Novos Media na Ciberguerra: A Apropriação da Tecnologia na Disseminação do Stuxnet

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NOVOS MEDIA NA CIBERGUERRA (2014) Métodos de Análise de Multimédia Novos Media na Ciberguerra: A Apropriação da Tecnologia na Disseminação do Stuxnet New Media in Cyber War: The Appropriation of Technology in Stuxnet’s Dissemination Hugo Filipe Ramos ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa Resumo Este artigo debate o tema da apropriação da tecnologia na ciberguerra e está organizado em três partes. Na primeira, temos a introdução ao tema das TIC 1 e novos media e a sua explosão na década de 90. Numa segunda parte, fazemos a contextualização histórica do media caneta USB, apresentando a sua evolução tecnológica, origens, motivações e objectivos por detrás da sua invenção, finalizando com um conjunto de vantagens e desvantagens decorrentes da sua utilização. Na terceira parte, introduzimos a análise crítica à questão da apropriação. A apropriação da caneta USB é o resultado de determinismo tecnológico ou social? Existiu social shaping of technology ou technological impact on society? O determinismo permite uma análise crítica ao problema da apropriação tecnológica? Nesta análise, tentamos demonstrar como os ideais deterministas limitam o pensamento crítico e como o construcionismo e a filosofia da tecnologia se complementam na teorização desta apropriação. Palavras-Chave: tecnologia, apropriação, caneta USB, Stuxnet, construcionismo, filosofia da tecnologia, determinismo. Abstract This article discusses appropriation of technology in cyber war and is organised in three parts. In the first one, the topic of ICT and new media and its 2 explosion in the 1990s is introduced. In the second part, the historical contextualisation of the USB pen media is offered, presenting its technological evolution, origins, motivations and the objectives behind its invention, concluding with the advantages and disadvantages of its use. The third part is a critical analysis to the topic of appropriation. Is the appropriation of the USB pen a result of technological or sociological determinism? Was it social shaping of technology or technological impact on society? Does determinism allow a critical analysis of appropriation of technology? This analysis tries to demonstrate how deterministic ideas limit critical thought and how constructionism and the philosophy of technology complement each other in the theorisation of this appropriation. Keywords: technology, appropriation, USB pen, Stuxnet, constructionism, philosophy of technology, determinism. Departamento de Sociologia 1 Tecnologias de Informação e Comunicação 1 Information and Communication Technologies 2

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NOVOS MEDIA NA CIBERGUERRA (2014) Métodos de Análise de Multimédia

Novos Media na Ciberguerra: A Apropriação da Tecnologia na Disseminação do Stuxnet

New Media in Cyber War: The Appropriation of Technology in Stuxnet’s Dissemination

Hugo Filipe Ramos

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

Resumo

Este artigo debate o tema da apropriação da tecnologia na ciberguerra e está organizado em três partes. Na primeira, temos a introdução ao tema das TIC  1

e novos media e a sua explosão na década de 90. Numa segunda parte, fazemos a contextualização histórica do media caneta USB, apresentando a sua evolução tecnológica, origens, motivações e objectivos por detrás da sua invenção, finalizando com um conjunto de vantagens e desvantagens decorrentes da sua utilização. Na terceira parte, introduzimos a análise crítica à questão da apropriação. A apropriação da caneta USB é o resultado de determinismo tecnológico ou social? Existiu social shaping of technology ou technological impact on society? O determinismo permite uma análise crítica ao problema da apropriação tecnológica? Nesta análise, tentamos demonstrar como os ideais deterministas limitam o pensamento crítico e como o construcionismo e a filosofia da tecnologia se complementam na teorização desta apropriação.

Palavras-Chave: tecnologia, apropriação, caneta USB, Stuxnet, construcionismo, filosofia da tecnologia, determinismo.

Abstract

This article discusses appropriation of technology in cyber war and is organised in three parts. In the first one, the topic of ICT  and new media and its 2

explosion in the 1990s is introduced. In the second part, the historical contextualisation of the USB pen media is offered, presenting its technological evolution, origins, motivations and the objectives behind its invention, concluding with the advantages and disadvantages of its use. The third part is a critical analysis to the topic of appropriation. Is the appropriation of the USB pen a result of technological or sociological determinism? Was it social shaping of technology or technological impact on society? Does determinism allow a critical analysis of appropriation of technology? This analysis tries to demonstrate how deterministic ideas limit critical thought and how constructionism and the philosophy of technology complement each other in the theorisation of this appropriation.

Keywords: technology, appropriation, USB pen, Stuxnet, constructionism, philosophy of technology, determinism.

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! Tecnologias de Informação e Comunicação1

! Information and Communication Technologies2

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“Man becomes, as it were, the sex organs of the machine world…” — Marshall McLuhan, 1964

“…determinism is an intellectually impoverished, lazy way to study the past, understand the present, and predict the future.”

— Evgeny Morozov, 2011

Vivemos, hoje, um período de contínua revolução nas tecnologias de informação e comunicação (designadas a partir daqui como TIC). Esta revolução mudou o paradigma da forma como as sociedades e os indivíduos pensam, mas, sobretudo, alterou o seu comportamento e a forma de interagir com as novas tecnologias e, mesmo, entre si.

A crescente conectividade e a excelente integração entre sistemas, possibilitada pela Internet com o auxílio de padrões e protocolos abertos  (TCP/IP  , FTP  , HTTP  , HTML  , XML  , 3 4 5 6 7 8

etc.) e formatos “universalizados" de ficheiros informáticos (PDF  , JPG  , MPEG  , MP3  , etc.), 9 10 11 12

permitiu às empresas, às organizações e à sociedade, duma forma generalizada, um nível de comunicação nunca antes atingido. Por um lado, a utilização de padrões e protocolos abertos facilita a interacção das diferentes tecnologias entre si e, por outro lado, cria uma maior base de conhecimento comum entre os seus utilizadores, possibilitando uma mais fácil aprendizagem da sua utilização e o surgimento de novas formas organizacionais colaborativas.

