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134 EXPERIÊNCIA E PRÁTICA DE REDAÇÃO DO TERCEIRO CRITÉRIO: MEDINDO E AVALIANDO NÍVEIS DE INFORMAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO EM REDAÇÕES PARA O CONCURSO VESTIBULAR UFSC Fabiano Seixas FERNANDES 1 Fernando MENEGHEL 2 Introdução O terceiro dos critérios para a avaliação de redações do Concurso Vestibular UFSC aparece para o avaliador como segue: NÍVEL DE INFORMAÇÃO: O candidato precisa mostrar um nível de informação, em relação ao mundo em que vive, condizente com seu nível de escolaridade. As informações apresentadas devem ser pertinentes às idéias que está desenvolvendo. NÍVEL DE ARGUMENTAÇÃO: O vestibulando deve mostrar que sabe selecionar argumentos e organizá-los de modo consciente, em função do ponto de vista adotado, revelando espírito crítico, situando-se em um universo de referências concretas, sem apresentar noções generalizantes, indeterminadas ou vagas, e fazendo uso de recursos expressivos. (Guia do Vestibulando 2008, p. 18) Este talvez seja o critério mais difícil não só de se cumprir, mas também de se avaliar. Este estudo pretende esclarecer a relação entre os níveis de informação e de argumentação, bem como alguns 1 Doutor em Literatura pela UFSC. Avaliador de redações dos Concursos Vestibulares UFSC 2005, 2006 e 2007. Contato: [email protected] 2 Doutor em Literatura pela UFSC. Avaliador de redações dos Concursos Vestibulares UFSC 2004, 2005 e 2006. Contato: ffffffffmmmmmmmm@gmail. com

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EXPERIÊNCIA E PRÁTICA DE REDAÇÃO

DO TERCEIRO CRITÉRIO: MEDINDO E AVALIANDO NÍVEIS DE INFORMAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO EM REDAÇÕES PARA O CONCURSO VESTIBULAR UFSC

Fabiano Seixas FERNANDES1

Fernando MENEGHEL2

Introdução

O terceiro dos critérios para a avaliação de redações do Concurso Vestibular UFSC aparece para o avaliador como segue:

NÍVEL DE INFORMAÇÃO: O candidato precisa mostrar um nível de informação, em relação ao mundo em que vive, condizente com seu nível de escolaridade. As informações apresentadas devem ser pertinentes às idéias que está desenvolvendo.NÍVEL DE ARGUMENTAÇÃO: O vestibulando deve mostrar que sabe selecionar argumentos e organizá-los de modo consciente, em função do ponto de vista adotado, revelando espírito crítico, situando-se em um universo de referências concretas, sem apresentar noções generalizantes, indeterminadas ou vagas, e fazendo uso de recursos expressivos.(Guia do Vestibulando 2008, p. 18)

Este talvez seja o critério mais difícil não só de se cumprir, mas também de se avaliar. Este estudo pretende esclarecer a relação entre os níveis de informação e de argumentação, bem como alguns

1 Doutor em Literatura pela UFSC. Avaliador de redações dos Concursos Vestibulares UFSC 2005, 2006 e 2007. Contato: [email protected] Doutor em Literatura pela UFSC. Avaliador de redações dos Concursos Vestibulares UFSC 2004, 2005 e 2006. Contato: [email protected]

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problemas freqüentes encontrados em redações argumentativas. O corpus é composto por trechos de redações para o Concurso Vestibular 2005 – mais especificamente, redações que versam sobre uma de suas propostas temáticas, aquela que pedia ao candidato que discorresse sobre a importância e/ou os riscos de se implementar a política de cotas em instituições de ensino superior. Os candidatos que optaram por esta proposta elaboraram, em sua grande maioria, redações argumentativas – o que não ocorreu com a outra proposta do mesmo ano, nem com as propostas para os Concursos Vestibulares UFSC 2006 e 2007 –, e por isso a consideramos ideal para o presente estudo.

Este estudo pretende servir de subsídio para professores e estudantes interessados não apenas em compreender o processo avaliativo das redações, mas também em repensar as estratégias argumentativas que ensinam/empregam. Algumas das perguntas às quais tenta responder são: Em uma redação para Concurso Vestibular: (a) O que é um argumento? (b) O que é argumentar? (c) O que é estar/mostrar-se informado? (d) Como mostrar-se informado? (e) Mostrar-se informado equivale a argumentar? (f) É mais importante mostrar-se informado ou argumentar?

