Pimenta, J. P.; Mendes, H.; Arruda, A. M.; Sousa, E.; Soares, R. (2014) - Do pré-romano ao...

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Magos Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos Ano de 2014

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MagosRevista Cultural doConcelho de Salvaterra de Magos

Ano de 2014

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Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

PropriedadeCâmara Municipal de Salvaterra de Magos

CoordenaçãoPresidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.o Hélder Esménio

GrafismoCláudio Marques

Colaboradores deste númeroNuno BichoCésar Neves, Mariana Diniz, Gonçalo LopesJoão Pimenta, Henrique Mendes, Ana Arruda, Elisa de Sousa, Rui SoaresCarlos HenriquesJoão NevesAna PessoaLuís CarneiroRoberto CaneiraLeonardo Charréu

Fotografia de capaCarlos Relvas, Início do Sec. XIX

Execução GráficaSilvas Artes Gráficas - Ana Teresa da Costa Silva Marques

Depósito Legal380652/14

Tiragem1000 exemplares

3Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Índice

Os concheiros de Muge e a evolução do Mesolítico Português

Casas Velhas do Coelheiro (Salvaterra de Magos, Portugal):identificação de um sítio neolítico na margem esquerda do baixo Tejo

Salvaterra na idade média (reflexões sobre alguns documentos medievais)

Incúria, Degradação e demolição no património histórico e cultural de Salvaterra de Magos – Do Séc. XIX a 1912)

Memórias de menino e das casas que hoje na minha terra se desfazem:Um ensaio autoetnográfico sobre arquitectura popular

Do pré-romano ao Império: a ocupação humana do Porto de Sabugueiro (Muge, Salvaterra de Magos)

Cadaval - O Ducato do Portugal Restaurado

O Teatro De D. José I em Salvaterra

Salvaterra de MagosHistória, Toponímia e Geografia de uma “vila nova”

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Nuno Bicho

César Neves, Mariana Diniz, Gonçalo Lopes

João Neves

Roberto Caneira

Leonardo Charréu

João Pimenta, Henrique Mendes, Ana Arruda, Elisa de Sousa, Rui Soares

Ana Pessoa

Luís Carneiro

Carlos Henriques

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Prefácio

A Revista Magos é uma nova publicação editada pelo Município de Salvaterra de Magos, que tem como principais objetivos o estudo, valorização e divulgação da história local e do património cultural do concelho de Salvaterra de Magos.

Nesta publicação os critérios editoriais privilegiam a interdisciplinaridade, onde se cruzam múltiplas leituras no domínio da arqueologia, história e etnografia, permitindo ao leitor uma variedade temática. Os artigos resultam do trabalho de vários investigadores, que aceitaram o convite da Câmara Municipal e abraçaram este novo projeto editorial.

A Revista Magos é um projeto aberto a todos os que pretendem colaborar, espera-se que consiga captar novos públicos e acima de tudo novos investigadores recém- licenciados, que se interessem pelo nosso concelho, contribuindo desta forma para dar continuidade à revista.

Acredito que a difusão da memória cultural é um fator essencial para a sustentabilidade e desenvolvimento local, por isso espero que a Revista Magos seja um novo contributo cultural, uma edição acessível a todos, ajude a compreender e a fortalecer as raízes identitárias do nosso concelho.

O Presidente da Câmara

Eng. Hélder Manuel Esménio

5Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Os concheiros de Muge e a evolução do Mesolítico português

Nuno Bicho, João Cascalheira e Célia GonçalvesICArEHB, FCHS, Universidade do Algarve, Campus de Gambelas, 8005-139 Faro, Portugal

[email protected]

1. Introdução

Os concheiros de Muge constituem um dos mais importantes conjuntos de sítios arqueológicos para o estudo da Pré-história portuguesa. São também, sem qualquer dúvida, dos mais importantes para o conhecimento do Mesolítico na Europa, resultando por isso no fato de serem as jazidas arqueológicas portuguesas mais reconhecidas internacionalmente. Pelo menos duas razões principais poderão estar na raiz deste facto: por um lado, a precocidade na localização e escavação dos concheiros, com início logo em meados do séc. XIX; por outro, a dimensão e o número de sítios que fazem parte deste complexo ar-queológico, que se encontram marcados pela presença invulgar de um elevado número de enterramentos humanos.

Em 1863, há mais de 150 anos, um grupo dos Serviços Geológicos de Portugal, representado sobretudo pelas figuras de Nery Delgado e Carlos Ribeiro, encontraram e localizaram os primeiros concheiros em Muge. Por comparação com os trabalhos publicados nas revistas científicas da época, tornava-se claro para esses investigadores que os concheiros de Muge eram em tudo semelhantes aos chamados Køkken-mødding de Ertebolle, da área do Báltico. De facto, à semelhança desses sítios do Norte da Europa, os concheiros de Muge são essencialmente caracterizados por densas concentrações de restos de conchas, destacados na paisagem sob a forma de grandes colinas artificiais (com áreas estimadas que podem che-gar aos 3000 m2), onde se encontram associados, não só vestígios da dieta marinha e terrestre das pop-ulações mesolíticas, mas também os utensílios utilizados na caça e recoleção desses restos, as estruturas usadas no seu processamento e na organização do habitat, e evidências das práticas simbólicas destas populações através da presença de elementos de ornamentação corporal e, mais relevante, de um largo conjunto de enterramentos humanos, presentemente num total conhecido superior a 300 indivíduos para o conjunto de todos os concheiros.

As primeiras escavações arqueológicas em Muge tiveram lugar no concheiro do Cabeço da Arruda em 1863 seguindo-se, ao longo dos tempos, intervenções noutros concheiros, quer na Ribeira de Muge, quer na Ribeira de Magos, dos quais se destacam os concheiros de Moita do Sebastião (também conhecido por Fonte da Burra) e do Cabeço da Amoreira.

Infelizmente, por variadas razões, a maior parte desses concheiros foi destruída ao longo dos anos, re-stando agora apenas um pequeno número deles, sendo a sua preservação apenas parcial.

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2. Os trabalhos recentes em Muge

Em 2008 retomaram-se os trabalhos arqueológicos no concheiro do Cabeço da Amoreira no âmbito do projeto “Os últimos caçadores-recolectores do Vale do Tejo – Os concheiros de Muge”, com finan-ciamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia e apoio da Casa Cadaval e da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos.

Estes trabalhos seguem metodologias de escavação recentes, incluindo a localização absoluta a 3D de to-dos os materiais arqueológicos encontrados, permitindo depois, em laboratório, a reconstituição virtual da posição dos vários utensílios em pedra, ossos, conchas e outros objetos encontrados no sítio arque-ológico, incluindo as próprias sepulturas humanas. Para isso, o trabalho de escavação faz-se manual-mente, com ferramentas delicadas, como é o caso dos colherins (geralmente conhecidos como colheres de pedreiro, mas de pequena dimensão), pincéis e espátulas de madeira ou plástico, bem como equipa-mento de alta precisão nomeadamente com o recurso a várias estações totais e computadores. O trabalho procede com a identificação e escavação das camadas naturais encontradas no concheiro, que são depois subdivididas em níveis artificiais de 5cm.

Das várias camadas escavadas do concheiro do Cabeço da Amoreira foram recolhidos e identificados muitas dezenas de milhares de artefactos em pedra (termoclastos, núcleos, lascas, lamelas, e utensílios retocados, nomeadamente raspadeiras, entalhes e micrólitos geométricos de várias tipologias), fauna malacológica, nomeadamente inúmeros pequenos fragmentos de concha (destacando-se a presença de um reduzido número de conchas inteiras), conchas perfuradas e pinças de crustáceos, fauna mamalógi-ca (mamíferos, pássaros e pequenos répteis), ictiofauna (peixes) e, ainda que pouco frequentes, alguns fragmentos de cerâmicas presentes nas camadas superiores, muito provavelmente como resultado de ocupações posteriores pelas comunidades agro-pastoris neolíticas naquele local.

Para além da recolha dos vários artefactos, procede-se também à recolha de amostras para análises espe-cíficas como as de paleobotânica, que permitem através do estudos dos carvões encontrados a reconstitu-ição da vegetação durante o Mesolítico, as de malacologia, que possibilitam a identificação das principais espécies de bivalves consumidas pelas comunidades mesolíticas, e as de datação, que permitem indicar de forma muito precisa a idade dos concheiros. Neste âmbito, alguns dos resultados já obtidos das amostras recolhidas para datação demonstram que o concheiro do Cabeço da Amoreira foi habitado entre há cerca de 8000 até há cerca de 6800 anos atrás.

Por outro lado, as datações obtidas para conchas provenientes das camadas inferiores e superiores do concheiro revelam que, ao contrário do que tradicionalmente se pensava desde que os concheiros foram descobertos, a acumulação das conchas ocorreu num curto espaço de tempo de cerca de 350 anos.

Esta acumulação de conchas não foi, no entanto, a única funcionalidade que o local teve para as popu-lações mesolíticas. De facto, imediatamente por baixo destes níveis conquíferos encontra-se uma ocu-pação de tipo residencial, testemunhada pela presença de algumas estruturas habitacionais, incluindo

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possíveis fossas de armazenamento, a que está também associada uma área de enterramentos humanos. Esta ocupação na base do concheiro é a mais antiga do local e está datada de entre há cerca de 7900 e 8000 anos. Esta ocupação mais antiga foi escavada em 2010, no âmbito de trabalhos de reconhecimento das intervenções anteriores. A equipa procedeu, desta forma, à limpeza das áreas intervencionadas na década de 1930 por Mendes Corrêa e de 1960 por Jean Roche, limpando os antigos perfis, agora designados por Corte Oeste, Corte Oeste 2 e Corte Norte e recolhendo amostras de várias camadas que resultaram num conjunto de datações que permitiram datar em detalhe a construção do concheiro. Da limpeza de um dos cortes resultou a decisão de se expor a base da área de escavação das intervenções realizadas por Mendes Corrêa. Após a remoção da camada superficial moderna, verificou-se a presença de uma grande quanti-dade, variedade e densidade de estruturas, incluindo buracos de poste e várias fossas, estruturas essas que foram também escavadas no decorrer da campanha desse mesmo ano. Num dos anos seguintes foi ainda encontrado um esqueleto humano, de uma criança com cerca de 2 anos, atestando assim a presença do espaço funerário na base do concheiro.

Por outro lado, no topo do concheiro foi verificada a presença de uma grande quantidade (perto de 140 mil numa área com cerca de 100m2) de fragmentos de pequenos seixos e termoclastos (pequenos seixos fragmentados pela ação do fogo), depositados propositadamente há cerca de 7500 anos pelas comuni-dades mesolíticas, formando uma espécie de carapaça, ou cairn, que cobriria todo o concheiro, e que terá formado um espaço morfologicamente idêntico a uma mamoa. A construção do concheiro sobre um contexto funerário na base da sequência sugere que esta carapaça tenha sido colocada intencionalmente de forma a protegê-lo, o que resultou na sua preservação e conservação até aos dias de hoje.

Finalmente, o concheiro terá sido ainda utilizado após a deposição do cairn, através da abertura da cara-paça para nova utilização do espaço enquanto necrópole, desta feita pelas comunidades neolíticas.

3. As origens do povoamento mesolítico de Muge

Tradicionalmente, a explicação para o aparecimento dos concheiros de Muge assenta na formação de grande lago estuarino no vale do Tejo imediatamente depois do início do Holocénico, como consequên-cia da subida geral do nível do mar que se fazia sentir desde o evento climático glaciar Dryas III, há cerca de 11500 anos.

Esta perspetiva histórica fazia supor que o início do Holocénico, há cerca de 11500 anos, teria trazido uma fase de escassez de recursos alimentares terrestres (caça principalmente), forçando os caçadores-re-colectores desse período a recorrerem ao marisco, pensado como uma fonte alternativa de baixa qual-idade, enquanto principal fonte de alimento. Naturalmente, os estuários, como um dos ambientes de maior produtividade de biomassa aquática, seriam perfeitos para a implantação das comunidades hu-manas mesolíticas, como se provava pela presença das grandes acumulações de conchas de moluscos estuarinos vistos nos concheiros de Muge e, mais a sul, no Sado.

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Contudo, passado mais de um século desde as primeiras publicações sobre os concheiros de Muge (Ri-beiro, 1884) foi necessário refletir sobre esta perspetiva. O antigo estuário do Tejo terá tido essencial-mente a mesma capacidade de produtividade de moluscos durante o Plistocénico e o Holocénico inicial e durante a formação do fenómeno dos concheiros de Muge, com a mesma acessibilidade (aliás, provavel-mente semelhante à de hoje), mantendo assim o mesmo nível de produtividade de recursos alimentares durante todo o Holocénico. Esta situação parece ter sido radicalmente diferente na costa atlântica devido a fenómenos que aí se fizeram sentir como o upwelling ou o desmantelamento dos gelos do Lago Agassiz, na América do Norte, junto à baía de Hudson durante o chamado evento Bond 5, há cerca de 8200 anos atrás, transformando radicalmente a produtividade da biomassa marinha costeira.

Uma vez que a produtividade dos recursos alimentares aquáticos no estuário do Tejo não terá sofrido alterações significativas durante os períodos Pré-boreal, Boreal e o Atlântico, significa que não pode ter sido, por si só o fator condicionante e explicativo da alteração do sistema de povoamento humano há cerca de 8000 anos, do Epipaleolítico para o Mesolítico da Estremadura portuguesa. Foi, portanto, necessário procurar a resposta noutros fatores ambientais, sociais, económicos ou mesmo tecnológicos.

A subsistência dos caçadores-recolectores epipaleolíticos assentava numa estrutura marcada por um am-plo espectro alimentar proveniente de variados recursos cinegéticos (veado, auroque, cavalo, javali e coelho como elementos principais, mas também cabra e corço) e recursos marinhos (peixes de água doce e salgada e moluscos nomeadamente a amêijoa, o berbigão, a lambujinha e o mexilhão, como espécies mais importantes) bem como algumas aves, plantas, frutas e outros elementos de origem vegetal.

Com o desenvolvimento das sociedades mesolíticas no início do Atlântico, deram-se alterações no siste-ma de povoamento e parcialmente na subsistência (bem como no sistema tecnológico, com a produção em massa de micrólitos geométricos para fazerem parte de utensílios compósitos de arremesso e corte). É a partir deste momento que na Estremadura a localização dos sítios arqueológicos passa a ser junto do estuário do Tejo (e mais a sul do Sado), ainda que se conheçam alguns, poucos, sítios de ar livre na base da Serra dos Candeeiros e d’Aires, possivelmente relacionados com a exploração de sílex.

Assim, com o início do Atlântico o sistema de povoamento sofreu alterações importantes, mas o tipo de recursos alimentares parece ter-se mantido, com alterações apenas na importância e representação relativa entre espécies: veado, javali, auroque, cavalo e coelho mantiveram-se como as principais espécies cinegéticas utilizadas, enquanto a lambujinha, o berbigão e a amêijoa se mantiveram as espécies de bi-valves mais consumidas. A principal alteração parece ter sido um vasto incremento na exploração de peixes e aves.

Provavelmente, o dispositivo que causou a alteração no sistema de povoamento no início do Atlântico foi uma combinação de dois fenómenos antes referidos e os seus respetivos impactos, nomeadamente as alterações geomorfológicas e ambientais costeiras.

Foi já possível estabelecer o início do preenchimento com água salobra do vale de Muge entre 8200 e 8000

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cal BP, momento essencialmente simultâneo com as primeiras ocupações humanas dos concheiros, espe-cificamente do Cabeço da Arruda e do Cabeço da Amoreira. Pode, portanto, dizer-se que o aparecimento da ocupação humana de Muge coincide com a emergência das condições estuarinas do Vale do Tejo e que o fator de mudança no sistema de povoamento dos caçadores-recolectores da Estremadura portuguesa é anterior a esses acontecimentos, favorecendo o abandono da zona costeira a norte de Lisboa. Qual foi en-tão esse(s) agente(s) ou causa(s) do abandono costeiro pelos caçadores-recolectores mesolíticos? O único agente ambiental que se conhece atualmente com um impacto negativo na produtividade marinha da costa da Estremadura no início do Holocénico foi a diminuição do upwelling a que se juntou a alteração geomorfológica da linha de costa e dos estuários fluviais, e uma diminuição da humidade ambiental da plataforma costeira. Esta, por sua vez, causou uma quebra na cobertura vegetal e, provavelmente, tam-bém nos recursos cinegéticos locais.

O fenómeno do upwelling é um mecanismo que traz as águas frias de entre os 100 e os 200 metros de profundidade à superfície, devido ao afastamento das águas costeiras da tona arrastadas pelos ventos que correm de norte paralelos à costa elevada das arribas litorais e que sofrem uma alteração de direção de 90º para oeste. O fenómeno do upwelling é hoje sazonal em Portugal, com mais intensidade durante os meses de verão, quando os ventos de norte são mais fortes. Durante este período, dá-se um aumento em várias ordens de magnitude no que respeita à produtividade costeira devido à riqueza em nutrientes (fitoplâncton) existente nas águas frias profundas e que durante esse período sobem à superfície servindo de base à cadeia trófica marinha aumentando a presença de moluscos e peixes, razão pela qual a pesca portuguesa tradicional (sardinha, carapau e atum) se tornou conhecida (e invejada) em todo o mundo.

Porém, esta situação não se manteve constante no passado. Resultados do trabalho de investigação ao largo da costa portuguesa e marroquina (colunas de sedimentos KS11 e M12392) permitiram verificar que o momento de maior magnitude do upwelling na costa portuguesa foi há cerca de 20000 anos, duran-te o Último Máximo Glaciar, aliás confirmado independentemente pela presença de outros indicadores nomeadamente com fitoplâncton, carbonatos de cálcio, bário e diatomáceas.

Desde esse momento, a tendência geral foi a da diminuição. Este fenómeno de diminuição do upwelling agudizou-se progressivamente durante o Pré-boreal e o Boreal, com um dos seus maiores picos neg-ativos há cerca de 8200 anos. Este evento parece estar relacionado com o impacto gigantesco de água fria provindo da baía de Hudson e que se fez sentir por toda a Europa entre 8300 e 8000 cal BP, com diminuição sensível de temperaturas da superfície da água e condições atmosféricas claramente mais secas na Europa do Norte e Central, Península Ibérica e mesmo em África. Este acontecimento teve um impacto inequívoco na costa portuguesa, não só ao nível de uma diminuição da intensidade do upwell-ing, mas também através de quebra da humidade atmosférica, com resultados negativos na pluviosidade, cobertura vegetal e quantidade e diversidade da fauna regional terrestre costeira, mas também aparente-mente pela subida rápida do nível do mar em cerca de meio metro devido à descarga de 100000 km3 de água doce vinda do Mar do Labrador. Este fenómeno único causou ainda um conjunto de grandes ondas gravitacionais com grande impacto nas costas do Atlântico oriental e provavelmente cheias costeiras de

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grande amplitude. O conjunto de episódios costeiros terá alterado significativamente a geomorfologia da costa, com a destruição da maior parte dos estuários tradicionais de ocupação humana durante o Pré-boral e o Boreal e, simultaneamente, devido à diminuição do upwelling, uma quebra radical nos recursos marinhos costeiros. Nesta situação, as comunidades de caçadores viram-se na contingência de alterar o seu sistema de povoamento de uma organização primordialmente costeira para uma posição estuarina interior, onde os recursos alimentares, terrestres e aquáticos se concentravam, como é o caso de Muge e dos seus concheiros mesolíticos.

Devido às dimensões e duração das sequências e estratigrafia de cada concheiro, nomeadamente o Cabeço da Amoreira ou cabeço da Arruda, a perspetiva geral ainda hoje aceite é de que os concheiros do vale do Tejo (e também do Sado) foram acampamentos base com carácter sazonal e, portanto, formariam uma rede que corresponderia a um tecido social étnico, ainda que haja outras variantes, incluindo a de José Rolão.

A noção de que os concheiros de Muge teriam servido como acampamentos base residenciais, com um grau de sedentarismo muito grande deve-se ao facto de alguns dos sítios escavados por Jean Roche em meados do séc. XX apresentarem um conjunto grande e diversificado de estruturas de habitat (lareiras, silos, fossas, fundos de cabanas e buracos de poste) nomeadamente nos concheiros de Moita do Sebastião, Cabelo da Amoreira e Cabeço da Arruda. A este conjunto de estruturas aparece associado um número de enterramentos humanos alargado que parece confirmar a ideia de que estes concheiros seriam locais de acampamento de grupos de caçadores-recolectores mesolíticos com durações bastante longas. Contudo, analisando a informação estratigráfica descrita nos trabalhos de Roche, é possível verificar que o conjun-to completo de estruturas de habitat aparece apenas na base dos três concheiros principais acima referi-dos. Segundo Jean Roche, a presença de enterramentos humanos parece ter lugar principalmente na base dos vários concheiros ainda que se conheçam algumas sepulturas no topo da sequência estratigráfica do Cabeço da Arruda. Como é evidente, cada um destes sítios não teve apenas um tipo de funcionalidade e que apenas em determinados momentos corresponderam efetivamente a acampamentos base, como se pode verificar pela presença na base de alguns concheiros de um conjunto alargado e diversificado de estruturas de habitat, a que se correlaciona um período de enterramentos. Aparentemente, na Moita do Sebastião e no Cabeço da Arruda as zonas funerárias e residenciais estavam separadas e o espaço estava organizado de forma a que as duas atividades estivessem separadas e até afastadas uma da outra, como seria de esperar.

Aquilo que parece evidente é que os três concheiros principais (Cabeço da Arruda, Cabeço da Amoreira e Moita do Sebastião) parecem ter tido estruturas semelhantes e são, portanto, réplicas entre si, pos-sivelmente correspondendo à presença de vários grupos socialmente independentes (correspondendo a clãs ou linhagens cada qual sediado num desses sítios) com características culturais, económicas e de subsistência ligeiramente diferentes ainda que fazendo parte de um todo, possivelmente constituindo um bando ou mesmo uma tribo cujo território era alargado.

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4. Notas Finais

Os dados adquiridos até ao presente parecem apontar para a existência de contrastes entre os vários sí-tios, sendo que, nalguns casos, como é o Cabeço da Amoreira e Moita do Sebastião parece haver mais el-ementos que os separam do que semelhanças. Sem dúvida que a estrutura de organização espacial e a es-tratigrafia de cada sítio indicam que a sua funcionalidade se alterou temporalmente: determinados sítios terão tido as características de um acampamento base, com duração indeterminada, como é exemplo da base dos três concheiros principais; contudo, noutros momentos, esses sítios terão sidos utilizados como espaços sagrados nomeadamente como espaço ritual funerário. É evidente que os concheiros serviram, noutras fases, também como lixeiras dos acampamentos que se encontram localizados proximamente, como se verificou recentemente em redor do concheiro do Cabeço da Amoreira.

Parece evidente que o conhecimento de um conjunto de sítios localizados nas margens dos pequenos tributários do Tejo, como Muge e Magos, serviram como área principal de ocupação humana com toda a certeza para a exploração de recursos marinhos nomeadamente peixe e marisco (moluscos e crustáceos) e recursos cinegéticos (veado, javali, cavalo, auroque, corço, coelho e lebre), a que foram adicionadas outras áreas, nomeadamente a base (e talvez também o topo e as vertentes, ainda que não haja neste momento dados concretos que possibilitem esta afirmação) das Serras d’Aires e Candeeiros e a costa at-lântica servindo um sistema de captação de recursos baseado num sistema que integra recursos sazonais com proveniências diversas a nível regional.

A localização da maior parte dos concheiros, que parece estar organizada aos pares de cada um dos lados das ribeiras (Moita do Sebastião/Fonte do Padre Pedro; Cabeço da Arruda/Cabeço da Amoreira; Magos de Cima/Magos de Baixo) ou, em casos mais raros, do mesmo lado (Vale da Fonte da MoçaI/II; Cova da Onça/Monte dos Ossos) poderá ser indicativo de um processo de organização social e de parentesco que assenta num sistema de tipo clânico, possivelmente de tipo exogâmico. A localização dos acampamentos é organizada com base numa simetria do espaço, sendo que cada metade do clã (ou linhagem) relacio-nar-se-ia maioritariamente com a outra metade. A tipologia de sítios (e a sua estrutura interna no que respeita a estruturas de habitat, organização espacial e estratigrafia) e a proximidade geográfica entre si, bem como os dados sobre as dietas dos indivíduos mesolíticos de Muge sugerem que nos encontramos perante um conjunto de sítios, relacionados entre si, correspondendo provavelmente a afiliações socais e familiares ao nível das linhagens ou clãs, pertencendo a um só grupo socialmente coeso, com língua e cultura identificadas no espaço e representada por símbolos estilisticamente próprios e que formariam regionalmente (entre a bacia do Tejo e as Serras dos Candeeiros e d’Aires) uma tribo de caçadores-recol-ectores.

5. Agradecimentos

O trabalho de Muge deve-se ao financiamento de dois projetos pela Fundação para a Ciência e Tecnolo-

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gia. Durante o decorrer dos projetos, com início em 2008, a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos e a Casa Cadaval colaboraram com os trabalhos em várias dimensões de logística, que em muitos casos permitiu, de fato, o desenrolar dos trabalhos de escavação no Cabeço da Amoreira.

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Figura 1. Mapa da região de Muge com a localização dos concheiros

Figura 2. Planta geral dos trabalhos arqueológicos do Cabeço da Amoreira

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Figura 3. Corte oeste da Vala

Figura 4. Vista geral dos trabalhos de escavação no Cabeço da Amoreira.

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Figura 5. Localização em corte dos termoclastos e pequenos seixos que formam o cairn que protege o concheiro

Figura 5. Triângulos em sílex do Cabeço da Amoreira

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Figura 6. Cerâmicas decoradas do Cabeço da Amoreira (área 2).

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Casas Velhas do Coelheiro (Salvaterra de Magos, Portugal): identificação de um sítio neolítico na margem esquerda do baixo Tejo

César NevesArqueólogo; FCT; UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Portugal.

[email protected] Diniz

UNIARQ - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal. [email protected]çalo Lopes

Técnico de Arqueologia. [email protected]

1. Introdução

Em 2001, durante um trabalho para a finalização da sua licenciatura, um dos signatários do presente trabalho (GL), mencionou pela primeira vez o sítio das Casas Velhas do Coelheiro (Lopes, 2001) (Fig.1). Após reconhecer diversas áreas de concentração de material arqueológico, onde se destacavam “Cerâmi-cas manuais com e sem decoração, lâminas de sílex (…) núcleos de sílex, lascas residuais de sílex e quartzito, objectos unifaciais sobre seixos de quartzito, termoclasto;” Lopes não teve dúvidas em classi-ficar o sítio como um habitat enquadrado no Neolítico (2001, p.19). Porém, a sua identificação, por este autor, remontava a 1993, em uma das muitas incursões que fez pela área da freguesia de Muge, à procura de locais com interesse histórico-arqueológico.

Este texto tem como objectivo principal a apresentação deste sítio arqueológico que terá tido ocupação humana durante as primeiras fases do Neolítico, nesta região.

Os dados arqueológicos agora expostos possibilitam a prossecução de uma reflexão, acerca das últi-mas comunidades de caçadores-recolectores e dos primeiros grupos das antigas sociedades camponesas na margem esquerda do baixo Tejo, iniciada em 2005, através do projecto de investigação intitulado Neolítico antigo e médio na margem esquerda do Baixo Tejo (NAM) (Neves, Rodrigues e Diniz, 2008b), e seguida nos anos imediatamente posteriores com o estudo (ainda) parcial da Moita do Ourives e com a análise integral do sítio do Monte da Foz 1 (Neves, Rodrigues e Diniz, 2008a; Neves, 2010).

A informação que aqui se abordará não resulta de trabalhos escavação arqueológica, mas sim de prospecção no Vale do Coelheiro realizados em duas fases distintas: uma primeira, já descrita que re-sultou na identificação do sítio; uma segunda, em 2005, já inserida no referido projecto de investigação (NAM).

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Desta forma, os dados em análise, ainda que preliminares e condicionados por limitações geográficas, visto que resultam de observações e recolhas de superfície, terão de ser interpretados com as necessárias reservas associadas a este tipo de e informação.

2. Espaço e Território

O sítio arqueológico Casas Velhas do Coelheiro localiza-se, administrativamente, em Portugal, na freg-uesia de Muge, concelho de Salvaterra de Magos e distrito de Santarém. A área intervencionada locali-za-se na Carta Militar de Portugal, na folha nº 377, à escala de 1:25000.

A localização do ponto com maior concentração de material arqueológico, e de onde resultam a maioria das recolhas em análise, é a seguinte:Gauss, datum Lisboa (militares): M = 151938 P = 235487 A = 14mA região onde se insere as Casas Velhas do Coelheiro integra-se na Bacia Hidrográfica do Rio Tejo. O sítio localiza-se na margem esquerda do Baixo Vale do Tejo, junto à ribeira do Coelheiro. Caracteriza-se por uma planície aluvial composta por depósitos de sedimentos finos de origem fluvial, marinha e continen-tal (Zbyszeswki e Veiga Ferreira, 1968).

Do ponto de vista geológico, o espaço em análise enquadra-se na Bacia Sedimentar do Baixo Tejo. Numa micro-escala, as Casas Velhas do Coelheiro insere-se numa região onde dominam os depósitos Quater-nários em contraste com a margem oposta do Tejo, onde estão presentes depósitos detríticos Miocénicos. Na área do Baixo Tejo, a evolução Plistocénica é caracterizada pelo desenvolvimento de Terraços, sendo que a localização topográfica das Casas Velhas do Coelheiro, situa-o na área de desenvolvimento do nível de terraço Q4, cujas altimetrias variam entre os 8-15m (Zbyszewski e Veiga Ferreira, 1968, p.9) (Fig.2). Disponível nestes depósitos de terraço, encontram-se cascalheiras de seixos de quartzito e quartzo. De-positadas estratigraficamente sobre o terraço Q4, surgem as areias superficiais (As), que assumem uma grande extensão na área, caracterizando-se como “…areias amareladas ou acastanhadas, de grão fino a grosseiro, acumuladas a partir do Plistocénico, por transporte fluvial ou torrencial e, em parte, acumula-das pela acção eólica…” (Zbyszeswki e Veiga Ferreira, 1968, p.9).

O espaço onde terá sido implantada a ocupação, ao ar livre, das Casas Velhas do Coelheiro, caracteriza-se como uma área aberta, plana, sobre um substrato arenoso, a baixa altitude e sem quaisquer condições naturais de defesa. Ao nível de recursos naturais, a ocupação terá beneficiado da grande proximidade com as ribeiras do Coelheiro (hoje dominada pelo Paul do Concelho), e Muge, afluentes de um curso principal, o Tejo, também ele, à data da ocupação, muito próximo do sítio arqueológico.

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Esta área é genericamente definida pelo paleo-estuário do Tejo, formado aquando da transgressão flan-driana, procedendo a fortes alterações no rio e nos seus directos tributários, alcançando o seu máximo em ±5000 BP (Daveau, 1980). O ambiente fluvial distinto do actual, resultante das alterações paisagísticas e oscilações climáticas que a região sofreu desde do Plistocénico superior, teve consequências ao nível da diversidade dos recursos existentes (Martins, 2004; Freitas et al., 2006.). O regime estuarino então aí reg-istado proporcionaria a existência de uma diversidade de recursos alimentares passíveis de ser adquiri-dos, sem grande esforço, através de práticas de caça, recolecção e pesca. Com segurança, é de crer que esta situação terá sido determinante na implantação dos habitats durante as primeiras fases do Neolítico, tal como as Casas Velhas do Coelheiro. No entanto, a riqueza económica proveniente deste meio contrastar-ia com a débil aptidão dos solos (com alto teor de salinidade), para eventuais práticas agrícolas.

Os trabalhos de prospecção realizados nas Casas Velhas do Coelheiro permitiram observar a existência de material arqueológico disperso, ao longo de uma área de cerca de 3000 m2 (Fig.3). À superfície obser-va-se uma grande diversidade artefactual, com especial domínio para os termoclastos e produtos debita-dos em quartzito. Uma visita ao sítio no último mês de Maio, confirmou estas mesmas leituras constatan-do que tem sido realizado algum revolvimento do subsolo, nomeadamente através de limpezas de terreno para criação de caminhos rurais, trazendo à superfície mais elementos arqueológicos. Actualmente não existem vestígios de agricultura recente, e assinala-se a presença de um pequeno pinhal que tem lugar, de forma aleatória, ao longo de toda a plataforma. O sítio não se encontra, de momento, ameaçado.

3. Espólio arqueológico

As acções de prospecção realizadas nas Casas Velhas do Coelheiro permitiram a recolha de um total de 171 artefactos, dos quais 108 correspondem a fragmentos cerâmicos, 60 de pedra lascada e 3 de pedra polida/afeiçoada. Procurou-se registar a maior diversidade possível de elementos da cultura material, de modo a determinar com maior precisão o momento crono-cultural com que o sítio poderá estar rela-cionado. Desta forma, não se recolheu a totalidade dos artefactos observados à superfície, sendo ainda hoje possível constatar a presença de numerosos elementos artefactuais, ao longo de toda a área. Embora todo o espaço que se considera pertencer ao sítio revele materiais arqueológicos à superfície, foi na zona mais a Norte (de onde se retirou a coordenada acima mencionada), que a prospecção permitiu registar uma maior concentração artefactual sendo, desta forma, a área de onde provêm a grande maioria dos elementos aqui abordados.Por se tratar de recolhas de superfície, fundamentais na identificação das ocupações, mas que apresen-tam condicionalismos na caracterização de um sítio arqueológico que só uma recolha em contexto es-tratigráfico ajuda esclarecer, não se pretende, nesta análise do espólio arqueológico recolhido, produzir dados estatísticos, de contagens e percentagens, pois estas terão um valor muito residual ou erróneo, correndo o risco de formular conclusões desajustadas da realidade. Além do mais, os materiais de super-fície recolhidos podem corresponder a ocupações distintas do sítio, ficando sem valor científico qualquer formulação de conjuntos entre os artefactos.

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Ainda assim, crê-se que os elementos recolhidos apresentam indicadores seguros que possibilitem uma caracterização preliminar do sítio, bem como da formulação de propostas para o espaço (ou espaços), crono-cultural em que a Casas Velhas do Coelheiro tenha funcionado como um cenário de acção.

3.1 Indústria lítica

O grupo de materiais de pedra lascada recolhido à superfície é composto por 60 peças, produzidas a partir da utilização de matérias-primas locais (quartzito), regionais e exógenas (sílex). Estes 60 registos testemunham algumas componentes das cadeias operatórias, tanto do quartzito como do sílex. As recol-has permitem uma leitura preliminar sobre as matérias-primas, estratégias de exploração das mesmas, economia e objectivos de debitagem e funcionalidade dos utensílios conformados.

Os instrumentos em sílex correspondem aos elementos recolhidos em maior número, podendo, ainda assim, não significar uma maior representatividade na cultura material dos grupos que terão ocupado as Casas Velhas do Coelheiro.A utilização do sílex parece indiciar uma clara oposição face à estratégia e finalidade de talhe que, em baixo, verificaremos no quartzito. Os dados remetem para uma exploração dirigida para a produção de suportes alongados e, possivelmente em menor número, lascas, não se tendo registado qualquer micróli-to geométrico. Esta estratégia assenta na exploração de sílex de excelente qualidade, tendo o mesmo sido obtido em áreas distantes do sítio, em contextos geológicos primários, que em nada se relacionam com o enquadramento geológico das Casas Velhas do Coelheiro.

Estes indicadores de exploração alóctone do sílex revelam a importância que este teria na economia dos habitantes deste espaço. Desta forma, observa-se, nesta matéria-prima, um talhe mais cuidado, intensivo, visando o seu aproveitamento quase integral, sendo visível o córtex em alguns produtos debitados e recorrendo, num ou outro caso, ao pré-tratamento térmico.

Para o sílex, reconhecem-se neste limitado registo: 5 núcleos prismáticos para lamelas e 4 núcleos prismáticos para pequenas lascas (Fig.4, nº1 e 2); material de preparação e reavivamento de núcleos (flan-co e fragmento de núcleo); produtos de debitagem (produtos alongados: 1 lâmina pequena; 14 lamelas brutas; 2 lascas – Fig.4, nº 3 e 6-11); restos de talhe; utensílios (2 lamelas com retoque marginal; 1 entalhe; 4 raspadeiras – Fig.4, nº4 e 5).Relativamente ao quartzito, os dados recolhidos parecem indicar que o processo tecnológico envolveu um talhe expedito que visaria a produção de lascas, de concepção muito simples. Os 5 núcleos unipo-lares recolhidos, com poucos levantamentos, são indicadores seguros de uma abundância de matéria-pri-ma que se apresenta localmente disponível, e de fácil apreensão (Fig.5). Registaram-se lascas corticais e semi-corticais, não se tendo observado, macroscopicamente, qualquer traço de utilização ou retoque. No campo, foram ainda observados vários restos de talhe em quartzito, não tendo sido recolhidos. A macro-utensilagem em quartzito é uma característica comum de sítios ocupados numa fase evolucionada

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do Neolítico antigo, como parece ser o caso das Casas Velhas do Coelheiro, principalmente quando esta matéria-prima se apresenta como recurso imediatamente acessível.Pedra polida/afeiçoada

No campo da pedra afeiçoada e polida, a prospecção só permitiu, até à data, a identificação e recolha de três elementos, todos eles de pedra afeiçoada. Trata-se de dois moventes e um fragmento de dormente. Em todos os casos, estes instrumentos foram produzidos em granito. Os exemplares registados surgem muito fragmentados, à excepção de um único movente, intacto.

Apesar do grau de fragmentação que um dos exemplares apresenta, os moventes identificados parecem corresponder a instrumentos de pequenas dimensões, passíveis de ser manipulados com uma só mão. A peça inteira tem de comprimento 118mm, de largura 79mm e de espessura 41mm. Os exemplares apresentam uma conformação ovalada, detendo as duas superfícies activas e os bojos cuidadosamente bujardados.

O dormente corresponde a uma peça em muito mau estado, com um grau de fragmentação bastante elevado, conservando-se uma pequena parte daquilo que terá sido o seu todo (Fig.6). Este fragmento de mó aparenta ter tido uma forma circular, conservando-se 101mm de comprimento, por 75mm de largura e 56mm de espessura máxima.

Os elementos artefactuais em pedra afeiçoada registados são constituídos por rochas de origem exógena. Face à localização das Casas Velhas do Coelheiro, o granito têm a sua fonte de aprovisionamento mais próxima no interior alentejano, nomeadamente nas áreas, hoje, pertencentes aos distritos de Évora e Por-talegre, a uma distância mínima de 50km.

O mau estado de conservação e o elevado grau de fragmentação poderá estar relacionado com a inten-sidade e grau de utilização que estes elementos tiveram sujeitos, além de fenómenos pós-deposicionais que terão contribuído para a fracturação destes artefactos. Por outro lado, não se pode minimizar o facto de se tratar de uma matéria-prima de origem exógena, sendo a sua obtenção resultado de um esforço físico elevado. Desta forma, seria de todo expectável que se tentasse retirar o máximo proveito das fun-cionalidades dos artefactos, procedendo-se à sua utilização até à máxima, e definitiva exaustão.

Embora não tenham sido recolhidos durante as acções de prospecção, são bem visíveis, à superfície, numerosos termoclastos. A existência de elementos pétreos com marcas de fogo, ou fragmentados pela acção do calor, é uma das principais características que levaram à identificação deste sítio arqueológico. A observação no terreno permitiu constatar que estes elementos são maioritariamente compostos por matérias-primas locais, como o quartzito e o quartzo. O predomínio da utilização de seixos rolados de quartzito deverá ser mesmo dominante, estando correlacionados com o espaço de ocupação em causa, sobre os terraços quaternários do baixo Tejo. Embora a observação destes elementos só ocorra de manei-ra superficial, não deixando grande espaço para a realização de leituras mais concretas, ainda assim, é de

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crer que, embora fora do seu contexto primário, possam indiciar a presença de estruturas relacionadas com a combustão em espaços de habitat.