O TCP/IP, sendo o protocolo sobre o qual todos os outros assentaram, obteve vital importância, estabelecendo a base da rede de comunicações que ligou todos os dispositivos com placa de rede à Internet. Por ser aberto (código fonte disponível), todos os fabricantes de hardware e software e investigadores que trabalham na área das redes informáticas têm uma base comum de desenvolvimento para as suas implementações deste protocolo nos dispositivos que fabricam e nos softwares que produzem.

Por outro lado, o HTTP emergiu como o protocolo de facto para a transmissão de informação na Internet, sendo o HTML a linguagem de codificação dessa informação que pode depois ser interpretada pelo software navegador ou, na designação original em inglês, browser.

É fácil compreender que, quando todos os intervenientes na produção de informação codificam a sua mensagem no mesmo formato, os produtores de browsers precisam desenvolver apenas um tipo de “descodificador” para receber e entender a informação passada, sendo que o trabalho necessário para que o ciclo comunicativo se feche é menor.

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! Geralmente designados em inglês: open standards and protocols.3

! Transmission Control Protocol/Internet Protocol.4

! File Transfer Protocol.5

! HyperText Transfer Protocol.6

! HyperText Markup Language.7

! Extensible Markup Language.8

! Portable Document Format.9

! Joint Photographic Expert Group.10

! Moving Picture Experts Group.11

! MPEG-1 or MPEG-2 Audio Layer III, geralmente designado como MP3, é um formato de codificação audio baseado 12

em descobertas de Alfred Marshall Mayer em 1894, Richard Ehmer em 1959 e Ernst Terhardt, Gerhard Stoll e Manfred Seewann em 1982. Verificar as referências (Mayer, 1894), (Ehmer, 1959) e (Terhardt, Stoll, e Seewann, 1982).

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Imaginemos um mundo onde todos os países partilham uma única língua. A comunicação entre cidadãos desses países seria extremamente fácil, sem necessidade de recorrer a tradutores, intérpretes ou aprendizagem de um novo código de comunicação (língua).

Para melhor ilustrar esta visão do processo comunicativo sobre os protocolos da Internet, peguemos no modelo teorizado por Hall (1973) e apliquemos os princípios do ciclo comunicativo apenas à comunicação efectuada entre dispositivos informáticos.

Hall argumenta que existem quatro momentos no modelo comunicativo de uma mensagem: produção, circulação, utilização (referido pelo próprio como distribuição ou consumo) e reprodução. Cada um destes momentos é relativamente autónomo dos restantes. Isto significa que o encoding condiciona em parte o decoding da mensagem, mas não de uma forma determinante. A relativa autonomia dos diferentes momentos existe, precisamente,

devido às possibilidades e limites determinantes em cada um. Assim, Hall argumenta que existem factores contextuais em cada momento que limitam o momento seguinte, mas não determinam totalmente a eficácia do ciclo da mensagem no seu final. Se eliminarmos a componente humana no final da comunicação e restringirmos

esta análise apenas à comunicação efectuada entre dispositivos, podemos entender como não existe contextualização externa passível de limitar ou mesmo determinar o encoding/decoding neste ciclo comunicativo. A existência de padrões e regras determinam e limitam a comunicação entre os dispositivos, tornando a mensagem estanque a ruídos que possam adulterar o seu significado. A produção, circulação, utilização e reprodução são efectuadas na

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Figura 1. Diagrama comunicativo proposto por Hall (1973).

Figura 2. Diagrama comunicativo browser-servidor-browser.

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mesma linguagem: o HTML, o protocolo usado é sempre o TCP/IP e os intervenientes, os dispositivos informáticos, não são influenciados por contextos sociológicos. Deste modo, todos os dispositivos “entendem” o significado da mensagem da mesma forma.

Em virtude do já exposto e, também, segundo argumenta Hall (2011, pp.655-656), os principais motivos da proliferação e sucesso da Internet são, precisamente, (1) o facto de ter sido criada tendo como base padrões e protocolos abertos que limitaram o espectro de actuação humana e tornaram a mensagem fácil de codificar e descodificar, (2) o facto, decorrente do primeiro, de ser possível uma utilização extremamente fácil deste novo media e, por último, (3) o facto, também decorrente do primeiro, de ter acesso facilitado a partir de qualquer ponto geográfico da rede (descentralização).

A invenção e desenvolvimento da tecnologia (HTTP e HTML) por Tim Berners-Lee em 1989, juntamente com os três factos anteriores, conduziram à sua posterior apropriação por indivíduos de todo o mundo e provocaram, na década de 90, a primeira grande explosão e proliferação da Internet e, com ela, das TIC. Esta revolução tecnológica mudou o paradigma das comunicações e o modo globalizado como trocamos informação nos dias de hoje. Tinha nascido, então, a sociedade em rede de Castells:

“The result was the discovery of a new social structure in the making, which I conceptualized as the network society because it is made of networks in all the key dimensions of social organization and social practice.” (Castells, 2010, p.xviii).

Tendo em conta estes factores, é possível compreender como a apropriação da tecnologia foi tão rápida e globalizada, possibilitando a transposição de organizações e práticas sociais para o mundo tecnológico não só online mas também offline.

Este artigo discute a apropriação da tecnologia na disseminação da primeira ciber-arma da história: o vírus informático Stuxnet. Apesar de, ainda hoje, o processo não ser totalmente claro, de acordo com (Albright, Brannan e Walrond, 2010, p.7), (Byres, Ginter e Langill, 2011, pp.6-7), (Ramos, (in press)a, p.7) e (Langner, 2013, p.18) a origem da disseminação do Stuxnet passou pela infecção e utilização de uma caneta USB  (designada a partir daqui como CUSB). 13

Segundo os especialistas em análise de ciber-armas e segurança informática, existem algumas possibilidades: (1) a infecção de uma CUSB pertencente aos engenheiros/consultores externos que geriram a instalação dos equipamentos em Natanz (a mais plausível, segundo Langner) ou (2) o “esquecimento” de uma CUSB infectada num local próximo de Natanz e a esperança que um dos colaboradores, influenciado pela sua curiosidade, a transportasse para dentro da central nuclear ou infectasse o seu computador portátil de trabalho, acabando por estabelecer o último elo de ligação entre o exterior e a rede interna das instalações nucleares.

