitando ao atestado de bom comportamento concedido pelo diretor do estabelecimento prisional. Trata-se do livre convencimento motivado. Além disso, apontam alguns autores, não sem resistência de outros, que o exame criminológico coaduna-se com os fins da pena e a própria in-dividualização da pena, este um princípio constitucional, pois “um dos princípios norteadores da execução penal gravita sobre a reeducação do condenado e a sua gradual reinserção social” (PRADO, 2017, p. 215).

Ainda sobre tal modificação legislativa, Marcão (2019, p. 66) formu-la contundente crítica à mera exigência de atestado de bom comporta-mento carcerário como requisito à progressão de regime ao comentar que “bom comportamento carcerário é o comportamento daquele que se põe de forma ajustada aos regramentos de disciplina do estabelecimen-to prisional”, e, por isso, tal documento exime-se de analisar “propen-são à reincidência, consciência e arrependimento quanto ao delito pelo qual foi recolhido preso”.

Na mesma esteira, em 1983, Pimentel (1983, p. 158) já alertava que “ingressando no meio carcerário o sentenciado se adapta, paulatina-mente, aos padrões da prisão”, e o aprendizado desse indivíduo “é esti-mulado pela necessidade de se manter vivo e, se possível, ser aceito no grupo”. Portanto, nos dizeres do autor, “longe de estar sendo ressociali-zado para a vida livre, está, na verdade, sendo socializado para viver na prisão”. E, por esses motivos, “um observador desprevenido pode supor que um preso de bom comportamento é um homem regenerado, quando o que se dá é algo inteiramente diverso: trata-se apenas de um homem prisonizado” (PIMENTEL, 1983, p. 158).

À similitude, Avena (2019, p. 214) pontua que, ao adotar o enten-dimento de que o atestado de bom comportamento carcerário basta ao preenchimento do requisito subjetivo, “a competência para conceder o benefício ao encarcerado passaria a ser do diretor do estabelecimento prisional em que se encontrasse, e não mais do juiz da execução, uma vez que, diante de um atestado favorável, somente restaria ao julgador homologá-lo”.

Como se não bastasse tais problemas envolvendo o requisito subje-tivo para progressão de regime, na prática judicial, percebeu-se engo-

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do também quanto ao próprio requisito objetivo: trata-se do referencial para a segunda progressão. Ou seja, nas hipóteses em que o apenado inicia o cumprimento de sua pena no regime fechado, caso em que pro-gredirá ao regime semiaberto após cumprido 1/6 (um sexto) da pena total imposta. Porém, a legislação não determina se, para a progressão ao regime aberto, deve o apenado cumprir mais 1/6 (um sexto) da pena total imposta ou apenas em relação à pena remanescente.

Malgrado subsistam entendimentos contrários, a corrente jurispru-dencial majoritária consolidou entendimento pela necessidade de cum-primento de 1/6 (um sexto) da pena restante. Portanto, “se o indivíduo foi condenado a doze anos de reclusão em regime fechado e, após o cumprimento de dois anos (1/6 do total), obteve progressão para o re-gime semiaberto, poderá fazer jus a progressão para o regime aberto quando cumprir um ano e oito meses de pena (1/6 dos anos que restam a cumprir)” (AVENA, 2019, p. 212).

Sobre o ponto, Marcão (2019, p. 64) explica que tal entendimento jurisprudencial coaduna-se com as disposições legais sobre o tema, pois “pena cumprida é pena extinta, o que decorre, inclusive, de interpre-tação que se extrai do art. 113 do Código Penal”, portanto, “tendo o condenado cumprido 1/6 (um sexto) de sua pena no regime anterior e obtido a progressão de regime, para a nova progressão deverá cumprir apenas 1/6 (um sexto) da pena restante, e não da pena total aplicada” (MARCÃO, 2019, p. 64).

Outro ponto interessante a se ressaltar acerca das progressões de re-gime é o entendimento jurisprudencial pela impossibilidade de conce-der-se o benefício quando pendente pena de multa cumulativamente imposta, caso haja condições para seu efetivo pagamento. Isto é, tra-tando-se de apenado hipossuficiente, o não pagamento da multa não obstará a progressão, mas, em relação aos condenados que detenham boas condições financeiras, o pagamento deve ser realizado para que a progressão seja concedida. Esse entendimento passou a ser adotado a partir do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Penal n. 470, popularmente conhecida como “Mensalão”.

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Por conseguinte, a Lei n. 10.763, de 2003, acresceu o parágrafo quar-to ao art. 33 do Código Penal, prevendo que “o condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cum-primento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais” (BRASIL, 2003). Assim, criou-se um novo requisito para progressão de regime que, contudo, só deve ser aplicado a condenados por crimes contra a Administração Pública.

Marcão (2019, p. 65) concorda com esse entendimento, para quem a exigência de reparação do dano para a progressão de regime “constitui requisito objetivo específico ou especial, a ser exigido concomitante-mente com os demais, apenas e tão somente quando envolver condena-ção por crime contra a administração pública, sem qualquer ressalva”.

O autor destaca, ademais, a possibilidade de que outros problemas surjam a partir dessa previsão e comenta que “o benefício não poderá ser negado, por exemplo, quando o quantum da reparação depender, para sua apuração, de eventual liquidação de sentença” (MARCÃO, 2019, p. 65).

4. A LEI DE CRIMES HEDIONDOS E O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS N. 82.959 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em 1990, foi promulgada a Lei n. 8.072/90, a Lei de Crimes He-diondos, determinando, no seu art. 2º, § 1º, que “a pena por crime pre-visto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado” (BRASIL, 1990). Assim, aqueles condenados por crimes hediondos ou equiparados, diferentemente dos condenados por crimes comuns, não tinham direito à progressão de regime.

Contudo, boa parte da doutrina e da jurisprudência passou a apontar, de pronto, a inconstitucionalidade de tal disposição, pois feria, a um só tempo, o princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, e a humanização da pena ao ca-racterizar-se como tratamento cruel ao condenado.

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Apontava-se, ainda, violação ao Pacto Internacional de Direitos Ci-vis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992, e que em seu art. 7º ve-dava a submissão de qualquer povo à tortura ou “a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes” (BRASIL, 1992).

Os debates foram inflamados em 1997, após a promulgação da Lei n. 9.455/1997, que definiu os crimes de tortura, equiparados à hediondo por opção constitucional (art. 5º inciso XLIII, da Constituição Federal). Isso porque a legislação determinou, no art. 1º, § 7º, que “o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumpri-mento da pena em regime fechado” (BRASIL, 1997).

Assim, o legislador ordinário conferiu tratamento mais benéfico ao condenado por crime de tortura do que aos demais apenados por crimes hediondos ou equiparados, já que a Lei n. 9.455/1997 permitia a pro-gressão de regime para aqueles e não para estes. Portanto, muito se de-bateu, pois, “se isso pode ocorrer no caso de condenação pelo crime de tortura, a mesma solução deveria ser conferida em relação aos crimes hediondos e demais delitos a estes equiparados, já que todos receberam igual tratamento pelo art. 5º, XLIII, da Constituição Federal” (AVENA, 2019, p. 216).

A fim de abalizar a controvérsia, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 698 na qual entendeu que “não se estende aos demais cri-mes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura” (BRASIL, 2003).

Essa vedação à progressão prevista na Lei de Crimes Hediondos per-durou até fevereiro de 2006, quando, no julgamento do Habeas Corpus n. 82.959, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, por maio-ria, declarou a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90 por violação ao princípio constitucional da individualização da pena.

Com esse entendimento, os condenados por crime hediondo ou equi-parado passaram a se submeter à mesma disciplina legal que demais condenados no que se refere à progressão de regime, cujos requisitos estão previstos no art. 112 da Lei de Execuções Penais, quais sejam, cumprir 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e apresentar bom

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comportamento carcerário. A Súmula n. 698 do Supremo Tribunal Fe-deral perdeu a sua eficácia.

Porém, a utilização de tais requisitos para progressão de regime igualmente violava a Constituição Federal, na medida em que esta con-feriu aos crimes hediondos tratamento diverso dos crimes comuns (art. 5º, inciso XLIII). Assim, visando solucionar tal lacuna, em 29 de março de 2007, o legislador alterou o art. 2º, § 1º, da Lei de Crimes Hediondos para dispor que “a pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado” (BRASIL, 2007), e acrescentou um novo § 2º, determinando que “a progressão de regime, no caso dos con-denados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente” (BRASIL, 2007).

Dessa forma, condenados a crimes hediondos deveriam apenas ini-ciar o cumprimento de pena em regime fechado, podendo, no entanto, progredirem a regime mais benéfico desde que cumpridos os patamares de 2/5 (dois quintos) da pena se primário, e de 3/5 (três quintos) se reincidente. Portanto, a legislação penal previa três requisitos objetivos diferentes para concessão da progressão de regime a depender do crime cometido e da reincidência do agente.

Ocorre que as novas frações previstas na lei de crimes hediondos, por serem mais graves aos réus/apenados, só tiveram aplicação para crimes cometidos após a promulgação da Lei n. 11.464/07, que os inseriu na Lei de Crimes Hediondos, à vista do princípio da irretroatividade da lei maléfica, disposto no art. 5, inciso XL, da Constituição Federal, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (BRASIL, 1988).

Esse foi, inclusive, o entendimento sedimentado pelo Superior Tribu-nal de Justiça na Súmula n. 471: “Os condenados por crimes hediondos ou assemelhados cometidos antes da vigência da Lei n. 11.464/2007 su-jeitam-se ao disposto no art. 112 da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para a progressão de regime prisional” (BRASIL, 2011).

Os diversos problemas relacionados à imposição de regime aos cri-mes hediondos, bem como a progressão destes, no entanto, ainda estão longe de ser superados. Exemplo disso foi a declaração de inconstitu-

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cionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da nova redação do art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90.

Como visto, após o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucio-nal a impossibilidade de progressão de regime no julgamento do Habe-as Corpus n. 82.959, o legislador ordinário reformou a Lei de Crimes Hediondos para impor regime inicial fechado aos crimes classificados como hediondos, além de prever novas frações de progressão.

Contudo, parte da doutrina e da jurisprudência passou a entender que a nova redação também era inconstitucional, pois determinava aplica-ção do regime inicial fechado independentemente do quantum de pena. Sobre isso, Marcão (2019, p. 62) comenta que o regime fechado era imposto “sem outros questionamentos em linhas de individualização, de modo a tolher a atividade individualizatória conferida ao Poder Ju-diciário, e malferir garantia fundamental do acusado, assegurada no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal”.

Após amplos debates da comunidade jurídica, o tema chegou, no-vamente, ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, em junho de 2012, por meio do Habeas Corpus n. 111.840/ES. Nessa oportu-nidade, o Tribunal entendeu que a imposição de regime inicial fe-chado com base exclusivamente no fato de ser o crime hediondo, igualmente viola a individualização da pena. Como tal entendimen-to é benéfico em relação a quem já cometeu o crime, pode ele retro-agir para beneficiar apenados por crimes hediondos. Nesses casos, “faz-se imprescindível verificar se o regime inicial fora fixado tão so-mente com base no dispositivo em testilha e, sendo caso, proceder-se ao ajuste do regime em sede de execução” (MARCÃO, 2019, p. 62).

Porém, apesar da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, ante a plena vigência do dispositivo em voga, já que a eficácia não foi suspensa pelo Senado Federal (ex vi art. 52, inciso X, da Constituição Federal), o regime inicial fechado ainda é imposto em muitos casos a condenados por crimes hediondos.

Em relação a condenações por crimes hediondos ou equiparados, o operador do direito há que se atentar, ainda, à possibilidade de coexis-

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tência de múltiplas condenações, por crimes comuns e hediondos, com ou sem reincidência.

Com efeito, o art. 111 da Lei de Execuções Penais determina que, havendo condenação por mais de um crime, “a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição” (BRASIL, 1984). Assim, se determinado indivíduo é condenado a uma pena de 06 (seis) anos pela prática de um crime comum e 10 (dez) anos por crime hediondo ou equiparado, reconhecida aqui sua reincidência, terá um total de 16 (dezesseis) anos de pena a cumprir.

Contudo, para progressão de regime, “deve-se atender às duas ne-cessidades, quanto ao hediondo, que se cumpre em primeiro lugar e, também, quanto ao comum. Atingido o prazo do hediondo, deve-se imediatamente começar a computar o prazo do comum. Tal cálculo em separado possui respaldo jurisprudencial” (NUCCI, 2021, p. 193). Nes-se exemplo, portanto, após cumprido 6 (seis) anos no regime fechado, o apenado terá atingido o patamar de 3/5 (três quintos) para a progressão de regime em relação ao crime hediondo (pois reincidente), mas deverá cumprir mais 1 (um) ano no regime mais severo ante sua condenação também por crime comum, no qual se aplica o quantum de 1/6 (um sexto). Nessa perspectiva, após cumpridos 7 (sete) anos no regime fe-chado, poderá o condenado pleitear pela progressão de regime, desde que preenchidos demais requisitos.

5. AS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS OCORRIDAS EM BENEFÍCIO DE APENADAS MÃES OU GESTANTES

De outro lado, em relação às apenadas que são mães, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência, a jurisprudência e as próprias mudanças legislativas passaram a adotar entendimentos mais liberató-rios a fim de resguardar essas pessoas que necessitam de cuidados.

Assim, a partir da maior atenção que os poderes públicos passaram a dar à situação de mulheres encarceradas, sobretudo aquelas que são mães ou gestantes, diversas disposições legislativas e entendimentos

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jurisprudências foram construídos a fim de atender às demandas de tais mulheres, sempre visando a proteção dos infantes, como foi o caso da promulgação da Lei n. 13.257/2016 (Estatuto da Primeira Infância), e o julgamento do Habeas Corpus coletivo n. 143.641/SP pelo Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2018.

Seguindo tal raciocínio, em dezembro de 2018, a Lei n. 13.769/18 inseriu os parágrafos terceiro e quarto ao art. 112 da Lei de Execução Penal, prevendo uma nova modalidade de progressão de regime, conhe-cida como progressão especial. Nela, a mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência poderá progre-dir após o cumprimento de apenas 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior, além de preencher outros requisitos, quais sejam: não ter co-metido crime com violência ou grave ameaça à pessoa, nem contra seu filho ou dependente; ser primária; ter bom comportamento carcerário; e não integrar organização criminosa.

Além desses requisitos legais (porque previstos em lei), a jurispru-dência catarinense consolidou entendimento pela necessidade de pre-enchimento de um requisito a mais, de caráter subjetivo, consistente na imprescindibilidade da genitora para o cuidado dos filhos. Tal requisito se justifica na medida em que a progressão especial foi criada pelo le-gislador infraconstitucional com intuito de proteger o infante ainda em desenvolvimento e não conceder uma progressão diferenciada à mulher pelo simples fato de ser mãe, o que destoaria da razoabilidade.

Destaque-se, ademais, que tal benéfica fração, mantida pelo Pacote Anticrime, adiante-se, “deve ser observada, mesmo em se tratando de crimes hediondos e equiparados”, pois “a Lei 13.769/18 alterou a re-dação do art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90, que manda observar, para estas condenadas, o sistema de progressão de regime estabelecido nos §§3º e 4º do art. 112 da LEP” (CUNHA, 2020, p. 380).

6. OS NOVOS REQUISITOS OBJETIVOS PARA PROGRESSÃO DE REGIME NO PACOTE ANTICRIME

Em junho de 2018, o Projeto de Lei n. 10.372/2018 foi proposto na Câmara dos Deputados prevendo diversas alterações no sistema de jus-

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tiça criminal brasileiro, contemplando desde o Código Penal e o Código de Processo Penal à Lei de Execuções Penais. No Senado Federal, o projeto recebeu o número 6.341/2019 e, depois, culminou na Lei nº 13.964/19, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”. Entre as diversas modificações introduzidas no sistema de justiça brasileiro, as que interessam para a presente pesquisa são aquelas concernentes às al-terações no art. 112 da Lei n. 7.210/84, pois dizem respeito, justamente, sobre as progressões de regime.

Até então, o requisito objetivo para progressão de regime baseava-se, como visto, em frações, contudo elas foram descartadas pelo legislador reformador, que as substituiu por oito diferentes percentuais de cumpri-mento de pena, quais sejam: (i) 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; (ii) 20% (vinte por cento) da pena, se o apena-do for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; (iii) 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; (iv) 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reinciden-te em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; (v) 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; (vi) 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional; b) condenado por exercer o comando, indi-vidual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou c) condenado pela prática do cri-me de constituição de milícia privada; (vii) 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; e (viii) 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, sendo vedado, neste último caso, o livramento condicional.

Cabe registrar que, além desses novos percentuais, foi mantida, no ordenamento, a progressão de regime especial, destinada a mulheres gestantes, mães ou responsáveis por crianças com deficiência. Portan-

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to, a partir da alteração, a legislação executória penal conta com nove quantuns distintos de progressão de regime.

Outrossim, por prever requisitos objetivos, em sua maioria mais gra-vosos aos apenados, a novel legislação somente poderá ser aplicada, nesses casos, àqueles que forem condenados por crime cometido após a vigência da nova lei. É dizer: os três requisitos anteriores à reforma (1/6, 2/5 e 3/5) continuam vigentes e devem ser aplicados, quando mais benéficos aos apenados. Assim, “as execuções penais que reúnam con-denações por crimes cometidos antes e depois da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 desafiarão, portanto, cálculo diferenciado para fins de progressão de regime” (SANTOS, 2020, p. 443).

De outro lado, a existência de lacunas legislativas possibilitou inter-pretações no sentido de que alguns novos patamares devem ser consi-derados benéficos aos apenados, como é o caso dos incisos V e VII, que versam sobre a prática de crime hediondo.

Com efeito, o art. 2º, § 2º, da Lei de Crimes Hediondos determinava a aplicação da fração de 3/5 a condenados por crimes hediondos que fossem reincidentes, sem especificar de que espécie de reincidência se tratava. Portanto, prevalecia o entendimento de que não era necessária a reincidência específica para aplicação da fração mais grave, bastando tratar-se de réu já anteriormente condenado em definitivo, por qualquer delito.