3.2 Cerâmica

O conjunto de materiais em cerâmica, proveniente da prospecção de superfície realizada nas Casas Vel-has do Coelheiro, é formado por 107 fragmentos de recipientes, correspondendo à grande maioria dos elementos recolhidos no sítio.

Dos 107 fragmentos, 29 pertencem a bordo, 77 são bojos e um fragmento é de elemento de preensão e/ou suspensão, isolado do seu recipiente original, que foi classificado como asa. Do universo dos bojos, 69 não apresentam qualquer decoração, ficando desprovidos de leitura crono-cultural específica. Ainda assim, existe 1 bojo que, pela sua espessura - 18mm - se enquadra na categoria de paredes muito espessas, e que deverá estar associado a um recipiente de grandes dimensões, podendo funcionar como indicador económico, nomeadamente de armazenagem de bens alimentares.

Procedeu-se a uma triagem que gerou um subconjunto com todos os fragmentos que possuíssem infor-mação culturalmente significativa, a fim de serem analisados e descritos de forma individualizada. Desta amostra, fazem parte todos os bordos, os bojos com decoração, os elementos de preensão e/ou suspensão isolados, nomeadamente as asas, mamilos ou pegas. Este subconjunto corresponde a um total de 37 fragmentos.

A análise deste grupo de fragmentos de recipientes permitiu observar uma produção cerâmica que parece partir da utilização de argilas localmente disponíveis, construindo recipientes de pastas compactas, co-zidas em ambiente redutor, frequentemente detentoras de elementos não plásticos, maioritariamente, de pequeno e médio calibre (domínio de quartzo e feldspato – observação macroscópica). Após o recipiente estar formalmente configurado, as superfícies foram, em grande parte, alisadas.

Os bordos, que permitiram o cálculo da orientação geral do recipiente e da sua dimensão, indicam a existência de um maior número de formas fechadas, face às formas abertas, também elas presentes. Não se observaram recipientes com as paredes rectas. Quanto à dimensão, o conjunto caracteriza-se pelo pre-domínio dos recipientes de média dimensão. Torna-se assim difícil aferir a funcionalidade destes recipi-entes, em virtude de poderem ter sido realizados para uma multiplicidade de fins, tais como a preparação e consumo de alimentos. De seguida, surgem os recipientes de pequena dimensão, deixando num plano aparentemente residual a classe de grandes contentores (somente registado em 1 recipiente).

Ao nível da espessura dos recipientes, predominam as paredes com espessuras finas, entre os 6-8,9mm, seguindo-se as paredes espessas, entre 9 e os 12,9mm. Em nenhum bordo se observou a presença de paredes muito espessas, ficando esse registo para o bojo acima referido. Esta observação da espessura vai ao encontro da presença maioritária, neste conjunto, de recipientes de média dimensão.

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No geral, as paredes terminam em bordos morfologicamente simples. Ocorrem bordos arredondados, biselados e aplanados. Quanto à sua orientação, foram registados bordos rectos e apresentando inflexões simples, de maneira extrovertida.Relativamente à classificação tipológica, nos recipientes abertos a forma mais registada é a hemisférica (taças) e, nas formas fechadas, a esférica e ovóide (Figs.7 e 8).

Na categoria de elementos de preensão e suspensão, estão registados 2 recipientes com pegas ou mamilos e uma asa, apresentando estado de conservação muito díspares. Os mamilos ou pegas surgem conser-vados e associados a fragmentos de recipiente, ao contrário da asa, que surge isolada.Relativamente à asa, trata-se de um fragmento isolado de uma pequena asa em rolo, em mau estado de conservação. O facto de não se encontrar associado a um bordo ou bojo dificulta a sua caracterização, nomeadamente no que se refere ao tipo de perfuração.

A aplicação de pegas e/ou mamilos nos recipientes está presente em dois fragmetos. Utilizando os critéri-os definidos por um dos autores relativamente à definição dos conceitos de “mamilo” e “pega”, (Diniz, 2007, p.131), registou-se a existência de duas pegas.

As pegas encontram-se associadas a dois fragmentos de bordo, de distintos recipientes, estando local-izadas sobre o bordo, não sendo possível caracterizar morfologicamente os vasos. As pegas apresentam formas alongadas, sendo que num caso encontra-se associada a um sistema decorativo, a incisão, (Fig.10, nº 21), e no outro, a um recipiente liso (Fig.10, nº 22).

Do universo de 107 fragmentos, apenas 15 se apresentam decorados, limitando o processo de análise a uma mera descrição dos motivos e da temática decorativa, caso a caso. A única excepção poderá estar presente no subconjunto de fragmentos com sulco abaixo do bordo.

A técnica decorativa mais frequente é a incisa com 11 presenças. A impressão registou-se em 5 peças, e a combinação de técnicas, em que o mesmo recipiente foi decorado com motivos impressos e plásticos, ocorre em um exemplar. Nesta amostra, a técnica da incisão, apesar de ser a mais representada, não apresenta uma grande variab-ilidade temática. Dos 11 fragmentos exclusivamente decorados através de incisão, 4 correspondem, so-mente, a uma linha incisa, paralela ao bordo e logo abaixo deste, a uma distância que nunca ultrapassa os 10mm (Fig.9) Este motivo decorativo, comummente denominado como sulco abaixo do bordo, poderá possuir um significado crono-cultural específico, adiante discutido.

Os restantes 7 exemplares, com decoração incisa, apresentam séries e fiadas de linhas paralelas entre si, visíveis em 4 peças (Fig.10). Em 3 fragmentos de bordo, foi possível observar a relação das fiadas de linhas, encontrando-se, num caso, perpendiculares ao bordo (Fig.10, nº 15) e, em dois casos, paralelos a este (Fig.10, nº 16 e 21).

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Embora o número de fragmentos decorados impressos seja diminuto, ainda assim, observa-se uma var-iedade de matrizes aplicadas, na sua maioria, por puncionamento individual. Em termos de disposição, observam-se puncionamentos perpendiculares e oblíquos, relativamente ao bordo e superfície do vaso (Fig.11). A impressão oblíqua de puncionamentos individuais, em fiada, de matriz simples, paralelos entre si e perpendiculares ao bordo está presente em 2 recipientes (Fig.11, nº24 e 26). O nº 26 tem a particularidade de ocorrer na superfície interna do recipiente. Os motivos decorativos existentes no nº 24 correspondem a puncionamentos individuais de forma circular, obtidas a punção vertical.

Noutro fragmento de bordo surgem três fiadas que sugerem a presença de um motivo em espiga. Esta temática decorativa parece repetir-se num bojo com quatro bandas de impressões oblíquas, e paralelas entre si (Fig.11, nº23 e 27).

Um único exemplar regista a presença exclusiva de impressões a punção individual, de forma oval e de pequena dimensão, que recortam a superfície do bordo (Fig.11, nº25).

A combinação de duas técnicas decorativas (impressão e plástica), ocorre num único recipiente. A dec-oração compósita corresponde a uma fiada de 10 puncionamentos de matriz simples aplicada sobre um cordão plástico, que deveria circundar todo o recipiente (Fig.11, nº28).

Por fim, importa referir que não foram observados quaisquer nódulos de argila cozida, geralmente asso-ciado à função revestimento, e colmatação de espaços e estruturas domésticas.

4. Casas Velhas do Coelheiro: primeiras leituras e futuras linhas de investigação

Os elementos artefactuais agora analisados, segundo um critério exclusivamente tipológico, sugerem que as Casas Velhas do Coelheiro corresponderá, provavelmente, a um espaço de habitat ocupado no final do Neolítico antigo, em transição para o Neolítico médio, integrando-se num espaço temporal próximo dos finais do V milénio e os inícios do IV milénio AC. As técnicas e temáticas decorativas identificadas nos recipientes cerâmicos (nomeadamente os recipientes decorados com sulco abaixo do bordo), bem como a existência de produtos laminares de pequena dimensão, vão no sentido desta leitura, apresentando claros paralelos com conjuntos artefactuais registados em sítios de habitat da Estremadura, como a Pena d’Água, Costa do Pereiro, Cerradinho do Ginete e Palácio dos Lumiares (Carvalho, 1998 e 2008; Nunes e Carvalho, 2013; Valera, 2006), bem como do Sul de Portugal, nomeadamente os sítios da área da Com-porta e Sines (ex: Pontal e Palmeirinha), (Silva e Soares, 1980; Silva, Soares e Coelho-Soares, 2010; Soares e Silva, 2013), e discutidos pelos autores noutra ocasião (Neves e Diniz, no prelo). Fruto dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos já neste século, também é possível obter paralelos na área da margem esquerda do Tejo, onde se insere as Casas Velhas do Coelheiro. Na área do actual concel-ho de Salvaterra de Magos, a escavação arqueológica do sítio da Vala Real permitiu a identificação de um

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recipiente com motivos decorativos muito semelhantes aos das Casas Velhas, nomeadamente a aplicação de impressões sobre um cordão plástico (Aldeias e Gaspar, 2007). Regista-se ainda, a cerca de 5km das Casas Velhas do Coelheiro, o sítio dos Cortiçóis (Benfica do Ribatejo, Almeirim), caracterizado como sendo dos finais do V milénio AC, cuja intervenção arqueológica forneceu um conjunto artefactual com grandes semelhanças com alguns elementos das Casas Velhas do Coelheiro, nomeadamente em alguns exemplares de cerâmica com decoração incisa e com produtos laminares de pequena dimensão (Carval-ho, Gibaja e Cardoso, 2013; Cardoso, Carvalho e Gibaja, 2013).

Ainda no espaço da margem esquerda do baixo Tejo, importa destacar a ocupação registada no Monte da Foz 1 (Benavente), enquadrada entre a 2ª metade do V e a 1ª metade do IV milénio AC, que apresenta nos recipientes com sulco abaixo do bordo e em alguns instrumentos líticos, como as lamelas em sílex com retoque marginal, lâminas de pequena dimensão, e na estratégia de talhe do quartzito, os principais paralelismos com as Casas Velhas do Coelheiro (Neves, 2010).

Atendendo à presença de material arqueológico disperso, ao longo de uma área tão vasta da margem esquerda da ribeira do Coelheiro, é de crer que esses artefactos não reportem a uma única ocupação (que, a confirmar-se, seria de grandes dimensões). Face ao observado em outros sítios de cronologia e ambiente geomorfológico análogos, a permanência de grupos neolítico nas Casas Velhas do Coelheiro deve-se ter efectuado de forma horizontal, ao longo da plataforma, em diversos episódios ocupacionais, de forma temporária, embora enquadrados num mesmo patamar crono-cultural. A presença de material arqueológico relacionado com eventuais ocupações neolíticas, observado à superfície, em locais muito próximos da área das Casas Velhas do Coelheiro, como a Quinta dos Gatos 1 e 2 e Vale do Coelheiro 1 (Lopes, 2001), poderá ir ao encontro desta proposta.

Nesta fase, é impossível definir as estratégias de subsistência que terão sido adoptadas pelos grupos que habitaram nas Casas Velhas do Coelheiro. Ainda assim, a sua implantação, junto à ribeira do Coelheiro e em grande proximidade com a ribeira de Muge e rio Tejo, enriquecidos com recursos estuarinos de grande diversidade, sugere uma utilização preferencial deste meio envolvente através das estratégias de caça-pesca-recolecção.

Como já foi referido, durante o Vº milénio AC, a riqueza económica proveniente deste ecossistema estu-arino contrastava com a fraca aptidão destes solos para as práticas agrícolas.

Se a limitação dos solos aparenta ser um obstáculo face às dinâmicas esperadas para as primeiras fases do Neolítico, a tipologia funcional da ocupação poderá explicar esta posição, onde a agricultura, não deverá ter sido uma actividade primordial na “balança económica” do grupo. No entanto, se a agricultura teve um peso determinante no subsistema económico dos habitantes das Casas Velhas do Coelheiro, então essa prática ter-se-á realizado em áreas mais interiores, onde se encontrariam solos mais leves e passíveis de serem trabalhados por técnicas agrícolas incipientes. Ainda assim, ocorrem no registo arqueológico, aqui descrito, artefactos relacionados com as estas novas actividades económicas, introduzidas durante

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o processo de neolitização (moventes e dormentes). Estes elementos atestam a presença de uma comu-nidade integrada nas antigas sociedades camponesas, portadora do clássico “pacote neolítico”, quer do ponto de vista artefactual/cultural, quer do ponto de vista de economia e produção.

Uma ocupação humana neste espaço proporcionaria, de igual modo, grandes condições de mobilidade entre espaços territoriais. O Tejo e seus afluentes, bem como as vastas planícies existentes na envolvência, permitiam aos grupos humanos um ritmo de mobilidade sem grandes condicionalismos geográficos, possibilitando a deslocação até territórios e contextos geológicos distintos - Estremadura e Alentejo in-terior - com melhores condições para a prática da pastorícia e agricultura, respectivamente e que estão documentados pela presença de matérias-primas líticas não regionais, numa necessária complementari-dade social, cultural e económica a que, gradualmente, o processo de neolitização obrigava.

No entanto, é importante recordar que a identificação deste sítio, bem como os dados que permitiram a sua caracterização preliminar, resulta de trabalhos de prospecção e não de uma escavação arqueológica. Esta última acção, apresenta-se como um passo decisivo na confirmação das leituras aqui expostas, ou na formulação de novas (quem sabe, até mesmo opostas), visto que poderá fornecer outro tipo de dados, correctamente quantificados e, mais importante, devidamente enquadrados em contextos arqueológicos e estratigráficos seguros, integralmente registados.

O concelho de Salvaterra de Magos e, nomeadamente, a freguesia de Muge, mundialmente reconheci-dos pela passagem das últimas comunidades de caçadores-recolectores na Península Ibérica, acrescem ao seu património cultural, um conjunto de elementos relacionados com a etapa seguinte (as Primeiras Sociedades Camponesas), de que as Casas Velhas do Coelheiro terá sido um palco activo, sendo que este momento da (Pré) História ainda está, no essencial, por contar. Lentamente, uma paisagem que, arque-ograficamente, aparentava estar desprovida de ocupações relacionadas com as primeiras fases do pro-cesso de neolitização, vai dando lugar a uma cartografia de povoamento, cada vez mais preenchida. Na margem esquerda do rio Tejo, Cortiçós como o sítio identificado, até agora, mais montante, Gaio, mais a jusante, e ao longo das ribeiras de Muge, Magos, Sorraia, Almansor e Santo Estêvão (Fig.12), atestam a presença, na região das primeiras sociedades agro-pastoris.

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Figura 1. Casas Velhas do Coelheiro – Localização. À esquerda: na Península Ibérica (base cartográfica: Gonçalves, 1989 – adaptado); à direita: na CMP à escala de 1/25 000 (folha 377 e 378 - excerto); em baixo: a plataforma onde se implanta o sítio, junto à ribeira do Coelheiro (foto de Andrea Martins)

Figura 2. Casas Velhas do Coelheiro na Carta Geológica de Portugal – excerto da Folha 31C 1:50 000, Serviços Geológicos de Portugal

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Figura 3. Casas Velhas do Coelheiro. Pormenor dos trabalhos de prospecção arqueológica (foto de Andrea Martins)

Figura 4. Casas Velhas do Coelheiro. Pedra lascada (sílex): 1-2 – núcleos prismáticos para lamelas; 3 – lâmina; 4 – lamela com entalhe; 5 – lamela com retoque marginal; 6-11 – em bruto;

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Figura 5. Pedra lascada. Núcleo sobre seixo de quartzito (foto de Marco Andrade)

Figura 6. Pedra afeiçoada. Fragmento de dormente de mó de granito (foto de Marco Andrade)

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Figura 7. Casas Velhas do Coelheiro. Cerâmica lisa

Figura 8. Casas Velhas do Coelheiro. Cerâmica lisa

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Figura 9. Casas Velhas do Coelheiro. Cerâmica com decoração incisa – Sulco abaixo do bordo.

Figura 10. Casas Velhas do Coelheiro. Cerâmica decorada: 15-21 – decoração incisa; 21-22 - aplicação de elementos de preensão e/ou suspensão

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Figura 11. Casas Velhas do Coelheiro. Cerâmica decorada: 23-27 – decoração impressa; 28 - combinação de técnicas impressa/plástica.

Figura 12. Mapa de distribuição dos principais sítios enquadrados no processo de neolitização na mar-gem esquerda do Baixo Tejo, no período máximo da transgressão flandriana, em cerca de 5000 B.P. (base cartográfica: Daveau, 1980, p.26 - adaptado):1. Cortiçóis; 2. Forno do Tijolo 2; 3. Vale de Lobos; 4. Casas Velhas do Coelheiro; 5. Moita do Sebastião / Cabeço da Amoreira / Amoreira 1; 6. Cova da Onça / ORZ 1; 7. Vala Real; 8. Casas Novas; 9. Monte da Foz 1; 10. Moita do Ourives; 11. Gaio.

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Do pré-romano ao Império: a ocupação humana do Porto de Sabugueiro (Muge, Salvaterra de Magos) 1

João Pimenta - Câmara Municipal de Vila Franca de XiraHenrique Mendes - Câmara Municipal de Vila Franca de Xira

Ana Margarida Arruda UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de LisboaElisa de Sousa UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

Rui Soares UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

1. Introdução: localização e implantaçãoA importância científica do Porto do Sabugueiro, Muge (CNS – 2693), é considerável, sendo reconhecida nacional e mesmo internacionalmente. Contudo, o conhecimento sobre este notável sítio arqueológico é ainda escasso, apesar de ter sido alvo de distintos trabalhos arqueológicos, de prospecção e de escavação, desde a sua descoberta, por Mendes Correa, nos anos 30 do século passado. Nos cadernos de campo do Professor do Porto, pode ler-se: “No Porto de Sabugueiro, a N. de Muge, à beira do Tejo, encontraram, há pouco mais de 20 anos, ao fazer um cano, arcarias de tijolo, talhas, moedas pequenas, um esqueleto de bruços, muitos tijolos e telhas”.

Por isso mesmo, pareceu pertinente elaborar uma síntese sobre a sua ocupação que tivesse em consid-eração não só os dados já publicados, mas também os que resultam dos estudos que, nos últimos anos, temos vindo a desenvolver, nomeadamente os decorrentes da reanálise de espólios recolhidos e depos-itados em diversos museus e instituições e dos trabalhos de prospecção arqueológica e de escavações programadas. Com esta síntese pretendemos traçar, em linhas gerais, o quadro da evolução humana deste espaço, ao longo de uma ampla diacronia, que se estende desde a Pré-história até à Antiguidade Tardia.

O sítio, localizado no Concelho de Salvaterra de Magos, freguesia de Muge, implanta-se na margem es-querda do Tejo, na confluência deste com a vala de Alpiarça, encontrando-se materiais arqueológicos à superfície do terreno, numa vasta área com cerca de 25 hectares, para Norte e para Sul do lugar de Porto de Sabugueiro. Trata-se de um sítio ribeirinho, plano, de baixa altitude e com poucas descontinuidades altimétricas, entre os 5,5 e os 8 metros (Fig. 1). As suas coordenadas geográficas, lidas na CMP 1:25000, n.364, são: Longitude N: 39º 12` 68``; Latitude W: -8º 70`98``.

Parece importante começar por recordar que a fertilidade da planície aluvial do Tejo justifica a intensa e extensa exploração agrícola também dos campos onde o sítio se implanta, levada a efeito, desde há muitos anos, e até à actualidade, pela Casa Agrícola do Cadaval. Tal situação teve, como se verá, grandes __________________________ 1 Trabalho realizado no âmbito do Projecto (FETE – Fenícios no Estuário do Tejo - PTDC/EPH-ARQ/4901/2012)

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impactos sobre o subsolo, constituído por sedimento de matriz arenosa, o que dificultou também a con-servação dos níveis de ocupação. Ainda assim, e apesar destes constrangimentos de base, consideramos que existe informação suficiente que permite compreender o tempo da ocupação antiga e apresentar propostas para as modalidades em que esta se desenvolveu.

2. Trabalhos arqueológicos no Porto de Sabugueiro: breve resenha

Em artigo recente (Pimenta e Mendes, 2008), dois de nós tiveram oportunidade de descrever, com detal-he, os trabalhos de prospecção e escavação de que o sítio foi alvo, desde a primeira referência publicada por Mário de Saa, nos anos 50 do século passado (Saa, 1956).

Ainda assim, merecem aqui destaque as descobertas dos anos 60 do século passado (Oleiro, 1960-61; Alarcão, 1987), que evidenciaram a existência da ocupação romana da área, de tipo villa, o que foi sugeri-do pela presença de um mosaico e dos materiais que lhe estavam associados, o que confirmava as referên-cias de Mário de Saa e fornecia outra leitura aos espólios que integram as colecções da Casa do Cadaval. Em meados da década de 80, Guilherme Cardoso teve a oportunidade de identificar uma área de pro-dução de ânforas no local (Cardoso, 1990; Cardoso e Rodrigues, 1996). A morfologia dos contentores permitiu avançar com uma cronologia de produção em torno ao século I e II d.C..

Já na primeira década deste século, dois de nós (J.P e H.M.) regressaram ao sítio, tendo as prospecções que concretizaram possibilitado também a detecção de espólios pré-romanos (Pimenta e Mendes, 2008). Os mesmos arqueólogos viriam a efectuar sondagens no local, tendo confirmado a ocupação pré-romana e encontrado uma muito expressiva quantidade de espólios romano-republicanos (Pimenta e Mendes, 2013).

No Verão de 2013, procedeu-se, no âmbito do Projecto (FETE – Fenícios no Estuário do Tejo - PTDC/EPH-ARQ/4901/2012), a uma escavação arqueológica no Porto de Sabugueiro, tendo sido intervencio-nada uma área de 51 m2, dispersa por várias sondagens localizadas em distintos locais (Fig. 2).

Nesta breve introdução parece importante referir também que os terrenos onde o sítio se implantou são, desde há muito, alvo de intensa actividade de “caçadores de tesouros”, o que resulta na existência de amp-las colecções particulares, que incluem todo o tipo de espólios de amplo espectro cronológico. Por outro lado, a área foi também, ao longo dos anos, visitada por vários arqueólogos que depositaram em diversas instituições materiais com origem no Porto do Sabugueiro. Ainda há a referir o facto de a exploração de areias do Tejo ser, neste local, uma actividade particularmente intensa, sendo responsável também pela recuperação de inúmeros materiais arqueológicos.

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A estória da descoberta do sítio e das diversificadas intervenções arqueológicas que nele ocorreram jus-tifica a dispersão de materiais por várias instituições, nomeadamente:Museu Hipólito Cabaço, Alenquer;Museu Monográfico de Conímbriga;Museu Municipal de Vila Franca de Xira (colecções antigas);Museu Nacional de Arqueologia; Museu Geológico, Lisboa;Casa do Cadaval.

3. A ocupação pré-histórica

São escassos os dados relativos à ocupação pré-histórica do Porto de Sabugueiro. Contudo, os recentes trabalhos de prospecção e escavação permitiram recuperar informação compatível com cronologias do mesolítico e do neolítico, que se encontram atestadas por instrumentos de sílex, como é o caso das lame-las e dos micrólitos, a primeira (Fig. 3), e de pedra polida, concretamente machados, enxós e goiva (Fig. 4), a segunda. As referências à Pré-História do local, mencionados por outros autores (Rolão, 1999; Lucas e Ferrari, 1993), ficam, assim, confirmadas, mesmo que tais espólios, agora como aparentemente antes, não sejam provenientes de quaisquer níveis primários de ocupação e que as peças estudadas anterior-mente remetam para uma ocupação de um momento mais antigo da Pré-História.

4. A ocupação pré-romana

Ao contrário do que acontece com a ocupação pré-histórica, a Idade do Ferro está particularmente bem documentada, materializando-se em espólios abundantes e diversificados. Contudo, mesmo admitindo que o sítio foi frequentado durante o 4º e o 3º milénios a.n.e., não parece provável que a ocupação sidérica esteja na continuidade da que correspondeu à Pré-História. De facto, entre os milhares de fragmentos cerâmicos e líticos recolhidos em Porto de Sabugueiro, não existe, até ao momento, qualquer elemento que permita supor uma ocupação da Idade do Bronze, o que pressupõe uma fundação ex nihilo, em torno à primeira metade do 1º milénio a.n.e.

Esta fundação foi devidamente reconhecida em trabalhos de campo, quer de prospecção quer de escav-ação (Pimenta e Mendes, 2008, 2013), confirmando-se assim os dados que a presença de um escaravelho e de um escarabóide já deixavam antever (Pereira, 1975). Estes dois artefactos, recolhidos na década de 30 do século XX por Hipólito Cabaço e depositados no Museu de Alenquer, apresentam cartela com praenomen do faraó Thutmosis III (XVIII dinastia) e devem datar entre os meados do século VII e o VI a.C. (Arruda, 1994a; Almagro Gorbea e Torres Ortiz, 2009) (Fig. 5). Não se conhecem as condições do seu achamento, nem, naturalmente, o seu contexto original, não sendo contudo impossível pensar que integravam o mesmo lote composto por contas de colar de vidro azul, uma das quais oculada a branco

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(Fig. 6), e outros materiais cerâmicos da Idade do Ferro, igualmente depositados no Museu de Alenquer.

Outros materiais da Idade do Ferro foram, como já dissemos, recolhidos na prospecção e escavação efectuadas por dois de nós (J.P. e H.M.) em 2008 e 2010, respectivamente (Pimenta e Mendes, 2008, 2013), assim como na escavação de 2013, concretizada no âmbito do projecto que temos em curso sobre a ocupação orientalizante do estuário do Tejo. Infelizmente, deste muito abundante espólio apenas uma minoria foi encontrada em níveis estratigráficos conservados. Por outro lado, também não se tornou possível a detecção de quaisquer estruturas construídas.

Ainda assim, os materiais merecem, no seu conjunto, um comentário, parecendo importante começar por salientar a sua abundância e diversidade. Entre as cerâmicas, destacam-se as ânforas que são muito abundantes e apresentam características que permitem admitir uma produção local. Maioritariamente, correspondem ao tipo 5 da tipologia recentemente elaborada para o estuário do Tejo (Sousa e Pimenta, no prelo), tipo cujo fabrico (Grupo II) foi, desde logo, considerado como oriundo da sua área interior (Ibidem). A forma é até ao momento exclusiva do sítio, o que parece comprovar a sua produção no local, apesar da ausência de dados estratigráficos dificultar a atribuição de uma cronologia segura, que contudo, considerando as suas características morfológicas parece ser tardia no quadro da produção anfórica do vale do Tejo, século IV e, eventualmente, III a.n.e. (Fig. 7). Outras variantes da mesma tipologia estão também atestadas, nomeadamente as que os autores classificaram de 6 e 7 (Fig. 7).

Outras ânforas, mais antigas e importadas, fazem também parte do conteúdo dos inventários. Trata-se de peças integráveis no tipo 10.1.2.1. de Ramon Torres, cujos centros produtores se localizaram na costa mediterrânea da Península Ibérica. Uma cronologia do século VII/VI a.n.e. parece defensável, atendendo aos detalhes morfológicos que apresentam (Fig. 8).

A mesma origem e cronologia podem ser atribuídas aos fragmentos de bordo e asa de vasos de arma-zenamento pintados em bandas de tipo pithoi e à urna Cruz del Negro (Fig. 8) bem como aos pratos e taças revestidos por engobe vermelho (Fig. 9).

Pela sua raridade no território português, merece especial referência o vaso trípode (Fig. 9), cuja presença está documentada por exemplo em Castro Marim (Arruda, 2002). A função exacta destes recipientes, presentes em exclusividade em sítios relacionados com a colonização oriental, com três pés, curtos, mas destacados, e de secção rectangular é ainda alvo de discussão, mas a hipótese mais consensual é a de que se destinavam à trituração, funcionando como uma espécie de almofarizes, ainda que o produto triturado permaneça uma incógnita.

A cerâmica cinzenta é também abundante, sobretudo na sua forma mais comum nesta produção, a tigela de bordo invertido e engrossado (Fig. 9).

Este conjunto de materiais, que se junta ao escaravelho e escarabóide egipcizantes, com origem em Nau-

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crátis, e até a algumas das contas de colar de vidro, especialmente às oculadas, obriga a considerar uma ocupação sidérica de características orientalizantes no Porto do Sabugueiro, certamente relacionada com o processo de chegada e instalação de populações semitas ao extremo ocidente, e mais concretamente ao estuário do Tejo. Este processo, iniciado ainda no século VIII a.n.e., como ficou atestado em Lisboa e em Santarém, desenvolveu-se nas margens do grande rio a partir dos finais do século VII/inícios do VI, ain-da que certamente se organize em função dos grandes povoados de altura (Lisboa, Santarém, Castro do Amaral, Alto do Castelo), que controlariam política e administrativamente o território. Contudo, o sítio de Muge destaca-se entre o povoamento ribeirinho da margem esquerda, povoamento que integra ainda o Cabeço da Bruxa, em Alpiarça, a Quinta da Alorna e o Alto dos Cacos em Almeirim, pela extensão e sobretudo pela diversidade dos seus materiais.

Se esta ocupação inicial terá tido função portuária e de controle da via fluvial que o Tejo representava, a sua funcionalidade diversificou-se ao longo da Idade do Ferro, tendo, a partir da segunda metade do 1º milénio a.n.e. e até à chegada dos exércitos romanos ao vale do Tejo, adquirido uma posição de destaque no que se refere à produção artesanal. De facto se o fabrico de ânforas parece ser um dado inquestionável, o mesmo se pode dizer para o de artefactos de vidro, havendo evidências, ainda que indirectas, da sua produção local. Com efeito, a extraordinária abundância, rara e excepcional, de contas de colar de vidro azul, algumas com deficiências de fabrico e outras ainda inacabadas e a existência de escória de vidro obrigam a colocar esta possibilidade.

Para além das cerâmicas e dos vidros, devem também mencionar-se alguns metais, de que se destaca um pendente de bronze em forma de sanguessuga, que deve ter feito parte de um colar de tipo xorca (Fig. 10). Os dados actualmente existentes sobre a Idade do Ferro do Porto de Sabugueiro permitem ainda outro tipo de considerações, que se prendem com as diversas actividades funcionais da área em análise. As informações recolhidas junto da população local dão notícia da descoberta de urnas tapadas com tigelas ou pratos, o que indicia a presença de uma necrópole, certamente de incineração, não sendo improvável que seja nesse ambiente que os escaravelhos tenham tido origem. Será presumivelmente também com essa mesma necrópole que podem relacionar-se algumas das contas de colar, concretamente as oculadas, e ainda o pendente de bronze em forma de sanguessuga, ainda que saibamos que quer estes quer aqueles podem ser recolhidos em contexto habitacional.

5. O Período romano republicano

A existência de uma ocupação tardo-republicana na área de Muge foi sugerida, pela primeira vez, por Jorge de Alarcão, numa breve referência, na sua obra de síntese Portugal Romano. “No local das Villae do Porto do Sabugueiro (Muge) (…) recolheu-se cerâmica campaniense que atesta uma ocupação anterior ao século I a.C.” (Alarcão, 1987, p.115).

Os recentes trabalhos de prospecção e escavação permitiram comprovar esta proposta, tendo sido de-

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tectada uma impressionante ocupação de época romana republicana, com uma forte e precoce influência itálica.

A análise dos dados de superfície, e em particular da dispersão dos elementos cerâmicos, leva a con-siderar que as ocupações proto-histórica e romano-republicana apenas se sobrepuseram parcialmente. Com efeito, a última estende-se preferencialmente para norte, para área que se integra já no território do concelho de Almeirim, enquanto a primeira se desenvolveu a Sul, nas proximidades da actual povoação.

Ao contrário do que aconteceu na campanha de 2013, a escavação concretizada em 2010 permitiu identi-ficar contextos preservados, neste caso negativos. Correspondem a uma fossa detrítica de perfil e secção ovalada, cujos materiais recolhidos no seu interior permitiram datar do século II a.C. (Pimenta e Mendes, 2013). Infelizmente, em 2013, não houve oportunidade de detectar quaisquer níveis primários de de-posição, ainda que o espólio que, desta época, se recolheu seja muito abundante.

A análise dos dados permite afirmar a precocidade da presença itálica no local, confirmando os dados de outros sítios do vale do Tejo.

Ainda que, maioritariamente, se trate de recolhas de superfície, as evidências são coerentes e homogéneas, encontrando paralelos nas associações atestadas em Lisboa, (Pimenta, 2005) e nas recolhas de superfície levadas a efeito nos Chões de Alpompé (Fabião, 1989, Diogo, 1993, Diogo e Trindade, 1993).

Os materiais que atribuímos a esta fase são compostos essencialmente por inúmeros fragmentos de ân-foras, a par de alguns de cerâmica campaniense A (Fig. 11). Entre as ânforas, dominam, de forma esmaga-dora, os contentores destinados ao transporte do vinho itálico, estando atestados os tipos greco-itálico e Dressel 1. Os preparados piscícolas estão representados por ânforas do tipo Mañá C2b, produzidos na área do estreito de Gibraltar (Fig. 11).

A cerâmica de mesa inclui, como já referimos, vasos de verniz negro importado da Etrúria, bem como copos e taças destinadas a beber, também com origem na costa tirrénica da Península itálica.

Outras cerâmicas, de produção local e/ou regional, enquadráveis entre a fase final da Idade do Ferro e o início do período romano-republicano, completam o quadro formal identificado, concretamente vasos de armazenamento (grandes potes) e outros usados à mesa (jarros e tigelas), mas também na cozinha, para preparar alimentos (Fig. 12).

Os espólios metálicos estão representados por elementos associados à presença militar romana, como é o caso da glande de chumbo recuperada, idêntica na forma e nas características de produção às reconheci-das no Alto dos Cacos, em Almeirim (Pimenta, Henriques e Mendes, 2012) (Fig. 10).

Sabemos, por outro lado, que os “detectoristas”, que, infelizmente, actuam na área de forma continuada,

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têm vindo a recolher um abundante espólio numismático, de chumbo, bronze e prata, havendo referên-cias orais a numerosas moedas de época republicana, algumas das quais encontradas conjuntamente, permitindo equacionar a existência de “tesouros”.

Em trabalhos anteriores, foi também identificado um exemplar de uma tessera de Ossonoba, de chumbo, cuja cronologia aponta já para um momento consideravelmente avançado desta época (Batata e Gaspar 1993).

O real significado desta ocupação romana tão precoce e com um quadro de importações tão vincada-mente itálico merece discussão, quer no seu contexto estritamente local, quer num outro, mais amplo, o do vale do Tejo.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que os materiais republicanos incidem maioritariamente em área desocupada durante a Idade do Ferro o que indicia uma ocupação diferenciada do ponto de vista cronológico. Por outro lado, o espólio identificado apresenta-se bastante coerente no que diz respeito à datação, apontando para uma ocupação maioritariamente centrada na segunda metade do século II a.C., que é compatível com os movimentos militares atestados pelas fontes clássicas para esta área do Vale do Tejo, onde, segundo Estrabão, se teria implantado o quartel general do General que ficaria conhecido como o Galaico, Décimo Júnio Bruto.

Assim, tudo indica que o Porto do Sabugueiro, não sendo um sítio estritamente militar, esteve certamente relacionado com a conquista e romanização desta área do território actualmente português, podendo ter funcionado como porto onde se descarregavam os produtos que abasteceram os exércitos, que, nesta margem do Tejo, se encontravam instalados no Alto do Castelo em Alpiarça. De facto, os espólios recol-hidos apontam neste sentido (maioria de importações, quase total ausência de cerâmicas de tradição local), e desaconselham considerar a hipótese de estes materiais puderam corresponder a um processo de romanização da população que neste mesmo local habitou e se enterrou durante a Idade do Ferro. Pelo contrário há fortes indícios de que o grupo humano que estava estabelecido em Porto do Sabugueiro no século II a.n.e. era constituído, maioritariamente, por indivíduos itálicos ou pelo menos oriundos de áreas já plenamente romanizadas.

6. Porto do Sabugueiro - Uma Villa ou um Vicus portuário?

A existência de vestígios significativos de época romana nas imediações da localidade de Porto do Sabu-gueiro, e mesmo sob o actual aglomerado piscatório, é uma realidade conhecida na literatura da especial-idade desde meados do século XX.

Já tivemos oportunidade de referir que as primeiras referências publicadas sobre as ocupações antigas remontam a meados dos anos cinquenta, quando Mário de Saa, na sua obra sobre as vias da Lusitânia

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refere: “No Porto Sabugueiro, 5 km, acima, há, nas barreiras do Tejo, importantes vestígios de povoação romana, visíveis na margem esquerda e, sobretudo, quando as enchentes do rio as revolvem. Mostram-se, então, bancadas de entulho, vasos cinerários, moedas romanas, (que andam aí, nos bolsos de toda a gente), telharia de tegula e imbrex, fornos de aquecimento, com as suas grelhas, canos de alvenaria (…)”(Saa, 1956, p. 160).

Posteriormente, em Março de 1960, aquando da cava para plantação de uma vinha, foram descobertos vários materiais romanos nos terrenos pertencentes à Casa do Cadaval, sobressaindo desta descoberta um pavimento de mosaico (Oleiro, 1960-61, p. 290). Na sequência deste achado, o sítio foi alvo de uma visita pelo Dr. Bairrão Oleiro. O Professor de Coimbra dá-nos nota da sua visita, num artigo dado à estampa na Revista Conímbriga, fornecendo mais algumas informações acerca da cronologia deste sítio: “Em diversas ocasiões se haviam recolhido materiais romanos no Porto do Sabugueiro, materiais esses que podem admirar-se em vitrinas no palácio do Cadaval, em Muge: fragmentos de ânforas, pondera de barro, suportes triangulares de cerâmica e algumas moedas dos séculos III e IV d.C.” (Oleiro, 1960-61, p. 290e 291).

O mosaico, então colocado a descoberto, era visível numa área de cerca de cinco metros quadrados. Da análise que o Dr. Bairrão Oleiro então efectuou, ficou-nos o registo fotográfico e a sua descrição, bem como a sua classificação como um pavimento musivo de época tardia, possivelmente de finais do século III d.C. (Oleiro, 1960-61, p. 293).

Em 1963, o Professor Doutor Jorge de Alarcão efectuou sondagens arqueológicas no local, com o objecti-vo de averiguar o grau de importância e conservação do sítio romano (Alarcão, 1987 e Cardoso, 1990, p. 153). Nestes trabalhos, o mosaico foi posto a descoberto integralmente, tendo sido detectado o resto de um forno de cerâmica, a cerca de duzentos metros para jusante deste. Na sequência desta campanha, o sítio foi classificado como uma villa Romana (Alarcão, 1987), villa essa, que em meados do século I d.C., teria uma área de produção oleira com alguma dimensão (Cardoso, 1990).

Sobre as suas produções cerâmicas, em especial, ânforas e cerâmica comum, foram já publicados dois estudos que permitem supor o dinamismo deste centro oleiro entre, pelo menos, os meados do século I e o século II d.C. (Cardoso, 1990; Cardoso e Severino, 1996).

Não deixa de impressionar a quantidade e diversidade de materiais de época imperial recuperados no Porto de Sabugueiro, quer de produção local quer importados, bem como as referências várias a colunas de mármore, pavimentos de opus signinum, e a um mosaico. Infelizmente, a intensa actividade agrícola não permitiu a conservação do sítio, e impede ainda hoje quaisquer trabalhos arqueológicos de maior dimensão, em termos de área. Daí que a definição de uma tipologia para o sítio não seja uma tarefa fácil, mas a de porto fluvial parece ser a mais apropriada, não tanto pela conversação do topónimo, mas so-bretudo pela localização e implantação topográfica.

47Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Sendo manifestamente impossível apresentar aqui um qualquer estudo mais detalhado sobre o conjunto dos materiais deste momento de ocupação, resta-nos recordar a presença, em várias instituições e ainda no terreno, de um apreciável conjunto numismático datado dos séculos III e IV, de terra sigillata itáli-ca, sud-gálica, hispânica e africana (Fig. 13), de ânforas, de produção local e importadas, de cerâmica comum, de pesos de rede e de tear, de fíbulas, de lucernas (Fig. 14), associado a abundante material de construção, nomeadamente tijolos de quadrante, imbrice e tegula.

Por último, deve chamar-se a atenção para a recolha recente e à superfície de um triente visigótico de ouro, do rei Wamba (672-680), cunhado em Mérida que foi depositado no Museu Nacional de Arqueo-logia. Encontra paralelos no n.º 479 do Corpus Nummorum Visigothorum (Vico Monteoliva et al. 2006, p. 486). - Anverso busto de perfil - Reverso Cruz latina sobre três degraus, com a legenda

- † I∙D∙IN∙M∙ EVVAMBA REX - † EMERITAPIVS flor estelizada

7. Considerações Finais

O Porto do Sabugueiro constitui-se como um importantíssimo sítio arqueológico, com uma ocupação humana consideravelmente extensa em área e muito prolongada no tempo. Esta situação resulta, sem dúvida, de um conjunto de factores, factores que podem ter sido ser diversos ao longo da diacronia.

Parece evidente que a presença de indústria microlítica em Porto do Sabugueiro deve relacionar-se di-rectamente com a ocupação que os concheiros de Muge deixaram plasmada, não havendo muito a dis-cutir a seu propósito.

Mais complexa é a situação de referência para a Idade do Ferro. Havendo dados que permitem afirmar uma instalação ex nihilo, resta compreender as suas motivações, não perdendo de vista as características orientalizantes de que se revestem os espólios recolhidos. A implantação ribeirinha e em área plana (ain-da que muito ligeiramente destacada relativamente à planície aluvial envolvente) deve ser sublinhada, até porque não se diferencia, substancialmente, de outras coevas e similares, localizadas em área próxima, na mesma margem do Tejo, nos concelhos de Almeirim (Quinta da Alorna, Alto dos Cacos) e de Alpiarça (Cabeço da Bruxa). Em todos os casos, tudo indica que se privilegiou o controle do rio, via natural de penetração para um interior rico em metais. Ainda assim, não deve esquecer-se que a riqueza agrícola destes terrenos, uma das regiões mais férteis de toda a Península Ibérica, pode também ter tido influência na selecção, quando sabemos que um aumento demográfico significativo teve lugar no início da Idade do Ferro (Arruda, 1999-2000, 2003). No caso concreto do Porto de Sabugueiro, outras vocações podem

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ser tidas em consideração, até porque, através da Ribeira de Muge, se tem acesso à Serra de Almeirim, concretamente a uma área onde são conhecidos diversos vestígios de exploração de ferro. Para além do topónimo há, em Ferrarias, áreas de acumulação de escórias, justamente de ferro, junto das quais existem vestígios romanos.

Assim, a fundação do Porto de Sabugueiro nos finais do século VII / inícios do VI a.n.e. poderá estar vin-culada, também, a uma área portuária, por onde se escoariam metais e produtos agrícolas, estes últimos com origem na área circundante. Um porto fluvial que ganhou importância e terá justificado também a sua relevância em momentos mais tardios, de época romana.

Estas actividades terão permanecido importantes no decorrer da Idade do Ferro (séculos V a III a.n.e.), mas a elas foram associadas outras, concretamente a produção oleira, de que há apenas testemunhos indirectos (uma forma específica de ânfora, registada de forma muito abundante), e de artefactos de adorno de vidro. Como já antes referimos, as inúmeras contas de vidro, algumas delas inacabadas e com deficiências de fabrico, bem como a existência de escória de vidro, são bons argumentos no momento de defender esta hipótese, cuja fundamentação não passa, infelizmente, pela presença de estruturas inegav-elmente associadas a esta “indústria”.

A vocação portuária manteve-se fundamental na época romana, muito especialmente durante os mo-mentos republicanos. Mas a industrial ganhou peso a partir de meados do século I da nossa era.

O abandono do sítio na Antiguidade Tardia parece evidente, mesmo que um documento medieval refira a existência de uma Torre em Porto do Sabugueiro. Mas a verdade é que a transferência da população para a margem direita da Ribeira de Muge, pode ser defendida, até porque há vestígios de época islâmica no jardim do Palácio da Casa do Cadaval (Gonçalo Lopes, neste mesmo volume). Por outro lado, é a Muge que D. Dinis outorga, em 1304, carta de Foral, o que revela ainda a importância deste último sítio em plena Idade Média, importância que pode estar directamente relacionada com a que herdou do Porto de Sabugueiro (Batata e Gaspar, 1993).

Os autores agradecem à Casa do Cadaval toda a colaboração prestada durante as intervenções arque-ológicas e muito especialmente à Senhora Condessa Dona Teresa Schönborn-Wiesentheid, pela hospi-talidade e amabilidade.

49Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

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51Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Figura 1. Localização de Porto do Sabugueiro no Estuário do Tejo

Figura 2. O sítio arqueológico de Porto do Sabugueiro

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Figura 3. Indústria lítica do Mesolítico

Figura 4. Artefactos de pedra polida

53Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Figura 5. Escaravelho e escarabóide (segundo Pereira, 1975)

Figura 6. Contas de colar de vidro azul

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Figura 7. Ânforas da Idade do Ferro (segundo Sousa e Pimenta, no prelo)

Figura 8. Materiais da Idade do Ferro: ânforas, pithoi e urna Cruz del Negro (segundo Pimenta e Mendes 2008)

55Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Figura 9. Materiais da Idade do Ferro: trípode, taça de engobe vermelho e cerâmica cinzenta (segundo Pimenta e Mendes 2008)

Figura 10. Glande de chumbo de época republicana e elemento de colar de tipo xorca

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Figura 11. Ânforas republicanas itálicas e gaditanas (segundo Pimenta e Mendes 2008)

Figura 12. Cerâmica comum de época republicana de produção local / regional (segundo Pimenta e Mendes 2008)

57Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Figura 13. Terra sigillata itálica, sud-gálica, hispânica e africana

Figura 14. Ânforas e lucernas de época imperial

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59Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Salvaterra de MagosHistória, Toponímia e Geografia de uma “vila nova”

Carlos Alberto Calçada HenriquesProf. de História dos ensinos Básico e Secundário no Agrupamento de Escolas de Salvaterra de Magos

[email protected]

1. Introdução

He o nome desta Terra, Salvaterra de Magos, cujo nome, e cognome, há noticia que o tomou dos feiticei-ros, que antigamente vierão desterrados para esta Terra: porque segundo narrão os mais antigos, herão estas partes umas montanhas, para as quais mandavam os Ministros do Santo Ofício os feiticeiros[…], e como o degredo para esta terra os livrava daqueles Carceres, estes mesmos lhe chamavam terra salva[…] em um citio, a que chamão Magos[…] ficando por esta cauza chamandoce Salvaterra de Magos.1

Quando em 1758 o vigário Miguel Francisco Cerqueira isto escrevia talvez não fizesse ideia de que esta colorida estória faria escola. Os feiticeiros e as montanhas são ingredientes de uma lenda que não escapa à lupa do comum observador, mas parecem perdurar na memória das gentes locais. A procura de signi-ficado para os nomes das localidades gerou algumas explicações, ora populares ora eruditas, que convém desmontar. Advirta-se que a Toponímia, pelo seu carácter muitas vezes popular, é uma parcela do saber em que se introduzem muitos aficionados, eivada de lendas e fantasias, carecendo amiúde de análises mais científicas. Procuraremos uma abordagem que concilie a História, a Toponímia e a Cartografia de molde a desmistificar lendas e enigmas, estabelecendo novas hipóteses e bases de trabalho.

2. Da Toponímia

A Toponímia é o ramo da Onomástica que se ocupa do estudo, no espaço e no tempo, dos aspectos geo-gráficos, históricos, socioeconómicos e antropológicos e linguísticos, que permitiram e permitem que um nome de lugar nasça e subsista. Cabe então a esta ciência contribuir para a construção de uma iden-tidade local, a perpetuação da História e dos valores de um povo, pois os nomes dos locais que encerram a memória de uma vila ou região.

A principal característica dos topónimos é a sua tendência ao arcaísmo. Impostos muitos deles em mo-mentos muito precoces da História, estes nomes representam com frequência verdadeiras relíquias léxi-

1 A.N.T.T. – Extracto do Dicionário Geográfico de Portugal, vol.XXXIII, transcrito em CORREIA, Joaquim M. Silva e GUEDES, Natália

Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos - a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, 1989.

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cas, conservando-se petrificados depois da perda da língua em que nasceu.

Outra característica é a de os topónimos surgirem geralmente da fala popular e rural, criados pelos que frequentam diariamente o campo, como camponeses, pastores e caçadores. Os topónimos estão, aliás, estreitamente vinculados à terra que denominam. Salvaterra de Magos não é excepção.

Partamos da premissa de que cada topónimo tem uma justificação, uma motivação. Tomemos uma lo-calidade: Salvaterra de Magos. Macrotopónimo (designativo de localidade) composto, tem um primeiro elemento determinante, por sua vez composto por um adjetivo e um substantivo, derivando do latim vul-gar “Salvaterra”, que significa literalmente “terra salva” ou “terra segura”. As implicações desta definição prestam-se a leituras variadas, como veremos. O determinativo “de” liga o segundo elemento, locativo, constituído por um substantivo com origem no proto-céltico “Magos”, significado “campo” ou “planície”. Esta é a nossa base de trabalho!

2.1 Antes de Salvaterra…Magos

A presença dos celtas no nosso território é atestada por autores como Heródoto, que os situou para lá das Colunas de Hércules, sendo vizinhos dos cinetes, o mais ocidental dos povos europeus. Avieno, na Ora Maritima, confirma esta tese ao colocar os cinetes no território que é agora o Alentejo e Algarve. Estrabão aponta a região entre o Tejo e o Guadiana como habitada por celtas. Plínio também refere esta região como povoada por célticos. Nas palavras de João e Augusto Ferreira do Amaral “podemos assim concluir que o sul do Tejo e oeste do Guadiana foram área de grande povoamento celta”2, o que não invalida que este povo estivesse espalhado por todo o território agora português. Os mesmos autores referem que “não fossem as notícias históricas sobre os celtas em território português, e mesmo assim a importante presença deles estaria sempre atestada pela abundância dos vestígios linguísticos, particularmente pelos topónimos”3. Note-se que não é incomum na zona em que se inscreve Salvaterra de Magos a presença de celtismos na toponímia como Ierabriga (Alenquer), Caetobriga (Setúbal), Exevregas (Xabregas), Ablan-tes (Abrantes) ou Eburacum(Évora), ou em hidrónimos (nomes de cursos de água) como Carregado (carreg = ribeiro).

2.2 Etimologia de Magos

Não resistimos a fazer uma pesquisa e encontrámos a seguinte definição para o étimo “magos”: magh , planície, campo, Irlandês magh, antigo Irlandês mag, galês ma, maes (magestu-), Cornualhês mês, Bretão maes, Gaulês magos: *magos, mages-, campo, planície, “campo largo”, raiz magh, grande, Sânscrito mahî, a

2 AMARAL, João Ferreira do/AMARAL, Augusto Ferreira do, (1997), Povos Antigos em Portugal. 3 Idem

61Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Terra, mahas, grande.4

Portanto, “Magos” significa campo ou planície. Ao rastrearmos topónimos com “magos” procurámos identificar nomes comprovadamente de raiz céltica. Não foram feitas identificações de outros nomes de localidades ou cursos de água contendo a raiz “magos” no território peninsular, pelo que “Magos” resulta ser a única pervivência ibérica, e aquela mais a sul na Europa. É também notável pois constitui uma for-ma não degradada da palavra original, velha de cerca de 2500 anos.

O levantamento que fizemos permitiu detectar arqueotopónimos no antigo império romano, a maior parte devorados pelo tempo, alguns perfeitamente identificáveis em cidades e vilas atuais da Europa.

Nome romano Significado Nome actual PaísArgentomagus Mercado da Prata Argenton FrançaBardomagus Campo do Bardo Itália

Bodincomagus/m Bodincus (rio Pó) + Planície Monteu dà Po ItáliaBorbetomagus Worms AlemanhaBrocamagus Brumath Alemanha

Caesaromagus Campo de César Moulsham InglaterraCaesaromagus Campo de César Beauvais FrançaCameliomagus Cassino/Redavalle ItáliaCarentomagus Carentan FrançaCassinomagus Chassenon França

Catumagus Campo de Batalha Caen FrançaDurnomagus Dormagen AlemanhaDurnomagus Water Newton InglaterraDuromagus c. Colónia Alemanha

Ex(s)cingomagus Campo de Excingo (homónimo) Exilles/Turim ItáliaGabromagus ÁustriaIuliomagus Campo de Júlio Schleitheim Suiça

Lindomagus Planície/Campo do Lago Limmat SuiçaNoviomagus Batav. Campo/Mercado Novo Nijmegen Holanda

Noviomagus Cantiac. Crayford, Kent InglaterraNoviomagus Lexovi. Lisieux FrançaNoviomagus Nemet. Novo Campo dos Nemetas(tribo) Speyer Alemanha

4 Ver MACBAIN`S DICTIONARY – Gaelic Languages.

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Noviomagus Reginor. Chichester InglaterraNoviomagus Trevir. Novo Campo da tribo Trevirus Neumagen-Dhron,

TrierAlemanha

Noviomagus Tricast. St.Paul Trois Chateaux FrançaNoviomagus Verom. Noyon França

Rigomagus Campo/Mercado do Rei c. Turim ItáliaRigomagus Campo/Planície do Rei Remagen AlemanhaRotomagus Campo/Mercado de Rodas Rouen França

Scindomagus c. Mount Vescules FrançaSitomagus Campo Amplo/Antigo Debeham InglaterraUromagus Campo do Urso Oron-la-Ville/Proma-

sens?Suiça

Vernomagus Campo/Planície de Amieiros Vernon FrançaVindomagus c. Nantes França

Tabela 1: Exemplos de cidades romanas com o sufixo latinizado “magus”

A prova da utilização tardia de elementos mais antigos é-nos fornecida por nomes celto-latinos como “Noviomagus”, onde os elementos célticos serviram para criar nomes de várias cidades fundadas na épo-ca romana. No entanto, a forma latinizada “magus” aparece também associada a cidades ou particular-mente a mercados. Esta transferência de significado e o elevado número de cidades com a raiz “magus” pode refletir a prática romana de relocalizar populações pacificadas e centros socioeconómicos de nú-cleos fortificados para novas povoações abertas.5

Verificámos que “magus” foi um elemento toponímico romano-celta bastante comum, especialmente concentrado nas províncias com maior substrato céltico (Bretanha, Gália, Bélgica, Récia, Panónia). Re-gistamos alguns derivativos de “magos” como o topónimo “Meggingen”,actualmente Möggingen, cidade-zinha nas margens do lago Constança, na Alemanha, não muito longe do rio Neumagen (Campo Novo?), que discorre na Floresta Negra. Outros derivados são Vacomagi, uma tribo do norte de Inglaterra, po-dendo também significar campo vazio, ou Magiovinum, tal como em Vindomagus.

Os autores6 descritos por David Aldred confirmam a derivação  ‘magus’ da palavra irlandesa magh, signi-ficando uma planície ou um campo. Foram assim inventariados na actual Irlanda, onde ainda se fala um idioma celta, mais de uma centena de topónimos envolvendo  maes – pronunciado mā, que é a mesma palavra em galês e bretão. Eis alguns deles:

5 ALDRED, D.E., (2008), Debenham – The Early History.6 Alfred Holder listou 89 nomes, dos quais 27 têm “magos” como sufixo.

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Topónimo SignificadoMaghanaboe Campo/prado de ordenhar a vacaMagharees Planícies/ ilhas planas

Maghanlawaun Campo de ordenha do ElmoMagheracar Planície de CarroçasMagheraclay Planície de Obstáculos

Magheranageeragh Campo de OvelhasMagherakill Planície da Floresta

Magheranraheen Planície do Forte PequenoMagherashanvally Planície da Velha CidadeMagherintendry Planície do Velho Druida

Magho Campo de Ordenha do Teixo

Tabela 2: Topónimos irlandeses com elemento maes

Neste estudo são também apresentados alguns nomes de povoações galesas com o elemento ‘maes’, nunca isoladamente mas igualmente com uma descrição como em Maesfeln, Prado do Moinho, ou Maes-mawr, Grande Prado.

Concluíndo, também na Lusitânia, província romana habitada por tribos céticas ou celticizadas, se verifi-ca o elemento “magos”, conservado inalterado no Baixo Tejo através do período visigótico e muçulmano, obscuro para a historiografia até voltar a ressurgir já no final do século XIII, como veremos adiante.

3. Salvaterra

3.1 Conjuntura anterior às Salvaterras

Durante a Alta Idade Média a Europa experimentou um clima ligeiramente mais quente do que o período anterior e o seguinte7. As temperaturas de Verão eram mais elevadas que as atuais. Os Invernos eram ain-da mais amenos. Este facto verificou-se devido à mudança de posição das correntes quentes e da circula-ção do ar sobre o Atlântico. As consequências para a Europa não podiam ser melhores: as colheitas eram boas e a população aumentou rapidamente. Milhares de hectares de floresta foram talados e os campos expandiram-se. Associada ao aumento dos homens, registou-se um aumento na fundação de novos nú-cleos urbanos. Contrariamente à crença generalizada de que a fundação de vilas e cidades na Idade Média

7 O chamado Optimo Climático Medieval, Seguiu-se-lhe a Pequena Idade do Gelo.

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decorreu de um processo espontâneo, de crescimento “natural”8, certo é que após o século X um enorme número de cidades foram fundadas ex nihilo. Estas novas cidades e vilas foram fundadas ao longo de toda a Idade Média, mas a maioria foi criada entre os séculos XII e XIV (ver gráfico 1).

\s

Gráfico 1: Fundação de cidades na Europa, em Fernand Braudel, O Tempo do Mundo, Lisboa Ed.

Senhores feudais, laicos ou eclesiásticos tentaram fundar estas “vilas novas” nas suas propriedades para aumentar o seu poder económico, político e militar. Os colonos foram atraídos por vantagens fiscais, económicas e judiciais, concedidas pelo senhor fundador. Apesar destas vantagens, muitas destas vilas não tiveram sucesso9, acabando por desaparecer. Não obstante, o número de fundações foi tão elevado que os núcleos urbanos mais do que duplicaram.

Para além do referido crescimento demográfico ocorreu também uma mudança nas mentalidades, pos-sibilitadoras de uma nova percepção da paisagem urbana, sofisticada, por oposição ao espaço rural, ar-caizante. Constituiu igualmente palco para novas actuações e iniciativas do poder político, processo che-fiado em Portugal pelo monarca, que cedo compreendeu as novas modalidades do fenómeno urbano.10

4. Vilas Novas na Europa

A designação “vilas novas” que aqui utilizamos não é mais que uma tentativa de definição de um mov-

8 BOEREFIJN, Wim, 2000, Designing the Medieval New Town.9 Ver PAIO, Alexandra/BRANCO, Ana Maria, trad.,(2007), Vilas Medievais Planeadas de Portugal10 Ver GOMES, Rita Costa, (2003), Castelos da Raia, Vol.II.

65Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

vimento intenso de construção de novas povoações, coincidente com um grande aumento do volume demográfico europeu, anteriormente justificado, que se registou na Europa a partir do século XI e veri-ficado até à passagem para a Idade Moderna. Estes novos núcleos populacionais apresentam, em muitos casos, características comuns como sejam a organização regular das ruas, quarteirões e espaços públi-cos. A atração de novos habitantes estava assegurada através da concessão de isenções fiscais, da garantia de liberdade e de segurança, ideais tão caros ao homem medieval.

Não necessariamente dotadas de estruturas de defesa, as “vilas novas” são produto de iniciativas de do-mínio espacial dos poderes regionais e das monarquias, progressivamente influenciadas pelo Direito romano e ávidas de centralizar o poder. Estas instituições enquadraram a fundação da “vila nova” me-diante documentos fundacionais reguladores do regime jurídico dos vizinhos (“chartes de franchise” no espaço francês, “fuero”, “carta-puebla” ou “foral” nos reinos cristãos da Península Ibérica). Dependendo do contexto espacial, respondem em alguns casos a necessidades de defesa de fronteiras, de ordenamento de territórios que urgia desenvolver e daí sacar proventos, estabilizar estruturas de poder e ainda incre-mentar as atividades económicas, nomeadamente o comércio e o artesanato.

Este fenómeno de colonização e criação de novas povoações é patente em praticamente todo o espaço eu-ropeu, da Ucrânia às ilhas atlânticas, com exemplos notáveis desde a Escandinávia até ao Mediterrâneo. Algumas tornaram-se prósperas e integram hoje o rol das grandes metrópoles europeias (Amsterdão, Bilbau, Helsínquia), outras mal cresceram para além do espaço inicialmente delimitado pelo fundador, outras ainda acabaram por desaparecer.

Mapa 1: Vilas Novas Planeadas na Europa

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Entendamos que o processo de fundação destas vilas assumiu, consoante a região onde se consumou, algumas particularidades, especialmente nas vilas obedecendo a um padrão urbano. Assim, temos no norte de Inglaterra (condado de Durham) as “Green Villages”, levadas a cabo pelas poderosas abadias locais. No âmbito da conquista do País de Gales por Eduardo I, apareceram as “New Towns”, importan-tes bastiões da presença inglesa e ordenadores das populaçãos vencidas. Em França, e desde o século XI, verificamos o aparecimento de modelos de povoamento como as “Salvetats”, os “Castelnaux” e as “Bastides”11, constituíndo a Gasconha a maior concentração de nóveis vilas do continente europeu. Em Itália temos as inúmeras “Villa Nuova”, “Borgofranco” e “Castelfranco”, bem como as planificadas “Terra Murata” na república florentina; Na Europa Central podemos identificar a título de exemplo as Zährin-genstädte (Berna, Freiburg-im-Breisgau, Zurique, Basileia). Sem embargo, o fenómeno de fundação de novas aglomerações é notoriamente extensível ao Mecklenburgo, à Pomerânia (ordem teutónica) e Silésia (territórios alvo de colonização por populações alemãs), no reino da Polónia e na Boémia. Na Península Ibérica as “villas nuevas”, “pueblas” ou “vilas novas” foram criadas em todos os reinos cristãos.

4.1 Burgos, Póvoas e Vilas Novas em Portugal

O conde D. Henrique, borgonhês de origem, não seria estranho ao fenómeno de criação de núcleos urba-nos citado anteriormente. Teve um papel importante na promoção de uma nova classe social – a burgue-sia – até aí inexistente, mediante a instalação de colonos estrangeiros em pontos nevrálgicos da incipiente rede viária de então, embriões do que seriam novas entidades de povoamento denominados “burgos”, criados mediante carta de foral. É dele o de Guimarães (1096). O correspondente do Porto(1123) foi con-cedido pelo bispo D. Hugo. Este esquema foi também adoptado em núcleos menores e mais ruralizados, as “póvoas”, uma hibridização do mundo sofisticado das vilas com o mundo rural, rudimentar. Exemplos são Ponte de Lima (1125) e Castro Laboreiro (1187-1211).12

O esforço fundador neste canto da Península mediou especialmente entre 1245 e 1325, correspondendo aos reinados de D. Afonso III e de D. Dinis. Estas novas aglomerações pautavam-se em Portugal por não revestirem a dimensão alcançada na Gasconha ou em qualquer outro reino ibérico, em que não era inabitual encontrar vilas com mais de 2000 habitantes. Facto é que o reino caracterizava-se no período anterior por uma intensa ruralidade. As cidades eram poucas (nove, coincidindo com sés episcopais) e com áreas reduzidas face às congéneres europeias. As vilas, mais numerosas mas igualmente pequenas, constituíam uma malha urbana que convinha aumentar e consolidar, fixando populações oriundas de povoamentos rurais dispersos, povoando aquelas inexploradas, unificando o território sob a égide do rei. Após a ordenação do espaço, seguia-se uma criteriosa gestão dos domínios realengos para uma arrecada- ção mais eficiente de impostos, aumentando os réditos da Coroa. É também neste período que as “vilas novas” assumem um traçado regular, racional, modelado nas “bastides” francesas. É o caso da “vila nova”

11 Etimologicamente “construção recente ou em curso, de alguma importância”.12 Ver REIS, António Matos,(2002), Origens dos Municípios Portugueses.

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nascida em Magos em 1295.

4.2 Modelo denominativo e propaganda medieval

O velho aforismo latino bonum nomen, bonum omen ‘um bom nome, um bom presságio’ assenta perfei-tamente na estratégia régia de fundação de novos núcleos urbanos. A atribuição de forais revestiu-se da maior importância quer para o senhor outorgante quer para a comunidade que o recebia, partilhando vantagens maiores ou menores, consoante o contexto da região. Não é de menosprezar igualmente o pa-pel desempenhado por estes documentos na captação de novos habitantes face a outras localidades, por vezes do reino vizinho, autênticos instrumentos de competição municipal materializados na concessão de condições óptimas.

Analisemos agora a importância conferida ao acto de nomeação da nova “póvoa”. O acto de “fazer vila”, com todo o cerimonial que lhe estaria associado13, não é menos importante que a escolha de um bom nome para a localidade em formação, pelo que na maior parte das vezes é o fundador que toma para si o “baptismo” do novo assentamento, prestigiante para si aos olhos dos seus vassalos e motivo de orgulho para os povoadores, que vêem o local onde habitam sob patronato real ou senhorial. De facto, numa época caracterizada pela superstição e pelo príncípio da antiguidade e tradição, em que nem sempre o “novo” é positivo, a opção por uma má designação para um local recém-criado pode carrear consequên-cias negativas para o burgo, tornando-o menos atractivo para a radicação de novos colonos e na não per-manência dos já instalados. Urgia portanto criar verdadeiros “slogans” que assegurassem na consciência coletiva dos potenciais povoadores sentimentos de segurança, proteção de uma entidade maior (tempo-ral ou espiritual) e garantias de felicidade. Da análise da toponímia relativa às póvoas e vilas novas portu-guesas despistámos indícios que sugerem um “modelo” denominativo, demonstrativo de uma apetência por nomes sugestivos dos conceitos de fortaleza, alegria, beleza e bondade associados às localizações.

Procedamos a um tentâmen de tipificação destas atribuições de nomes de entidades de povoamento. Em alguns casos a alusão ao fundador e à origem dos povoadores é patente (Vila Boim14, Évoramonte, Proença15, Vila Verde dos Francos). A apropriação do nome de uma cidade ou vila estrangeira ilustre16 verifica-se em Viana de Foz do Lima17, Benavente ou Samora Correia, que também encerra no segundo

13 Ver GOMES, Rita Costa, (2003), Castelos da Raia, Vol.II.14 Originalmente Vila Aboim, fundada por D. João Peres de Aboim, valido de D. Afonso III.15 Forma arcaica de Provença.16 A “polinização” toponímica nem sempre se fez num só sentido. Coincidindo com o abandono do nome Contrasta (substituído por Valença até 1256) aparece nesse mesmo ano em Castela Contrasta, fundada face a Navarra por Afonso X. Os Caminhos de Santiago foram as artérias de excelência para estas e outras trocas culturais. 17 De Vienne, em França.

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elemento o fundador.18 A menção de um acidente topográfico maior potencia a carga sugestiva do local (Montemor, Monsanto), tal como um bom auspício para uma nóvel fundação através da adopção de um santo padroeiro, constando do nome em São João da Pesqueira, São João de Lomba ou São Vicente. O monarca não descurou a oportunidade de cristalizar para sempre o seu poder fazendo referência à ori-gem realenga ao crismar algumas localidades (Monte Real, Vila de Rei). Outras fazem alusão à natureza privilegiada da localização, como as várias vilas francas. Verificamos alguns topónimos designativos de construções militares como Castro Marim, Castelo Novo ou Castelo Mendo, tradutores de fortitude. Temos também topónimos de carácter propiciatório, entendidos como aqueles que “ favorecen la ligazón del hombre com el espacio que habita”.19 A atracção de novos povoadores estava facilitada pela adopção de nomes supondo alegria e qualidade de vida (Alegrete, Portalegre) ou referentes à beleza/bondade da localização (Vila Formosa, Vila Verde dos Francos, Vila Viçosa, Montalegre).

Salvaterra não é na origem um topónimo indiciador de natureza privilegiada visto não se relacionar com a isenção de impostos, antes está vinculado à salvaguarda de uma terra ou limite, defendendo a terra. Pode juntar-se nesta categoria com “Guarda”, “Segura” e “Fronteira”.

Não querendo ser exaustivos, procurámos inventariar algumas póvoas e vilas novas, procurando referen-ciá-las toponimicamente usando a classificação anteriormente proposta:

Nome Tipo Ano ObservaçõesAlegrete Propiciatório 1299

Belmonte Propiciatório 1199Belver Castelo ilustre 1194

Bemposta (Bragança) Defesa de limites 1315Benavente Cidade Ilustre 1200

Campo Maior Topográfico 1260 Ant. MontemaiorCastelo Branco Castelo ilustre 1213

Castro Laboreiro Construção militar 1187,1211Castro Marim Construção militar 1277-1282

Crato C. ilustre 1232Évora-Monte Origem dos povoadores 1271

Fronteira Defesa de limitesGuarda Defesa de limites 1199

Miranda (do Douro) Defesa de limitesMonção Vila ilustre 1258

18 Paio Peres Correia, Grão-Mestre da Ordem de Santiago de Espada.19 Ver GARCÍA SANCHÉZ, Jairo Javier, (2007), Atlas Toponímico de España”, p.291. A classificação dos topónimos por nós apresentada é baseada nesta obra.

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Monforte Topográfico 1257Monsanto Topográfico 1171Montalvão TopográficoMonte Real Alusão ao Rei 1292 Póvoa de Monte Real

Montemor (o-Velho) Topográfico 1212Montemor-o-Novo Topográfico 1203

Nisa Vila ilustre a.1232Pavia Vila ilustre 1287

Portalegre Propiciatório a.1229Portel Topográfico 1262

Póvoa de Lanhoso Vila em “Terra” rural 1292Proença (a-Velha) Origem dos povoadores 1218

Salvaterra (do Extremo) Defesa da fronteira 1229Salvaterra de Magos Limites 1295

Samora Correia C. ilustre e fundador a.1270-1300São João da Pesqueira Alusão a santo padroeiro 1055São Vicente (da Beira) Alusão a santo padroeiro 1195São Vicente da Beira Alusão a santo padroeiro

Tolosa Vila ilustre ou origem 1262Touro Vila ilustre 1220 Act. Vila de Touro,

GuardaVale Florido Propiciatório 1257 Bispo de Coimbra

Valença de Riba de Minho Vila ilustre 1256 Ant. ContrastaViana da Foz do Lima Vila ilustre 1258 Viana do Castelo

Viana-de-a-par-de-Alvito Vila ilustre 1313 Act. Viana do AlentejoVila Boim Fundador Séc.XIIIVila de Rei Alusão ao rei 1285

Vila Franca de Xira Carácter excepcional 1212Vila Nova de Alvito Carácter nóvel

Vila Nova de Cerveira Carácter nóvel 1321Vila Real de Panóias Alusão ao rei 1289 Act. Vila Real

Vila Verde dos Francos Propiciatório e origem 1169Vila Viçosa Propiciatório 1270

Tabela 3: Toponímia das póvoas e vilas novas em Portugal

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Citemos também Manteigas (1220), Proença (a-Nova,1222) e Famalicão (1205), nascidas originalmente como “Vila Nova”. O próprio termo “vila” aporta imediatamente uma mensagem de grandeza e sofistica-ção da povoação.

Em alguns casos a designação inicial não colheu aceitação e foi substituída, como em Vila Flor, Vila Nova de Foz-Côa e Azambuja. Outras localidades não vingaram por oposição dos concelhos limítrofes (Vila Boa de Montenegro), pelo carácter ultraperiférico da sua localização (Santa Cruz do Extremo) ou pelo carácter agreste da implantação (Santa Cruz de Vilariça, Póvoa de Ponte de Panóias).

Nome Tipo Ano ObservaçõesCastro Forte Carácter militar FrustradaCastro Rei Idem e origem real Act. TaroucaContrasta Defesa de limites Act. Valença do Minho

Monforte de Ribacôa Topográfico FrustradaMontalvo de Sôr Topográfico e locativo Frustrada ( c. Benavente )

Póvoa da Veiga de Terra de Santa Maria

Nova vila e locativo 1284 Vila Nova de Foz-Côa

Póvoa de Além-Sabor Propíciatório Act. Vila FlorPóvoa de Ponte de Panóias Nova vila e locativo Frustrada

Santa Cruz de Vilariça Religião e localização FrustradaSanta Cruz do Extremo Religião e localização Frustrada

São João de Lomba Alusão a santo padroeiro FrustradaSão João de Lomba Religião e localização Frustrada

Vila Boa de Montenegro Propiciatório FrustradaVila Formosa Carácter excepcional FrustradaVila Franca Carácter excepcional Act. Azambuja

Vila Franca da Cardosa Carácter excepcional Act. Castelo BrancoVila Melhorada Propiciatório Act. Proença-a-Nova

Tabela 4: Classificação toponímica das póvoas e vilas novas em Portugal: retoponomização e frustração

O poder de nomear vila no reino foi essencialmente prerrogativa do rei e das ordens religiosas-milita-res20, os principais agentes no modelo de colonização após o século XII, introduzindo elementos forâ-neos, securitários e propiciatórios, garantes de prestígio e sucesso nas novas implantações urbanas.

20 Alguns topónimos reportam-se a fortificações da Terra Santa como “Chastel Blanc” e “Belvoir”, resultando em Castelo, e Belver, respetivamente da Ordem do Templo e da Ordem do Hospital. Crato tem origem em Ocrate, o mesmo que em Krak (dos Cavaleiros).

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5. Topogénese de Salvaterra

Não é por acaso que o termo “Salvaterra” é utilizado a partir do século XIII. De facto não topámos com referências documentais à utilização formal de “Salvaterra” prévia ao século XIII21. Maurice Berthe22 atribui a origem onomástica das Salvaterras a Salvetat, o que julgamos não corresponder à verdade visto estas designações decorrerem de realidades históricas diferentes e de apenas partilharem a raiz “salva”. Vejamos…

Salvetat – Imunidade e Terreno Sagrado

A palavra occitana “salvetat”, sinónimo de lugar de asilo,23 designa um modelo de povoamento de origem eclesial que teve o seu ponto alto no século XI, focado especialmente na região francesa da Gasconha. Aqui as instituições monásticas concederam privilégios tais como “salvamentum” ou “salvatio”, sinóni-mos de “munitionem” (imunidade) e “libertas”, fomentando a fixação de populações e o incremento de atividades económicas. Coincide com os movimentos da “Paz de Deus” e da “Trégua de Deus”, consubs-tanciado em locais de asilo, perímetros de refúgio em torno das igrejas, demarcados com cruzes, gozando de isenções fiscais e judiciais, conceitos inicialmente distintos mas progressivamente aglutinados.

A imunidade, tornada sagrada, torna-se assim um instrumento para garantir a paz. O espaço santificado é, consequentemente um espaço seguro (salvo), muito comum na documentação medieval catalã24 onde abundam as expressões “salvatio”, “salvitas”, immunitas”, “securitas”25. Algumas destas “salvetats” conser-vam no seu nome o modelo de povoamento, como verificamos na tabela 5:

SalvetatsL a Sauveté, Loire

La Salvetat, Cantal, domus de Salvitate

La Salvetat, Dordogne, Salvetat

La salvetat sur Agout, Herault, ecclesiam de Salvetas

La Salvetat-Belmontet, Tarn et Garonne

21 Ver NÈGRE, Ernest, (1998), Toponymie Générale de la France: Tome 3.22 Ver BERTHE, Maurice, Nouvelle Approche sur les sauvetés. 23 Ver NÈGRE, Ernest, (1998), Toponymie Générale de la France: Tome 3.24 Encontramos um paralelismo ibérico nas “sagreras” catalãs, aglomerados populacionais gozando de proteção no espaço sagrado de trinta passos em torno da igreja.25 Ver BERTHE, Maurice, Nouvelle Approche sur les sauvetés.

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La Salvetat-Lauragais, Haute Garonne

La Salvetat-Peyralès, Aveyron, Lasalvetat

La Salvetat-Saint Gilles, Haute Garonne

La Sauvetat, Puy de Dôme, Chalvetat

La Sauvetat du Dropt, Lot et Garonne

La Sauvetat-Grasset, Dordogne, Salvitas Grasseti

La Sauvetat sur Lède, Lot et Garonne

La Sauvetat de Savères, Lot et Garonne, de Salvitate

La Sauvetat, Gers, de Salvetate

Lasseubetat, Pyrenées Atlantiques, La Saubetat

Tabela 5: Salvetats

Esta coincidência de conceitos contribui para a confusão na acepção posterior de “Salvaterra”, igualmente percepcionada como local “salvo” de obrigações. De facto não encontrámos qualquer evidência histórica de transferência de denominação de uma “Salvetat” para uma “Sauveterre”26. Da análise destas evidências concluímos que a primeira designação é, primordialmente, um espaço sacralizado, criado pela Igreja, a “salvo” dos abusos e violências senhoriais, verdadeiro móbil e origem denominativa do modelo de funda-ção, tornado obsoleto após a instituição de um poder régio forte, marcando o fim das violências. As isen-ções proporcionadas aos seus habitantes terão gerado nos investigadores modernos, por arrastamento, um significado erróneo de “salvo de taxas”, que não encontra, no entanto, paralelo com a criação de mo-delos posteriores, elas próprias cumuladas com isenções e obedecendo a outro paradigma, o das bastides.

5.1 Salvaterra – Salvar a Terra

Para justificar o carácter político-militar das “salvaterras” teremos de refletir sobre o modo como o Ho-mem medieval conceptualizava a fronteira. Esta era uma realidade materializada em referentes como os castelos, malhões gigantescos do poder real, ou marcos antropo-geográficos ( nomes de presores, cursos de água, cumeadas, árvores, etc), de fácil visualização mas não contribuintes para esbater a imprecisão entre uma zona sujeita a movimentos contrários de expansão, ao sabor da guerra e da paz do momento.

26 Ver NÈGRE, Ernest, (1998), Toponymie Générale de la France: Tome.

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André Bazzana descreve-as como “una región viva y dinámica (atractiva) o vacía y despoblada (repulsi-va): «zona de todos los peligros» o zona donde surge una sociedad nueva.27

No quadro do reino português a formação e consolidação da fronteira, ora face aos andaluzes ora a Leão e Castela, revestiu-se da maior importância na formação do reino, local de grande investimento régio através do estabelecimento de uma linha contínua de fortalezas e entidades de população para ocupação do território.

As salvaterras não correspondem, no entanto, a um modelo de povoamento. São, na verdade, “bastides”, “pueblas” ou “Vilas Novas” partilhando um mesmo nome, nascido este de uma situação estratégico-militar fronteiriça que lhes dá uma feição de salvaguarda de limites, fazendo-as gozar de certos privilégios e de protecção real, sob compromisso de defender a raia. Acentuando essa matriz todas28 são dotadas de fortifi-cações.

Ao questionar-nos acerca da origem do topónimo “Salvaterra”, teremos de remontar ao final do século XII e mudar de reino.

