QUANDO HARRY ENCONTRA HARRY – Uma análise sobre a construção do personagem Harry Potter nos...

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MARÍLIA MONTANDON CARVALHO QUANDO HARRY ENCONTRA HARRY Uma análise sobre a construção do personagem Harry Potter nos livros e no cinema São Paulo, abril de 2013

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

MARÍLIA MONTANDON CARVALHO

QUANDO HARRY ENCONTRA HARRY –

Uma análise sobre a construção do personagem Harry Potter

nos livros e no cinema

São Paulo, abril de 2013

MARÍLIA MONTANDON CARVALHO

QUANDO HARRY ENCONTRA HARRY –

Uma análise sobre a construção do personagem Harry Potter

nos livros e no cinema

Relatório de pesquisa de Iniciação Científica

apresentado à Pró-reitoria Acadêmica como parte

conclusiva do Programa de Iniciação Científica da

Universidade Anhembi Morumbi 2012/2013, sob

orientação do Prof. Ms. Daniel Gambaro.

São Paulo, abril de 2013

SUMÁRIO

1 Introdução ...................................................................................................................... 4

2 Como as narrativas fílmica e literária se estruturam em Harry Potter. .............................. 6

3 A trajetória do herói no arco narrativo da série de livros................................................ 13

3.1 As Doze Etapas ...................................................................................................... 15

4 Capítulo: Um personagem, dois heróis. ......................................................................... 29

5 O mesmo personagem, duas personalidades .................................................................. 43

6 Considerações Finais .................................................................................................... 54

7 Referências ................................................................................................................... 56

1 INTRODUÇÃO

Uma mensagem sofre alterações de acordo com o meio pelo qual ela é transmitida,

mas o essencial permanece ali. Quando um livro é adaptado para o cinema, teatro ou TV,

algumas vezes tramas, situações e personagens são eliminados, acrescentados e/ou

modificados para se adequar melhor à mídia em que a história será veiculada.

A série Harry Potter é uma das obras literárias mais bem sucedidas da última década,

com mais de 400 milhões de livros vendidos em todo o planeta1. Tanto sucesso rendeu oito

filmes baseados nos sete livros escritos por J.K. Rowling, tornando Harry Potter a franquia

mais lucrativa do cinema, com mais de sete bilhões de dólares arrecadados nas bilheterias2.

A história de Harry Potter começa quando este perde os pais quando era um bebê e,

anos mais tarde, descobre que é um bruxo e vai para Hogwarts, uma escola em que jovens

bruxos aprendem magia. Embora Rowling tenha criado um mundo em que a presença da

magia é constante, as bases que estruturam este universo mágico e o modo como este mundo

se organiza é semelhante ao mundo dos trouxas3, em que as organizações como Hogwarts e o

Ministério da Magia funcionam de modo semelhante às escolas e organizações

governamentais não mágicas. O que torna essas similaridades possíveis são as pessoas e o

modo como elas pensam e se relacionam entre si. Um dos elementos principais que conduziu

a obra de J.K. Rowling ao sucesso é a maneira como os personagens foram elaborados bem

próximos da nossa realidade, em que os conflitos, as famílias, os temores e desejos dos

personagens que povoam a história de Harry Potter são os mesmos que os de qualquer pessoa

normal.

Em Hogwarts, Harry toma conhecimento de sua fama por ter sobrevivido ao ataque

em que morreram seus pais, cometido pelo maior bruxo das trevas que já existiu, Lord

Voldemort. Após tal acontecimento, Voldemort desaparece por muitos anos até conseguir se

restabelecer, e quando ele reaparece, a sua intenção é não só dominar a comunidade bruxa,

mas também matar Harry Potter.

1 Segundo dados obtidos no site The Leaky Cauldron, um dos mais importantes sites de fã, e que por diversas

vezes contou inclusive com colaboração da autora, tendo sido inclusive recomendado em seu site oficial.

Disponível em: <http://www.the-leaky-cauldron.org/2008/6/17/harry-potter-book-sales-top-400-million-mark> 2 Segundo dados obtidos no site http://boxofficemojo.com/franchises/chart/?id=harrypotter.htm 3 Na cultura dos bruxos criados por J.K. Rowling, trouxas são as pessoas comuns, que não possuem poderes

mágicos.

Apesar de Harry ser uma pessoa marcada e de ter que enfrentar desafios que põem em

risco a sua vida, a humanidade e imperfeição com que ele foi construído o tornam verossímil,

assim como toda a sua história, e é a partir daí que o público consegue se conectar a ele e

simpatizar pelo personagem e sua causa. A busca por uma família que substitua a que ele não

teve e o grande valor que Harry dá aos amigos é fruto de um desejo intrínseco a qualquer ser

humano: pertencer a um grupo, uma comunidade e ser aceito. À medida em que Harry se

torna parte da comunidade bruxa, a magia deixa de ser algo espetacular e se transforma em

um aspecto do cotidiano do garoto, se inserindo de forma orgânica à trama, mas ao mesmo

tempo faz o leitor desejar estar no lugar de Harry, de fugir da própria realidade e viver

experiências semelhantes às dele.

Como acontece em qualquer outra produção cinematográfica, o personagem Harry

Potter também sofreu pequenas alterações. Essas alterações, muitas vezes, geraram debates

acalorados entre os fãs dos livros, expressados principalmente em blogs e sites especializados.

De um modo geral, o personagem fílmico, apesar de percorrer a mesma trajetória que o

personagem literário, mostra-se incompleto em diversos momentos da história: a velocidade

da narrativa cinematográfica muitas vezes impediu o aprofundamento no personagem em

função da valorização da ação, e muitas decisões tomadas pelo herói pareceram precipitadas,

bem como os valores e a força de Harry parecem menos importantes. Dessa forma, entende-se

que os principais motivos que levaram à identificação do público com o personagem literário

se perderam na adaptação – o que não desmerece, de imediato, a criação fílmica, que manteve

a estrutura de ações relativamente igual.

Por meio de uma análise comparativa, esta pesquisa pretende mostrar como as duas

mídias se diferenciam na construção de um personagem e os caminhos percorridos por ele ao

longo da história, e como as mudanças feitas no roteiro em relação à obra original mudam a

maneira como observamos o desenvolvimento de Harry e como isso influencia o modo como

ele responde como herói. Elegemos como objeto de estudo os livros e filmes O Cálice de

Fogo, A Ordem da Fênix e Relíquias da Morte porque são nestes volumes em que Voldemort

aparece em cena com seus poderes restaurados, o que faz com que estas obras permitam que a

atuação de Harry como herói seja explorada ao máximo. O livro e filme A Pedra Filosofal

também faz parte da análise porque é o início da história, e serve para contextualizar toda a

trama.

2 COMO AS NARRATIVAS FÍLMICA E LITERÁRIA SE

ESTRUTURAM EM HARRY POTTER.

Antes de dar início à análise do personagem, é necessário primeiro entender como a

história de Harry Potter é desenvolvida tanto na versão literária quanto no cinema. Cada uma

possui suas peculiaridades, já que livros e filmes prezam características diferentes.

“O leitor é levado a penetrar no texto literário e não só admirá-lo como

forma estética, há de acontecer um reconhecimento e, a partir desse, deve-se

chegar a uma compreensão, uma ressonância intelectual, movimento que construirá junto ao leitor os sentidos do texto literário.” (AMORIM, 2010, p.

1729)

Um livro pode ser lido aos poucos, portanto o tamanho não é um fator que limita o

desenvolvimento de uma história, e permitem que personagens e tramas sejam explorados

com uma riqueza de detalhes muito maior do que em qualquer outro meio. Além disso, livros

possibilitam a existência de longos momentos de introspecção, de conversas e reflexões que

dispensam a ação. Quanto aos filmes, “a fórmula básica, que nunca foi alterada, é aquela que

consiste em chamar de ‘filme’ uma grande unidade que nos conta uma estória, e “ir ao

cinema” é ir assistir a toda estória”. (METZ apud Amorim, 2010, p. 1732). As pessoas vão até

o cinema para assistir a um filme com começo, meio e fim, e ao término do longa, saem e vão

fazer outra coisa. Diferente de um livro, filmes são feitos para serem consumidos sem

interrupções, portanto a narrativa de um longa-metragem tem de ser contada em um

determinado espaço de tempo. Por causa desse imediatismo, a limitação de tempo torna a

ação importante para o desenvolvimento de um longa-metragem, deixando a história sempre

em movimento. Além disso, filmes contam histórias por meio de imagens, dessa forma,

descrições, pensamentos, e tudo aquilo que é narrado em um livro – mas aparece de forma

implícita – tem de ser transformado em imagens e em ações, quando se trata de uma obra

audiovisual.

Os três primeiros livros da saga Harry Potter, A Pedra Filosofal, A Câmara Secreta e

O Prisioneiro de Azkaban compõem a introdução da história central, que abrange a ligação

entre Harry e Voldemort. Estes livros servem para apresentar informações e personagens que

terão alguma relevância no futuro, tanto para a narrativa principal quanto para as tramas

secundárias, e os embates dos quais Harry participa até então servem para testá-lo e fortalecê-

lo. Quanto a Voldemort, apesar de suas tentativas frustradas de retornar à vida corporal, nesta

primeira fase da história ele não passa de uma ameaça distante.

O Cálice de Fogo, quarto volume da série, dá fim ao primeiro ato da história,

finalizando-o com o retorno de Lord Voldemort. É a partir deste ressurgimento que a trama

central de Harry Potter de fato se desenvolve. Enquanto podemos agrupar os quatro primeiros

livros em uma grande introdução – sendo os eventos de praticamente todo o quarto volume o

“ponto de virada” –, os três volumes seguintes desenvolvem e concluem o resto da história4.

A narrativa destes livros se torna muito mais densa, com muito mais eventos dentro de um

ano, os personagens ganham profundidade e, além da trama principal, as histórias secundárias

têm prosseguimento; tudo isso resulta em livros bem maiores que os quatro primeiros títulos,

pois acontecem muito mais coisas relevantes.

O livro Harry Potter e a Ordem da Fênix, quinto volume da saga, mostra as primeiras

consequências que a volta de Voldemort traz, e equivale, junto com o sexto volume, ao

segundo ato da narrativa. Nesta parte da história, enquanto Voldemort opta pela discrição e

permanece recluso, fazendo planos e bolando estratégias ao invés de agir aos olhos dos

inimigos, Harry e o diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, enfrentam represálias de parte da

comunidade bruxa, principalmente o Ministério da Magia, por afirmarem que Voldemort

retornou sem terem provas para tal afirmação. Depois de Voldemort ter sido exposto para

alguns funcionários do Ministério da Magia, inclusive o Ministro, a comunidade bruxa vive

em alerta quanto ao retorno do Lorde das Trevas em Harry Potter e o Enigma do Príncipe.

Neste livro, Harry já tem conhecimento sobre qual é o seu papel no combate a Voldemort, e

Dumbledore permite que o rapaz participe mais ativamente dos planos para destruí-lo,

deixando Harry a par sobre questões importantes e incluindo-o na ação.

Por fim, Harry Potter e as Relíquias da Morte encerra a trajetória de Harry Potter e

Lorde Voldemort. No último volume da saga, Voldemort age abertamente e domina a

comunidade bruxa, enquanto Harry e seus melhores amigos, Rony Weasley e Hermione

Granger permanecem foragidos, buscando e destruindo as horcruxes5 de Voldemort.

4 Veremos, no próximo capítulo uma análise sobre a Jornada do Herói e como os eventos nos livros podem ser

interpretados como atos de uma narrativa tradicional. 5 Magia das trevas que aprisiona um pedaço da alma de uma pessoa a um objeto, impedindo-a de morrer, mesmo

que seu corpo físico seja destruído. Voldemort possui sete horcruxes.

Harry Potter teve seus direitos comprados para o cinema pela Warner Bros. no fim

dos anos 90, e o primeiro filme foi lançado no final de 2001. Ao todo, a série teve quatro

diretores e dois roteiristas, que contaram com colaborações da autora J. K. Rowling, para que

as adaptações fossem o mais fiel possível ao material original. Por causa da dimensão da

história e da distribuição de informações importantes em cada livro para a trama central, a

adaptação de cada volume teve de ser feita com muita cautela, para que elementos

importantes não fossem esquecidos e assim não comprometessem os filmes futuros.

O filme Harry Potter e a Pedra Filosofal é a adaptação mais próxima da sua versão

original. O livro mais curto da série possui uma história simples, que serve para introduzir

Harry ao mundo mágico e mostrar o início do aprendizado do garoto em como ser um bruxo.

“A equipe de produção reconheceu que o primeiro livro de Harry Potter trata da descoberta: a

descoberta de que Harry é um bruxo, a descoberta do mundo mágico, primeiro no Beco

Diagonal, depois em Hogwarts, e a descoberta da verdade sobre a história da sua família e sua

conexão com Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado6.” (SIBLEY, 2010, p. 13).

Apesar da fidelidade perante o material original, a adaptação para as telas do livro A

Pedra Filosofal sofreu pequenas alterações, em que alguns episódios foram comprimidos ou

excluídos; geralmente situações sem importância ou que continham informações que já

haviam sido transmitidas anteriormente, como é o que acontece com algumas cenas na

Rua dos Alfeneiros7, que mostram o modo como Harry e os seus parentes trouxas, os

Dursleys, se relacionam. Além disso, outra mudança que vale citar é a junção de um ou mais

acontecimentos em uma cena só, como é o que acontece quando Harry e Rony salvam

Hermione de um trasgo e se tornam amigos, e quando Harry cria suspeitas sobre a lealdade do

professor Severo Snape a Dumbledore e a Hogwarts.

Quando chegou a vez de Harry Potter e o Cálice de Fogo ser adaptado, surgiram

vários boatos sobre como um livro tão grande8 seria transformado em um filme com duas

horas e meia de duração, e se existia a possibilidade de o livro ser dividido em dois filmes.

Dessa forma, o resultado final seria fiel e agradaria aos fãs, e a duração de cada filme seria

razoável e não haveria o risco de afastar o grande público das salas de cinema. No entanto, o

diretor Mike Newell optou por contar a história em apenas um filme porque, segundo ele,

6 Um dos vários termos usados pelos bruxos para se referirem a Voldemort. 7 Endereço de residência de Harry no mundo não-mágico. 8 Até aquele momento, era o livro mais longo da saga. Na versão mais comum em Inglês, o número de páginas

só desse volume (636) é quase a soma do número de páginas dos três livros anteriores.

existia conteúdo suficiente para dois filmes, mas a história do livro cabia em apenas um filme

(MCCABE, 2011, p. 119). Apesar de o foco narrativo do filme O Cálice de Fogo ser o

Torneio Tribruxo e o retorno de Voldemort, Newell quis equilibrar estas situações tensas com

um pouco de leveza, destacando a comédia e o ambiente escolar, pois Harry e seus colegas

são oficialmente adolescentes, e o diretor quis explorar os amores e as descobertas que essa

fase proporciona.

Se até então a maioria das subtramas presentes nos quatro primeiro livros convergiram

para o momento em que Voldemort retorna à vida no final de O Cálice de Fogo, o livro A

Ordem da Fênix é o começo de um novo ciclo, no qual a narrativa central lida com a volta de

Voldemort e dá origem a várias subtramas que mostram as consequências que este retorno

traz. Os filmes que vieram a partir de A Ordem da Fênix exigiram um trabalho de adaptação

bem mais árduo do que os anteriores, pois não seria possível adaptar todas estas subtramas

para o cinema, e em diversos casos, muitas delas estavam interligadas. Para o filme Harry

Potter e a Ordem da Fênix, a solução encontrada pelo roteirista Michael Goldenberg foi optar

por “... uma abordagem escultural do roteiro, escolhendo momentos e temas-chave como

alicerce para a história.” (SIBLEY, 2010, p. 110). De acordo com Goldenberg, o diretor

David Yates visualizava A Ordem da Fênix como um filme “político com p minúsculo”, e

usou como contexto um ambiente em que há abuso de poder e o modo como as pessoas

oprimidas reagem a isso (MCCABE, 2011, p. 151).

Quanto à adaptação do livro Harry Potter e as Relíquias da Morte, os realizadores não

viram alternativa; mesmo que a versão para o cinema se limitasse a mostrar apenas o

essencial, esse conteúdo resultaria em um filme de cinco ou seis horas de duração. O produtor

David Heyman diz que “condensá-lo em um filme de 2 horas e meia ou 3 horas significaria

deixar tanta coisa de fora que comprometeria não só a história no cinema, mas a saga toda,

porque é uma saga. São sete livros que formam uma história ao longo de sete anos.”

(MCCABE, 2011, p. 195).

Cada uma das partes tem histórias diferentes. A primeira parte de Relíquias da Morte é

considerada um filme de estrada, em que Harry, Rony e Hermione deixam a segurança de

Hogwarts para encarar os perigos do mundo real. Essa primeira parte se encerra no momento

em que Voldemort retira à força a Varinha das Varinhas9 do túmulo de Dumbledore, criando

9 As Relíquias da Morte são três objetos que a Morte teria presenteado cada um dos irmãos Peverell – antigos e

poderosos bruxos –, depois que eles a enganaram e escaparam dela. O Anel da Ressurreição, que possibilita ao

um gancho e suspense para o filme seguinte. A segunda parte é um filme de guerra,

operístico, cheio de batalhas grandiosas e momentos dramáticos, em que o trio retorna a

Hogwarts e conclui sua missão. (MCCABE, 2011)

Não foi um grande problema para os realizadores transformarem os livros da série

Harry Potter em representações imagéticas no cinema, pois há muita ação e muitas descrições

de pessoas e lugares. Por outro lado, a partir do terceiro livro O Prisioneiro de Azkaban, a

quantidade de elementos e situações na história que permitem que o aspecto psicológico dos

personagens seja mais explorado aumenta e evoluem a cada livro, principalmente as

impressões e pensamentos do protagonista.