Ocorre que o Pacote Anticrime revogou expressamente o art. 2º, § 2º, da Lei n. 8.072/90, passando a submeter a progressão de regime em crimes hediondos apenas ao art. 112 da Lei de Execuções Penais. Como visto, a nova legislação determina a aplicação do patamar de 40% (qua-renta por cento), equivalente a 2/5 (dois quintos), aos condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, se primário; e a aplicação de 60% (sessenta por cento), equivalente a 3/5 (três quintos), “se o ape-nado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado” (BRASIL, 2019, grifo nosso). Ou seja, pela sua atual redação, o art. 112, inciso VII, determina a aplicação do patamar mais gravoso apenas ao reincidente específico em crime hediondo.

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Por esse motivo, após uma resistência inicial, o Tribunal de Justi-ça de Santa Catarina passou a adotar o entendimento de que, após as alterações da Lei n. 13.964/19, a reincidência exigida para aplicação de 60% deve ser específica em crimes da mesma natureza e, inexis-tindo previsão legal de qual patamar a ser utilizado para reincidentes genéricos, deve-se aplicar a interpretação mais benéfica (40%), como se primário fosse.

Tal entendimento coaduna-se com o recente julgamento dos Recur-sos Especiais 1.910.240 e 1.918.338 pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no qual a Corte fixou entendimento, à unanimidade, de que a lacuna legislativa deve ser interpretada em favor de apena-dos/réus, assentando a seguinte tese: “É reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no art. 112, V, da Lei n. 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza se-melhante” (BRASIL, 2021).

A partir desse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça assinalou o caminho a ser seguido para as demais brechas legislativas. Isso por-que essa lacuna envolvendo crimes hediondos não foi a única presente no art. 112 da Lei de Execuções Penais, embora seja a que recebeu maior atenção por tratar da possibilidade de retroatividade da Lei.

Com efeito, “a intenção do legislador foi distinguir o primário do reincidente, a depender da natureza do delito, sem ou com violência ou grave ameaça à pessoa” (SANTOS, 2020, p. 443). Contudo, ante a infeliz redação, a mesma lacuna legislativa é observada no inciso IV do referido dispositivo legal, ao determinar a aplicação de “30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça” (BRASIL, 2019, grifo nosso), ou seja, versa sobre o reincidente específico, “logo, malgrado o delito objeto da condenação envolver violência ou grave ameaça à pessoa, caso o título condenatório pretérito ensejador da reincidência verse so-bre injusto sem violência nem grave ameaça à pessoa, cumpre observar o percentual de 25% em vez de 30” (SANTOS, 2020, p. 443).

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À similitude, o inciso VIII determina que o apenado cumpra 70% (setenta por cento) da pena, se for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte. A redação é clara ao condicionar tal elevada progressão apenas aos reincidentes específicos em crime he-diondo com resultado morte. Nesse viés, tratando-se de condenado a crime hediondo com resultado morte, com reincidência em crime he-diondo sem resultado morte (reincidente não específico), há nova lacu-na legislativa. Entende-se que o percentual a ser utilizado deve ser o de 60% (sessenta por cento), previsto no inciso VII, pois trata de reinci-dentes em crimes hediondos. Contudo, é importante se atentar ao inciso VI, alínea “a”, que determina a progressão em 50% (cinquenta por cen-to) quando o apenado for “condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário” (BRASIL, 2019).

Essa lacuna permite “o surgimento de posição no sentido de, uma vez descartado o inciso VIII, haveria de ser observado, a contrario sensu, o percentual de 50%, porque concernente a crimes da mesma natureza – hediondos ou afins, com morte” (SANTOS, 2020, p. 446). Contudo, pensa-se que a melhor interpretação é aquela que determina a aplicação de 60% (sessenta por cento).

Outro defeito legislativo diz respeito à progressão de regime ver-sus livramento condicional aos condenados pela prática do crime de constituição de milícia privada. Isso porque o art. 112, inciso VI, alí-nea “c”, prevê o cumprimento de 50% (cinquenta por cento) da pena para concessão da progressão de regime. Entretanto, por não ser crime hediondo, o livramento condicional pode ser concedido após o cum-primento de 1/3 (um terço) da pena, se primário, e 1/5 (um quinto), se reincidente, nos moldes do art. 83 do Código Penal. Assim, “o direito mais expressivo, livramento condicional, é conquistado (bem) antes, se primário, ou em tempo igual, se reincidente, ao reservado à progressão de regime, em total afronta à cláusula constitucional concernente à in-dividualização da pena (art. 5º, XLVI, da CRFB/88)” (SANTOS, 2020, p. 447).

É de se notar, portanto, que, apesar do intento punitivista, o legisla-dor ordinário reformador não se atentou às imprecisões do novo texto

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legal, permitindo que entendimentos não queridos fossem adotados, desde já, a condenado por crimes hediondos, por serem mais benéficos. À similitude, ante a imprecisão técnica, criou diversas lacunas legais, as quais devem ser solucionadas seguindo o mesmo caminho trilhado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Recursos Espe-ciais 1.910.240 e 1.918.338.

Não bastasse, denota-se que o Pacote Anticrime eximiu-se de posi-tivar diversos outros temas relativos às progressões de regime que ge-raram amplos debates no meio jurídico, tais como a (im)possibilidade de fixação de regime inicial fechado aos condenados por crime hedion-dos, o referencial a ser considerado na segunda progressão de regime, a viabilidade de realização do exame criminológico e a necessidade de pagamento da multa como requisito para concessão da progressão.

Por fim, não há como se ignorar a completa ausência de preocupa-ção com o sistema penitenciário brasileiro, o qual já se encontra em estado de superlotação, quadro este que tende a piorar com a Lei n. 13.964/2019.

7. CONCLUSÃO

Como visto, antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime, o or-denamento jurídico contava com quatro requisitos objetivos diferentes para concessão da progressão, a saber: (a) cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior, nos casos de condenados por crimes comuns; (b) cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena quando se tratar de crime hediondo, sendo primário o apenado; (c) cumprimento de 3/5 (três quintos) da pena quando o condenado a crime hediondo for reinci-dente; e (d) cumprimento de 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior quando se tratar de apenada gestante, mãe ou responsável por criança com deficiência, independente da condenação.

A Lei n. 13.964/19, por sua vez, alterou o art. 112 da Lei de Execu-ções Penais, criando oito novos patamares para a concessão da benesse, além de manter aquele em relação a mulheres mães ou gestantes, sem

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se ater, contudo, à realidade penitenciária no Brasil, em que há superlo-tação e falta de vagas em todos os estados da federação.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenci-árias - Infopen, publicado em dezembro de 2019, com dados de julho a dezembro do mesmo ano, o Brasil conta com uma população carcerária de 748.009 (setecentos e quarenta e oito mil e nove) pessoas. Contudo, existem apenas 442.349 (quatrocentos e quarenta e dois mil e trezentos e quarenta e nove) vagas, ou seja, há um déficit de 305.660 (trezentos e cinco mil e seiscentos e sessenta) vagas (BRASIL, 2019).

Se analisar apenas os dados relativos a presos no regime fechado, o relatório demonstra a existência de 362.547 (trezentos e sessenta e dois mil e quinhentos e quarenta e sete) pessoas encarceradas e apenas 203.107 (duzentos e três mil e cento e sete) vagas, atestando, igual-mente, enorme contingente populacional acima da capacidade, com su-perlotação de 159.440 (cento e cinquenta e nove mil e quatrocentos e quarenta) pessoas além das vagas (BRASIL, 2019).

Por essa e outras razões, em 2015, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, o Supremo Tribunal Federal declarou o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, situação que demonstra o desvio de finalidade da execução penal no Brasil. “As funções declaradas da pena são incompatíveis com o que se assiste na prática”, pois “o cárcere é verdadeiro espaço de gestão de corpos de pessoas majoritariamente negras, com baixa instrução esco-lar, pobres e jovens” (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 147).

Com isso em consideração, embora a Lei n. 13.964/2019 intente fa-zer distinções mais específicas para a progressão de regime, adotando “um modelo mais compatível com a pluralidade de pessoas apenadas e de infrações cometidas”, atentando-se ao princípio da isonomia, “a forma de corrigir essa eventual distorção não nos pareceu minimamente razoável, adequada ou proporcional, ao menos em algumas das situa-ções”. (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 149/150).

Isso porque, com os novos marcos objetivos para concessão da pro-gressão de regime, o Pacote Anticrime demonstra seu escopo em “man-ter os indivíduos presos por mais tempo em um local reconhecido como

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sendo constante violador de direitos humanos, como já declarado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347” (MENDES; MARTÍNEZ, 2020, p. 184). Assim, crê-se que um “brutal encarceramento inesca-pavelmente advirá com a Lei nº 13.964/19” (SANTOS, 2020, p. 453).

Outrossim, entende-se que, além de ignorar a realidade penitenciária, a novel legislação eximiu-se de positivar diversos outros temas relati-vos às progressões de regime que geraram amplos debates no meio ju-rídico ao longo dos anos, bem como, ante sua imprecisão técnica, criou diversas lacunas legislativas, as quais devem ser interpretadas em favor dos acusados/apenados.

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Recebido em: 25/06/2021Aprovado em: 10/08/2021

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ALIENAÇÃO PARENTAL: PRINCIPAIS ASPECTOS NO ÂMBITO FAMILIAR

PARENTAL ALIENATION: MAIN ASPECTS OF THE FAMILY

Nathália Carneiro Neves1

Resumo: A alienação parental é um instituto jurídico do Direito de Fa-mília que surgiu para identificar situações de abusos que ocorrem no âmbito familiar. Em razão dela, é possível reconhecer quando a criança está sofrendo abusos emocionais e até físicos por parte da pessoa que possui a guarda. A Lei que trata sobre o assunto foi inserida para auxi-liar o magistrado na aplicação de sanções e para reconhecer o alienador. Será apresentado no artigo o conceito de alienação parental, seguido pelas características, os tipos de guarda mais usuais, bem como a de-nunciação caluniosa e as implantações de falsas memórias.

Palavras-chave: Alienação parental. Alienador. Guarda.

Abstract:Parental alienation is a legal institute of Family Law that emerged to identify situations of abuse that occur within the family, because of it is possible to recognize when the child is suffering emo-tional and even physical abuse by the person who has custody. The Law dealing with the matter was inserted to assist the magistrate in applying sanctions and to recognize the alienator. The concept of parental alien-ation will be presented in the article, followed by the characteristics, the most usual types of guards, as well as the slanderous denunciation and the implantation of false memories.

Keywords: Parental alienation. Alienator. Guard.

1. Bacharela em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNI-SUL). Formada no Módulo II da Escola Superior da Magistratura (ESMESC). Pós-graduanda em Direito Aplicado pela ESMESC. Residente Judicial. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

As leis existem para amparar os conflitos resultantes do convívio em sociedade e devem estar em constante mudança para a efetiva entrega da tutela jurisdicional. Nesse sentido, as questões jurídicas do âmbito do Direito de Família causam mudanças no âmbito social, de maneira a contemplar soluções jurídicas urgentes, com a finalidade de resguardar direitos.

Como será analisado neste artigo, com o surgimento da alienação pa-rental no âmbito familiar, surgiram mudanças e decisões jurídicas para melhor atender aos interesses familiares, como também aos interesses das crianças e dos adolescentes vítimas desse abuso moral.

2. ALIENAÇÃO PARENTAL

A alienação parental é resultante dos atos que afetam a saúde e a segurança dos envolvidos na relação afetiva. Por esse motivo, deixou de ser apenas um fator social de modo a integrar o âmbito jurídico. É oportuna, assim, a edição de normas tendentes à solução e ao trata-mento dessa prática. Os prejudicados são as crianças e os adolescentes alienados, que têm o desenvolvimento sadio interrompido em razão da disputa de poder entre o guardião e a pessoa que não detém a guarda (WAQUIM, 2018, p. 68).

Esse artigo apresentará os principais tópicos a respeito da alienação parental, compreendida no âmbito do Direito de Família, além de as-pectos que tratam sobre a guarda e suas modalidades.

2.1 Conceito

Considera-se como alienação parental a intervenção psicológica em que o alienador, que pode ser os avós, os pais ou outra pessoa que esteja sob vigilância da criança ou que possua sua guarda, promove a rejeição de um dos parentes próximos. O alienador manipula o filho e também se coloca como vítima para excluir o vínculo de afeto com o outro ge-nitor, de forma a fazer com que a criança ou o adolescente acredite que

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um dos pais age de maneira bondosa e o outro, todavia, possui apenas características maldosas (ROSA, 2018, p. 454).

Na opinião de Carvalho (2018, p. 524), a alienação parental surge quando o filho rompe o vínculo de afeto, no sentido de afastar-se ou distanciar-se dos parentes próximos, seja dos avós, do pai, da mãe, ou de ambos e, por conseguinte, causa prejuízos ao menor (sic) pela falta da orientação paterna ou materna.

A causa da alienação parental ocorre, de forma muito comum, no período em que os genitores litigam e esquecem da importância relacio-nada às questões parentais, haja vista que, algumas vezes, a relação que está desgastada pode ocasionar a alienação parental. O fato é que esta pode ser praticada por qualquer dos genitores, de maneira a influenciar, de forma maléfica, o menor (sic) para rejeitar o outro genitor (MOREI-RA, 2015, p. 55). Ademais, o alienador pode ter plena ciência de seus atos ou até agir de maneira que não saiba que está sendo caracterizada a alienação parental.

Leciona Ramos (2016, p. 148) que o alienador pratica a alienação no intuito de prejudicar a relação do menor (sic) com os familiares. Por isso, o principal objetivo com a alienação parental é que a criança ou o adolescente abandone um dos genitores. Além desse fator, os atos de alienação parental afetam o direito fundamental que a criança tem de convivência familiar, caracterizador de abuso moral, na medida em que a pessoa que detém a guarda forja no menor de idade sentimento de rejeição daquele que não possui a guarda, além de dificultar a relação entre ambos e o exercício da autoridade de um dos pais (LÔBO, 2017, p. 198).

Nesse mesmo sentido, o art. 3º da Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, que trata sobre a alienação parental, considera que a prática dos atos de alienação parental infringe direitos fundamentais da criança e do adolescente, constitui abuso moral e importa em descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental, ou decorrentes da tutela ou guarda. Dessa forma, permite-se a aplicação de medidas para inibir os efeitos da prática de alienação parental, desde a advertência ao aliena-

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dor até a suspensão da autoridade parental, de acordo com a verificação de cada hipótese concreta (CARVALHO, 2019, p. 536).

O art. 2º da Lei nº 12.318/10 conceitua:

Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. (BRASIL, 2010).

Oportuno destacar, a partir da verificação do dispositivo legal ante-riormente referido, que a interferência mencionada diz respeito aos atos nefastos praticados pelo alienador, que geram sentimento de desafeto e abalam a relação entre filho e pai ou mãe. Ressalta-se que a caracteri-zação da alienação parental se dará quando o relato que desqualifica o genitor for acompanhado de fatos que não são verdadeiros, sendo que tem o intuito de criar uma imagem desagradável e fazer com que o me-nor (sic) tenha sentimentos de repulsa pelo alienado (PEREIRA, 2019, p. 141).

Nessa esteira, a ruptura de um relacionamento pode causar sentimen-tos de repulsa ou vingança no parceiro, que “caso os filhos fiquem em sua companhia, ao ver o interesse do genitor em preservar a convivên-cia com eles, tudo faz para separá-los” (DIAS, 2010). Nesse momento, inicia-se o discurso contra o genitor, no sentido de desmoralizá-lo e rejeitá-lo, ao passo que, com o tempo, a criança aceita como verda-de o que lhe é verbalizado. Dessa maneira, a criança ou o adolescente cria laços com o genitor guardião e torna-se órfão do alienado (DIAS, 2010). Assim, consoante se infere da verificação desses autores citados, o conceito de alienação parental está relacionado com o fato do poder que o guardião possui sobre o filho.

Além disso, a separação conjugal possui ampla repercussão nos ado-lescentes e nos adultos, como, por exemplo, causa rebeldia, tristeza, depressão, desobediência e sensação de abandono. No caso de a se-paração ser acompanhada por sofrimento decorrente de conflitos, po-derá culminar em atos de alienação parental, em que o alienador tenta

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estimular a separação entre o Menor (sic) e a pessoa que não possui a guarda (OLIVEIRA, 2015, p. 09; ROCHA, 2015, p. 88). Por sua vez, consoante se verifica a partir dos autores citados, a alienação parental decorre, na maioria das vezes, da separação conflituosa, uma vez que os ânimos estão mais acirrados, e as partes têm mais oportunidades de pro-mover campanhas de desqualificação contra o outro, embora também pode ser iniciada após a separação amigável, durante a união estável ou casamento.

Explica Ullmann (2015, p. 101) que os atos de alienação parental podem ocorrer além do ambiente familiar, de forma que se incluem como cúmplices, conscientes ou não de suas ações, como, por exemplo, os amigos próximos, a escola e o psicólogo. Na escola, a controvérsia pode se iniciar com o contrato assinado por um genitor, uma vez que apenas aquele recebe informações sobre o filho e pode fazer com que o outro não obtenha informações sobre o menor de idade. Isso, por con-seguinte, pode causar o afastamento entre ambos. Além do psicólogo, que, ao ajudar o alienador, influência a criança a se afastar do outro genitor, de forma que, assim, exerce os atos de alienação parental.

De acordo com Apostolo (2015, p. 20):

Na esfera jurídica, a Alienação Parental é entendida como uma for-ma de abuso emocional, pelo intenso dano causado ao psiquismo da criança. É comparada em termos de gravidade e malefícios emocio-nais ao abuso sexual. Visando coibir essa prática algumas medidas judiciais podem ser propostas, dentre elas: o tratamento psicoló-gico, psicoterapia familiar, e nos casos cuja gravidade é extrema, é possível que seja determinada reversão da guarda em favor do genitor alienado.

Desse modo, evidencia-se que a alienação parental é caracterizada pelo distanciamento da criança em relação ao alienado em virtude dos relatos e das ações praticadas pelo alienador para desmoralizá-lo, que causam prejuízos emocionais aos envolvidos.

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2.2 Características

As características e o comportamento do alienador são de difícil reconhecimento. Nesse sentido, leciona Perez (2013, p. 48) que o rol exemplificativo da Lei nº 12.318/10 tem por finalidade auxiliar o apli-cador da lei a reconhecer indícios de alienação parental, além das hipó-teses que representam as condutas clássicas do alienador.

