ISTO NÃO É UM BANDEIRANTE! O trabalho de mediação na exposição “Imagens recriam a...
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ISTO NÃO É UM BANDEIRANTE! O trabalho de mediação na exposição “Imagens recriam a História”
*
Valéria Peixoto de Alencar
Resumo
Este artigo pretende discutir o uso de imagens em exposições históricas a partir da análise da
construção de um discurso expositivo que propõe refletir sobre a figura do bandeirante no Museu
Paulista da USP, a criação do mito e alguns desdobramentos. Também, refletir sobre as possibilidades
de leituras das imagens contidas na dita exposição e propostas pela ação educativa da instituição.
Palavras-chave: Pintura Histórica, Educação em Museu, Cultura Visual, Bandeirante
Introdução
Basta que uma figura se pareça com uma coisa (ou
com qualquer outra figura), para que se insira no
jogo da pintura um enunciado evidente, banal, mil
vezes repetido e entretanto quase sempre silencioso.
(Michel Foucault)
Este artigo apresenta algumas reflexões surgidas durante pesquisa junto ao Serviço de
Atividades Educativas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (SAE/MP/USP), no
tocante a uma de suas exposições: “Imagens recriam a História”, e o trabalho de mediação
cultural realizado com o roteiro “Um olhar sobre a pintura histórica” elaborado pelo SAE para
esta exposição.
A pesquisa é parte do projeto de Doutorado que vem sendo realizado no Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/UNESP), sob a orientação da professora Dra.
Rejane Galvão Coutinho. O MP/USP é o estudo de caso desta pesquisa por ser um dos
primeiros museus históricos brasileiros e um dos mais visitados também.
Para tanto, este artigo possui três momentos: inicialmente, apresentarei brevemente o
Museu Paulista, enfocando seus anos iniciais e sua caracterização como museu Histórico, para
tanto, utilizarei como principal referência a historiadora Ana Cláudia Brefe (2005).
*O termo bandeirante se refere aos sujeitos da História do Brasil que atuaram no período colonial como
exploradores do território, escravizando índios, buscado ouro e metais preciosos.
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Em seguida, procurarei tecer reflexões sobre o uso pedagógico das Imagens no Museu
Histórico e para esta discussão conto com os seguintes autores: Peter Burke, e Ulpiano
Bezerra de Meneses que abordam a utilização de imagens como fontes históricas; também,
Paulo Garcez Marins, que idealizou o projeto curatorial da exposição “Imagens recriam a
história”, e discute em um de seus artigos como uma convenção pictórica foi utilizada para
representar o bandeirante paulista em pinturas e esculturas do acervo do MP.
Por fim, apresentarei a proposta de mediação do SAE/MP para a exposição “Imagens
recriam a História”, a partir de apontamentos realizados como observadora participante
durante o processo do estudo de caso.
1 O Museu Paulista
Figura 1. Museu Paulista. Guilherme Gaensly. c.1902.
O Museu Paulista (MP) foi inaugurado em 1895. Também conhecido como Museu do
Ipiranga, nome do bairro onde se situa e onde foi proclamada a Independência do Brasil em
1822, foi projetado pelo arquiteto Tommaso Gaudenzio Bezzi, para configurar como um
monumento ao evento que é considerado o nascimento da nação brasileira (Brefe, 2005).
A fotografia de Gaensly (Figura 1) apresenta a edificação, ainda sem o jardim que
posteriormente será construído ao redor. Vale ressaltar que a cidade de São Paulo à época da
construção do museu era pouco povoada e o bairro do Ipiranga era afastado do núcleo urbano
central. A região fazia parte do caminho de quem subia a Serra do Mar, vindo do litoral para o
centro da cidade. O acontecimento da Independência se deu numa dessas viagens, daí a
importância local e a preocupação em perpetuar sua história.
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Com características de memorial, sua construção foi iniciada em 1885, “sendo
considerado terminado em 1890, apesar de inacabado por falta de recursos” (Brefe, 2005: 20),
permaneceu desocupado até 1894, quando passou por lei a ser a nova sede do Museu do
Estado, que foi batizado de Museu Paulista.