5.2 Castelo de Salvaterra: o arquétipo

A mais precoce referência a “Salvaterra” é constatada em 1196, coincidindo o nome com uma fortaleza que assumiu uma importância que extrapolou largamente as suas características naturais. Estamos a falar do castelo de Salvatierra, situado na actual província espanhola de Ciudad Real. Enquanto baluarte mu-çulmano constituiu um impedimento ao avanço das mesnadas castelhanas vindas da meseta e em direção ao fértil vale do Guadalquivir. Foi conquistado pelos freires da Ordem de Calatrava após livrada a batalha de Alarcos, em Julho de 1195, que se saldou numa terrível derrota para as hostes cristãs. Os cavaleiros fizeram-se nele fortes, montando guarda a um dos principais acessos a Al-Andaluz através de portelas (Despenãperros , Muradal) na Sierra Morena e usando a fortaleza para razzias em terra maometana. As fontes reportam a fortitude da construção e a importância dela para a cristandade. A ordem castelhana de Calatrava, uma vez perdida a casa-mãe (Calatrava-a-Velha) terá mudado o nome para Ordem de Salvatierra, atestando a importância do enclave29. Os incómodos provocados por esta ponta-de-lança de Castela provocam a reacção muçulmana, que resulta na sua tomada por um numeroso e bem equipado exército em 1211, não sem um prolongado assédio.

27 Ver BAZZANA, André,El Concepto de Frontera en el Mediterráneo Occidental en la Edad Media.28 Salvaterra de Magos é a excepção.29 Local de eleição do mestre Rui Diaz, em 1207.

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5.3 Impacto do acontecimento

A conquista de Salvatierra “levantó un autentico clamor de lamentos entre los cristianos y las crónicas se hacen eco de ello”30. A mobilização nos reinos ibéricos foi dramática, reflexo do sentimento de inse-gurança: o Miramolim vinha aí! O rei Afonso VIII de Castela informou o Papa da ameaça islâmica, en-carregando-se este de divulgar para toda a Europa e em especial no sul de França a extensão da invasão e a queda de Salvatierra, apelando a uma cruzada em troca da remissão de todos os pecados. O recruta-mento na Gasconha e Provença foi intenso, mas também extensível a zonas mais a norte de França e até à Alemanha. A invasão é relatada por trovadores e cronistas31 franceses como uma ameaça à França em particular e à cristandade em geral, complementando a propaganda eclesial e assegurando a sua divulga-ção. A posterior exaltação da vitória em Las Navas de Tolosa só vem reforçar a notoriedade da empresa e ajudar a consolidar a memória de um dos episódios da campanha, a perda de Salvatierra e sua posterior reconquista. Este acontecimento operou tão grande impressão na época que se vai traduzir na emulação da fortaleza protetora da fronteira através da fundação de vilas com o mesmo carácter nas regiões do sudoeste europeu.

5.4 Significado de “Salvaterra”

Uma boa definição do porquê da atribuição do nome “Salvatierra” àquela fortaleza dá-nos Al Bayan de Ibn Adhari citado por Amador Ruibal32: “…y la tenían por la defensa de sus casas y el lugar de expia-ción de sus pecados”, emprestando ao local um carácter securitário e de cruzada ideológica contra o in-fiel. A literatura castelhana contemporânea33 dá-nos indícios importantes sobre o significado de “salvar”, associando-o a proteção ou defesa de povoações ou fortalezas em espaço de fronteira da cristandade face ao Islão:

Quiero que lo sepades   luego de la primera,

cuya es la istoria,   metervos en carrera;

es de sancto Domingo   toda bien verdadera,

el que dizen de Silos,   que salva la frontera

30 Ver RUIBAL RODRIGUEZ, Amador, Castillo de Salvatierra.31 O monge Bernard Itier escreveu acerca das centenas de limosinos que participaram na recaptura de Salvatierra. Para esta temática ver DOLAN GOMEZ, Miguel, The Battle of Las Navas de Tolosa: The Culture and Practice of Crusading in Medieval Iberia.32 RUIBAL RODRIGUEZ, Amador, Castillo de Salvatierra33 “Vida de Santo Domingo”, de Gonzalo de Berceo.

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Citando Anthony Lappin34, que traduz um excerto da Crónica Latina dos Reis de Espanha, “O Senhor salvou toda a terra (negrito nosso) através daquele castelo [Salvaterra] de duas razões, porque a chegada do rei de Marrocos não danificou a terra de nenhuma maneira, quando podia provocar grande mal; mais, a captura de Salvatierra foi o principal pretexto para a principal batalha que foi travada no ano seguinte [1212] nas Navas de Tolosa, em que, através do poder da cruz de Cristo, o rei de Marrocos foi derrotado”. Temos, pois, a acepção de “salva” colada a um significado de protecção, neste contexto mediante uma fortificação.

A cruzada peninsular deu renome a Salvatierra e seu castelo, superando fronteiras entre reinos e poden-do ombrear com o nome de algumas prestigiadas fortalezas da Terra Santa como Montfort, Montreal ou Beaufort, também elas inspiradoras de outras fundações europeias como o mesmo nome, um presságio de condições favorecedoras na sua missão: defender uma fronteira.

5.6 Salvaterras espanholas

Elencámos por ordem cronológica de fundação as salvaterras criadas nos reinos cristãos peninsulares, exceptuando Portugal:

Salvatierra 1196 Castelo da Ordem de Calatrava

Salvatierra (de Esca) 1208 Recebeu foral de Pedro I de Aragão, fundando uma “póvoa” forti-ficada na fronteira com Navarra.

Salvatierra (de Tormes) 1215 Repovoada por Afonso IX de Leão entre 1215 e 1217, convertida em cabeça de alfoz e praça-forte do reino frente a Castela, contro-lando igualmente a Calçada da Prata, limite entre os dois reinos.

Salvaterra (de Miño) 1218?

1228?

Não há evidências de adoptar o topónimo até ao século XV, mas é provável que tenha o tenha adquirido ainda no século XIII, no reinado de Afonso IX.

Salvaterra (Castro Opol) 1246 O castelo roqueiro conhecido no século XIII como “castell de Sal-vaterra” domina a actual vila de Opoul-Perillos, no Departamento dos Pirenéus Orientais, França. Esta vila recebeu foral de Jaime I de Aragão em 1246 e constituía o ponto mais a norte daquele reino, enfrentado a França.

Salvatierra - Agurain 1256 Foral de Afonso X, o Sábio, rei de Castela, em localização fronteira ao reino de Navarra

Salvatierra (de Santiago) Séc. XIII Leonesa, existente já no século XIII e na raia com o reino de Caste-la, até 1230, e com os muçulmanos.

34 Ver LAPPIN, Anthony, The Medieval Cult of Saint Dominic of Silos , em que traduz um excerto da Crónica Latina dos Reis de Espanha.

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Salvatierra (de los Barros) Séc. XIII Província de Badajoz, na fronteira com Portugal, a oeste, e com os muçulmanos, a sul. Já existia no século XIII.

Salvatierra de Iraurgui 1311 Actual Azpeitia, fronteira a Navarra.

Tabela 5: salvaterras castelhanas, le onesas e aragonesas

A nossa pesquisa levou-nos ao levantamento no espaço hoje espanhol de mais referências toponímicas respeitantes ao termo “Salvatierra”, a saber os castelos do mesmo nome no município alicantino de Villena, e o homónimo também conhecido como “de Las Cinco Esquinas”, situado no município de Cazorla, província de Jaén. Estes enclaves fortificados estão situados em eminências rochosas, sem po-voação adjacente, actuando como guardas-avançadas e sentinelas de fortificações mais importantes. O primeiro está situado numa zona fronteiriça entre os reinos de Aragão e Castela, integrado no senhorio de Vilhena, um apanágio a cavaleiro entre os dois reinos. O segundo assegurava funções estratégicas de vigilância no contexto do Adiantamento de Cazorla, uma “marca” cristã face ao reino muçulmano de Granada. Associadas ao termo “Salvaterra” podemos acrescentar também adicionar as localidades de Salvaleón, no município de Valverde del Fresno, província de Cáceres, com foral concedido por Afonso IX de Leão em 1227. O povoamento fracassou devido à excêntrica localização, junto ao “limes” com Portugal. Estava já despovoada no século XV. Também Salvaleón, na província de Badajoz, perto da fronteira com Portugal e, na primeira metade do século XIII, na raia com os muçulmanos do reino de Sevilha. Não possuímos para esta vila informação fidedigna para a Idade Média mas podemos aventar uma origem precoce para esta povoação, contemporânea da conquista de Badajoz (1230). Contêm estas duas localidades o elemento “León”, reino integrado em Castela nesse mesmo ano. Estes últimos exem-plos reforçam a nossa convicção de um marcado carácter fronteiriço e de defesa contidos no elemento “salvaterra”.

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Mapa 2: Salvaterras do Sudoeste europeu ( séc. XII-XV)

6. Salvaterras portuguesas

A ocorrência mais antiga em Portugal é a de Salvaterra, hoje “do Extremo”, distrito de Castelo Branco. Encontra-se a guardar um vau no rio Erges, que desde o século XII é fronteira entre Leão e Portugal. Desde 1165 que a região se enquadra numa zona de forte presença da Ordem do Templo. Recebeu carta de foral de D. Sancho II em 1229, confirmada em 1310 por D. Dinis. O castelo terá sido reconstruído no reinado de D. Afonso III. A sua cerca urbana foi reconstruída por D. Dinis em 1290, o que denota uma atenção em prover esta localização estratégica de mecanismos de defesa. Confronta o castelo de castelha-no-leonês de Peñafiel, da Ordem de Alcântara.

O nascimento35 da “vila nova” de Salvaterra de Magos inscreve-se numa estratégia dionisina de moderar movimentações de poderes concelhios e oligárquicos numa região extraordinariamente fértil e por isso disputada, A acção do rei foi traduzida na atribuição do foral de 1295.36A localidade apresenta uma orga-nização regular das ruas, quarteirões e espaços públicos, inspirada nas “bastides” francesas.

35 Existiria já um povoamento disperso identificado documentalmente como “Magos”, nas margens da Ribeira do mesmo nome e loc-ativo do paúl, objecto de atenção do rei Dom Dinis.36 Para esta temática ver VILAR, Hermínia Vasconcelos, (1997). Em Torno do Foral de Salvaterra de Magos: Génese de um Concelho.

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6.1 Problemática

Algumas características de Salvaterra de Magos parecem aqui divergir do que temos vindo a enunciar. Aparentemente não foi murada37, e não se encontrava implantada em espaço de oposição entre dois reinos38. Quanto ao primeiro aspecto, nesta vila constata-se uma das mais tardias ocorrências do nome “salvaterra”, o que pode justificar a não associação a um espaço cercado de muralhas ou afortalezado pela distância temporal face ao acontecimento primigénio, a tomada do castelo de Salvatierra, ficando apenas a componente simbólica do nome. Quanto à não localização em espaço de fronteira, o teor propagan-dístico do nome pode também providenciar a explicação da atribuição de um nome sonante para um investimento da Coroa.

Não consideramos credível a alocação do nome Salvaterra por ser vila “salva” de obrigações como o de hoste, fossado, jugada e relego. A situação de isenção destes encargos não é excepcional no panorama fo-raleiro português e pleno de exemplos ainda mais benéficos para os moradores39. O documento salvater-rense inscreve-se numa família de forais (Coimbra/Santarém/Lisboa) que, como escreve António Matos Reis “tirando as pequenas comunidades agrárias da terra de Panóias e arredores, os forais do grupo de Lisboa são aqueles em que mais árduo se revela o fardo tributário”.40

Consideramos que a nomeação desta vila decorreu da simples opção por um nome com conotação his-tórica prestigiante e agradável, captando novos povoadores e proporcionando orgulho de nela viver. Ao outorgar o foral, Dom Dinis não estabeleceu apenas obrigações e direitos aos moradores de Salvaterra, escolheu um “bom” nome para a sua póvoa.

6.2 Salvaterras francesas

As salvaterras41 francesas nasceram todas42 posteriormente à tomada da fortaleza castelhana de Salvatier-ra em 1211, facto que associamos ao profundo impacto desse acontecimento na região, origem da maior

37 A arqueologia, pouco desenvolvida no espaço da vila, poderia dar-nos essa confirmação.38 Não é de excluir a possibilidade das disputas registadas pela posse das terras entre conventos, ordens militares, concelho e senhores.39 Alguns forais eram excepcionalmente favoráveis, como os da família de Zamora, comuns no nordeste do reino. Hermínia Vilar cita Rosa marreiros que regista obrigações mais vantajosas para os moradores de Muge.40 REIS, António Matos,(2002), Origens dos Municípios Portugueses, p.229.41 NÈGRE, Ernest, (1998), Toponymie Générale de la France: Tome 3.42 Não nos foi possível atribuir um carácter militar às seguintes salvaterras francesas: Sauveterre, perto de Avinhão; Sauveterre-de-Comminges, no Alto Garona; Sauveterre, departamento de Gers; Sauveterre, departamento de Lot et Garonne; Sauveterre, Altos Pi-rinéus; Sauveterre, Tarn,/ Sauveterre, Tarn et Garonne. São todas datáveis dos séculos XIII e XIV e originalmente grafadas “Salvaterra ou Salva Terra”, de acordo com Ernest Nègre.

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parte dos cruzados ultrapirenaicos que acorreram em auxílio do citado castelo. Todas são também fortifi-

cadas, e todas elas nascidas no contexto das rivalidades entre Capetos e Plantagenetas. Assim, Sauveter-re –de- Rouergue foi fundada em 1281 por Guilherme de Vienne, senescal do rei de França Filipe III; Sauveterre-de-Béarn, fundada pelo visconde de Bearn numa implantação estratégica entre o ducado de Aquitânia e a França, para além de importante etapa no Caminho de Santiago; Sauveterre-de-Guyenne, nascida em 1281 do desejo do rei Eduardo I de Inglaterra que decide construir uma cidade fortificada frente ao reino de França; finalmente, Salveterre – la Lémance. Em 1282 o rei de Inglaterra Eduardo I ordenou a construção e fortificação desta vila junto à fronteira com o reino de França.

6.3 Salvaterras italianas

O topónimo “Salvaterra” existe em Itália. No norte do país são identificáveis duas localidades: Salvaterra, pequena localidade da comuna de Badia Polesine, província de Rovigo, e Salvaterra, fracção da comuna de Casalgrande, província de Reggio Emilia, assim chamada após o século XIII e dotada de castelo. Existe uma fortaleza de “Salvaterra” em Forlimpopoli, construída entre 1360 e 1365 a mando do Cardeal espa-nhol Albornoz, numa zona de fronteira dos Estados Pontifícios, bem como uma “Torre Salvaterra” na cerca urbana de Fidenza, na actual província de Parma, erguida para proteger a comuna dos ataques de Parma no contexto da lutas com Piacenza. Verificámos igualmente a presença do “Castello di Salvaterra”, comuna de Iglesias, província de Cagliari, na Sardenha. A fortaleza estava na raia do Reino da Sardenha com o julgado independente de Arboreia. Cremos ser este último exemplo um transplante de influência ibérica dado o domínio da ilha pela coroa aragonesa iniciado em 1297.

7. Conclusão

O apelativo “Magos” é muito antigo, prévio à ocupação romana, chegando aos nossos dias sem adultera-ção, refletindo a vitalidade do léxico no passado e confirmação surpreendente da estabilidade da toponí-mia até a actualidade.

Pudemos concluir que as “Salvetats”, originadas no contexto da “Paz de Deus”, de origem eclesial, não estão na origem do topónimo “Salvaterra”. As localizações medievais com este elemento são, na maioria, de iniciativa régia e com propósitos de defesa de fronteira, definindo o topónimo.

Para além de se constatar um hiato temporal entre o período de fundação das primeiras e a ocorrência das segundas, são paradigmas ( imunidade, espaço sagrado vs protecção militar de fronteiras) distintos na natureza. Podemos, no entanto, descortinar uma semelhança nos dois modelos: a concessão de privi-légios aos seus moradores (no que não se distingue de outros modelos de povoamento medieval).

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A vila de Salvaterra de Magos constitui um exemplo excêntrico pois é “Salvaterra” não por estar numa fronteira, não por usufruir na sua génese de condições óptimas de salvaguarda dos seus moradores, mas por constituir um nome prestigioso, apelativo, escolhido por um monarca conhecido pelo “bom gosto” na nomeação das suas vilas de nova feitura.

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Salvaterra na Idade Média (reflexões sobre alguns documentos medievais)

João António Mendes NevesMestre em História da Idade Média (FLUC)

Professor de História do 3º ciclo e secundário [email protected]

1. Introdução

O presente trabalho1 pretende lançar um olhar sobre a medievalidade da vila de Salvaterra de Magos e seu termo2. Iniciaremos este percurso no reinado de Dinis que outorgou o primeiro foral a esta povoação, em 1295, até D. Manuel que lhe deu o foral novo, em 1517. Nestes quase 250 anos de história apresentaremos alguns documentos que irão elucidar sobre algumas das características espaciais, humanas, sociais, eco-nómicas e institucionais de então.

Para nos ajudar a compreender melhor a organização do espaço é importante ter em conta que Salvaterra de Magos situa-se no coração da lezíria ribatejana, na margem esquerda do rio Tejo, a meia distância de Lisboa a Santarém. As descrições medievais e algumas representações gráficas modernas3 sugerem-nos que o rio Tejo passava mesmo junto da povoação. De notar que Salvaterra era para aqueles que subiam o rio Tejo a primeira terra na margem sul que não pertencia às ordens religiosas e militares, era também uma forma de aceder à planície alentejana.

Na região podemos encontrar diferentes tipos de paisagens naturais, associadas ao rio: o paul e as vár-zeas, a lezíria, as adémias e as charnecas.

Os pauis e as várzeas correspondem a zonas de terrenos muito férteis e frescos, frequentemente alagados, localizados nas proximidades dos principais cursos de água- rio Tejo, ribeira de Magos e rio Sorraia-, a drenagem das águas nem sempre era eficaz, permitindo a proliferação de mosquitos e de algumas doen-ças a eles associadas, como as “sezões” (a malária).

1 Este artigo tem na sua origem um trabalho intitulado Salvaterra Medieval, apresentado em 2003 no seminário Senhores e Camponeses, regido pela Professora Doutora Maria Helena da Cruz Coelho, no âmbito do mestrado em História da Idade Média, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.2 Sobre este tema veja a publicação O Foral, n.º1, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 1997, particularmente os artigos de Her-mínia de Vasconcelos VILAR “Em torno do Foral de Salvaterra de Magos: a génese de um concelho”, e de José Manuel VARANDAS “Salvaterra de Magos um concelho medieval nos finais do seculo XIII”.3 Ver Carte nouvelle de la partie septentrionale du Royaume de Portugal et des Algarves…, de Pierre MORTIER, 1680; ou Mappas das provincias de Portugal…, J.S. CARPINETTI, Imp. Francisco Manuel, 1762.

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As lezírias, do árabe al-jazira que significa a “ilha”, são planícies aluviais formadas pela acumulação de sedimentos durante milénios, correspondem a uma faixa de 5 a 8 quilómetros ao longo do rio Tejo. Área com pouca altitude, facilmente inundável na época de cheias.

As adémias estão para lá das lezírias e da linha das cheias, correspondem a terraços arenosos e a terrenos menos férteis que os anteriores.

As charnecas estão mais afastadas do rio Tejo, com uma orografia acidentada, são dominadas pela densa vegetação arbustiva do tipo mediterrânico e pelos sobreiros. É possível encontrar no meio da charneca algumas clareiras.

2. O Reguengo do Paul de Magos

Nos finais do século XIII, o concelho de Santarém estendia-se pela margem esquerda do rio Tejo e o seu termo chegava aos concelhos de Coruche e de Benavente, ambos pertencentes aos freires de Évora, comumente conhecida como a ordem de Avis. Certamente que os férteis campos no limite do concelho escalabitano tinham muitos pretendentes, inclusive o rei. Nesse contexto, em março de 12944 os repre-sentantes do concelho de Santarém: o alcaide Estevão Peres Lobato, os alvazis João Martins Trovador e Giraldo Marques e os procuradores do concelho Rui Pais e João Fernandes doaram a D. Dinis o Paul de Magos. Esta doação ao rei levantou grandes problemas ao nível das confrontações do Paul de Magos. Em 19 de junho de 1294 Martim Farpado, Domingos Rostro, Vicente Vidal, Pedro Domingues, Afonso Do-mingues, Domingos Martins, João Eanes e respectivas esposas que tinham uns “herdamentos” no Campo de Sacarabotão e reclamam na corte que os mesmos “deviam a ir pelo Paul de Magos adeante ata cima”5, prática que possivelmente já existia. O monarca ouvindo o seu procurador foi informado que “o Paul de Magos de lo porto d’Alcaçar a acima contra Culuchi era do concelho de Sanctarem”. Ouvidas as partes o rei estipulou a sua posse do “dicto paul de la aberta velha que se começa cabo da Ademha dos dictos herdado-res contra Sanctaren e como se vay ao porto d’Alcaçar. E todo o paul acima ficar a mim livre e quite sen toda contenda. E de la aberta velha a fondo contra Tejo ficar aos sobreditos herdadores”6. Apresentam-se aqui elementos muito interessantes que nos permitem compreender a dimensão do Paul, que este começava numa zona de adémias, estava entre o Campo do Sacarabotão7 e o concelho de Santarém, subia desde do

4 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls. 75-75v , transcrito no documento 1.5 Doc. 1.6 Doc. 17 O Campo do Sacarabotão tem uma localização muito imprecisa, contudo é possível afirmar-se que ficavam entre o Paul de Magos e Salvaterra, próximo do Tejo e das adémias aí existentes- área dos atuais “campos de Salvaterra”.

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porto do alcácer8, certamente próximo do Tejo, em direção a Coruche. O documento informa da existên-cia de uma “aberta velha”, uma vala já antiga no reinado de D. Dinis, que marcava um dos limites do Paul, os campos que estivessem entre ela e o Tejo ficariam para os que reclamantes. Esta “aberta velha” terá resultado da necessidade de escoar as águas paradas que se acumulavam no Paul de Magos e terá sido a antecedente da atual Vala Real que dá continuidade à Ribeira de Magos e permite a drenagem da área do paul de Magos e dos campos de Salvaterra.

Nesse mesmo dia, uns vizinhos que tinham uns “herdamentos” nas adémias entre o Paul de Magos e Benavente9 e outros que tinham “herdamentos” nas adémias entre o Paul de Magos e o concelho de San-tarém10 reclamavam direitos no referido Paul. Direitos que não são reconhecidos pela corte, a qual obri-gava esses reclamantes a darem “carreyras certas e sabudas convenhaves”11, ou seja passagem àqueles que fossem ao Paul de Magos. Estes dois documentos, informam-nos que a propriedade régia ficaria assim limitada pelas abertas a que o monarca se obrigava a fazer.

Como vemos a doação do Paul de Magos ao rei veio destabilizar a vizinhança, acabando com os abusos vicinais e revelando a incapacidade que o concelho de Santarém tinha em resolver as questões de pro-priedade latentes na zona do Paul de Magos. O rei assume a posse do referido paul e as contendas são resolvidas, confirmam-se os direitos régios, ficando os respectivos terrenos livres de qualquer direito ou obrigação como seria o dar serventia para outros terrenos.

8 A palavra “alcácer” aplica-se a povoados, estruturas fortificadas ou qualquer outra construção, possivelmente aos “concheiros” exis-tentes no Paul de Magos. Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram…, Lisboa, A. J. Fernandes Lopes 1865, vol., pág. 469 Ver documento 3: em 19 de junho de 1294, a Corte confirma os direitos régios nas adémias junto do concelho de Benavente, em det-rimentos das pretensões de Geralda Afonso, Martim Martins, Domingos Peres e Maria Domingues (A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls.84v-85).

10 Ver documento 4: em 19 de junho de 1294, a Corte confirma os direitos régios nas adémias junto do concelho de Benavente, em det-rimentos das reivindicações das pretensões Martim Soares, Afonso Domingues, João Eanes, Vicente Vidal, João Ascenso e respectivas mulheres (A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls.85-8511 Doc. 3.

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Mapa 1: Salvaterra na Idade Média

3. Carta de Foral de 1295

Após a contestação inicial, os direitos régios foram-se consolidando no Paul de Magos. No ano seguinte, precisamente em 1 de junho de 1295, D. Dinis deu Carta de Foral aos habitantes e povoadores de Salva-terra de Magos1. Infelizmente o documento original perdeu-se, apenas nos chegou o traslado existente no segundo livro da chancelaria dionisina. Além do conteúdo que será analisado, este documento deveria ser um belo exemplar da chancelaria régia: de pergaminho de boa qualidade, com uma escrita gótica es-correita e de agradável leitura, abrindo com uma letra capital vermelha, apresentaria uma mancha gráfica homogénea e com boas margens, na parte inferior do documento veríamos em quatro colunas as assina-turas autografas dos grandes do reino, dos principais elementos da nobreza e do clero. Por fim, apenso numa dobra inferior estaria pendente um trancelim de seda ou de linho com um selo régio de chumbo.

O traslado permite-nos verificar que o diploma abre com um protocolo inicial típico: uma invocação “En

1 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, Doações, livro II, fls. 104-104 v , transcrito no doc. 5.

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nome de Deos amen”2, um endereço, onde se identificam os destinatários, “sabham quantos esta carta vyrem”; uma intitulação, onde se identifica de forma clara o autor ou autores e os títulos associados, “eu Dom Denis pela graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve emsembra com mha molher Raynha Dona Isabel e com meos filhos Infante Dom Afonso primeyro filho .s. e herdeyro e a Infanta Dona Constança”3.

Ao protocolo sucede o texto, no qual o autor manifesta a sua vontade através de várias disposições e de cláusulas jurídicas imperativas e vinculativas, esta parte do documento também é conhecida como dis-positivo. Neste documento, o dispositivo inicia-se com uma forma verbal imperativa, isolada “dou” que insere um texto com valor jurídico e vinculativo para as partes intervenientes, tratando-se de uma doação era necessária a identificação do bem doado “o meu herdamento de Magos com sas ademhas”4.De seguida, os principais benificiários deste ato escrito são apresentados: “todolos probadores de mha probaçam de Salvaterra desse logar de Magos e a todos seos successores”5. Ao longo do dispositivo encontramos outras expressões e cláusulas que reforçam a ligação jurídica entre o monarca e os povoadores de Salvaterra. O dispositivo termina com uma cláusula de consentimento e de corroboração da autoridade régia “en teste-moynho desta cousa dey a esses pobradores esta carta seelada do meu seelo do chumbo”6.

Na parte final do documento, também designada por protocolo final ou escatcolo surge a datação, indi-cando lugar e o dia deste ato escrito “Dada em Coymbra primeyro dia de Juynho… era7 de mil e trezentos e trinta e tres anos”8; na datação encontram-se fórmulas consignatórias, indicando o impulsionador do acto “el Rey o mandou”9 e o nome do escriba “Domingos Eanes a fez”10. Neste documento foram usadas duas formas de validação, a aposição de um selo de chumbo pendente do rei e pelas subscrições em co-luna, segundo a categoria social de cada um.

A doação da carta de foral aos povoadores de Salvaterra inscreve-se na política dionisina da ocupação do espaço. Registe-se que no espaço de sete décadas três localidades, hoje integradas no concelho de Salvaterra de Magos são agraciadas com diplomas régios: dois forais e duas cartas de privilégio. O pri-meiro documento foi a carta de foro de Salvaterra de Magos, de 1295, em segundo estará o foral de Muge

2 Ibidem 3 Ibidem4 Ibidem5 Ibidem6 Ibidem7 Em Portugal vigorou a chamada Era de Augusto ou de César até 22 de Agosto de 1422, ano em que D. João I tornou oficial no reino aEra Cristã. Era de César apresenta um excesso de 38 anos em relação à Era Cristã. Assim o ano de 1333 da era de César, corresponde aoano 1295 da era cristã.8 Doc.5.9 Ibidem10 Ibidem

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outorgado em 130411 e renovado em 130712, e por fim as duas cartas de privilégios que D. Pedro deu aos habitantes de Santa Maria da Glória, em 136413.

Antes de aprofundarmos o texto da carta do foral de Salvaterra, façamos uma breve contextualização do poder concelhio medieval. A multiplicidade dos poderes medievais completava-se, cruzava-se ou diri-mia-se na organização do território em terras, julgados, coutos, senhorios, honras, reguengos e concelhos. De diferentes origens, os concelhos foram surgindo para organizar ou povoar determinado espaço, ou como forma de reconhecimento de comunidades já existentes. Mas mais do que um espaço bem definido, um concelho reporta-se em primeiro lugar à comunidade de vizinhos aí existente. São esses vizinhos que se constituem como uma comunidade de homens livres que forjam entre si solidariedade familiares, de vizinhança ou laborais. Enquanto comunidade de homens livres, os vizinhos querem assumir os destinos do seu território, à margem dos poderes já estabelecidos, reúnem-se em concilium (concelho) para con-trolar e partilhar o poder dessa comunidade. Cada comunidade rege-se por regras próprias, estabelece a sua forma de governo e de justiça, dos tributos e das isenções fiscais. Cada comunidade conciliar tem um conjunto de direitos próprios e exclusivos, conhecidos como “foro”, expressos numa carta de foro, carta de foral, foral, todas palavras sinónimos que designam o mesmo tipo de diploma14. Os monarcas da primeira dinastia, enquanto decorria a Reconquista Cristã, vão conceder inúmeros forais com o intuito de povoar as outrora terras mouras. Seriam esses povoadores que se governariam de acordo com o esti-pulado na carta fundacional e melhor garantiriam a defesa contra os mouros e a viabilidade económica de comunidades que se pretendiam autossuficientes. Esta política régia foraleira permitiu o reforço do poder do rei em detrimento do poder do clero e da nobreza.

Feitas estas considerações, detenhamo-nos agora no texto da carta de foral de Salvaterra. O grande ob-jetivo desta carta era a ocupação humana deste espaço praticamente desabitado, permitindo a sua via-bilidade económica e ao mesmo tempo de organizar a comunidade emergente. D. Dinis concede o seu “herdamento” de Magos aos habitantes de Salvaterra. Em 1295, a zona do Paul de Magos estaria pratica-mente despovoada, as águas paradas apenas atraíam mosquitos e não pessoas, esses campos alagados não permitiam a prática da agricultura. O rei para manter o paul precisava de drenar as águas, para tal era ne-cessário mão-de-obra para abrir valas e canais. Certamente não seria com a ajuda dos vizinhos do Paul de Magos, com os quais o rei tivera contendas no ano anterior. Ao mesmo tempo, a uma légua de distância (cerca de 5 km) estava a surgir ou já existiria uma povoação designada de Salvaterra. Este topónimo po-derá estar ligado com a origem dalguns povoadores oriundos de uma outra Salvaterra, ou então referir-se

11 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fls.34-34vº.12 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fls. 59v.º-60.13 A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, fls. 92 v-93.14 Para mais informação consultar as obras de António Matos REIS, Origens dos Municípios Portugueses, Livros Horizonte, 1991; e de Maria Helena da Cruz COELHO e Joaquim Romero MAGALHÃES, O Poder Concelhio. Das origens às Cortes Constituintes. Notas de História Social, Coimbra, CEFA. 1986.

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de forma concreta a uma comunidade (terra) de vizinhos isenta (salva) de determinadas obrigações e tributos, como parece ser o caso. Aos moradores de Salvaterra foi dado o Paul de Magos com a condição “que eles arompam o paul”15. O aforamento do Paul de Magos aos povoadores de Salvaterra constitui a base de um contrato enfitêutico estabelecido entre o rei e os populares. Como vemos, a primeira grande obrigação era o arroteamento do Paul, abrir valas, canais para permitir o escoamento das águas paradas para o rio Tejo, possibilitando a prática da agricultura. Consciente da dificuldade desta obrigação pri-meira, D. Dinis isentava os povoadores do pagamento de qualquer tributo durante dois anos e meio. Só passados esses dois anos e meio é que o rei exigia “o terço do pam e do vynho e do lynho e da legumha que Deos hy der”16 e passados quatro anos o imposto seria atualizado, passando a exigir a “a meyadade de to-dalas cousas que deve hy der”17. A exigência de metade da produção é um tributo bastante elevado18, mas também é o reconhecimento da fertilidade deste campo, que permitiria o cumprimento das obrigações foraleiras. Ao fim dos quatro anos, quando os campos já estivessem devidamente drenados e arroteados, os povoadores estavam ainda obrigados ao pagamento em “cada ano huum moyo de pam meyado de dez e de sex alqueires oquarteiro pela medida de Santarem de cada des estiis”19. Por cada dez estis20, um campo com 55 metros de largura, deveriam pagar um moio21 de pão meado, cerca de 830 litros de cereal, metade de trigo e outra metade de centeio. O pagamento das obrigações possibilitava o ao rei o “mantimento das abertas”22 existentes no Paul de Magos. Aqueles povoadores que se estabelecessem nas adémias apenas pagariam de imposto “o quinto do pam e de vinnho e da leguma e do azeyte convem a ssaber o vynho no lagar e a tinta e as olivas na eyra e o lynho no tendar”23. Há aqui o reconhecimento que as adémias são me-nos produtivas e como tal apenas era exigido um quinto da produção cerealífera, do vinho, dos legumes e do azeite. Este tributo incidia sobre o vinho do lagar, as azeitonas limpas na eira e do linho no tendal, já pronto a tecer.

Os povoadores além de arrotear os campos do paul tinham de cumprir as suas obrigações tributárias. Neste domínio reconhece D. Dinis importantes direitos e isenções tributárias, nomeadamente “casas e

15 Doc. 5. 16 Ibidem17 Ibidem18 Rosa MARREIROS, A propriedade fundiária e rendas da coroa no reinado de D. Dinis, Guimarães, tese de doutoramento apresentada à FLUC, 1990, pags. 190-19219 Doc. 5.20 Vide Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram…, vol. I, pag. 99. O ESTIL ou ASTIL era uma unidade agrária em voga na região de Santarém, parece reportar-se ao uso de uma haste, de uma vara na medição dos campos, sabendo que a vara usada tinha 1,1 metro; um estil/astil corresponderia a cinco varas e nosso sistema métrico seria 5,5m.21 Unidade de medida de cereais antiga, 1 moio corresponde a 4 quarteiros, 1 quarteiro corresponde a 16 alqueires segundo a medida de Santarém e o alqueire teria pouco mais que 13 litros, correspondendo 1 moio a 832 litros. Para estas correspondências consultar de José Nicolau Raposo BOTELHO, Diccionário das moedas, pesos, medidas e informações commerciaes de todos os paizes, Lisboa, António Maria Pereira, 1895.22 Doc. 5.23 Ibidem

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pomares e ortas o fornos seerem livres de todo o foro”24, isto é, todos os outros bens dos habitantes locais es-tavam isentos de qualquer tributo. Além destes, revestem-se de caráter excepcional, as isenções de hoste e de fossado: “os pobradores sobredictos nom irem em oste nem en fossado”25. Enquanto o fossado26 ou fos-sadeira refere-se ao conjunto de manobras militares que as populações vilãs, especialmente os cavaleiros, estavam obrigadas a cumprir durante algumas semanas na primavera; a hoste27 era uma obrigação que as populações tinham no momento em que o rei declarasse guerra de se apresentarem no campo de batalha, prontas a lutar. Apesar dos homens de Salvaterra estarem livres destas duas obrigações militares verdade é que as autoridades do concelho de Santarém exigiam que proprietários com campos no concelho de Salvaterra cumprissem estas obrigações militares. Em 1337, D. Afonso IV dirgindo-se ao almoxaride de Santarém “mando a vos ou a outros quaesquer que esto aam de veer que vejades a dicto privilegio e a carta d El Rej Dom Denis meu padre e a mynha que disem que sobre esto ham e comprides-as e gardade-as asy com en elas he contheudo aos que morarem continoadamente e moram agora ende al nom façades”28. O mo-narca confirma assim o privilégio da isenção de hoste e fossado aos moradores de Salvaterra. Dois anos depois, o mesmo monarca é chamado a pronunciar-se sobre estas obrigações militares, “pera o dicto logar ser melhor pobrado tenho por bem de lhe quitar aquelo que me ora avvyam a dar e de os escusar quando he por esta vez do serviço que agora avyam a dar e de os escusar quanto he por esta vez do serviço que me agora aviam de ffazer. Pero tenho por bem e mando que este nom sse entenda se non en aqueles que am as herdades do dicto logar de Salvaterra di sonn moradores continoadamente e hy nom ouveram herdades e di som moradores e guareçerem per affan e trabalho de seus corpos” 29. Em primeiro lugar o monarca parece reconhecer que a verdadeira guerra destes homens era contra a própria natureza, o romper do paul es-taria a ser difícil e os povoadores escassos. Por isso, aqueles que eram moradores e tinham propriedades no lugar, ou aqueles que apenas fossem moradores seriam escusados dos serviços militares. Aqueles que tivessem propriedades em Salvaterra e aí não morassem teriam de cumprir essas obrigações.

Segundo a carta de foro, além das isenções militares, os povoadores “nem averem jugada nem relego nem fazerem nenhuum serviço a mim se nom este de suso dicto”30. A jugada31 é um dos impostos régios mais comuns, quase sempre incidia sobre uma parte do cereal ou do vinho produzido numa terra jugueira, ou seja trabalhada com um jugo de bois. No reinado de D. Fernando instalara-se alguma controvérsia sobre este imposto, sendo necessária a intervenção régia: “Sabede que ho concelho e homens boons de Salvaterra

24 Ibidem25 Ibidem26 Dicionário da História de Portugal, Joel SERRÃO (dir) Livraria Figueirinhas,1984,vol. III, art. “Fossado”, p. 62.27 Ibidem, vol. III, art. “Hoste”,p. 226-227.28 A.N.T.T., Chancelaria de Afonso IV, livro III, fl. 17vº, doc. 63. Transcrito e publicado por A. H. Oliveira MARQUES (org.), Chancelaria de Afonso IV, vol. II, Lisboa, CEH/UNL, 1992, pag.121.29 A.N.T.T., Chancelaria de Afonso IV, livro III, fl. 37º, doc. 171. A. H. Oliveira MARQUES (org.), Chancelaria de Afonso IV, vol. II, Lisboa, CEH/UNL, 1992, pags.275-276.30 Doc. 5.31 Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras…, vol II, pags. 42-43

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nos enviarom dizer que elles som scusados de pagarem a jugada do pam e do vinho que ouvẽrem em termo da dicta villa […] os moradores do dicto logo porque o termo da dicta villa he pequeno e se nom podiam hi todos mantter que lavrarom sempre no campo do Çacarabotam que he junto da dicta villa que outrossy he termo de Sanctarem, de sempre pagarem jugada de quatro cousas de trigo e de vinho e de milho e de linho”32 . D. Fernando reconhece a isenção deste imposto à vila ribatejana, o campo de Sacarabotão mesmo às portas de Salvaterra mas já no termo de Santarém estava sujeito à direituras escalabitanas e como tal à jugada sobre o trigo, o vinho, o milho e o linho. O almoxarife de Benavente achava estranho que não pa-gassem a jugada sobre a cevada, o centeio e os legumes. O monarca restabelece a legalidade garantido que no campo de Sacarabotão apenas pagaria jugada sobre o trigo, o vinho, o milho e o linho todas as outras culturas estavam isentas deste tributo. Entretanto Sacarabotão e a Lezíria do Romão passaram a integrar o termo da vila de Salvaterra e assim no Foral de 20 de Maio 145533, reformulado por D. Afonso V, quer no Foral Manuelino34, de 20 de Agosto de1517, de Salvaterra de Magos o assunto da jugada é retomado, deixando de ser uma isenção geral para todos os habitantes para passar a ser uma isenção de acordo com a categoria social de cada um dos povoadores, conforme o costume do reino e do concelho de Santarém.