Como descrito por Pereira (2013, p. 37), a alienação parental causa consequências graves e “tal perversidade não pode passar despercebida pelos operadores de Direito, que ao detectarem os elementos indicado-res da alienação parental, devem buscar, inclusive na interdisciplinari-dade, reportar a violência sofrida pelos filhos”.

Consoante já demonstrado, é de difícil identificação o comportamen-to do alienador. Posto isso, o legislador tratou de indicar formas de alie-nação parental, que são identificadas pelo Juiz ou verificadas na perí-cia, praticadas diretamente pelo guardião do menor de idade ou com a assistência de terceiros, na forma do art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 12.318/10 (PEREIRA, 2019):

Art. 2º Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação paren-tal, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevan-tes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;

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VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares des-te ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visan-do a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. (BRASIL, 2010).

O inciso primeiro diz respeito à atuação de um dos genitores que busca desqualificar o genitor alienado, quando no exercício da pater-nidade ou da maternidade, para promover a falsa impressão de que as ações daquele genitor estão equivocadas, o que causa o afastamento do filho em relação a um dos pais. No que tange ao inciso segundo, é caracterizado pela desautorização realizada pelo alienador quanto aos comandos do outro genitor a criança ou adolescente, de modo que lhe retira a autoridade em relação ao filho (FIGUEIREDO; ALEXANDRI-DIS, 2014, p. 55).

Na visão de Pereira (2019, p. 140), o inciso primeiro compreende a desqualificação realizada pelo alienador contra o alienado, por meio de relatos que não são verdadeiros, e que tem por objetivo afastar a criança daquele que não tem a guarda.

O inciso segundo aborda sobre o poder parental, no sentido de que o alienador possui a intenção de tonar difícil a autoridade do outro.

Em seguida, o inciso terceiro corresponde ao guardião que impossi-bilita a criança ou o adolescente de manter contato com o outro genitor, após a prolação de decisão concessiva da guarda compartilhada ou uni-lateral, de modo que impede que a criança tenha comunicação por meio de telefone celular, redes sociais ou outros comunicadores eletrônicos.

No que se refere ao inciso quarto, relaciona-se ao ato de o alienador dificultar as visitas com o genitor, quando apresenta influência sobre o menor de idade para realizar atividade mais interessantes do que rece-ber a visita do alienado, ou seja, dificulta a convivência familiar entre ambos (MADALENO; MADALENO, 2015, p. 90).

Em consonância com o exposto, Carvalho (2018, p. 529) menciona que o inciso terceiro discorre acerca da impossibilidade de o menor de idade manter contato com o genitor alienado, por meio eletrôni-

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co, ligações ou até mesmo fora dos horários de visita. Não obstante, o inciso quarto apresenta que o alienador “[...] cria inúmeras situações agradáveis e interessantes para atrair o filho coincidentemente nos dias de visita, levando-o a recusar a convivência com o outro genitor [...]” (CARVALHO, 2018, p. 529).

Outrossim, o inciso quinto prevê uma forma de alienação em que o alienador omite informações pessoais de extrema importância sobre o filho, que dificulta a presença do genitor alienado na formação psicos-social da criança. Além disso, o inciso sexto trata de um ato altamente grave, que é o ato de alienação parental por meio de falsas denúncias contra o não guardião e seus familiares. E, ainda, o inciso sétimo aborda sobre a mudança de domicílio, sem justificativa para evitar a convivên-cia da criança com o alienado (MOREIRA, 2015, p. 64).

Nessa esteira, Ramos (2016, p. 154) evidencia a respeito do inciso quarto, que trata do ato do alienador não cumprir o acordo judicial acer-ca da convivência ou visita do menor de idade com o genitor alienado, no sentido de dificultar o encontro entre ambos. O inciso quinto versa sobre a omissão de informações do menor (sic) para aquele que não está com a guarda, ao passo que o sexto corresponde ao ato mais grave de alienação parental, que diz respeito a falsas denúncias quanto ao alie-nado e seus familiares. Importante destacar que Moreira (2015, p. 64) e Ramos (2016, p.154) evidenciam as falsas denúncias como o ato mais grave de alienação parental.

Como pontua Gonçalves (2019, p. 297), a “[..] lei em apreço deixou claro o que caracteriza a alienação parental, transcrevendo uma série de condutas que se enquadram na referida síndrome, sem, todavia, consi-derar taxativo o rol apresentado”. Nesse contexto, é oportuno destacar que a “[...] lista apresentada pelo legislador é apenas exemplificativa, ou seja, mesmo que a conduta no caso concreto não esteja descrita ex-pressamente no citado dispositivo legal, ela pode caracterizar alienação parental [...]”. (ARAUJO JÚNIOR, 2019).

De acordo com Trindade (2013, p. 25), além dos atos praticado nos moldes da Lei nº 12.318/10, verifica-se que o alienador também possui condutas de desrespeito às regras da sociedade, é manipulador, apre-

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senta resistência em ser avaliado, possui falso interesse pelo processo judicial que tem por objetivo descobrir a alienação parental, além de ter por hábito atacar as decisões judiciais. Destaca-se que o rol apresentado pelo legislador tem apenas o objetivo de auxiliar na caracterização de condutas no âmbito do Poder Judiciário, sendo exemplificativo.

Não obstante, os atos do alienador para desqualificar a pessoa que não detém a guarda também consistem na “contaminação do objeto”, uma vez que o guardião passa a destruir os objetos dados pelo alienado na tentativa de mantê-lo afastado. Além do mais, as hipóteses previstas no art. 2º da Lei nº 12.318/10 não são taxativas, consoante já menciona-do, de maneira que o juízo de família poderá identificar outras atitudes caracterizadoras da alienação parental (ROSA, 2018, p. 458).

Nesse sentido, o art. 5º da Lei nº 12.318/10 dispõe que, “havendo in-dício da prática de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicosso-cial”. Assim, o papel do psicólogo é detectar a alienação parental, rea-lizar o acompanhamento, passar orientações para a família e, também, verificar possíveis alegações inverídicas durante o processo, como, por exemplo, a falsa denúncia de abuso sexual (PÁDUA, 2014, p. 101).

A realização da perícia é necessária para uma análise prudente e se-gura da situação concreta, por meio do apoio de um profissional que, com sua experiência e seu conhecimento técnico, fornecerá informa-ções ao magistrado, colaborando com a formação de sua convicção (GIMENEZ, 2017, p. 48).

Ademais, o alienador pode apresentar impulsividade, baixa autoes-tima, medo do abandono, esperando que os menores (sic) estejam dis-postos a obedecer aos seus comandos ou satisfazer seus anseios. Ou-trossim, pode até se desinteressar pela criança e fazer da demanda pela guarda apenas um instrumento de poder e controle, e não um desejo de afeto e cuidado (FREITAS, 2015).

Para Serafim e Saffi (2014, p. 99), “a motivação para a alienação pode ser muitas, como solidão decorrente da separação, falta de con-fiança, ódio direcionado ao ex-companheiro, motivações econômicas, vinganças”. Consoante ficou demonstrado, algumas características e

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comportamentos do alienador são apontados em legislação específica, ou seja, a Lei nº 12.318/10, além do apoio da perícia psicológica para que, assim, possam ser tomadas as medidas necessárias em razão dos acontecimentos.

A seguir, será tratado a respeito da implantação de falsas memórias.

2.3 Implantação de falsas memórias

Orienta Féres-Carneiro (2007 apud MOLD, 2013, p. 119) que “a principal característica desse comportamento ilícito e doentio é a lava-gem cerebral no menor (sic) para que atinja uma hostilidade em relação ao pai ou mãe visitante”.

No dizer de Carvalho (2018, p. 525), a implantação de falsas memó-rias é uma das características do alienador, que faz com que o menor (sic) acredite que foi abandonado e rejeitado pela pessoa que não detém a guarda, contraindo ódio e sendo cúmplice do guardião. O filho repete as mesmas frases que aprendeu durante o processo de alienação e, desse modo, afasta-se do genitor alienado.

Na opinião de Rizzardo (2019), a criança passa a refletir a respeito dos sentimentos negativos do guardião, uma vez que, dada a inocência própria da tenra idade, acredita nas histórias que lhe são contadas. Com o passar do tempo, o menor de idade apresenta consequências em face da implantação das falsas memórias, como a tendência a se reprimir ou esconder, cria problemas no círculo de amizades e na escola.

No mesmo sentido, Pereira menciona (2015, p. 74) sobre o alienador:

[…] é um usurpador da infância, que se utiliza da ingenuidade e inocência das crianças para aplicar o seu golpe, às vezes mais sutil, mais requintado, às vezes mais explícito e mais visível, e o filho acaba por apagar as memóriasde convivência e de boa vivência que teve com o genitor alienado.

Além do mais, a implantação de falsas memórias associa-se também com a denunciação caluniosa de abuso sexual, quando o alienador, na intenção de fazer com que o menor (sic) se afaste da pessoa que não detém a guarda, relata fatos que não ocorreram ou acrescenta detalhes

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irreais em situações que aconteceram. Desse modo, o filho passa a acreditar na história contada pelo guardião e afasta-se do outro genitor (ARAÚJO, 2013, p. 210).

Exemplificando o caso de implantação de falsas memórias, Guazzelli (2013, p. 192) apresenta o seguinte:

A criança narra ao guardião que o pai, durante uma visita, não dei-xou o filho tomar sorvete depois do parque. Em vez de a guardiã tentar explicar ao filho que já devia estar tarde e era quase hora do jantar, ou, ainda, que era um dia frio, ou, enfim, qualquer coisa que explicasse a conduta paterna, ela aproveita o ensejo e reforça para a criança que o papai é mau e que o menor tem de ter cuidado com ele, pois não é um bom pai.

Para Duarte (2013, p. 154), “as mentiras inventadas pelo guardião alienador têm como alvo principal denegrir e destruir o não guardião, dizendo que tal genitor (a) só quer ver os filhos para machucá-los, fe-ri-los em sua integridade física, psicológica e moral”. Partindo desse ponto, entende-se que as falsas memórias implantadas pelo alienador no menor de idade caracterizam a prática de alienação parental, sendo que o guardião, ao tentar afastar o cônjuge alienado, novamente causa prejuízo à criança.

Com essas considerações, a seguir será tratado a respeito da guarda e de suas modalidades.

3. GUARDA E SUAS MODALIDADES

De acordo com Cezar-Ferreira e Macedo (2016, p. 83), a guarda é um dos atributos do poder familiar, sendo que, “após a separação conjugal, qualquer que seja a organização de família, os filhos menores e os in-capazes por razão que não a idade deverão ficar sob os cuidados diários de um dos pais ou de ambos”.

E, na eventual dissolução do vínculo conjugal, os pais, como deten-tores da autoridade familiar, têm a prerrogativa de atuar na criação dos filhos menores, uma vez que assim podem conduzir a formação e edu-cação destes. Dessa forma, poderá ser requerida a guarda ao juízo, com-

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partilhada ou consensual, observado o princípio do melhor interesse da criança, em atenção aos interesses morais, materiais, sociais e mentais do menor (sic) (GRISARD FILHO, 2016, p. 79; MADALENO, 2019).

Nesse sentido, leciona Figueiredo e Alexandridis (2014, p. 39): “[...] a guarda constitui um desdobramento do direito de convivência manti-do em relação aos filhos [...] de zelar pelo cuidado, proteção, educação e custódia dos filhos, por um dos genitores ou por ambos de forma si-multânea”. Com essas considerações, passa-se aos tipos de guarda mais habituais, quais sejam, a compartilhada e a unilateral.

3.1 Unilateral

É oportuno verificar a guarda na modalidade unilateral. No entendi-mento de Pereira (2015, p. 359), é a guarda executada de forma unilate-ral por um dos genitores ou por uma única pessoa. Até o advento da Lei nº 11.698, de 9 de junho de 2008, que trata da guarda compartilhada, era regra a unilateral. O fato é que esta tem sido utilizada como um ins-trumento de poder entre os genitores que, pelo término conflituoso do relacionamento, utilizam os filhos como meio de vingança, sendo que essa característica pode ser observada como ato de alienação parental.

É relevante destacar que, caso não haja acordo entre os genitores, deverá ser observada a guarda compartilhada, desde que cumpridos os atributos do art. 227 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, levando em consideração o afeto e o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente, de modo que, se um dos genitores não preencher o mínimo do que fora exposto, será atribuída a guarda ao outro (RODRIGUES, 2019, p. 294).

A dicção do dispositivo constitucional suso referido dispõe:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à pro-fissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

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O art. 1.583, § 1º, do Código Civil, na sua primeira parte, conceitua como guarda unilateral:

Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direi-tos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal super-visão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para soli-citar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saú-de física e psicológica e a educação de seus filhos. (BRASIL, 2002).

Na opinião de Gonçalves (2019, p. 523), “essa tem sido a forma mais comum: um dos cônjuges, ou alguém que o substitua, tem a guarda, enquanto o outro tem, a seu favor, a regulamentação de visitas”. O § 5º do referido dispositivo legal prevê que: “Estabelece-se, assim, um de-ver genérico de cuidado material, atenção e afeto, por parte do genitor a quem não se atribuiu a guarda [...]”.

Consoante dispõe o art. 1.583 do Código Civil, o genitor que não obtiver a guarda do menor de idade tem o dever e o direito legal de supervisionar o interesse do menor (sic) e o desempenho do guardião, o que gera a responsabilidade de fiscalizar. Ademais, tem a prerrogativa de convivência, ou seja, o chamado “direito de visita”. Não obstante, caso o menor estiver sobre os cuidados do outro cônjuge, em razão do direito de visitas, não haverá responsabilidade do guardião em relação à criança durante esse período (LEVY, 2016, p. 124; LISBOA, 2013, p. 177).

O § 6º do art. 1.584 do Código Civil aponta que o estabelecimento público ou privado é obrigado a prestar informações, a quaisquer dos genitores, sobre os filhos destes, sob pena de multa diária fixada em Lei, sendo esta mais uma forma de a pessoa que não detém a guarda super-visionar a atuação do guardião (ROSA, 2018, p.433).

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Esclarece Ramos (2016, p. 105) sobre a guarda unilateral que “a au-toridade parental não é retirada do genitor não guardião, que continua podendo, ao lado do guardião, tomar decisões sobre o futuro do infan-te”. E Lôbo (2008 apud MALUF; MALUF, 2018, p. 630) sustenta que “[...] nenhum fato é decisivo para determinar a escolha do melhor guar-dião, mas certamente viabiliza o melhor interesse do filho menor, a per-manência com o genitor que melhor se adaptar à rotina da criança [...]”.

Desse modo, a guarda unilateral é concedida a apenas um dos geni-tores, uma única pessoa, que será o guardião. O outro, ou seja, a pessoa que não possui a guarda, terá o dever e o direito de fiscalizar a atuação do guardião, embora possa também participar na vida pessoal do menor (sic), além de tomar decisões conjuntamente com o outro genitor. (PE-REIRA, 2016, p. 57).

A seguir, será tratado a respeito da guarda compartilhada.

3.2 Compartilhada

Como mencionado por Filho (2002, p. 128 apud CEZAR-FERREI-RA; MACEDO, 2016, p. 174), “a guarda compartilhada só se confere quando os pais manifestam opção por ela, através de acordo para me-lhor atender os interesses seus e dos filhos. Se o acordo não é possível, o Tribunal decide por eles”. Assim, pode-se conceituar a guarda compar-tilhada como a possibilidade de os filhos de pais separados estarem sob os cuidados de ambos, de maneira que estes últimos possuem a mesma autoridade legal para conviver com os filhos em igualdade de condições e, também, tomar decisões para a sua vida (RAMOS, 2016, p. 73).

A conceituação de guarda compartilhada pode ser encontrada no art. 1.583 do Código Civil:

Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, §5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direi-tos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.

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§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de mo-radia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos. (BRASIL, 2002).

A razão pela qual se estabelece a guarda compartilha é no sentido de ambos os pais exercerem suas funções e ajudarem a manter o laço fa-miliar, ainda que haja a separação dos genitores, ao contrário da guarda unilateral, que pode afastar a presença e a participação do genitor que não ficou com a guarda (MADALENO; MADALENO, 2018, p. 201). Além disso, esclarece Akel (2016, p. 43) que “na guarda compartilhada deve inexistir disputa entre os genitores que, de forma equilibrada, de-verão viver em sua plenitude a relação com seus filhos”.

Ademais, o § 2º do art. 1.584 do Código Civil estabelece que, quando não houver acordo entre os genitores sobre a guarda, será aplicada a guarda compartilhada, salvo na hipótese de um dos genitores declarar que não deseja a guarda. Fica caracterizado que, com essa redação, o referido dispositivo legal denota que a guarda compartilhada torna-se preponderante, de forma que prevalece sobre a unilateral (PEGHINI, 2016, p. 59). Partindo desse pressuposto, Levy (2016, p. 124) aborda que “[...] a lei é projetada com o objetivo de enaltecer e garantir formal-mente a participação igualitária da figura paterna na criação e educação de seus filhos, buscando gerar uma nova cultura e transformar o para-digma vigente [...]”.

Além disso, a Lei sobre guarda compartilhada, alterada no ano de 2008 e, em seguida, no ano de 2014, teve como objetivo assegurar o afeto entre o menor e o pai ou a mãe após a separação do casal, uma vez que apenas um deles ficaria com a guarda. Como consequência, a guarda compartilhada foi adotada com prioridade sobre as demais (GROENINGA, 2016, p. 145).

Diante disso, ainda que não haja acordo, leciona Gama (2016, p. 164) que “outro aspecto de relevo foi o reconhecimento da possibilidade de a guarda compartilhada ser estabelecida mesmo na falta de acordo entre os pais, tendo como norte e referência o melhor interesse da criança [...]”. Nesse mesmo norte, Lima (2016, p. 309) aponta que, “ao se ava-liar a adoção de qualquer modalidade de guarda de filhos, é imperioso

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que sempre se tenha como regra norteadora o princípio do melhor inte-resse da criança e adolescente [...]”.

Ressalta-se que a guarda compartilhada não possui como definição que o filho resida metade do tempo com o pai e metade com a mãe; diz respeito ao genitor não guardião participar dos eventos, da educação, de decisões importantes na vida do menor tanto quanto o outro genitor, o que traz mais equilíbrio na função materna e paterna (WEISS, 2016, p. 330). Observa-se que a guarda compartilhada é uma maneira de distri-buir as funções dos pais e, também, fazer com que se minimize eventual sofrimento oriundo da separação dos genitores.