Seu primeiro diretor, Hermann Von Ihering era zoólogo e, seguindo a linha dos dois
outros grandes museus brasileiros do século XIX, o Museu Nacional no Rio de Janeiro e o
Museu Paraense Emílio Goeldi, também privilegiou a História Natural em sua expografia.
Ainda, segundo Fábio Rodrigues de Moraes (2008), Ihering nunca se esqueceu do simbolismo
do local, do que ele representava para a história brasileira e de que no regulamento da
instituição havia um artigo dedicado à seção histórica.
Contudo, foi a partir de 1917, com a direção de Affonso Taunay, um Historiador, que o
Museu Paulista “começou a delinear claramente o perfil de um museu histórico” (Brefe, 2005:
53). Taunay inaugurou a Secção Histórica do MP em 1922, por ocasião das comemorações do
centenário da Independência e, durante todo o período de sua gestão, até 1945, mobilizou seus
esforços para contar a sua versão da História nacional pelo olhar paulista (Brefe, 2005)
Cabe ressaltar que “a iconografia é um dos elementos centrais da decoração histórica do
Museu Paulista prevista por Taunay” (Brefe, 2005: 83), de modo que ele realizou diversas
encomendas a artistas renomados como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva, Rodolfo
Bernadelli, entre outros, de pinturas e esculturas baseadas em desenhos, gravuras e fotografias
que passaram a compor o acervo do museu. Tais encomendas eram supervisionadas pelo
próprio Taunay e
faz crer que ele estava absolutamente consciente do poder evocativo das
imagens na formação do quadro histórico que pretendia delinear e
instaurar. Diretamente imbricada nessa preocupação em compor a história
paulista e nacional de maneira lógica, abrangente e explicativa, está a sua
intenção pedagógica em relação ao museu (Brefe, 2005: 109-110).
Contar a História Nacional no período que compreende a chegada dos portugueses até
1822, a partir do ponto vista paulista, significou, dentre outras escolhas, valorizar a figura do
chamado bandeirante paulista, objeto de estudo de Taunay.
E, é a partir de obras encomendadas no início do século XX que representam o contato
entre portugueses e índios e o bandeirante paulista nos séculos XVI e XVII que se delineou o
tema da exposição “Imagens recriam a história”, que será comentada no item 3.
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Figura 2. Museu Paulista. Autor e data desconhecidos.
Disponível em http://www.sp-turismo.com/sao-paulo/museu-paulista.htm
Atualmente, o Museu Paulista continua sendo um dos museus mais visitados do país,
agora, engolido pela cidade (Figura 2), suas exposições e seu acervo continuam provocando
diversas leituras e reflexões, como apresentarei a seguir.
2 Imagens e História
Muitas vezes, ao preparar aulas ou palestras sobre Metodologia do ensino de História ou
História da Arte, recorri a sites de busca na internet atrás de imagens para apresentar aos
estudantes. Muito fácil encontrá-las, difícil encontrar informações mínimas sobre elas, tais
como ano de produção e autor, sem mencionar que os títulos nem sempre estavam corretos. E,
posso garantir que, como professora cuidadosa que sou, os sites pesquisados eram destinados
a pesquisa escolar ou acadêmica.
Livros didáticos de História mais antigos geralmente, também, não se preocupavam em
apresentar as imagens com as referências corretas, utilizando tais imagens como ilustração
pura e simplesmente. Nos últimos anos observei que os autores de livros didáticos têm
tomado um certo cuidado, ao menos no que se refere às legendas que acompanham as
imagens utilizadas, com títulos (corretos), autores e datas das reproduções de pinturas,
esculturas, fotografias e imagens de outra natureza que venham a utilizar, afinal, como diz
Peter Burke em seu livro Testemunha ocular: história e imagem (2004), no qual ele apresenta
uma análise dos usos das imagens na historiografia, “qualquer imagem pode servir como
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evidência história” (p. 20-21), mas o que o autor sempre defende é a crítica às fontes, sempre
se perguntando: “evidência de que?”.