No caso do Cálice de Fogo, por exemplo, conforme citamos acima, o diretor optou por

equilibrar as cenas relacionadas ao Torneio Tribruxo e a Voldemort, que são as tramas

principais desta obra, com uma temática mais adolescente, que está presente no livro porque é

o contexto em que Harry e seus colegas se encontram, mas não é o foco da história. O

destaque que a adolescência ganha no filme ofusca um pouco a trama principal. Além disso, o

protagonista é descaracterizado, pois ele possui uma atitude mais confiante e atirada no

audiovisual em comparação ao livro, e que não combina com o personagem construído até

aquele momento.

Já livros como A Ordem da Fênix e Relíquias da Morte, possuem diversas passagens

dedicadas a explorar a vida interior de Harry. Há longas descrições sobre o modo como ele

sente e pensa sobre o que acontece ao seu redor, mas muitos trechos como estes foram

suprimidos nas versões para o cinema, pois são situações ‘monótonas’ para um filme que

segue o padrão hollywoodiano, e que não avançam a história. Apesar disso, o temperamento

de Harry em livros como A Ordem da Fênix é muito marcante e não pode ser ignorado. Em

circunstâncias como estas, para evitar o corte que levaria a uma descaracterização do

protagonista, os realizadores dos filmes optaram por inserir diálogos em determinadas cenas

em que os personagens falam como se sentem. No quinto filme, Harry está sempre um pouco

mal humorado, mas o espectador só se dá conta de como ele realmente se sente quando ele

expressa sua raiva e angústia por meio de palavras, quando ele desabafa com seu padrinho,

Sirius Black. Apesar de ser uma alternativa para não atrapalhar o ritmo do filme, essas

seu portador entrar em contato com um ente querido já morto; a Capa de Invisibilidade, que esconde quem a usa

de qualquer coisa e nunca fica gasta; e a Varinha das Varinhas, que é a varinha mais poderosa que já existiu. Esta

história é o equivalente a um conto de fadas bruxo, e foi posteriormente publicada em um livro a parte, intitulado

“Contos de Beedle, o Bardo”..

alterações fizeram com que o personagem ficasse vazio, pois suas emoções são sempre

tratadas com muita superficialidade. Por exemplo, como veremos em um capítulo adiante,

após a morte de Sirius Black em A Ordem da Fênix, por mais que Harry pareça triste na cena

seguinte, o fato de não terem dado mais tempo em cena para que o personagem sentisse essa

perda faz com que a importância que Sirius tem para Harry seja muito enfraquecida, já que,

no livro, Harry fica devastado, pois seu padrinho era a única chance que ele tinha de ter uma

família10

de verdade.

Já em Relíquias da Morte, estes momentos introspectivos do herói são completamente

eliminados dos filmes. A razão principal para a ocorrência destes cortes foi a duração dos dois

filmes baseados no último livro. Por causa da quantidade de situações que deveriam ser

mostradas em mais ou menos duas horas de projeção por filme, o diretor David Yates e o

roteirista Steve Kloves optaram por dar prioridade àquilo que era realmente importante e que

movimenta a história: a ação. Por se tratar dos filmes adaptados do último livro, havia muitas

situações que precisavam ser mostradas, e exibir longas cenas em que ‘não acontece nada’-

como as ocasiões em que os três amigos apenas acampam e o modo como eles se relacionam

entre si – para o público em geral resultaria em muitas críticas negativas. Além disso, o que

leva a esse aprofundamento nos pensamentos e sentimentos de Harry neste livro tem a ver

com Dumbledore e as Relíquias da Morte. Entretanto, as narrativas relacionadas a estes dois

elementos foram abordadas muito superficialmente no filme, o que automaticamente exclui a

necessidade de mostrar as impressões de Harry diante deles.

Tanto a literatura quanto o cinema possuem linguagens diferentes para se contar uma

história. Apesar disso “Sabemos também que o cinema e literatura bebem, primeiramente, do

gênero narrativo e por meio dele se constituem, não unicamente, mas principalmente.”

(AMORIM, 2010, p. 1732). Ou seja, apesar das diferenças, quando se trata de uma ficção, os

dois meios se assimilam em sua origem, ambos se tratam de narrativas. O que muda são as

ferramentas que o cinema e a literatura utilizam para se contar a mesma história. “A

adaptação é definida como a habilidade de ‘fazer corresponder ou adequar por mudança ou

ajuste’, modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma, que

produz uma melhor adequação”. (FIELD, 2001, p. 174). De acordo com Syd Field (2001),

10 Em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Sirius Black convida Harry para ir morar com ele depois que seu

nome fosse limpo. Sirius foi acusado de matar 13 trouxas no lugar de Pedro Pettigrew, um amigo de Black e do

pai do Harry nos tempos de escola. Parte da desimportância de Sirius nos filmes é ilustrada pela ausência da

imagem do ator que o interpreta no quarto filme – ele aparece apenas por computação gráfica em pouquíssimas

cenas, enquanto o personagem é muito explorado nos livros.

adaptar um romance, uma peça ou um conto para o cinema é a mesma coisa que escrever um

roteiro original; deve “... preservar em primeiro lugar a sua autonomia fílmica, ou seja, deve-

se sustentar como obra fílmica, antes mesmo de ser objeto de análise como adaptação.”

(BALOGH, 2005, p. 53).

É compreensível que a limitação de tempo e a linguagem que difere um meio do outro

obriguem o diretor e o roteirista a fazer cortes e mudanças quando um livro é adaptado para o

cinema. Entre as obras que analisamos da saga Harry Potter, há casos bem sucedidos, como a

representação do personagem Alastor ‘Olho- Tonto’ Moody11

em O Cálice de Fogo. Prestes a

iniciar as aulas em Hogwarts, Moody é desacordado e sequestrado por um seguidor de

Voldemort, Barty Crouch Jr12

, que usurpa o seu lugar para dar seguimento aos planos de seu

mestre. No filme, inseriram um ‘tique’ no personagem que permite identificá-lo, mesmo

estando sob o disfarce de Moody. Esse tique serve como ‘pinças’ na narrativa, que apesar de

antecipar a revelação de que Moody é Barty Jr. e entregar o final da história, essa adaptação

evita que o espectador se confunda a respeito do momento em que o vilão assume o corpo de

Moody.

Por outro lado, os filmes adaptados dos livros que compõem esta análise quase sempre

privilegiam ação, independente do contexto em que acontece a cena, o que enfraquece a

história, especialmente os personagens. Em Relíquias da Morte, o momento em que Harry

decide esquecer as relíquias e focar na busca das horcruxes, após a morte do elfo doméstico

Dobby, foi eliminado do filme. Apesar de não ter ação, este momento de reflexão é

importantíssimo para a construção do protagonista, pois é a partir daí que Harry decide agir

como um herói. A importância dada à ação em detrimento da história enfraquece a

caracterização dos personagens, e torna os seus relacionamentos e suas emoções superficiais.

11 Caçador de bruxos das trevas e velho amigo de Dumbledore, Moody é convidado a dar aulas de Defesa Contra

as Artes das Trevas em O Cálice de Fogo. 12 Filho de um funcionário de alto escalão do Ministério da Magia, Bart Crouch Jr. foi para Azkaban declarando

sua devoção ao Lorde das Trevas, mesmo após sua derrota. Supunha-se que ele tivesse morrido na cadeia, mas

em uma visita feita pelos seus pais, a mãe de Bart tomou uma poção e trocou de lugar com o filho, enquanto este

foi levado para casa e permaneceu escondido até então.

3 A TRAJETÓRIA DO HERÓI NO ARCO NARRATIVO DA SÉRIE DE

LIVROS

Uma ideia interessante não basta para que uma história seja boa. Além de uma trama

atraente e coesa, os personagens precisam envolver e conduzir o leitor/espectador a

acompanhá-los na trajetória a ser percorrida. Existem características universais que se

repetem em histórias de culturas, épocas e locais totalmente diferentes, que fazem com que a

pessoa se familiarize e se identifique com a história. Estes elementos foram identificados e

organizados em uma estrutura conhecida como A Jornada do Herói. Desenvolvida no livro O

Herói de Mil Faces pelo mitólogo Joseph Campbell (2007), a Jornada do Herói é o resultado

de um estudo no qual Campbell comparou histórias da mitologia ocidental e oriental a contos

de fadas, levantando os aspectos em comum e estruturando a trajetória percorrida pelo herói.

As ideias que Campbell reuniu ao conceber a Jornada do Herói possibilitam a

construção de histórias que se passem em diversas situações imagináveis, e que sejam ao

mesmo tempo dramáticas, divertidas e psicologicamente críveis. Além disso, a aplicação da

Jornada do Herói em uma história possibilita a identificação de problemas em uma narrativa

precária e a correção dos mesmos (VOGLER, 2006). Um dos exemplos mais bem sucedidos

do uso da Jornada do Herói no cinema é a série Guerra nas Estrelas, de George Lucas, que

foi aluno de Campbell na universidade. Os dois se tornaram amigos após Lucas convidar

Campbell para assistir à trilogia dos filmes em que Lucas usou como referência a pesquisa de

seu antigo professor (CAMPBELL, 1990).

Além de Guerra nas Estrelas, a Jornada do Herói pode ser identificada em grande

parte das obras de ficção da atualidade, como em filmes de diretores como Steven Spielberg e

Francis Coppola, assim como na saga Harry Potter. Os sete livros que compõem a série

apresentam uma mesma estrutura, em que duas narrativas concorrem paralelamente, e em

cada uma delas a Jornada do Herói é desenvolvida de maneiras diferentes. Na primeira

narrativa, a história pode ser dividida em sete tramas com começo-meio-e-fim, que

correspondem a cada ano de Harry em Hogwarts e engloba os acontecimentos que ele

vivencia na escola de magia, as aulas e o relacionamento com os professores e os colegas.

Além dos fatores do cotidiano, Harry se depara com um conflito principal a cada ano e que

tem alguma relação com o Lorde das Trevas13

, como a Câmara Secreta no segundo livro, o

Torneio Tribruxo que acontece no quarto volume e o enigma do príncipe mestiço no sexto.

Em cada um dos livros, a Jornada do Herói é apresentada de forma absoluta, pois os

problemas que Harry enfrenta em cada livro são solucionados no mesmo volume.

Estes conflitos são a ligação entre a trama que mostra a vida de estudante de Harry

com a segunda narrativa: a trama que mostra o destino do homem marcado para matar ou

morrer. Cada livro apresenta um fragmento da história principal, que envolve a ascensão de

Voldemort e a relação entre ele e Harry. Essa narrativa é construída aos poucos, e as etapas da

Jornada do Herói se desenvolvem um pouco mais lentamente.

Para que possamos analisar o desenvolvimento do herói no personagem Harry Potter,

é necessário primeiro conhecer a aplicação da Jornada do Herói na trajetória percorrida por

Harry ao longo dos sete livros que compõem a história. Usando como referência a obra A

Jornada do Escritor, de Christopher Vogler, estabelecemos a aplicação da Jornada na

história, destacando os pontos-chave na aventura, e possibilitando uma melhor observação do

modo como o herói age. A versão da Jornada desenvolvida por Vogler é um aperfeiçoamento

da obra de Campbell14

, feita a princípio para servir de guia para produções cinematográficas

da Disney, como O Rei Leão e A Bela e a Fera. Com o passar dos anos, Vogler aperfeiçoou

este guia e o transformou em um livro.

De acordo com Vogler (2006, p. 67), a estrutura da Jornada do Herói não deve ser

elaborada com rigidez, pois as etapas podem aparecer em momentos diferentes, serem

misturadas e até mesmo excluídas da história. A análise da Jornada do Herói nos livros de

Harry Potter pode seguir diferentes formas, inclusive o formato tradicional proposto por

Vogler. No entanto, segundo a interpretação proposta nesta pesquisa, a maioria dos estágios

foge dos conceitos mais óbvios, como podemos ver na existência de mais que um Chamado à

Aventura, e na Provação Suprema, que é composta por dois acontecimentos importantes, e é

misturada com a Aproximação da Caverna Oculta. Apesar disso, há etapas como o Caminho

de Volta e a Ressurreição que foram escritas da maneira mais clássica possível, tornando

13 Um dos termos usados para se referir a Voldemort 14 Vogler identifica 12 etapas diferentes, sendo elas: “mundo comum”, “chamado à aventura”, “recusa ao

chamado” e “encontro com o mentor”, que equivalem ao primeiro ato da narrativa; “travessia do primeiro

limiar”, “testes, aliados e inimigos”, “aproximação da caverna oculta”, “provação suprema” e “recompensa”, que

correspondem ao segundo ato; “caminho de volta”, “ressurreição” e “retorno com o elixir”, que correspondem ao

terceiro ato.

dispensável uma interpretação mais profunda, porque são etapas que exemplificam muito bem

a descrição proposta por Vogler.

3.1 As Doze Etapas

Como muitas histórias são viagens que levam os heróis e as plateias para Mundos Especiais, a maioria delas começa estabelecendo um Mundo

Comum como base para a comparação. O Mundo Especial de uma história

só é especial se puder ser contrastado a um mundo cotidiano, com as

questões de todo dia, das quais o herói é retirado. O Mundo Comum é o contexto, a base, o passado do herói. (VOGLER, 2006, p. 143 )

Do ponto de vista do primeiro livro, se o observarmos individualmente, o mundo

comum de Harry Potter é a casa dos tios, em que ele vive desde a morte dos pais quando tinha

apenas um ano de idade. Ele sai desse mundo comum quando completa 11 anos e recebe

convite para entrar no mundo bruxo de Hogwarts. Por outro lado, quando olhamos a trama

completa desenvolvida nos sete livros, apesar de Harry Potter ser apresentado ao leitor como

um garoto comum que vive no mundo dos trouxas, a estadia na casa dos tios é, na verdade,

uma provação que ele tem de enfrentar até completar dezessete anos. A jornada de Harry

começa com um prólogo, em que ele é retirado do mundo dos bruxos, o seu mundo comum, e

é levado para a casa dos tios trouxas, onde ele tem de ficar pelo menos uma vez por ano, até

atingir a maioridade. De acordo com Vogler (2006), além de indicar que a obra em si

abordará um tema extraordinário, o prólogo pode mostrar ao público um desequilíbrio em

uma determinada sociedade, e o que impulsiona a história é a restauração dessa ordem e a

destruição do que causa a desordem. Em Harry Potter, a suposta derrota de Voldemort é uma

vitória para os bruxos, graças a Harry que sobrevive ao ataque de Você-Sabe-Quem15

e

misteriosamente o vence. No entanto, essa vitória traz consequências trágicas para o garoto,

que perde a sua família e a possibilidade de ter uma vida normal, causando um desequilíbrio

no mundo interior dele.

Várias teorias sobre a narrativa dão outros nomes ao Chamado à Aventura

— incitamento, acidente iniciatório, catalisador, gatilho... —, mas todas

estão de acordo com uma coisa: é preciso algum evento para ligar o motor, dar a partida na história, uma vez terminado o trabalho de apresentar o

personagem principal. (VOGLER, 2006, p. 162 )

Para dar conta da complexidade da trama, propomos nesta análise que Harry recebe

vários chamados à aventura, que servem para conscientizá-lo de que Voldemort ainda vive, e

algum dia retornará para tentar matá-lo novamente. O principal chamado à aventura acontece

15 Outro termo relacionado a Voldemort

em A Pedra Filosofal, quando Harry descobre que Voldemort está vivo e usando o professor

Quirrell como ferramenta para obter um corpo só seu. Neste breve encontro, Harry fica

sabendo que seus pais morreram para defendê-lo, ou seja, na noite em que Voldemort perdeu

seus poderes, ele tinha a intenção de matar Harry, um bebê de um ano de idade. Em A

Câmara Secreta acontece mais um chamado, em que Harry tem de enfrentar a memória do

jovem Tom Riddle16

. Esta memória é um fragmento da alma de Voldemort, que por meio de

um diário, possui Gina Weasley17

e se alimenta das forças dela para adquirir autonomia e

trazer o verdadeiro Voldemort de volta à vida física. Este encontro conscientiza Harry de que

Voldemort possui meios inimagináveis de permanecer vivo, e que estes meios não estão

inativos.

Harry nunca hesitou em lutar contra Voldemort. Nas duas ocasiões em que ele se

depara com Você-Sabe-Quem, a resolução dos conflitos que o levam a estes encontros não

cabia apenas ele; Harry sai em busca da Pedra Filosofal quando percebe que ela será roubada,

e Harry desce até a Câmara Secreta quando descobre que Gina Weasley foi levada para lá. Na

jornada percorrida por Harry, a recusa ao chamado é representada pelo seu mentor, o diretor

de Hogwarts Alvo Dumbledore. Ainda no primeiro livro, após descobrir que o alvo

verdadeiro de Voldemort era ele, e que seus pais morreram para tentar protegê-lo, Harry

pergunta a Dumbledore porque Voldemort queria matá-lo, mas o diretor responde que ainda é

cedo para que o garoto saiba – o que afasta imediatamente qualquer atitude impensada sobre

uma caça a Voldemort, adiando esse momento para os últimos livros. Segundo Vogler sobre a

recusa ao chamado:

Essa parada na estrada, antes que a jornada realmente comece, desempenha

uma função dramática importante, mostrando à plateia que a aventura é

perigosa e cheia de riscos. Não é uma brincadeira frívola, mas um jogo de

alto risco, carregado de perigos, no qual o herói pode perder a fortuna ou a vida. (2006, p. 172)

Ao final de cada livro, Harry tem um Encontro com o Mentor após a resolução do

conflito central, em que ele “... recebe as provisões, o conhecimento e a confiança necessários

para superar o medo e começar sua aventura. (VOGLER, 2006, p. 181)”, ou seja, nestes

breves encontros, Harry e Dumbledore conversavam sobre as consequências geradas por estes

16 Tom Marvolo Riddle é o verdadeiro nome de Voldemort. Quando ele se torna adulto e começa sua jornada em

busca do poder, Tom adota o título pelo qual ficou conhecido, que é um anagrama de seu nome verdadeiro. 17 Irmã mais nova do melhor amigo de Harry, Rony Weasley. Gina tem uma queda por Harry, e a partir do livro

O Enigma do Príncipe, eles começam a namorar. No fim do livro Relíquias da Morte, Harry e Gina estão

casados e tem três filhos.

conflitos e como elas provavelmente repercutiriam no futuro. Além de Dumbledore, Harry

possui vários mentores ao longo da história, desde Rúbeo Hagrid18

e Rony, que lhe ensinam o

básico sobre o mundo mágico, até Sirius Black e Remo Lupin19

, que servem como as figuras

paternas principais do garoto.