2 O que é mostrar-se informado?

Uma das exigências impostas ao candidato, para que venha a receber uma boa nota em sua redação, é a de que se mostre bem informado. De fato, é, sim, esperado que o candidato apresente informações, mas saber onde e como usá-las é igualmente importante para a produção de um texto argumentativo convincente.

Uma primeira coisa que o candidato deve ter mente é que, como é virtualmente impossível escrever um texto sem ter o que dizer, nem tudo o que escreve é informação: segundo Costa Val (2004), um texto é sempre composto por informações novas e antigas, e tal combinação é necessária: textos excessivamente ricos em novidade podem ser

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difíceis de ler e compreender3, textos excessivamente carregados de informações óbvias são desinteressantes e desnecessários4. O uso indiscriminado de informações amplamente conhecidas é um dos principais problemas de muitos candidatos: para justificar uma opinião, é comum as redações apresentarem informações históricas, ou tentarem justificar uma situação corrente a partir da retomada dos processos históricos que a geraram5. Ora, o candidato que apresenta dados históricos amplamente conhecidos não está informando, pois praticamente todas as pessoas que cursaram o ensino médio seriam capazes de os apresentar. Os candidatos também devem ter em

3 Ou, mais precisamente, “de serem textualizados”. O conceito de textua-lização (Ver COSTA VAL: 2004) é central para o modo como a autora compreende produção e interpretação de textos, e nos parece igualmente importante para com-preender o processo de avaliação de redações. Resumindo-o, diríamos que todo au-tor constrói seu texto deixando pistas que permitirão ao leitor reconstruí-lo. Usando um exemplo bem simples, todo texto é como um quebra-cabeça: é função do leitor montar a figura, mas só o poderá fazer se o autor houver colocado dentro da caixa tudo o que é necessário para que a figura seja inteiramente reconstruída. Certamen-te, interpretar o que nos dizem ou o que lemos nos parecerá mais fácil que montar um quebra-cabeça; curiosamente, é mais complexo: no quebra-cabeça, cada peça tem seu lugar, ao passo que, em um texto bem construído, diferentes idéias ou itens podem ser encaixados em mais de um lugar (ou, dependendo do leitor) deixados de lado, sem que isso cause problemas.4 Salientamos, contudo, que informações que o autor supõe conhecidas do leitor podem ser apresentadas, se aquele considera muito importante que este as tenha em mente durante a leitura, ou se deseja lhes dar uma nova interpretação. Note-se, ainda, que nenhuma informação é nova ou antiga em si mesma: o que nos faz julgá-­las como novas ou antigas é nosso leitor ideal. Quando falamos ou escrevemos, temos o desapercebido costume de fazer previsões de como serão nos-sos ouvintes/leitores: do que gostam, quais palavras entendem, o que precisamos lhes dizer para melhor nos compreenderem. Em teoria, pode parecer uma exigência exagerada – adivinhar o que se passa na cabeça de um desconhecido que lerá nosso texto em nossa ausência –, mas é, de fato, uma habilidade que exercemos diaria-mente, e portanto bem mais simples de se executar do que de analisar.5 Um exemplo disso, ocorrido nos Concursos Vestibulares UFSC 2004 e 2005, é o caso de o candidato afirmar que o preconceito está arraigado na sociedade devido à escravidão e a suas seqüelas. A escravidão é fato conhecidíssimo, e os níveis de informação e argumentação do texto, a partir de sua mera existência na história do Brasil, correm o risco de ser considerados baixos, diminuindo a nota final do candidato.

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mente que mesmo dados precisos, como nomes de lugares ou datas, podem ser irrelevantes para a opinião sendo defendida6. Embora um candidato que apresenta um nível de informação histórica mais amplo tenha, sim, vantagem sobre o que apresenta apenas as informações históricas mais comuns ou menos desenvolvidas, é importante que esteja ciente de que a redação para o Concurso Vestibular não lhe exige provas de erudição ou memória prodigiosa; se as demonstrar, trazendo muitas informações sobre a história, a atual conjetura do país e assuntos de interesse mundial, tanto melhor. Mas o que realmente se espera é não só que demonstre estar minimamente a par da história do Brasil e dos acontecimentos atuais, mas principalmente que saiba relacioná-­los à proposta temática – justamente por isso informação e argumentação vêm juntas no terceiro critério de avaliação. O essencial da exigência do nível de informação é que o candidato demonstre estar apto a fazer de uma informação um forte subsídio para os seus argumentos; apesar da supracitada vantagem, o candidato que apenas se excede em informações corre o risco de que não lhe sobrem linhas para que também demonstre que sabe argumentar.