É sobre o uso pedagógico das imagens que pretendo discutir agora, a partir do estudo de
caso que realizei no Museu Paulista/USP. Tomando como exemplo a imagem do bandeirante,
presente nas pinturas e esculturas encomendadas por Ihering e, principalmente por Taunay, é
possível perceber o impacto dessas imagens no processo de formação de um imaginário sobre
a memória nacional, que perdura até os dias de hoje; ora valorizando as imagens como
representantes da verdade, ora, desvalorizando-as como sendo uma farsa, como, por exemplo,
o desenho criado (Figura 3) para a matéria de Ana Rita Martins, veiculada na revista Nova
Escola, em outubro de 2008:
Figura 3 – s/título. Éber Evangelista, 2008.
Disponível em: < http://revistaescola.>abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/mudou-imagem-422991.shtml
A imagem não tem um título, sua legenda apresenta a seguinte informação: “NOSSA
RECRIAÇÃO. A ilustração retrata os sertanistas segundo a descrição de documentos
históricos. Ilustração Éber Evangelista”. A “recriação” seria da tela que representa Domingos
Jorge Velho e o loco-tenente Antonio Fernandes de Abreu, que Benedito Calixto pintou em
1903 sob encomenda para o Museu Paulista (Figura 4).
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Figura 4 – Benedito Calixto. Retrato de Domingos Jorge Velho. 1903. Óleo sobre tela. 140 x 100 cm.
Acervo Museu Paulista. Reprodução Fotográfica José Rosael. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic>
O texto de Ana Rita Martins (2008), que na internet aparece como sugestão de plano de
aula para professores de História, procura discutir as diferentes visões acerca da figura do
bandeirante paulista, ou como dito na legenda “sertanistas”, como sua imagem foi construída,
literalmente, pois fala das imagens criadas no início do século XX para fortificar o mito, e que
o professor deve relativizar e “questionar essa interpretação cristalizada no senso comum”,
também que é preciso entender as visões que se construiu ao longo do tempo, ter um olhar
crítico para a História.
Contudo, a desconstrução, ou melhor, a construção de outra imagem descrita como
verdadeira, nada mais é do que acreditar na objetividade da fonte, sem criticá-la, sem levar em
conta a subjetividade do artista que produziu a imagem em 2008, numa tentativa de repórter
ou retratista policial, como assinala Burke “seria imprudente atribuir a esses artistas repórteres
um „olhar inocente‟ no sentido de um olhar totalmente objetivo, livre de expectativas ou
preconceitos de qualquer tipo” (2004: 24). Peter Burke estava se referindo aos pintores,
desenhistas e fotógrafos “testemunhas oculares” de um fato, mas certamente suas palavras
cabem aqui, pois na construção do texto de Ana Rita Martins, quando se compara as imagens,
o subtítulo é: “Aqui, o bandeirante ideal. Ali, o real”, sendo o “ideal” o de Calixto e o “real” o
de Evangelista.
Ora, por que real? Porque baseado em documentos históricos? Segundo Paulo Garcez
Marins (2007), a tela de Calixto (Figura 4) também o foi, além disso, “ao que se sabe, não
restou nenhuma representação visual de sertanistas paulistas realizada no período colonial”
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(MARINS, 2007: 92) e, ainda que tivesse restado alguma iconografia, esta também deveria
ser vista de forma crítica, como defende Meneses e Burke.
Não se trata aqui de discutir qual imagem é mais confiável, se é que isto seria possível,
e sim que, “a História continua a privilegiar ainda hoje, a despeito da ocorrência de casos em
contrário, a função da imagem com a qual ela penetrou suas fronteiras no final do século
atrasado. É o uso como ilustração” (MENESES, 2003: 20-21), assim, podemos dizer que
ambas são idealizações, ou melhor, produções encomendadas segundo certas diretrizes e
escolhas estéticas de épocas diferentes e direcionadas a públicos diversos.
Do mesmo modo foi, por exemplo, o discurso expográfico idealizado por Affonso
Taunay para o Museu Paulista. E, quando pensamos no material dedicado ao professor
(MARTINS, 2008) que apresenta uma imagem como “real”, o que se pode depreender disso é
que, tal como os historiadores da escola positivista, da qual Taunay fazia parte, as imagens
ainda são pensadas como possíveis fontes carregadas de verdade.