Em Harry Potter e o Cálice de Fogo, Voldemort finalmente retorna à vida corporal.

Isso só acontece por duas razões principais. A primeira delas é o auxílio de Pedro Pettigrew,

que era amigo dos pais de Harry, e atuava como espião para Voldemort. Após a morte de

Lílian e Tiago Potter, Pedro foge e permanece escondido sob a sua forma de animago20

, um

rato. Treze anos depois, Pedro se encontra não apenas com Harry, mas também com seus

antigos amigos, Remo Lupin e Sirius Black. Pettigrew é desmascarado e ameaçado de morte

por Lupin e Sirius, mas Harry intervém e impede que Pedro seja morto, pois o garoto prefere

inocentar o padrinho Sirius e evitar que ele e o professor Lupin fossem para Azkaban por

causa de Pedro. Ao invés disso, Harry sugere que Pettigrew seja levado até o castelo e de lá,

os dementadores21

podem lhe aplicar um castigo pertinente. Infelizmente, este ato

misericordioso se torna o erro trágico de Harry, pois Pedro foge, e para se proteger de uma

possível retaliação no futuro, ele procura pelos restos de Voldemort. Com a ajuda de Pedro

Pettigrew, Voldemort consegue traçar um plano com maiores chances de dar certo de voltar à

vida.

A outra razão que colabora com a ascensão do Lorde das Trevas é que o encantamento

que possibilitou a Voldemort obter um corpo próprio requeria o sangue de um inimigo, e o

bruxo queria usar apenas o sangue de Harry. Dessa forma, o Lorde das Trevas poderia tocar o

garoto sem sofrer nenhum tipo de dano. Com a chegada do Torneio Tribruxo22

, Voldemort

infiltra Barty Crouch Jr. em Hogwarts, que manipula o torneio a fim de que Harry pegue a

taça do Tribruxo, que seria transformada em uma chave de portal, e o levaria até o Lorde das

Trevas. Nesse caso. Crouch é uma espécie de mentor, e tudo acontece conforme o planejado.

18 Guardião das chaves e terras de Hogwarts. É ele quem revela a Harry que ele é um bruxo, e leva o garoto para

comprar seu material escolar. 19 O lobisomem Lupin era amigo de seus pais. Se torna professor de Defesa contra as Artes das Trevas no

terceiro ano de Harry em Hogwarts. 20

Bruxos podem aprender a se transformar em animais. No entanto, eles têm de ser catalogados no Ministério da

Magia, informando qual é a espécie e quais são as características de sua forma animal. Pettigrew era ilegal. 21 Guardas da prisão dos bruxos, Azkaban. São seres das trevas que se alimentam da felicidade das pessoas,

deixando-as apenas com sentimentos ruins. Também tem o poder de sugar a alma de uma pessoa e deixá-la em

estado vegetativo, ato conhecido como ‘O Beijo do Dementador’. 22 O Torneio Tribruxo é um campeonato em que um aluno de cada uma das três escolas de magia mais

importantes da Europa (Hogwarts, Durmstrang e Beauxbatons) realizam três provas perigosas, que testam suas

habilidades em magia. Devido À periculosidade das Tarefas, a edição sediada em Hogwarts só permitiria que

alunos maiores de idade competissem.

Quando Harry está prestes a vencer o torneio, ele se depara com Cedrico Diggory, o

competidor original por Hogwarts. Depois de discutirem quem deve pegar a taça, ambos

entram em acordo e fazem isso juntos, e são transportados até o cemitério onde Voldemort

está. No cemitério, Cedrico é morto e Harry é aprisionado, tornando possível a conclusão bem

sucedida dos planos de Voldemort para o seu ressurgimento. Todo esse desenvolvimento

presente no quarto livro são eventos que antecedem e preparam para a próxima etapa da

história. Harry, mesmo sabendo dos perigos que corre, aceita o desafio de ser um campeão

pela sua escola, e sua ação desencadeia uma série de eventos que fogem ao seu controle:

O comportamento típico de um herói não é o de aceitar os conselhos e

presentes de um Mentor, e sair disparado ao encontro da aventura. Em geral,

o salto final é desencadeado por alguma força externa, que muda o curso e a intensidade da história. É o equivalente do famoso "ponto de virada" da

estrutura convencional de um filme em três atos. (VOGLER, 2006, p. 195)

Apesar de O Cálice de Fogo ter a mesma função dos volumes anteriores, este livro

apresenta o que podemos considerar, em uma das inúmeras análises possíveis, o primeiro

ponto de virada da saga do herói, ou a Travessia do Primeiro Limiar. Esta etapa indica a

transição do primeiro para o segundo ato da história, e em Harry Potter, ela acontece quando

Harry pega a taça do Tribruxo, que é uma chave de portal que e o transporta para o cemitério

onde Voldemort está prestes a ressurgir. De acordo com Vogler (2006), “A Travessia do

Primeiro Limiar é um ato voluntário, pelo qual o herói se compromete integralmente com a

aventura”. No entanto, não é isso o que acontece em Harry Potter, pois Harry é impelido a

realizar esta travessia, já que ele cai em uma armadilha ao tocar na chave de portal. Apesar de

não ser neste momento em que ele se compromete a derrotar Voldemort, Harry sempre soube

que teria de enfrentá-lo algum dia; a tentativa fracassada de matá-lo há tantos anos e que

despojou Voldemort de seus poderes e de um corpo tornava muito provável uma vingança

contra o garoto. Além disso, é da personalidade de Harry ‘bancar o herói’: para salvar pessoas

queridas em perigo, ele assumiu responsabilidades que não eram obrigatoriamente dele. Harry

não permitiria que Voldemort retornasse e agisse sem fazer nada para impedi-lo, e essa atitude

é reforçada por um desejo inconsciente de fazer justiça e vingar a morte de seus pais. A partir

deste momento, Voldemort é capaz de atacar e Harry vai responder a este ataque.

Seguindo nossa proposta de análise, a existência de Voldemort em um corpo de

verdade, com a capacidade de executar os seus planos e de desestabilizar a comunidade bruxa,

equivale ao mundo especial na Jornada do Herói em Harry Potter, e essa volta traz

transformações marcantes. Conforme Vogler,

Mesmo que o herói esteja, fisicamente, num mesmo lugar, durante toda a

história, há movimento e mudança à medida que o novo território emocional

é explorado. Um Mundo Especial, mesmo figurado, é sentido de modo diverso, tem outro ritmo, diferentes prioridades e valores, regras diferentes.

(2006, p. 204)

A primeira transformação é que a única prova de que Voldemort retornou é a palavra

de Harry e o apoio que ele tem de Dumbledore. Para aqueles que se recusam a acreditar neles,

especialmente para o Ministério da Magia, a afirmação de que Voldemort ressurgiu, sem

provas concretas, significa que Harry e Dumbledore pretendem espalhar o terror e

desestabilizar o governo. Se antes eram admirados e respeitados, eles se tornam a escória do

mundo bruxo no quinto volume da série. Além disso, o Ministro da Magia fica em alerta e,

com medo de que aconteça uma rebelião antiministério em Hogwarts, o ministro Cornélio

Fudge toma medidas para interferir na escola de Magia, contratando para o cargo de

professora de Defesa Contra as Artes das Trevas a bruxa Dolores Umbridge, que se torna os

olhos e ouvidos do Ministro da Magia e instaura uma espécie de ditadura em Hogwarts.

Até A Ordem da Fênix, todos os personagens com alguma importância para a trama

central já foram apresentados ou pelo menos mencionados por alguém. Neste livro, a maioria

dos aliados se configura em dois grupos, a Ordem da Fênix e a Armada de Dumbledore. A

Ordem da Fênix é liderada por Dumbledore e é composta por um grupo de bruxos que

acredita no ressurgimento de Voldemort, desde Sirius Black e Molly Weasley, até membros

de alto escalão do Ministério da Magia, como Quim Shackelbolt, por exemplo. Estes bruxos

maiores de idade lutam para retardar os planos de Você-Sabe-Quem e também tentam

convencer as pessoas de que ele voltou, já que uma das maiores vantagens de Voldemort – e o

maior obstáculo dessa segunda parte da narrativa - é a descrença da maioria dos bruxos

perante o seu retorno, que colabora com os seus planos de agir discretamente, sem sofrer uma

oposição muito grande para a concretização de seus objetivos.

O outro grupo de aliados é a Armada de Dumbledore. Cansada de não ter aulas

decentes de Defesa contra as Artes das Trevas em um momento em que este aprendizado é

crucial, Hermione Granger reúne alguns colegas e propõe que Harry Potter ensine magia

defensiva a eles. O que a princípio era uma espécie de grupo de estudos se torna uma equipe

de aliados que apoiam Harry e que duelam contra os Comensais da Morte de igual pra igual.

Vale destacar os mais dedicados, que são Neville Longbottom, Luna Lovegood e Gina

Weasley, além de Rony Weasley e Hermione Granger.

Também existem aliados que não estão afiliados a nenhum grupo. Os elfos domésticos

Dobby e Monstro fazem favores a Harry por gratidão e por obrigação, respectivamente. Rita

Skeeter, a jornalista que escreveu diversas mentiras sobre Harry no ano anterior, é

chantageada por Hermione para cobrir uma entrevista em que ele esclarece o que aconteceu

na noite em que Voldemort ressurgiu, abrindo os olhos de muitos bruxos, e Xenofílio

Lovegood – pai de Luna – publica tal entrevista em sua revista simplesmente porque ele

acredita em Harry e porque ele gosta quando leitores colaboram com a publicação.

Em A Ordem da Fênix, além dos seguidores de Voldemort, como Lúcio Malfoy, os

inimigos que Harry enfrenta nessa etapa são essencialmente o Ministério da Magia e Dolores

Umbridge, que fazem tudo o que podem para continuar desacreditando Harry e Dumbledore.

Segundo o psicólogo Carl Jung (apud Vogler, 2006, p.67), os arquétipos designam

‘antigos padrões de personalidade que são uma herança compartilhada por toda a raça

humana’. No entanto, Vogler enfatiza que o conceito do arquétipo age basicamente como uma

função temporária que o personagem usa para cumprir sua meta. “Pode-se pensar nos

arquétipos como máscaras, usadas temporariamente pelos personagens à medida que são

necessárias para o avanço da história.” (Jung apud Vogler, 2006, p.71). Esta mudança de

funções acontece com bastante frequência em Harry Potter. É o caso de personagens como

Draco Malfoy e Severo Snape. Ao longo da história, Draco se apresenta como o rival de

Harry Potter, desde que este recusou a sua proposta de amizade, em A Pedra Filosofal. Essa

rivalidade toma força em O Enigma do Príncipe, em que Draco age exatamente em oposição

a Harry, mas em As Relíquias da Morte, ele se torna aliado do protagonista, quando não o

entrega para os Comensais da Morte. Severo Snape é um dos personagens que mais transitam

entre diferentes arquétipos, indo de aliado à sombra, e depois a herói. Além destes dois, outro

caso que vale citar é o de Pedro Pettigrew. Disfarçado como o rato de estimação de Rony

Weasley, Pedro se revela um inimigo por ser fiel a Voldemort em O Prisioneiro de Azkaban.

Apesar disso, Harry não permite que Pedro seja morto por Remo Lupin e Sirius Black, o que

deixa Pettigrew em dívida com Harry. Em Relíquias da Morte, Pedro paga tal dívida, agindo

momentaneamente como aliado.

Com relação aos testes, podemos afirmar que eles vão sendo distribuídos em todos os

livros – especialmente porque cada um contém estrutura própria que leva a uma finalização.

Assim, até o retorno de Voldemort, Harry já tinha enfrentado diferentes obstáculos que

contribuíram para adquirir habilidades, armas e conhecimento. Dentre os testes e obstáculos

que Harry enfrenta na etapa definida pelo quinto livro, ele tem que lidar com a repercussão

causada pela sua declaração sem provas sobre o retorno de Voldemort. Tal afirmação

instauraria um desequilíbrio na comunidade mágica, gerando o medo e o caos, e isso não é

bom para o governo atual. Cornélio Fudge, prontamente se encarrega de impedir que estes

boatos se fortaleçam, e usa diversos meios para desacreditar e controlar Harry, fora e dentro

de Hogwarts.

Outro teste de extrema importância que Harry tem de enfrentar é a ligação entre a

mente dele com a de Voldemort. Graças a uma proteção feita pela mãe de Harry, Lílian

Potter, Voldemort não conseguiu matar o garoto, pois o feitiço ricocheteou e destruiu o seu

corpo. O feitiço mortal que ele lançou em Harry fez a famigerada cicatriz em forma de raio

em sua testa, que se tornou o elo entre as mentes do garoto e do Lorde das Trevas. Por meio

dela, Harry já sentia desde A Pedra Filosofal quando Voldemort estava mais forte, além de ter

sonhos com o bruxo, que eram, na verdade, acontecimentos reais. Em A Ordem da Fênix, essa

ligação fica cada vez mais forte, e Harry não só vislumbra trechos do que se passa na mente

de Voldemort, mas também consegue identificar o que o bruxo sente. A força dessa ligação

culmina quando o garoto presencia o ataque de Nagini23

, que também é uma horcruxe, ao Sr.

Weasley, enquanto ele estava de guarda no Departamento de Mistérios24

. Além de presenciar

o ataque, Harry o viu acontecer do ponto de vista da cobra, como se ele fosse o agressor.

Dumbledore teme que Voldemort descubra essa ligação e a use para manipular Harry,

portanto ele encarrega Snape de ensiná-lo a usar a Oclumência, que fechará sua mente para

Voldemort. Contudo, sem que Harry perceba, Voldemort usa a curiosidade do rapaz para

atiçá-lo e fazer com que ele descubra coisas; neste caso, Harry descobre que a porta com a

qual ele sonhava há meses é o Departamento de Mistérios. Harry se sente tentado com essas

visões reveladoras e deixa a Oclumência de lado, pois ele percebe que o elo com Voldemort

pode ser útil.

No entanto, o maior desafio de Harry nesta parte da história é passar por todos estes

obstáculos estando no auge da adolescência. As oscilações de humor e a intensidade com que

Harry reage aos acontecimentos são muito maiores e fazem com que ele aja por impulso

diversas vezes, e tenha explosões de raiva por causa de coisas tolas.

23 Cobra de estimação de Voldemort realiza tarefas para o bruxo. 24 Voldemort está atrás de uma arma, que está guardada no Ministério da Magia, no Departamento de Mistérios.

A Ordem da Fênix tem conhecimento dessa busca, e por isso sempre tem algum membro de guarda para evitar

que Voldemort consiga essa arma.

Conforme afirmamos no começo deste capítulo, a Aproximação da Caverna Oculta, a

Provação Suprema e a Recompensa são etapas que acontecem duas vezes; a primeira delas

em A Ordem da Fênix, e a segunda no título seguinte, O Enigma do Príncipe.

No caminho, encontram outra zona misteriosa, com seus próprios Guardiões

de Limiar, seus próprios testes. É a Aproximação da Caverna Oculta, onde,

finalmente, vão encontrar a suprema maravilha e o terror supremo. É hora dos preparativos finais para a provação central da aventura. (VOGLER,

2006, p. 213)

A Aproximação da Caverna Oculta ocorre pela primeira vez quando Harry cai na

armadilha de Voldemort: usando a ligação das mentes, o vilão planta uma visão falsa no

garoto, em que ele vê Sirius sendo torturado, no Ministério da Magia. Harry se desespera para

tentar salvá-lo, mas por causa das regras impostas por Umbridge, é praticamente impossível

sair de Hogwarts ou entrar em contato com algum membro da Ordem. Neville Longbottom,

Luna Lovegood e Gina Weasley, membros da Armada de Dumbledore, além de Rony e

Hermione, ajudam Harry a bolar um plano de fuga, que é bem sucedido, e acompanham o

garoto até o Ministério. A batalha que se segue contra os Comensais da Morte é árdua, mas os

garotos conseguem por em prática o que aprenderam nas aulas com Harry e lutam habilmente

contra os seguidores de Voldemort.