Certamente, saber dosar entre argumentos e informações é, para o candidato, um problema. A limitação do número de linhas restringe significativamente o que pode ser escrito em uma redação: o candidato que demonstra estar bem informado corre o risco de ter pouco espaço para produzir uma argumentação igualmente boa; o que se preocupa mais com uma sustentação de nível puramente argumentativo, a fim de provar o valor e o bom nível de sua argumentação, corre o risco de não haver sido suficientemente informativo. Acreditamos que a ênfase sobre a necessidade da apresentação de informações pode ser prejudicial, na medida em

6 No caso da discussão sobre as cotas, as redações por vezes mencionam a Lei Áurea ou leis anteriores, como a Sexagenária e a do Ventre-Livre, e mesmo seus anos de promulgação. Mesmo corretos, esses dados ainda correm o risco de pertencer ao esquema “a situação econômica da maioria dos negros é fruto da escra-vidão”; não passam de minúcias desnecessárias, que não fortalecem um esquema de pensamento já bastante difundido.

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que não leva em consideração o fato de que um bom argumento pode funcionar como prova de que o candidato está bem informado. Um bom argumento tem a capacidade de suprir a necessidade informativa, uma vez que bons argumentos costumam ser derivados de um nível satisfatório de informação sobre o assunto em debate.

3 O que é argumentar?

A própria Língua Portuguesa gentilmente se encarrega de nos apontar que não se pode argumentar sem argumentos. Argumentar é, portanto, expor coerentemente argumentos, tendo em vista o convencimento do interlocutor no tangente a assuntos sobre os quais ainda não há acordo. Como veremos abaixo, nem todos os tipos de convencimento são legítimos, mas antes de entrarmos nesse assunto é necessário estabelecermos o que entendemos por argumento. Apesar de comum, argumento é um termo muitas vezes mal-compreendido. Dada a relação entre a qualidade de uma informação e sua pertinência argumentativa, acima apontada, parece-nos ser precisamente a falta de clareza quanto ao que seja um argumento o que leva muitos candidatos a não saber “selecionar argumentos e organizá-los”.

3.1 Definição de argumento

Em sua Introdução à lógica, Irving Copi define argumento como sendo “qualquer grupo de proposições tal que se afirme ser uma delas derivada das outras, as quais são consideradas provas evidentes da verdade da primeira” (1978, p. 23, grifos nossos). O argumento, portanto, não é uma afirmação isolada, mas um conjunto;; a idéia defendida é parte do conjunto-­argumento, e não externa a ele. Esse conjunto é formado por dois tipos de proposição: as “proposições [...] consideradas provas evidentes” chamam-se premissas;; a proposição cuja verdade estabelecem chama-­se conclusão. É importante ressaltar que nenhuma proposição isolada – isto é, fora de um argumento – é premissa ou conclusão; estas são funções que assumem dentro de um conjunto-­argumento, e a

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mesma proposição pode ser conclusão de um argumento e premissa de outro.

Os argumentos ainda guardam outras características importantes: (1) Proposições podem ser consideradas verdadeiras ou falsas; perguntas, exclamações e ordens, não: a idéia de que a Terra gira em torno do Sol pode ser verdadeira ou falsa, mas a pergunta “A Terra gira em torno do Sol?” não é nem uma coisa nem outra. Neste ponto, há duas ressalvas a serem feitas. A primeira é que argumentos podem ser enunciados sob a forma de perguntas retóricas; nestes casos, é necessário que não se os analise como perguntas. A segunda é que certos tipos de ordens podem, sim, ser analisadas como se contivessem argumentos implícitos. Nestes casos, tem-se a impressão (às vezes falsa) de que o cumprimento da ordem depende da aceitação da validade do argumento implícito. Assim,

Não se exalte, sua pressão vai subir.

é diferente de

Passe a bolsa! Isto é um assalto!

No primeiro caso, o pedido oferece uma razão pela qual deve ser aceito – ou seja, deve ser aceito porque é racional –;; em vista disso, podemos interpretá-lo da seguinte maneira:

AA7

PA1: A pressão sobe quando nos exaltamos.PA2 (implícita): Quem tem problemas de pressão não deve se exaltar.CA: Logo, não é prudente que você (que tem problemas de pressão) se exalte.