Como diz Burke “imagens nos permitem „imaginar‟ o passado de forma mais vívida”
(2004: 17), contudo, ao analisar diferentes tipos de imagens e como elas algumas vezes foram
utilizadas como fonte, o autor sempre adverte que não existe neutralidade na produção delas,
jamais.
No caso desta pesquisa, cabe ressaltar o uso ideológico das imagens e a força de sua
propagação pelas exposições e, o Museu Paulista que, como outros museus históricos, tem sua
origem ligada à construção de uma memória nacional e “o imaginário social é constituído e se
expressa por ideologias e utopias, sem dúvida, mas também [...] por símbolos, alegorias,
rituais, mitos” (CARVALHO, 1990: 10).
A construção da imagem do bandeirante paulista, exemplo tomado aqui para discutir
Imagem e História, e, por consequência, do imaginário em torno deste mito, muito se deve a
pesquisa que Affonso Taunay realizou no início do século XX:
“As telas produzidas para as exposições, referentes à história da nação mas
principalmente à de São Paulo, irão formar um novo universo de referências
visuais, largamente difundidas pelos livros didáticos, imprensa, e outros
meios de comunicação, ajudando a construir um imaginário centrado na
história paulista.” (BOGUS, 2002: 60).
Ainda que a pintura de Calixto (Figura 4) tenha sido encomendada na da administração
que antecedeu a de Taunay, ela está associada com a construção do mito do bandeirante,
como explana Paulo Garcez Marins em seu artigo Nas matas com pose de reis (2007), no qual
discute a adoção de uma convenção pictórica em pinturas e esculturas do MP que representam
bandeirantes. Ele afirma que aquisição da tela de Calixto
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“viabilizada por verba estadual, foi simultânea à emergência de uma
interpretação histórica que apontava o fenômeno do sertanismo paulista com
o elo decisivo entre a trajetória territorial do Brasil e de São Paulo,
concepção esta que se consolidaria entre os historiadores ligados ao Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo ao longo das três primeiras décadas do
século XX” (p. 79).
Taunay, que era ligado ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP),
produziu um discurso visual no MP que narrava a trajetória do bandeirante paulista, apoiado
em documentos que ele considerava carregados de verdade histórica, como era o pensamento
do IHGSP (BREFE, 2005).
“O Museu Paulista deu materialidade, por intermédio de imagens
profundamente evocativas, a essa história-memória construída na obra
escrita de Taunay. Esse museu histórico, com ares de memorial da
Independência recriado pelo „historiador das bandeiras‟, institui-se como um
lugar de memória nacional, onde as bandeiras e o bandeirante foram
evocados como os maiores símbolos nacionais. A história do Brasil passou,
portanto, a ser lida de um novo ponto de vista, em que São Paulo estava à
frente do contexto nacional, porque, de fato, sempre esteve; a tradição
forjada vinha, assim, confirmá-lo.” (BREFE, 2005: 214).
A autora segue discutindo sobre o papel de Taunay e do MP, e das imagens e símbolos
criados na construção dessa memória nacional. Voltando à questão do “ideal” e do “real”, ao
ler os relatórios referentes à administração de Taunay no MP e também segundo Brefe (2005),
Taunay como Historiador valorizava o uso de documentos, ele procurava inclusive, expor
fontes escritas e materiais próximas as pinturas que encomendou numa tentativa de provar a
veracidade das imagens. Portanto, não é a questão de ser ou não baseado em documentos
históricos, como foi a imagem de Evangelista (Figura 3), e sim a subjetividade presente em
quem olha para tais fontes e como as interpreta.
Nesse sentido, as imagens produzidas para essa memória bandeirante no MP podem e
devem ser vistas como fontes, mas não do período que retratam, e sim do período em que
foram produzidas, elas trazem “informações importantes para reconstruir e entender o
imaginário de sua época” (MENESES, 1992: 24).
Mas, “pode o sentido de imagens ser traduzido em palavras?” pergunta-se Burke (2004:
43) ao discutir sobre Iconografia e Iconologia, apresentando a Escola de Warburg, da qual
pertencia Erwin Panofsky, e o método iconográfico de leitura de imagens: “Panofsky insistia
na ideia de que imagens são parte de toda uma cultura e não podem ser compreendidas sem
um conhecimento daquela cultura” o que faz com que “da mesma forma, sem um
conhecimento razoável da cultura clássica nós não conseguimos ler um grande número de
pinturas ocidentais...” (BURKE, 2004: 46).