A segunda aproximação acontece no sexto livro, quando Dumbledore localiza uma

horcruxe, e leva Harry junto dele para buscá-la. Esta parte pode ser considerada literalmente

como a Aproximação da Caverna Oculta, já que a horcruxe está escondida em uma caverna de

difícil acesso. Lá, Harry e Dumbledore passam por alguns obstáculos, colocados ali por

Voldemort para enfraquecer o inimigo, e mesmo depois de conseguirem pegar a horcruxe,

Harry e Dumbledore ainda tem de enfrentar os Inferi25

, que são a última cartada de Voldemort

para impedir que intrusos saiam da caverna com vida. Esses eventos levam à próxima etapa:

O segredo simples da Provação é este: Heróis têm que morrer para poderem renascer. O movimento dramático de que a plateia mais gosta, acima de

qualquer outro, é o de morte e renascimento. De algum modo, em toda

história os heróis enfrentam a morte ou algo semelhante: seus maiores

medos, o fracasso de um empreendimento, o fim de uma relação, a morte de uma personalidade velha. Na maioria das vezes, os heróis sobrevivem,

magicamente, a essa morte e renascem — literal ou simbolicamente — para

colher as consequências de terem derrotado a morte. Passaram pelo teste principal, aquele que consagra um herói. (VOGLER, 2006, p. 229)

25 Pessoas mortas que são enfeitiçadas para continuarem vivas, como se fossem zumbis.

Assim como na Aproximação, a etapa da Provação Suprema é composta por dois

acontecimentos importantes. O primeiro deles é a morte de Sirius Black por Bellatrix

Lestrange26

durante a batalha no Ministério da Magia, e a segunda é a morte de Dumbledore,

morto por Severo Snape na Torre de Astronomia, em Hogwarts. Ambos os casos são

consequências das ações tomadas durante a etapa anterior.

Tanto a Aproximação da Caverna Oculta quanto a Provação Suprema podem ser

interpretadas de formas diferentes. As duas fases possuem dois pontos importantes em cada

uma delas e que acontecem em momentos completamente distintos, o que possibilita

considerar que as etapas acontecem duas vezes. Apesar disso, elas possuem ligações que

permitem também considerar a existência de apenas uma Aproximação e uma Provação.

Os dois acontecimentos que podemos chamar de Aproximação na Jornada do Herói

em Harry Potter são compostos pelos aspectos mais tradicionais organizados por Vogler para

este estágio; em ambos os casos, Harry e seus aliados atravessam um novo limiar, um

ambiente desconhecido com seus próprios obstáculos e fazem os preparativos finais para o

confronto iminente. Tanto a ida ao Ministério quanto a ida até a Caverna exigiram uma

preparação de Harry e seus acompanhantes para o desconhecido, fosse uma batalha com

muitos oponentes ou obstáculos não humanos. Apesar disso, Harry Potter e o Enigma do

Príncipe é o livro que precede a guerra. O resto da comunidade bruxa já sabe que Voldemort

está vivo e prestes a agir a qualquer momento, portanto todos os bruxos estão em alerta e se

preparando para quando a guerra começar de verdade. No caso de Harry, Dumbledore lhe

mostra e explica tudo o que ele sabe sobre Voldemort, preparando o garoto para a sua missão,

que é destruir as horcruxes e matar o bruxo. Além de ser também uma extensão do Encontro

com o Mentor, os preparativos desta fase para a batalha são urgentes, e observando a história

como um todo, este pedaço do sexto livro pode também ser incluído na Aproximação.

Já na Provação Suprema, Vogler (2006) destaca que esta é uma fase de morte e

renascimento. Harry presencia a morte de seus mentores mais importantes, Sirius Black e

Alvo Dumbledore. Os dois mentores foram as figuras paternas mais marcantes que Harry

teve, e a perda deles dão início a uma nova fase em sua vida, impulsionando o

amadurecimento do garoto: a morte do Sirius leva à conscientização de que ele tem que matar

Voldemort, e depois da morte de Dumbledore, Harry não tem mais desculpas pra adiar isso.

26 Comensal da Morte, Bellatrix demonstra verdadeira devoção por Voldemort.

Tendo passado pela crise da Provação, os heróis agora experimentam as

consequências de sobreviver à morte. Já que o dragão que vivia na Caverna

Oculta foi morto ou vencido, eles agarram a espada da vitória e reclamam sua Recompensa. O Triunfo pode ser enganador, mas nesse momento eles

saboreiam seus prazeres. (VOGLER, 2006, p. 255)

Depois de retornar a Hogwarts após a morte de Sirius, Dumbledore finalmente revela a

Harry toda a verdade sobre qual é o papel do rapaz perante a luta contra Voldemort. Até

então, por mais engajado que Harry fosse no combate ao bruxo, Dumbledore sempre o

poupava da responsabilidade pertinente a ele. Depois dos acontecimentos daquela noite, a

primeira recompensa que Harry recebe é a revelação de Dumbledore sobre o conteúdo da

profecia27

, que o garoto havia sido marcado por Voldemort como o bruxo capaz de vencê-lo, e

que um não poderia viver enquanto o outro sobrevivesse. Harry compreende então que, a

partir deste momento, a opção de fugir ou de apenas lutar para se defender não existe mais,

pois não há outro bruxo que vai se responsabilizar e comandar a destruição de Voldemort. O

Lorde das Trevas marcou Harry como seu igual e, sem saber, forneceu armas para contribuir

com a sua própria derrota. A outra recompensa que Harry ganha, em O Enigma do Príncipe é

justamente o reforço da sua posição diante de Voldemort. Simbolizada pelo medalhão que

Harry captura junto de seu mentor, esta horcruxe é a pista inicial para que Harry comece a sua

missão. Sem Dumbledore, Sirius ou qualquer outro ‘adulto’ para guiá-lo, Harry se torna o

general do lado que se opõe a Voldemort, e toda a comunidade bruxa que não apoia

Voldemort vê em Harry a liderança da resistência. Se ele optasse por não assumir esse papel

de líder, Voldemort venceria. Essa sequência de acontecimentos preparam a história para o

terceiro ato da narrativa.

O Caminho de Volta, no fim do segundo ato, pode ser um momento breve ou

uma sequencia elaborada de acontecimentos. Quase toda história precisa ter

um momento em que o herói tome consciência de que está a ponto de terminar a aventura. É preciso, então, fornecer-lhe a motivação necessária

para voltar para casa com o Elixir, apesar das tentações do Mundo Especial e

das atribulações que ainda o esperam. (VOGLER, 2006, p. 278)

Em Harry Potter, o Caminho de Volta pode corresponder à busca pelas horcruxes

durante a maior parte do sétimo livro, em que Harry tem de colocar em prática tudo o que ele

aprendeu até então. Ele opta por seguir em frente, e conta com o apoio dos amigos Rony e

Hermione. No entanto, o que catapulta de fato esta etapa do Caminho de Volta é a queda do

27 A profecia é a arma que Voldemort buscava, pois ele só conhecia metade dela. Feita por Sibila Trelawney para

Dumbledore, essa profecia dizia que “Aquele com o poder de derrotar o Lorde das Trevas se aproxima.. . e o

Lorde das Trevas o marcará como sei igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece... e um

dos dois deverá morrer na mão do outro pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver...”.

Ministério da Magia, que fica nas mãos de um funcionário que está sendo controlado

diretamente por Voldemort. Enquanto Harry, Rony e Hermione traçam planos e enfrentam

diversos obstáculos em busca das horcruxes, a ascensão e poder do Lorde das Trevas se

fortalecem cada vez mais e seu domínio se estende por toda a comunidade, inclusive

Hogwarts, que não possui mais Dumbledore para protegê-la do mal.

A etapa da Ressurreição tem início no trecho final do sétimo livro, a partir do

momento em que Harry se encontra com Severo Snape, que está prestes a morrer, e entrega ao

rapaz um pouco de lágrimas que contém fluidos com memórias suas. Harry as leva até a

Penseira28

e só então conhece de fato o seu destino. Harry descobre que, graças à proteção de

sua mãe, o feitiço usado por Voldemort para tentar matá-lo ricocheteou, e por causa da

instabilidade que a alma tão danificada de Você-Sabe-Quem apresentava, acabou se partindo

e encontrou abrigo no corpo de Harry, fazendo com que o garoto se transformasse em uma

horcruxe não planejada e adquirisse certas habilidade, como falar a língua das cobras. Nas

memórias de Snape, Dumbledore disse ao bruxo que Harry deveria ir ao encontro de

Voldemort e ser morto por ele, sem oferecer nenhuma resistência. Transtornado e ferido por

causa das mortes recentes de pessoas queridas como Lupin, Ninphadora Tonks e Fred

Weasley29

, Harry finalmente entende o seu papel e o que ele significava para Dumbledore:

uma arma.

Após digerir a recente revelação e de ligá-la com outras informações, Harry se resigna

com o seu destino e vai encontrar Voldemort na Floresta Proibida, fazendo exatamente o que

Dumbledore disse que ele deveria fazer; Harry guarda a varinha e se apresenta diante de

Voldemort, totalmente inofensivo, e é morto. É a ressurreição do herói:

Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O

truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus

personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela.

Os escritores precisam descobrir um modo de demonstrar que seus heróis passaram por um processo de Ressurreição. (VOGLER, 2006, p. 281)

A Ressurreição se parece com a Provação Suprema, mas diferente desta, é o clímax da

história. Nessa etapa da Jornada, o herói tem de vivenciar mais uma vez a morte e o

renascimento, e dessa vez, Harry vive isso na própria pele. Após ser morto por Voldemort,

28 Objeto mágico, em forma de uma bacia, em que é possível depositar pensamentos e vê-los, para que possam

ser melhor analisados. 29 Auror e esposa de Lupin, e irmão de Rony, respectivamente.

Harry acorda em uma espécie de limbo, onde encontra com o seu grande mentor. Orgulhoso,

Dumbledore explica a Harry que como ele não se opôs à morte, o que foi atingido pelo feitiço

disparado por Voldemort foi o fragmento de sua alma preso ao garoto, então Harry pode

voltar à vida e continuar lutando, se ele quiser. Dumbledore acrescenta que, assim como

Lílian Potter, Harry se sacrificou em nome daqueles que lutam contra Voldemort, para tentar

salvá-los. Portanto, o Lorde das Trevas não pode fazer mal a essas pessoas. Além disso,

Voldemort usou o sangue de Harry para formar um corpo para si, o sangue em que corria a

proteção de Lílian Potter. Esse ato impensado amarra Harry à vida, impossibilitando-o de

morrer enquanto Voldemort não morrer primeiro. Ou seja, até então, a vitória de Harry é

praticamente completa.

Harry decide voltar e continuar lutando, mas ao acordar, permanece quieto, fingindo

estar morto. Harry é levado ao castelo e é exposto como um troféu. Uma nova batalha

acontece, mas os feitiços de Voldemort não surtem efeito em seus opositores. Neville

Longbottom destrói a última horcruxe restante, Nagini, e Harry, que havia se escondido sob a

Capa de Invisibilidade assim que a batalha havia reiniciado, aparece e chama a atenção de seu

grande inimigo, pronto para encerrar de uma vez a sua missão. Transformado pelo sacrifício e

pela volta à vida, consciente de sua vitória, Harry lança o Expelliarmus na direção de

Voldemort ao mesmo tempo em que o Lorde das Trevas ataca com o Avada Kedavra30

. Os

feitiços se chocam e Harry vence Voldemort, que cai no chão, morto. Isso conclui a história e

deixa em aberto apenas a restauração da ordem, ou seja, a última etapa da jornada:

Tendo sobrevivido a todas as provações e passado pela morte, os heróis

regressam a seu ponto de partida, voltam para casa ou continuam a Jornada.

Mas prosseguem com a sensação de que estão começando uma nova vida, que, por causa do caminho que acabaram de percorrer, jamais voltará a ser

como antes. Se são heróis mesmo, Retornam com o Elixir do Mundo

Especial, trazem algo para compartilhar com os outros, alguma coisa com o poder de curar a terra ferida. (VOGLER, 2006, p. 303)

O Retorno com o Elixir encerra a história com um epílogo, dezenove anos depois.

Uma das possibilidades do último estágio da jornada tem a finalidade de finalizar um ciclo e

dar início a outro. Para que isso aconteça, o protagonista volta no ponto de partida da história,

o que permite ao leitor ou espectador fazer uma comparação de como os personagens

mudaram. Em Harry Potter, o epílogo acontece na Plataforma 9 3/4, em King Cross. Nele,

30 A Maldição da Morte. Em toda a história, somente Harry sobreviveu a ela.

Harry, Rony e Hermione31

estão embarcando seus filhos para começarem o ano letivo em

Hogwarts, e o filho mais velho de Harry vê o afilhado de seu pai, Teddy Lupin32

se

despedindo de uma garota33

. A autora J.K. Rowling disse em uma entrevista que a história

começa com um órfão, e ela queria que terminasse com um, e que apesar de Teddy ser apenas

mencionado no epílogo, ela queria que os leitores vissem que ele tem o apoio de Harry34

.

Além disso, outro elemento que faz referência ao primeiro livro da série é que o filho mais

novo de Harry e Gina vai dar início ao seu primeiro ano em Hogwarts. O garoto desabafa com

seu pai sobre o medo que ele sente de ir para a Sonserina, assim como Harry também sentiu

em sua época. Harry tranquiliza o garoto, mas diz que se ele se importa tanto, ele pode pedir

para ir para a Grifinória.

Além disso, a etapa do Retorno em Harry Potter possui diversos elixires. Harry

sobrevive e tem de reconstruir a sua vida. Rowling acredita que é heróico para uma pessoa

que vivenciou todo o horror de uma guerra “... ser mentalmente forte o bastante, e se possível,

ter força física o suficiente, para voltar para casa e construir uma nova geração com valores

que você espera que não a conduzam para outra guerra.”35

Ele constrói uma família saudável

e feliz, e pela primeira vez, Harry tem uma vida absolutamente normal. O trecho final do livro

sintetiza a vida de Harry após a destruição de Voldemort: “A cicatriz não incomodara Harry

nos últimos dezenove anos. Tudo estava bem.”.

Concluída a análise, podemos observar que a Jornada do Herói em Harry Potter

apresenta todas as etapas; algumas delas são evidentes, e seguem à risca o padrão estabelecido

por Campbell e Vogler, outras estão abertas a interpretações e exigem mais atenção para

serem identificadas, pois aparecem mescladas com outras fases ou parecem estar ausentes.

Como foi mencionado no começo deste capítulo, a Jornada do Herói é uma estrutura básica

para se contar uma história cuja organização dos elementos a torna quase infalível. Como ela

se apresenta por completo em Harry Potter, a adaptação dos livros para o cinema foi feita

facilmente. Os estágios da Jornada nos livros e filmes são iguais, mas são os detalhes que

compõe cada fase e que não puderam ser adaptados para as telas é que diferenciam a história

31 Harry se torna um auror, que são bruxos que combatem os bruxos das trevas, e está casado com Gina Weasley,

ex-jogadora de Quadribol e comentarista no jornal Profeta Diário, com quem ele tem três filhos. Rony também é

auror e se casou com Hermione, que trabalha na seção de Execução das Leis Mágicas, no Ministério da Magia;

eles têm dois filhos. 32 Filho de Remo Lupin e Ninphadora Tonks, ambos mortos na batalha final contra Voldemort. 33 A garota em questão é Victorie, filha de Gui Weasley, irmão mais velho de Rony e Gina. 34 Conforme registrado no site Potterish http://conteudo.potterish.com/jk-rowling-no-carnegie-hall/ 35 Conforme registrado no site Potterish http://conteudo.potterish.com/cofre-27/#3

em ambos, como acontece com a elaboração do protagonista da série, Harry Potter, conforme

será visto nos capítulos a seguir.

4 CAPÍTULO: UM PERSONAGEM, DOIS HERÓIS.

Após identificar as etapas da Jornada do Herói e como ela se articula na série Harry

Potter, é possível estabelecer quais são as situações em que a atuação de Harry como herói

tem papel mais ativo. O arquétipo do herói representa “a busca da identidade e a totalidade do

ego” (VOGLER, 2006) e é o que permite ao leitor ou espectador se identificar com a história,

pois é por meio do herói que vivenciamos a trama. Essa identificação acontece porque os

protagonistas possuem características universais, e passam por situações comuns à maioria

das pessoas.

Joseph Campbell percebeu como a jornada do Herói corresponde a diferentes fases da vida, particularmente o desenvolvimento da consciência e

a descoberta da identidade. Mesmo as histórias de herói mais simples

dramatizam a complexidade dos percalços enfrentados pelo homem comum.

(NATOV, 2002, p. 128, tradução nossa)

O herói precisa ter qualidades que permitam que o público o admire e respeite, mas

um protagonista certinho e perfeito não desperta o interesse de ninguém, pois isso o afasta do

leitor/espectador, que não se identifica e nem se afeiçoa ao herói. Harry Potter é um garoto de

índole boa, corajoso e decente. Ele faz amizades, se interessa por esportes, e acima de tudo,

deseja pertencer a um grupo e ser amado. Contudo, de acordo com a própria autora, J. K.

Rowling, os maiores defeitos de Harry são a raiva e arrogância36

. Muitas vezes, ele é nervoso

e impaciente, e de um modo bem discreto, é egocêntrico.

Um herói não tem a oportunidade de evoluir sem desafios que exijam que ele teste e

aperfeiçoe suas habilidades. Geralmente, estes obstáculos são impostos por um vilão. De

acordo com Paula Faria, o arquétipo do vilão é essencial para o desenvolvimento do herói:

The villain is part of the construction of the hero archetype. An essential part, I would say, for he is the goal of the journey, the center of the maze.

How the hero faces his villain is what defines his journey. Without a villain

and the obstacles posed by him/her, there would be no need for a journey. (FARIA, 2008, p. 43)37

36 Conforme registrado no site Potterish http://conteudo.potterish.com/chat-online-bloomsbury-com-jk-rowling/ 37 “O vilão é uma parte essencial para a construção do arquétipo do herói, pois ele é o objetivo da jornada. O

modo como o herói o confronta define a jornada, e sem o vilão, não há motivos para a existência da jornada.”