7 Entenda-se pelas siglas: AA: argumento A; PA1: 1a premissa de AA; PA2: 2a premissa de AA; CA: conclusão de AA. Cada argumento aqui exposto receberá nova letra, em progressão alfabética (AA, AB, AC etc).

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Isso abre a possibilidade de o argumento ser rejeitado com base na contestação da conclusão ou de qualquer das premissas (pode-­se dizer, por exemplo: “Já tomei meu remédio hoje”, o que suspende a validade de PA1 ao apontar uma circunstância especial que foge à sua generalização). Por sua vez, no caso do assalto, a ação exigida não é defendida, mas explicada; o assaltante não abre a possibilidade de discussão quanto à pertinência, eficácia ou validade moral do assalto.

(2) Argumentos podem ser confundidos com explicações. Isso se dá por dois motivos: primeiramente, tanto proposições quanto explicações podem ser verdadeiras ou falsas; também, argumentos podem guardar semelhança formal com explicações. Assim, embora pareçam semelhantes,

Comprei estes sapatos, pois estavam em promoção.

é diferente de

Comprei estes sapatos, pois preciso de um sapato em melhor estado para ir trabalhar.

No primeiro caso, o que se segue ao “pois” não é premissa, nem o que o antecede, conclusão: fornecer as razões pelas quais se agiu de determinada forma é diferente de defender a ação por meio de argumentos, como no segundo caso. Uma explicação, contudo, pode ter certo valor argumentativo na medida em que for necessária para a compreensão de um argumento ou para o estabelecimento de premissas cujo valor de verdade não é ponto pacífico.

(3) Argumentos podem ser confundidos com sentenças condicionais. Uma sentença condicional como

Se estiver chovendo amanhã, não iremos visitar tia Magnólia.

estabelece relação entre duas proposições, de modo que uma implica a outra, mas ambas poderiam ser totalmente irreais; logo,

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não pode ser considerada nem verdadeira, nem falsa. Mesmo assim, o pensamento hipotético é parte importante de nossas práticas argumentativas: quando deliberamos sobre o que pode ter impacto sobre o futuro, é normal empregarmos sentenças condicionais como forma de angariar convencimento; por esse motivo, diremos adiante que a verdade estabelecida pelos argumentos é “certa, provável ou possível”.

(4) Argumentos podem ser confundidos com provas. L. Marshall (apud LALANDE, 1999, p.78) afirma que todo bom argumento aspira à condição de prova – ou seja, todo argumento deseja ser verdadeiro, e, portanto, provar a verdade de sua conclusão. Prova e argumento são conceitos fortemente relacionados, e sua relação é tão estreita que podem ser encarados como sinônimos em certos contextos; mesmo assim, são distintos, e é necessário termos suas diferenças em mente. Quais são as diferenças entre prova e argumento? Em primeiro lugar, a prova diz respeito a apenas uma parte do argumento: as premissas. Isso se deve ao fato de que provas não são somente proposições: “mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar testemunho, efetuar uma indução são provas tanto quanto as demonstrações da matemática e da lógica” (ABBAGNANO, 2000, p.85, grifos nossos). Em segundo lugar, a função dos argumentos é mais complexa que a das provas. Embora Copi afirme que a função do argumento é “estabelecer a verdade (ou seja: provar)”, Abbagnano, em seu dicionário, não fala em verdade, mas em convencimento. Convencer pode significar, sim, eliminar dúvidas quanto à verdade da conclusão, mas pode ter significados não-teóricos; para nós, isso é muito importante, pois não estamos lidando com debate estritamente teórico. No dia-a-dia, convencemos os outros não só a acatar idéias, mas também a fazer coisas (às vezes contra a vontade ou convicções éticas). Um argumento, portanto – e apesar de sua estrutura –, excede os limites do puramente teórico, e não é sinônimo perfeito de prova.

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3.2 Função do argumento

A complicação entre as supracitadas funções do argumento (estabelecer a verdade e convencer) aumenta por outro motivo: a relação entre convencimento e verdade é capciosa. Para que a verdade seja reconhecida como tal – e para que ações futuras sejam condicionadas por sua descoberta –, é necessário que acreditemos nela: daí a idéia de que todo argumento aspira à condição de prova. A verossimilhança é, portanto, importantíssima na argumentação. Mesmo assim, convencer e estabelecer a verdade são objetivos distintos. Estabelecer a verdade é, mesmo em assuntos do dia-a-dia, objetivo estritamente teórico, ao passo que convencer também diz respeito a atividades mais prosaicas e, em alguns casos, a verdade pode não ter valor algum. Como o que aqui nos importa é o argumento como relação de idéias em um foro específico de debate – a redação para o Concurso Vestibular –, tomaremos convencimento pelo estabelecimento da verdade como sendo o objetivo de toda e qualquer discussão, ou seja: aqui, o argumento, para ser eficaz, deve cumprir duas condições: (1) estabelecer a verdade (certa, provável ou possível8) da conclusão; (2) produzir convencimento de que a conclusão é verdadeira. Assim sendo, argumentos em que o convencimento se dê em detrimento da verdade devem ser