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Dada a importância ao contexto de produção, vale ressaltar que a tela de Calixto (Figura
4) além de estar ligada ao início de um movimento que irá glorificar os bandeirantes paulistas
(MARINS, 2007) como já foi dito, ainda possui duas características sobre seu contexto de
produção que merecem ser destacados.
A primeira, no que diz respeito à preocupação com a imagem fiel. Como dito
anteriormente, não havia como o pintor recorrer a fontes iconográficas na época sobre
Domingos Jorge Velho, de modo que Calixto consultou fontes textuais e orais para compor o
retrato, além de pintor ele também era historiador e, durante o processo de criação da tela,
recorreu ainda a dois outros historiadores, Teodoro Sampaio e Washington Luís (MARINS,
2007).
Entre os debates que se seguiram sobre a composição da tela entre Teodoro Sampaio,
idealista, e Washington Luís, realista – as cartas trocadas entre Calixto e seus interlocutores
eram publicadas no jornal Correio Paulistano – o pintor acabou por concordar mais com as
considerações de Washington Luís que “evidenciavam a importância que a experiência
bandeirante teria para o círculo de historiadores do IHGSP nas décadas seguintes” (MARINS,
2007: 96).
Contudo, as sugestões de Teodoro Sampaio não foram ignoradas, especialmente no que
diz respeito ao estilo do retrato, e isso é o segundo aspecto a se destacar. Além de pensarmos
no contexto de produção, o de recepção é lembrado como importante, pois a tela iria para um
Museu, um dos mais importantes do país e Teodoro Sampaio, numa carta em reposta a um
esboço da tela de Calixto diz:
“Num quadro histórico, porém, não há só a considerar a verdade ou
realidade do facto: há também a parte propriamente artística ou de efeito
estético, há a lição de cousas. Caracterizando o vulto de Domingos Jorge
como trajava qualquer sertanejo mais abastado ou à bandeirante, não se
conseguirá do quadro a demonstração ou a ideia que se tem em vista
alcançar” (TEODORO SAMPAIO apud MARINS, 2007, p. 93).
Assim, segundo Paulo Garcez Marins, Calixto utilizou o padrão de Hyacinthe Rigaud,
pintor da tradição retratística do segundo regime na França, cujo padrão de representação
régia tornou-se uma convenção, Calixto reelaborou o padrão de Rigaud “para adaptá-lo ao seu
tempo e ás demandas simbólicas dos encomendantes” (MARINS, 2007: 99).
Por fim,
“a solução compositiva de Calixto acabaria por tornar-se, ela própria, uma
convenção para a pintura e escultura históricas dos bandeirantes. Seu
sucesso, que certamente deriva do fato de ter sido adquirida pelo Museu
Paulista, confirmar-se-ia nas décadas seguintes quando Taunay, o terceiro
diretor da instituição, encomendou uma grande quantidade de obras de arte
10
para criar um cenário, um „teatro da memória‟ para as comemorações do
centenário da Independência e do que considerava ser a decisiva atuação dos
paulistas na formação do Brasil.” (MARINS, 2007: 100).
De modo que temos três elementos importantes para contextualizar a obra de Calixto e a
expografia idealizada por Taunay: a criação do mito do bandeirante, o positivismo do IHGSP
e uma convenção pictórica, já suficiente para o método iconográfico de Warburg e Panofsky.
Porém, venho aqui ressaltar as críticas que tal método tem sofrido, a partir das considerações
de Peter Burke.
Primeiramente, critica-se o método iconográfico “por ser intuitivo em demasia, muito
especulativo para que possamos nele confiar” (BURKE, 2004: 50), posso inclusive questionar
aqui a construção da figura 3, o quanto não há de intuição e especulação na proposta
apresentada por Martins e Evangelista? Teriam eles se utilizado do método iconográfico para
interpretar a tela de Calixto? O objetivo de Panofsky “era descobrir „o‟ significado da
imagem, sem levantar a questão: significado para quem?” (BURKE, 2004: 51). O que nos
leva a uma segunda crítica exposta por Peter Burke, não é possível presumir que o contexto de
recepção, mesmo numa mesma época, seja homogêneo, isto é, será que todos que passaram a
apreciar as construções do mito do bandeirante do MP tinham todo o conhecimento deste
contexto, ainda que contemporâneos a produção das imagens? Não posso acreditar.