A seguir, será tratado a respeito da denunciação caluniosa e da alie-nação parental.

4. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA E ALIENAÇÃO PARENTAL

A denunciação caluniosa é temática relevante no âmbito da alienação parental, na medida em que vislumbrada em muitas situações no Poder Judiciário. É conceituada no sentido de que o alienador que, na intenção de romper a relação entre a pessoa que não detém a guarda e a crian-ça ou adolescente, utiliza o Poder Judiciário para promover campanha desmoralizante, por meio de falsas denúncias, inclusive em relação a abuso sexual. Salienta-se que essa conduta do alienador tem por obje-tivo convencer o juiz e os profissionais do caso, mas o principal foco é convencer o próprio filho de que o fato realmente existiu, por meio da implantação de falsas memórias (SILVA, 2015, p. 38).

Na visão de Silva (2015, p. 38), “[...] esse mecanismo de falsas acusa-ções e inverdades disseminadas é na maioria das vezes usado exclusiva-mente para ofuscar os operadores do direito [...] principalmente aquele que possui a prerrogativa de julgar e decidir sobre o ato espúrio”. Os relatos de abuso sexual são utilizados como subterfúgio para que o alie-nador ganhe mais tempo com o menor e faça com que o genitor aliena-do passe a ser considerado como uma pessoa mal-intencionada.

No dizer de Rosa (2018, p. 457), o alienador busca qualquer meio para afastar o não guardião da criança. A partir disso, é realizada a im-

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plantação de falsas memórias, em que o guardião, mesmo expondo o menor de idade a exames e perícia, continua com o jogo de manipu-lação para suspender a convivência do alienado com o filho. Ademais, o requerimento de medida protetiva, segundo a Lei Maria da Penha, desprovido de fundamento, também se apresenta como meio de afastar a criança e o genitor.

De modo geral, segundo Carvalho (2018, p. 530), as denúncias falsas podem ocorrer “[...] após o alienador implantar na memória do filho informações irreais e ilusória, induzindo-o a acreditar e relatar fatos in-verídicos como se efetivamente tenham ocorrido, o que é denominado de síndrome das falsas memórias”.

Um dos argumentos mais utilizados e eficazes para afastar o não guardião da criança é o relato de abuso sexual, consoante já mencio-nado, uma vez que, comprovado, causa a ruptura definitiva do contato entre ambos. Por diversas vezes, esse relato é caracterizado como uma falsa denúncia, apenas com o propósito de alcançar, perante o Poder Judiciário, a ruptura da convivência do não guardião com o filho. O ge-nitor alienado passa a ser um intruso ou inimigo, sendo desmoralizado. Dessa maneira, o guardião obtém o controle da guarda sobre o menor (sic) (DUARTE, 2013, p. 146).

Como descrito por Ramos (2016, p. 155), essa denúncia, levada ao juízo competente, desencadeia situações delicadas. Durante o período em que se determina a realização de perícia para averiguar a veracidade dos fatos, é recomendável que o juiz reverta a guarda ou suspenda as visitas, de modo que a convivência entre ambos, nessa etapa, poderá fi-car prejudicada. Assim, como é de difícil identificação a existência dos abusos, a criança poderá sofrer consequências irreversíveis, tais como, paranoias, em razão da implantação de falsas memórias, além da perda de confiança, isolamento, estresse, desvio de personalidade e depressão.

Segundo Guazzelli (2013, p. 195):

A falsa denúncia é, também, uma forma de abuso, pois as crianças são, compulsoriamente, submetidas a uma mentira, sendo emocio-nal e psicologicamente manipuladas e abusadas. Essa falsa denún-cia passa a fazer parte de suas vidas e, por causa disso, terão de en-

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frentar vários procedimentos (análise social, psiquiátrica e judicial) com o fito de esclarecimento da verdade.

No entendimento de Araújo (2013, p. 209), o alienador utiliza-se do Poder Judiciário na sua vingança, ao passo que, enquanto o processo está em andamento, tem a oportunidade de implantar ainda mais falsas memórias sobre o alegado abuso e o abandono por parte do genitor alie-nado. A criança fica no lugar da verdadeira vítima no processo, dessa vez não sexual, e sim moral e emocional.

Na avaliação de crianças vítimas de falsas acusações de abuso se-xual, visualiza-se as consequências dessa prática de alienação paren-tal, em que os menores (sic) apresentam depressão infantil, ansiedade, transtorno de identidade, dupla personalidade, sentimento de culpa e in-segurança. Ao longo do tempo, a criança passa a acreditar que realmen-te foi abusada e sentirá as consequências nos futuros relacionamentos (CALÇADA, 2015, p. 75). Nesse tipo de prática de alienação parental, o maior atingido não é o alienado, mas sim a criança.

Apesar de ser verificada por prova técnica na modalidade de perícia, alguns indícios são relevantes para visualizar que a denúncia de abuso sexual é falsa. É possível destacar que a criança precisa de estímulo para lembrar o que realmente aconteceu, quando há contradição no relato. Além disso, o sentimento de vergonha ou culpa são escassos, o menor não apresenta atraso educativo em consequência do suposto abuso e, também, não possui agressividade ou baixa autoestima (ESTROUGO, 2010, p. 535; SILVA, 2013, p. 351).

A seguir, será apresentada a conclusão, em observância à fundamen-tação teórica mencionada no artigo.

5. CONCLUSÃO

Conforme apurado, este artigo tratou sobre a alienação parental, seu conceito, as características e as principais condutas praticadas pelo alie-nador, além de expor certas consequências causadas ao menor de idade. Em outro norte abordou acerca da guarda e suas modalidades mais usu-ais, ou seja, a unilateral e a compartilhada.

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Frisa-se, outrossim, que a alienação parental faz parte do âmbito jurí-dico do Direito de Família e envolve o indivíduo que detém a guarda da criança, a própria criança e a pessoa que não possui a guarda. Destaca--se também que o principal prejudicado na prática da alienação parental não é o guardião ou a pessoa que não possui a guarda, mas sim a criança envolvida.

Assim, conclui-se que a alienação parental viola as prerrogativas das crianças e dos adolescentes, causa traumas e, em consequência, exige uma rápida solução por meio do Poder Judiciário.

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Recebido em: 25/03/2021Aprovado em:10/08/2021

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DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS, LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A INFLUÊNCIA DOS

PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL

HATE SPEECH ON SOCIAL NETWORKS, LIMITS TO FREEDOM OF EXPRESSION AND THE INFLUENCE OF

JUDICIAL PRECEDENTS IN BRAZIL

Paula Büttner1

Resumo: O presente artigo discorre sobre o discurso de ódio – fenô-meno ocorrido por meio de manifestações discriminatórias e violentas, que ultrapassam a mera opinião –, o seu potencial lesivo em meio à atual sociedade da informação, principalmente por meio das redes so-ciais, bem como acerca do papel dos precedentes judiciais na definição de hipóteses de restrição à liberdade de expressão, direito fundamental de extrema importância em um Estado Democrático de Direito, como o Brasil. Objetivando-se aprofundar o tema, empregou-se, no presente trabalho, um estudo bibliográfico e utilizou-se do método de raciocí-nio dedutivo de análise. Concluiu-se que há manifestações que serão consideradas atos ilícitos, ensejando a reparação civil dos danos causa-dos; outras serão enquadradas em tipos penais, criminalmente puníveis. Portanto, para cada lesão envolvendo a manifestação do pensamento, deve-se analisar o contexto, a gravidade e se existe o correspondente respaldo legal. No contexto do discurso de ódio, conforme o entendi-mento jurisprudencial, a liberdade de expressão poderá sofrer restri-

1. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientada pelo Professor Mestre José Jacir Victovoski; Pós-Graduada em Direito Público e Privado: Material e Pro-cessual, pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC), orientada pelo Professor Doutor Rogério Duarte da Silva. Ba-charela em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), Campus de Joaçaba. Residente Judicial no Tribunal de Justiça de Santa Cata-rina. E-mail: [email protected].

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ções, justificada quando exercida de maneira abusiva e em violação a outros direitos fundamentais, como o da dignidade humana, entretanto apenas de forma excepcional. A partir da análise do presente embate, como também dos julgados apresentados, verificou-se a importância da fundamentação das decisões, com a definição de critérios na constitui-ção da ratio decidendi, pois influenciarão como precedentes judiciais para aplicação em casos semelhantes e, nessa linha, percebeu-se que entender os fundamentos determinantes da decisão paradigma é essen-cial para a segurança jurídica e a conservação de ditames legais com-preendidos pelo sistema jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Discurso de ódio. Redes sociais. Liberdade de expres-são. Precedentes judiciais.

Abstract: This article discusses hate speech, whichis a phenomen on that occurs through discriminatory and violent manifestations that go beyond mere opinion, its harm ful potential in the current information society, mainly through social networks, as well as about the role of judicial precedents in the definition ofhypothesesto restrict freedom of expression, a fundamental right of extreme importance in a Democratic State Ruledby Law, such as Brazil. In order to de epen the theme, a bibliographic study was used in this work and the deductive reason-ing method of analysis was applied. It was concluded that there are manifestations that will be considered illegal acts and they will giv-erise to civil reparation of the damages caused by them, other ones will be framed in criminal types, criminally punishable, therefore, for each harm that involves expression ofth ought, we must analyze its con-text, serious ness and if there is corresponding legal support for each case. In the context of hate speech, according to the jurispruden-tial understanding, freedom of expression may suffer restrictions, they are justified when exercised in an abusive manner and in viola-tion of other fundamental rights, such as human dignity, how ever, only exceptionally. From the analysis of the present dispute, as well as of the judgments presented, it was verified the importance of there as on ing of decisions, based on the definition of criteria in the con-stitution of the “ratio decidendi”, because they will influence as ju-dicial precedents for application in similar cases and, in this sense, it was realized that understanding the fundamentals that have deter-mined he paradigm decision is essential for the legal security and con-

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servation of legal dictates that are understood by the Brazilian legal system.

Keywords: Hate speech. Social networks. Freedom of expression. Ju-dicial precedents.

1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre os limites à liberdade de expressão é um tema muito debatido no Brasil e em sede internacional em função da colisão com vários outros direitos fundamentais, como o da dignidade da pes-soa humana. Esse assunto volta a ser objeto de debates a partir da ampla participação da sociedade nos meios de comunicação, como as redes sociais, em que manifestações pessoais são facilmente disseminadas.

O direito à liberdade de expressão se manifesta na sociedade da in-formação com mais dinamismo e informalidade nas redes sociais, nas quais se observa que alguns discursos se mostram, não raras vezes, vio-lentos, discriminatórios e intolerantes, por meio dos quais pessoas e grupos são desabonados em razão de sua raça, cor, etnia, religião, opção sexual, entre outros motivos, caracterizando o discurso de ódio.

Diante dessa controvérsia, entre direito à liberdade de expressão e garantia de outros direitos fundamentais, importante observar as deci-sões no Brasil sobre o tema, como também de que forma o sistema de precedentes judiciais, recentemente incorporado no ordenamento jurí-dico brasileiro, poderá influenciar na análise de casos em concreto com pretensões similares, sem a correspondente previsão legal expressa.

Dessa forma, esta pesquisa constituiu-se de um levantamento bi-bliográfico e análise jurisprudencial, que objetiva compreender no que consiste o discurso de ódio e seus impactos por meio das redes sociais, de que forma os Tribunais vêm se posicionando e a influência que re-presentarão a partir do sistema de precedentes judiciais fortalecido no Brasil, para, então, delinear as possíveis restrições ao direito à liberdade da expressão, de extrema importância no âmbito do Estado Democráti-co de Direito.

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2. O DISCURSO DE ÓDIO

Na atual sociedade da informação, com a disseminação do uso da internet e das redes sociais, os pensamentos, as ideias e as opiniões são expostas facilmente, com muita informalidade e, não raras vezes, ve-rificam-se discursos intolerantes contra pessoas e grupos, em razão de sua raça, cor, religião e condição sexual. Tais manifestações, de cunho violento e discriminatório, que ultrapassam a mera opinião, configuram o discurso de ódio.

Assim, busca-se compreender, no presente capítulo, no que consiste a sociedade da informação e de que forma a internet revolucionou as relações sociais e jurídicas, contribuindo para o acesso à informação e para o exercício da liberdade de expressão, como também para a prática de manifestações lesivas. Com efeito, conceitua-se o discurso de ódio, fenômeno que possui amplo impacto na coletividade atingida e em toda a sociedade, diante do poder difusor das redes sociais, além de atingir princípios norteadores do próprio Estado.

2.1 A sociedade da informação e o discurso de ódio nas redes sociais

Para compreender o contexto do discurso de ódio nas redes sociais, abordagem do presente trabalho, necessária se faz uma breve exposição acerca da sociedade da informação em que se vive, a qual compreende o novo modo pelo qual a sociedade se organiza com o uso das tecnolo-gias, revolucionando as relações sociais e jurídicas.

A conceituação da sociedade da informação está associada às tecno-logias de informação e comunicação, principalmente a rede mundial de computadores, entre outros meios, que, em conjunto com a sociedade, transformam o contexto social, criando uma sociedade global, inter-ligada pelo novo espaço virtual (GOUVEIA, 2004 apud ANTUNES, 2008, p.6).

Esse novo meio de comunicação, viabilizado pela rede mundial de computadores e pela internet, conforme explicam Pannain e Pezzela (2015, p. 40), proporcionou uma nova forma de interação social, am-

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pliou o espaço para o exercício da liberdade de expressão e resultou na exposição, praticamente imediata, das manifestações.

O direito à liberdade de expressão se manifesta por meio de várias maneiras. Ocorre que, na atual sociedade da informação em que se vive, onde as informações são compartilhadas e disseminadas por meio da internet, as manifestações do pensamento e a sua exposição se tornam muito mais céleres e acessíveis (PANNAIN; PEZZELA, 2015, p. 2-5).

A internet revolucionou a forma de o indivíduo exercer a sua liberda-de de expressão. Com ela, apresenta-se uma nova maneira de comuni-cação, incrivelmente rápida e ampla, que, segundo Silva (2011, p. 445-446), “permite ao homem externar seus pensamentos, suas opiniões, suas escolhas, externar a si próprio das mais variadas formas [...]” e possibilita o compartilhamento de informações entre pessoas das mais diferentes culturas.

A democracia pressupõe a democratização não somente com relação ao espaço para a fala, mas também quanto aos meios de comunicação livres para o acesso à informação e para as discussões, proporcionando, ainda “[...] um ambiente de desenvolvimento intelectual individual e coletivo de qualidade”. (HABERMAS, 1997 apud ONUMA, 2020, p. 263).

Nesse cenário, tem-se no acesso à informação (e consequentemente aos meios de sua transmissão, como a internet) uma forma de participa-ção social, pela qual se obtêm e disseminam informações e manifesta-ções, fatores que não podem ser dissociados de um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil. (FILHO; SARLET, 2016, p 21).

Não há como pensar em democracia sem a garantia de acesso à in-formação e à liberdade de expressão, para o que o acesso à rede se faz crucial na sociedade. Sobre a relevância do tema, expõe Onuma (2020, p. 253) que “dada a importância da comunicação interpessoal como elemento formador de pensamentos e opiniões e como parte essencial para o funcionamento dessa sociedade, torna-se clarividente sua conse-quente relevância dentro do âmbito político-social [...]”.

Ocorre que, com esse novo espaço de comunicação e troca de infor-mações – que aparenta conferir maior liberdade e igualdade entre os

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usuários – também surgem alguns pontos negativos, dentre eles a sua utilização para pretensões racistas e preconceituosas (ONUMA, 2018, p. 267).

Com mais dinamismo e informalidade nas redes sociais, também se observa que alguns discursos se mostram, não raras vezes, violentos, discriminatórios e intolerantes, pelos quais pessoas e grupos são des-prezados em razão de sua raça, cor, etnia, gênero, religião, condição sexual, nacionalidade, deficiência entre outras características. Trata-se do chamado “discurso de ódio”, “tema que, no Direito Comparado, é normalmente estudado sob o rótulo de ‘hate speech’”.(SARMENTO, 2006, p. 3).

O discurso do ódio é lesivo em razão de o pensamento de desprezo ser externalizado de alguma maneira. Nessa perspectiva, “o problema se instaura quando o pensamento ultrapassa esses limites dando lugar à duradoura presença da palavra publicada.” (WALDRON, 2010, p. 1601 apud SILVA et. al, 2011, p. 447).

O discurso de ódio, também conhecido como “hate speech”, pode ser interpretado como “[...] manifestações de desprezo ou intolerância em face de grupos determinados em razão da sua origem étnica, gênero, re-ligião, etc., o que se convencionou chamar de discurso do ódio - ou hate speech, em Direito Comparado”. (PANNAIN; PEZZELA, 2015, p. 2).

Há definições variadas para identificá-lo, mas todas denotam o mes-mo sentido. Na descrição de Brugger (2009, p. 2) “[...] o discurso do ódio refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discri-minação contra tais pessoas”.

Na mesma linha, pode-se dizer que o ato demonstra a intenção de atingir, inferiorizar e justificar a privação de direitos de grupos ou indi-víduos identificados como parte dele, os quais, geralmente, já possuem histórico de discriminação ou vulnerabilidade, pois, segundo Luna e Santos (2014, p. 232-233), também é definido como “[...] toda manifes-tação que denigra ou ofenda os membros das minorias tradicionalmente

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discriminadas, que estão em inferioridade numérica ou em situação de subordinação socioeconômica, política ou cultural”.

Acerca das ofensas e inverdades propagadas na internet, é necessária a diferenciação entre lesões a direitos decorrentes de publicações na internet, expressamente previstos na legislação atual, e o discurso de ódio. A Constituição pátria assegura, em diversos dispositivos, a puni-ção decorrente de condutas lesivas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, como exemplo. Também há previsão na legislação infra-constitucional, responsabilizando civil e criminalmente os agentes de condutas ilícitas e penalmente puníveis, prevendo sanções específicas (art. 927, do Código Civil; e arts. 139 e 140 do Código Penal).