(tradução livre)

Em Harry Potter, o grande vilão é Lorde Voldemort, mas ele não é apenas uma força

antagônica ao herói. Em entrevista para a revista Entertainment Weekly38

, Rowling diz que

Voldemort é “um psicopata enfurecido, desprovido da capacidade humana de reagir ao

sofrimento alheio”. Essa definição do personagem se encaixa perfeitamente no conceito do

monstro:

O monstro pode ser considerado a personificação do MAL, ou seja, pode ser tudo aquilo que causa estranhamento e representa horrores extremos. Para

Luiz Nazário, o Monstro define-se em oposição à humanidade, ele é seu

inimigo mortal, aquele contra o qual ela só pode reagir pelo extermínio. Essa oposição pode ser apresentada sob a máscara de seres que não representa

uma dimensão da existência humana, mas uma força da natureza desviada

contra a humanidade: o MAL em estado puro. (RAMOS, 2012, p. 04).

De acordo com Thais Ramos (2012), monstros são criaturas que podem servir como

uma representação do mal causado e sofrido pelo ser humano. Eles não sentem culpa pelos

danos que causam e podem aparecer na forma de “um homem moral e/ou fisicamente

alterado, mutilado ou deformado pela natureza”. Apesar de ter nascido sob a forma de um

humano, Voldemort mutilou a si mesmo de todas as maneiras possíveis; ele é completamente

mau, fisicamente deformado, e como se isso não bastasse, ele mutilou a própria alma diversas

vezes, em busca da imortalidade.

Os livros O Cálice de Fogo, A Ordem da Fênix e As Relíquias da Morte foram

escolhidos para a análise da construção do personagem de Harry Potter porque é nestes

volumes em que o vilão tem papel ativo, o que posiciona Harry em um contexto em que o

aspecto do herói pode ser explorado ao máximo. Além destes, o livro A Pedra Filosofal

também faz parte da análise porque é nele em que a jornada de Harry tem início,

contextualizando todo o universo do protagonista. Apesar de a estrutura da narrativa de Harry

Potter manter os elementos principais dos livros nos filmes, as mudanças mais notáveis que

foram realizadas não acontecem na estrutura da trama central, mas sim nos detalhes,

principalmente na construção dos personagens.

Como já foi mencionado antes, A Pedra Filosofal não traz grandes mudanças em

nenhum aspecto do filme, e isso abrange também o modo como Harry responde como herói.

Quando ele começa a suspeitar que Snape quer roubar o que está guardado no alçapão do

terceiro andar, Harry é guiado pela sua antipatia pelo professor, mas as suspeitas ganham

força quando o garoto ouve Snape dizendo ao zelador Filch que é difícil vigiar três cabeças ao

38 Conforme registrada no site Potterish http://conteudo.potterish.com/fire-storm/

mesmo tempo, e isso só pode ser uma referência ao cão gigante de três cabeças que guarda o

alçapão, o Fofo. Isso não acontece no filme, já que após deter um trasgo que estava solto no

castelo, Harry vê a perna de Snape machucada. No dia seguinte, depois de Snape ironizar este

acontecimento e sair mancando, Harry deduz que foi o professor quem soltou o trasgo para

servir como distração, enquanto ele tentava passar pelo Fofo.

Mais adiante, os obstáculos que protegem a Pedra Filosofal e que Harry, Rony e

Hermione têm de ultrapassar são reduzidos no filme para que cada um deles tenha o seu

momento de glória. No entanto, isso enfraquece o papel de cada um dos três quando atuam

como coadjuvantes em cada tarefa, enquanto na versão original a ação é mais bem distribuída.

Com relação a Harry, apesar de ele ter seu momento de destaque no obstáculo das chaves

aladas, ele se torna mero coadjuvante que obedece a ordens nas outras tarefas, ou seja, um

personagem cuja ação e poder de decisão é reduzida.

Já em O Cálice de Fogo, há mudanças significativas em relação ao livro, que

influenciam na percepção do público em relação à atuação de Harry como herói. Em primeiro

lugar, foram eliminadas dificuldades que o personagem apresenta em relação a determinadas

coisas, como a aprender o feitiço “Accio39

”, por exemplo. Apesar disso, as alterações

realmente relevantes que foram feitas neste filme acontecem principalmente no cemitério,

após a ressurreição de Voldemort. Com a intenção de demonstrar que retornou poderoso, o

Lorde das Trevas40

lança em Harry a Maldição Imperius, para se divertir vendo o garoto

obedecê-lo. No entanto, Harry consegue resistir à maldição, e se isso já é um grande feito

quando uma Maldição Imperdoável41

é lançada por um bruxo mediano, que dirá então o que

significa se opor contra um encantamento feito por um bruxo poderoso como Lord

Voldemort?. Toda essa sequência desapareceu na versão fílmica.

A outra mudança em relação ao livro é o modo como o Priori Incantatem42

foi

retratado no filme. Na versão original, a força de vontade de Harry subjuga a varinha de

Voldemort, que regurgita os últimos feitiços realizados por ela. A dominação de Harry fica

muito clara, e Voldemort se mostra realmente apavorado, pois ele não sabia até então que a

varinha dele e de Harry são irmãs e não compreende o fenômeno que se passa ali. Além disso,

39 Feitiço usado para atrair objetos. 40 Uma das expressões usadas para se referir a Voldemort. 41 As Maldições Imperdoáveis são a Imperius, Cruciatus e Avada Kedavra, e elas só podem ser usadas com

autorização do Ministério da Magia. 42 Fenômeno que acontece quando os encantamentos de duas varinhas que possuem o mesmo núcleo, da mesma

origem, colidem. A varinha cujo feitiço é dominante faz com que a outra regurgite seus últimos feitiços.

Voldemort percebe que Harry é um adversário à altura, já que ele acreditava que o garoto

tinha sobrevivido aos encontros com ele por causa da ajuda de terceiros. Outra consequência

importante do Priori Incantatem é que varinhas de núcleos gêmeos não se voltam uma contra

a outra. Dumbledore comenta com Harry no livro As Relíquias da Morte que é muito provável

que a varinha do garoto, que dominou a varinha de Voldemort graças à sua coragem e

determinação, tenha absorvido alguns poderes da varinha adversária naquela noite. No último

livro, Voldemort busca outra varinha após um duelo com Harry, cuja varinha age sozinha

contra a usada por Voldemort, que na verdade pertencia à Lúcio Malfoy; ou seja, a varinha

usada por Harry reconhece Voldemort, mesmo que ele estivesse portando a varinha de outra

pessoa. Por fim, o Priori Incantatem simboliza o elo entre os dois bruxos, que é representado

no filme apenas pela ligação das suas varinhas, e as forças entre elas se mantêm equilibradas

inclusive na representação imagética dos feitiços lançados – em forma de raios que se chocam

em um centro.

Estes dois acontecimentos foram modificados no filme de tal forma que diminuem a

força de Harry, pois a resistência à Maldição Imperius e a sua 'vitória' no Priori Incantatem,

pelo menos no livro, representam a coragem e a determinação do garoto. Excluído isso do

filme, Harry não demonstra ao seu grande inimigo que ele é um adversário à altura, o que o

transforma em um herói fajuto. Além disso, todo o significado por trás dos núcleos gêmeos é

relegado a segundo plano, sendo retomado apenas nos dois últimos filmes, mas ainda assim é

uma abordagem muito rápida e superficial.

Na versão de Harry Potter e a Ordem da Fênix para o cinema, Harry é levado mais a

sério pelos membros da Ordem da Fênix, que não mostram resistência ao deixar que ele saiba

pelo menos superficialmente o que Voldemort está tramando. No livro, o fato de ele ser

menor de idade, 'uma criança', é muito mais relevante, e somente após muita insistência que

eles permitem que Harry saiba um pouquinho do que tem acontecido, só para que ele fique

um pouco mais tranquilo. Apesar de poder parecer que há um descaso com a segurança de

Harry no filme, o fato de o deixarem a par do que Voldemort tem feito demonstra respeito

pelo rapaz, que pode ser menor de idade, mas lutou contra Voldemort no ano anterior e

conseguiu escapar ileso.

A ligação entre a mente de Harry e o Lorde das Trevas neste filme se abre só a partir

do ataque ao Sr. Weasley. Na versão original, Harry tinha sonhos e impressões do que

Voldemort estava sentindo desde O Cálice de Fogo, e isso vai se tornando mais frequente e

intenso com o passar do tempo. Já no livro A Ordem da Fênix, as dores que ele sente na

cicatriz trazem consigo a emoção que Voldemort está sentindo naquele momento, o que

possibilita a Harry ter uma noção do rumo que os planos do bruxo estão tomando.

Dumbledore acreditava que se Voldemort tivesse conhecimento da ligação entre a

mente dele e a de Harry, o Lorde das Trevas poderia se aproveitar disso e plantar pensamentos

falsos na mente do garoto e manipulá-lo. Portanto, Dumbledore decide que Snape ensinaria

Oclumência43

a Harry, mas o garoto não aprende. No livro, Voldemort tem conhecimento do

elo entre a sua mente e a de Harry, e para que isso não se perca, ele instiga a curiosidade do

rapaz, permitindo que ele veja fragmentos da porta com a qual ele sonha há muito tempo e

que Harry descobre mais tarde que se trata do Departamento de Mistérios do Ministério da

Magia. Em uma aula de Oclumência, Snape é chamado para socorrer um aluno da Sonserina e

deixa Harry sozinho: a curiosidade do garoto o leva a espiar os pensamentos de Snape

guardados na Penseira44

, e Harry vê quando seu pai, Thiago Potter, humilha o professor na

frente dos colegas. Harry é pego no flagra por esta invasão de privacidade, o que enfurece

Snape de tal forma que ele expulsa Harry da sala e as aulas acabam aí. No filme, o ensino da

Oclumência foi usado para reforçar a animosidade entre Harry e Snape. Não existem

momentos em que Voldemort tenta Harry com visões da porta, e o garoto só descobre que se

trata do Departamento de Mistérios quando ele tem a visão de Sirius sendo torturado. Além

disso, as aulas se encerram porque Harry usa um feitiço para proteger a sua mente de Snape, e

sem querer, Harry vê a mesma memória que no livro, que consiste em Snape sendo humilhado

por Thiago. Ou seja, o fim das aulas acontece por causa de um ‘acidente’ em que o professor

expõe uma situação que o embaraça, o que faz com que ele pareça temperamental e

antiprofissional, já que Dumbledore confiou a Snape esta tarefa, que é abandonada por

motivos pessoais. Se na versão original Harry tem culpa pelo fim das aulas de Oclumência, no

filme acontece o oposto e ele sai da história como o injustiçado.

Outra mudança ligada à Oclumência é o comportamento de Hermione. Quando ela

descobre que Harry não está mais aprendendo a fechar sua mente e que ele nem pratica por

conta própria, ela aproveita todos os momentos em que não está ocupada para cobrar Harry e

lembrá-lo de que as aulas são ordens de Dumbledore, e que essa atitude dele colabora com

Voldemort. Além de se aborrecer com a amiga, Harry ignora por completo todos os

43 Oclumência é o ato de fechar a mente para influências externas. Para praticar a Oclumência, a pessoa precisa

esvaziar a mente e não pensar em nada. O ato de se infiltrar na mente de alguém é a Legilimência 44 Bacia de pedra em que é possível depositar pensamentos e ‘revivê-los’, para que seja possível analisá-los

quantas vezes a pessoa quiser.

argumentos dela para tentar fazer com que ele mude de ideia. Quando Harry tem a visão em

que Sirius é torturado por Voldemort dentro de uma sala no Departamento de Mistérios, o

garoto fica completamente desesperado. Hermione age com cautela e tenta acalmá-lo,

alertando-o de que isso pode ser uma visão manipulada por Voldemort. No entanto, nenhum

argumento convence Harry, que insiste em ir até o Ministério salvar o seu padrinho. Nas duas

situações, o papel de Hermione reforça a teimosia de Harry, que não dá ouvidos à amiga, e

essa atitude torna ainda mais pessoal o seu erro trágico, que era fechar a mente para que

Voldemort não tentasse manipulá-lo. No entanto, nada disso é retratado no filme dessa forma.

Hermione jamais cobrou de Harry a prática da Oclumência, e quando o garoto conta a ela e

Rony o que aconteceu com Sirius, ela expõe a possibilidade de Voldemort ter plantado uma

visão falsa. Como Harry não se convence, Hermione não diz mais nada e deixa o amigo agir.

A falta de atitude da garota no filme faz com que as atitudes equivocadas e impulsivas que

Harry toma pareçam não gerar consequências graves, e que ao invés disso, o que acontece em

seguida parece ser obra do destino. Comparado ao livro, no filme Harry é inocentado de sua

culpa mais uma vez. Esses momentos de culpa, inclusive, ajudam a demonstrar um dos traços

de imperfeição e humanidade do herói, o que no filme se torna superficial.

Ainda sobre a atitude de Harry após ver Voldemort torturando Sirius, no livro existiam

membros da Ordem da Fênix em Hogwarts, além de Snape e Dumbledore, que já estava

foragido. No entanto, acontece um ataque no dia anterior, em que funcionários do Ministério

tentam levar Hagrid na calada da noite. A Professora McGonagall tenta intervir, mas ela é

gravemente ferida e é levada para a enfermaria, enquanto não resta alternativa para Hagrid

senão fugir dali. Após o suposto ataque a Sirius, Harry ainda tenta falar com a professora para

saber como entrar em contato com algum outro membro, mas ela havia acabado de ser

transferida para o hospital. Só então Harry decide armar um plano de fuga, já que ele nem se

lembra que Snape estava ali na escola. No filme, não existe tal emboscada a Hagrid, portanto

ele poderia estar ali na escola, assim como a McGonagall. A atitude de Harry de tentar fugir e

ir até o Ministério, sem tentar entrar em contato com ninguém e sem verificar se a visão que

ele teve era real, sugere impulsividade e falta de escrúpulos. Aliás, como o relacionamento

entre Harry e Sirius é pouco explorado no quarto e quinto longas, Harry se mostra aflito com

tal acontecimento, mas ele permanece calmo todo o tempo. No livro, a impulsividade é

justificada como um comportamento momentâneo, pois Harry fica completamente

desesperado para salvar o padrinho, portanto a única coisa em que ele pensa é em como fugir

de Hogwarts para salvá-lo. Já no filme, a calma com que o personagem age, somada ao que já

foi mencionado anteriormente, faz parecer equivocadamente que Harry age sem pensar

naturalmente, o que descaracteriza por completo o personagem, que possui uma natureza

cautelosa.

A batalha no Ministério da Magia do filme é bem diferente do livro. Como o filme

exige ação, as várias salas do Departamento de Mistérios são reduzidas e o foco dos

acontecimentos é mantido na Sala das Profecias e na Sala do Arco. No livro, a batalha é muito

mais violenta, e os membros da Armada de Dumbledore que acompanham Harry se

machucam muito mais; apenas ele e Neville Longbottom têm condições de lutar e fugir sem

auxílio. Durante a batalha, acrescentaram um momento no filme logo antes da morte de

Sirius, em que ele diz a Harry para juntar seus amigos e sair dali, mas o garoto responde que

quer ficar e lutar junto do padrinho. Apesar de essa atitude relembrar a impulsividade e

valentia exagerada com que o garoto age nos filmes, esta cena serve para reforçar o afeto

entre Harry e Sirius, na tentativa de causar mais emoção no que vem a seguir, quando o

padrinho de Harry é morto por Bellatrix Lestrange.

Por fim, a parte final do livro Harry Potter e a Ordem da Fênix é muito diferente do

filme. A cena em que Dumbledore conversa com Harry sobre a profecia é carregada de

emoções: raiva, ressentimento e tristeza por parte de Harry, que se culpa pela morte de Sirius,

que sente raiva de Dumbledore por tê-lo ignorado durante um ano inteiro e que sente um certo

receio por descobrir que ele terá de matar ou ser morto em um futuro não muito distante.

Dumbledore por sua vez sente remorso por ter omitido informações importantes para Harry e

também pelo desfecho que a história de Sirius teve, quando isto poderia ter sido evitado se o

diretor não tivesse mantido distância de Harry. Depois de Harry extravasar todos os seus

sentimentos quebrando o escritório inteiro de Dumbledore, esta cena é cheia de explicações e

histórias, o que atenua no livro a atribuição de culpa de Harry e a distribui também entre os

adultos envolvidos, isto é, Dumbledore e Sirius. Na versão para o cinema, esta parte se

reduziu a uma mera explicação sobre a profecia, e apesar de não ser extremamente importante

para a narrativa central, todo o resto que foi deixado de fora acabou enfraquecendo um pouco

a importância deste momento. Sem a atenuação da culpa, Harry vive apenas de impulso e não

assume por completo a responsabilidade que lhe é real. Essa abordagem superficial não

condiz com o personagem, que sente uma raiva e tristeza profundas no livro, por carregar

consigo a culpa por ter levado Sirius ao lugar onde ele foi morto.

Além disso, Harry está com medo pelo que o futuro em relação a Voldemort lhe

reserva. No filme, ele se mostra triste, mas esperançoso e o final transmite uma mensagem de

otimismo, que destoa por completo do seu encerramento original45

. O personagem se encontra

emocionalmente acabado, e naquele momento final, não há nada que o anime o suficiente que

justifique a versão cheia de esperança que o filme mostra.

Em Harry Potter e as Relíquias da Morte, a aventura em busca das horcruxes começa

enquanto Harry ainda está se conscientizando de que a responsabilidade de destruir

Voldemort se encontra em seus ombros. Após a morte de Dumbledore, Harry tem de dar

continuidade à busca das horcruxes tendo por base o que o diretor lhe contou. Por causa da

morte prematura do bruxo, algumas lacunas terão de ser preenchidas por Harry, contando com

a ajuda apenas de Rony e Hermione e das informações que ele já obteve.