Da mesma forma que hoje nos deparamos com um contexto historiográfico crítico à
ação dos bandeirantes e, como questiona o título do artigo de Martins “bandeirantes: heróis ou
vilões?”, a análise da expografia e o trabalho educativo devem ir além desta dicotomia, se nos
deslocarmos do personalismo e refletirmos sobre os sujeitos leitores da obra de arte, pois, se
levarmos a ferro e a fogo o método iconográfico, por exemplo, não poderíamos esperar que
crianças até uma certa idade lessem determinadas imagens.
“debemos enfatizar que no existe una simple o correcta respuesta a preguntas
como „¿qué quiere decir esta imagen?‟, ya que los significados cambian en el
tiempo y no hay leyes que garanticen el „significado verdadero‟ de las cosas;
por ello, no se debería establecer un debate entre quien tiene razón y quien
está equivocado, sino entre significados e interpretaciones igualmente
plausibles, aunque en ocasiones compitan y se contesten” (HALL apud
LOPEZ, KIVATINETZ, 2003: 42)
É pensando em significados e interpretações que apresentarei a seguir a proposta de
mediação com parte das imagens de bandeirantes que compõem a exposição “Imagens
recriam a história”.
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3. A proposta de mediação
A pesquisa de Doutorado que está em processo tem com estudo de caso o Serviço de
Atividades Educativas do Museu Paulista. Para tanto, a partir de uma abordagem qualitativa,
elaborei um plano de investigação em que pude, principalmente com o método de observação
participante, tecer considerações sobre parte do trabalho de mediação no MP, além da
consulta de fontes escritas produzidas pelo serviço educativo do Museu e por Affonso
Taunay, que auxiliaram nas reflexões acerca da relação expografia/mediação.
Para este artigo, apresento um momento da pesquisa de campo, as reflexões surgidas a
partir da observação das visitas à exposição “Imagens recriam a história”.
3.2 A exposição “Imagens recriam a história”
Situa-se na ala do MP denominada “História do imaginário” e, segundo as informações
que constam no site da instituição, a exposição “Imagens recriam a história: arte e história no
Museu Paulista” é constituída de pinturas históricas confeccionadas nos séculos XIX e XX
“que fazem parte do imaginário nacional. São explorados o processo de criação dessas
pinturas, sua integração ao Museu e sua difusão em livros didáticos e objetos de uso
cotidiano”.
A exposição foi construída em dois espaços, “Imaginar o início” que conta com telas de
Oscar Pereira da Silva, Benedito Calixto entre outras, propõe ao visitante que perceba o
processo de elaboração de pinturas históricas, explorando a partir de propostas de leituras,
também com equipamentos multimídia, uma leitura formal destas obras, numa tentativa de
que se entenda o seu contexto de produção.
Num segundo momento, a sala “Criando heróis paulistas” apresenta as reconstruções e a
reprodução da imagem do bandeirante ao longo do século XX, como, por exemplo, em
desenhos, livros didáticos, embalagens de doce, fantasias etc.
A proposta é que o visitante analise as pinturas históricas como produtos da cultura
visual, seus contextos de produção, como obras de arte e representações de determinadas
épocas em torno do mito do bandeirante.
3.3 De Domingo no parque a Pedro Américo
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O Serviço de Atividades Educativas do MP (SAE/MP), supervisionada por Denise
Peixoto Catunda Marques, elaborou um roteiro de visitação para essa exposição intitulado:
Um olhar sobre a pintura histórica, para alunos do Ensino Médio, e explora os espaços
expositivos: “Imaginar o Início”, “Criando os Heróis Paulistas” e “Salão Nobre”, este último,
não faz parte da exposição, mas foi incluído no roteiro, especialmente para a realização da
leitura da tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo.