8 Ou seja, não defendemos que um bom argumento deva estar acima de qualquer suspeita; não estamos lidando com Lógica, mas com os componentes ló-gicos do pensamento cotidiano. No caso específico de redações para o Concurso Vestibular, hipóteses criativas, como veremos na seção 4, podem ser consideradas argumentos satisfatórios. O senso crítico também cria hipóteses, pois deseja ver o mundo de outra forma para entendê-­lo melhor (já que a forma como o vê diaria-mente desperta dúvidas);; portanto, na situação específica do Concurso Vestibular, quando nos deparamos com hipóteses ou argumentos de baixa probabilidade, vin-dos de candidatos distintos, sendo um deles destoante da maioria e o outro comum, o primeiro deve ser valorizado.

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considerados falaciosos9 ou irracionais10.4 Analisando e avaliando argumentos em redações de Concurso Vestibular

A partir daqui, forneceremos uma série de exemplos do modo como a competência argumentativa dos candidatos do Concurso Vestibular pode ser avaliada. Todos os argumentos expostos serão avaliados tanto como argumentos puros, quanto como argumentos apresentados por estudantes do ensino médio prestando exame para ingresso em uma universidade. Isso talvez fique mais claro quando chegarmos aos exemplos. Ao final, será efetuada a análise de uma redação completa.

4.1 Desconhecimento do assunto

Como foi dito acima, um argumento demonstra o nível de conhecimento do candidato a respeito do assunto sobre o qual discorre; pode também demonstrar que o candidato não sabe senão o que há de mais banal a seu respeito, e que suas opiniões são superficiais e de senso-­comum. Vejamos o exemplo abaixo:

9 Um argumento é falacioso quando emprega um esquema de raciocínio problemático, mas que produz argumentos aparentemente válidos. Quando cabível, na seção 4, forneceremos em nota a explicação de algumas falácias comuns.10 Racional é quem utiliza o raciocínio, ou seja, é capaz de inferir e de fato infere (conscientemente ou não) conclusões verdadeiras a partir de premissas váli-das para estudar idéias, executar tarefas e atingir objetivos. Deste ponto de vista, um argumento irracional, porém eficaz, pode ser instrumento de uma ação racional: se o argüidor não está principalmente interessado na verdade e utiliza um argumento

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E111: [...] pois a pessoa não entra na instituição por causa de seu nível intelectual, mas sim por outros fatores, como cor de pele e renda familiar, o qual [sic] não deveria ser julgado em um processo de seleção [...]

Estamos diante de um argumento. Se tomarmos “cor de pele e renda familiar” como sinônimos de “cotas”, o argumento pode ser formalizado da seguinte maneira:

ABPB1: Um processo de seleção (de ingresso em instituição de ensino) deve medir o nível intelectual do candidato.PB2: A política de cotas não mede nível intelectual.CB: Logo, a política de cotas não é um processo de seleção (justo). Ou: Não é legítimo implementar a política de cotas.

Esta conclusão é importante para todos os demais exemplos, pois responde diretamente à pergunta suscitada pela proposta temática da redação do Concurso Vestibular UFSC 2005: É legítimo implementar a política de cotas? Esta pergunta exige uma resposta do tipo “sim ou não”, embora provida de razões, e restringe as conclusões a que podem chegar os candidatos, de modo que há duas conclusões finais possíveis para as redações argumentativas que versam sobre essa proposta temática, às quais chamaremos conclusões-­chave:

Conclusão-chave 01: É legítimo implementar a política de

falacioso porque estabeleceu premissas válidas a respeito da situação em que se encontra e de seus interlocutores, e se este estabelecimento e o uso do argumento levam suas conclusões a coincidirem com seus objetivos, então está sendo, sim, bastante racional, embora o argumento, utilizado de maneira instrumental e não teórica, não o seja. Aqui, contudo, devido à nossa necessidade de que o convenci-mento só se dê pelo estabelecimento da verdade, o termo racional está reduzido à relação necessária entre premissas válidas e conclusões dentro de uma discussão. Por inteligente que seja um argüidor falaz, e por maior que seja sua capacidade de alcançar seus objetivos, aqui o estaremos considerando irracional.11 Entenda-se por E1: exemplo 01.