Além da jugada, D. Dinis dispensou os povoadores de Salvaterra do relego35, um direito que o rei tinha de ficar com uma parte da produção dos frutos das suas terras regalengas e de vender em primeiro lugar e em regime de exclusividade esses produtos. Além destes dois impostos régios os moradores ficavam também isentos de outros serviços e impostos já referidos.

A carta de foro de 1295 lançou as bases da organização concelhia, D. Dinis assume que “devo-lhys dar al-cayde vezio e mando que ajam dous joizes quaes o concelho fezer cada ano e confirmar-lhos eu e por devida que deva cada huum dos vezinhos e moradores de Salvaterra de Magos mando que nom responda se nom perante os seos joyzes do dicto logar de Salvaterra”36. O monarca nomearia um o alcaide entre os vizinhos do concelho. Este funcionário régio além de representar o monarca era responsável ainda pela segurança e ordem pública. Os vizinhos deveriam reunir-se em concilium e elegeriam anualmente entre si dois juí-zes, que o rei confirmaria. Estes dois juízes iriam aplicar uma justiça popular baseada no bom senso e nos costumes locais. As dívidas pendentes apenas poderiam ser dirimidas por esses dois juízes populares do concelho, nessa questão não se poderia recorrer a outras justiças. Contudo uma vez “vingada” ou paga essa dívida, usufruiriam da posse dos bens e “se alguum deles quiser vender ou doar ou escambhar”37 pode-

32 A.N.T.T., Chancelaria de D. Fernando, livro II, fl. 103-103vº. Transcrito no apêndice documental, documento 9.33 A.N.T.T., Núcleo Antigo, Códice n.º 368, transcrito e publicado por Jorge Borges de MACEDO, Foral de Salvaterra de Magos Lisboa, 1992, Arquivo Nacional Torre do Tombo/Câmara Municipal Salvaterra Magos.34 A.N.T.T., Livro dos forais novos entre o Tejo e o Odiana, fls. 108vº-109vº. Transcrito e publicado por Luiz Fernando de Carvalho DIAS, Forais manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve: Entre Tejo e Odiana, L. F. C. Dias [ed. autor], 1965, pags.149-151.35 Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras…, vol II, pag. 187.36 Doc. 5.37 Ibidem

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lo-iam fazer desde que não existissem obrigações pendentes sobre esses bens ou propriedades e desde que não fosse para “vender nem doar nem escambhar a nemhuum homem nem molher filhos d’algo nem a clerigo nem a nemhuum homem nem molher d’ordem”38. As terras doadas pelo monarca aos povoado-res de origem popular constituíam a uma base de um contrato enfitêutico, do qual decorriam direitos, obrigações e deveres para as partes envolvidas. Se essas terras de alguma forma passassem para as mãos da clerezia e da fidalguia, existiria uma relação contratual necessariamente diferente, não se aplicando as cláusulas da carta de foro. A carta de foral tinha como objetivo o povoamento, o arrotear do Paul de Magos e dos campos envolventes, garantindo assim a afirmação e a consolidação do poder régio numa região dominada pela Ordem de Avis.

A concluir o articulado do texto foraleiro, D. Dinis compromete-se em “mandar hy fazer hũa eygreja da qual eu e meos successores devemos a seer os verdadeyros padrões”39. O monarca deveria garantir a assis-tência religiosa aos vizinhos do concelho, pelo que assume o compromisso da construção de uma igreja que ficaria sobre o seu padroado. Seis meses depois, em janeiro de 1296, D. Dinis reconheceu ao bispo de Lisboa, D. João Martins de Soalhães, de edificar, fundar e construir uma igreja em Salvaterra de Ma-gos40. A construção desta igreja, que tem como orago S. Paulo, deve ter começado quase que de imediato. Nesse mesmo ano, António Peres apresentava-se como clérigo da igreja de Salvaterra de Magos e no ano seguinte foi a vez de Afonso Pais se intitular clérigo dessa igreja41. Cerca de dez anos depois, era neces-sária uma nova a intervenção régia. O rei, enquanto padroeiro da Igreja de Salvaterra, teria de garantir o sustento do clero, neste contexto doa uma corte no Paul de Magos ao prior Vasco Afonso42. Um terreno situado no Paul, confrontando com Rodrigo Pais Viegas, com um valado velho, com a aberta velha e ain-da com João “Alalho” que tinha umas terras nas adémias. Com este privilegiado o rei estabelece uma outra relação enfitêutica, o prior deveria dar um moio de cereal “de cada charrua com que hy lavrar”43, o que lembra a jugada cobrada em outros lugares, e estava ainda obrigado a “valar e abrir e fazer benffeitoria en na dita corte”44, tarefa que o rei assumira no restante paul. Era uma doação feita apenas por uma vida, a deste prior. Essa terra seria sempre uma terra do rei e por isso mesmo “aa sa morte deve a dita corte ficar a mim e aa corõa do reyno sen contenda nenhũa”45.

Além da paróquia, o mosteiro de Alcobaça detinha no termo de Salvaterra uma lezíria, junto do Tejo que confrontava com uma outra do rei, entre as duas lezírias existiam abertas cuja manutenção e reparação

38 Ibidem39 Ibidem40 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls. 119, ver doc. 6 de 15 de Janeiro de 1296.41 A.N.T.T., Gaveta XIX, m.14,n.º3,fls.25-26.42 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fl. 99, ver doc. 8 de 8 de Abril de 1316.43 Ibidem44 Ibidem45 Ibidem

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cabia ao mosteiro, obrigação essa que não foi cumprida em 129746. A situação repete-se em 1403, tendo o rei perdido vinte moios de cereal, devido às inundações provocadas pelo mau estado das abertas de que o mosteiro era responsável47.

A relação com a fidalguia era semelhante. Numa lógica clientelar, o rei recompensa os seus vassalos diretos com a doação de bens e de terras, como terá acontecido com Nuno Fernandes Cogominho, al-mirante-mor e chanceler do Infante D. Afonso, a quem foi doada uma horta em Salvaterra48. Em 1384, D. João I, ainda enquanto regedor e defensor do reino “lembrando nos dos serviços que a nosso padre el rrey Dom Pedro e a nosso irmãao el rrey Dom Fernando fez Afomso Stevez e toda sua linhagem, outrossy consirando nos em como o dicto Afomso Stevez como boon e leal e verdadeyro nos fez e faz serviço em esta guerra que avemos por realçamento dos dictos regnos”49. O mestre de Avis recompensou este seu aliado na guerra contra Castela com vila de Salvaterra de Magos, os campos do Sacarabotão e a lezíria do Romão, constituindo um senhorio maior que o concelho dionisino criado quase cem anos antes. Com a morte de Afonso Esteves, o senhorio de Salvaterra de Magos é confirmado em 1393 ao seu filho João Afonso Este-ves de Azambuja, bispo do Porto, “com condiçam que depois de sua morte nom os aja igreja de que elle seia beneficiado”50 e que voltasse este senhorio ao domínio régio. Em 1396, o bispo do Porto doa o senhorio de Salvaterra a Rui Gomes de Azevedo51 e pouco depois terá pertencido João Esteves da Veiga52, homem do Conselho Régio de D. João I, que se intitulava como Senhor de Salvaterra de Magos. Em 20 de Agosto de 1429, o monarca doava ao Infante D. Fernando a sua “villa de Salvaterra do Maagos com seu termo e jurdiçom e padroado da igreja, se de dereito a nos perteenee, com a nossa liziria que chamam a do Romão e com os dereitos que nos avemos no campo de Caçarabotam, para o Infante filhos e neto reservados ao mo-narca e sucessores a correição, alçada, peixes reais, a dizima das coisas entradas por wmar de fora do reino e a confirmação dos tabeliães”53. Vemos que vila de Salvaterra e seu termo, entretanto acrescentado, foram sendo cedidos pelos vários monarcas como forma de recompensar aqueles que orbitavam na corte régia.

4. A organização económica

46 A.N.T.T. Alcobaça, Corporações Religiosas, Documentos Régios, maço 2, n.º 32.47 Iria GONÇALVES, Património do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, UNL/FCSH, 1989, pag. 287.48 A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fl. 85. Ver doc. 7, de 1314 Março 3.49 A.N.T.T., Chancelaria de D. João I, livro I, fls. 12-12v. João José Alves DIAS (org.), Chancelaria de D. João I, Lisboa, CEH/UNL, 2004, vol. I, tomo I, pags.54-55.50 A.N.T.T., Chancelaria de D. João I, livro II, fl. 87v.51 A.N.T.T., Chancelaria de D. João I, livro II, fl. 128v.52 Manuel José da Costa Felgueiras GAIO (1750-1831), Nobiliário de Famílias de Portugal. Facsímile de Impressão diplomática do origi-nal manuscrito existente na Santa Casa de Misericórdia de Barcelos, Portugal, Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araujo Affonso, 17 volumes, Braga 1938-1941, Tomo XIII, pag. 25.53 A.N.T.T., Chancelaria de D. João I, livro 4, fl. 114v.

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A carta de foro de 1295 preocupou-se essencialmente assegurar o “rompimento” do Paul de Magos e o povoamento da zona, criando um minúsculo concelho, certamente com menos de 100km2. Este novo concelho surgia da junção de propriedades régias, a zona de Salvaterra e o Paul de Magos, incluídas até então no termo de Santarém. O termo de Salvaterra de Magos estava incrustado entre o Tejo e os conce-lhos de Benavente, de Coruche e de Santarém e mais tarde também com o de Muge.

Em termos económicos, a agricultura era a principal atividade. O foral de 1295 sugere o cultivo de ce-reais (trigo, milho, centeio, cevada) vinha, olivais, linho (planta típica de campos alagados), leguminosas, hortícolas e árvores de fruto. A complementar a agricultura estava criação de animais que se desenvolvia nas charnecas e noutras zonas mais interiores do concelho e nas proximidades da Glória. Os animais pastariam livremente nas charnecas, “os seus gaados poçam comendo as heruas e beuendo as agoas em termo de sanctarem e em termos de muja e de saluaterra e de curuche e de benavente sem cooyma nehũa”54. Ente os animais contar-se-iam ovelhas, cabras, bois, cavalos, mas também os porcos e as aves de criação. A criação de animais não só fornecia a carne fresca e as peles, bem como a força de tração essencial aos trabalhos agrícolas. Para arrotear e lavrar os campos seriam certamente usados jugos de bois. A carta de privilégio de 27 de Fevereiro de 1364 de Santa Maria da Glória refere ainda que os moradores desse lugar podiam buscar livremente nas charnecas vizinhas a cortiça necessária para as suas casas, para fazer colmeias e pocilgões55. Podemos deduzir que a prática da apicultura e da extração de cortiça seriam ha-bituais na região, estando esta última dependente de autorização régia. Esse mesmo documento informa-nos que a mancha arborícola do concelho era constituída por sobreiros e carvalhos, sendo as madeiras eram usadas na construção, na feitura de alfaias agrícolas e demais utensílios de uso diário. Podendo ainda algumas ser vendidas a povoações vizinhas e ser usadas na construção das embarcações de carga que sulcavam o rio Tejo. Senão qual seria a necessidade de se lançar um tributo sobre as madeiras, se esta não fosse uma actividade lucrativa e essencial neste concelho?56 Sendo um concelho ribeirinho, alguma da sua população dedicava-se à pesca, sobretudo de sáveis57 e mariscos58.

Entre as atividades transformadoras que certamente seriam um complemento das tarefas agrícolas, po-demos reconhecer a existência de curtumes, fornos de telha e de tijolo59, olarias, cestarias, cutelarias, car-pintarias60, fabricando objetos para o consumo dos habitantes da vila ou para vender em outros lugares. Salvaterra assumia uma posição estratégica no comércio ribeiro e terreste, no coração da lezíria.

54 A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, fl. 92 v. A. H. Oliveira MARQUES (org.), Chancelaria de D. Pedro I, Lisboa, CEH/UNL, 1984, pags. 399 - 40055 Ibidem.56 Foral de Salvaterra de Magos …, pag. 10.57 Ibidem.58 Forais manuelinos do Reino de Portugal…, pags 149-151.59 Ibidem.60 Ibidem.

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Essa importância comercial começou-se a desenhar com a criação de uma feira franca em 1434. D. Duar-te concedeu a D. Fernando, seu irmão, autorização para fazer uma feira franca em Salvaterra, “a qual se começara aos dez dias do mes de setenbro que vem e durara viij dias seguintes”61. O monarca garantia aos participantes na feira a sua própria segurança, bem como dos seus bens, suspendendo penhoras ou penas existentes. Logicamente que fora desta esfera estariam os crimes cometidos na própria feira, neste caso os participantes “sejam presos e se livrem por seu direito”62. Além da paz de feira, o rei garantia isenções ou tributos inferiores aos praticados, apenas se pagaria metade das sisas nos produtos transacionados, excepto sobre o vinho vendido em tabernas, as carnes de talho, as heranças e os bens de raiz aí transacio-nados e sobre os quais se pagaria a sisa na totalidade.

Na Idade Média os rios eram verdadeiras autoestradas por onde circulavam pessoas e mercadorias. Con-vém destacar o lugar privilegiado desta vila, fora da alçada de outros senhores e localizada na margem esquerda do Tejo a meio caminho entre Lisboa e Santarém. A partir de Salvaterra era possível alcançar o Alentejo. Enquanto a carta de foral de 1295 condiciona essencialmente a atividade agrícola dos foreiros, os forais de 1455 e de 1517 incidem também sobre as atividades transformadoras e comerciais desen-volvidas na vila e seu termo. O comércio de desenvolvido com localidades ao longo rio Tejo, desde de Abrantes a Lisboa, está bem patente no foral de 1455. Desta forma era necessário estabelecer as porta-gens, as sisas e outros tributos a cobrar sobre os produtos produzidos e comercializados em Salvaterra e no seu termo. O foral de 1517 retoma estas questões tributárias, pagavam portagem: o pescado, marisco, alhos e cebolas, linho em rama, madeiras, carvão e casca, barcos, telhas e tijolos, trigo, cevada, centeio, milho, aveia, farinha, sal e linhaça. Estavam isentos do pagamento de portagem nesta vila e seu termo, o pão, fogaças, bolos, biscoitos, queijadas, folares, farelos, ovos, leite e seus derivados sem sal, o bagaço da azeitona, o cereal que for para moer. Ou seja produtos de necessidade básica.

5. Concluindo

No período compreendido entre 1295 e 1517, Salvaterra de Magos teve a sua primeira carta de foro que pretendia essencialmente povoar e organizar a exploração económica desse espaço. Era necessário atrair povoadores, D. Dinis conjuga esforços, concede isenções e aos poucos alguns terão vindo povoar e rom-per o paul de Magos. 20 anos depois da carta de foral já há noticia que o Paul tinha estava a ser rompido e arroteado, e que nele já se produzia pão. Pela leitura atenta dos documentos verifica-se que a agricultura era a principal actividade mas não a única. A criação de gado, a faina fluvial, a floresta eram outros recur-sos essenciais à população, que complementava as suas necessidades com o artesanato local ou recorren-

61 A.N.T.T., Chancelaria de D. Duarte, fl.33 – 33. João José Alves DIAS (org.), Chancelaria de D. Duarte, Lisboa, CEH/UNL, 1998-2002, vol. I tomo I, pags. 126 – 127.62 Ibidem.

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do ao comércio.

Este concelho com personalidade jurídica muito própria, isenta do pagamento da jugada e do relego bem

como do dever de ir em hoste ou fossado, que elegia as suas autoridades e mesmo tempo acolhia um re-presentante régio, tinha inicialmente um pequeno termo, que nem sempre garantia o sustento dos

seus habitantes. Teve vários senhores, sempre próximos da coroa, e sempre regressou à coroa. Noutro plano, D. Dinis providenciou a assistência religiosa a este concelho mandando construir uma igreja, e garantindo os meios de subsistência do pároco deste concelho. Salvaterra de Magos no século XIV e XV dinamiza o comércio no rio Tejo, entre Lisboa e Abrantes, e as rotas terrestes para o Alentejo.

Os vizinhos deste concelho deixaram para a posteridade o suor dos seus rostos e as dores do corpo im-pressas na paisagem do Paul de Magos, verdadeiro monumento da vitória do homem sobre as forças da natureza.

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Apêndice Documental1

1. Documento

1294 Março 25, Santarém- O concelho de Santarém doa ao rei D. Dinis do Paul de Magos.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls. 75-75v]

Carta de doaçom que o conçelho de Sanctarem fez a el rey do paul de Magos.

En o nome de Deus amem. Sabham quantos esta carta virem e leer ouvyrem que nos Steven Perez Lobato alcayde de Sanctarem e Joham Martiiz Trobador e Giral Marquiz alvaziis e Roy Paez e Joham Fernan-diz procuradores do concelho de Sanctaren con outorgamento de todo o concelho a esto specialmente chamados e apregõados de nossa bõa e livre voontade damos e outorgamos ao muy nobre sẽnhor don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve e a todos seus successores todo o Paul de Magos assi como o nos melhor avemos e de dereyto devemos a aver e per todos os logares per hu o nos melhor devemos a aver com sas entradas e sas saydas e sas perteenças. Damos / ao dicto nosso sẽnhor e a todos seus successores e outorgamos o dicto paul pera todo sempre por herdamento perduravel que nunca a el nem a seus successores seja demamdado nem embargado per nos nem per outra nenhũa maneyra e que o nosso senhor el rey faça do dicto herdamento quer que a ele aprouguer assi como de seu herdamento proprio pera todo o sempre. E por esta cousa nunca vĩir poys en duvida e que aja mayor firmidũe esta carta fezemos seelar do seelo do concelho de Sanctarem. E esta dõaçon lhi faz por muyto ben e por muyta mercee que nos sempre fez efaz cada que lhe demandamos. Os que presentes forom a esta doaçon o alcay-de e os alvazies e os procuradores suso dictos Fernandade, Lourenc’Eanes Bochardo, Gonçalo Martiiz do Casal e Rodrigo Martiiz seu hyrmão, Joham Simhõez meyrinho mor de nossos senhor el rey, Pay Soariz moordomo do Infante don Affonso, Rodrigo Eanes Redondo, Steve Anes de Pavha, Gonçalo Estevãez Davoyn, Martim Vasquiz Cechorinho, Gil Navalha, Stevam Fernandiz Barreto, Joham Ayras, Gil Ordon-

1 Normas de Transcrição- Nos documentos transcritos seguiram-se as Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e tex-tos medievais e modernos, Avelino Jesus da COSTA, Coimbra, FLUC, 1993. Sendo estas as principais regras aplicadas: transcrição do documento em linha contínua, separando os respectivos fólios por um traço obliquo; mantêm-se a ortografia do texto original, bem como o uso de maiúsculas e minúsculas sempre que oportuno; pontuou-se o texto pelos critérios modernos, de modo a facilitar a leitu-ra e interpretação; desenvolvimento das abreviaturas excepto nos numerais; colocação em “[ ]” daquilo que se acrescentou ao original ou resulta de leitura interpretativa, e de [sic] a seguir aos erros do texto original; as partes elegíveis do texto são indicadas por […]; as palavras entrelinhadas colocam-se entre < >; as dúvidas são assinaladas por (?); em nota de roda pé estão as indicações que ajudam à leitura do texto.

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hiz seu genro, Roy Paez Bugalho, Afonso Paez seu hyrmão, Fernam Rodriguiz filho de Roy Paez, Silves-tre Peres, Gomes Paez da Silva, Philipe Guilhelme, Petro Meendiz mercador, Joham Eanes de Ferragẽal, Petro Estevãez almoxarife, Joham Eanes de Marvam, Rodrigo Dominguiz, Domingo Perez Maça, Pedre Anes Caramos, Joham Paez mercador, Joham Giraldiz, Martim Giraldiz, Stevam Guilhelme e Afonso Guilhelme, Afonso Perez Lobo, Rodrigo Eanes mercador, Pedro Estevãez Pelegrin, martim Martiiz Bele-dinho, Joham Martiiz, Domingos Martiiz Beledinhos, Martim Perez, Joham Perez Ramiriz, Joham Perez e outros muytos homeens boons.

Feita a carta en Sanctarem viinte cinqui dias andados de Março. Era de mil e trezentos e triinta e dous anos.

Eu Joham Dominguiz publico tabelliom de Sanctarem de mandado dos dictos alcaydes e alvaziies e pro-curadores esta carta de doaçon screvi e en ela este meu sinal pugi en testemoho de verdade. E eu Domin-gos Johanis publico tabelliom de Sanctarem que a esta doaçom e a estas cousas de suso dictas presente fuy e este meu sinal hy pugi en aquesta carta que tal e en testemunho de verdade.

2. Documento

1294 Junho 19, Lisboa- A Corte soluciona a contenda sobre os herdamentos de Sacarabotão (conc. Santa-rém) entre D. Dinis e Martim Farpado, Domingos Rostro, Vicente Vidal João Ascenso, Pe-dro Domingues, Afonso Domingues, Domingos Martins, João Eanes e respectivas esposas.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fl.84v]

Carta sobre os herdamentos de Caçaraboton.

Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que sobre contenda que era perante mha corte ante mim per meu procurador de hũa parte e Martim Farpado por si e Domingos Rostro por si e Vicente Vidal por si e por Joham Acenço seu sobrinho cujo tutor era dado per mha corte specialmente para esto Pedro Dominguiz por si e por sa molher e Domingos Martiiz por si e por sa molher e Joham Eanes por si e por sa molher cujos procuradores avondosos eram da outra per razom que deziam esses de suso dictos que polos herdamentos que avyam no campo de Caçarabonto que deviam a ir pelo Paul de Magos adeante ata cima. E o meu procurador dizia que non avyam dereyto en esse paul ca o Paul de Magos de lo porto d’Alcaçar a acima contra Culuchi era do concelho de Sancta-rem que o a mim deram e que fora sempre chamado e husado e defeso por desse concelho des esse porto

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d’Alcaçar assi como dicto e. Muytas razões razõadas da hũa parte e da outra perante mha corte o meu procurador de meu prazimento e dos de suso dictos a a tal aveença veerom convem a saber: que eu fique con no dicto paul de la aberta velha que se começa cabo da Ademha dos dictos herdadores contra Sanc-taren e como se vay ao porto d’Alcaçar. E todo o paul acima ficar a mim livre e quite sen toda contenda. E de la aberta velha a fondo contra Tejo ficar aos sobreditos herdadores e se eu quiser abrir essa aberta devo abrir a mha custa. E mha corte per outorgamento e per consintimento meu e dos de suso dictos assi o deu en joyzo que fosse firme e estavel pera todo o sempre. En testemonho desta cousa mandou a mim dar esta carta.

Dada em Lixbõa dezenove dias de Juyo. El rey o mandou con sa corte. Duram Perez a fez. Era de M.ª CCC.ª XXXII anos.

3. Documento

1294 Junho 19, Lisboa- A Corte soluciona a contenda sobre os herdamentos de Ademas (conc. Benavente) entre D. Dinis e Geralda Afonso, Martim Martins, Domingos Peres e Maria Domingues

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fl.84v-85]

Carta sobre los herdamentos de ademhas que [som contra Benevente].

Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que sobre contenda que era prerante mha corte entre mim per meu procurador da hũa parte e Giralda Affon-so e Martim Martiiz e Domingos Periz e Maria Domingguiz molher en tempo de Petro Eanes Correyro por si e por sas molheres cujos procuradores avondosos eram da outra per razom que deziam estes de suso dictos que polos herdamentos que avyan nas Ademhas que son contra Benevente que se entestavam no Paul de Magos o qual deu a mim o concelho de Sanctarem segundo como e conteudo nas cartas de doaçon que ende eu thẽno e deziam que poys os herdamentos das ademhas atestavam con o paul, que se avyan dereyto en esse paul e o meu procurador dizia que non avyan dereyto en esse / paul ca era do con-celho de Sanctarem que o a mim dera e que fora sempre chamado e usado e deffeso por desse concelho. Muytas razões razõadas da hũa parte e da outra perante mha corte o meu procurador de meu prazimento e dos de suso dictos a a tal aveença vẽerom convem a saber: que eu fique con o dicto paul livre e quite por meu e que faça eu hũa aberta contra essa ademhas de contra Benevente ficar por seu de suso dictos. E deven dar carreyras certas e sabudas convenhaves pera os que lavrarem esse meu paul pera si e pera seus gaados e pera sas besthas. E mha corte per outorgamento e per consintimento meu e dos sobredictos

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assi o deu en juizo e que fosse firme e estavel pera todo o sempre. En testemoho desta cousa mandou dar a mim esta carta.

Dada en Lixbõa dezenove dias de Juyo. El rey o mandou con sa corte. Duram Perez a fez. Era M.ª CCC.ª XXXII anos.

4. Documento

1294 Junho 19, Lisboa- A Corte soluciona a contenda sobre os herdamentos de Ademas (conc. Santarém) entre D. Dinis e Martim Soares, Afonso Domingues, João Eanes, Vicente Vidal, João As-censo e respectivas mulheres.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fl.85-85v]

Carta sobre los herdamentos das ademhas que som contra Sanctarem.

Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que sobre contenda que era perante mha corte antre mim per meu procurador da hũa parte e Martim Soariz por si e sa molher e por Affonso Dominguiz e por sa molher e Joham Eanes por si e por sa molher e Vi-cente Vidal por si e por Joham Acenço seu sobrinho cujo tutor era dado per mha corte da outra per razon que deziam esses de suso dictos que polos herdamentos que avyan nas ademhas que son contra Sanctaren que entestam no Paul de Magos o qual deu a mim a concelho de Sanctaren segundo como e conteudo nas cartas de doaçon que ende eu thẽno. E deziam que poys os herdamentos das Ademhas atestavam en esse paul que avyan hy dereyto en o paul. E o meu procurador dezia que non avyan dereyto en esse paul ca era do concelho de Sanctarem que o a mim dera e que fora sempre chamado e husado e defeso por desse concelho; muytas razões razõadas da hũa parte e da outra perante mha corte o meu procurador deu a prazimento meu e dos de suso dictos a a tal aveença vẽerom convem a saber: que eu ficasse con o dicto paul livre e quite e que eu faça hũa aberta contra essa ademhas segundo commo entender que e mha prol e o que ficar alen da aberta contra as adhemas de contra Sanctarem ficar por seu de suso dictos. E quando he hun squito que se mete come farilhom que teem arroto a par da Ademha que vyu o dayan de Evora Pay Dominguiz e Steve Eanes arcediagoo de Sanctarem e Petro Stevãez almoxarife de Sanctarem ficar daque-les cujo e. E esses suso dictos deven a dar carreyras certas e sabudas convenhaves pera os que lavrarem esse meu logar per que possan aver entradas e saydas pera esse paul pera si e pera seus gãados e pa sas besthas. E mha corte per outorgamento e per consintimento meu e dos de suso dictos assi o deu en juyzo e que fosse firme e estavel pera todo o sempre. En testemunho desta cousa mandou a mim dar esta carta.

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Dada en Lixbõa dezenove dias de Juyho. El / rey o mandou con sa corte. Duran Perez. Era M.ª CCC.ª XXXII anos.

5. Documento

1295 Junho 1, Coimbra- D. Dinis concede carta de foral aos habitantes e povoadores de Salvaterra de Magos

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, Doações, livro II, fls. 104-104 v.

Foral de Salvaterra de Magos, transcrição de Borges de MACEDO, Lisboa, 1992, publi-cação do Arquivo Nacional Torre do Tombo/Câmara Municipal Salvaterra Magos, pags.. 1-3 ]

Carta do foro de Salvaterra de Magos

En nome de Deos Amen sabham quantos esta carta vyrem como eu Dom Denis pela graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve emsembra com mha molher Raynha Dona Isabel e com meos filhos Infante Dom Afonso primeyro filho .s. e herdeyro e a Infanta Dona Constança dou o meu herdamento de Magos com sas ademhas a todolos probadores de mha probaçam de Salvaterra desse logar de Magos e a todos seos successores so estas as condições que eles arompam o paul e daqui a Janeiro e deste Janeiro primeyro que vem a dous anos darem a mim e a todos meus sucessores o terço do pam do vynho e do lynho e da le-guma que Deos hy der e des dous anos compridos adeante darem-mi a meyadade de toda-las cousas que deve hy der e que hy fezerem e deve seer arrotada e vingada daqui a quatro anos e darem-mim de mays cada ano huum moyo de pam meyado de dez e de sex alqueires o quarteiro pela medida de Santarem de cada des estiis pera mantimento das abertas e eu devo manteer as abertas e as pontes Item darem-mi da ademha o quinto do pam e de vinnho e da leguma e do azeyte convem a ssaber o vynho no logar e a tinta e as olivas na ey/ra e o lynho no tendar e casas e pomares e ortas o fornos seerem livres de todo o foro e os pobradores sobredictos nom irem em oste nem en fossado nem averem jugada nem relego nem fazerem nenhuum serviço a mim se nom este de suso dicto e nas outras cousas ajam foro de Santarem e eu devo-lhys dar alcayde vezio e mando que ajam dous joizes quaes o concelho fezer cada ano e confirmar-lhos eu e por devida que deva cada huum dos vezinhos e moradores de Salvaterra de Magos mando que nom responda se nom perante os seos joyzes do dicto logar de Salvaterra e des que for vingada se alguum de-les quiser vender ou doar ou escambhar que hy ouver possa o fazer com no foro de suso dicto salvo que nom possa vender nem doar nem escambhar a nemhuum homem nem molher filhos d’algo nem a clerigo nem a nemhuum homem nem molher d’ordem e eu devo mandar hy fazer hũa eygreja da qual eu e meos

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successores devemos a seer os verdadeyros padrões. En testemoynho desta cousa dey a esses pobradores esta carta seelada do meu seelo do chumbo da(sic).

Dada em Coymbra primeyro dia de Juynho el Rey o mandou era de mil e trezentos e trinta e tres anos

2Infante Dom Affonso conf., Dom Martim Alferez conf., Dom Joham Rodriguez conf., Martim Anes filho de Dom Joam Gil conf., Martim Gil filho de Dom Martim conf., Pero Eanes Portel conf. | Lourenço Soares de Valadares, Fernam Perez de Barvosa, Joham Fernandiz de Limha, Johane Meendiz de Briteyros, Duram Martinz moordomo, Johane Eanes Redondo de Conselho, Pero Affonso Rybeyro de Conselho, Joham Simhom de Conselho | Paay Domyngues dayam d’Evora clerigo, Giral Domyngues dayam de Bra-ga clerigo, Stev’Eanes arcediago de Santarem clerigo, Stevam Perez de Ratis clerigo, Joham Alaão clerigo, Gonçalo Fernandiz clerigo | Silvestre Migueez sobrejoiz, Dom Martim eleyto de Lixboa, Dom Aymeric de Coimbra, Dom Pero d’Evora Dom Frey Joham da Guarda, Dom Vicente do Porto, Dom Eane de La-mego, Dom Frey Domingos de Silve, Joham Alpram chanceler. Domingos Eanes a fez.

6. Documento

1296 Janeiro 15, Lisboa- D. Dinis autoriza a construção de uma igreja em Salvaterra de Magos, e doa a mesma ao bispo de Lisboa, D. João Martins de Soalhães.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro II, fls. 119]

Carta per que el rey deu a egreja de Salvaterra de Magos ao bispo de Lixbõa.

Nouerint universi presentem literam inspecturi quod nos dominus Dionisius Dei gratia rex Portugaliae et Algarbii damus et concedimus licentiam ac liberam potestatem reverendo in Christo Patri domno Johanni eadem gratia Ulixbona episcopo per se seu alium edificandi fundandi et construendi ecclesiam ad arbitrium suum in popula nostra de Salvaterra quam de nouc apud Magos pieri facimus et mandamus ubicumque idem episcopus elegerit et prout sibi placuerit quam ecclesiam com consensu domne Huli-sabet uxoris mee ac infantis domni Alfonsi fillii nostri uolumus et concedimus et mandamus quod idem episcopus et sucessores sui in perpetuum habeant et possideant et de juxta ipsius episcopis uoluntatem et arbitrium libere ordinent et disponant. In cuius rei testimoniun eidem dedimus presentem cartam nostro sigillo plumbeo sigillatam.

2 No Foral de Salvaterra de Magos, 1992 as subscrições surgem em coluna, aqui por uma questão de espaço optou-se por apresentá-las em linha contínua, separando cada uma com “,” e as colunas com “|”, conforme COSTA, 1993 p. 43.

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Dante Ulixbone XV.ª die Januarii. Rege mandante et Alfonsus Martini notauit. Era M.ª CCC.ª XXX.ª et quatro anos.

7. Documento

1314 Março 3, Santarém- - D. Dinis doa a sua horta de Salvaterra de Magos a Nuno Fernades Cogominho, almirante-mor e chanceler do Infante D. Afonso.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fl. 85]

Doaçom da orta de Salvaterra a Nuno Fernandiz Cogomynho

Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que eu ensembra com a reynha Dona Isabel e com o inffante Don Affonso nosso filho primeiro herdeiro, querendo graça e merçee a Nuno Fernandiz Cogominho meu almirante mayor e chanceler do inffante Don Afonso meu filho primeiro herdeiro, dou lhy por herdamento a mha orta de Salvaterra com todolos dereito e perteenças que eu hy ey en essa orta que el a aja pera todo senpre e todos seus suçessores toda as voontade assi come seu herdamento proprio. En testemuynho desta lhy dey ende mha carta.

Dante en Sanctarem tres dias de Março. El rey o mandou. Viçente Anes a fez. Era M.ª CCC.ª LIII.ª anos

8. Documento

11316 Abril 8, Santarém- D. Dinis doa a uma corte, no Paul de Magos, ao prior Vasco Afonso.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fl. 99]

Doçom dũa cortinha que e no paul de Magos a Vaasco Affonso priol de Salvaterra en sa vida.

Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem [faço saber] que eu querendo fazer graça e merçee a Vaasco Affonso priol da eg[re]ja de Salvaterra de Magos, dou lhy en sa vida tam solamente hũa corte que jaz no meu paul de Magos com parte esa corte com Roy Paaez Veegas pelo valado velho de hũa parte e da outra parte com parte parte pela aberta velha açima e da outra parte

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pela ademha com parte com Johan Alalho ata huum canto que e mays chegado contra a dita aberta. E esse priol mi deve dar da dita corte en cada huum ano huum moyo de pan de cada charrua con que hy lavrar de conhocença de qual Deus hi der convem a saber con quantas charruas poderem lavrar a dita corte cada ano de tantas mi dar senhos moyos de pan como dicto he. E ele deve valar e abrir e fazer benffeitoria en na dita corte assi como melhor poder e aa sa morte deve a dita corte ficar a mim e aa corõa do reyno sen contenda nenhũa con todo melhoramento e benffeitoria que el hy fezer. En testemuynho desto lhy dey esta carta.

Dante en Sanctarem VIII.ª dias d’Abril. El rey o mandou. Johan Dominguiz de Portel a fez. Era M.ª CCC.ª LIIII.ª anos. Stevam da Guarda.

9. Documento

1393 Junho 23, Almada- D. Fernando confirma os previlégios de Salvaterra de Magos.

[A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fl. 99]

Dom Fernando etc.

A vos almoxarife e scripvam de Benavente e a outros quaãees quer que esto ouverem de veer sau-de. Sabede que ho concelho e homens boons de Salvaterra nos enviarom dizer que elles som scusados de pagarem a jugada do pam e do vinho que ouvẽrem em termo da dicta villa por bem de huum privillegio que lhe foi dado per el rrey Dom Denis nõsso bisavoo a que Deus perdoe quando a dicta villa foi po-brada. E que os moradores do dicto logo porque o termo da dicta villa he pequeno e se nom podiam hi todos mantter que lavrarom sempre no campo do Çacarabotam que he junto da dicta villa que outrossy he termo de Sanctarem, de sempre pagarem jugada de quatro cousas de trigo e de vinho e de milho e de linho. E que de cevada e centeo e doutros legumes que nom pagam nenhũa cousa por que eram scusados dello pelo foro de Santarem, em cujo termo elles lavram. E que despois foi nossa mercee de pagarem os do dicto logo de Santarem e de seu termo jugada de centeo e de cevada e de todollos outtros legumes bem assy como pagavam de trigo e do vinho e do milho e do lenho. E que o dicto concelho de Santarem tanto a feito comnosco por a dicta razam que foi per nos julgado per senteçam que nom pagarem jugada do centeo e cevada e legumes, salvo pella guisa que sempre pagaram e do vinho e do linho e do milho. E que ora vos os constrangedes que paguem jugada de centeo e cevada e legumes. E que nom embargando que vos elles dizem que nom avedes por que os por ello constranger, e porque elles som scusados de pa-garem as dictas jugadas por a dicta razam e sentença pella guisa que ho som os da dicta villa de Santarem,

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porque eles lavram em seu termo da dicta villa de Santarem que lhe nom queredes dello conhecer no que elles dizem que recebem agravamento e sem razam, como nom devem por serem scusados em tempo d’el rrey Dom Afonso nosso avoo e em tempo d’el rrey Dom Pedro nosso padre a que Deus perdoe e no nosso tempo e serem constrangidos que paguem jugada do que nunca pagaram e enviarom nos sobre ello pedir mercee. El los veendo o que nos dizer e pedir enviarom. Teemos por bem e mandamos nos que se sempre elles husarem de pagar as dictas jugadas per a guisa que as pagavam os da dicta villa de Santarem de seu termo e o dicto campo de Caçarabotam em que elles assy lavram he do dicto termo como dicto he que hos nom constrangedes que nom paguem jugada salvo pella guisa que pagam os do dicto logo de San-tarem e de seu termo e lhe guardedes e façades comprir e guardar a dicta sentença que o dicto concelho de Santarem contra nos sobre tal razam ganhou. E outrossy lhe guardedes e façades comprir e guardar todollos dictos privillegios que de nos e dos reis que ante nos forom em tal razam teem e lhe nom vaades nem consentades a outra nehũa pesoa que lhe contra elles vaao vir as nom façades.

Dante em Almada a XXIII dias de Junho, el rrey o mandou per Alvaro Gonçallvez, seu vasallo e veedor da sua Fazenda e per Dom Yhuda seu <outro> vasallo, Afonso Fernandez a fez, era de mil IIIIc XXI anos.

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Bibliografia

Fontes manuscritas

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Chancelaria de D. João I, João J. Alves DIAS (org.), Lisboa, CEH/UNL, 2004-2006

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Foral de Salvaterra de Magos, transcrição de Jorge Borges de MACEDO, Lisboa, Arquivo

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Estudos

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COSTA, Avelino Jesus da, Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos, Coimbra, FLUC, 1993

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VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antiga-mente se usaram…, Lisboa, A. J. Fernandes Lopes, 1865

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Cadaval - O Ducato do Portugal Restaurado

Ana PessoaProf. de História dos ensinos Básico e Secundário no Agrupamento de Escolas de Salvaterra de Magos

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Através do percurso biográfico de um grande do reino iremos desvendar um pouco a história do nosso concelho e sobretudo da Vila de Muge, cuja história nos últimos séculos não pode ser dissociada da Casa de Cadaval.

D.Nuno Álvares Pereira de Melo, 1º Duque de Cadaval foi o obreiro de uma das maiores Casas Senhoriais de Portugal e das poucas que sobrevivem no panorama nacional.

A criação e consolidação da Casa Cadaval revela-se no quotidiano de um grande do reino que serviu quatro monarcas, simbolizando a força da nobreza, mediatizada pelas vicissitudes próprias de cada rei-nado.