Na atividade, como é descrito no material enviado aos professores que agendam a visita,
é “abordado o gênero „pintura histórica‟, bastante praticado por artistas brasileiros nos séculos
19 e 20. Para isso, exercícios de leitura de imagens serão realizados a partir de algumas das
obras expostas no Museu”.
Para o início da visita, o “acolhimento”, momento no qual os estudantes são recebidos
para uma conversa inicial contextualizando o MP e a exposição a ser visitada.
Especificamente para este roteiro, foi elabora uma atividade para ser realizada no acolhimento
com o objetivo de refletir sobre ideia de imagem como representação da História.
A atividade consiste em escutar a música Domingo do parque, de Gilberto Gil e em
seguida os estudantes, divididos em grupo de cerca de quatro pessoas, devem realizar um
desenho que “ilustre” ou “represente” a história contada na música.
A partir da análise destes desenhos inicia-se a conversa sobre representação, imagens e
história, como assinalou Denise Peixoto em entrevista concedida a mim por ocasião do estudo
de caso,
O que é o desenho em relação à música? Qual desenho é a música? Pra chegar à
conclusão de que nenhum desenho é a música, nem a própria música é o fato, se é que
tivesse existido essa coisa da morte, mas em todos os desenhos aparecem os mesmos
elementos, e alguns não aparecem, parte da escolha do grupo. E a gente trabalha
também pensando nisso, que o artista faz escolhas pautadas em certos referenciais...
A atividade serve como um ponto de partida para as leituras das imagens presentes na
exposição, ou seja, há que se pensar no contexto de produção das imagens e que não há
imagens certas ou erradas, são sempre representações.
No processo de observação de visitas, verifiquei que, frequentemente, se lança um olhar
de dúvida sobre a imagem do bandeirante como herói, olhar esse que, numa breve
especulação do ensino de História atualmente, se relaciona à revisão da historiografia sobre o
bandeirante, e também com materiais para professores, como a matéria da revista Nova
Escola citada anteriormente, na qual existe uma desconstrução da figura do herói para se
construir outra.
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Não cabe aqui discutir o ensino de História, mas vale destacar a leitura de alguns
estudantes que percebi contaminada pela ideia do bandeirante vilão, ao invés do herói, e a
tentativa do trabalho de mediação em superar o maniqueísmo do bom versus mau, verdade
versus mentira, como na leitura da tela “Combate de botocudos em Mogi das Cruzes” (Figura
5):
Figura 5 – Oscar Pereira da Silva. Combate de botocudos em Mogi das Cruzes. s.d. Óleo sobre tela. 100x150 cm.
Acervo Museu Paulista. Reprodução Fotográfica autoria desconhecida. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic>
Percebi, muitas vezes, quando o educador questionava: quem está vencendo? Quem
parece mais corajoso? Os estudantes tendiam a valorizar os índios: “lutar contra arma de
fogo”, “não se render...” Ao que o educador sugere: “a interpretação de quem encomendou
e fez o quadro é diferente da nossa”, para então, discutir com os alunos os elementos formais
da pintura, numa tentativa de que, a partir do contexto de produção, se perceba a subjetividade
do artista, da mesma forma como aconteceu na dinâmica realizada por eles no acolhimento.
Outras imagens da exposição também são contextualizadas, entendidas como
representação de um fato ou personagem, e que estas representações contam mais sobre a
época em que foram produzidas do que sobre o fato ou personagem retratados. Acredito que o
fato de terem executado a atividade proposta no acolhimento e discutido suas produções,
auxilie no desenrolar das discussões durante a visita.
Conclusão
14
Retomando as palavras de Foucault que abriram esse artigo, a imagem do bandeirante
paulista é esta figura que se parece com uma coisa e com outras figuras, e também todas
construções, representações que reforçam ou desconstroem o mito.
Acreditando que não há uma interpretação única para as imagens, a pesquisa da qual se
extraiu essa discussão, ainda pretende futuramente trazer maiores reflexões que compreendam
a partir dos Estudos da Cultura Visual, possibilidades de interpretação que evidenciem mais o
sujeito leitor de imagens, os contextos de recepção da visualidade.
Daí, percebo tanto a exposição citada como a imagem de Evangelista (Figura 3), cada
uma como um exercício de interpretação, dentre tantos outros possíveis da figura do
bandeirante paulista.
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