Independentemente de qual destes dois processos foi usado, existe, claramente, a apropriação de um objecto tecnológico para um fim não planeado aquando da sua invenção e concepção: a ciberguerra.

No próximo tópico poderemos verificar as origens, motivações e objectivos que levaram à invenção da CUSB, bem como vantagens e desvantagens da sua utilização.

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! Vulgarmente designada pelo nome original em inglês: USB pen, USB stick ou USB flash drive.13

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Contextualização Histórica da CUSB

Oficialmente, a invenção da CUSB aconteceu em Abril de 1999, quando os israelitas Amir Ban, Dov Moran e Oron Ogdan registaram a patente US6148354A nos Estados Unidos da América (Ban, Moran e Ogdan, 2000), tendo sido esta última publicada em Novembro de 2000.

De acordo com uma investigação  levada a cabo por Mike Vasilev e publicada por 14

Silverman (2011), antes do surgimento da CUSB existiam outras formas de armazenamento amovível e transporte de informação digital. O primeiro que surgiu foi o cartão perfurado que, ao contrário do que se pensa, remonta ao ano de 1725, quando um trabalhador têxtil usou um cartão deste tipo para armazenar configurações e executar operações padronizadas num tear.

Muitos anos passaram até que, em 1972, surgiu a primeira forma de armazenar conteúdo digital em suporte analógico: a vulgar cassete audio com capacidade máxima de 660Kb por cada lado. Em 1976 surgiu a primeira floppy drive  . Este dispositivo apresentava 15

um formato de 5”1/4 e podia conter até 1.2Mb de dados digitais. Pouco tempo depois, em 1986, surge a floppy drive em formato 3”1/2 com capacidade de leitura em ambos os lados. A capacidade máxima de armazenamento era, numa primeira versão, de 720KB e, numa segunda versão, em 1987, (HD ou High Density), de 1.44MB.

Depois destes formatos de disquete, universalmente aceites, vários outros surgiram, mas não tiveram tanta aceitação. Um exemplo é a ZIP Drive, produzida pela Iomega em 1994, que tinha capacidades de 100MB e 250MB mas, quatro anos antes, em 1990, surge o grande sucessor das disquetes: o CD (Compact Disk). O surgimento do CD condenou à partida qualquer outro sucessor das disquetes, pois era mais leve, extremamente barato, facilmente transportável (sem necessidade de leitor externo e cabos eléctricos) e tinha capacidade para armazenar 700MB.

O CD dominou por completo o armazenamento externo de dados digitais na década de 90 até que, em 2000, a IBM, com base na patente registada por Ban, Moran e Ogdan e em parceria com a empresa destes últimos, lançou a primeira CUSB que, nessa época, tinha a capacidade de 8MB. Apesar de apresentar uma capacidade inferior ao CD, este dispositivo apresentava algumas vantagens importantes: era mais pequeno e não necessitava de leitor acoplado ao computador, dependendo apenas de uma porta USB (que, em 2000, já tinha sido universalmente aceite e incorporada por quase todos os fabricantes de computadores). No entanto, as vantagens que marcaram definitivamente a adopção da CUSB em detrimento do CD foram (1) a capacidade de leitura, escrita e reescrita directa de dados em memória não volátil do tipo flash memory  e (2) a rapidez da transmissão de dados entre o computador e o 16

dispositivo, tanto na leitura como na escrita, características que o CD não apresentava. Fazendo uma breve análise à evolução tecnológica de armazenamento de dados

amovível, podemos apreciar quão exponencial foi o seu crescimento durante o século XX:

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! O leitor poderá encontrar as fontes desta pesquisa descritas no artigo referenciado.14

! Vulgarmente designada em português como “disquete”.15

! Memória flash é um tipo de memória EEPROM (Electrically-Erasable Programmable Read-Only Memory) cujos chips 16

são semelhantes ao da Memória RAM, permitindo que múltiplos endereços sejam apagados ou escritos numa só operação. Em termos leigos, trata-se de um chip reescrevível que, ao contrário de uma memória RAM convencional, preserva o seu conteúdo sem a necessidade de fonte de alimentação eléctrica.

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1725 - algumas centenas de bits  17

1972 - 675.840 bits1976 - 1.258.291 bits1987 - 1.509.949 bits1990 - 734.003.200 bits

A crescente necessidade de armazenar dados, consequência da evolução tecnológica pela qual os computadores passaram, com capacidades de processamento cada vez mais altas, levou a que a capacidade de armazenamento fosse forçada a acompanhar essa curva evolutiva. Porém, não foram apenas necessidades tecnológicas que levaram a esse crescimento das necessidades de armazenamento de dados. As necessidades sociais também obrigaram a que fossem desenvolvidas novas e maiores capacidades de armazenamento de informação digital. A ascensão da Internet na década de 90 possibilitou aos indivíduos o acesso a grandes quantidades de informação que teriam de ser guardadas ou transportadas para posterior uso. No entanto, antes do ano 2000, sendo as velocidades de ligação à Internet relativamente lentas, a capacidade de pesquisar a Internet praticamente inexistente  e a 18

volatilidade da informação online bastante alta, era mais conveniente aos indivíduos guardar o que precisavam nestes dispositivos e/ou transportar grandes quantidades de informação de uma só vez sem quaisquer demoras.

Conhecidas algumas motivações tecnológicas e sociais para o surgimento da CUSB, analisemos, então, qual foi o objectivo dos autores ao inventar este dispositivo.