No que tange à reprovação de condutas lesivas, advindas do exer-cício abusivo da liberdade de expressão, verifica-se, especialmente, o direito de resposta e de indenização por dano imaterial na esfera das relações privadas, explicam Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 517), mas também a penalização aos crimes de injúria, calúnia e difamação, inclusive, em suas formas qualificadas, como previsto no art. 140, §3º, do Código Penal.

Quanto ao discurso de ódio propriamente dito, não há previsão legal expressa. Luna e Santos (2014, p. pg. 243) frisam que, “apesar de a CRFB/88, promulgada após o fim da ditadura militar, garantir a igual-dade dos indivíduos perante a lei e a proteção legal contra a discrimina-ção, não existe no Brasil nenhuma legislação específica em relação ao discurso do ódio”.

Nesse contexto, em que as palavras são expostas de forma banaliza-da nas redes sociais, ocorrem o dano e, em se tratando do discurso de ódio, violações a direitos fundamentais, como a dignidade humana, o que justifica a necessidade de intervenção do Estado, conforme explica Silva et. al. (2011, p.447).

A lei que mais se aproxima da conduta, tratando do tema da dis-criminação e muitas vezes interpretada de forma extensiva, é a Lei nº 7.716/1989, que “define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. O seu art. 20 prevê como crime a prática, a incitação ou a

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indução da discriminação ou do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (BRASIL, 1989).

Diante do artigo mencionado, a lei vem sendo utilizada como base em decisões judiciais para punir e incriminar manifestações entendidas de ódio, consideradas racistas, entendidas como abusivas dos direitos de liberdade de expressão. Tem-se, como exemplo, o julgamento do Supremo Tribunal Federal, em Recurso em Habeas Corpus nº 146.303/RJ, de 2018 (BRASIL, 2020).

Outro julgamento que teve bastante repercussão foi o Mandado de Injunção coletivo nº 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), pelo qual o Plenário do STF, por maioria, estendeu a tipificação criminal, de discriminação e precon-ceito, prevista na Lei nº 7.716/89, também em relação à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero (BRASIL, 2019).

As decisões referem-se a manifestações de desprezo a determina-dos grupos sociais, em decorrência de característica, crença ou escolha pessoal, nas quais se citam o discurso e a incitação ao ódio como ideia determinante que configuraria o racismo. Importante salientar que o ra-cismo é uma conduta fortemente repudiada no Brasil, segundo o art. 4º, inciso VIII, da CF/88, e tipificada como crime inafiançável e imprescri-tível no art. 5º, inciso XLII, da CF/88. (BRASIL, 1988).

A Lei nº 7.716/1989, no intuito de regulamentar os crimes de racis-mo, definiu “os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”, e incluiu, nas penalidades, na forma prevista na lei, os crimes “resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou proce-dência nacional”, prevendo condutas específicas para tal caracteriza-ção. Como exemplo, o art. 7º criminaliza o ato de impedir ou recusar hospedagem por preconceito previstos na referida lei. (BRASIL, 1989).

Fato é que o art. 20, ao criminalizar a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, abriu espaço para diversos entendimentos, refletindo uma preocupação com a limitação à liberdade de expressão, ao ser considerada, nesse contexto, também uma ferramenta potencial para a prática do crime de racismo, o que também exige muita cautela

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na configuração do então chamado “discurso do ódio” em contraposi-ção a outros tipos penais já previstos, visto que não tem previsão legal expressa (LUNA; SANTOS, 2014, p. 243).

Assim, verifica-se a dificuldade em identificar quais serão os casos em que será admitida a restrição à liberdade de expressão, ao entrar em conflito com outros direitos fundamentais e bens constitucionais individuais e coletivos, protegidos pela Constituição, sendo necessária a construção de critérios para essa restrição, o que poderá ser, em certa medida, trabalhada com o sistema de precedentes judiciais. (FILHO; SARLET, 2016, p. 21).

3. O SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL

A partir da promulgação do Novo Código de Processo Civil - Lei nº 13.105/2015, verifica-se o estímulo à observância aos precedentes judiciais nas decisões a serem proferidas, os quais passam a ter eficácia obrigatória. Nesse sentido, o presente capítulo visa identificar no que consiste o precedente judicial no Brasil e analisar de que forma podem influenciar as decisões acerca da limitação da liberdade de expressão e em casos sem previsão legal expressa.

Ainda, procurar-se-á entender a importância da fundamentação das decisões e a necessidade de cautela dos operadores do Direito na utili-zação dos precedentes judiciais para que sua introdução no ordenamen-to jurídico venha a promover mais segurança jurídica, sem ultrapassar os ditames legais compreendidos pelo sistema jurídico brasileiro.

3.1 A tradição civil law e o sistema de precedentes judiciais

Os países se desenvolvem no que diz respeito à organização política e social, segundo seus valores e usos culturais, o que determina como o Direito será aplicado em cada um deles, configurando o sistema jurídi-co próprio, entendido como o “conjunto de instituições legais, proces-sos e normas vigentes”. (MERRYMAN; PÉREZ-PERDOMO, 2009, p. 21 apud BARREIROS, 2016, p. 185).

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O sistema jurídico é a tradição de determinada sociedade expressa-da por meio do Direito. Segundo Barreiros (2016, p.185), “o direito comparado reconhece a existência de duas tradições prevalecentes no Ocidente: a civil law (ou tradição romano-germânica) e a common law (ou tradição anglo-saxônica)”.

Na tradição da common law, como é o caso dos Estados Unidos, a fonte predominante de aplicação do Direito são as decisões judiciais anteriores sobre casos concretos semelhantes, o que caracteriza o re-levante papel dos precedentes judiciais. Em consequência, verifica-se que “o direito norte-americano adotou a doutrina do staredecisis, que atribui eficácia geral e vinculante às decisões da Suprema Corte. Stare-decisis origina-se da expressão latina staredecisis et non quieta movere, que significa: ‘ficar com o que foi decidido e não movimentar aquilo que estiver em repouso’”. (SOARES, 2019, p. 82).

O Brasil possui um sistema jurídico inspirado no modelo civil law, no qual a lei é a fonte principal de aplicação do direito, ou seja, as regras escritas e o princípio da legalidade prevalecem sobre as demais fontes do direito (doutrina, jurisprudência etc.). (CAMBI; FOGAÇA, 2016, p. 337).

As normas legislativas, por preverem direitos e deveres abstratos, impessoais, alcançando toda a sociedade, devem observar um processo legislativo para sua criação, o qual, segundo Soares (2019, p.73), “[...] se afigura como o conjunto de dispositivos normativos que disciplinam o procedimento a ser observado pelos órgãos competentes na elabora-ção dos diplomas legislativos” e de que deve resultar o texto normativo.

A respeito, a criação normativa se dá de outras maneiras. Além do processo legislativo, de que deve resultar o texto normativo, pode-se incluir a “[...] produção judicial da norma jurídica, sem excluir, obvia-mente, os processos de produção privada do direito (ex.: contratos) e a atuação administrativa (ex.: atos e decisões administrativas), uma vez que o direito é e somente o é enquanto produzido e aplicado socialmen-te”. (PASSOS, 2000, p. 68-69 apud BARREIROS, 2016, p.190).

No que diz respeito à produção judicial da norma jurídica, verifica-se uma crescente valorização dos precedentes judiciais no Brasil, o que

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pode ser observado a partir das alterações legislativas, iniciando-se com a Emenda Constitucional nº 03/93, “[...] que criou a ação declaratória de constitucionalidade e imprimiu eficácia erga omnes e efeito vincu-lante às decisões tomadas pelo Supremo”. (COÊLHO, 2016).

Assim, verifica-se que o ideal de uniformização do entendimento ju-risprudencial e a construção de um sistema de precedentes judiciais foi fortalecido com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, o qual demonstra se preocupar com a ideia de observância à jurispru-dência e de sua integridade. Conforme o art. 926, “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, e a abordagem ganha conteúdo específico no art. 927 (BRASIL, 2015).

Por essa razão, afirma-se uma aproximação do ordenamento jurídico brasileiro ao sistema da common law. Entretanto, Medina (2017, p. 896) esclarece que “[...] a preocupação com a qualidade da fundamentação dos julgados e com a estabilidade das orientações jurisprudenciais não é restrita a países que adotam o modelo de common law”.Isso não sig-nifica que “a jurisprudência teria assumido papel mais importante que a lei, na construção da solução jurídica” e enfatiza que o stare decisis não se confunde com o sistema common law, que são independentes, sendo que tal comparação pode levar à interpretação e aplicação equivocada dos institutos.

O que se vislumbra, certamente, é que, com a valorização dos prece-dentes judiciais no Brasil, não apenas o dispositivo da sentença, mas a fundamentação passa a ser essencial para legitimar a decisão, que deve adquirir maior estabilidade e coerência para conferir eficácia vinculan-te. (SARLET; MITIDIERO; MARINONI, 2020, p. 1110).

A partir dessa ideia, o novo Código Processual Civil frisa acerca da importância da fundamentação das decisões, demonstrando-se o ajuste dos fundamentos do precedente invocado ao julgamento em análise, como também elenca as hipóteses em que qualquer decisão judicial (de-cisão interlocutória, sentença ou acórdão) não será considerada funda-mentada (art. 489, §1º, do CPC/15). (BRASIL, 2015).

Assim, estimula-se uma atuação interligada do Poder Judiciário, por meio de um sistema de precedentes, que “promove estabilidade ao

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ordenamento jurídico, afasta a ocorrência da jurisprudência lotérica e evita a ocorrência de julgamentos contraditórios [...]”, preservando a segurança jurídica e a isonomia em relação aos jurisdicionados (CAM-BI; FOGAÇA, 2016, p. 339).

É necessário esclarecer a diferença entre os diversos institutos rela-cionados ao tema a fim de evitar equívocos, quais sejam: precedente, julgado, súmula e jurisprudência. O precedente, em sentido lato, “é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento nor-mativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos” e, em sentido estrito, é a própria “ratio decidendi”, conforme explicam Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 441), que é o fundamen-to que formou a decisão no caso individual.

A principal diferença entre o precedente e a jurisprudência é quanti-tativa, ou seja, o precedente é considerado em si mesmo, em um único julgado, individual, enquanto a jurisprudência representa um conjunto de decisões reiteradas sobre diversos casos concretos. (CAMBI; FO-GAÇA, 2016, p. 343).

Já as súmulas representam o resumo da interpretação pacificadas após diversas decisões sobre aquele conteúdo debatido nos processos, é “[...] a síntese da jurisprudência dominante, que, por sua vez, formou-se a partir de precedentes, isso é, de julgados significativos e merecedores de destaque, proferidos em um mesmo sentido”. (MEDINA, 2017, p. 895).

No que se refere ao julgado, tem-se que é a decisão individual, a qual não é o mesmo que precedente. Esse julgado ou decisão poderá configurar um precedente à medida que assumir uma relevância capaz de influenciar e ser reconhecida em decisões posteriores e poder formar a jurisprudência, que “é conjunto de decisões proferidas pelos juízes e tribunais.” (MEDINA, 2017, p. 894).

Com relação aos institutos próprios dos precedentes judiciais, consi-derados na nova sistemática implementada no Brasil, fez-se necessária a criação de instrumentos para operacionalizá-la. Para tanto, “o NCPC regulou alguns institutos básicos sem os quais o seu próprio funciona-mento poderia ser comprometido, quais sejam: ratio decidendi, obi-

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terdictum, distinguishinge overruling”. (CAMBI; FOGAÇA, 2016, p. 346).

Iniciando-se pela conceituação da ratio decidendi, “[...] ou, para os norte-americanos, a holding– são os fundamentos jurídicos que susten-tam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi”, que, nas palavras de Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 442), esta deve ser extraída do precedente para aplicação em casos análogos.

A obter dictum são, nas palavras de Cambi e Fogaça (2016, p. 344), “[...] as demais partes não essenciais do precedente, como a argumen-tação marginal sem a qual não seria alterado o resultado final – como aquela não conectada ao tema em julgamento ou aos fundamentos não relacionados às alegações das partes”. Essas partes não possuem efeito vinculante e não terão o mesmo peso na aplicação do precedente a ou-tros casos.

Em relação ao emprego da técnica de distinção, frisam Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 493) que o distinguishingserá o método uti-lizado pelo juiz para comparar e interpretar se o precedente (ratio deci-dendi) se amolda ao caso concreto em análise, se é adequado à constru-ção da sua decisão. Além da técnica do distinguishing, empregada para o confronto, a interpretação, a comparação e a aplicação do precedente ao caso concreto, existe a do overrulinge a do overriding, técnicas de superação do precedente, explica Medina (2017, p. 907).

Nesse contexto, os precedentes possuem força vinculante em relação a casos supervenientes, em situações semelhantes, conforme previsto no art. 927, CPC/15, ou melhor, “[...] a ratio decidendi contida na fun-damentação de um julgado tem força vinculante”, explicam Didier Jr., Braga e Oliveira (2015, p. 455), conforme exposto nos itens anteriores.

Na nova concepção apresentada, o intuito é assegurar por meio de alguns deveres implantados com o sistema de precedentes, como o da uniformização, da estabilidade, da integridade e da publicidade da ju-risprudência, além de proporcionar uma ordem processual mais segura e efetiva, “[...] em que são ressaltados os valores da funcionalidade, eficiência e celeridade”, explicam Cambi e Fogaça (2016, p. 345).

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Para que o julgador possa efetuar a verificação acerca da existên-cia de algum precedente aplicável ao caso em análise e para que tenha acesso aos posicionamentos anteriores, bem como à ratio decidendi, é de extrema importância manter os repositórios de jurisprudência muito bem organizados e publicados, conforme prevê o art. 925, §4º, CPC/15. (CAMBI; FOGAÇA, 2016, p. 346-348).

Com isso, verifica-se que os Tribunais e o sistema jurídico ainda têm muitas adaptações a efetivar, a iniciar pela distinção dos argumentos fundamentais que levaram ao resultado da decisão dos que apenas in-fluenciaram, com a definição de critérios de análise, como também a organização e a publicação dos julgamentos dentro da nova sistemática advinda com a vinculação dos precedentes judiciais.

3.2 Os “leading cases” sobre discurso de ódio

Diante da valorização dos precedentes judiciais, como também do problema enfrentado no presente trabalho, acerca da limitação à liber-dade de expressão frente às manifestações reconhecidas como discurso de ódio, de muita repercussão por meio das redes sociais, fundamental a análise dos primeiros precedentes ou dos chamados “leading cases” sobre o tema. (PANNAIN; PEZZELA, 2015, p. 11, grifo do autor).

O primeiro caso no Supremo Tribunal Federal (STF) que envolveu a discussão sobre discurso do ódio foi o famoso “caso Ellwanger”, as-sim conhecido em virtude da condenação do escritor chamado Siegfried Ellwanger, no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 82.424-2. Desta-ca Cavalcante Filho (2018, p. 151) que “[...] se trata daquele que pode ser considerado o único caso em que o STF se debruçou sobre o tema específico do hate speech, em sentido estrito”.

No caso, o escritor e sócio da empresa Revisão Editora Ltda. figurou como paciente do HC n. 82.424-2/RS, acusado do crime de racismo (art. 20 da Lei n. 7.716/89) pela autoria em obras com conteúdo antisse-mita, racista e discriminatório. Tratava-se de ação penal pelo crime de racismo, na qual foi absolvido em primeira instância e condenado em segunda. Ao impetrar Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, o

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pedido foi denegado. A defesa impetrou novo Habeas Corpus, alegan-do a prescritibilidade do crime praticado, no Supremo Tribunal Federal, que decidiu pelo indeferimento da petição. (SILVA et. al., 2011, p.456).

Da análise do caso, verifica-se que o escritor, ao publicar o seu pensa-mento, apesar de assegurada a liberdade de expressão, externou ofensas discriminatórias ao povo judeu, tentando inverter o ocorrido e relatado pela história. Explica Cavalcante Filho (2018, p. 155) que o “[...] editor de livros gaúcho, Siegfried Ellwanger Castan, escreveu, publicou e edi-tou a obra ‘Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da Mentira do Século’, no intuito de demonstrar que o verdadeiro extermínio ocorrido na Segunda Guerra teria vitimado os alemães”.

Interessante a análise do julgamento, visto que, na defesa, se alegava que os judeus não constituíam uma raça, mas um povo, motivo pelo qual não haveria incidência no crime de racismo, mas o STF enten-deu que, apesar de não haver mais a divisão dos homens em raça, pois “cientificamente não existem distinções entre os homens”, a divisão dos homens em raças é uma construção “político-social”, da qual se origina o racismo, nos termos do proferido na decisão (BRASIL, 2004).

Nesse sentido, chama a atenção a criação ou construção de uma nova definição para o racismo por meio de uma interpretação “teleológica e sistêmica da Constituição Federal”, resultando em uma definição “jurí-dico-constitucional do termo” (BRASIL, 2004).

Dessa forma, a partir da análise do caso, pode-se confirmar que o direito fundamental à liberdade de expressão no Brasil não é absoluto. Conforme explicam Filho e Sarlet (2016, p. 17), “[...] encontra limites na dignidade da pessoa humana de todas as pessoas e grupos afetados quando utilizada para veicular mensagens de teor discriminatório e des-tinadas a incitar o ódio e até mesmo a violência”.

Contextualizando acerca do tema no âmbito digital, já se verificam diversas decisões nas quais se levantou a questão da ofensividade ad-vinda de manifestações agressivas publicadas na internet. De início, passa-se à análise de duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que podem ser consideradas as primeiras a mencionar o termo discurso do ódio em casos ocorridos por meio da internet, são o Acórdão em Ha-

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beas Corpus (HC) n. 109676 e a Decisão Monocrática, em sede liminar, em Reclamação n. 11292.

No primeiro caso, no qual o Habeas Corpus n. 109676 foi negado, o paciente foi condenado pelo crime de injúria qualificada pelo precon-ceito, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal. O julgamento teve mínima abordagem acerca do discurso do ódio, mas fez referência à necessidade de coibição de manifestações preconceituosas e discrimi-natórias e ao repúdio ao discurso de ódio (BRASIL, 2013).

Na Reclamação n. 11292, o Supremo Tribunal Federal (STF) enten-deu por suspender a liminar concedida em Acórdão pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual foi julgada procedente a ação movida pela entidade que organiza e promove rodeio em Barretos, para determinar a proibição de divulgação na internet de opiniões ofensivas à entidade, que afirmava crueldade cometida com animais, por meio da utilização de um instrumento chamado sedém, em rodeios. (BRASIL, 2011).