Tivemos a felicidade de pesquisar num local há muito adormecido, o Arquivo da Casa Cadaval, em Muge. Descobrimos documentos que foram guardados pelo próprio Duque e por ele anotados e se nada mais houvesse para recordar da vida de D.Nuno só o contributo que deu para a nossa história, ao preservar manuscritos relevantes, bastava.

1- A criação do ducado de Cadaval

Nascer em berço de ouro era no século XVII sinónimo de conquista de um lugar no topo da hierarquia social. Facilitada estava pois a vida de D.Nuno Álvares Pereira de Melo quando nasceu aos quatro dias do mês de novembro, do ano de 1638.

Se o Duque logrou, ao longo da sua vida, enaltecer o sua pessoa, engrandecer o seu nome e a sua Casa, não nos podemos esquecer que partia com a enorme vantagem de ter o sangue “limpo” de parente pró-ximo da Casa Real, sendo a sua família tronco da própria Casa de Bragança.

Os seus panegeristas apresentam doze linhas genealógicas das quais descende, sendo as mais exaltadas as que atestam o seu parentesco com as casas Reais da Europa.

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O primeiro título daquele que viria a ser o primeiro Duque Cadaval e fundador da Casa, foi o de conde de Tentúgal. Este título foi outorgado pela primeira vez ao Senhor de Olivença, conde desta localidade e descendente de Martim Afonso de Melo 1.

A sua linhagem é-nos dada pelo próprio Duque que nas suas alegações a favor do seu direito ao cargo de Condestável do Reino, enfatiza as suas relações de parentesco com a Casa de Bragança.

O segundo Conde de Tentúgal, D.Rodrigo de Melo, foi distinguido por D.João III, com o título de Mar-quês de Ferreira. Perdeu a vida na aventura marroquina que terminou com a malograda batalha de Álcacer Quibir. O título de conde de Tentúgal passou para o irmão de D.Rodrigo, avô do primeiro Du-que de Cadaval.

O aumento de doações e honras, neste ramo colateral da Casa de Bragança, não foi atenuado com a dominação filipina e os titulares de Tentúgal e Ferreira viram confirmadas todas as mercês anteriores, conseguindo ainda mais privilégios.

O pai do Duque, D.Francisco de Melo, apesar de não menosprezar as mercês concedidas pelos monarcas castelhanos tendia a afirmar os valores da portugalidade2. É inequívoca a sua colaboração na Restaura-ção. D.Francisco e seu irmão D.Rodrigo de Melo eram os nobres que mais diretamente influenciavam o Duque de Bragança. Deles, esperava o núcleo de conspiradores lisboeta que conseguissem vencer as indecisões de D.João.

Apesar dos contratempos, a Restauração vingou e o Marquês de Ferreira, foi à praça do Giraldo, aclamar o novo rei de Portugal. Acompanhou D.João a Lisboa para assistir à cerimónia de aclamação, regressando em seguida ao Alentejo para conduzir a família real, à corte. Com ela deixou Évora e fixou residência no paço onde o Rei lhe concedeu aposentos para si para a Marquesa D.Joana, nomeada Camareira-mor da Rainha D.Luísa.

D.Francisco de Melo ocupou lugar de destaque nas preeminências do cerimonial da monarquia ao assu-mir na apoteótica aclamação de D.João IV, o lugar de Condestável do Reino, cargo que até então perten-cera ao Duque de Bragança.

De imediato nomeado conselheiro de Estado e posteriormente Mordomo-Mor da Rainha, participou no

1 O senhor de Olivença descendia de um dos ramos colaterais dos Melos. Sobre as raízes medievais destes senhores, ver Pina, Isabel Castro – Linhagem e Património. Os senhores de Melo na Idade Média, in Penélope, nº 12, ed. Cosmos, Lisboa, 1993.2 O Marquês de Ferreira tornara-se um símbolo da resistência portuguesa e da apologia pelo prestígio da Casa de Bragança. Duran-te a visita de Filipe II, desempenhou as funções de estribeiro mor do Duque de Bragança, D.Teodósio, atitude que não agradou aos fidalgos castelhanos a quem teve a ousadia de desafiar, largando, em desafio, uma luva no terreiro que ninguém ousou apanhar. Este episódio simboliza a honra da velha nobreza nacional que se irá rebelar em 1640.

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governo e viveu as dificuldades de um reino que tardava em ser reconhecido internacionalmente. Pouco viveu para ver os frutos da independência. Deixou dois filhos órfãos protegidos pela legitimidade dos títulos, pelos já avultados bens patrimoniais e pelo cargo que a Marquesa desempenhava na corte onde os seus filhos se foram criando e educando…

A afirmação de D.João IV, como rei, passava pela existência de titulares poderosos ligados à sua família, daí as honras conferidas ao Marquês de Ferreira, daí o título concedido a seu filho, Nuno Álvares Pereira de Melo, primeiro Duque de3 Cadaval.

D. Nuno tornou-se conde de Tentúgal ainda em vida de seu pai, por carta de confirmação concedida no ano de 1641. O título foi-lhe outorgado com a condição de vigorar desde 1638, o que implicou o paga-mento retroativo do assentamento de duzentos e setenta mil reis. Quando o seu pai faleceu foi elevado à dignidade de Marquês de Ferreira.

Cedo privado da autoridade paterna, não deixou por isso de ser protegido e orientado na sua formação pelo novo rei de um velho país que quis criar um “duque amigo”.

A constituição do ducado foi justificada como forma de comemorar o nascimento daquele que mais tarde D.Nuno seria o único Duque, o Infante D.Pedro. Há uma outra versão da outorga do título que afirma que D.João IV indo “dar os pêsames à Excellentissima Marqueza de Ferreira da morte do Marquez seu Primo, pai do Excelllentissimo D.Nuno na presença de sua May o fez Duque, dizendo lhe: Nuno eu te faço Duque do Cadaval”4.

Efetivamente, a criação deste ducado, por D.João IV, deve-se ainda e fundamentalmente, integrar nas mercês herdadas, pois se D.Nuno recebeu o título de Duque é a seu pai e à sua fidelidade à Casa de Bragança que deve a honra com que foi distinguido. Sendo que no documento de concessão do título se invoca, também, a amizade e o serviço que ligavam o pequeno Nuno ao Príncipe herdeiro, D.Teodósio.

Com a outorga do título o Duque recebeu quinhentos mil reis de assentamento que acrescentou aos mon-tantes que já auferia pelos títulos de Marquês de Ferreira e Conde de Tentúgal. Estes dois títulos eram de “juro e herdade” sendo o de Duque concedido só a D.Nuno.5

Este título era o mais preeminente do reino normalmente concedido pelos monarcas aos seus netos. De acordo com a tradição histórica: “Aos Duques em Portugal fizeram sempre os Senhores Reys mayores hon-

3 Na documentação da época a designação do título é de Duque do Cadaval e não de Cadaval, como posteriormente se generalizou. A designação de Duque de Cadaval só se encontra nas fontes estrangeiras.4 Cadaval, D.Jaime – Ultimas ações..p.735 Ainda em sua vida este título foi também atribuído a seu filho D.Luís Ambrósio, 2º Duque de Cadaval, após a sua morte o título passou para D.Jaime, seu irmão e terceiro Duque de Cadaval.

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ras”6 Esta indicação dada pelo Secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva, ao rei D.João IV, ao diferenciar o poder dos Duques em Portugal e Espanha, testemunha uma rutura com os valores castelhanos e uma evocação do cerimonial da monarquia portuguesa, antes do domínio filipino.

1- Domínios senhoriais, privilégios e outros rendimentos da Casa Cadaval

A recolha efetuada nos Livros de Chancelaria dos sucessivos monarcas que distinguiram D.Nuno permite traçar a evolução da sua Casa no que toca à confirmação/doação de bens patrimoniais a que se aliou a concessão de isenções jurídicas que reforçaram o seu poder senhorial7.

A maior parte dos seus domínios provinham do património de seu pai, 1º Marquês de Ferreira, por isso grande parte das vilas foram-lhe concedidas por alvará ou carta de confirmação. No quadro seguinte po-demos observar os senhorios que possuía de “juro e herdade” com o privilégio de ficarem desvinculados da lei mental uma ou duas vidas.

Em 1667, o Duque aumentou os seus domínios territoriais, recebendo as vilas de Penacova e Mortágua do Condado de Odemira, como prémio da sua intervenção na conquista do poder político pelo Infante D.Pedro que afastou do governo seu irmão, D.Afonso VI.

Por herança obteve a vila de Assumar que pertencera a seu primo segundo, D. Francisco de Melo, filho de D.Constantino de Bragança, irmão de D.Nuno Álvares Pereira, seu avô. Recebeu-a de “juro e herdade”, com jurisdições ordinárias e uma vida fora da Lei Mental. Esta localidade tinha no “seu termo bastantes vizinhos, com pessoas nobres, muitas fazendas que se lavram”8. A 8 de Maio de 1692, o Duque trocou-a pela vila de Muge que pertencia à Coroa. Esta permuta convinha-lhe porque possuía de aforamento o Paul de Muge, hoje designado Paul do Duque que herdara após a morte da sua primeira esposa.

Conseguiu depois obter do monarca a mercê de usufruir, em Muge, das mesmas jurisdições que tinha nos outros domínios conforme documento que pela relevância aqui se transcreve:

“Eu ElRey Faço Saber que havendo Respeito ao que se me representou Dom Nuno Alvares Pereira de Mello Duque do Cadaval meu muito amado e prezado Sobrinho sobre lhe Conceder na villa de Muya que comigo trocou pella de Assumar as mesmas preheminencias e prerrogativas consistem em todos os foros Rendas direitos Tributos isenções e privilégios e de prover os officios de Suas Terras e não entrarem nellas os Correge-

6 A.N.T.T.- Miscelânea Manuscrita – Advertencia para Salvaterra e Almeirim, Cód. 171. Este documento sobre o comportamento que o rei devia ter durante as caçadas foi elaborado pelo Secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva.7 Ver quadro I8 A.N.T.T.-Chancelaria de D-Pedro II, livro 37, p. 218.

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dores das Comarcas Salvo por Espessial mandado meu a que os Seus ouvidores Conhecao dos aggravos como as outras justicas e para apresentar as Eleições da Camara Conforme as Doações que oferece. Pedindo me lhe fiz na merce Conceder que tivesse a dita villa de muya e Seus Sucessores na forma Referida como tinha todas as mais e se declarava nas ditas Doações e visto o que aLegou Informação que mandej tomar pelo D.Joseph galvão de Lacerda juis da Coroa e Reposta do Procurador della a que Se deu Vista e por desejar fazer graça merce ao Duque. Hey por bem e me praz de lhe fazer nova merce para elle e seus Sucessores da dava dos officios de justissa E governo da Villa de muya assim e da mesma que a tem nas outras Suas terras e que o Corregedor da Comarca não entre na dita Villa Se por espessial mandado meu e que o Duque ou Seu ouvidor possa Confirmar os Juizes e aprovar as Eleicoes da mesma Villa tudo de juro e herdade na forma de doação que offerece de treze catorze e dezasseis de Agosto de mil Seis Centos quarenta e Sinco.Pelo que mando aos meus Dezembargadores do Paço que Sendo lhe apresentado este Alvara por mim aSignado e passado pella Chamcelaria lhe faco passar Carta de Doacao por merce nova destas jurisdições na qual Se tresLadara este Alvara que Se cumprira como nelle de conthem e pagou de novos direitos que encaregarão ao thezoureiro deles a fl.125 Vº e L 2º de Sua Renda como Constou por Conhecimento em forma de Regimento L. 2º do Registo geral a fl.316- Luis Godinho de Niza o fes em Lisboa a vinte e nove de Agosto de mil Seis Centos e noventa e dous Joseph fagundes Bezerra o fes escrever |…|9

Associados aos senhorios dos bens da Coroa, aos títulos e aos respetivos assentamentos detinha ainda, na maioria dos casos, também por confirmação privilégios importantíssimos em termos jurídico- insti-tucionais. No que toca a estes e além dos que lhe eram inerentes pelost títulos e pelo facto de pertencer á nobreza tinha nas terras da Coroa de que era donatário:

- todos os foros, rendas, tributos e privilégios;

- isenção de correição em todas as vilas e senhorios, tendo os seus ouvidores o privilégio de conhecerem dos agravos;

- o direito de prover os ofícios quando estes vagassem deste que neles colocasse letrados de “raça limpa” e aprovados pelo Desembargo do Paço;

-o direito de aprovar ele, ou o seu ouvidor, eleições e confirmar os juízes.

Verdadeiras coutadas jurídicas as suas terras não podiam, exceto em casos especiais, ser invadidas pelas justiças régias. Quando tal acontecia era previamente avisado pelos monarcas.

Também, quando as exigências da guerra obrigavam a levantar levas de soldados (quer de terços de auxi-liares, quer de tropas pagas) ou a procurar desertores, nenhuma incursão se fazia nos seus domínios sem

9 ANTT-Chancelaria de D.Pedro II, livro 37, p.399 vº

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que o monarca o informasse e lhe solicitasse que desse ordem aos oficiais das suas vilas para que colabo-rassem com os funcionários régios.

Estas disposições conservaram-se inalteráveis ao longo dos diferentes reinados em que viveu. O que nos leva a inferir que fosse qual fosse o peso da poder real ninguém ousou desafiar as suas preeminências senhoriais.

Em 1659, ao iniciar a sua participação na vida política, conseguiu benesses jurisdicionais que lhe permi-tiram administrar mais facilmente o seu património. Apresentou petição e conseguiu que lhe fosse con-cedida a mercê de nomear juiz de fora para as suas vilas de Tentúgal e Povoa de Santa Cristina. Alcançou ainda da regente, a Rainha D.Luísa de Gusmão, outras mercês para uma melhor eficácia das suas justiças locais, como por exemplo autorização para que os presos mais perigosos da sua Vila de Ferreira de Aves, pudessem ser recolhidos nas cadeias reais de Viseu.

Detinha também várias isenções que facilitavam a administração da sua Casa e autorizações pontuais para resolver problemas específicos. Os documentos de Chancelaria provam-nos que possuía:

- O direito de cobrar dívidas via executiva, como se fossem à Fazenda Real;

- O direito de vincular bens da Coroa no valor de dez mil cruzados para garantir uma renda à terceira Duquesa, caso enviuvasse;

- isenção do pagamento de direitos de Chancelaria;

- isenção do pagamento das sisas de todos os direitos dos produtos trazidos por terra e por mar;

- autorização para estabelecer um foro fixo nuns casais que tinha aforados à Coroa, no Reguengo de Algés.

- autorização para distratar juros sobre os bens da Coroa já empenhados, com autorização régia, pelos seus antepassados;

- autorização para aforar em “fatesium perpetuo” um terreno pertencente à Misericórdia de Viana do Alentejo;

- autorização para poder vender o sal das marinhas de Alvor a um preço superior ao estipulado por lei;

-autorização para instituir no morgado para o seu filho varão, o valor da legítima das irmãs (já dotadas devidamente) e dos irmãos menores a quem este se comprometia a garantir a subsistência enquanto não tivessem meios para o efeito;

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- mercê de mais uma vida nas jurisdições e privilégios de que tinha doação e haviam de vagar por sua morte.

A juntar a estas honras D,Nuno viu também confirmado o título de “conde sobrinho” e a mercê herdada dos seus descendentes de privilégio de desembargador, a que devemos ainda acrescentar as prerrogativas inerentes ao facto de ser familiar do Santo Ofício.

Em termos religiosos tinha ainda o direito de administração e apresentação da Capela de S.João Evan-gelista em Évora, e a posse dos prestimónios de algumas igrejas pertencentes aos bispados de Coimbra e Évora.

Os prestimónios da sua casa pertenceram a D.Teodósio seu irmão e passaram depois para o seu filho ile-gítimo, D.Nuno. Mais tarde o Duque procurou, através de diligências junto da Santa Sé que estes fossem legados ao seu filho D.Jaime, passando assim para a posse temporal da Casa Cadaval.

Lograva ainda os privilégios inerentes ao facto de ser comendador, detendo comendas nas ordens de Cristo, Santiago e S.Bento.

Recebeu as comendas de Noudar e Barrancos de S.Bento de Avis como recompensa da sua embaixada a Saboia, devido ao seu desfecho teve dificuldade em usufruir destes rendimentos pelo que lhe foi outorga-da a Alcaidaria Mor de Mourão, como recompensa.

O Duque possuía também as Alcaidarias Mores de Olivença e Alvor 10.

Tinha ainda um rendimento considerável dos ordenados que recebia pelos cargos que desempenhava no governo do reino e na Casa Real sendo que em 1725, em ordenados “ainda tinha mais de setecentos mil réis”11.

Detinha ainda uma riqueza considerável em padrões de juro que herdara ou adquirira.

A riqueza da Casa era enorme, Duarte Ribeiro Macedo, numa carta que lhe enviou, referente ao seu primeiro tratado de casamento em França testemunha-o “Da parte de vossa excellencia se capitulou na forma de instrução menos os artigos de que entraria o dote no morgado, assim porque aqui se não entende esta matéria, como porque explicando a eu pareceria estipulação mais pobre que Luzida, averem de entrar nos morgados de vossa excellencia secenta mil cruzados que importam as cem mil librasestimando-se |255 vº| por milhões o que a Casa de vossa excellencia val”12.

10 O Duque acabou por perder a alcaidaria mor de Olivença, a de Alvor foi-lhe doada pela Rainha D.Mariana de Áustria.11 Cadaval, D.Jaime- Ultimas ações, p.1012 Arquivo Casa de Cadaval- Cód. 1064-KVII 18, pp. 255, 255vº.

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Uma carta que Gaspar de Abreu de Freitas, enviado de Portugal em Roma, lhe escreveu aponta no mes-mo sentido. Este afirma que o valor avultado13 que a Cúria pretendia pela dispensa para o matrimónio (o duque enviuvara e pretendia casar com a cunhada), se devia ao facto de os oficiais do Sumo Pontífice afirmarem que o Duque era “tronco da Caza Real e a parte mais rica de Portugal”14

Apesar da riqueza apregoada a situação económica da Casa não era folgada. O Duque herdara as vilas de Cadaval e Ferreira com as rendas hipotecadas, para pagamento de juros. Sobre esta situação apresentou uma petição para os poder distratar e a 7 de Maio de 1699, foi-lhe outorgada essa mercê.

Denota-se que há um certo ascendente e uma recuperação económica da Casa apesar das grandes des-pesas a que se obrigava.

A grande aristocracia acreditava no valor da civilidade e na importância de ter uma corte pessoal, daí nobres poderosos como o Duque de Cadaval terem os seus próprios oficiais domésticos.

A administração da Casa era em tudo semelhante à estrutura da Casa Real. Tinha regimentos próprios como por exemplo o da Capela Ducal, copiado dos arquivos da Casa de Bragança. Nos seus paços, o Duque vivia com cerca de 45 criados, reposteiros, moços de copa e cozinha, liteireiros, estribeiros, escu-deiros, criados de escada acima e escravos15.

No que toca à administração dos seus domínios e necessidades domésticas “De forma similhante à chan-celaria real, tinham os senhores das terras também escriturações em livros próprios”.16

Entre os ofícios referidos em cartas de nomeação encontram-se os de agulheiro, cordoeiro, cadeireiro, carpinteiro de casas, boteiro, fabricante de oleados, marchante, pecheleiro, almoxarife, pasteleiro, livreiro, boticário,médicos…. Há também a salientar nesta multidão de “criaturas do Duque” os frades e os padres capelães em tamanha quantidade que vivia rodeado de clérigos.

A manutenção desta estrutura doméstica fazia parte do seu estatuto e implicava enormes despesas. É conhecido o endividamento crónico das casas senhoriais mas apesar disso a Casa Cadaval chegou, neste período, ao apogeu em riqueza e privilégios. Foi logo após o seu nascimento que teve o seu período áureo. Todavia o seu esplendor já se adivinhava com a importância crescente da Casa de Ferreira. Como de-monstramos a maioria das mercês concedidas a D.Nuno não constituíam “mercê nova” pois provinham de confirmações de alvarás e cartas de soberanos das dinastias de Avis e Filipina.

13 Os outros títulos pagavam dois mil ducados por uma dispensa do mesmo género e ao Duque exigiam três mil ducados.14 Arquivo Casa de Cadaval- Cód. 869 b)-KV b) p.39415 Os escravos eram negros e mouros. 16 Azevedo,Pedro – A Chancelaria do ducado de Cadaval in Arquivo Historico Português, Lisboa, 1904

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Os direitos auferidos não eram exclusivos da Casa Cadaval. A Casa de Bragança usufruiu privilégios que esta nunca logrou alcançar. Contudo se excetuarmos as Casas diretamente ligadas à Casa real (Casas da Rainha, Bragança e Infantado) a Casa Cadaval era a mais poderosa com isenções relevantes.

3-A família e as alianças matrimoniais

A posição da pessoa na vida social era definida através da família a que pertencia. Esta não era só o seio da segurança afetiva e económica, mas apresentava também uma dimensão política que contribuía para a consolidação e reprodução do estatuto dos seus membros.

Uma grande família era um bem inquestionável na sociedade do século XVII, por isso quando teve auto-ridade e oportunidade o 1º Duque de Cadaval criou uma sólida rede de alianças entre a nobreza nacional e internacional.

O seu primeiro enlace foi-lhe proposto por um dos grandes no governo da regente, D.Luísa de Gusmão, o Conde de Odemira que lhe propôs que casasse com a Condessa de Faro, sua filha e viúva do Conde de Feira. Este matrimónio deu-lhe excelentes perspetivas em termos patrimoniais e de sucesso na vida política. D.Juan de Novales escreveu sobre esta situação: “Despues de la ausência del Avero concedieron todas sus pertenciones al de Cadaval, porque ya el Faro17 deseando le por hierno concurria en todo lo que pretendia, y entro presto de muy pocos años nel consejo de Estado”18.

Enviuvou, durante o desterro no reinado de Afonso VI e só voltou a contrair novo enlace após a deposi-ção do Rei e a assunção da regência pela princípe D.Pedro. Manteve-se viúvo durante todo o período em que o Conde de Castelo Melhor dominou o governo do Reino, apesar das instâncias do seu grande amigo, o Padre António Vieira, para que voltasse a casar. O pregador do reino sonhava e acalentou sempre a esperança de o Duque conseguisse casar com a Infanta D.Maria, filha bastada de D.João IV, que se encon-trava no Convento de Carnide.

Contudo este casamento não era bem visto pelos os opositores do Duque e desagradava à rainha de D.Catarina de Bragança que de Londres não deixava de acompanhar a vida política do seu país.

Gaspar de Abreu de Freitas, nosso enviado em Inglaterra, escreveu ao Duque informando-o desta situa-ção: “Sua Majestade senhora Rainha me disse hû dia destes falando em vossa excellencia que vossa excellen-cia estava por cazar. E nunca o quisera fazer fora de Portugal. Respondi lhe com a verdade, que disso não

17 Conde de Odemira18 Arq. Casa Cadaval- Cód. 1091-KVIII 1 b) p.284

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tivera nunca noticia algûa. E que muitos desejávamos que vossa excellencia cassasse com a senhora Dona Maria. Replicou dizendo; Pareçe me que Dona Maria quer Ser freira”19.

O Duque enveredou assim pela busca de uma esposa fora do país, o enviado francês na corte portuguesa, Saint-Romain conseguiu evitar que casasse em Espanha e D.Nuno foi o primeiro “grande” a procurar na nobreza francesa uma aliança matrimonial que posteriormente renovou.

Casou, em segundas núpcias, com D.Henriqueta de Lorena, sendo que o seu casamento, por procuração se realizou na corte “delRey Christianissimo” com toda a pompa que consignava a etiqueta da corte de Luís XIV. Este casamento foi assim apadrinhado pelo monarca francês, conforme lhe escreveu o então embaixador de Portugal em França, Duarte Ribeiro Macedo: “E a Elrey de frança parecendo lhe Segurava mais a nossa amizade unindo co vossa excellencia algua princeza de frança”.20

Quando enviuvou, novamente, voltou-se a colocar a hipótese do seu matrimónio com D.Maria, esta pre-tensão foi mesmo apresentada nas Cortes de 1674, por um procurador do Estado do Povo. Mas o tempo não era para arriscar, Cadaval tinha muitos inimigos, o príncipe Regente sentia-se inseguro no governo e o Rei, Afonso VI, continuava vivo.

D. Nuno, voltou a pedir a Duarte Ribeiro Macedo, que tal como o Padre António Vieira, era os seus mais fiéis amigos e a quem a história de Portugal reservou também um lugar de destaque, que lhe procurasse novamente esposa Além-Pirinéus.

Casou, em terceiras núpcias, com D.Margarida de Lorena, mais uma vez, com a intervenção pessoal do Rei-Sol para a concretização do enlace.

A escolha da Duquesa de Cadaval era um assunto que ultrapassava a sua vida pessoal, sendo considerado de interesse nacional por isso D.Nuno submeteu sempre os seus casamentos à apreciação dos soberanos. Mais uma vez se comprova a que o público e o privado estavam indissociados na época. O Duque assu-mia a importância da sua linhagem para a monarquia e fazia dos seus matrimónios assuntos de Estado.

Adotou o mesmo procedimento na definição da estratégia matrimonial dos seus descendentes procuran-do através desta o fortalecimento da Casa de Cadaval.

D.Luís Ambrósio, seu filho varão, recebeu, em vida, o título de Duque seu pai logo procurou encontrar--lhe uma esposa digna da sua condição. Desta vez D.Nuno conseguiu a aliança da Casa Cadaval com a Casa Real, ainda que fazendo Duquesa D.Luísa, filha bastada de D.Pedro II e de uma “moça de varrer”,

19 Arq. Casa Cadaval – Cód. 1064, KVII 18, p.347 (3 dezembro de 1688)20 Arq. Casa Cadaval- Cód. 1064, KVII 18, p.269

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criada de uma dama de companhia do paço e “limpa de sangue”. Esta menina era afilhada do Duque e foi sempre protegida pela sua tia, recolhendo com ela no convento de Carnide. D.Luísa herdou quase todos os bens da Infanta D.Maria. Sobre este enlace, o Padre António Vieira escreveu-lhe dizendo-lhe que se lembrara de uma conferência em Campolide sobre a possibilidade de casamento de D.Nuno com D.Maria e afirmando: “conhecendo agora que então não teve efeito aquela eleição, reservando-a Deus para o presente, tanto mais para estimar, quanto os pais estimam mais a filhas que as irmãs.”21

Esta aliança matrimonial foi motivo de inveja de outros cortesãos. Contudo, de imediato, D.Nuno, ne-gociou o casamento das suas filhas com destacados membros da nobreza nacional, Casas de Alegrete, Fontes e Alvor, fortalecendo redes de solidariedade e assegurando uma vasta descendência, riqueza in-questionável na época.

D. Jaime, 3º Duque de Cadaval, após a morte do irmão, casou com D.Luísa de quem não teve descendên-cia. Na verdade e apesar de ter uma vasta prole de netos, D.Nuno nunca teve um neto seu e do “seu” rei, D.Pedro II.

A conservação da Casa e do seu estado eram interesses pessoais que sobrevalorizava. Só que inegavel-mente e mercê de circunstâncias históricas próprias, considerava-as e eram inseparáveis do futuro do reino.

A constituição da Casa Cadaval coincidia com o percurso de Portugal restaurado que não queria voltar a ser castelhano…

Cadaval vai juntar a linhagem às obras para que a sua nobreza seja duplamente legitimada. Podemos falar num reforço de senhorialismo jamais alcançado pois os poderes que lhe escapavam através das prerro-gativas de senhor, conseguiu-os na qualidade de cortesão e sobretudo como ministro. A multiplicidade e longevidade dos diferentes cargos22 que desempenhou deram-lhe uma influência em todas as esfera da governação, controle da diplomacia, da vida económica, da organização militar, da justiça…

A estas funções públicas aliavam-se cargos na Casa Real que lhe permitiam estar, constantemente, na presença dos soberanos e participar nos principais acontecimentos do cerimonial de corte.

Aliando a preeminência jurídico-social à riqueza económica, partiu com vantagem à conquista do poder político tornando-se uma das personagens mais influentes na vida do reino, na segunda metade do sécu-lo XVII e inícios do século XVIII.

21 Vieira, António- Cartas, vol. III, p.695. Esta carta data de 2 de Julho de !69622 Ver quadro II

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Neste caso, mais do que no poderio da Casa, devemos falar na força e capacidade de afirmação de um ho-mem, D.Nuno Álvares Pereira de Melo que marcou e interferiu nos principais acontecimentos políticos da época sendo o seu apoio um fator sempre a considerar.

Ainda em vida transferiu para D. Jaime todos os bens da Casa Cadaval. Foi com orgulho que conscien-temente assumiu o grande contributo que dera para o seu engrandecimento. Lembrando D.Francisco de Almeida, comentando a amplitude do nosso império, utilizou a frase: “se mais mundo houvera…”23 ao referir-se ao legado que deixava ao 3º Duque de Cadaval.

Quadro I – Mercês concedidas ao longo de 4 reinados

DIA MÊS ANO MERCÊ20 março 1641 Confirmação do título de Conde de Tentúgal ainda em vida de seu pai 1 dezembro 1645 Carta para não pagar Chancelaria das mercês e graças que recebesse

30 junho 1645 Confirmação das vilas de Peral e Cadaval 29 julho 1645 Direito do ouvidor da vila de Tentúgal poder despachar as apelações que a ele

vierem do almoxarife que tem na cidade de Beja 1 agosto 1645 Direitos reais da vila de Olivença3 agosto 1645 Carta de mercê de jurisdição da vila de Arega e mercê para levantar o sequestro

da mesma vila4 agosto 1645 Confirmação por sucessão do título de Marquês de Ferreira6 agosto 1645 Confirmação da doação do lugar de Albergaria 7 agosto 1645 Confirmação da doação dos lugares de Vila Ruiva e Vila Alva7 agosto 1645 Confirmação da Alcaidaria mor de Olivença que incluía a doação do castelo e

todas as suas rendas 8 agosto 1645 Confirmação da carta de doação do título de “Conde Sobrinho”9 agosto 1645 Doação do Paúl de Vila Nova de Anços

11 agosto 1645 Direito de dar os ofícios de suas terras de juro e herdade e uma vez fora da Lei Mental

11 agosto 1645 Direito dos tabeliães das suas terras se chamarem por ele13 agosto 1645 Carta para os juízes das suas terras se chamarem por ele14 agosto 1645 Direito de pousada e carros em qualquer lugar do reino para ele e para os seus16 agosto 1645 Direito de corregedores não entrarem nas suas terras18 agosto 1645 Direito de poder tapar uma barreira junto às suas casa em Èvora20 agosto 1645 Confirmação por sucessão das vilas de Tentúgal e Póvoa de Santa Cristina21 agosto 1645 Direito das rendas da vila de Beja22 novembro 1645 Confirmação do privilégio de Desembargador

23 Cadaval, D.Jaime –Últimas acções, p.28

121Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

28 abril 1646 Confirmação para poder dar todos os ofícios de tabeliães das suas terras sem mandar apresentar ao Chanceler Mor

3 maio 1646 Confirmação do contrato e isenção do lugar de Água dos Peixes5 maio 1646 Confirmação da vila de Alfazeirede com todo o seu termo e senhorio

6 maio 1646 Confirmação do título de Marquês de Ferreira6 maio 1646 Confirmação da doação do lugar de Água dos Peixes8 maio 1646 Capela de S. João Evangelista, em Èvora

11 maio 1646 Confirmação da doação das vilas de Ferreira, Carrapito e Vilar Maior11 maio 1646 Confirmação para ter Almoxarifes nas vilas de Tentúgal, Vila Nova de An-

ços, Alfazeirede, Rabaçal, Buarcos e Ferreira de Aves17 maio 1646 Direito de poder apresentar os ofícios de juiz e escrivão dos reais e registo

da vila de Olivença18 maio 1646 Confirmação do direito de não pagar dízima de quaisquer coisas que vie-

rem por portos de mar ou por terra.Isenção de portagem, passagem e cos-tumagem

4 maio 1647 Carta para o primogénito que tiver se possa chamar Conde de Tentúgal, ainda em sua vida.

6 julho 1648 Título de Duque da Vila do Cadaval12 agosto 1648 Assentamento do título de Duque da Vila do Cadaval21 agosto 1659 Autorização para nomear juiz de fora nas sua vilas3 novembro 1659 Autorização para nomear juiz de fora sendo letrado nas suas vilas

12 fevereiro 1661 Alvará para que os criminosos da vila de Ferreira de Aves possam ser pre-sos nas cadeias reais de Viseu

16 maio 1669 Doação das vilas de Penacova e Mortágua 6 maio 1684 Doação da Alcaidaria Mor de Mourão

30 janeiro 1691 Autorização para que os ouvidores das suas terras possam devassar de três em três anos

30 janeiro 1691 Autorização para mudar o tipo de renda de uns Casais que tinha de afora-mento em Pedrouços

8 maio 1692 Alvará de troca da Vila de Assumar pela Vila de Muge28 agosto 1692 Direito dos corregedores não entrarem na Vila de Muge16 novembro 1694 Autorização para subrogar bens de morgado 28 abril 1695 Concessão de uma vida fora da Lei Mental nas doações das Vilas de Pena-

cova e Mortágua6 março 1696 Autorização para aforar bens de morgado em Santarém7 maio 1699 Autorização para distratar por outro contrato os juros da vila de Cadaval

12 dezembro 1699 Carta de aforamento de umas casas no Rossio21 janeiro 1700 Confirmação da carta de aforamento das casas no Rossio10 maio 1703 Autorização para aforar um casais pertencentes à Misericórdia de Viana

do Alentejo31 agosto 1709 Autorização para trocar uma quinta e seus pertences nos termos de Lisboa

e Alverca por um padrão de juro no valor de cem mil réis

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20 novembro 1710 Doação da mata do Espírito Santo em Sintra 29 abril 1711 Confirmação do alvará sobre a alçada do ouvidor de Tentúgal19 Dezembro 1711 Concessão de uma vida mais nas jurisdições e privilégios que tem de doa-

ção6 fevereiro 1712 Alvará de concessão de segunda vida nas jurisdições e privilégios de que

tem doação11 junho 1712 Concessão de uma vida mais no título de Duque e sendo necessário dis-

pensa da Lei Mental26 outubro 1712 Concessão para que os ouvidores de Tentúgal sendo letrados tenham a

mesma alçada que os corregedores reais.14 janeiro 1716 Autorização para vender o sal, proveniente das marinhas de Alvor a mil

oitocentos reis o moio.

Quadro II- Cargos desempenhados pelo 1º Duque no governo do Reino e na Casa Real

Data da nomeação Termo do mandato

Conselheiro de Estado e de Guerra 1659 1727Membro da Junta Noturna 1659 1662Ministro do Despacho 1667 1727Mordomo- mor das Rainhas 1668 1727Vedor da Fazenda da rainha D.Maria Francisca 1672 1683Condestável do Reino 1668 1674Presidente do Conselho Ultramarino 1670 1673Capitão General de Cavalaria 1675 1727Presidente da Junta do Tabaco 1678 1698Mestre de campo General da Corte e Estremadura 1682 1727Presidente do Desembargo do Paço 1692 1727Mestre de campo General junto à real pessoa de D.Pedro II 1703 1707Mestre da campo general à real pessoa e capitão general do Reino 1707 1727

123Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas:

A.N.T.T- Chancelaria de D.João IV- livros 1,3,4,5,10 e 20

A.N.T.T-Chancelaria de D.Afonso VI- livros 2,5,6,22,23 e 29

A.N.T.T.-Chancelaria de D-Pedro II, livros – 7,8,9,25,32,36, 37,39 e 41

A.N.T.T- Chancelaria D.João V- livros 36,37 e 39

A.N.T.T.- Miscelânea Manuscrita – Advertencia para Salvaterra e Almeirim, Cód. 171

Arquivo Casa Cadaval -Cód. 869 a)-KVa)

Arquivo Casa Cadaval -Cód. 869 b)-KVb)

Arquivo Casa Cadaval – 890- KVII 17

Arquivo Casa de Cadaval- Cód. 1064-KVII 18

-Arq. Casa Cadaval- Cód. 1091-KVIII 1 b)

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Figura 1. Brasão do duque de Cadaval

Figura 2. D.Nuno Álvares Pereira de Melo

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Figura 3. Palácio da Casa Cadaval

Figura 3. D. Jaime de Cadaval- 3º Duque

127Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

O Teatro De D. José I em Salvaterra

Luis Soares Carneiro, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Professor Associado, [email protected]

1. O Panorama dos Teatros Portugueses na Primeira Metade do Século XVIII

O Rei D. João V, pai de D. José I, não parece ter-se interessado de modo particularmente activo por opera ou teatro, tendo preferencialmente devotado a sua atenção de melomano a outras actividades, nomeada-mente à Patriarcal, à Capela Real e à musica sacra1.

São conhecidas as dificuldades colocadas ao funcionamento da Companhia de Ópera do italiano Alles-sandro Paghetti que, entre 1731 e 1735, tentou instalar uma actividade regular de espectáculos de ópera em Lisboa. Este empresário, apesar de ter um contrato com o Hospital de Todos os Santos pelo qual aque-la instituição lhe permitia a exploração de espectáculos públicos pelo prazo de dez anos2, teve múltiplos problemas em conseguir autorização régia para actuar: “Aqui estão os italianos para estabelecerem hua Opera com Pintor, e Carpinteiros para as Maquinas, vestidos e hua Muzica: Contentãse com o Patio das Comedias, e falta a licença del Rey”3. Acabariam por conseguir instalar-se na Academia da Trindade — um salão adaptado no palácio dos Condes de Alva4, mas, apesar de terem sido dados espectáculos entre 1736 e 1738, este primeiro teatro público de ópera em Portugal acabaria por encerrar em inícios de 17395.

No mesmo sentido existe uma “Representação”, ou, como se diria hoje, um “requerimento”, feito pelo Conde da Ericeira, Francisco Xavier de Meneses, em que este pretendia persuadir o Rei a facilitar a realização de comédias, com um texto no qual se evocava um conjunto de argumentos em favor desta actividade, tanto no plano prático como no plano moral, citando, inclusivé, numerosos teólogos. —“Na nossa Corte, sendo tão grave, houve sempre comedias, e o que mais he no mesmo Pallacio, e nos Conventos de Religiosos, e que os Pontífices mais Santos e os Reys mais moderados as permitirão sempre nas suas Cortes

1 Ver: FERNANDES, Cristina Isabel Videira, O sistema produtivo da Música Sacra em Portugal no final do Antigo Regime: a Capela Real e a Patriarcal entre 1750 e 1807, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Évora, Évora, 2010, 2 vols.2 SEQUEIRA, Gustavo Matos, O Carmo e a Trindade, Lisboa, Publicações Culturais da CML, 1939, 2º Vol., p.43.3 MENESES, Francisco Xavier de, Diário de D. Francisco Xavier de Meneses, 4º Conde da Ericeira, 1731-1733, Coimbra, Byblos, Vol. XVIII, Tomo II (1943), p.16, apud CARVALHO, Ayres de, Catálogo da Colecção de Desenho da BNL, Lisboa, BNL, 1977, Introdução, p. XXIII.4 SEQUEIRA, Gustavo Matos, O Carmo e a Trindade, Lisboa, Publicações Culturais da CML, 1939, 2º Vol., p.32. 5 SEQUEIRA, Gustavo Matos, O Carmo e a Trindade, Lisboa, Publicações Culturais da CML,1939, 2º Vol., p.34

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para o devertimento publico…”6. É certo que esta petição vinha na sequência de um conjunto queixas sobre a situação financeira do Hospital de Todos os Santos, do qual o Conde da Ericeira recentemente se tinha tornado director, constatando que o investimento de 600$000rs. realizado no Pátio da Rua das Ar-cas pelo seu antecessor se arriscava a ficar sem rentabilidade, num momento em que as despezas cresciam e as rendas baixavam7. Recorde-se que a ligação dos Hospitais aos teatros, vinha da legislação Filipina que, à semelhança do que sucedia em Espanha, tinha determinado que as rendas dos espaços destinados a espectáculos constituissem receita destinada aos Hospitais. Mas o esforço do Conde foi inútil e o seu objectivo de viabilizar um espaço de espectáculos foi negado: “Obcecado pela Patriarcal e o espectáculo liturgico D. João V nunca pensou em construir um teatro de opera nem de a utilizar como instrumento do poder político”8, pelo que os teatros e a opera tiveram, na primeira metade do século XVIII, de se desen-volver apenas com esforços privados.