Referido pelos próprios e sem margem para dúvidas, o objectivo de Ban, Moran e Ogdan, quando criaram a CUSB, está bem explicito na patente que registaram nos EUA:

“According to the present invention, there is provided a USB flash memory device for connecting to a USB-defined bus, the flash memory device comprising: (a) at least one flash memory module for storing data; (b) a USB connector for connecting to the USB-defined bus and for sending packets on, and for receiving packets from, the USB-defined bus; and (c) a USB controller for controlling the at least one flash memory module and for controlling the USB connector according to at least one packet received from the USB-defined bus, such that data is written to and read from the at least one flash memory module. (…) Thus, the entire device acts as a dynamically attachable/detachable non-volatile storage device for the host platform.”  (Ban, Moran e Ogdan, 2000, p.11). 19

Esta é, então, a função para a qual este dispositivo tecnológico foi desenvolvido: armazenar informação em formato digital. Fazendo uma análise das vantagens e desvantagens decorrentes das especificações técnicas da CUSB, concluímos que estes dispositivos apresentam algumas características que as tornam muito desejadas pelos seus utilizadores:

A) Vantagens: A (1) boa relação preço/capacidade é uma vantagem bastante óbvia. O consumidor

procura adquirir um artigo que lhe proporcione uma boa capacidade de armazenamento a um preço relativamente baixo. A grande procura e a consequente produção em massa deste dispositivo permitiu às empresas uma redução nos custos de produção e aumento do número

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! Considerando uma posição do cartão como podendo estar activa ou não activa é possível fazer a analogia com o 17

sistema binário de armazenamento de informação digital implementado no século XX.! O Google surgiu em 1998 mas apenas em 2000 começou a apresentar sinais de uma utilização massiva por parte 18

dos internautas.! Negritos na citação pelo autor do presente artigo.19

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de unidades lançadas no mercado. Ao mesmo tempo, a estabilização das vendas e a permanência contínua no mercado permitiram que o dispositivo fosse actualizado e evoluindo para capacidades cada vez maiores e para preços cada vez menores.

Uma importante vantagem das CUSB é a sua (2) portabilidade. As CUSB modernas podem atingir capacidades de armazenamento na ordem dos vários gigabytes e permanecem extremamente pequenas, apresentando tamanhos que rondam os 3cm de comprimento por 1cm de largura. Esta característica possibilita imensas aplicações, entre elas, a possibilidade de instalação de um sistema operativo para utilização em diferentes computadores, sem nunca perder as configurações do sistema e não deixar vestígios de informação privada em computadores públicos, evitando, assim, a vigilância de dados pessoais.

A (3) padronização/facilidade de utilização é outra vantagem tida em conta pelos utilizadores. Para efectuar uma transferência de ficheiros ou guardar informação de uma forma segura, basta colocar a CUSB numa qualquer porta USB do computador e o sistema operativo identifica automaticamente um novo disco ligado ao sistema. A partir daí a sua utilização é simplesmente igual a qualquer outro disco presente no computador, não necessitando de aprendizagem extra.

Outra vantagem da CUSB é a sua (4) durabilidade. O facto deste dispositivo não conter qualquer componente mecânico ou móvel (logo não existe desgaste físico dos materiais) confere-lhe uma longa durabilidade. Por outro lado, a sua reduzida massa evita qualquer tipo de destruição na eventualidade de cair acidentalmente no chão.

Por fim, o (5) tempo de vida útil de uma CUSB, como qualquer outro dispositivo electrónico baseado em memória flash, é limitado. O número de vezes que podemos escrever informação digital neste tipo de memória ronda a ordem das centenas de milhares de vezes. No entanto, uma utilização normal e regular de uma CUSB dificilmente atingirá esse valor, conferindo-lhe um nível de confiança bastante elevado.

B) Desvantagens: A portabilidade da CUSB pode, também, ser um problema. Devido ao seu tamanho

reduzido, como vimos no ponto dois das vantagens, é bastante fácil (1) perder ou esquecer o dispositivo em local indeterminado.

Outro problema é a (2) facilidade de acesso aos dados por indivíduos ou entidades estranhas ao proprietário do dispositivo. A universalidade e facilidade com que se usa uma CUSB pode colocar este dispositivo na posse de indivíduos aos quais alguma da informação (eventualmente mais sensível) não estaria destinada. Este acesso facilitado pode, também, decorrer do ponto um das desvantagens.

Por último, mas não menos importante, as CUSB, devido às suas características técnicas e às vantagens já enunciadas, são (3) veículos de transporte de todo o tipo de malware  entre computadores e outros dispositivos informáticos. 20

Tendo em conta o exposto neste tópico, é compreensível a adopção, praticamente universal, da CUSB por qualquer pessoa durante a utilização diária do seu computador. Este objecto tecnológico assume, assim, um lugar comum no quotidiano social.

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! Malware é a designação curta de malicious software e abrange todos os tipos de software que podem provocar a 20

quebra da operação normal de um computador, a recolha de informação sensível ou a administração de sistemas informáticos privados para os quais não teriam autorização de administração.

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A CUSB encontra o Stuxnet - Determinismo Tecnológico ou Social?

Já sabemos como a padronização das linguagens (neste caso, a forma como a informação era/é codificada, circulada e descodificada) e a utilização de protocolos abertos contribuíram para a emergência exponencial das TIC, em geral, e da Internet e da CUSB, em particular. Também já sabemos como evoluíram, sobretudo na segunda metade do século XX, os dispositivos de armazenamento digital. As CUSB não foram apenas o resultado do encontro tecnológico entre os computadores e os novos media. As condicionantes tecnológicas tiveram, por certo, um papel importante ao apresentar as condições necessárias ao surgimento desta invenção, mas existiram factores humanos envolvidos nesses desenvolvimentos que determinaram a sua necessidade social. Colocando esta temática numa perspectiva Durkheimiana  , os materiais e a tecnologia estavam presentes para que o dispositivo pudesse 21

ser materializado, mas, numa sociedade da informação a cada dia mais acelerada, a carência de velocidade e capacidades cada vez maiores para transportar informação, juntamente com a carência de evitar a volatilidade dos media existentes, também determinaram a criação e evolução do novo media CUSB. Concluímos, então, que ambas, a oportunidade e a necessidade, moldaram o surgimento do objecto tecnológico em análise.

A presente argumentação remete-nos para a questão principal deste artigo: o que levou à apropriação da CUSB como fonte original de disseminação do Stuxnet?

Antes de tentarmos chegar a uma possível resposta, é prudente discutir quais as motivações, objectivos e actores envolvidos neste processo.