A história deste título começa com Harry sendo escoltado da Rua dos Alfeneiros para

um local seguro, neste caso, a casa dos Weasley. Prestes a completar dezessete anos e atingir

a maioridade bruxa, a proteção de Lílian Potter está prestes a acabar, o que permitirá a

Voldemort localizar e liquidar Harry na casa dos tios. Assim que Harry e sua escolta46

deixam

a casa dos Dursleys, eles são atacados por Comensais da Morte. Harry sempre usa o feitiço

Expelliarmus47

em batalha, inclusive na luta final contra Voldemort, e não é diferente na saída

da casa dos tios, e isso denuncia a sua posição aos inimigos. Na versão para o cinema, uma

característica marcante na construção do lado heroico de Harry nos livros é deixada de fora, e

a coruja de estimação Edwiges é quem denuncia qual é o verdadeiro Harry, ao tentar protegê-

lo dos ataques. Apesar de Harry continuar usando o Expelliarmus, inclusive na batalha final

contra Voldemort, a ênfase no modo como Harry age em batalha é perdido no filme. No livro,

após chegar a salvo na casa dos Weasley, Lupin repreende Harry, pois o uso deste feitiço em

um momento tão crítico é que o denunciou a Voldemort, já que Harry usou este feitiço tantas

vezes contra o bruxo e seus comensais, transformando o Expelliarmus em uma espécie de

assinatura. Lupin acrescenta que, se Harry não está preparado para matar, que pelo menos use

feitiços que nocauteiem o adversário. Harry responde que naquelas circunstâncias, deixar o

45

O final do livro e do filme tem em comum o fato de Harry receber o apoio dos amigos. Mas no livro, os

membros da Ordem da Fênix que o recebem na Plataforma 9 ¾ oferecem seu apoio e ralham com os parentes de

Harry para que o tratem melhor neste momento difícil, enquanto no filme, o fim é cheio de esperança. 46 Para despistar possíveis inimigos, são usados chamarizes; neste caso, seis pessoas tomam uma poção que as

transformam em Harry Potter. 47 Feitiço usado para desarmar o oponente, que ele aprende no segundo livro/filme da série em uma aula que

visava ensinar os alunos a se protegerem de possíveis ataques dentro de Hogwarts. Em pouco tempo, Harry

domina o feitiço – sendo um dos primeiros em que ele realmente é ‘mestre’ – a ponto de usá-lo em diversas

ocasiões.

comensal desacordado, em cima de uma vassoura a vários metros de altura, seria o mesmo

que matá-lo. Harry acrescenta que não sairá por aí matando as pessoas só por causa de

Voldemort, que isso é o serviço do Lorde das Trevas, e que o Expelliarmus já salvou o rapaz

várias vezes. Um possível motivo para este comportamento tem a ver com uma cena do sexto

livro: Harry aprende, a partir de uma anotação num velho livro de poções, o feitiço

Sectumsempra, com a observação “para inimigos”. Sem saber o que esse encantamento

provocaria, ele usa contra Draco Malfoy e quase o mata – isso demonstra um lado humano

muito presente no personagem: tanto Harry fica em pânico, em choque por quase se tornar um

assassino, assim como desperta nele um instinto de ‘sobrevivência’, e ele oculta as provas,

isto é, o livro de poções.

Já a salvo na casa dos Weasley, existe uma cena no livro que é alterada no filme, e

caracteriza de uma forma interessante o modo como Harry reage a conflitos, principalmente

quando alguém está em perigo. Após descobrirem que Olho-Tonto Moody foi morto em

combate, Harry diz que quer ir junto fazer a busca pelo corpo e ele se justifica dizendo que

não quer que mais ninguém morra por ele. Esta parte no filme toma um rumo diferente. No

meio da noite, Harry pretendia deixar a casa dos Weasley, mas Rony percebe quando o amigo

se levanta e carrega a mochila. Rony vai atrás de Harry, que diz que precisa começar a

procurar pelas horcruxes naquele momento, pois não quer que mais ninguém morra por ele.

Rony responde que não se trata apenas dele, o Harry Potter, que a sua salvação é parte de algo

muito maior, que é o combate a Voldemort. Nos livros O Cálice de Fogo e em A Ordem da

Fênix, Rony e Hermione mencionam, respectivamente, que Harry tem a mania de salvar as

pessoas e de bancar o herói. Já nos filmes, é somente nesse momento, a partir dessa cena

adicionada à história, que sintetiza muito bem esse aspecto da personalidade do protagonista,

já que Harry carrega consigo um dever de combater o mal que muitas vezes não diz respeito a

ele.

Após a queda do Ministério, Harry, Rony e Hermione fogem e se refugiam no Largo

Grimmauld, onde dão início aos planos de busca e destruição das horcruxes. As visões da

mente de Voldemort acontecem com mais clareza e frequência, e mesmo depois do que

aconteceu com Sirius em A Ordem da Fênix, Harry permite que essas visões aconteçam, pois

ele percebe que elas podem ser úteis para prever os planos do bruxo das trevas. O que

diferencia esta situação no livro do filme é que, no original, Harry tem diversas visões até se

dar conta da utilidade dessa ligação mental como arma, já no filme isso acontece mais rápido.

Além disso, quando Hermione o repreende por permitir que essas visões aconteçam, no filme

ele responde que não consegue evitar, mas no livro ele diz à amiga que estas visões são úteis e

que ele não vai bloqueá-las.

Após encontrarem uma das horcruxes, o medalhão verdadeiro cuja réplica foi

resgatada por Harry e Dumbledore no livro anterior, Harry, Rony e Hermione ficam

impossibilitados de voltar para o Largo Grimmauld. Viajando pelo país sem rumo, os três

estão desorientados e não sabem como continuar as buscas. Rony e Hermione acreditam que

Harry não lhes contou tudo o que Dumbledore disse a ele, e esperam uma liderança mais ativa

do rapaz. Harry, por sua vez, só não é ativo porque está sendo racional. No livro, baseado

muito mais nas reflexões e sentimentos de Harry, ele evita tomar ações porque não tem

referências que as deem sustentação, indicando qual caminho ele poderia tomar. Portanto, ao

invés de agir, Harry tenta descobrir alguma pista por meio das visões que ele tem acesso por

causa da ligação entre a sua mente e a de Voldemort. No filme, a transposição dessa falta de

ação de Harry tornaria a história arrastada: seria como tempos mortos que fogem da fórmula

narrativa fílmica comum em Hollywood. As cenas dedicadas a mostrar a falta de ação do

protagonista, em que ‘nada acontece’, foram compiladas em uma sequência que mostra

trechos de Harry, Rony e Hermione viajando. Só que, sem os momentos de introspecção, o

personagem fica vazio no filme. Além disso, a liderança de Harry é enfraquecida no

audiovisual porque é Hermione quem sempre encontra as soluções para os enigmas e toma

iniciativa. Quando Harry decide que é hora de ir a Godric’s Hollow, ele simplesmente

comenta com ela que quer ir até lá, mas no filme, o comunicado dele soa como um pedido, e

diante da hesitação da amiga, Harry ainda insiste.

Mais adiante, após tomar conhecimento sobre o que são as Relíquias da Morte, e que

elas provavelmente existem de verdade, Harry constata que o Lorde das Trevas está à procura

de uma delas, a Varinha das Varinhas. Harry acredita estar em posse de duas relíquias, a Capa

de Invisibilidade e a Pedra da Ressurreição, e fica obcecado em encontrar a varinha antes de

Voldemort. Por causa da dificuldade em prosseguir com a caça das horcruxes, Harry direciona

sua atenção para as relíquias, tentando encontrar uma pista que possa colocá-lo em vantagem

a Voldemort nessa procura.

No filme, a subtrama das Relíquias da Morte se resumiu a mostrar o que são elas e que

Voldemort está atrás da mais poderosa, a Varinha das Varinhas. Como a importância delas é

enfraquecida no filme, a obsessão de Harry por elas também é eliminada. Podemos interpretar

que Harry direciona sua atenção para os presentes da Morte no livro porque, além de ele

acreditar ser dono de duas delas, obter a Varinha equivaleria a destruir todas as horcruxes.

Harry aprende sobre as relíquias em um momento em que não existe motivação para

continuar procurando as horcruxes, pois ainda faltam muitas, e Voldemort fica cada vez mais

poderoso. Harry muda de foco na esperança de derrotar Você-Sabe-Quem recorrendo a um

meio mais ‘fácil’.

Além disso, Dumbledore havia dado a ordem a Harry para procurar as horcruxes, mas

a confiança que o rapaz tem no diretor fica abalada quando ele percebe que conhece muito

pouco sobre o passado do seu mentor. Esse desconhecimento é, a princípio, um motivo que

leva Harry a sentir remorso por ter perdido a oportunidade de conhecer o grande homem que

Dumbledore foi, mas à medida que a história avança, o rapaz toma conhecimento de fatos

intrigantes sobre ele. São os eventos do início do sétimo livro que inserem essas dúvidas nas

reflexões de Harry – a desconfiança sobre o suposto descaso de Dumbledore com os irmãos

órfãos, a morte suspeita da sua irmã abortada48

, a amizade com Gerard Grindewald49

e os

planos de dominar os bruxos e os trouxas junto dele. Toda a subtrama envolvendo este

passado obscuro de Dumbledore foi mostrada tão superficialmente no filme que apesar de

causar estranheza a princípio, elas não são exploradas a ponto de arranhar a imagem de

Dumbledore. Acontece que, no livro, essas descobertas sobre o diretor influenciam no modo

como Harry toma determinadas decisões que atingem diretamente o andamento das coisas.

Por exemplo, Dumbledore diz a Harry que apenas Rony e Hermione podem saber do que se

trata a missão dele, e Harry de fato não conta para ninguém. Mas por causa desses

desentendimentos, Harry desobedece algumas regras e recorre à ajuda de outras pessoas,

como Neville, que fica encarregado de destruir Nagini e conclui a tarefa poucas horas depois.

Apesar disso, Harry mostra certa relutância em pedir ajuda aos colegas da Armada de

Dumbledore, por exemplo, e é Hermione quem diz a Harry que não tem problema não seguir

as ordens de Dumbledore à risca, que ele não precisa contar o plano todo. No filme, Neville

só decepa Nagini porque a cobra estava prestes a atacar Rony e Hermione, que tentaram matá-

la sem sucesso; e, assim que a Armada pergunta a Harry qual é o plano, ele diz sem relutância

nenhuma que ele precisa encontrar um objeto que tenha pertencido a Rowena Ravenclaw.

Outro evento importante, é somente após a morte de Dobby que Harry decide assumir

o compromisso de agir para derrotar Voldemort. Depois de enterrar o elfo e refletir sobre tudo

48 Bruxos que nascem sem poderes mágicos são chamados de Abortos. É o oposto de bruxos nascidos em

famílias trouxas. 49 Poderoso bruxo das trevas, anterior a Voldemort. Grindewald foi derrotado por Dumbledore.

o que aconteceu até então, Harry decide finalmente em que focar para destruir Voldemort;

procurar pelas horcruxes ou relíquias? Harry decide dar continuidade à missão deixada por

Dumbledore optando pelas horcruxes. A partir daí, tendo como guia informações descobertas

na mansão dos Malfoy, Harry arma um plano com Rony e Hermione para dar continuidade à

busca. Essa mudança de atitude é muito marcante no livro, pois acontece depois de um longo

período de apatia, em que Harry evita agir, para dar lugar a um rapaz decidido e com

iniciativa. Entretanto, essa alteração de comportamento perde a força na versão

cinematográfica, pois não havia ênfase na falta de liderança dele, e a divisão da história que

separa os dois filmes ocorre exatamente neste momento. Apesar de Harry ter algum tempo em

cena em que ele parece refletir sobre o que tem acontecido, logo vemos a cena em que

Voldemort rouba a Varinha e o filme acaba. Quando começa Harry Potter e as Relíquias da

Morte parte 2, Harry já está transformado, e como os dois filmes são muito diferentes, essa

mudança de postura faz parte da mudança de gênero entre os filmes – de um filme de estrada

para um filme épico.

Uma abordagem equivocada da adaptação de Harry Potter e o Enigma do Príncipe

ecoa diretamente em pontos importantes de Relíquias da Morte. O sexto filme tem como foco,

mais uma vez, a adolescência e a vida amorosa dos personagens, deixando de lado as

informações mais importantes, porém monótonas para serem abordadas em um blockbuster,

que são as informações sobre as horcruxes. No livro, dos objetos que precisam ser achados e

destruídos, Harry sabe que existe uma taça que pertenceu a Hufflepuff, e que existe um objeto

desconhecido de Gryffindor ou Ravenclaw aprisionando um pedaço da alma de Voldemort.

Harry não sabe o que é, mas quando descobre que é uma tiara, ele se lembra de tê-la visto

anteriormente. Como o filme Enigma do Príncipe ignora estas informações, era provável que

usassem diversos flashbacks no sétimo e oitavo filme, para cobrirem esta lacuna. Entretanto,

os realizadores optaram por usar o elo mental entre Harry e o Lorde das Trevas e o fato de que

o rapaz também é uma horcruxe para corrigir essa falha de adaptação. Harry não sabe quais

são as horcruxes restantes, mas ele tem pistas de onde elas possam estar. Então quando ele se

aproxima de uma delas, o fragmento da alma de Voldemort aprisionado nele sente a presença

do outro fragmento. Isso é mostrado por meio de recursos audiovisuais, como colocar o objeto

em plano detalhe e utilizarem o som de ofidioglossia50

·, que é usado nos filmes para fazer

alusão a Voldemort.

50 Língua falada pelas cobras. Voldemort é ofidioglota, assim como Harry, por causa do pedaço da alma de

Voldemort nele.

Próximo do final do filme, após ver o conteúdo das memórias de Snape antes deste

morrer, Harry aceita fazer o que deve ser feito, e vai de encontro à morte. O ato de se

sacrificar pelas pessoas que ele ama, pelas pessoas que lutam contra Você-Sabe-Quem origina

a mesma proteção que Lílian Potter deu a ele antes de morrer. Ou seja, após matar Harry, as

investidas de Voldemort contra seus inimigos não surtem efeito; nem mesmo em Harry, que

teve a opção de continuar vivo. Além disso, o rapaz tem consciência de que não será afetado

por Voldemort, porque ele é, desde o momento em que retorna de King’s Cross, o mestre da

morte51

. Consciente de que não vai morrer, Harry se mostra confiante e superior ao oponente

– inclusive, ele chama Voldemort pelo seu nome verdadeiro, Tom - e isso torna evidente outra

característica da personalidade heroica: a misericórdia. No momento da luta final, Harry

permite que Voldemort se arrependa de tudo o que fez e salve o que sobrou de sua alma. O

diálogo final é o momento mais grandioso do livro, pois enquanto Harry e Voldemort se

encaram, andando em círculos, todas as pessoas e seres mágicos presentes no castelo se

reúnem ao redor deles e assistem à cena, apreensivos do que pode vir a seguir. A confiança

que Harry sente, e o temor que isso causa em Voldemort, principalmente quando Harry pede a

ele que sinta algum remorso, afirmam a superioridade dele em relação a Voldemort; ele se

comporta como um verdadeiro vencedor.

No filme, as mudanças realizadas neste pedaço da última batalha dão muita

importância à ação. A parte em que Harry se torna o Senhor da Morte e tem consciência de

que Voldemort não pode ferir a ele e nenhuma das outras pessoas que ele protegeu é excluída

do filme, enfraquecendo o poder do protagonista e da própria cena. Perde-se aqui a

oportunidade de finalizar uma parte importante da construção da trama, que levaria o

espectador a vibrar e ansiar mais ainda para o desfecho final.

O diretor David Yates quis transformar o clímax entre Harry e Voldemort em uma

grande batalha, em que eles se deslocam para vários lugares diferentes nos terrenos da escola

e se atracam várias vezes, enquanto os aliados de Harry lutam dentro do castelo com os

Comensais da Morte que não fugiram. Tenta-se construir a força do herói porque ele se joga

em uma batalha de vida ou morte, e não porque ele superou a morte. A luta final entre o

51 Como vimos no capítulo anterior, inúmeros eventos protegem Harry de ser morto: a Horcruxe que Harry se

tornou e o fato de Lilian Potter ter morrido para proteger o filho. Além disso, soma-se ele possuir as três

relíquias da morte, objetos mágicos que protegem o dono; são eles: a capa de invisibilidade que herdou do pai, a

pedra que Dumbledore deixou a ele, e a varinha de Dumbledore que, por uma série de eventos, reconhece que o

garoto é o verdadeiro dono. Ainda assim, foram dadas a Harry as opções de morrer ou viver após o ataque de

Voldemort – de qualquer forma, ele já havia enfraquecido o bruxo e coberto de proteção todos os amigos. Harry

escolhe viver e retorna com outra consciência para o fechamento da história.

protagonista e seu grande inimigo se transforma em uma pirotecnia visual cheia de ação e de

elementos que a tornam mais perigosa, e o diálogo entre Harry e Voldemort ocorre sem

espectadores, enquanto eles se atracam e duelam, por meio de magia e corpo a corpo.

O poder da batalha final no livro se sustenta de forma bem simples; toda a importância

e todo o foco da ação são voltados para Harry e Voldemort. O único movimento é dos dois

adversários se rodeando e se preparando para lançarem seus feitiços, enquanto dialogam. Esta

parte é carregada de tensão e a falta de atitude só faz com que o suspense aumente. A

abordagem realizada no filme enfatiza o espetáculo visual, enquanto a versão do livro dá

extrema importância ao espetáculo do próprio acontecimento em si, da narrativa. A

preferência pela ação no filme enfraquece o poder de Harry, e mesmo que ele pareça

confiante, a não valorização da construção da trama impede que Harry se posicione como

superior a Voldemort durante a última batalha.