Ainda assim, talvez a aversão de D. João V à ópera não fosse assim tanta, pois que sabemos que terá en-comendado ao arquitecto italiano Filipo Juvara o projecto de um grande teatro para Lisboa9, e de haver notícia da existência de um pequeno teatro no Palácio de Belém ainda no seu reinado.

Parece, no entanto, ter sido clara a criação de entraves à construção e desenvolvimento dos edifícios tea-trais públicos. Consequentemente, o Teatro do Bairro Alto (depois de 1733), a Academia da Trindade (depois de 1736), ou o “Teatro Novo” da Rua dos Condes (depois de 1738), desprezados, senão reprimi-dos, pelo poder real, constituiam o pobre e pouco qualificado panorama dos edifícios de espectáculos de Lisboa, o que equivale a dizer, nessa altura, de todo o reino.

Depois, com a prolongada doença de D. João V nos derradeiros anos do seu reinado (entre 1742 e 1750), tendo sido decretada a proibição dos espectáculos públicos, entre os quais, naturalmente, os operáticos e os teatrais, o pouco que existia terá, evidentemente, deixado de funcionar sendo encerrado ou abandona-do. E apenas depois da sua morte, em finais de Julho de 1750, e passado o ano protocolar de luto oficial,

6 Biblioteca Pública de Évora, Cod. CXXX/1-18., Mais Cartas do Sr. Joseph da Cunha Brochado para varias pessoas, Fol.105 rº-vº, Apud, MONFORT, Jaqueline, Quelques Notes sur L’Histoire du Théâtre Portugais (1729-1750), in Arquivos do Centro Cultural Português em Paris, Paris, Vol. IV, FCG, 1972, p.569.7 Vd. RIBEIRO; Vitor, O pátio das comédias e as representações teatrais (1729), Archivo Literário, Vol. 2, Tomo 7 (1924), p.225-230. —Este autor transcreve todo o documento ficando bem claro que é apenas num contexto de interesse financeiro que a questão é posta e apenas secundáriamente a questão cultural aparece. Contudo, a resposta de um teólogo coimbrão, leva à condenação do Pátio por razões exclusivamente de moralidade.8 CÂMARA, Maria Alexandra Gago da, Os Espaços Teatrais na Lisboa Setecentista: Subsídios para o Estudo da Arquitectura Teatral, Tese de Mestrado apresentada à FCSH-UNL, Lisboa, Policopiado, 1991, Vol. I, p.103. 9 RAGGI, Giuseppina, Arquitectura do Engano: A Longa Conjuntura da Ilusão: A Influência Emiliana Na Pintura De Quadratura Lu-so-Brasileira Do Século XVIII, Tese de Doutoramento apresentada no Departamento de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, Policopiado, 2004, 2 Vol.s [Vol. I, p. 203].

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o seu filho e sucessor, D. José I, iria alterar a política paterna no referente à opera, abrindo um período de grande progresso e actividade, activamente promovendo a criação de espaços teatrais que iriam introdu-

zir novos gostos, formas, tecnologias e necessidades que, experimentadas e difundidas primeiro com os teatros de iniciativa régia, passariam depois aos teatros públicos.

Com a entronização de D. José I, a visão e as práticas da Casa Real mudariam substancialmente. A opera passaria a ter, à semelhança do que acontecia então já por toda a Europa, uma grande importância. Tal como fizera seu pai, D. José I faria vir de Itália os músicos, os cantores, os arquitectos, os maquinistas, os cenógrafos e os pintores necessários para a preparação dos espectáculos e dos espaços e edifícios necessá-rios à realização do objectivo de promover, para a corte mas também para um público selecionado, com a devida magnificência, já não os espectáculos litúrgicos mas os de opera.

2. O início de uma nova Era

Os Bibienas são uma das mais conhecidas famílias de arquitectos e cenógrafos da história do teatro. Em meados do século XVIII a sua fama era já grande. Até mesmo em Portugal. Anos antes, em 1721, o Embaixador Extraordinário de Portugal na Santa Sé, D. André de Mello de Castro, Conde de Galveias, oferecera no seu palácio, em Roma, um espectáculo com música de Alessandro Scarlatti, sendo que “...la disposizione e tutta del celebre Francesco Bibiena...”10. Como o filho de Alessandro Scarlatti — Dome-nico Scarlatti (1685-1757) — seria, por essa altura, contratado para a Real Capela por D. João V, fácil é perceber que circulação da fama dos Bibienas seria grande. Anos antes, Ferdinando Bibiena, o célebre autor do tratado L’Architettura Civile preparata su la Geometria, e ridotte alle Prospecttive, tinha estado em Madrid entre 1709 e 1711 ao serviço de Carlos III. E toda a família Bibiena viajava frequentemente pelos mais diversos cantos da Europa, espalhando o nome e a fama, pelo que, quando D. José procurou alguém capaz de levantar os novos teatros, o nome Bibiena deverá ter surgido com naturalidade.

Na origem desta família esteve Giovanni Maria Galli (1619-1665), natural de Bibiena, na Toscana, cujo nome assumiu como apelido para estabelecer a diferença com o bolonhês Giovanni Galli, igualmente pintor. Dele descenderam, entre outros, Ferdinando (1657-1743) e Francesco (1659-1739), dois insignes cenógrafos e arquitectos teatrais. De Ferdinando descendem por sua vez Giuseppe (1695-1757) e Anto-nio (1697-1774) que atingiram, se não ultrapassaram, a envergadura do pai. Alessandro (1686-1760), fi-lho de Antonio e neto de Ferdinando foi igualmente cenógrafo. Com Carlo (1721-1787), descendente de

10 Cantares, dramas representados em teatros particulares de Lisboa e outras cidades, BN; referido por: CÂMARA, Maria Alexandra Gago da, Os Espaços Teatrais na Lisboa Setecentista: Subsídios para o Estudo da Arquitectura Teatral, Tese de Mestrado apresentada à FCSH-UNL, Lisboa, Policopiado, 1991, Vol. I, Nota 7, p.112

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Giuseppe, neto de Ferdinando e primo de Alessandro, encerrou-se a célebre geração. De entre os vários filhos de Francesco apenas Giovanni Carlo (1717-1760) seguiu a tradição familiar.

Não surpreende pois que D. José, tenha procurado um dos Bibienas para tratar da construção de novos espaços teatrais em Portugal. E por isso foi contratado Giovanni Carlo Siccinio Galli Bibiena, que veio para Portugal aureolado do renome familiar e carregado de desenhos do tio e do pai11, em 1752.

Corrado Ricci, aludindo a ele, escreveu que: “poco dispinse e architettó in Bologna”12. E é verdade que as referências à obra de Giovanni Carlo, na extensa bibliografia sobre a família, são também escassas. A obscuridade da sua biografia antes da vinda de Bolonha para Lisboa foi durante muito tempo tão opaca para nós, como, para os italianos, a sua estadia em Portugal. Ricci diz-nos: “Ma poi ricatasi a Lisbonna e la rimasto e morto fu quasi dimenticato degli scritori bolognesi”13.

Felizmente, estudos mais recentes, como I Bibiena, Una Famiglia Europea, desenvolveram um pouco mais as notícias sobre Giovanni Carlo, concluindo-se daí que, embora professor de arquitectura na Aca-demia de Bologna e com substancial actividade como cenógrafo, a sua prática enquanto arquitecto —em Itália— foi algo limitada14, embora os escassos dez anos entre a sua formação e a vinda para Portugal possam em parte constituir uma explicação.

O excelente trabalho de Pedro Januário, Teatro Real de la Ópera del Tajo (1752-1755)15, constitui o mais detalhado estudo e uma fonte incontornável no conhecimento sobre este autor, desde a sua origem e for-mação em Itália até à sua vinda para Portugal, e a sua actividade entre nós até à sua morte, em 1760, não sem antes se ter naturalizado cidadão português.

Acompanhando Giovanni Carlo, vieram também para Lisboa, ao serviço da corte de D. José I, um con-junto de artistas, decoradores, pintores e maquinistas, para ajudarem na construção dos novos teatros. Entre estes, contavam-se Giacomo Azzolini, arquitecto; Giovanni Berardi, pintor e gravador; Petronio Mazzoni, arquitecto e maquinista; mas também Paolo Dardani, Marco Riverditi, Fillipo Maccari e Fran-cesco Cignani16. Alguns destes artistas ficariam definitivamente em Portugal, no que seria uma excelente aquisição para o panorama nacional das artes e origem de um conjunto de trabalhos que marcariam não

11 É do que resta desses desenhos que compõe a excelente colecção do MNAA. Vd. Museu Nacional de Arte Antiga, Desenhos dos Galli Bibiena, Arquitectura e Cenografia, Catálogo de Exposição Temporária, Lisboa, MNAA, 1987. 12 RICCI, Corrado, I Teatri di Bologna nei sécolli XVII e XVIII, apud “Pano de Ferro”, in: Diário da Manhã, de 1.9.1937. 13 RICCI, Corrado, I Teatri di Bologna nei sécolli XVII e XVIII, apud “Pano de Ferro”, in: Diário da Manhã, de 1.9.1937. 14 LENZI, Deanna, BENTINI, Jadranka, I Bibiena, una famiglia europea, Vicenza, Marsilio, 2000, p.31-2. 15 JANUÁRIO, Pedro, Teatro Real de la Ópera del Tajo (1752-1755): investigación sobre un teatro de ópera a la italiana, para una posible reconstitución conjetural, basada en elementos iconográficos y fuentes documentales, Madrid, s/n, policopiado, Tese de Doutoramento apresentada na Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Unversidad Politécnica de Madrid, 2008.16 MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho, “Os Teatros Régios Portugueses em Vésperas do Terramoto de 1755”, in: Revista Broteria, Julho de 2003, vol.157, p.21-43 [p.23].

131Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

apenas o âmbito teatral mas também a cultura portuguesa da época. Com efeito, se pensarmos que Pe-trónio Mazzoni esteve, mais tarde, no início dos anos sessenta do séc. XVIII, ligado à reformulação do teatro da Rua dos Condes — peça essencial nas linhagens dos teatros portugueses durante mais de um século— ou a presença de Giacomo Azzolini em obras tão importantes como o Picadeiro Real (iniciado em 1787), em Lisboa, hoje Museu dos Coches, compreende-se bem a importância daquela vinda.

A chegada de Giovanni Carlo a Lisboa deu-se em inícios de Fevereiro de 175217, sendo de imediato en-carregue de realizar o que se viria a designar como o Teatro do Forte, a adaptação de uma das salas do torreão do Paço da Ribeira para sala de representação operática, avançando em simultâneo com os pro-jectos e obras dos Teatros de Salvaterra e da Ópera do Tejo, seguindo-se, mais tarde, o Teatro da Ajuda, já em 175518.

3. O Teatro de Salvaterra

Desde que começou a ser construído, na década de 40 do séc. XVI, o Paço de Salvaterra foi continua-mente sofrendo alterações e acrescentos vários. A extensão e complexidade da sua forma e implantação, a escassez de desenhos, a sua decadência e a prematura e quase total destruição, tornaram o seu conheci-mento difícil e qualquer esforço de reconstituição problemático.

O melhor estudo sobre o Palácio continua a ser o de Joaquim Correia e Natália Guedes19, mas que não aprofunda muito a parte relativa à Ópera. Outros contributos parcelares, como o de Isabel Mayer Godi-nho, de Giuseppina Raggi, de Pedro Januário e, mais recentemente, de Aline Gallash-Hall e de Rossana Brescia, acrescentam alguns documentos, leituras e informações, sem, no entanto, ser ainda possível uma leitura clara e global.

No início da segunda metade do séc. XVIII, quando D. José I empreendeu, também ele, um vasto pro-jecto de remodelação, incluiu um grande teatro para, nos meses que a Corte ali passava, normalmente Janeiro e Fevereiro, dispôr de um outro divertimento além da caça. E, em janeiro de 1753 foi inaugurado o Teatro Real de Salvaterra, construído segundo projecto de Giovanni Carlo Bibiena.

17 MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho, “Os Teatros Régios Portugueses em Vésperas do Terramoto de 1755”, in: Revista Broteria, Julho de 2003, vol.157, p.21-43 [p.23]. 18 É habitualmente indicada a construção do Teatro da Ajuda em 1762. Porém, estudos recentes de Aline Galash-Hall confirmaram a data de 1755 como a mais exacta para este recinto. Ver: GALLASH-HALL, Aline, A Cenografia e Ópera em Portugal no Século XVIII. Os Teatros Régios 1720-1793, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Évora, Évora, policopiado, 2013. 19 CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, GUEDES, Natália Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a Corte: a Ópera: a Fal-coaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

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A Gazeta de Lisboa de 31 de Janeiro de 1753 confirma: “...as cartas de Salvaterra de 23 de Janeiro nos dão notícia de haverem Suas Magestades fidelissimas chegado aquele sitio pelas 10 horas da noite do dia em que de aqui partiram; e logo se foram divertir com a opera representada na nova sumptuosa casa, que para semelhante uso fez Sua Magestade expressamente edificar...”

O terramoto de 1755, afectando embora outras partes do palácio, não só não destruiu o teatro como não interrompeu a sua actividade. Comprova-se isso pois, escassos três meses depois do dia 1 de Novembro de 1755, foram postos em cena dois dramas e uma comédia20. E manter-se-ia em actividade, enquanto teatro régio, pelo menos até 1792. Seguindo-se depois um período de progressivo abandono, com um grande incêndio em 1817 (onde pouco mais escapou que a Capela e a Ópera) o que acenturaria ainda mais a degradação geral levando à sua cedência ao Estado, em 1849, que o venderia em hasta pública, o que resultou na sua destruição.

Joaquim Verissimo Serrão publicou a transcrição do relato de um viajante francês que visitou o teatro em 1765 ou 176621, sendo possível obter dele três importantes indicações. Por um lado ficamos a saber que “...le soir nous encontré l’opera composé de 80 musiciens italiens tant instruments que voix (...) l’orchestre contient environ 25 a 30 instruments”, aproximadamente o mesmo número da Ópera do Tejo, em Lisboa, o que era natural pois os músicos seriam certamente os mesmos, deslocando-se com o Rei e a Corte. Por outro lado, diz o francês que “...Les femmes Etrangéres ni portuguaises ne peuvent pas meme entree au spectacle a Salvaterra. A l’egard des hommes soit Etrangeres soit Portugais lors ils sont d’un certain rang ils obtiennent des billets pour le Parquet qui est la place des Fidalgos”. Mas sobretudo descreve-nos que: “La salle de spectacle de Salvaterra peut tout au plus contenu 500 personnes il y a 3 ranges de loges qui sont aux premieres 3 loges de chaque cote. Le fonds est un amphiteatre avec une galerie qui prolonge de chaque cote les 1.eres Loges. Cet amphiteatre couvert d’un tapis a franges et soutenu par des arbres en maniä detente est la place du Roi qui y a fauteuil au millieu à esta investigadora assenta sobre vários aspectos e parece clara e convincente. Além da planta do referido teatro ser de evidente “impianto bibienesco”, dois desenhos do Album de Costa e Silva parecem ter relação estreita com este teatro. Um dos desenhos é exactamente igual à planta existente no MNAA, sendo o outro um corte transversal do mesmo teatro onde, no arco do proscénio, se encontram bem visiveis as Armas Reais portuguesas. Consequentemente, “la perfetta coincidenza tra la struttura della decorazione del soffito e la pianta del Museo Nazionale di Arte Antica, la sontuosità della decorazione, la destinazione regia dell’architettura, permettono di riferire questi tre disegni ad un teatro bibienesco portoghese”22. Mais ainda, a autora verifica também que não se trata nem da Ópera do Tejo nem do da Ajuda pelo que conclui que se trata do Teatro de Salvaterra. E confirma-o constatando

20 BRITO, M. C., Opera in Portugal in the Eighteenth Century, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.206.

21 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Notícia de uma Viagem a Portugal de 1765-1766, Lisboa, 1960, p.14-5. 22 RAGGI, Giuseppina, G. Carlo Sicinio Galli Bibbiena, Teatro di Salvaterra a Lisbonna, Cat.82, in LENZI, Deanna e BENTINI, Ja-dranka, I Bibiena, una famiglia europea, Catalogo da Exposição de Bologna Set.2000-Jan.2001, Marsilio Editore, Venezia, 2000, p.325.

133Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

a congruência entre as descrições do viajante francês que acima vimos referido e a planta do MNAA, o que igualmente confirmamos. Ou seja, pode dizer-se que se trata da planta desse teatro. Ou pelo menos de uma planta destinada a esse teatro.

Existe um outro desenho na Colecção do MNAA, por nós encontrado e relacionado com o que Giuseppi-na Raggi tinha reportado, e que, a nosso ver, diz igualmente respeito ao Teatro de Salvaterra. Na verdade, existem evidentes pontos de consonância entre a planta que identificada como sendo a Planta do Teatro de Salvaterra (MNAA, Des. Inv 1670) e este outro desenho (MNAA, Des. Inv. 1696).

O desenho inventariado com o nº1696 é o corte longitudinal de um teatro. O desenho está incompleto, pois a zona da sala está apenas desenhada em linhas gerais a lápis não estando sequer desenhadas as partes para trás da parede limite posterior da sala. Em contrapartida, a base e a zona do palco estão dese-nhadas a tinta e coloridas com aguadas. Não existem quaisquer indicações suplementares, tal como não existe legenda ou escala.

No citado artigo, Giuseppina Raggi, refere, que “diversamente dalle soluzione adottate dai suoi maestri, l’andamento della cavea è scandito dalla successione di colonne, binate nella parte ad anfiteatro, probabil-mente di ordine gigante [sublinhado nosso]23. Ora é exactamente essa solução que apresenta o corte em questão.

São vários os pontos de coincidência: —o mais importante é, sem dúvida, o facto da disposição das colu-nas de ordem gigante terem perfeita correspondência no corte e na planta, inclusivé nas colunas duplas na Tribuna Real; o mesmo acontecendo com o módulo das pilastras com arcos que seguram a parede lateral do palco. Estabelecendo a proporção entre os dois desenhos, verifica-se que correspondem, exac-tamente, aos quatro módulos que existem na planta na parede lateral da sala. O arranque da escada que se vê no corte, em baixo, junto à parede anterior da sala corresponde à escada em ‹‹L›› que existe nos cantos anteriores da planta.

Adicionalmente, as cores cinza, rosa e amarelo, são idênticas em ambos desenhos e ambos não tem indi-cação de legenda ou escala, tal como, do mesmo modo, a marca de água do papel (“C e II HONIG”) possui igualmente correspondência. A única pequena discrepância ocorre nas colunas que a ntecedem o proscé-nio que, embora mantendo as mesmas distâncias entre si, tal como ocorrem na planta, estão ligeiramente destacadas dos respectivos alinhamentos. Mas, tal como já referimos anteriormente, podem tratar-se de desenhos intermédios, de estudo, o que justifica a variação.

23 RAGGI, Giuseppina, G. Carlo Sicinio Galli Bibbiena, Teatro di Salvaterra a Lisbonna, Cat.82, in LENZI, Deanna e BENTINI, Ja-dranka, I Bibiena, una famiglia europea, Catalogo da Exposição de Bologna Set.2000-Jan.2001, Marsilio Editore, Venezia, 2000, p.326.

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Infelizmente, o Corte não representa a parte que antecederia a sala de espectáculos e a Planta não apre-senta a zona do palco e respectivos anexos, pelo que não se podem estabelecer mais pontos de identidade. De qualquer modo, parece razoável concluir que, em face do aduzido, se poderá atribuir o documento “MNAA, Des. Inv. 1696” a Giovanni Carlo Bibienna como um desenho destinado ao Teatro de Salvaterra.

Não obstante existir um conjunto de desenhos de levantamento do Paço de Salvaterra no AHMOP24 nada aí se encontra que possa mostrar a forma do teatro. Aline Gallash-hall, aponta uma das mais antigas, assinada por Carlos Mardel25, presumivelmente quando este era o arquitecto dos palácios régios, entre 1747 e 1757, tentando demonstrar que ela seria anterior à construção do teatro e que as cavalariças onde existe a designação“Chão do Theatro”, eram a situação existente antes da construção da Ópera, anteriores, portanto, a 175326. Porém, é dificil compatibilizar esta interpretação com outra planta do mesmo palácio existente no AHMOP (cat. 652), claramente posterior, pois não só já está na sua forma definitiva o cha-mado “Palácio Novo”, mas também já ali está assinalado um conjunto de arruamentos e construções que, apesar deste desenho igualmente não estar datado, faz pressupôr que é de uma época ulterior. Porém, a singularidade é que neste desenho, no “Chão do Teatro” (que mantém essa designação neste segundo desenho) continuam a estar marcadas as cavalariças assinaladas no desenho de Carlos Mardel. Quer isto dizer que: — ou a base do mesmo desenho foi mantida sendo acrescentadas apenas as construções novas, o que é pouco verosímil; ou, hipótese nova, sempre existiram as cavalariças mantendo-se sob o teatro, que estaria assim construido sobre elas, a partir do primeiro piso, reforçando a afirmação que vimos aci-ma sobre o seu grande volume exterior.

Com isto, não deixava de se poder designar “chão do teatro”, “chão” no sentido de “implantação” ou de “localização”, mas não de “piso” do teatro pois que esse estaria, de facto, uns metros acima.

Fazendo-se o exercício de redução dos elementos do teatro que conhecemos, planta e corte, e ensaiando-se uma implantação nas paredes remanescentes, sabendo-se que as proporções, em planta, deste teatro (largura:comprimento) eram de 1:4, verifica-se que podem, nas dimensões gerais, encontrar-se algumas semelhanças. Porém, quanto a vãos ou quanto aos contrafortes das paredes, nada se pode detectar.

Resumindo, podemos dizer que, relativamente ao Paço de Salvaterra e mais especificamente ao seu teatro, a Ópera de Salvaterra, não obstante o substancial crescimento de estudos e informação coligidos e elabo-

24 PEREIRA, Maria Stela Afonso Gonçalves, COSTA, Mário Alberto Nunes, Catálogo do Arquivo Histórico do Ministério da Habitação e Obras Públicas, Lisboa, AHMOP, 1980, Cat. nº652 a nº 655.25 Publicada em: CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, GUEDES, Natália Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a Corte: a Ópera: a Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p.34.26 Ver: GALLASH-HALL, Aline, A Cenografia e Ópera em Portugal no Século XVIII. Os Teatros Régios 1720-1793, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Évora, Évora, policopiado, 2013, p.81-2.

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rados na última década, muito há ainda a investigar e a descobrir. E é possível, se os estudos sobre ar-quitectura e história da arte em Portugal continuarem a ter algum apoio, vir a surgir mais informação que permita uma visão mais clara, aproximando-se progressivamente de uma leitura mais profunda e estabilizada.

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CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, GUEDES, Natália Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos:  a Corte: a Ópera: a Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

GALLASH-HALL, Aline, A Cenografia e Ópera em Portugal no Século XVIII. Os Teatros Régios 1720-1793, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Évora, Évora, policopiado, 2013.

JANUÁRIO, Pedro, Teatro Real de la Ópera del Tajo (1752-1755): investigación sobre un teatro de ópera a la itali-ana, para una posible reconstitución conjetural, basada en elementos iconográficos y fuentes documentales, Madrid, s/n, policopiado, Tese de Doutoramento apresentada na Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Unversidad Politécnica de Madrid, 2008.

MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho, “Os Teatros Régios Portugueses em Vésperas do Terramoto de 1755”, in: Revista Broteria, Julho de 2003, vol.157, p.21-43.

137Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Incúria, degradação e demolição no património histórico e cultural de Salvaterra de Magos - Do Séc. XIX a 1912

Roberto Caneira – Técnico Superior de História da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos [email protected]

1. Introdução

O presente trabalho “Incúria, degradação e demolição no património histórico e cultural de Salvaterra de Magos – do séc. XIX a 1912”, tem como principais objectivos dar a conhecer os diferentes tipos de vandalismo e atrocidades cometidos contra o património cultural em Salvaterra de Magos.

O espaço temporal que o estudo abrange é balizado entre as primeiras décadas do séc. XIX e 1912. Uma época caracterizada pelas invasões francesas e a consequente pilhagem aos monumentos de Portugal, outro aspecto é a guerra civil entre liberais e absolutistas, e a destruição de monumentos associados à ideologia absolutista, e por fim os anos seguintes após a implantação da República, onde se nota um vandalismo ideológico, com o objectivo específico de apagar a história e simbologia que estava ligada à monarquia.

Em finais do Séc. XIX, surgem em Portugal figuras como Alexandre Herculano, Almeida Garrett ou Ramalho Ortigão entre muitos patrimonialistas, que primam pela defesa do património cultural, assumem uma posição pública em defesa, valorização e divulgação do património cultural.

Ao longo do presente trabalho abordaremos actos de vandalismo, como a incúria humana que provocou um incêndio no Paço Real de Salvaterra de Magos, a degradação da Igreja de S. Sebastião e a sua destruição, as demolições dos pelourinhos de Muge e Salvaterra de Magos, e por fim a questão do republicanismo e o aniquilamento dos símbolos da monarquia.

2.Vandalismo no património. Medidas de protecção e salvaguarda – Antecedentes históricos

O termo vandalismo foi criado pelo abade Gregoire em 1794. A origem etimológica da palavra está relacionada com os vândalos, grupo de invasores bárbaros germânicos que no séc. V assolaram, pilharam e destruíram monumentos em Roma e noutros locais do Império Romano.

A palavra foi criada por Gregoire com objectivo específico de ditar o fim das atrocidades que estavam a

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ser cometidas aos monumentos e edifícios históricos após a revolução francesa de 1789: «eu criei o termo para matar a coisa»1.

Com a revolução francesa assiste-se a uma vaga devastadora de igrejas, castelos, palácios e estátuas que estavam associados à monarquia francesa. A tarefa de proteger os monumentos tornou-se complicada de concretizar, devido à ideologia revolucionária imperante na época, contudo aos poucos surge a consciencialização da importância dos testemunhos históricos:

«os testemunhos do passado deixam de ser encarados, como testemunhos duma monarquia odiada, ou mesmo de um clero contestado, para passarem a pertencer à Nação inteira, sob a forma de um património comum, cujo valor é eterno.»2

Após a revolução de 1789, surgem decretos e normas para evitar o vandalismo e a destruição do património, a título de curiosidade veja-se o caso do decreto de 4 de Junho de 1793:

«que pune com dois anos de prisão quem quer que degrade os monumentos dependentes de proprietários nacionais, inaugura uma série de textos jurídicos especificamente dedicados à conservação.»3

No século posterior (séc. XIX), Victor Hugo é a figura charneira de defesa dos monumentos com o seu manifesto «Guerre aux demollisseurs».4 Outro nome francês que se destaca na defesa do património é Comte Montalembert. Ambos iriam influenciar Alexandre Herculano na defesa dos valores históricos dos monumentos.

3. Portugal e a consciencialização do património. A acção de alguns patrimonialistas na defesa do património.

Em Portugal a consciencialização do valor histórico e salvaguarda do património, constitui-se durante o séc. XIX, onde pontificam figuras como Alexandre Herculano, Almeida Garrett ou Ramalho Ortigão entre outros patrimonialistas, que encetam uma aguerrida luta pela defesa e preservação dos monumentos históricos.

No século anterior, no reinado de D. João V foi publicado o Alvará Régio de 20 de Agosto de 1721. Este decreto é um dos primeiros documentos que regulamenta a necessidade de conservar monumentos antigos em Portugal.1 Louis Réau, Histoire du vandalisme. Les monuments détruits de l’art Français, Paris : Robert Laffont, 1994, p.102 Isabel Martins Moreira, Museus e Monumentos em Portugal, 1772-1974, Lisboa, Universidade Aberta, 1989, p. 1043 Marc Guillaume, Op. Cit, p. 1074 Françoise Choay, As questões do património – Antologia para um combate, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 148

139Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

O alvará joanino assume-se como um documento pioneiro na salvaguarda do património português, quer ao nível dos edifícios quer ao nível da estatuária, epigrafia entre outros:

«O monarca declarou-o explicitamente justificando o alvará com o seu desejo em contribuir para o impedimento de uma perda tão danosa para o prestígio do reino, a dos monumentos antigos, que permitiram o conhecimento dos seus séculos passados: “E desejando eu contribuir com o meu Real Poder, para impedir hum prejuízo tão sensível, e tão danoso à reputação, e glória da antiga Lusitânia, cujo Domínio e Soberania foi Deus servido dar-me.”»5

O séc. XIX como já referimos, marca o início de uma nova era na defesa e valorização do património, fruto das novas ideias liberais que aconteciam na Europa, mas também do movimento romântico e uma geração de pensadores e activistas que fizeram da protecção e valorização do património a sua bandeira:

« foi um movimento de afirmação da sociedade liberal e romântica gerada no contexto e no ambiente de intervenção pública da intelectualidade ilustrada, ela própria responsável pela criação e fundamentação das estruturas culturais da sociedade oitocentista. Implicou o reconhecimento de um conjunto de valores patrimoniais, sobretudo monumentos, históricos e nacionais, que importava transmitir às gerações vindouras como herança do passado.»6

Alexandre Herculano através do periódico “O Panorama”, escreveu vários textos sobre os monumentos pátrios, criticando os “hunos modernos” apoiantes da picareta e do camartelo, denuncia os actos de vandalismo e identifica os seus responsáveis. 7 Os opúsculos de Herculano são considerados por muitos como o pioneirismo moderno da salvaguarda do património português. Os temas focados têm uma actualidade impressionante.

Almeida Garrett com a edição das “Viagens na minha terra” lamenta o estado ruinoso e calamitoso de alguns monumentos em Santarém, e refere também a barbaridade dos restauros efectuados que “falsearam” por completo alguns monumentos, veja-se o caso da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Santarém:

«A real colegiada de Afonso Henriques, a quase-catedral da primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais históricos templos de Portugal, isto?... esse igrejório insignificante de capuchos! mesquinha e ridícula massa de alvenaria, sem nenhuma arquitectura, sem nenhum gosto! Risco,

5 Paulo Simões Rodrigues, O longo tempo do Património. Os antecedentes da República (1721-1910), In 100 anos de património. Memória e identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa, Ministério da Cultura/Igespar, 2010, p.206 Jorge Custódio, De Alexandre Herculano à Carta de Veneza, In Dar Passado ao Futuro, SEC/IPPAAR, Lisboa, 1993, p. 357 Cf. Alexandre Herculano, Monumentos Pátrios, Cap. II [consultado a 10-02-2011], disponível em: http://www.gutenberg.org/fi-les/16922/16922-8.txt

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execução e trabalho de um mestre pedreiro de aldeia e do seu aprendiz! É impossível.»8

Outra figura de destaque na defesa do património, foi Ramalho Ortigão, a edição da obra “O Culto da Arte em Portugal”, é imprescindível para compreender a cultura artística da segunda metade do séc. XIX em Portugal.

A consciencialização do património cultural surgem com estes homens que muito denunciaram as destruições e apelaram para a sua salvaguarda, contudo em Salvaterra de Magos foi precisamente no séc. XIX que se dão as maiores atrocidade a certos imóveis de interesse histórico nesta vila.

4. Incúria, degradação e demolição no património cultural e histórico de Salvaterra de Magos.

4.1 Incúria no Paço Real de Salvaterra de Magos

Salvaterra de Magos enquanto aglomerado urbano tem a sua génese histórica na outorga de Foral, a 1 de Junho de 1295 pelo rei D. Dinis. A construção de um Paço nesta localidade, foi um factor de presença constante da Corte, que vinha passar os invernos a Salvaterra de Magos.

A referência mais antiga que se encontra ao Paço Real de Salvaterra de Magos, remonta ao reinado de D. Pedro I, quando doa uma carta de privilégios aos habitantes de Santa Maria da Glória em 1364, no reinado seguinte de D. Fernando é assinado no Paço, o Tratado de Salvaterra de Magos em 1383.

No séc. XVI o Infante D. Luís, filho de D. Manuel reedifica o antigo Paço medieval e constrói a Capela Real, verdadeira jóia do renascimento. Até 1690, vão-se sucedendo várias remodelações no Paço, com vários mestres-de-obras de renome, caso de Miguel de Arruda e Filipe Terzi. No reinado de D. José, a família real passa grandes temporadas em Salvaterra de Magos, para isso muito contribuiu a construção da Casa da Ópera e a afirmação da Falcoaria Real, e as pomposas caçadas com falcões, que são narradas na imprensa da época, caso do Mercúrio Português e a Gazeta de Lisboa.

No início do séc. XIX, com as invasões francesas e a consequente fuga da corte para o Brasil, o Paço entra num longo processo de degradação. Bastaram poucos anos no séc. XIX, para que os vestígios deste Palácio Real fossem destruídos.

Em 1815 o almoxarife de Salvaterra de Magos vendo a progressiva ruína do Paço, solicita apoio. A troca de correspondência é elucidativa dos lastimável estado de degradação do Palácio, e que muitos dos seus

8 Almeida Garrtet, Viagens na minha terra, [consultado a 10-02-2014], disponível em: http://www.triplov.com/contos/garrett/viagens/cap28.htm

141Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

aposentos foram usurpados por militares que fizeram de algumas divisões quartel, e também por muitos particulares que viviam sem o mínimo de condições:

«Senhor,

A conservação dos monumentos públicos principalmente daqueles que transmitem a mais remota posteridade à memória de tantas acções de beneficência praticada pelos Snrs Reis deste Reino e que fazem recordar à nação dos tempos mais ditosos da sua fluorescência é sem duvida de maior interesse e utilidade: tais são, sem dúvida de maior interesse os Reais Paços de Salvaterra (…).

Eu Senhor, já por outras vezes tenho feito iguais representações e agora animo-me a dizer que uma vez que V.A.R. não dê as providencias para o seu pronto reparo e reedificação, antes de mui poucos tempos os referidos Paços se reduzem ao estado que chegaram os de Almeirim; pois que já hoje não apresentam senão um montão de ruínas; tristes efeitos dos insultos do tempo e da tropa que neles se tem aquartelado, e ainda de alguns malvados do povo; para o que seria muito preciso expressa ordem ao Juiz de Fora desta vila para com todo desvelo tirar sem perda de tempo uma devassa e fazer castigos criminosos.

Seria muito conveniente que esta fosse tirada na minha presença visto o pouco que eles se interessam que haja criminosos desta natureza, sendo ao mesmo tempo o dito Juízo de Fora advertido para fazer recolher a este Palácio todos os trastes que eu lhe disser se acham fora dele ou furtados do tempo da invasão ou ainda emprestados à tropa, o que já em tempo do outro juiz de fora se mandou fazer e não se concluiu.

Salvaterra de Magos, 31 de Março de 1815, Vassalo e súbdito, o mais humilde de V.A.R., o Almoxarife dos Paços, José dos Santos Freire da Costa Caldeira.»9

Apesar dos apelos do Almoxarifado a pedir apoio para a recuperação do Paço, essa ajuda nunca se realizou. Em 1817 um incêndio provocado pela acumulação de palha existente na sala dos archeiros afectou gravemente certas dependências do Palácio:

«(…)Eram duas horas pouco mais ou menos quando uma pobre família que vivia no quarto de baixo, correspondente à sala dos archeiros acordou quasi sufocada em fumo que descia da mesma sala. Esta família desperta a vizinhança e faz aviso ao Almoxarife e com a brevidade possível naquela hora do geral descanso toda a povoação sucessivamente concorreu, mas já de balde pretendeu atalhar o fogo na casa do seu principio; a falta de bomba, a densa escuridade da noite, a grande altura do Palacio e finalmente o horror das chamas tudo paralizava as forças e nem cada um sabia no meio da confusão e precipitação como quando e onde havia de emprega-las de maneira que não obstante o zelo e actividade que mostrou todo o

9 Joaquim Manuel da Silva Correia; Natália Brito Correia Guedes, Op. Cit, p. 116

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povo de Salvaterra (segundo me consta por informação até a hora em que eu fui) apenas puderam salvar-se a Real Ermida e a Casa da Opera. (…)

Sobre a origem deste incêndio é voz geral que os criados do Almoxarife com o consentimento deste acenderam um pouco de carolo de milho já velho, ou para se aquentarem ou mesmo para o queimarem na sobredita sala dos Archeiros para onde na véspera recolheram uma carrada de feijão com a palha, e que do desprezo deste lume se levantara o fogo.»10

A incúria foi a responsável pela degradação e consequente desaparecimento do Paço. O Almoxarife de Salvaterra de Magos não está isento de culpas neste incêndio e também na degradação do Paço, porque não acautelava nem zelava pela conservação do Paço Real de Salvaterra de Magos:

«Fiando-se na voz do povo de Salvaterra, João dos Santos podia afirmar que o almoxarife não guardara, mas estragara e delapidara.

Dos panos que forravam os tectos e os corredores, fizera sacos, dos ferros arrancados das fornalhas, ferramentas para sua lavoura e, de alguns compartimentos do Paço covil de ciganos. Senhor de sua importância, o almoxarife induzia os intrusos hóspedes a que não saíssem, porque era ele que mandava no palácio.

Verdadeiro vândalo, que metia no jardim bois a pastar, em tempos tinha sido suspenso de suas funções (…)».11

Em 1849 a rainha D. Maria II vendo a ruína do Paço e mais dependências, autoriza a venda de vários imóveis que compunham o conjunto palaciano de Salvaterra. Mesmo após a venda dos imóveis do Paço em hasta pública, verifica-se a existência de fachadas do Palácio que continuavam em lamentável estado de ruína, e que o executivo municipal decide destruir:

«Illustrissimo Senhor = A Câmara Municipal d’este Concelho em observância do artigo 120 do Código Administrativo participa a Vossa Senhoria que achando-se a parede velha, resto do passadiço do Palácio Queimado para a Cappela em completo estado de ruína não só desafiando demasiado e funebremente a praça desta villa mas ameaçando cahir como já tem alguns pedaços correndo assim o risco à segurança pública. A Camara espera que Vossa Senhoria em vista do exposto se digne dar as devidas providencias para que seja derrubada a ditta parede. = Deos guarde Vossa Senhoria – Salvaterra de Magos em Câmara do Primeiro d’ Agosto de mil oitocentos cincoenta e quatro = Illustrissimo Senhor Administrador do Concelho.

10 Joaquim Manuel da Silva Correia; Natália Brito Correia Guedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos, A Corte, A Ópera, A Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 11611 José Estevam, Anais de Salvaterra de Magos, Lisboa, Edição Couto Martins, 1959, p. 105

143Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

O Presidente da Camara Joze Ferreira Roquette».12

Apesar da ruína alguns anexos do Paço continuavam ocupados por pessoas, sem o mínimo de condições, o que era um foco de infecções e constituía uma perigo para a saúde pública, situação que levou à intervenção do executivo municipal para resolver este problema:

«Nesto acto propoz o Vereador Maximiano Monteiro Grillo que se oficiasse ao Administrador d’este Concelho para providenciar a respeito da aglomeração de gente no Palácio das Damas, vivendo n’um estado de imundice de saúde pública, proposta que foi aceite pela Câmara.» 13

Demoliram-se então os grandes paredões e aproveitaram-se a pedra e a caliça para as ruas e estradas do concelho.14 Dos vestígios do Paço Real de Salvaterra de Magos, hoje em dia apenas restam a Capela Real, três chaminés das antigas cozinhas em lamentável estado de degradação, algumas fachadas de celeiros, muros e cantarias, todo o resto desapareceu devido à incúria dos Homens, que não souberam zelar por este património.