De acordo com a investigação de Jahanpour (2006), o programa nuclear do Irão começou, oficialmente, em 1957, quando o governo deste país assinou um acordo civil de cooperação nuclear com os EUA como parte do programa “U.S. Atoms for Peace”. Durante os anos seguintes, o Irão e os EUA colaboraram activamente no desenvolvimento do programa nuclear iraniano, tendo sempre como base a produção de energia nuclear para fins civis, mas, em 1979, como consequência da Revolução Islâmica no Irão, o programa é cancelado.

Apenas em 1989, o programa nuclear iraniano é reactivado pela mão do presidente Akbar Hashemi-Rafsanjani, mas, agora, através de acordos assinados com a URSS e, mais tarde em 1993, também com a China. Em 1994, é iniciada a construção da central nuclear de Bushehr, mas, apenas em 2002, é detectada a existência da central nuclear de Natanz (mais tarde objecto de ataque pelo Stuxnet).

Durante os anos que se seguiram aos acordos com a URSS e China, os EUA e Israel (numa perspectiva geopolítica, o país politicamente mais afastado e geograficamente mais próximo do Irão) mostraram grandes reservas relativamente ao programa nuclear iraniano e chegaram mesmo a intervir junto da comunidade internacional numa tentativa de obter apoio para terminar o programa. Os principais argumentos de ambos convergiam para o facto do enriquecimento de urânio produzido no Irão ultrapassar as percentagens necessárias à

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! Durkheim rejeitou a possibilidade de que os factos sociais poderiam ser produto do acaso ou eventualidade. 21

Segundo Durkheim, alguns processos sociais são necessários ou, por outras palavras, certas necessidades sociais devem ser satisfeitas para que possa haver evolução societal.

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produção de energia nuclear para fins civis e, portanto, demonstrar um objectivo secreto de atingir as percentagens de enriquecimento necessárias para a produção de armas nucleares  . 22

Perante a insistência internacional, em Dezembro de 2006 e Março de 2007, a ONU aprova as resoluções nos 1737 e 1747 que impõem sanções pesadas ao Irão, por não ter suspendido a produção de urânio enriquecido e clarificado a sua posição quanto ao futuro do seu programa nuclear. No entanto, em 9 de Abril de 2007, durante as comemorações do primeiro ano de produção de urânio enriquecido, e em clara oposição às pretensões e exigências internacionais, o Presidente Mahmud Ahmadinezhad declarou:

“With great pride, I announce as of today our dear country is among the countries of the world that produces nuclear fuel on an industrial scale. (…) This nuclear fuel is definitely for the development of Iran and expansion of peace in the world.” (Fathi, 2007).

Esta dinâmica geopolítica traduzida em demonstrações de poder das três partes e a recusa do Irão em suspender as operações nucleares podem estar na origem da motivação dos autores do Stuxnet em prejudicar ou atrasar o programa nuclear iraniano por vários anos.

Segundo Langner (TED, 2011), o especialista em segurança informática que descodificou o Stuxnet, a motivação é clara: “the idea behind the Stuxnet computer worm is actually quite simple: we don’t want Iran to get the bomb”. Langner vai ainda mais longe, quando, baseado nas descobertas que fez ao analisar o código fonte do Stuxnet, refere:

“My opinion is that the MOSSAD is involved but that the leading force is not Israel. The leading force behind that is the cyber super-power. There is only one and that’s the United States.” (TED, 2011).

De facto, as evidências apontam para o envolvimento do governo norte-americano e da MOSSAD na concepção do Stuxnet. Barzashka (2013, pp.49-50) apresenta uma série de artigos de jornal e comunicados oficiais em que responsáveis israelitas e norte-americanos afirmam que o programa nuclear iraniano sofreu alguns atrasos e atribuem responsabilidades às sanções impostas ao Irão pela Comunidade Internacional. Porém, em alguns casos, estas declarações referem, em maior detalhe, problemas nas centrifugadoras de urânio, apontando para um maior conhecimento sobre estes factos do que aquele que as fontes pretendem demonstrar. O conselheiro para armas de destruição em massa do presidente Obama, Gary Samore, referiu que:

“I'm glad to hear they are having troubles with their centrifuge machines, and the U.S. and its allies are doing everything we can to make it more complicated” (Broad, Markoff e Sanger, 2011).

São bastante óbvias as referências às motivações, objectivos e actores. As motivações correspondem ou equivalem às preocupações dos agentes envolvidos, relativamente à possibilidade de produção de armas nucleares por parte do Irão. Consequentemente, o objectivo da criação do Stuxnet é o atraso, ou mesmo a destruição, do seu programa nuclear.

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! Segundo a Agência para a Energia Nuclear (OCDE, 2012, p.29), o urânio no seu estado natural é constituído por 22

dois isótopos: U235 (0,71%) e U238 (99,29%). O isótopo necessário para a produção de energia nuclear é o U235, o que significa que é necessário enriquecer o urânio natural de modo a que a percentagem deste isótopo atinja um valor entre 2% e 5%. Quando o enriquecimento do urânio atinge percentagens do isótopo U235 superiores a 90% (conhecido como urânio altamente enriquecido), este pode ser usado na produção de armas nucleares.

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Por fim, existe uma convicção generalizada entre os académicos e especialistas que estudaram esta temática sobre a identificação dos actores envolvidos: os EUA e Israel como agentes do poder atacante e o Irão como sujeito e objecto do ataque.

A discussão sobre a temática da escolha da CUSB para a disseminação do Stuxnet envolve duas questões primordiais: foram (1) factores de natureza tecnológica ou (2) factores de natureza sociológica que determinaram a escolha da CUSB como ponto original da disseminação do Stuxnet? Por outras palavras, os agentes que decidiram usar a CUSB fizeram-no porque as características técnicas do objecto preenchiam a necessidade de cumprir o objectivo ou o conhecimento adquirido através das dinâmicas internas do grupo e das dinâmicas externas deste com a sociedade, relativamente ao passado histórico do objecto, promovia a construção de sentido e garantia o sucesso da sua utilização no cumprimento do objectivo? Trata-se, portanto, de uma questão que circula entre (1) determinismo tecnológico e (2) determinismo social.