No caso em tela, o Tribunal não entendeu restar configurado um dis-curso de ódio, tampouco alguma ofensa em relação à entidade e, nesse sentido, a liminar proferida em acórdão impediu que uma opinião fosse veiculada, o que não corresponde à democracia brasileira, na qual há espaço para circulação de opiniões divergentes. Apesar de mencionada a questão do discurso de ódio, não foram elencados maiores critérios ou discussão para sua caracterização, apenas a menção de que é uma ex-ceção à restrição ao direito à liberdade de expressão. (BRASIL, 2011).

No Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que o primeiro julga-mento acerca do tema ganha espaço no caso “Mayara Petruso”, verifi-cado em sede de Habeas Corpus n. 371.723, no qual a impetrante requer a suspensão da execução da pena e reconhecimento da incompetência da Justiça Federal para julgar a paciente, com determinação de que o fato seja julgado pela Justiça Estadual de São Paulo, o que não foi co-nhecido. (BRASIL, 2016).

O Habeas Corpus n. 371.723 foi contra o acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (Apelação Criminal n. 0012786-89.2010.4.03.6181), em que a paciente foi condenada pelo crime de preconceito, previsto no art. 20, caput, §2º, da Lei n. 7.716/1989, em

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virtude de ofensas proferidas no Twitter da ré contra o povo nordestino, entendidas como “manifestação preconceituosa que excede os limites jurídicos da manifestação do pensamento”, conforme decisão do Tribu-nal. (BRASIL, 2016).

Trata-se do “leading case” de discurso do ódio proferido por meio da internet, no qual, conforme explicam Pannain e Pezzela (2015, p. 11, grifo do autor), a estudante Mayara Petruso publicou, em sua página na rede social Twitter: “Nordestisto (sic) não é gente. Faça um favor a Sp: mate um nordestino afogado!”. A conduta, segundo o entendimento doutrinário e jurisprudencial, se enquadraria no denominado discurso do ódio.

Dessa forma, verifica-se que, no âmbito da jurisprudência, os direitos fundamentais, principalmente a dignidade da pessoa humana, “[...] é figura amplamente presente no processo decisório judicial, inclusive (e cada vez mais) no âmbito da jurisprudência do STF, em que a dignidade atua como critério de interpretação e aplicação do direito constitucio-nal e infraconstitucional [...]”, destacam Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 276).

Nessa perspectiva, por não haver previsão legal expressa, em se tra-tando do discurso de ódio, pode-se inferir que os Tribunais, por meio das decisões dos juízes, vêm sendo a resposta do Estado às lesões e violações aos direitos fundamentais decorrentes do exercício abusivo da liberdade de expressão e, nesse ínterim, influenciarão como prece-dentes judiciais em futuras decisões. Porém, alerta-se para o fato da necessidade de melhor definição de critérios de ponderação para que, então, se possa identificar os fundamentos determinantes para a restri-ção à liberdade de expressão sem, com isso, ferir a democracia.

4. LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A Constituição Federal brasileira insere o direito à liberdade de ex-pressão no rol de direitos fundamentais, abarcando várias espécies. No presente trabalho, no que tange à abordagem específica acerca das possíveis restrições à liberdade de expressão, optou-se por restringir o

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estudo ao viés da manifestação do pensamento ou exposição da opi-nião. Dessa forma, no presente capítulo, reitera-se o importante papel da liberdade de expressão no Brasil, estruturado em um Estado De-mocrático de Direito, e identifica-se a sua colisão com outros direitos fundamentais, advinda quando do seu exercício abusivo.

4.1 Estado Democrático de Direito e liberdade de expressão

O Brasil, ao instituir um governo democrático com a Constituição Federal de 1988, pautou-se em princípios e valores fundamentais, que devem nortear todas as ações para o bem-estar do povo, expressamente previstos no Título I da CF/88, como o da dignidade da pessoa humana e o do pluralismo político.

A dignidade da pessoa humana aparece como fundamento do Estado Democrático de Direito, e “do respeito e proteção da dignidade humana decorre que os seres humanos (portanto, o povo) formam o elemento dominante do (e no) Estado, ao passo que liberdade e igualdade (e os direitos fundamentais correlatos) exigem que todos possam, em condi-ções de igualdade, influir na vida estatal”. (MAURER, 2007, p.18 apud SARLET; MITIDIERO; MARINONI, 2020, p. 281).

A preocupação com a garantia à liberdade de expressão está intima-mente ligada ao exercício da democracia e à evolução das sociedades democráticas, visto que estas requerem a participação do povo como participantes do processo, como explicam Luna e Santos (2014, p. 231-232).

Isso porque a democracia não é apenas um conceito político, não é fim, é o meio pelo qual um povo busca seus valores, sua autoafirma-ção e seus direitos, os quais são conquistados no decorrer da história, a partir do primado do poder do povo. Bem pontua José Afonso da Silva (2014, p. 127-128) que “a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de ga-rantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”.

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A liberdade de expressão tem destaque na Constituição Federal ape-nas no art. 5º, apesar de existirem diversos incisos trazendo os mais variados âmbitos de proteção (BRASIL, 1988). Pode-se compreender as seguintes espécies de liberdade a partir do gênero de liberdade de ex-pressão: liberdade de manifestação do pensamento (e de opinião), liber-dade de expressão artística, liberdade de ensino e pesquisa, liberdade de comunicação e de informação (ou imprensa) e liberdade de expressão religiosa. (SARLET; MITIDIERO; MARINONI, 2020, p. 512).

Importante diferenciar os diversos âmbitos da liberdade de expres-são, pois, apesar de destacar-se, no presente trabalho, a sua importân-cia sob o prisma geral, restringe-se à análise das possíveis restrições à liberdade de expressão no viés da manifestação do pensamento ou da exposição de ideias ou opiniões, no entanto enlaçado com as demais espécies de liberdade de expressão acima descritas, conforme aborda-se a seguir.

A partir da leitura do texto constitucional, verifica-se que a proteção da liberdade de expressão vai além de manifestar o que se pensa, pois abrange a sua exteriorização e a livre circulação de ideias nas fontes de comunicação. Assim, “[...] o reconhecimento constitucional do direito de expressão compreende a possibilidade de exteriorização de crenças, convicções, ideias, ideologias, opiniões, sentimentos e emoções, pelas mais diversificadas plataformas informativas hoje existentes”. (RO-THENBURG; STROPPA, 2015, pg. 3).

Para tanto, todas as manifestações de opiniões, críticas, das mais va-riadas formas (sons, imagens, escrita), pelos diversos meios de comuni-cação, sobre qualquer assunto, estão sob a proteção da liberdade de ex-pressão. Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 515) pontuam que “[...] em princípio todas as formas de manifestação, desde que não violentas, estão protegidas pela liberdade de expressão”.

Ainda, acerca de sua proteção, tem-se a percepção que, para ter li-berdade de expressão, é necessário apenas que não haja limitação ao indivíduo, o que a torna uma liberdade de cunho negativo, sobre a qual não há interferência do Estado. Entretanto, “[...] o Estado, ao contrário de ser inimigo da liberdade de expressão, pode exercer um papel po-

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sitivo para aqueles grupos que, sem a garantia do Estado, não conse-guem se expressar no espaço público porque há um ‘efeito silenciador’ promovido pelo discurso dos grupos dominantes”, conforme explicam Rothenburg e Stroppa (2015, p. 6).

Em função do valor de destaque conferido à liberdade de expressão, em prol de toda a sociedade, num Estado Democrático, como o Brasil, a intervenção para limitá-la deve ser excepcional. De acordo com Luna e Santos (2014, p. 231-232), toda intervenção “[...] deve ser vista como suspeita e exige uma justificativa especial. Constituições democráticas proíbem a censura”.

Nesse viés, procura-se analisar quais as restrições cabíveis ao direito fundamental à liberdade de expressão, no que tange às manifestações de ódio em redes sociais, quais os parâmetros a serem delineados em decisões judiciais – as quais servirão de precedentes para aplicação em casos análogos – de forma a não violar o Estado Democrático de Direito e proporcionar maior segurança jurídica.

4.2 Colisão entre direitos fundamentais

O exercício da liberdade de expressão, em suas mais diversas for-mas de manifestação, está diretamente ligado aos direitos de liberdade e igualdade e aos princípios da cidadania, do pluralismo e da dignidade da pessoa humana, assegurados pela Constituição brasileira e corres-pondentes a um legítimo Estado Democrático de Direito, como frisado por Luna e Santos (2014, p. 231-232).

A liberdade de expressão e a manifestação do pensamento têm tam-bém, no direito fundamental da dignidade da pessoa humana, o seu fundamento e proteção, tendo em vista que esta significa respeito à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, explicam Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 514), além de possuir especial relação com os princípios garantidores da democracia, revelan-do uma dimensão transindividual.

A democracia somente será verdadeira com a inclusão dos cidadãos aos espaços públicos de informação, como a internet, significando a

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inclusão daqueles grupos ainda tradicionalmente excluídos, o que, mui-tas vezes, resulta no seu silêncio e estigma de afirmações desabonado-ras, sem o devido confronto, sem poder de influência na opinião e na formação da vontade coletiva, prejudiciais aos objetivos democráticos. (SARMENTO, 2006, p. 34).

Nesse sentido, José Afonso da Silva (2014, p. 233) ensina que “mui-tas teorias definem a liberdade como resistência à opressão ou coação da autoridade ou do poder. Trata-se de uma concepção de liberdade no sentido negativo [...]”, entretanto “não é correta a definição de liberdade como ausência de coação. O que é válido afirmar é que a liberdade con-siste na ausência de toda coação anormal, ilegítima e imoral”.

Na sociedade contemporânea, está-se diante de uma crescente diver-sidade, a qual se observa nas diferenças étnica, social, cultural, religiosa etc., motivo pelo qual se faz cada vez mais necessária a aceitação e o respeito ao outro, na sua diferença, “reconhecendo o seu direito de vi-ver à sua maneira”, como pontua Sarmento (2006, p.39), de forma que a liberdade de expressão tem estrita ligação com a tolerância, inclusive, “[...] já que dita liberdade impõe à sociedade o respeito ao direito de cada um de pensar e de expor opiniões que muitas vezes desagradam profundamente a maioria das pessoas”.

Entretanto, em se tratando de limites de tolerância ou à liberdade de expressão, tem-se que, no caso do discurso de ódio, se está “[...] diante de violações e ameaças de direitos humanos, a resposta correta do Es-tado não é a tolerância. O seu papel, pelo contrário, é o de buscar evitar as lesões, e, caso isto não seja possível, punir os culpados e amparar as vítimas”. (SARMENTO, 2006, p. 41).

Diante do contexto brasileiro e, considerando que as relações sociais são imperfeitas (caso contrário não haveria legislação), impõe-se, ex-cepcionalmente, certas intervenções e limitações, como nos discursos de ódio, que devem ser restritos. Essa intervenção não significa que as pessoas devam defender o politicamente correto, mas repudiar mani-festações motivados pelo ódio, pela discriminação e pelo “sectarismo” (FILHO; SARLET, 2016, p. 26).

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Conforme posição doutrinária e confirmada em decisões do STF (ADPF 130), verifica-se que a liberdade de expressão tem preferência quando em colisão com outros direitos fundamentais, mas essa inter-pretação não deve ser direcionada a todos os tipos ou espécies da liber-dade de expressão, que deve ser compreendida abarcando-se “[...] a li-berdade de manifestação do pensamento, a liberdade de comunicação e de informação (relacionadas com a liberdade de imprensa), a liberdade de expressão artística, apenas para citar as mais importantes”, pontuam Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 518).

Isso porque tal interpretação levaria ao entendimento de que o direi-to à liberdade de expressão, por não “admitir censura”, seria absoluto, superior e imune aos demais, sem qualquer possibilidade de limite ou restrição, o que será justificável em certos casos, conforme explicam Sarlet, Mitidiero e Marinoni (2020, p. 525): “[...] o controle do abuso da liberdade de expressão e censura são, portanto, noções que devem ser cuidadosamente diferenciadas”.

Acerca do tema, interessante mencionar a recente decisão do Supre-mo Tribunal Federal (STF), em ADI 4451, que declarou inconstitucio-nais dispositivos da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997), que determina-vam impedimentos às emissoras de rádio e televisão da veiculação de programas de humor envolvendo candidatos, entendendo tal norma ser cerceadora da liberdade de expressão, “[...] essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funciona-mento do sistema democrático”. (BRASIL, 2019).

Assim, censura ou limitação prévia não deve ser confundida com outras modalidades de restrição, as quais, da mesma forma, devem ter caráter excepcional quando for estritamente essencial à tutela, como ocorre nos casos do discurso de ódio, racismo e discriminação, que re-presentam sérias ofensas a outros direitos fundamentais e atacada a dig-nidade de todo um grupo social (FILHO; SARLET, 2016, p 22).

A ideia de que a liberdade de expressão é um direito absoluto, con-forme exposto, não é contestada. A controvérsia, que ainda segue em intenso debate e representa um dos maiores desafios na modernidade, não somente ao legislador, mas também para o Poder Judiciário, reside

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em saber “[...] quais são tais limites, como e em que medida se pode intervir na liberdade de expressão”. (SARLET; MITIDIERO; MARI-NONI, 2020, p. 273).

O problema reside no fato de que o discurso do ódio, o uso abusivo da manifestação do pensamento e os limites ou restrições para tanto não têm expressa previsão legal, motivo pelo qual há “[...] a necessidade de aferir a constitucionalidade de intervenções na liberdade de expressão [...] que não encontram respaldo em expressa reserva legal, pois decor-rentes e exigidas por conta da proteção simultânea e suficiente de outros direitos fundamentais”. (FILHO; SARLET, 2016, p 15).

Na hipótese de colisão entre direitos fundamentais, no caso do dis-curso de ódio, a igualdade, o pluralismo e a dignidade da pessoa huma-na devem servir de “[...] parâmetros que devem nortear as restrições à liberdade de expressão diante de discursos discriminatórios veiculados nos meios de comunicação, principalmente nas redes sociais”. (RO-THENBURG; STROPPA, 2015, p. 2).

Nos casos do discurso de ódio, deve-se considerar a dimensão da dignidade da pessoa humana também como fonte de dever positivo do Estado, no intuito de proteção de indivíduos diante de ameaças, como também em virtude da colisão do direito fundamental à liberdade de expressão com outros direitos fundamentais de igual relevo. Assim, a dignidade da pessoa humana, explica Sarmento (2006, p. 48), “[...] deve operar como um norte substantivo para a atuação do intérprete, ba-lizando e condicionando as ponderações de interesse empregadas para o seu equacionamento”.

Dessa forma, a baliza para restrição da liberdade de expressão, quando configurada um discurso de ódio, são os demais direitos fun-damentais constitucionais. O que veda o discurso é a possibilidade de comprometimento da ordem pública, violência, perigo à segurança de uma nação, afronta à reputação ou dignidade de uma pessoa ou ataques direcionados às características de um grupo social em particular. (PAN-NAIN; PEZZELA, 2015, p.2).

Assim, valer-se-á de um juízo de proporcionalidade e de razoabilida-de, além de outros critérios relevantes já reconhecidos, não dispensando

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uma motivação em concreto, como “no caso das vedações do assim chamado ‘discurso do ódio’ e da discriminação, além da proibição de evidentes e sérias ofensas à dignidade humana e aos direitos de perso-nalidade que lhe são correlatos”. (FILHO, SARLET, 2016, p.133).

Isso porque se trata de princípio em que “a máxima da proporcionali-dade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas”, e deve-se analisar a possibilidade diante de outro princípio antagônico (ALEXY, 2011, p.117).

A partir disso e da análise das decisões judiciais trazidas no presente trabalho, pode-se inferir que o Poder Judiciário Brasileiro justifica a limitação à liberdade de expressão, em se tratando de manifestações intolerantes e odiosas, quando violada a dignidade da pessoa humana, o que faz de forma repressiva (SILVA, 2011, p. 462).

Diante do exposto, infere-se que o fato de não haver critérios legais autorizadores da restrição à liberdade de expressão faz com que “nor-mas” sejam criadas pelo julgador, pois, como explica Alexy (2011, p. 282), “restrições a direitos fundamentais são normas que restringem uma posição prima facie de direito fundamental. [...] as restrições a direitos fundamentais são normas”, o que evidencia o papel crucial dos precedentes judiciais como novo paradigma, diante da sua vinculação em casos semelhantes futuros.

5. CONCLUSÃO

A proposta do presente trabalho teve por escopo para análise dos limites à liberdade de expressão em decorrência do discurso de ódio, constituído por manifestações discriminatórias, violentas e intolerantes, disseminadas por meio das redes sociais, em violação a outros direitos fundamentais, assim como a influência dos precedentes judiciais, tendo em vista que a restrição à liberdade de expressão não encontra amparo legal expresso.

Para tanto, no primeiro capítulo, observou-se como a sociedade da informação redefiniu as relações sociais no âmbito digital. Por meio

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das novas tecnologias da comunicação e informação, proporcionou-se maior acesso à informação e participação popular, mas também espaço para a prática de condutas lesivas, como o discurso de ódio, que, diante do dinamismo das redes sociais, tomam grandes proporções lesivas, fazendo-se necessária a interferência estatal para punição de atos que atentam contra os direitos fundamentais.

No segundo capítulo, estudou-se acerca da tradição jurídica brasilei-ra, baseada primordialmente no civil Law e no que consiste o sistema de precedentes judiciais no Brasil, que obteve valorização a partir do Código de Processo Civil de 2015. Observou-se que, com o objetivo de conferir uniformidade, estabilidade e segurança jurídica ao ordenamen-to jurídico, trouxe novos institutos, dentre eles, a ratio decidendi, ou fundamento determinante da decisão.

Dessa forma, na sistemática de precedentes, estes serão observados em casos futuros similares e terão muita influência em casos concretos, sem previsão legal específica. Nesse sentido, abordou-se os primeiros casos judiciais que enfrentaram o assunto do discurso de ódio em co-lisão com outros direitos fundamentais e sua repercussão, assim como outros julgamentos paradigmáticos envolvendo os limites à liberdade de expressão, percebendo-se que a proibição ou a punição dessas mani-festações ainda não se encontra totalmente definida.