4.2 Degradação e demolição da Igreja de S. Sebastião

Nas memórias paroquiais de Salvaterra de Magos, vem mencionado a existência da igreja de S. Sebastião:

«Tem esta villa, exeptuando a Capella Real, e a Caza da Misericórdia duas ermidas, uma de Sam Sebastião, e a outra de Sancto António, ambas existentes dentro da villa, sua administração pertence ao párroco desta Freguezia de Sam Paulo.»15

Não possuímos dados históricos sobre a sua edificação e caracterização, apenas sabemos a sua localização (mapa 1), que ficava no Largo S. Sebastião, no final da actual Avenida José Brito Seabra. Um documento datado de 1752 descreve que a Igreja de S. Sebastião estava bem paramentada, aberta ao culto e que havia uma ermitoa que administrava as esmolas dos fiéis, o que não era de muito agrado do pároco local:

«a ermida de S. Sebastião estava muito bem paramentada pelos concurso de Sua Majestade que com a sua costumada devoção tem assistido com os sacramentos preciosos mandando entregar a chave ao Sr. João Rodrigues como fui informado o qual é certo terá grande cuidado na guarda deles e no seu reparo ou aumento mas como na mesma ermida se acha uma ermitoa que se diz cuidar da sua perfeição sem licença

12 Registo de saída de ofícios 11 Janeiro 1854 a 10 Julho de 1868, fl.5v - 613 A.H.M.S.M. – Acta da Sessão Ordinária 28 de Dezembro 1864 – Livro de Actas 10 de Julho de 1863 a 19 Novembro 1875, fl. 3914 José Estevam, Op. Cit, p. 5315 Dicionário Geográfico de Portugal, Vol. XXXIII, 1758, citado na obra de Joaquim Manuel da Silva Correia, Natália Correia Guedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos, A Corte, A Ópera, A Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 94

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de ministro eclesiástico lhe não reprovo a devoção mas proíbo que por si mesmo administre as esmolas que os fieis dessem para o culto do mesmo santo.»16

Em finais do séc. XIX apresentava sinais de degradação e as ruínas evidenciavam pejamento, embaraço e ameaçavam ruir a qualquer altura. A edilidade pretendia construir uma escola e argumentando que não havia mais terreno decidiu adquirir as ruínas e inicia o procede à demolição da igreja:

«(…) Acquisição das ruínas da Ermida de S. Sebastião para a edificação da escola primária.»17

A Câmara Municipal de Salvaterra de Magos envia um oficio ao Governador Civil a solicitar o terreno da Igreja de S. Sebastião e explica a razão porque pretende demolir este edifício religioso:

«No Largo de S. Sebastião existem uns restos d’umma ermida d’aquelle Sancto, as quaes com o terreno onde estava a ermida forão concedidas pelo Governo aos festeiros do mesmo Sancto para reedificarem aquella; porem vendo estes que não podiam realizar o seu intento, desistirão do seu direito por termo, cuja Copia V. Ex.a achará juncta.

Aquelles restos como V.Ex.a observou, alem d’immundos e do pejamento e deformidade que fazem ao Largo pelo excessivo estado de ruína, em que se acham ameaçam um desabamento próximo; acrescendo que não há outro terreno para a edificação da escola primária em conformidade com as instruções de 20 de Julho ultimo senão o largo mencionado onde há a capacidade, isolamento, e salubridade, concorrendo também a circunstancia de ser o local mais central da povoação. Na presença a Camara se propõem deliberar pedir ao Governo de Sua Magestade a concessão das ruínas, e terreno da ermida refferidos.»18

A igreja de S. Sebastião foi demolida, contudo a escola só seria construída na década de 40 do séc. XX, com o nome Marechal Carmona, passados quase 80 anos!

Este exemplo de vandalismo está associado à necessidade urbanística, as ruínas pejavam o lugar e constituíam um perigo para os transeuntes, associada também à falta de um lugar para edificar uma escola, destruiu-se a igreja fazendo destruir um imóvel de interesse histórico.

4.3 Demolição dos pelourinhos de Salvaterra de Magos e de Muge

Os pelourinhos eram símbolos do poder local, estavam localizados em lugares centrais, próximos das Câ-

16 Francisco Câncio, Salvaterra de Magos, In Ribatejo Histórico e Monumental, vol. 29/30/31, Junta de Província do Ribatejo, 1939, p. 19917 Acta da Sessão de 5 de Novembro de 1866 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1863 – 1875, fl. 8518 A.H.M.S.M. – oficio de 6 de Novembro de 1866 - Registo de saída de correspondência 1854-1868, Fl. 73

145Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

maras Municipais, com as novas ideias liberais os pelourinhos estavam associados à simbologia absolutista, que importava renegar. Esta razão poderá ter contribuído para destruição dos pelourinhos de Muge e Salvaterra de Magos.

A vila de Muge foi concelho até 1837, data em que foi extinto e integrado no concelho de Salvaterra de Magos. Sobre o pelourinho de Muge também não existem dados descritivos nem históricos, nem sequer sabemos em concreto a sua localização, apenas que estava num Largo.

A Junta de Paróquia de Muge, faz um requerimento à Câmara Municipal de Salvaterra de Magos a solicitar autorização para demolir o pelourinho, porque segundo o Regedor este não possuía qualquer utilidade e propôs ainda que o pedestal fosse utilizado nas obras da reparação da igreja de Muge:

«(…) Foi presente um requerimento da Juncta da Parochia de Muge allegando que sendo n’aquella villa um pelourinho com seu pedestral de pedra sem utilidade publica ou particular antes com pejamento do Largo onde está situado e podendo tanto o pelourinho como o seu pedestral ser empregado com utilidade na reparação da Egreja Matriz pedia a Camara a concessão do mencionado pelourinho e seu pedestal para o fim mencionado. Tomado o requerimento refferido na devida consideração deferiram a elle.» 19

No que respeita ao pelourinho de Salvaterra de Magos, também não existem dados sobre as suas características e a sua origem. Através de um mapa datado de 1788, sabemos que ficava localizado em frente ao edifício da Câmara Municipal, próximo do antigo Paço Real.

Em 1872 este monumento é demolido porque um vereador propôs embelezar e aumentar o arvoredo do jardim que estava em frente à Câmara. Não houve qualquer voz contra este acto de vandalismo, dado que foi unanimemente aprovado:

«(…) Em seguida propoz o Vereador António José da Silva que para aformosear os Paços do Concelho se demolisse o pelourinho e se estendesse o arvoredo até afronte do Edifício Municipal o que foi unanimemente aprovado».20

Os pelourinhos de Muge e Salvaterra de Magos estavam degradados, eram vistos como obstáculos à reorganização urbana e pejavam o local onde estavam, estas são as razões apresentadas no livro de actas da Câmara. Contudo devemos ter em consideração que os pelourinhos eram vistos como símbolos do absolutismo, tornaram-se símbolos de um passado que importava esquecer ou destruir.

19 Acta da Sessão Ordinária de 30 de Maio de 1866 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1863-1875, fl.7820 Acta da Sessão Ordinária 7 Outubro 1872 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1875-1884, Fl. 230

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4.4 O Republicanismo e o património cultural

Com a implantação da República, as primeiras medidas dos republicanos foram a destruição de símbolos associados à monarquia. Em Salvaterra de Magos, os casos mais flagrantes deste radicalismo ideológico ocorreu ao nível da toponímia das ruas das vilas de Muge e Salvaterra de Magos, destruiu-se uma coroa real que estava num brasão do edifício da Junta de Paróquia e também se verifica a demolição de um símbolo religioso, uma cruz do Calvário, que a tradição popular afirma que se tratou de uma destruição feitas tendo em conta a laicidade republicana.

No edifico da antiga Câmara do extinto Concelho de Muge, que depois foi ocupado pela Junta de Paróquia, existia na fachada do edifício um brasão com uma coroa que foi retirada por ordem do Regedor (fig. 3):

«Leu-se um offício da Presidencia da Juncta de Paróchia de Muge, pedindo à Câmara para esta mandar arrear a Coroa Real existente no edifício Municipal onde se acha instalada a estação telegraphia d’aquella villa o que foi deliberado affirmativamente e conforme aquelle pedido.»21

Na Avenida do Calvário em Salvaterra de Magos, havia uma cruz com pedestal que estava integrado nos Passos da Paixão de Cristo. A sua origem remonta ao séc. XVIII (1647), segundo a existência de outros passos que ainda são visíveis na vila e que ostentam essa data (fig.4).

A tradição popular afirma que a cruz foi destruída pelos republicanos: «Ao topo da Avenida chamada antigamente de Calvário, existia um lindo cruzeiro que foi mandado apear pela fúria iconoclasta após a proclamação da República.»22 Sabemos através de pesquisas realizadas no Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos, que a razão do apeamento da cruz e não destruição se deve essencialmente à necessidade de aforar aqueles terrenos.

A cruz foi apeada e é recolocada no cemitério, onde ainda hoje permanece:

«(…) Em virtude dos aforamentos ultimamente feitos dos terrenos junctos do Calvário, a Câmara deliberou apear a cruz de pedra que alli se encontra e mandar conduzi-la para o cemitério d’esta villa, concedendo-se auctorização para ser erigida no mesmo cemitério, por quem a expensas suas, o desejar fazer.»23

Os degraus deste monumento foram reutilizados nas obras do Hospital de Salvaterra de Magos que estava a iniciar:

21 A.H.M.S.M. – Acta da Sessão Ordinária 29 Dezembro 1910 - Livro de Actas da Câmara Municipal – 1904-1912, Fl. 14322 Francisco Câncio, Salvaterra de Magos, In Ribatejo Histórico e Monumental, vol. 29/30/31, Junta de Província do Ribatejo, 1939, p. 199

23 Acta da Sessão Ordinária 9 de Novembro de 1911 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas da Câmara Municipal – 1904-1912, Fl. 186-186v

147Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

«(…)Por proposta do Presidente e unanimemente acceite, foram cedidos à Provedoria da Sancta Caza da Misericórdia d’esta villa, para serem utilisados nas obras do Hospital, algumas pedras e degraus do antigo cruzeiro do Calvário d’esta villa.»24

Estes dois casos ocorreram após a República, no primeiro caso destaca-se o vandalismo ideológico marcado pelo fervor republicano em querer apagar símbolos da monarquia, enquanto o segundo caso tem novamente a ver com uma questão de urbanismo, estava-se a aforar os terrenos e a cruz do Calvário foi desmantelada e colocada noutro local.

5. Conclusão

Em Salvaterra de Magos ocorreram acções de vandalismo contra monumentos de interesse histórico que faziam parte da identidade e memória local, precisamente numa época onde os ideais românticos de Herculano e Garrett definem uma estratégia para salvaguardar o património histórico.

Os diferentes tipos de vandalismo praticados no património edificado em Salvaterra de Magos, estão ligados a actos ideológicos mas a principal razão da destruição dos exemplos citados, prende-se com questões de urbanismo, muitos dos monumentos encontravam-se em lastimável estado de ruína que nada dignificavam os lugares onde se encontravam e também constituíam um perigo para quem ali passava.

O exemplo mais flagrantes da destruição do património é precisamente a incúria que se fez sentir no Paço de Salvaterra, a falta de interesse quer do Almoxarife do Paço, quer do próprio poder local, fez com que muitos dos aposentes deste Palácio fossem destruídos, se houve uma maior preocupação Salvaterra de Magos poderia ainda ter nos dias de hoje mais vestígios do Paço, que certamente enriqueceriam a história e seriam locais de interesse turístico.

Apesar dos atropelos cometidos ao longo dos tempos ao património cultural, a vila de Salvaterra de Magos ainda mantém nos dias de hoje um centro histórico, relativamente bem preservado, onde pontualmente se encontram alguns imóveis degradados

24 Acta da Sessão Ordinária 30 Novembro 1911 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas da Câmara Municipal – 1904-1912, Fl. 189

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6. Bibliografia:

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- A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1863 – 1875

- A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1875-1884

- A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1904-1912

- A.H.M.S.M. – Registo de saída de correspondência 1854-1868

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Mapa 1: Planta da Vila de Salvaterra de Magos de 1788. Estão assinalados no mapa a localização do pelourinho, da Igreja de S. Sebastião e a Cruz do Calvário. Fonte: Joaquim Manuel da Silva Correia, Natália Correia Guedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos, A Corte, A Ópera, A Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 33

Figura 1. Reconstrução da fachada do Paço Real de Salvaterra de Magos, segundo a existência de um ex-voto – Fonte: Joaquim Manuel da Silva Correia, Natália Correia G uedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos, A Corte, A Ópera, A Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 94

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Figura 2. Ex-voto do milagre da Horta d’El Rei – Ano: 1740

Figura 3. Brasão sem coroa que se encontra no edifício da Junta de Freguesia de Muge

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Figura 4. Cruz do Calvário – início do Séc. XX – Fonte: Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

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Memórias de menino e das casas que hoje na minha terra se desfazem:Um ensaio autoetnográfico sobre arquitectura popular

Leonardo Charréu,Professor Universitário

Centro de Artes e LetrasUniversidade Federal de Santa Maria, Brasil

[email protected]

Este texto procura estruturar-se na autoetnografia. A escrita que segue esta perspetiva de pesquisa procura traduzir a própria experiência de quem escreve e é usada para iluminar o contexto social em que está inserida. Segundo alguns autores, escrever sobre o vivido é muito mais que contar o sucedido. Por um lado, porque nunca se pode contar verdadeiramente tudo o que aconteceu, haverá sempre algo que escapa, por outro lado, porque na verdade, talvez o sucedido seja o mais irrelevante, restando o texto para fixar uma parte da experiência em toda a sua complexidade. Pelo menos aquela que se deixou captar pela escrita. A auto-etnografia constitui-se então como um processo de escrita e de (re)descoberta, ou (re)memorização, em que o autor vai expondo o seu “eu”, fazendo-o interagir com o meio cultural próximo, as suas dimensões simbólicas, os cenários vivenciados e os comportamentos de grupo.

É então sobre a arquitetura simples e humilde de Glória do Ribatejo, onde nasci, há 50 anos, que me proponho escrever. Longe de mim entrar em profundas divagações teóricas sobre a ciência arquitectónica. Essas competências estão-me vedadas por impreparação e incapacidade. No entanto, caminhamos, cada vez mais para uma sociedade auto-aprendente, tal a facilidade com que qualquer informação, mesmo a mais especializada, nos chega às mãos, parecendo-nos tão cabalmente explicada. Para aprofundar academicamente sobre o tema, recomendo as leituras classificadas que indico na bibliografia no final deste artigo, afinada e recolhida cuidadosamente. Na verdade pensava segui-la mas, afinal, acabei por não adotá-la na totalidade.

E não segui porque decidi que escrever sobre uma arquitetura vivida e sentida seria o melhor contributo que poderia dar a esta publicação tendo em mente que a arte da escrita, poética, literária, ensaística, ou outra qualquer, consiste em procurar conexões entre “aquilo” que é narrado pelo autor e “aquilo” que poderá pertencer ao mundo emocional e sentimental que existe (supostamente) em todos os(as) seus(suas) leitores(as) e que nos faz, todos, definitivamente humanos.

“Aquilo” é tudo o que sentimos na nossa relação com o espaço construído, aquela ideia persistente, em muitos de nós, da pequenez das coisas e das casas, quando, durante anos perdemos o contacto com os

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lugares arquitectónicos das nossas infâncias e, muitos anos depois, voltarmos a ter a grata possibilidade de os olhar de novo, a partir de uma escala e de um ângulo completamente diferentes. É a cozinha da casa dos nossos avós, parecendo-nos agora incrivelmente tão pequena, para ter alojado uma família tão numerosa, à volta da lareira. É a sala da escola primária onde fizemos o nosso exame da 4ª classe, parecendo-nos agora tão exígua (para ter albergado quase trinta e tal gandulas) quando, no período cíclico da nossa democracia, lá vamos depositar o nosso voto, para escolhermos os tolos gastadores seguintes, na esperança de um futuro que (pelos vistos) será tudo menos radioso.

Afinal, nós é que crescemos. Eu, pouco, na verdade. Lá fui custosamente até ao metro e sessenta, limitado pelos meus genes, absolutamente invencíveis contra a minha vontade, nesta questão altimétrica. Dizem que a partir desta idade (50) volta-se a encolher. Santo Deus.

É portanto sobre algumas das minhas memórias de menino que vou escrever, na certeza de que também serão lembranças comuns a muitos que, como eu, aproximando-se vertiginosamente do meio século de vida, acham que o que foi vivido para trás é merecedor de evocação e registo. Ou talvez seja apenas a presunção de que os da minha geração viveram e sentiram experiências irrepetíveis, sobre as quais, os mais novos, ou os “de fora”, jamais poderão verdadeiramente compreender a essência. É um texto etnográfico, precisamente, porque interage com um conjunto de elementos vivenciados que marcaram uma certa identidade e um consciente coletivo. Na Glória não somos superiores a ninguém, mas achamo-nos diferentes e orgulhamo-nos muito disso.

***

Ao contrário de muitas outras povoações portuguesas, o lugar de Sancta Maria da Glória, como é designada a vila1 nos textos mais antigos, nunca teve senhorio assumido e por isso não se lhe conhece naturalmente qualquer construção mais avantajada digna de fidalgo importante.

Até aos anos cinquenta do século passado, quando se fixaram, vindos de fora, comerciantes que logo ergueram edifícios de dois pisos, símbolo de status e de diferenciação social, no centro nevrálgico da aldeia, a igreja era, desde meados dos anos sessenta do século XIV2 o edifício mais notável em antiguidade, valor simbólico e volume. Aliás, interpretando a carta de mercês d`El Rei D. Pedro I, dada em plena Idade Média aos moradores deste lugar, verificamos que é essencialmente povo simples, ou arraia miúda, na popular designação de Fernão Lopes, as gentes que habitam estas terras, sendo-lhes concedidas regalias fora do comum para a época em troca da preservação da caça ao javali, que deveria ser da predileção do monarca. Entre estas regalias, a de colher madeira e cortiça à vontade para as suas casas e pocilgões, constituirá seguramente uma das mais antigas referências, não só relativamente aos “materiais de construção” como também no que respeita à finalidade prática desses materiais naturais. Terão sido seguramente de adobe, ou taipa, os primeiros casebres do lugar, com cobertura de palha, ou

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materiais que a charneca fornecia, como a cortiça.

Em boa verdade, a ausência do elemento rochoso determina, em muitos lugares do mundo a adopção da técnica construtiva e a situação geográfica da minha aldeia natal (hoje vila), numa zona planáltica, de transição entre a lezíria e a charneca mediterrânica da margem sul do Tejo, não pode fugir ao destino de construir em terra que, afinal, foi até mesmo utilizada em zonas de Portugal de solos rochosos como tecnologia barata para casas de apoio agrícola, estendo-se ao longínquo Brasil onde foi utilizada na maior parte das construções coloniais portuguesas3. Por incrível que pareça, metade da humanidade – cerca de 3 biliões de pessoas – vive hoje em casas de adobe4.

Normalmente atribuída à civilização árabe, sabe-se no entanto que a construção em terra é muito anterior e remonta há pelo menos a 10 000 anos atrás, a um período que ficou conhecido na história como Neolítico, período em que a humanidade deixou o nomadismo e passou a um modo de vida sedentário. Destas técnicas construtivas, sobressaem mais especificamente o adobe (elemento paralelepipédico feito de terra seca ao sol, previamente compactada numa forma de madeira) a taipa (argila ou terra compactada com maços de madeira entre dois taipais removíveis)5 e o tabique (uma variação da taipa, tendo um ripado de madeira entrelaçada, para dar mais consistência estrutural), sendo esta última muito rara nas construções tradicionais da Glória.

Terão sido porventura os árabes os que mais desenvolveram a técnica da construção em terra que nós herdámos. A sua influência foi tal que as próprias palavras (adobe, tabique, taipa) são de origem árabe. Perto de nós, o castelo de Coruche que D. Afonso Henriques tomou aos mouros em 1166 terá sido uma construção em taipa, como o eram os castelos de Paderne e uma parte importante das muralhas do castelo de Silves, no Algarve, zona predominantemente muçulmana até 1250.

Também perto de nós, em terras da Companhia das Lezírias, em Belmonte, próximo de Santo Estêvão, concelho de Benavente, existe um monumento impressionante construído nesta técnica, uma torre atalaia, ainda hoje parcialmente de pé, (apesar de ser dos inícios do século XII!)6 pertencente a um complexo defensivo mais elaborado, hoje definitivamente desaparecido.

***

Deixando as vicissitudes da história para trás, debruço-me agora sobre as casas de terra que vamos vendo cair, uma atrás das outras, sem na verdade podermos fazer grande coisa por elas.

Apesar de um interesse renovado7 pelas técnicas tradicionais de construção e da especialização de um numero crescente de arquitetos atuais pela construção em terra8, o que parece inegável é que as novas técnicas construtivas baseadas no tijolo de argila, na estrutura em aço e no cimento Portland, bem como

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as especializações do trabalho, as tornam hoje absolutamente dominantes, remetendo ainda para o campo do exotismo e da experimentação os que ousam retornar à construção em terra, apesar da qualidade do bom comportamento térmico da mesma e do facto, não negligenciável, dos custos inferiores no que diz respeito aos materiais de construção9.

O corpus fotográfico da arquitetura tradicional de Glória do Ribatejo, mais ou menos espontâneo (ou pelo menos não planeado) que chegou até hoje, encontra-se recolhido muito especialmente por Margarida Ribeiro e Idalina Serrão Garcia, contendo inúmeras e variadas fotos de cenas que as investigadoras entenderam possuir valor etnográfico e que foram captadas em períodos em que por aqui andaram, separadas aproximadamente por uma década e meia (finais dos anos 50 e década de 60). Antes delas, o escritor neo-realista Alves Redol inicia-se (1937) praticamente na escrita mais encorpada com o seu ensaio etnográfico sobre Glória do Ribatejo, mas é a desenhos que recorre, pois à data embaratecia o processo de impressão do livro e a posse de uma máquina fotográfica portátil deveria ser na época acessível a poucos afortunados.

São essencialmente destas fontes, em particular do magnífico espólio fotográfico que, em boa hora, o Dr. Roberto Caneira conseguiu recolher da própria Margarida Ribeiro (negativos originais) e publicados, boa parte, em 199910, que podemos ter acesso a um sem número de fotos da fase aldeã de Glória do Ribatejo e à sua arquitetura uniforme, singela e branca que tanto impressionou Redol e que ainda conheci na minha meninice. Mais recentemente a Dra. Rita Pote, com o apoio dos associados da Associação Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo, iniciou um exaustivo trabalho de recolha de fotos, publicadas em livro11, onde, em muitas delas, também é possível apreciar importantes registos do casario gloriano.

Foi este cenário aldeão alvo e límpido que habituei-me a amar desde muito novo, e não pode ser senão com profundo desgosto que vou testemunhando as velhas casas que, como os homens de armas, fazem questão em morrer de pé, orgulhosas de um dever cumprido com uma certa altivez, apesar da simplicidade desconcertante de uma arquitetura tão genuína quanto verdadeira. Numa altura em que na vila de hoje se constroem casas descomunais, em estilo Raul Lino12 (estilo que veio para ficar) e onde, seguramente uma boa parte das inúmeras divisões não vão ter vivência de espécie alguma, por parte de “famílias-de-filho-único”, na casa tradicional da glória de outrora, nada estava a mais, tudo era vivido, tudo era ocupado. Em particular naquelas em que as famílias procuravam dar sustento a cinco, sete, dez filhos. Uma fachada simples, muito frequentemente sem janelas, mas com uma porta com uma pequena janela, o postigo (o “bestig” ou “bstiu”, no linguajar local)13, invariável em muitas casas, écran aberto para o mundo, lá fora.

Uma divisão extraordinariamente social: a cozinha – o lugar mais importante da casa - com o cante (lareira), onde nunca se apaga o lume, que parece vir, cavaco a cavaco, brasa a brasa, do fundo dos tempos. Devir só comparável ao eterno pote, mascarrado, omnipresente em todas as lareiras glorianas

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onde, misteriosamente, na lareira onde mais me aqueci, uma farta aguada de café, parecia nunca mais acabar devido à atenção e desvelo permanente da minha saudosa avó Jacinta Quitéria, mais conhecida por Jacinta “Abrasques” na onomástica paralela das alcunhas que, nas aldeias, duplicam os nomes de cada um, transformando-nos em dois. Um milagre da multiplicação do ser.

Lembro-me, como se fosse hoje, das gulosas submersões de grossas fatias de pão caseiro, barrado a banha de porco, polvilhado com açúcar, com que nessa água preta procurava amolecer a dureza de um pão, cozido para durar a semana toda, tornando-o mais amigo do meu dentinho infantil. Delícias irrepetíveis, sabores perdidos no fundo dos tempos.

***

A casa gloriana não tem corredores, a sua dimensão, quase padronizada, de cerca de sete metros por quatro metros e meio, não lhe permite essa “estética-de risco-ao-meio”, tão do desagrado da maioria dos arquitetos, que é o corredor.

A cozinha dá diretamente para um ou dois quartos. Aproveitamento total. Num dorme o casal chefe de família e, com muita frequência, um bebé nalgum berço de cortiça ou de madeira tosca. No outro, distribuídos como podem, o resto da prole que, em muitas casas, eram bocas a mais para comida a menos. E quando a mãe natureza era demasiado pródiga nas suas dádivas, sob a forma de criancinhas, frequentemente, uma esteira providencial ocupava o chão da cozinha, onde, no chão de terra batida, os mais velhos se dispunham, como podiam, enrolados na manta lobeira.

Neste tempo, uma boa parte da vida vivia-se fora de casa. As mulheres gostavam de conversar distraidamente bem no meio da rua. O trânsito, que parasse. E as carroças e carros de bois faziam-no em segurança. Mas a rua também era da criançada. Jogo do pião, da malha, do capado (desenhado no chão) e, claro, do omnipotente futebol. As meninas jogavam ao martelo, saltavam à corda. Tudo muito bem distribuído e representado pelos respetivos géneros.

Retalhadas raivosamente a meio por navalhas afiadas, eram as nossas modernas bolas de borracha, caçadas à traição quando pontapeadas inadvertidamente para algum quintal, (ou por distração, nos momentos de intervalo) pelas donas das casas, contra as quais fazíamos ribombar a nossa bola coletiva moderna, de borracha, uma verdadeira evolução sobre as trapeiras da geração precedente, em futeboladas feéricas e intermináveis. E nós ficávamos ali descoroçoados a chorar a nossa triste sina. Tínhamos esse gosto traquina de fazer chapar as nossas bolas, sujas de lama, na superfície alva da caiação, sempre impecável, que as velhas matriarcas da aldeia dedicavam recorrentemente aos seus singelos lares.

Lembro-me bem de todo o processo de aquisição coletiva da bola, que tivemos que fazer um montão

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de vezes. Uma aprendizagem precoce da democracia e do interesse comum. Uma espécie de tesoureiro, o de maior confiança, ia juntando os frontais de cartão verde escuro das embalagens da “Farinha 33” (neles um jovem mostra os músculos vigorosos). E se bem que alguns de nós, consoante as posses, quase rebentavam a comer a dita farinha, para voltarmos a ter, obsessivos, a “nossa” bola de novo, outros acreditavam, na ingenuidade típica das crianças, que comendo a “Farinha 33”, desalmadamente, iriam ter uns músculos assim, como os do jovem da embalagem, corolário de muita papa acumulada. Não me lembro bem em que faixa me situava, mas o enjoo que ainda hoje sinto pelas papas doces faz-me temer que me encontraria no grupo dos segundos. Desejava ter os músculos iguais aos do Hércules, do Sansão e restantes heróis bíblicos que via, de olhos esbugalhados, no cinema da aldeia, levado pelo meu tio João Verde a sete e quinhentos o bilhete.

Após dificilmente termos juntado um número interminável de tampas (julgo que 50) íamos em alegre e curta excursão reclamar, na mercearia dos Lamas, a nossa bola que um dos mais velhos iria administrar, até ao próximo retalho impiedoso, a canivete, destino fatal das nossas martirizadas bolas de borracha, vezes sem conta.

Desta arquitetura contínua, que fechava o Largo do Rato e ladeava, quase sem intermitências, a rua dos Combatentes do Ultramar – do largo da igreja ao entroncamento da estrada de Muge, fiz eu, muitas vezes a minha macro-superfície de expressão plástica. O meu espaço vital. Atos premonitórios para o que iria viver anos mais tarde nos saudosos ateliers da Escola Superior Belas Artes do Porto.

Nas noites de luar, que se refletia de forma quase mágica naquelas paredes caiadas, quase fluorescentes, procedíamos à nossa catarse vingativa contra as algozes “retalhadoras” das nossas bolas: a Ti Apolinária, a Ti Francelina, a Ti Borrega... Desenhávamos nessas paredes brancas, a carvão, apanhado nos quintais, entre brasas fumegantes, longas pilinhas que mais pareciam desajeitadas tesouras, afirmação da nossa masculinidade, seguidas por sóis amendoados e achatados, que queríamos fazer passar pelo órgão oposto, na simplicidade canónica e simbólica da representação e da diferenciação sexual que todas as crianças aprendem com uma precocidade desconcertante.

Lembro-me de sentir a suavidade do carvão e o seu chiar subtil na doçura alva da cal. Experiência significativa esta, a da consciência da relação entre superfície e meio de registo, (o raque raque do ruído) que só vim a experimentar, muitos anos mais tarde, nas difíceis aulas de modelo nu, em formato A2 e A1, do professor Mário Bismarck, nas Belas Artes do Porto.

Traquinices de infância a juntar a muitas outras, se bem que menos danosas para a integridade desta arquitetura humilde, sempre impecavelmente branca. Diria mesmo, teimosamente branca. De uma coisa irritante me lembro bem: da incapacidade de, à luz do dia, nos regozijarmos das nossas proezas gráficas noturnas, pois aos alvores da manhã, já um ou dois pares de braços diligentes tinham apagado, ou caiado

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de novo por cima dos nossos traçados provocadores. E isto vezes sem conta. Face a corajosas insistências diurnas, era frequente as vassouras de junquilho, giesta, ou murtinheira silvarem, ameaçadoras, junto às nossas orelhas, tornando urgente a reorientação das nossas brincadeiras para territórios menos hostis.

Foi nestes cenários que eu e os meninos da minha geração, e de outras gerações anteriores e posteriores, moldaram a sua identidade. Experiência impagável das nossas vidas, vivida na terra onde, no longínquo (1937) testemunho do Ti Bento, informador de Alves Redol, ouvimos: “(aqui) o fumo das chaminés não alteia”14. Na realidade, na aldeia de então, até ao aparecimento das edificações de dois pisos dos comerciantes dos anos cinquenta, a igualdade social, entre uma pobreza quasi extrema e uma pobreza remediada, não permitia que nenhuma família utilizasse a altura do pé direito da casa como símbolo de status social. Daí o fumo não altear. Pelo menos subia mais uniformemente, em particular nas vésperas de fim de semana, espalhando aromas das lenhas da charneca pelo ar a anunciar fornada generosa de pão caseiro. O cheiro mais característico de minha terra a rivalizar com o cheiro da chamusca da matança.

São estes fornos e são estas casas que, hoje, inverno após inverno, se vão desfazendo, umas atrás das outras, numa comunhão cósmica com a terra de onde, um dia, se ergueram. Nada mais biológico, nada mais ecológico, nada mais telúrico. Pelo menos para a alma de quem olhou e sentiu estas cenografias reais com as pupilas e as narinas bem abertas. Por isso, e para memória futura, se lavrou este texto que tem o valor singelo de um tributo, para já, o único que posso prestar aos lugares, às casas e às pessoas. Mesmo àquelas que em tempos de meninice infernizei com nervosos traçados negros naquelas paredes que, então como hoje, reclamavam e exigiam uma merecida alvura como parte da sua beleza estética.

Notas

(Endnotes)1 A elevação de Glória do Ribatejo a vila só o correu a 22 de Maio de 1993 tendo a elevação a freguesia ocorrido, 27 anos antes, no dia 29 de Agosto de 1966.

2 Como comprova uma lápide medieval, rara a sul de Portugal, estudada por mim nos inícios dos anos 90 no contexto do meu mestrado em História da Arte e publicada em 1994 na Revista de Arqueologia Almadan (Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas).

3 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas Célia Neves et alt (2007).

4 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas, Ronald Rael, (2009)

5 Cfr Alves Redol, ob.cit. págs 81-85 e Idalina Garcia, ob.cit. pág 130.

6 “A Atalaia de Belmonte integrava, em pleno século XII, o termo de Palmela, representando o seu ponto estratégico mais avançado a No-roeste e definindo os limites com Coruche, através da Ribeira de Canha ou de Santo Estevão. A individualização de Benavente, promovida pela Ordem Militar de Évora, que se concretiza na doação da Carta de Foral em 1200, provoca o desmembramento desta do Castelo de

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Coruche, passando a Ribeira a delimitar os termos de Palmela e Benavente. Construído antes de 1207, segundo documentação conhecida, o “Castelo de Belmonte” constitui um elemento essencial na consolidação e posse das terras marginais do Baixo Tejo, reconquistadas pelos cristãos. Enquanto comenda da Ordem Militar de Santiago, vinculada a Palmela, Belmonte adquiriu alguma projeção sob o ponto de vista militar, eclesiástico e administrativo. O surgimento de um núcleo urbano, mais a Norte, denominado Samora Correia, com Foral datado de 1512, conduziu ao abandono quase sistemático deste local. O Baluarte de Belmonte era uma construção tosca, constituída por um Fortim redondo, casas baixas para o pessoal serviçal, uma casa apalaçada para o comendador, uma igreja e um túnel para o rio. Atualmente, em ruínas, foi a sede da primeira paróquia, tendo como padroeiro São João Baptista. A fortificação medieval de Belmonte exibe características de construção invulgares, que demonstram a utilização exclusiva da matéria prima disponível na região, os seixos rolados. A estrutura é composta por enormes calhaus rolados toscamente argamassados que definem uma torre bastante sólida”. In http://www.cmbenavente.pt/benavente/Concelho/LocaisInteresse/garrocheira_belmonte.htm (consulta de 12-07-2011).

7 Criado em 2003, o seminário Arquitectura de Terra em Portugal tem evoluído de uma forma crescente com a ampla adesão de ar-quitectos e investigadores (etnógrafos, antropólogos, etc.) ibero-americanos e europeus. A qualidade das comunicações apresentadas por cidadãos nacionais no âmbito destes Seminários, confirma a sua dimensão internacional e o contributo português para o desen-volvimento desta temática. Recentemente, o VIº Seminário de Arquitectura de Terra em Portugal e IXº Seminário Ibero-Americano de Arquitectura e Construção com Terra, foram realizados na Universidade de Coimbra, em Fevereiro de 2010. A Universidade de Aveiro, a Escola Superior Gallaecia, a Fundação Convento da Orada e a Associação Centro da Terra foram os organizadores e anfitriões do Vº Seminário de Arquitectura de Terra em Portugal (Vº ATP), que se realizou de 10 a 13 de Outubro 2007, na Universidade de Aveiro, em Portugal. Em 2005, o IIIº seminário ATP decorreu em simultâneo com o IVº seminário Ibero-Americano de Construção com Terra (em Monsaraz) e, em 2006, o IVº seminário ATP associou-se ao Iº Seminário de Construção e Arquitectura com Terra no Brasil (Terra Brasil 2006, em Ouro Preto) revelando uma colaboração profícua entre investigadores dos dois lados do atlântico na procura das suas raízes comuns.

8 Cfr. nas Fontes e Referências Bibliográficas AAVV (2005), Mariana Correia (2007); Maria Correia e Vítor Jorge (2006) Inês Fonseca 2007).

9 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas Ana Coelho (2007).

10 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas, Roberto Caneira (1999).

11 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas, Rita Pote (2011).

12 Raul Lino nasceu nos finais do século XIX, em 1879 tendo passado a sua infância em Lisboa. Como era filho de um abastado comer-ciante teve a possibilidade de poder estudar fora de Portugal, nomeadamente em Inglaterra, numa primeira fase, tendo frequentado um colégio católico de 1889 a 1893, seguindo-se depois a Alemanha. Em Hanover frequentou a Escola de Artesanato e a Escola de Artes e Ofícios, assim como o Instituto Superior Técnico. Todavia o que o viria a marcar decisivamente como arquitecto foi o facto de ter trabalhado no estúdio de Albrecht Haupt, um arquitecto doutorado e especialista na arquitectura portuguesa do Renascimento. Este arquitecto alemão irá ter uma enorme influência na formação artística de Raul Lino e o contacto entre o mestre e o seu aluno nunca cessou, mesmo com o regresso de Raul Lino a Portugal. A construção anti-modernista e conservadora de Raul Lino foi aproveitada pelo Estado Novo de Oliveira Salazar e adaptada aos seus objectivos de rigor, austeridade e durabilidade, estando estas características bem visíveis no ambicioso programa do Estado Novo de construção de escolas primárias por todo o país, ainda hoje em óptimo estado de conservação. No estilo arquitectónico típico de Lino, pontifica os beirados “à portuguesa”, os telhados em duas ou quatro águas, a decoração com as tradicionais varandas e galerias alpendradas, a arcaria e/ou colunatas, o uso do tijolo burro aberto e, no interior, a utilização do azulejo pintado à mão.

13 Cfr. Fontes e Referências Bibliográficas, Idalina Garcia, 1979, pág 130.

14 “Ora repare o senhor. Aqui o fumo das chaminés não alteia” (Redol, 2003, pág.182).

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163Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Nota biográfica:

Leonardo Charréu nasceu em Glória do Ribatejo em 1964. Licenciou-se em Belas Artes – Pintura, na Faculdade e Belas Artes da Universidade do Porto (1990), é Mestre em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa (1995) e Doutor em Belas Artes pela Universidade de Barcelona, Espanha, e em Ciências da Educação pela Universidade de Évora (2004).

Foi professor no Ensino secundário entre 1988 e 1994. Entre 1994 e 2013 foi docente no Departamento de Pedagogia e Educação da Universidade de Évora, onde foi diretor do Mestrado em Ensino em Artes Visuais (2007-2013). Atualmente é investigador efetivo do GEPAEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Arte e Cultura), da Universidade Federal de Santa Maria, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Nesta universidade leciona Centro de Artes e letras na graduação em artes visuais e na pós-graduação em educação do Centro de Educação. Como Bolseiro da Fundação Gulbenkian, foi professor visitante (2006) na California State University, em Long Beach, e na Arizona State University, em Phoenix/Tempe, nos Estados Unidos da América. Em 2009 e 2010 foi Professor Visitante nas Universidades de Goiás, Brasil e de Almería (Espanha). Entre 2007 e 2010 foi professor visitante na Universidade de Barcelona e em 2011 foi professor Erasmus na Freie Universitat de Berlim, na Alemanha. Tem vários trabalhos publicados em livros e revistas da especialidade, sobretudo sobre educação artística no âmbito das artes visuais e temas afins. A componente artística e a construção da identidade docente, na formação de professores, a cultura visual, os novos ambientes de educação informal e as relações transversais entre arte, sociedade, ciência, cognição e ilustração, são os seus principais interesses de investigação.

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Figura 1. Rua Combatentes do Ultramar Década de 30

Figura 2. Interior de uma casa na década de 70

165Magos | Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos nº 1 | 2014

Figura 3. Taipeira e utensílios de construção em taipa

Figura 4. Fachada de uma casa