O debate desta temática envolve discussões entre académicos de ambos os lados desde a década de 80, mas podemos encontrar as raízes de muitas destas abordagens sociológicas nos anos 60 e 70 em autores como Berger e Luckmann (1966) e Bloor (1976) que influenciaram o movimento construcionista iniciado nos anos 80 através da sociologia do conhecimento.

Também McLuhan (1994), nos anos 60, surpreendeu a comunidade académica com as suas visões deterministas sobre a forma como a tecnologia na forma de media, influenciava a sociedade. Para este autor, os indivíduos não eram mais do que os efeitos da tecnologia moldados à sua imagem. Colocando a mensagem de McLuhan no contexto actual do início do século XXI dir-se-ia que o Twitter (tecnologia) molda os indivíduos (sociedade) porque estes exprimem as suas mensagens limitados a segmentos de apenas 140 caracteres. Numa perspectiva mais construcionista de Bijker (1995), as mensagens enviadas via Twitter (tecnologia) reflectem uma interacção social mais acelerada ou, por outras palavras, uma necessidade de comunicação mais sucinta e rápida por parte dos indivíduos (sociedade), tendo, assim, a tecnologia sido moldada pela vontade social. Bijker designa esta sobreposição do comportamento social à tecnologia como social shaping of technology e o seu oposto como technological impact on society (Bijker, 1995, pp.195-196).

No contexto do presente artigo, o determinismo tecnológico de McLuhan apontaria as características técnicas do media CUSB como decisivas na sua apropriação como fonte da disseminação do Stuxnet. Por exemplo, na impossibilidade física dos agentes terem acesso à rede informática interna das instalações nucleares de Natanz, a única forma de cumprir o objectivo seria transportar o malware através de um objecto tecnológico desenhado para armazenar conteúdo digital, portável, padronizado (permitindo a sua utilização em qualquer computador) e durável (evitando qualquer tipo de acidente que pudesse comprometer a sua utilização). Este objecto torna-se, assim, numa extensão dos próprios agentes, amplificando os seus sentidos, moldando as suas razões e retribuindo com a satisfação das suas necessidades ou objectivos. Como McLuhan refere:

“In a culture like ours, long accustomed to splitting and dividing all things as a means of control, it is sometimes a bit of a shock to be reminded that, in operational and practical fact, the medium is the message. This is merely to say that the personal and

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social consequences of any medium — that is, of any extension of ourselves — result from the new scale that is introduced into our affairs by each extension of ourselves, or by any new technology. (…)Physiologically, man in the normal use of technology (or his variously extended body) is perpetually modified by it and in turn finds ever new ways of modifying his technology. Man becomes, as it were, the sex organs of the machine world, as the bee of the plant world, enabling it to fecundate and to evolve ever new forms. The machine world reciprocates man's love by expediting his wishes and desires” (McLuhan, 1994, p.7,46).

Por outro lado, a perspectiva construcionista social de Bijker apontaria a technological framework como decisiva para a apropriação da CUSB como meio de propagação do Stuxnet. Segundo este autor, a technological framework é um conceito que compreende todas as interacções dentro de grupos sociais relevantes e a resultante produção de conhecimento e sentido relativamente ao objecto tecnológico. É, portanto, um conceito que está relacionado com a epistemologia da tecnologia. Clarifiquemos um pouco mais estes conceitos. Um grupo socialmente relevante é composto pelos actores que participam na dinâmica em questão. No tema em análise, podemos incluir neste conceito os agentes que participaram no processo criativo e decisório do Stuxnet. Estes incluem, certamente, hackers, e outros corpos de conhecimento tácito com um histórico de experiência na área do malware, informática, engenharia e outras. Da reunião destes corpos resultam interacções e dinâmicas que produzem meaning (sentido) relativamente ao objecto tecnológico. Por outras palavras, a experiência prévia de hackers com a propagação de vírus informáticos utilizando disquetes (como foi frequente no década de 80 e 90 devido à inexistência da Internet), trouxe para o grupo socialmente relevante (os agentes deste processo) um conhecimento que atribuiu novo sentido à CUSB, transformando-a em nova tecnologia ou, dito de outra forma no contexto da propagação de malware, na “nova disquete do século XXI”. Como Bijker refere:

“A technological frame structures the interactions among the actors of a relevant social group. Thus it is not an individual's characteristic, nor a characteristic of systems or institutions; technological frames are located between actors, not in actors or above actors. A technological frame is built up when interaction "around" an artifact begins. Existing practice does guide future practice, though without logical determination. If existing interactions move members of an emerging relevant social group in the same direction, a technological frame will build up; if not, there will be no frame, no relevant social group, no future interaction. (…)A technological frame comprises all elements that influence the interactions within relevant social groups and lead to the attribution of meanings to technical artifacts - and thus to constituting technology. Following the example of the celluloid chemists, these elements include (to begin with, at least): goals, key problems, problem-solving strategies (heuristics), requirements to be met by problem solutions, current theories, tacit knowledge, testing procedures, and design methods and criteria.” (Bijker, 1995, p.123).

No entanto, Winner (1993) publicou um artigo onde critica a perspectiva construcionista de académicos como Bijker. A sua argumentação pode ser agrupada em quatro aspectos principais: (1) o quase total desprezo pelas consequências de uma escolha tecnológica (Winner, 1993, pp.368-369). O que Winner refere aqui contempla reacções sociais como, por exemplo, a instituição de regras que proíbem a utilização de CUSB em computadores ligados a redes comerciais privadas ou redes institucionais onde circula informação confidencial, sensível

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ou vital para o bom funcionamento da mesma (como no caso de Natanz). Segundo o autor, estes efeitos, configurados como resistência ao poder numa perspectiva Foucaultiana, devem ser considerados na análise sociológica da tecnologia, pois influenciam o processo decisório e evolutivo do objecto tecnológico.