Por fim, no terceiro capítulo, explanou-se sobre a importância do direito à liberdade de expressão no Brasil, estruturado em um Estado Democrático de Direito e, observou-se que o direito fundamental refe-rido poderá sofrer limitações por não ser um direito absoluto, entretanto apenas de forma excepcional. Ainda, pode-se concluir que o Poder Ju-diciário brasileiro atua de forma repressiva diante de condutas lesivas ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana, pautando-se, no caso de discurso de ódio, em outros princípios democráticos para fundamentar a sua restrição.

Acerca do sistema de precedentes judiciais, concluiu-se que surgiu uma redefinição de paradigmas, em que os fundamentos que sustentam as decisões judiciais passam a receber maior importância em função do papel vinculante dos julgamentos tidos como precedentes, que devem

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ser organizados, coerentes e acessíveis, de forma que todos os operado-res do Direito possam respeitá-los na busca por maior segurança jurídi-ca e uniformização do entendimento do Poder Judiciário.

Para tanto, verificou-se que são de extrema importância a devida fundamentação das decisões e a definição de critérios na constituição da ratio decidendi, possibilitando a melhor utilização dos métodos de comparação e superação dos precedentes e aplicação ao caso em estudo. Revela-se ainda mais relevante em casos como o debatido no presente trabalho, de restrição à liberdade de expressão, pois, por não haver o correspondente respaldo legal, se estará criando uma “norma”, a qual terá o poder de vincular casos similares no futuro.

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Recebido em: 30/04/2021Aprovado em: 10/08/2021

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https://doi.org/10.14295/revistadaesmesc.v28i34.p352

O TRIBUNAL DO JÚRI E A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DAS CONDENAÇÕES: UMA ANÁLISE À LUZ DOS PRECEDENTESE DA MÁXIMA DA

PROPORCIONALIDADE

THE JURY COURT AND THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE PROVISIONAL EXECUTION OF THE CUSTODIAL SENTENCES: AN ANALYSIS IN THE LIGHT OF CASE LAW

AND THE MAXIMUM OF PROPORTIONALITY

Natacha Back1

Resumo: A temática do presente artigo diz respeito à possibilidade de execução provisória das penas privativas de liberdade impostas pelo Tribunal do Júri no ordenamento jurídico brasileiro. Busca-se, partindo da hipótese de que a medida é incompatível com os princípios consa-grados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ex-por os posicionamentos favoráveis e contrários, bem como demonstrar sua possível inconstitucionalidade. O estudo foi desenvolvido utilizan-do-se o método de abordagem dedutivo, por meio de uma metodologia qualitativa, descritiva, prescritiva e baseada em pesquisas bibliográfi-cas, incluindo livros, artigos, legislações e consultas a sítios de órgãos públicos, além de precedentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, a fim de possibilitar maior compreensão no que tange à Lei nº 13.964/19 e aos princípios da soberania dos vereditos, do estado de inocência e do duplo grau de jurisdição. A partir da análise desses institutos e com aporte na regra da proporcionalidade, segundo a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, o resultado obti-do, mediante sopesamento moral exigido pela proporcionalidade em sentido estrito, foi no sentido de que o cumprimento imediato das con-denações do Júri não é razoável e viola princípios basilares do Estado

1. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).E-mail: [email protected]

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Democrático de Direito, devendo prevalecer o direito à liberdade e ao duplo grau de jurisdição do acusado.

Palavras-chave: Execução provisória da pena. Soberania dos veredi-tos do Tribunal do Júri. Estado de inocência. Duplo grau de jurisdição. Proporcionalidade.

Abstract: The article is about the possibility of provisional execution of custodial sentences imposed by the Jury Court in the Brazilian le-gal system. It is sought, based on the hypothesis that the measure is incompatible with the principles enshrined in the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, to expose the favorable and con-trary positions, as well as to demonstrate their possible unconstitution-ality. The study was developed using the deductive approach method, through a qualitative, descriptive, prescriptive methodology and based on bibliographic research, including books, articles, legislation and consultations in websites of public agencies, in addition to the place-ments of the Supreme Federal Court and the Superior Court of Justice, in order to enable a greater understanding of the Law nº13.964/19 and the principles of the sovereignty of verdicts, the state of innocence and the double degree of jurisdiction. From the analysis of these institutes and based on the proportionality rule, according to Robert Alexy’s the-ory of fundamental rights, the result obtained, through moral weighing required by proportionality in the strict sense, was in the sense that the immediate fulfillment of the Jury’s condemnations is not reasonable and violates basic principles of the democratic rule of law, and the right to freedom and the double degree of jurisdiction of the accused should prevail.

Keywords: Provisional execution of the sentence. Sovereignty of the Jury`s verdicts. Stateofinnocence. Doubledegreeofjurisdiction. Propor-tionality.

1. INTRODUÇÃO

Em um primeiro momento, o debate que envolve a possibilidadede o cumprimento imediato da pena não se refere tão somente às senten-ças proferidas pelo Conselho de Sentença, mas a qualquer condenação criminal não substituída por restritivas de direitos. Até o ano de 2009, o

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Supremo Tribunal Federal (STF) entendia que a presunção de inocên-cia não impedia a execução de pena confirmada em segunda instância; contudo, no julgamento do Habeas Corpus (HC) nº 84.078/MG, a Cor-te decidiu que o encarceramento estaria condicionado ao trânsito em julgado da condenação, ressalvada a possibilidade de prisão preventiva.

Modificando o entendimento consolidado, admitiu-se, no HC nº 126.292 julgado em 2016, o cumprimento de pena antes do seu trân-sito em julgado, desde que esgotados os recursos perante as instâncias ordinárias. O Plenário, por maioria de votos, considerou que essa medi-da não ofenderia o princípio constitucional da presunção de inocência, uma vez que, segundo o relator Min. Teori Zavascki, a manutenção da sentença penal, pela segunda instância, encerra a discussão sobre os fatos e as provas do caso, motivo pelo qual autorizaria o início de sua execução (BRASIL, 2016, p. 9).

A fim de evitar os efeitos da decisão, em maio do mesmo ano, o Par-tido Ecológico Nacional (PEN) (atual Patriota) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizaram as Ações Decla-ratórias de Constitucionalidade nºs 43 e 44, respectivamente, ao passo que o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) ajuizou a ADC nº 54 em abril de 2018. As três tendo por objeto, novamente, o questionamento acerca da possibilidade de se iniciar o cumprimento da pena antes de esgotadas todas as vias recursais. Deliberadas em conjunto, foi decla-rada a inconstitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade em face do princípio da presunção de inocência, restabele-cendo o posicionamento anterior, bem como a compatibilidade do art. 283, caput, do Código de Processo Penal, o qual dispõe que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e funda-mentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado” (BRASIL, 1941), com a Constituição Federal. Contudo, o presidente da Corte, Min. Dias Toffoli, afirmou, ao final do julgamento, que o enten-dimento firmado não deveria abranger as condenações pelo Conselho de Sentença, nos crimes dolosos contra a vida, por se tratarem de deci-sões soberanas (BRASIL, 2019b, p. 477).

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Com a aprovação da Lei nº 13.964/2019, a questão controvertida re-nasce alicerçada na incerteza quanto à constitucionalidade da previsão que possibilita executar de forma imediata as sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri. Reconhecida a repercussão geral da matéria por unanimidade, o tema está atualmente em pauta no Recurso Extraordinário nº 1.235.340 e, embora com seu julgamento suspenso, já conta com o voto do relator Min. Luís Roberto Barroso no sentido da possibilidade da medida, independente da pena.

O presente trabalho, recorrendo à pesquisa bibliográfica, utilizou o método de construção dedutivo e o vasto leque de discussões no que diz respeito à (in)constitucionalidade da execução da pena antes de per-corrida toda a cadeia recursal, no âmbito do processo penal brasileiro, como marco teórico referencial. Os argumentos favoráveis e contrários à medida encontrados serão apresentados, para fins meramente didá-ticos, em duas correntes, idealizadas pelo estudo exclusivamente para esse fim, analisando o debate a partir da regra da proporcionalidade, elucidada pela teoria de Robert Alexy, especialmente no que se refere à colisão entre princípios e à maneira adequada de se aplicar o sopesa-mento nesses casos.

A priori, imprescindível apresentar as modificações levantadas pela Lei nº 13.964/19 no âmbito do Tribunal do Júri, principalmente quanto à nova redação da alínea “e” do art. 492, inciso I, do Código de Pro-cesso Penal, e sua relação com o princípio da soberania dos vereditos, previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da Constituição da Re-pública Federativa do Brasil de 1988. O segundo capítulo, por sua vez, busca elucidar os princípios do estado de inocência, disposto no art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna, e do duplo grau de jurisdição, instituído pelo art. 8º, item 2, alínea “h”, do Pacto de São José da Costa Rica de 1969, assim como a importância deles na persecução penal. Pretende--se, por fim, demonstrar a inconstitucionalidade da execução provisó-riapor meio da ponderação entre os principais direitos fundamentais em conflito – liberdade do acusado e proteção à ordem pública –, dos en-tendimentos dos tribunais e doutrinários, como também por intermédio da própria legislação processual penal.

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2. LEI N. 13.964/2019 E O PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDITOS

A primeira corrente instituída pela pesquisa defende a execução pro-visória das decisões do Tribunal do Júri com fundamentona soberania dos vereditos. Assim, serão inicialmente expostas as modificações so-fridas pela legislação penal e processual penal, visando à eficiência do aparelho estatal durante a persecução criminal, em razão da aprovação da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, em vigor desde 23 de janeiro de 2020, proveniente do projeto denominado de Pacote Anti-crime.

No que tange ao Tribunal do Júri, além de incluir os §§ 3º ao 6º, a lei deu uma nova redação à alínea “e” do art. 492, inciso I, do Código de Processo Penal, acrescentando a possibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade igual ou superior a 15 anos. Passou a determinar:

Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:I – no caso de condenação: [...]e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.[...]§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação. §4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo. §5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumu-lativamente que o recurso:I - não tem propósito meramente protelatório; e

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II - levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.§6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia. (BRASIL, 1941).

A partir da norma transcrita, cristalino o condicionamento ao mon-tante da pena imposta na sentença para o encarceramento, isto é, so-mente na hipótese de condenação a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão será determinada a execução provisória da sanção, com expedição de mandado de prisão. Nesse caso, conforme o § 4º, não será concedido o efeito suspensivo em eventual apelação interposta.

Não obstante, a nova lei prevê ressalvas. O § 3º estabelece que o Juiz-Presidente pode, excepcionalmente, deixar de aplicar a execução temporária da pena quando o recurso interposto tratar de questão subs-tancial, cuja decisão pelo tribunal competente possa levar à reconside-ração da condenação. Já o § 5º dispõe que o efeito suspensivo poderá ser deferido, também em situações excepcionais, quando preenchidos os requisitos cumulativos previstos nos incisos I e II, sendo que a sus-pensão da eficácia da sentença condenatória até o julgamento definitivo do recurso evitaria, consequentemente, o cumprimento direto da pena-lidade aplicada.

O Pacote Anticrime, por conseguinte, com a utilização da expressão “excepcionalmente”, sugere que a execução provisória das condena-ções, em que a pena é igual ou superior a 15 anos, como já esclarecido, é a regra. Apenas em quadros atípicos, incomuns ou até “anormais”, não haveria a efetivação imediata da sanção fixada.

Importante mencionar, nesse ponto, o tratamento diferenciado con-cedido pela Constituição aos crimes dolosos contra a vida. De maneira diversa do que ocorre nos crimes penais comuns, atribuiu-se ao próprio povo o poder de julgar a culpabilidade de seus semelhantes, e o fez ga-rantindo a impossibilidade de alteração ou substituição da decisão pro-

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ferida. Conforme o art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da Carta Magna, “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: [...] c) a soberania dos veredictos” (BRASIL, 1988).

Essa garantia é, para tanto, conhecida como princípio da soberania dos vereditos. Visa assegurar, no momento da tomada de decisão, maior autonomia, independência e imparcialidade aos jurados, representan-tes da vontade popular, como também impedir que os órgãos do Poder Judiciário reapreciem os fatos e as provas que determinaram a respon-sabilidade penal reconhecida soberanamente pelo Júri, resguardadaa hi-pótese de o julgamento ser anulado quando evidenciada decisão mani-festamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, “d”, § 3º, do CPP).

Nesse viés, relevante suscitar o Habeas Corpus nº 118.770/SP, em que o Min. Luís Roberto Barroso redigiu a ementa e assentou o seu entendimento sobre a possibilidade da execução imediata das condena-ções proferidas pelo Tribunal Popular. No caso, embora a maioria dos ministros tenha votado no sentido de não conhecer da impetração ante a inadequação da via eleita, não havendo, portanto, expressa anuência dos demais membros do colegiado acerca da tese esboçada, a funda-mentação do Ministro é utilizada para defender a medida, inclusive por Sérgio Moro, na época ocupando o cargo de Ministro da Justiça e Se-gurança Pública, quando apresentadas as alterações propostas pela Lei nº 13.964/19.

No mesmo sentido foi o seu voto no HC nº 140.449/RJ:

[...] nas condenações pelo Tribunal do Júri, sequer é necessário aguardar o julgamento de recurso em segundo grau de jurisdição, até porque o Júri é soberano e, consequentemente, o Tribunal de Justiça não tem como substituir a decisão do Júri. Eventualmente pode anulá-lo, como aliás foi o caso aqui relatado da tribuna, mas as estatísticas documentam que é irrisório o número de condenações pelo Júri anuladas pelos tribunais de justiça. O contrário até acon-tece com mais frequência, absolvições que venham a ser anuladas, mas condenações que venham a ser anuladas é um número irrisório. (BRASIL, 2018, p. 10).

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do Min. Dias Toffoli no julgamento conjunto das Ações Declarató-rias de Constitucionalidade de nºs 43,44 e 54:

Como se vê, a possibilidade de decretar prisão após a condenação em segunda instância, portanto, não é garantia de combate à impu-nidade ou de credibilidade do Poder Judiciário.Por isso, entendo, desde sempre, que, nos crimes julgados pelo tri-bunal do júri, em razão da estatura constitucional desse órgão do Judiciário, mormente a soberania dos vereditos, a condenação deve ser imediatamente cumprida. (BRASIL, 2019b, p. 477).

Tal contexto denota que o princípio da soberania dos vereditos tem surgido como principal argumento para justificar as alterações trazi-das pelo Pacote Anticrime, sustentando, para tanto, a possibilidade de cumprimento automático das puniçõescom base no “quantum” da pena fixada pelo Conselho de Sentença.

3. OS PRINCÍPIOS DO ESTADO DE INOCÊNCIA E DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Em contrapartida, uma segunda vertente alega que o princípio da so-berania dos vereditos não é absoluto e, ao determinar a prisão do conde-nado sem o trânsito em julgado da sentença penal, os princípios da pre-sunção de inocência e do duplo grau de jurisdição restariam violados.

Essa posição se tornou evidente no julgamento do HC nº 68.658/SP, em que se discutiu a compatibilidade do art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, o qual dispõe sobre a desconstituiçāo da decisão do Conselho de Sentença “quando manifestamente contrária à prova dos autos” (BRASIL, 1941), com a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri.O Min. Celso de Mello, relator, opinou no sentido de que a sobe-rania ostenta valor meramente relativo, tendo em vista que as manifes-tações decisórias emanadas pelo Conselho de Sentençanão se revestem de intangibilidade jurídico processual (BRASIL, 1991, p. 8-9).

Desse modo, a soberania dos vereditos não deveria impossibilitar o acesso ao duplo grau de jurisdição, muito menos considerar o réu cul-pado antes do trânsito em julgado. Inevitável rememorar que os direitos

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e as garantias fundamentaisde todos os cidadãos estão dispostos no art. 5º, Título II, da Constituição Federal de 1988. Os primeiros são a base do Estado Democrático de Direito, limitando o ius puniendi e tendo como objeto imediato um bem específico do cidadão, ao passo que as garantias, também restringindo o exercício do poder estatal, são as me-didas previstas para proteger e defender esses direitos, intrínsecos da sociedade.

O princípio da não culpabilidade é consagrado no art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna, e refere-se à premissa de que ninguém será conside-rado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenató-ria (BRASIL, 1988). É equivocadamente conhecido como princípio da “presunção” de inocência, uma vez que não se trata de uma suposição, mas sim uma afirmação do estado de inocência, até o trânsito em julga-do da decisão, de todo aquele que estiver submetido à persecução penal (RANGEL, 2003, p. 25). Impõe-se ao Poder Judiciário a observância de regras relacionadas ao tratamento, estabelecendo que o réu não pode sofrer restrições pessoais tão somente sob a alegação de probabilidade de condenação, e ao fundo probatório, segundo as quais o ônus proba-tório incumbe àquele que acusa (PACELLI, 2020, p. 81). Quanto às normas de tratamento, o estado de inocência veda a antecipação das consequências penais, sendo aceita a imposição da prisão preventiva apenas em casos de extrema necessidade.

Infere-se o voto do Min. Marco Aurélio no já mencionado HC nº 140.449/RJ, reiterando um de seus posicionamentos sobre o tema:

Não se pode potencializar o decidido pelo Pleno no habeas corpus nº 126.292, por maioria, em 17 de fevereiro de 2016. Precipitar a execução da sanção importa antecipação de culpa, por serem indis-sociáveis. Conforme dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Consti-tuição Federal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, a culpa surge após alcançada a preclusão maior. Descabe inverter a ordem do pro-cesso-crime – apurar-se para, selada a culpa, prender-se, em verda-deira execução da pena. (BRASIL, 2018, p. 6).

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A esse respeito, nas palavras do Min. Gilmar Mendes:

Antes de se ter a definição da culpa, não se pode prender para impor pena. As hipóteses de prisão antes da formação da culpa seriam aquelas elencadas como prisões cautelares (preventiva e temporá-ria). Portanto, fixada a primeira premissa: ninguém pode ser punido sem ser considerado culpado; ninguém pode ser preso sem ter a sua culpa definida por ter cometido um crime; não se pode executar uma pena a alguém que não seja considerado culpado.E, a partir disso, a segunda premissa é decorrência clara do tex-to constitucional: “ninguém será considerado culpado até o trân-sito em julgado de sentença penal condenatória”. Se “não se pode executar uma pena a alguém que não seja considerado culpado” e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, conclui-se que não se pode executar uma pena até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (BRASIL, 2019e, p. 12).