Após analisar a atuação de Harry como herói nos livros e filmes, podemos notar que

apesar de terem diretores diferentes, as versões cinematográficas fazem uma abordagem

parecida do herói. Por causa da duração limitada, os filmes deixam de se aprofundar na

construção do personagem e dos acontecimentos que o levam a ter determinadas reações, e

isso muda a caracterização de Harry. Nos livros, esse aprofundamento acontece por meio da

narração, que apesar de ser em terceira pessoa, é como se fosse feita pela consciência de

Harry, pois vemos a história pelo seu ponto de vista. No filme A Ordem da Fênix, Harry é um

herói um pouco irresponsável, que age como um garoto mimado e sem limites, cuja

impulsividade leva a consequências sérias; entretanto, Harry é inocentado da culpa em relação

às suas atitudes, o que dá a impressão que ele pode fazer tudo por ser ‘o famoso Harry Potter’.

Já nas adaptações de Relíquias da Morte, Harry passa a impressão de ser um líder apagado,

pois as justificativas para este comportamento são excluídas do filme, retomando mais uma

vez à falta de profundidade que o personagem é abordado na série fílmica.

Um ponto em comum em todos os filmes é que a força do herói é muito enfraquecida

durante as batalhas, principalmente em O Cálice de Fogo e em Relíquias da Morte. Isso

acontece porque a força do herói presente nesses livros é implícita, ela não é representada por

meio de uma ação direta, mas sim pela fibra moral do protagonista, pela personalidade de

Harry e o modo como ele reage aos acontecimentos. No capítulo a seguir, este aspecto que

compõe o personagem será melhor aprofundado.

5 O MESMO PERSONAGEM, DUAS PERSONALIDADES

Ao longo da história, Harry tem diversas oportunidades e justificativas para escolher o

caminho errado. Para iniciar este capítulo que tenta delinear construção do personagem Harry

Potter além de seu papel como herói – ou seja, seu papel como pessoa determinado pelas suas

escolhas, a definição dada pela autora Paula Faria parece bastante propícia:

A person is not defined by what he is, but by what he does. The Harry Potter

books’ internal logic reflects this idea. […] Identity is formed by choice and purpose and not by destiny. The reality of choice is what brings about the

dualistic aspect that should compose human life. That may propitiate the

readership with a higher level of identification with some characters. (2008, p. 66)

Criado com desprezo pelos tios, Harry só soube o que é receber carinho quando

começou a frequentar Hogwarts, onde ele fez amigos e encontrou um lugar a que ele poderia

se referir como 'seu lar'. Apesar da falta de afeto, Harry Potter é um garoto amável, que parece

sentir por sua família trouxa mais pena e indiferença do que ressentimento. A fama recém-

descoberta pelo garoto faz com que todos queiram ser amigos de Harry Potter, como o garoto

rico Draco Malfoy, e o galã celebridade Gilderoy Lockhart – professor de Harry no segundo

título da série. Um mundo de vantagens e mais fama bateram à porta de Harry, mas ele optou

por se manter distante destas pessoas, já que a consideração que sentiam por Harry se limitava

ao 'famoso Harry Potter'. Harry carrega dentro de si um pedaço da alma de Voldemort, o que

lhe concede algumas características dignas de um estudante da Sonserina52

, antiga casa do

bruxo. No entanto, após Rony comentar com ele que todo bruxo mau pertencia à Sonserina,

Harry implora ao Chapéu Seletor – um instrumento mágico que determina o destino dos

estudantes – que o coloque em qualquer casa, menos lá.

Estes são apenas alguns exemplos de situações em que Harry precisa escolher um

caminho que trará consequências e moldarão o seu caráter, e ele decide que quer ser bom.

Conforme SEGER, “As atitudes comunicam opiniões, os pontos de vista e as diferentes

posições que cada personagem assume em determinadas situações. Assim, tem o papel de

definir as personagens, de conferir-lhes profundidade, ao mostrar o modo como encaram a

vida.” (2006, p.48). Essa opção de escolha é uma das razões que possibilitam uma

52 Em Hogwarts, escola de Magia que ensina crianças e adolescentes com início nos 11 anos de idade, os

estudantes são divididos em quatro grupos, normalmente conforme suas características: Lufa-lufa, amigos fiéis;

Corvinal, os de inteligência mais aguçada; Grifinória, os mais valentes e Sonserina os mais astutos.

identificação tão grande com o público, e apesar de possuir uma índole boa, Harry é uma

pessoa normal, e essa normalidade abrange não apenas qualidades, mas defeitos também.

CAMPBELL diz no livro O Poder do Mito (1990) que “... a única maneira de você descrever

verdadeiramente um ser humano é através de suas imperfeições. O ser humano perfeito é

desinteressante. [...] As imperfeições da vida é que são apreciáveis.”. O lado sombrio do

personagem é balanceado com seu lado bondoso, e é essa dualidade bem delineada que torna

Harry Potter tão humano e familiar, e sua história tão atraente.

Nas adaptações para o cinema, cada diretor levou em consideração a mensagem

principal que o livro a ser adaptado transmite e o modo como o protagonista se comporta nele.

Dessa forma, a essência do personagem naquele contexto serve de referência para transpô-lo

para as telas, enfatizando ou eliminando determinadas características.

No filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, a construção do protagonista é muito

semelhante à dos livros, e sofreu pouquíssimas alterações. Por ser o filme baseado no

primeiro livro da série, todos os atores foram escolhidos a dedo para representar os

personagens criados por Rowling no cinema, e isso não foi diferente com o protagonista. De

acordo com David Heyman (McBABE, 2011), os atores para interpretar Harry, Rony e

Hermione estavam sendo escolhidos como um trio, e não individualmente, pois a química

entre eles era crucial. Chris Columbus acrescenta que além de demonstrar habilidades na

atuação, os atores escolhidos para o trio tinham de “... se conectar como amigos e criar um

vínculo” (p. 35). Depois de uma longa e exaustiva procura, Daniel Radcliffe foi selecionado

para o papel principal. Chris Columbus diz que eles procuravam por um garoto que parecia ter

sofrido, e que as performances de Daniel “... Tinha magia, a profundidade e o ar sombrio que

ninguém mais possuía. Ele tinha um quê de inteligência e sabedoria que era intrigante.”

(McBABE, 2011, p. 40). Apesar de Harry possuir características físicas marcantes que foram

mudadas nos filmes, como a cor dos olhos e cabelo53

, ainda vemos um garoto magricela

vestindo roupas velhas e gigantes, herdadas de seu primo.

53

A descrição original do personagem é um garoto magrelo de cabelos rebeldes e olhos muito verdes, cuja

importância seria revelada no fim da série. Daniel Radcliffe não se adaptou às lentes de contato, o que faz com

que o Harry cinematográfico tenha olhos azuis. Em uma em entrevista para os extras da edição Blu-ray de

Relíquias da Morte parte 2, J. K. Rowling explica que não entende porque tantos fãs reclamavam da mudança na

cor dos olhos, pois a importância deles eram ser iguais aos de sua mãe, Lílian. Portanto, era só contratarem uma

atriz com os olhos parecidos com os de Daniel. Além disso, o Harry nos filmes tem uma aparência mais atraente,

com roupas melhores e próprias para o seu corpo e o cabelo arrumado. Além disso, como Daniel não usa dublês

para realizar as cenas de ação, o diretor Chris Columbus sugeriu que ele fizesse ginástica desde cedo para

adquirir resistência física, o que torna o garoto magricela dos livros em um rapaz com músculos, a medida em

Quanto à caracterização da personalidade de Harry, ele é descrito como um garoto

amável, retraído, educado e curioso, e todas estas características foram preservadas ao longo

do primeiro filme. No entanto, ele é humano e possui falhas, mas desde o primeiro filme o

lado bondoso de Harry tende a ser exaltado em determinadas situações, que diluem ou

eliminam algumas características negativas do personagem, independente do contexto. Nos

livros, Harry foi criado pela família Dursley, e ao longo dos anos de descaso, o desprezo que

os tios e o primo sentem por Harry se torna recíproco. Ele reage aos maus tratos, dando

ocasionais más respostas aos tios e, sempre que pode, Harry desafia a autoridade deles,

comendo o que quiser da geladeira e usando o computador do primo Duda, quando ele tem a

oportunidade de ficar em casa sozinho. Em relação ao primo, Harry enfrenta e debocha do

garoto, se aproveitando da pouca inteligência dele, mesmo que isso mais tarde resulte em

agressões físicas. Neste contexto, essas malcriações não são falhas de caráter, mas apenas

reações naturais ao modo como Harry sempre foi tratado, que qualquer criança no lugar dele

faria.

No filme, diferentemente dessa longa caracterização dada no livro, Harry se porta de

forma submissa e não reage aos maus tratos dos tios e do primo; ele toma uma atitude apenas

quando recebe uma carta que o tio Válter o impede de ler. A princípio, esse comportamento

pode transmitir a ideia de que Harry é um personagem apático e meio bobo, diferente do que

ele demonstra ser mais à frente, como quando conhece Draco Malfoy e educadamente

dispensa sua oferta de amizade. Como o passado de maus tratos não é aprofundado, as

grosserias dos Dursleys não parecem tão fortes quanto no livro. Por outro lado, a atitude meio

apática do personagem também permite deduzir que ele tem medo dos tios, e por isso não

enfrenta eles.

Após três anos em Hogwarts, Harry já adquiriu amigos fiéis, se descobre bom em algo

(Quadribol) e, de modo geral, Harry considera Hogwarts o seu lar. Tudo isso contribui para

que, ao longo de três anos, Harry adquira um pouco de confiança em si mesmo. No quarto

filme – Harry Potter e o Cálice de Fogo, as transformações são mais físicas do que

psicológicas, as mudanças são mais nítidas em relação ao Harry herói do que à pessoa dele em

si.

que os anos passaram. Quanto à altura, Daniel é um dos integrantes mais baixos do elenco, mas esta é uma

característica irrelevante, e não se prevê a altura das pessoas quando elas ainda são crianças.

No entanto, podemos perceber que a confiança que Harry adquiriu ao longo de três

anos em Hogwarts se mostra mais evidente no filme do que no livro. Na versão original,

Harry ainda se sente um pouco incomodado com a atenção que tem recebido por competir no

Torneio Tribruxo, mesmo depois de passar pela primeira tarefa e ser ‘perdoado’ por ter

conseguido entrar no Torneio sendo menor de idade. Entrevistas para a imprensa publicadas

de forma distorcida, provocações dos colegas de toda a escola e a pressão em realizar tarefas

mortais, em que apenas estudantes três anos mais velhos têm conhecimento para enfrentar,

transformam a vida de Harry em momentos de pura tensão. Para piorar, o garoto não tem o

apoio de Rony Weasley, que fica ressentido com o melhor amigo por acreditar que Harry

colocou seu nome no Cálice de Fogo sem contar para ele. A briga entre os dois garotos tem

um peso muito grande para Harry, e a falta que o amigo e suas piadas fazem é o que torna a

fase entre o sorteio dos competidores pelo Cálice de Fogo e a primeira tarefa tão difíceis,

quando finalmente Rony passa a acreditar que Harry diz a verdade.

Já no filme, podemos observar que Harry se sente mais à vontade em lidar com as

consequências de sua participação no Tribruxo. Mesmo estando brigado com Rony, a tensão

presente no livro é muito atenuada no audiovisual, transformando a participação de Harry no

Tribruxo em um incômodo muito menor do que era no original. A desenvoltura e confiança

com que Harry lida com o Torneio é nítida no momento em que ele transforma a conquista do

ovo de ouro, após a primeira tarefa, em um pequeno espetáculo, sendo carregado pelos

colegas, levantando o ovo e gritando, como se fosse um animador de um espetáculo “Vocês

querem que eu abra isso?”.

Além disso, essa exibição e vontade de se mostrar pode fazer referência à fase da vida

em que Harry está; ele tem catorze anos neste livro, ou seja, é um adolescente. Apesar de

haver passagens no livro dedicadas a explorar o comportamento de Harry e seus amigos na

adolescência, como é o caso do Baile de Inverno, ela serve mais como pano de fundo para o

desenvolvimento da trama, ganhando destaque de verdade somente nos livros seguintes. No

filme, ela é usada para equilibrar os momentos de tensão relacionados ao Torneio Tribruxo e

ao retorno de Voldemort, ou seja, ela ganha muito mais destaque porque são os alívios

cômicos em um filme majoritariamente tenso. Para tornar a exploração deste tema mais

cômica, Harry e seus amigos são mostrados como meninos, a imaturidade e as brincadeiras

recebem um destaque maior, assim como a confiança e exibição em público, feita com a

intenção de chamar a atenção das garotas.

Mas é em Harry Potter e a Ordem da Fênix que as mudanças na elaboração do

protagonista se tornam realmente perceptíveis. Harry se encontra no auge da adolescência, em

que as emoções são vividas com muita intensidade e as variações de humor são frequentes.

Além disso, o grande vilão Voldemort voltou à vida no ano anterior e ninguém parece dar

importância. Por causa desse ardor e inconstância, Harry Potter e a Ordem da Fênix é o livro

em que o lado humano de Harry atinge o auge, pois abrange uma variedade de emoções que

não é mostrada em nenhum dos outros livros, pelo menos não da mesma forma como o vemos

neste quinto volume da série.

No começo do livro, podemos perceber a ansiedade que Harry sente por não saber o

que está acontecendo no mundo bruxo, estando preso na casa dos tios. Os jornais bruxos não

postam nada relacionado a Voldemort e seus amigos dão respostas evasivas nas cartas que

trocam com Harry. Não acontece nenhum ataque, nenhuma série de mortes estranhas, nada

que possa dar uma pista a Harry sobre a periculosidade com que Voldemort está agindo.

Apenas seu padrinho, Sirius Black, dá uma força ao garoto, dizendo para ele aguentar firme e

que entende como Harry se sente. Pelas cartas, Harry percebe que Rony e Hermione estão

juntos, e essa ideia, somada ao isolamento do garoto na casa dos Durleys, não só aumentam a

raiva dele como fazem com que Harry se sinta extremamente solitário e excluído. Quando ele

finalmente se reúne aos amigos, na sede da Ordem da Fênix, pode-se perceber aí toda a sua

raiva e angústia; Harry grita e acusa as pessoas de uma forma nunca vista até então. Após se

familiarizar com o lugar e entender o que é a Ordem e por que estão reunidos, alguns

membros como Lupin e Sirius permitem, após muita insistência por parte do garoto, que ele

saiba bem superficialmente o que Voldemort está planejando. Ao retornar a Hogwarts, Harry

tem de enfrentar as piadas e o desprezo de muitos colegas que não acreditam nele, e o pior,

ele tem de aturar uma ditadura em Hogwarts comandada por Dolores Umbridge, que está na

escola exatamente para interferir e punir qualquer tipo de manifestação antiministério ou

insinuações de que o Lorde das Trevas retornou. Com o nascimento da Armada de

Dumbledore, Harry se anima por ter algo a que se dedicar nestes tempos difíceis, mas a

descoberta da organização, que culmina na fuga de Dumbledore, não só lhe rende uma

punição, como também colabora para baixar mais ainda o astral do garoto. Nesse meio tempo,

Harry é proibido de jogar Quadribol e o sonho em que ele vê o ataque ao Sr. Weasley deixa

Harry tão transtornado por achar que ele está sendo dominado por Voldemort, que o garoto

cogita seriamente em fugir, até que Hermione e Gina o tranquilizam.

Apesar de o filme manter a maioria destas situações, o modo como Harry reage a elas

é completamente diferente. De modo geral, as explosões de raiva, o gênio difícil e tudo

relacionado ao lado sombrio de Harry foram minimizados. No livro, ele tem ataques de raiva

grandiosos por qualquer razão, mas permanece normal quando não está nervoso; essa fúria é

diluída e mais bem distribuída no filme, pois os momentos em que ele extravasa seu

nervosismo não são tão intensos quanto no livro, como acontece quando ele chega ao Largo

Grimmauld; Harry grita tanto com os amigos que os gêmeos Weasley, Fred e Jorge, entram

no quarto e comentam com ironia que achavam ter ouvido a ‘voz suave’ dele. Essa

brincadeira foi mantida no filme, mas ela perde o sentido, pois Harry se mostra mais

compreensivo e não explode de raiva, apesar de estar nervoso.

Outro elemento importante na caracterização do personagem e que foi praticamente

excluído na versão cinematográfica, é a culpa. Nas duas ocasiões que ela se apresenta

intensamente, consequência do ataque ao Sr. Weasley e pela morte de Sirius, ela é tão

enfraquecida que estes acontecimentos perdem a força no filme. No livro, após ouvir Olho-

Tonto Moody comentando que existia a possibilidade de Voldemort estar possuindo Harry, a

culpa que o garoto já estava sentindo se intensificou de tal forma, que ele se isolou de todos os

presentes no Largo Grimmauld, até traçar um plano de fuga e abandonar Hogwarts e todos os

seus amigos, até mesmo Sirius. O medo de ferir mais alguém, de fazer o mal a uma pessoa

querida era tão grande que cogitar abandonar sua vida como bruxo e recomeçar em outro

lugar era preferível. No filme, as cenas relacionadas ao ataque foram encurtadas ou

eliminadas. A culpa que Harry sente foi retratada em uma conversa que ele tem com Sirius, e

expõe seu receio de estar se tornando uma má pessoa. Apesar de todo o peso que o

personagem sente ter se reduzido a uma cena no filme, não se pode negar a importância da

mesma. Como a estadia de Harry, Rony e Hermione na sede da Ordem da Fênix é bem maior

no livro, a construção do relacionamento entre Harry e Sirius é muito mais forte. Era

necessária uma cena mais íntima entre os dois para reforçar essa ligação no filme.