Um segundo ponto argumentativo de Winner refere que (2) a análise construcionista atribui pertinência apenas aos grupos sociais relevantes na “construção” da tecnologia e ignora os grupos sociais que sofrem o seu impacto (Winner, 1993, pp.369-370). Por outras palavras, o foco construcionista é direccionado apenas às interacções entre os membros do grupo social que tem o poder do processo decisório e não considera os efeitos da utilização do objecto tecnológico. Ou seja, o construcionismo ignora as consequências retiradas da facilidade com que um actor transportou a CUSB para dentro das instalações nucleares de Natanz e as consequências que esse acto teve na sociedade iraniana.

O terceiro argumento apontado por Winner diz respeito ao (3) desprezo construcionista relativamente à possibilidade de existirem dinâmicas mais profundas ao nível cultural, social ou intelectual e, também, propriedades autónomas da tecnologia que possam ter influenciado a evolução de um objecto tecnológico (Winner, 1993, pp.370-371). Em suma, este ponto refere que a análise construcionista é limitada no seu âmbito, considerando apenas as dinâmicas existentes ao micro-nível do grupo relevante e esquece as dinâmicas existentes ao macro-nível da sociedade envolvente ou mesmo análises não sociológicas que envolvam as características técnicas do objecto.

Por último, o quarto ponto de argumentação de Winner refere que (4) o movimento construcionista não considera os aspectos políticos e morais ou não toma qualquer postura de avaliação relativamente aos mesmos, na consideração da evolução tecnológica (Winner, 1993, pp.371-373). Ou seja, para Winner a desconsideração destes princípios políticos e morais funciona até certo ponto, quando existe consenso geral relativamente à conclusão de um processo evolutivo da tecnologia, mas como é que resolve os problemas da falta de consenso? Quando existe desacordo social relativamente à evolução de determinado objecto tecnológico, por exemplo, quando a segunda versão da disquete em 1987 (1.44MB) pareceu evoluir em duas direcções distintas na mesma década, uma para o a) CD e outra para b) a ZIP Drive, como é que a análise construcionista avalia as influências políticas e morais ou, mesmo, as propriedades inerentes aos dois objectos para interpretar a morte de um e a sobrevivência do outro?

Winner estabelece, no seu artigo, relevantes considerações relativamente a algumas falhas do pensamento construcionista relativamente à ontologia do objecto tecnológico, mas o construcionismo apresenta desafios pertinentes ao determinismo tecnológico ao introduzir na discussão modelos não deterministas de evolução tecnológica e apresentar evidências de como a tecnologia pode ser socially shaped.

O Desmoronar da Obrigatoriedade de Uma Escolha

Alguns autores rejeitam qualquer forma de determinismo, seja tecnológico ou social. Levinson, numa perspectiva maioritariamente humanista, refere que:

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“I have often criticized McLuhan for his media determinism, or tendency to cast humans as the “effect” of technology, rather than vice versa. (…)The reversal of determinism began with the arrival of life itself. Unlike inorganic reactions, the results of which are almost as predictable as two plus two equals four, living processes are animated by dollops of unpredictability. On the individual level, this unpredictability can of course lead to death as well as success; for life as a whole, this noise in determinism serves as a source of novelty via mutation, and is thus one of the cutting edges of evolution. When that evolution gave rise to human intelligence, determinism suffered another reversal, as profound as that which attended the emergence of open-programmed life. To imagine is to disperse to infinity the prospect of a single, unavoidable result. To embody those imaginings into tangible technology is to greatly constrict that field of possibilities—for physical things are less easily wrought than ideas—but even a handful of new technologies, even just two, breaks the spell of a single, inevitable outcome.” (Levinson, 2004, pp.40,201-202).

A perspectiva de Levinson é simples, se existe vida munida de inteligência, o resultado da produção dessa vida é tão imprevisível quanto ela mesmo. A simples existência de inteligência pressupõe níveis de imaginação ilimitados, levando a resultados ainda em maior número. No entanto, ainda que abordássemos a questão do ponto de vista meramente tecnológico, a simples existência de apenas duas tecnologias em interacção, per se, já evitaria a determinação de apenas uma possibilidade de resultado.

Outro autor que rejeita o determinismo tecnológico é Morozov. Nos seus textos de (2011) e (2013), Morozov apresenta variadas formas de determinismo tecnológico e uma das suas consequências sociais, o que ele chama de solucionismo e centrismo da Internet, explicando os motivos pelos quais esta atitude, perante as novas tecnologias, levará a sociedade a pagar um preço demasiado elevado por benefícios que não produzem os resultados esperados. Como o próprio refere:

“determinism — whether of the social variety, positing the end of history, or of the political variety, positing the end of authoritarianism — is an intellectually impoverished, lazy way to study the past, understand the present, and predict the future.” (Morozov, 2011, p.290).

Mas Morozov vai mais longe, quando afirma que:

“But it’s not only history that suffers from determinism; ethics doesn’t fare much better. If technology’s march is unstoppable and unidirectional, as a horde of technology gurus keep convincing the public from the pages of technology magazines, it then seems pointless to stand in its way.” (Morozov, 2011, p.290),

“only by unlearning solutionism — that is, by transcending the limits it imposes on our imaginations and by rebelling against its value system — will we understand why attaining technological perfection, without attending to the intricacies of the human condition and accounting for the complex world of practices and traditions, might not be worth the price.” (Morozov, 2013, p.16).

O que Morozov advoga é a quebra das barreiras do determinismo e do solucionismo como forma de expandir a imaginação e acabar com a “vontade de melhorar” per se sem ter em conta as verdadeiras motivações que devem estar por detrás dessa vontade: a condição humana e o conjunto complexo de práticas, tradições e processos sociais. Por outras palavras, o que Morozov condena no determinismo e solucionismo é a tentativa de resposta imediata a questões que não foram sequer devidamente formuladas.

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Também na área da antropologia, Pfaffenberger pensa que os motivos pelos quais muitos indivíduos assumem uma postura determinista relativamente à apropriação da tecnologia deve-se ao facto de ser o caminho mais fácil para explicar um processo social muito mais complexo do que aparenta. Este pensamento suporta as reivindicações de Morozov ao referir que o determinismo é um modo preguiçoso de racionalizar esta problemática. Como o próprio Pfaffenberger refere:

“assuming technological determinism is much easier than conducting a fully contextual study in which people are shown to be the active appropriators, rather than the passive victims, of transferred technology.” (Pfaffenberger, 1992, p.512).