Depreende-se, assim, que a tese do Min. Luís Roberto Barroso no RE nº 1.235.340, até o presente momento ainda em pauta, representaria, nesse viés, uma presunção de culpa em fase processual que ainda per-mite a modificação da sentença. A Carta Constitucional deixa claro, também de acordo com essa corrente, a excepcionalidade de toda forma de prisão antes ou durante o processo penal e, somente com a devida motivação e objetivando a proteção da ordem pública, poderiam ser impostas as prisões cautelares.

Por sua vez, o direito ao duplo grau de jurisdição é a garantia judicial mínima, instituída pelo art. 8º, item 2, alínea “h”, do Pacto de São José da Costa Rica, de que toda pessoa acusada de um delito tem “direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”(1969). As qualidades de direito fundamental, com caráter judicial e de garantia constitucional do processo, derivam da consagração da tese da supralegalidade pela Corte Suprema, prevista no art. 5º, § 2º, da Lei Maior, e conferida à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. Esse princípio proporciona uma nova análise da matéria, de fato e de direito, por órgão hierarquicamente superior. Busca-se evitar a falibilidade humana e possíveis arbitrariedades, além de proteger a

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condição de inocência, a qual não pode ser afastada com uma única sentença condenatória prolatada por órgão jurisdicional singular.

Salvaguardando a possibilidade de compatibilidade entre o princípio da soberania dos vereditos e o do duplo grau de jurisdição, assevera Guilherme de Souza Nucci:

Não há princípios absolutos e supremos, devendo haver composi-ção entre todos, mormente os que possuem status constitucional. Por isso, afirmar que a soberania dos veredictos populares precisa ser fielmente respeitada não significa afastar a possibilidade de se submeter a decisão prolatada no Tribunal do Júri ao duplo grau de jurisdição.O ponto relevante é harmonizar os dois princípios. O recurso é viá-vel, embora o mérito deva ser preservado. Nada impede que a parte, sentindo-se prejudicada, ingresse com o recurso cabível. Este, no entanto, se provido, deve remeter o caso a nova avaliação pelo Tri-bunal Popular. Com isso, garante-se a possibilidade de uma revisão, respeitando-se, ao mesmo tempo, a soberania da instituição do júri. (NUCCI, 2008, p. 367)

Vinicius Gomes de Vasconcellos (2019) sustenta que o direito de recurso sobre a condenação é um direito-garantia. O acusado tem o direito de submeter a decisão judicial ao reexame por tribunal diverso e superior ao primeiro, ao mesmo tempo em que essa revisão consiste em um instrumento de garantia de que outros também serão efetivados, respeitando as regras do devido processo penal em todo caso.

Corroborando com a posiçãode que a execução provisória da pena imposta pelo Júri configura manifesta ilegalidade, o Min. Jorge Mussise manifestou no sentido de que a medida é passível de correção por meio do remédio constitucional do habeas corpus:

[...] constata-se que a execução provisória da pena foi determinada pelo Juiz presidente do Tribunal popular antes mesmo da interposi-ção do recurso de apelação cabível para a instância ad quem, o que configura manifesta ilegalidade, passível de correção de ofício por esta Corte Superior de Justiça. (BRASIL, 2017a, p. 17).

Isso porque, levando em consideração que o duplo grau de juris-diçãos e trata de um direito fundamental do acusado, o cumprimento

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imediato da condenação poderia representar uma restrição concreta ao seu direito de obter a reavaliação de um pronunciamento contrário ao próprio interesse.

4. ANÁLISE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO IMEDIATA DAS PENAS IMPOSTAS PELO TRIBUNAL POPULAR

Apresentados os posicionamentos sobre o tema, didaticamente divi-didos em duas correntes, verifica-se a existência de um conflito entre os princípios do estado de inocência – relacionado com o direito fun-damental de liberdade do acusado – e o da soberania dos vereditos – busca impedir a impunibilidade e assegurar a efetividade da lei penal.Utilizar-se-á a teoria de Robert Alexy, aprofundadas as considerações de Ronald Dworkin, para analisar os principais argumentos levantados por elas.

Alexy reconhecia que as normas jurídicas se dividiam em regras e princípios, diferenciados com base nas suas estruturas e formas de apli-cação (SILVA, 2002, p. 3). As regras representam “mandados definiti-vos” e são aplicadas pela lógica da subsunção, isto é, a partir do mo-mento que é identificada uma situação de fato prevista abstratamente na regra, torna-se necessário incidir a consequência jurídica determinada por ela. Os direitos fundamentais seriam consagrados na Constituição sob a forma de princípios, os quais funcionariam como “mandados de otimização” e seriam definidos como “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurí-dicas e fáticas existentes” (ALEXY, 2008, p. 90). Em um conflito entre regras, trabalha-se, assim, com o plano da validade, enquanto, tratando--se de princípios, necessário exercer um sopesamento moral a partir do princípio da proporcionalidade.

A partir dessa distinção, depreende-se que, segundo sua teoria, o cha-mado princípio da proporcionalidade é, na verdade, uma regra, uma vez que é aplicado de forma constante, por meio da subsunção (SILVA, 2002, p. 4). Inevitável reconhecer sua importância nos casos em que

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uma decisão judicial, destinada a assegurar um direito ou garantia fun-damental, acaba restringindo outro. O objetivo da aplicação da máxima da proporcionalidade é, justamente, impedir que a restrição desses di-reitos tome dimensões desproporcionais (SILVA, 2002, p. 2), exigindo--se que se estabeleça o peso relativo de cada um deles.

Retorna-se ao voto do Min. Luís Roberto Barroso no Recurso Ex-traordinário nº 1.235.340, ainda em andamento, para melhor compre-ensão. Sua manifestação foi no sentido de que, em condenações por crimes dolosos contra a vida, a responsabilidade penal do acusado já estaria assentada, soberanamente, pelo Júri, quadro esse que impossi-bilitaria a reapreciação de fatos e provas. Alegou que o princípio do estado de inocência mereceria menor peso ao ser ponderado com o in-teresse constitucional à efetividade da lei penal (BRASIL, 2020, p. 21).

A ponderação entre princípios deve se dar a partir das três sub-regras da proporcionalidade, observando essa ordem: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido escrito, esta também conhecida como razoabilidade. Uma medida é considerada adequada quando contribui, ainda que minimamente, para alcançar o fim ou o objetivo pretendido; necessária, quando não existir outro meio, igualmente eficaz, que limite em menor intensidade o direito fundamental atingido; e, por fim, pro-porcional em sentido estrito, quando os motivos que fundamentam a sua adoção tenham peso suficiente para justificar a restrição (ALEXY, 2008, p. 117-121).

Em harmonia com a ponderação alexyana, se, para impedir a impu-nibilidade, o Supremo Tribunal Federal decidisse no sentido de permitir a execução provisória da pena imposta pelo Tribunal do Júri: a medida seria adequada e necessária de acordo com a regra da proporcionali-dade, uma vez que promoveria a satisfação do objetivo pretendido e, malgrado existam outros meios que restrinjam em menor intensidade a liberdade do acusado, nenhuma delas teria a mesma eficácia da citada. Somente após o sopesamento moral exigido pela proporcionalidade em sentido estrito, constata-se que não há como não decidir em favor da li-berdade do acusado – presumindo sua inocência –, embora essa escolha possa acarretar, teoricamente, menor grau de proteção à ordem pública.

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Cabe ressaltar que, com o intuito de garantir a aplicação da lei penal, sem, contudo, violar o estado de inocência, a lei prevê a possibilidade da prisão cautelar, mais especificamente a prisão preventiva. Estabelece o art. 312 do Código Processual Penal:

A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução crimi-nal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. (BRASIL, 1941).

Deve ser aplicada, todavia, em casos de extrema necessidade, quan-do insuficientes as demais medidas cautelares, analisando-senão a cul-pabilidade do acusado, porquanto representaria antecipação de cumpri-mento de pena, mas os indícios de autoria e materialidade do delito que, baseados em elementos concretos, retratem o risco concreto e efetivo ao regular andamento do processo. De acordo com o art. 313, §2º, do mesmo diploma processual:

Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: [...] § 2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como de-corrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. (BRASIL, 1941).

Tais considerações apontam que a ponderação entre direitos funda-mentais, tanto quanto a imposição da prisão cautelar preventiva, deve respeitar o princípio da dignidade humana. Ana Paula de Barcellos en-sina que a solução de um conflito entre princípios deve ser sempre fa-vorável àqueleque mais “prestigia a dignidade humana” (2006, p. 108-113). Deve prevalecer, portanto, o princípio que fortalece essa ideia, na hipótese vertente a liberdade do acusado, não o que prestigia o direito de punir. A primazia da soberania dos vereditos significaria subverter uma garantia, um instrumento de proteção contra a dignidade, justa-mente daquele que a detém. Com a execução automática da sanção im-posta, o acusado poderia ser submetido, antecipadamente, a uma pena

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incompatível com a que seria estabelecida ao fim da ação penal, aten-dendo-se exclusivamente ao interesse do Estado.

A propósito, nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho:

[...] entre manter a soberania dos veredictos intangível e procurar corrigir um erro em benefício da liberdade, obviamente o direito de liberdade se sobrepõe a todo e qualquer outro, mesmo porque as liberdades públicas, notadamente as que protegem o homem do arbítrio do Estado, constituem uma das razões do processo de or-ganização democrática e constitucional do Estado. (TOURINHO FILHO, 1997, p. 369).

De se anotar, no que diz respeito ao duplo grau de jurisdição, a pos-sibilidade de decisões arbitrárias no âmbito do Júri. O Tribunal Popu-lar, instituído no Brasil, em 1822, por Dom Pedro I, é composto pelo Juiz-Presidente e pelo Conselho de Sentença, integrado por sete jura-dos leigos selecionados por meio de sorteio devidamente regulado por lei. A direção e a condução do procedimento cabem ao Juiz-Presidente, que, após as conclusões apresentadas pelo corpo de jurados, expõe o conteúdo da decisão e forma o convencimento judicial final. Essas con-clusões são levantadas a partir das respostas aos quesitos, previamente formulados, sobre as questões de fato e de direito do caso em apreço (PACELLI, 2020, p. 884).

O fato de ser um órgão coletivo, não torna o Conselho de Sentença inteiramente imparcial ou garantidor, considerando que suas decisões são secretas, não fundamentadas e tomadas pela íntima convicção, por livre convencimento imotivado. Por ser composto de pessoas do povo, erros na apreciação dos fatos e provas podem ser constatados e, com o intuito de reduzir equívocos nos julgamentos, que se garante o duplo grau de jurisdição. Assim, a garantia da soberania dos vereditos deve ser entendida em termos, uma vez que as decisões do Tribunal do Júri possuem caráter meramente relativo e não se revestem de intangibilida-de jurídico-processual (BRASIL, 1991, p. 8-9), cedendo, nesse caso, ao direito de reexame da condenação. Não devem, assim, ser consideradas incontestáveis e ilimitadas, porquanto podem, inclusive, sofrer impug-

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nação, quando manifestamente contrária à prova dos autos, nos termos do art. 593, III, “d”, do Códex Processual Penal.

Por fim, ainda que, no RE nº 1.235.340, o Min. Barroso sustente seu entendimento independente do importe da pena aplicada, convém mencionar a alteração, totalmente insustentável, apresentada pelo Pacto Anticrime, a qual estabelece, como regra, a execução provisória nas condenações com penas iguais ou superiores a 15 anos. Não há funda-mento, ou qualquer tipo de explicação, que respalde essa distinção cria-da pelo legislador, o qual determina uma incidência maior da soberania dos vereditos em casos envolvendo determinado “quantum” de pena. O montante da condenação imposto pelo Júri, por conseguinte, não deve-ria ser utilizado para amparar a antecipação do seu cumprimento, uma vez que permanece sujeito a modificações.

Frisa-se que a prisão preventiva, se presentes os requisitos autoriza-dores, pode ser imposta nesses casos – após a condenação –, sempre com a devida fundamentação e a depender da conjuntura. No entanto, o instituto da prisão ex lege, isto é, automática e sem fundamentação concreta, imposta por força de lei, já foi declarada inconstitucional na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3112. Trata-se de uma espé-cie de cárcere sem a apreciação pelo magistrado acerca da adequação, necessidade, proporcionalidade e excepcionalidade da medida. No jul-gamento, foi declarada a incompatibilidade do art. 21 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03), o qual previa a impossibilidade de liberdade provisória para os crimes estabelecidos entre os arts. 16 e 18 da mesma lei, com os princípios constitucionais da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório e da obrigatoriedade de fundamentação dos decretos de prisão pela autoridade judiciária com-petente. Foi firmada a tese de que “o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obriga-toriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente” (BRASIL, 2007, p. 2).

Com efeito, no julgamento do HC nº 104.339, o Supremo Tribunal Federal entendeu, nos termos do voto do relator Min. Gilmar Mendes, que a prisão processual ex lege do agente, acusado por tráfico de drogas,

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constituía “inequívoca antecipação de pena” (BRASIL, 2012, p. 9), indo de encontro com a exigência de fundamentação dos decretos prisionais e estabelecendo uma presunção de necessidade da prisão, “afastando a intermediação valorativa de seu aplicador” (BRASIL, 2012, p. 14).

No mais, recorda-se o entendimento pacificado da Corte quanto à impossibilidade de decretação de prisão preventiva com base na gra-vidade abstrata das imputações delitivas (BRASIL, 2015a; BRASIL, 2017c), além de que suposições acerca do perigo que decorre do estado de liberdade do imputado (periculumlibertatis), sem respaldo concreto, também não são suficientes para embasar a prisão processual (BRASIL, 2015b; BRASIL, 2017d). Logo, se a prisão preventiva não pode ser im-posta com fundamento em presunções ou na gravidade abstrata do cri-me supostamente praticado, que dirá executar a pena automaticamente em condenações que ainda podem ser alteradas.

À vista de todo o exposto, é preciso considerar, portanto, que o esta-belecido pela Lei nº 13.964/19, ao impor a execução provisória automa-ticamente e, como regra, em condenações que ainda não percorreram toda a cadeira recursal, contraria os entendimentos já assentados pelo Supremo Tribunal Federal e não se mostra como a melhor alternativa diante da necessidade de se assegurar a proteção dos princípios e das garantias fundamentais, basilares do Estado Democrático de Direito.

5. CONCLUSÃO

Aos limites e objetivos do que se propôs, o artigo buscou analisar a compatibilidade da execução provisória da pena após decisão condena-tória de primeiro grau no Tribunal Popular do Júri com a Constituição Federal e com a própria normatividade do Código de Processo Penal. Para melhor compreensão, foi necessário expor a construçãodos enten-dimentos firmados no Supremo Tribunal Federal até a discussão atual, com repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 1.235.340 ainda em pauta.

Por conseguinte, discutiu-se as posições favoráveis e contrárias em relação ao tema. O que se constatou foi o fato de que a primeira corrente

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trata-se, na verdade, de uma posição mais isolada do Min. Luís Roberto Barroso, utilizando, como fundamento, principalmente, o princípio da soberania dos vereditos, levando em consideração que a responsabili-dade penal do réu já é definida soberanamente nas condenações pelo Tribunal Popular, tendo em mente que, mesmo com a interposição de apelação, não poderiam ser reapreciados os fatos e as provas do caso. Aduz, ainda, que a efetividade da lei penal deve prevalecer em detri-mento da liberdade do acusado. Ademais, apresentou-se a Lei nº 13.964, de 2019, que, recorrendo às mesmas justificativas, passou a estabelecer a execução provisória como regra em decisões do Júri com penas iguais ou superiores a 15 (quinze) anos de reclusão.

Dentre os argumentos contrários, defendidos especialmente pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal e pela 5ª Turma do Supe-rior Tribunal de Justiça, a pesquisa se debruçou sobre o princípio do duplo grau de jurisdição, recepcionado ao ordenamento jurídi-co brasileiro pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, demonstrando-se sua natureza de garantia do devido processo legal ao acesso à instância recursal superior; e o princípio do estado de inocên-cia, previsto no art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna, enfático ao exigir o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para o início do cumprimento da pena.

Considerando a importância do debate em questão, o conflito entre os princípios da soberania dos vereditos e da condição de inocência foi analisado a partir da regra da proporcionalidade e suas sub-regras, conforme a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. Aferiu-se que a medida da execução provisória nas condenações do Júri seria adequada e necessária, mas não satisfaz o critério da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que viola o núcleo essencial do direito à li-berdade – restringindo-o e, consequentemente, inviabilizando o estado de inocênciados acusados até o trânsito em julgado da decisão. A busca pela efetividade das decisões condenatórias, portanto, ainda que em um primeiro momento se mostre louvável, não prevalece em detrimento dos direitos e das garantias assegurados ao réu.

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Posteriormente, verificou-se que a soberania dos vereditos não é ab-soluta e pretender a execução imediata de um julgado de primeiro grau, sem considerar o direito de recurso do acusado, é incompatível com a Constituição da República, visto que a apelação de decisão do júri pode resultar em reanálise de fatos e provas ao convocar novo julgamento.Ademais, ficou demonstrado que a prisão ex lege, sem fundamentação e imposta automaticamente por força de lei – praticamente o que se ve-rifica na nova alteração imposta pelo Pacote Anticrime –, foi declarada inconstitucional por ofender o dever de motivação das decisões judi-ciais. Apenas após a condenação, em casos de extrema necessidade, a prisão preventiva pode ser aplicada com o desígnio de garantir a aplica-ção da lei penal e, concomitantemente, respeitar o estado de inocência; todavia, não pode ser decretada em razão do clamor público ou em face da gravidade do crime, muito menos por suposições sem respaldo nos autos, porquanto essas motivações não se adequam à essencial instru-mentalidade cautelar dessa medida restritiva de liberdade.

A partir do estudo, foi constatado que a execução provisória da pena no primeiro grau do Tribunal do Júri, em conformidade com a hipótese inicial apresentada, é incompatível com a efetiva proteção dos direitos e das garantias fundamentais assegurados ao acusado durante toda a per-secução penal, violando, preponderantemente, o princípio da condição de inocência.

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Recebido em: 19/03/2021Aprovado em: 10/08/2021