Infelizmente, essa tentativa de ressaltar a importância de Sirius na vida de Harry se perdeu

quando ele é morto por Bellatrix. Na versão original, Harry fica emocionalmente acabado,

carregando consigo muita tristeza e culpa por causa do que acontece a Sirius, e o modo que

Harry encontra de extravasar esses sentimentos é descontar toda a sua fúria e pesar gritando

com Dumbledore, culpando-o e quebrando todo o escritório do diretor. Após a conversa em

que Dumbledore esclarece alguns fatos sobre o futuro de Harry, as cenas seguintes em que o

garoto aparece são carregadas de introspecção e de tristeza. No filme, a morte de Sirius perde

a importância que ela realmente tem, pois as emoções de Harry são tratadas com

superficialidade, e apenas o vemos chateado. Em entrevista para o livro A Magia do Cinema

(2011), David Yates admite que houve alguns erros na adaptação e que ele compreende

perfeitamente o motivo de diversos fãs não terem gostado dessa abordagem ,pois a morte de

Sirius foi muito rápida. Mas o diretor acrescenta que “... se espreme coisas demais no roteiro

na adaptação de um livro” (2011, p. 164).

Em A Ordem da Fênix, o 'lado negro' de Harry também vem à tona nas situações mais

cotidianas possíveis. Soberba, por exemplo, era algo que até então nunca havia sido uma

característica que pudesse ser atribuída a Harry, um garoto considerado amável e humilde. O

modo como esse aspecto é abordado no livro é interessantíssimo, e é provavelmente uma das

características que mais humanizaram o personagem em toda a série. Desde que entrou em

Hogwarts, o famoso Harry Potter sempre foi paparicado e querido por todos. Popular entre os

colegas da Grifinória e conhecido em toda a escola, além de ser um exímio jogador de

Quadribol, Harry sempre foi bem visto por toda a comunidade bruxa, estando sempre em bons

termos com personalidades como o Ministro da Magia, Cornélio Fudge, e era considerado o

aluno preferido de ninguém menos que Alvo Dumbledore. De repente, todos estes privilégios

foram por terra; Fudge fica contra ele e passa a atacá-lo, Dumbledore se afasta sem Harry

saber a razão, e ele vira motivo de piada na comunidade bruxa. Muitos colegas com quem ele

tinha um bom relacionamento lhe viram as costas, e essa inferiorização é representada em

duas situações. A primeira é que Rony Weasley é o escolhido para ser o Monitor da

Grifinória, junto de Hermione Granger. Harry sempre foi um pouco mais inteligente do que

Rony, mais estimado; por que então Rony, que sempre foi o coadjuvante, o amigo engraçado

de Harry Potter, foi o escolhido para tal honra? Harry se ressente muito com esta situação,

mais ainda por lhe custar a esboçar algum entusiasmo pela primeira grande conquista do

amigo.

A outra situação acontece no Expresso de Hogwarts. Enquanto Rony e Hermione têm

que passar parte da viagem na cabine dos monitores, Harry fica sozinho com Gina Weasley,

Neville Longbottom e Luna Lovegood. Enquanto Neville é visto como um perdedor, Luna é

muito excêntrica para ser compreendida, e é considerada pelos colegas apenas como uma

garota maluca. Quando Cho Chang, interesse amoroso de Harry, passa pela cabine com a

intenção de conversar com ele, Harry e os colegas estão cobertos de pus de uma planta que

pertencia a Neville e havia acabado de explodir. Harry fica mortificado, pois queria que Cho

tivesse lhe encontrado reunido com um grupo de pessoas legais, se matando de rir de uma

piada que um deles havia acabado de contar, e não sentado junto de Neville e Luna, sujo de

pus e fedendo. Infelizmente, as duas situações foram eliminadas do filme, e os produtores e

diretor não aproveitaram nenhuma outra cena para esboçar este traço de personalidade que

nem mesmo o próprio Harry sabia que tinha.

Existe uma mudança na construção do protagonista no filme que, além de suavizar o

lado sombrio de Harry, ressalta um aspecto positivo, que é o modo como ele se comporta

diante da Armada de Dumbledore. No livro, Harry aceita com receio a sugestão feita por

Hermione, de que Harry ensine Defesa contra as Artes das Trevas para alguns colegas.

Apenas com o passar do tempo e com a evolução do aprendizado dos alunos que Harry

adquire confiança para ensinar e liderar. No filme, Harry se mostra confiante a partir do

momento em que os estudantes sondados assinam uma lista, se comprometendo de verdade

em assistir as aulas. É interessante observar como Harry se torna um líder nos dois meios. No

original, essa liderança é construída aos poucos, e tem destaque apenas na reta final do livro,

quando os garotos estão no Ministério da Magia. Já no filme, Harry logo é apresentado como

um líder nato.

Nos dois últimos filmes da saga, Harry deixa de ser o estudante para se tornar o herói

em tempo integral, em que ele tem de liderar Rony e Hermione na busca pelas horcruxes, e ao

mesmo tempo, apaziguar os ânimos dos três. A adaptação de Harry Potter e as Relíquias da

Morte, não traz grandes alterações em relação à construção da personalidade de Harry. Como

vimos anteriormente, as mudanças acontecem principalmente na elaboração do herói,

contudo, os elementos principais que influenciam nessas mudanças são os mesmos que

modificam a caracterização do aspecto psicológico do protagonista. – a relação com

Dumbledore e as Relíquias da Morte.

Harry via Dumbledore como um bruxo extremamente justo e bom, além de ser a sua

figura paterna mais importante, e a proximidade entre os dois ia além da relação aluno-

professor. Depois que o bruxo morre e várias homenagens são prestadas, Harry percebe que

não conhecia Dumbledore de verdade. À medida que ele descobre fatos sobre a vida não tão

perfeita do diretor, Harry passa a questionar quem era Dumbledore e o que exatamente o

diretor sentia por ele. Um fato que mexe com o rapaz é a descoberta de que, assim como ele,

Dumbledore morou em Godric’s Hollow há muitos anos, e tem parentes enterrados lá. Harry

questiona o motivo de o diretor nunca ter lhe contado isso, pois eles poderiam ter ido até lá

juntos, mas parecia que o diretor não considerava Harry a ponto de expor sua vida pessoal

dessa forma e fortalecer a ligação entre os dois. Mas definitivamente, o fator crucial que faz

com que Harry pense em Dumbledore de uma forma mais fria e racional é a descoberta da

amizade com Grindewald e os planos de dominação da comunidade bruxa e trouxa. Hermione

tenta abrandar a situação, dizendo que Dumbledore era jovem e imaturo, mas Harry responde

que o diretor tinha a mesma idade que eles, que estavam dando o máximo de si para lutar

contra o mal. E a relação dele com Dumbledore abala a principal fonte de confiança que

Harry tinha em si: se seu grande mentor não era tão perfeito assim, como ele poderia ser?

No filme, o passado de Dumbledore é abordado de uma forma extremamente

superficial. Portanto, as impressões de Harry diante das descobertas sobre o seu mentor não

são impactantes a ponto de denegrir a imagem do diretor. Quando Harry conhece o irmão de

Dumbledore, Aberforth, que tenta dissuadir Harry de sua missão, contando o modo como

Ariana, a irmã mais nova deles, morreu por causa do descaso de Alvo, Harry afirma que não

importa o que aconteceu entre os dois irmãos, que ele confia no homem que ele conheceu.

Essa reação de Harry reforça a tendência que todos os filmes apresentam de exaltar os

aspectos positivos do rapaz, independente do contexto. É normal Harry sentir raiva de

Dumbledore, ele foi apresentado a fatos reais sobre o diretor que destoam completamente da

imagem benevolente que Harry tinha dele, e Dumbledore não está vivo para se justificar.

Como isto é excluído do filme, a impressão que o espectador tem é que não era um problema

Dumbledore ter agido dessa forma, pois ele é o Dumbledore, e Harry apresenta nesta situação

um traço de personalidade que não combina com ele.

Quanto às Relíquias da Morte, a obsessão que Harry cria por elas o desvia da busca

pelas horcruxes. Como foi mencionado na comparação da construção do herói, no capítulo

anterior, Harry está desmotivado em continuar a missão deixada por Dumbledore de destruir

as horcruxes, principalmente depois de descobrir quem era o seu mestre. Neste momento da

história, Harry está cansado e com muitas dúvidas, e a descoberta do que são as Relíquias e o

que elas representam faz com que nasça uma nova perspectiva de vitória contra Voldemort, e

Harry se agarra a ela. Essa trama humaniza o personagem, ao mostrá-lo em uma situação que

o deixa tão vulnerável, mas como ela é desprovida de ação, foi eliminada do filme, e

consequentemente, o personagem perde este traço de personalidade que o fragiliza e o torna

mais humano.

Na parte final da história, com apenas uma horcruxe para ser destruída, Nagini, Harry,

Rony e Hermione procuram por Voldemort, já que a cobra provavelmente estará junto dele.

Localizado na Casa dos Gritos, o Lorde das Trevas conversa com Snape e chega à conclusão

que precisa matá-lo para que a Varinha das Varinhas o obedeça por completo. Desde A Pedra

Filosofal, é notável a aversão que Snape e Harry sentem um pelo outro, e até então, nada

nunca foi suficiente para aproximá-los nem um pouco. Após o ataque de Nagini ao professor,

Harry entra na Casa dos Gritos e Snape pede a ele que recolha suas lágrimas, e pede ao rapaz

que olhe para ele, pois seus olhos são iguais aos de Lílian Potter. Harry não tinha que socorrer

Snape, mas a crueldade com que ele foi atacado por Nagini reforça em Harry um sentimento

positivo de qualquer herói tradicional: a simpatia. Ele se importa com o próximo, e se

aproxima do professor no que podemos chamar de um ato de preocupação e bondade. Filme e

livro dialogam, mas a exploração disso no filme se dá mais no momento, pois Harry

realmente sente pela morte do professor, enquanto no livro, ele parece um pouco inconsciente

do que faz por causa do choque em ver Snape sendo descartado com tanta facilidade e

crueldade por Voldemort, e o afeto e respeito que ele sente pelo professor dependem das

cenas seguintes, na Penseira.

Não há muito mais o que falar sobre a personalidade do protagonista em As Relíquias

da Morte que torne possível uma comparação entre livro e filmes, pois elas estão diretamente

relacionadas à postura de Harry como herói, e já foram mencionadas no capítulo anterior.

Terminada a análise, pode-se perceber que todos os filmes que serviram de objeto para esta

pesquisa abordam o personagem de forma similar: as qualidades de Harry tendem a ser

ressaltadas, principalmente a bondade, e o lado sombrio da personalidade de Harry é

suavizado. De acordo com Christopher Vogler (2006), o protagonista de uma história convida

o leitor ou espectador a “... investir no Herói uma parte de nossa identidade pessoal, enquanto

dura a experiência. Projetamo-nos na psique do Herói, vemos o mundo com seus olhos.”. Para

que esse convite seja aceito, o protagonista precisa ter qualidades que façam com que

queiramos ser como eles. Lydia Seger cita Leonard Tourney, que diz que “... os paradoxos são

o ponto crucial dos personagens fascinantes: ‘As personagens ficam mais interessantes se

forem compostas de características variadas, conflitantes, paradoxais.’”(2006, p. 45). Se o

personagem é perfeito e não possui algumas falhas de caráter e outras características que o

tornem único, não há identificação e nem interesse em acompanhar o protagonista na

trajetória que ele está prestes a percorrer. O herói fílmico, portanto, é constituído de um

caráter fragmentado: analisando a obra como um todo, as experiências que ele vive em cada

filme não oferece realmente uma continuidade como no livro – o que se agrava entre o quarto

e oitavo episódios. Suas ações ocorrem baseadas muito mais no campo da superficialidade, e

há muito mais dependência dos personagens coadjuvantes. Dessa forma, o que se enfraquece

também é a relação entre o herói e o espectador.

Apesar de J.K. Rowling não ter escrito Harry Potter com um público específico em

mente, as histórias do menino bruxo foram direcionadas, a princípio, para as crianças. Apesar

de a narrativa ganhar maturidade com o envelhecimento dos personagens, a série

cinematográfica é vendida como um filme ‘para a família’. É possível que a mudança na

caracterização de Harry, mostrando-o como uma pessoa mais benevolente, aconteça por causa

das crianças que ainda não entendem as nuances que um personagem deve ter, impedindo que

elas se confundam e acreditem que uma ação negativa signifique que o protagonista não é

bom. Ou seja, é possível que essa alteração no comportamento do personagem tenha sido feita

para vender um filme de herói para o público médio.

Por outro lado, essa caracterização de Harry como uma pessoa muito bondosa e cujos

erros são facilmente perdoados tira a humanidade do personagem, afastando-o do público. O

Harry dos filmes não mostra vulnerabilidade, e como não há espaço em cena para desenvolver

o aspecto psicológico e emocional do personagem, ele se torna vazio. Como diria Hermione

em A Ordem da Fênix, faz parecer que Harry “tem a amplitude emocional de uma colherinha

de chá” (p. 377).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de possuírem em comum o ato de contar uma história, livros e filmes tem

linguagens diferentes, o que torna necessária a realização de alterações que permitam que a

narrativa literária se torne adequada para o cinema. Essas modificações geralmente resultam

em perdas de informações que podem ser bem exploradas em um livro, mas que se

transformam em pontos mortos em um filme, especialmente longas-metragens de grandes

orçamentos. A série Harry Potter é composta de sete livros que originou oito filmes. Cada

título possui uma história que começa e termina naquele volume, mas também existe uma

grande trama que é contada ao longo dos filmes e livros. Em Harry Potter, a estrutura

narrativa permanece igual nos dois meios, o que muda são os detalhes que compõem a

história. Os realizadores dos filmes não tiveram problemas em adaptar os primeiros livros

para o cinema, mas a partir do quarto volume, os livros contêm muito mais histórias para

serem mostradas, já que os personagens ganham profundidade e as subtramas são mais

trabalhadas. Portanto, as mudanças realizadas na série fílmica ficam marcantes a partir daí,

especialmente a construção dos personagens, como o protagonista da série, por exemplo.

Harry Potter é um ser humano com qualidades e defeitos, que se depara com um

obstáculo, Voldemort, que permite que ele desenvolva seu caráter e suas habilidades a ponto

de realizar feitos grandiosos e heróicos. Analisando o papel de Harry como herói nos livros e

filmes, fica claro que no original a força desse arquétipo não acontece por meio da ação

direta, mas sim por elementos implícitos; o caráter, a fibra moral e o modo como Harry age

em batalha é que representam o seu poder. O herói é um ser humano comum, capaz de

realizar grandes feitos, e é isso o que o identifica com o público. Como os filmes valorizaram

a ação, Harry realiza as mesmas coisas que no livro, ele atinge os mesmos objetivos, mas o

descaso com o roteiro faz com que o modo como isso é mostrado perca o impacto e relevância

das versões originais.

Além disso, a força do herói nas versões cinematográficas fica enfraquecida porque,

no caso de Harry, o que o define como herói se baseia muito mais no que ele realiza do que na

construção da sua personalidade. A abordagem do aspecto psicológico e emocional do

protagonista é superficial; não são aprofundadas e são mostradas muito rápido. Algumas

vezes são quase como flashes, como acontece no filme Relíquias da Morte, parte 1,em que a

cena na casa dos Weasley, após a batalha que se segue à partida da Rua dos Alfeneiros, Harry

corre para abraçar os amigos Rony e Hermione, que chegaram a salvo; o momento é

emocionante, mas a cena é tão curta e o corte é tão abrupto, que a carga emocional se perde.

A narração dos livros, apesar de ser em terceira pessoa, é feita de acordo com o ponto de vista

de Harry, como se fosse a consciência dele, explorando a fundo os seus pensamentos e

emoções, dando profundidade ao personagem. Por causa da duração de cada filme, os

realizadores deram preferência à ação em detrimento do desenvolvimento do roteiro,

prejudicando a construção dos personagens. Além disso, as qualidades de Harry são

ressaltadas sempre que possível, e os defeitos, dificuldades e tudo aquilo que torna o

personagem vulnerável foram extremamente abrandados ou excluídos da versão fílmica.

De modo algum se argumenta, nesta breve análise, que o livro é melhor que o filme: se

a forma fílmica não apresentasse um bom resultado, não teria alcançado um número tão

grande em audiência. No entanto, olhando apenas para o personagem principal, é possível

constatar que a urgência da adaptação necessita de outros valores que não são os do herói:

este está presente como um arquétipo reconhecível, mas que se encerra em cada filme. Assim,

é impossível para um filme nos moldes hollywoodianos se apoiar meramente nessa figura do

herói, e a conquista da audiência passa a ser centrada em estruturas não-narrativas, mesmo

que estas contribuam esteticamente no desenrolar da história.

Portanto, pode-se concluir que a limitação de tempo é um fator determinante para a

ocorrência de cortes, talvez mais do que a diferença de linguagens entre literatura e cinema.

Em um filme que segue os padrões de Hollywood, a ação é valorizada e tem preferência,

mesmo que afete a construção da história e dos personagens. A dificuldade em transpor

elementos de linguagem literária para o cinema, como por exemplo, a narração, somada com a

limitação de tempo em tela faz com que seja mais fácil excluir estes elementos do que pensar

em alternativas para que eles sejam inseridos à trama.

7 REFERÊNCIAS

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Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da

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Bibliografia básica:

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___________________. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

__________________. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Rio de Janeiro: Rocco,

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__________________. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

_________________. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

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VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de

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Bibliografia complementar:

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SEGER, Linda. Como criar personagens inesquecíveis. Brasil: Bossa Nova, 2006.

SIBLEY, Brian. Harry Potter – A Magia do Cinema. Barueri, SP: Panini Books, 2010.