Nas palavras de Pfaffenberger, se considerarmos uma perspectiva determinista da tecnologia estamos a apontar os indivíduos como meras vítimas dos seus efeitos, mas, se quebrarmos estas limitações deterministas, estamos realmente a estudar e demonstrar como os indivíduos se apropriam da tecnologia para os objectivos a que se propõem. Assim, a questão da apropriação da CUSB para a disseminação do Stuxnet poderia ser explicada por meras propriedades tecnológicas que se adequam à finalidade em questão, mas, essa perspectiva, anularia por completo as possibilidades inerentes ao contexto social dos agentes envolvidos na sua escolha.

Conclusão

Neste artigo, observámos como a padronização e uso de protocolos abertos facilitou o encoding, a circulação e o decoding da mensagem. Estas escolhas promoveram a explosão das TIC e, particularmente, da Internet, nos finais da década de 90 e início do século XXI e, em conjunto com outros factores sociais e tecnológicos, culminaram na network society de Castells e no surgimento da CUSB como forma de transporte e armazenamento de informação digital.

Também observámos como evoluiu a tecnologia de armazenamento de informação digital desde 1972 até ao início do século XXI, demonstrando que existiam a oportunidade e a necessidade para tal dispositivo. Ao mesmo tempo, conhecemos as origens, motivações, vantagens, desvantagens e o objectivo inerente à criação desse mesmo dispositivo a partir dos próprios autores. Esse objectivo, bem claro na patente registada é: armazenamento portável de informação digital.

Num momento seguinte, abordámos a questão da apropriação da CUSB através de um olhar construcionista em oposição à filosofia da tecnologia, apresentando argumentos de ambos os lados que defendem, respectivamente, determinismo social versus determinismo tecnológico. Ficámos a conhecer a perspectiva tecnológica de McLuhan relativamente à teoria dos efeitos, onde o indivíduo não é mais do que o efeito que a tecnologia exerce sobre si, actuando, assim, como mero órgão reprodutor dessa mesma tecnologia. No entanto, ficámos, também, a conhecer a perspectiva sociológica de Bijker, onde a tecnologia é o resultado das interacções e dinâmicas entre os membros dos grupos relevantes, formando uma technological framework. Porém, através de Winner, foram identificadas algumas falhas metodológicas no processo ontológico da análise construcionista ao objecto tecnológico. Essas falhas, segundo Winner, reportam às limitações de âmbito que ignoram condicionantes importantes para a

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análise desta temática e que são exteriores à technological framework de Bijker como, por exemplo, a política e a moral nos momentos de falta de consenso social. Ainda assim, o pensamento construcionista, não sendo tão intransigente como o pensamento da filosofia da tecnologia, considera algumas condicionantes tecnológicas como determinantes na evolução do objecto tecnológico, mas, no final, conclui que o social shaping of technology é mais determinante nesta evolução do que o technological impact on society.

Por fim, analisámos as ideias e argumentos de alguns autores que rejeitam o determinismo, seja este na sua forma social ou tecnológica, assumindo uma posição mais humanista desta questão. Levinson considera que o facto de existir vida inteligente envolvida nas dinâmicas sociais relevantes para o processo evolutivo da tecnologia constitui, em si mesmo, um leque ilimitado de possibilidades que não podem culminar em apenas um resultado final, não havendo lugar a qualquer determinismo. Morozov e Pfaffenberger suportam esta mesma ideia. Morozov argumenta que as barreiras do determinismo obscurecem as verdadeiras motivações que devem estar na origem das questões para as quais a tecnologia deve apresentar respostas e, por isso, introduzem limitações aos benefícios que a sociedade poderia obter. Por outro lado, Pfaffenberger refere que o determinismo tecnológico é o caminho mais fácil para explicar relações e dinâmicas mais complexas. A assunção do determinismo tecnológico implica transformar os indivíduos em meras vítimas passivas dos efeitos tecnológicos, enquanto que o seu oposto teria hipótese de estudar e demonstrar uma sociedade mais activa na apropriação dos objectos tecnológicos.

Concluímos, assim, que ambos, o construcionismo e a filosofia da tecnologia, têm uma palavra a dizer, tanto no processo decisório do seu uso como, também, na questão da apropriação tecnológica. Por um lado, a invenção da tecnologia em causa não parece ter sofrido influência do fim para o qual foi usada, aproximando-se à teoria da filosofia da tecnologia, mas, por outro lado, o fim para o qual foi usada constitui transporte de informação (neste caso específico o Stuxnet), configurando uma clara influência da necessidade sociológica na sua criação. Em simultâneo, esta apropriação constitui a clara formação de um novo significado para o objecto que passa de objecto de armazenamento para uso civil a arma de transporte para fins militares.

Consideramos, então, que não pode existir um tipo único de determinismo na análise da apropriação da CUSB para disseminação do Stuxnet, aproximando-nos mais da vertente não determinista, seja qual for a sua forma. Muitos indivíduos continuam a pensar que a questão do malware pode ser resolvida tecnologicamente, mas este não é um problema puramente técnico. Apesar de não estar no âmbito do presente artigo, este é, também, um problema social de literacias  . É preciso parar de pensar em resolver esta questão apenas da perspectiva de 23

protecção do perímetro das redes sensíveis ou protecção do hardware e começar a pensar mais na formação de competências/literacias que ataquem o problema na sua vertente social.

Tendo a ousadia de apropriarmo-nos das palavras de Paul Levinson (2004, p.203), leiam McLuhan, leiam Bijker, leiam livros e ensaios sobre os dois, leiam sobre construcionismo e filosofia da tecnologia, releiam este artigo e decidam por vós próprios.

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! Para um estudo mais completo sobre literacias, recomendamos a leitura do artigo referido em (Ramos, (in press)b).23

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Notas

Para a numeração das referências bibliográficas em formato de ebook, foi usada a letra no tamanho mínimo e o iPad colocado na horizontal.

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