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cotas.Conclusão-chave 02: Não é legítimo implementar a política de cotas.

Assim, AB é conclusivo. Foi o mais comum de todos os argumentos contrários à implementação da política de cotas; também é o mais fraco, e o que denota menor capacidade de argumentação, justamente devido ao baixíssimo nível de informação que exige. AB é fraco, pois PB1 é controversa, ou seja, não está suficientemente estabelecida como verdadeira para sustentar CB. Como sabemos que não está estabelecida? Um bom indício é o fato de que nem todos acreditam que o nível intelectual do candidato deva ser a única maneira de seleção em um Concurso Vestibular; o debate sobre as cotas se instaurou justamente porque nem todos pensam dessa maneira, ou seja: a simples existência do debate sobre as cotas desautoriza PB1, pois levanta problemas a respeito: dos critérios de ingresso em uma instituição pública; do papel dos critérios de seleção intelectual (não é necessariamente verdade que o critério de seleção intelectual seja desrespeitado pelas cotas, havendo muitos argumentos que buscam sustentar essa afirmação);; dos compromissos sociais (não estritamente intelectuais) de uma instituição pública de ensino superior. AB, portanto, denota conhecimento demasiadamente elementar do assunto.

4.2 Analogias indutivas

E2: Nos Estados Unidos da América, por exemplo, um sistema semelhante [ao de cotas] conseguiu aumentar o número de negros na classe média e com isso, diminuir não somente a exclusão como também o preconceito.

Embora E2 apresente um fato, não um argumento, tem valor argumentativo, pois o leitor consegue facilmente inferir um argumento implícito. O candidato faz uma comparação entre uma situação real nos Estados Unidos e uma situação hipotética no Brasil, apelando ao princípio de indução.

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O princípio de indução é a base de nossos raciocínios cotidianos; sempre que algo acontece repetidas vezes, temos a tendência a imaginar que, em ocasiões futuras, continuará a acontecer: se virmos várias vezes um mesmo homem vendendo pipoca à porta do cinema, da próxima vez que formos ao cinema, esperaremos encontrá-lo lá; se quebrarmos um vidro atirando uma pedra contra ele, esperaremos que, no futuro, quando atirarmos pedras contra vidros, quebrá-los-emos; se passamos em frente a uma casa verde todos os dias no caminho para o trabalho, esperaremos que, no futuro, quando passarmos por aquele caminho, lá esteja a casa verde. A indução estabeleceu boa parte das leis nas quais temos crença fortíssima (a sucessão entre dia e noite e a lei da gravidade, por exemplo); é tão forte que, quando observamos desvios da “lei” (o pipoqueiro não está à porta do cinema, o vidro não se quebra ao ser atingido, a casa verde não está em nosso caminho para o trabalho), automaticamente atribuímo-lo a alguma circunstância nova que nela interferiu (o pipoqueiro está doente, não atiramos a pedra com força o bastante ou o vidro é reforçado, a casa verde foi demolida ou pintada de outra cor).

Ou seja, E2 conta com o nossa crença de que padrões recorrentes do passado continuarão a se repetir no futuro; por isso, sua informação aumenta a probabilidade de acreditarmos que a implementação da política de cotas no Brasil traga benefícios. Para refutá-lo, seria necessário apontar diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos, que provem que as situações são diferentes demais para que a lei geral se aplique. O argumento poderia ser melhorado ao antecipar esse risco e fornecer dados que comprovem que o Brasil é, sim, suficientemente semelhante aos Estados Unidos para esperarmos aqui os mesmos resultados. Na situação específica do Concurso Vestibular, no entanto, talvez não seja possível fazer isso a contento; enquanto trecho de redação, devemos valorizá-lo por propor um argumento bastante promissor e ser, ao mesmo tempo, informativo.

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4.3 Premissas

E3: Afinal, com essa atitude [a implementação do sistema de cotas] o governo admite que o sistema educacional brasileiro é falho, e mesmo assim persiste em tentar corrigir esse problema não pela base.E4: Pais pagam escolas particulares não por terem dinheiro sobrando, mas sim porque o ensino público vem decaindo muito. [...] Cotas privilegiam poucos, já que há mais estudantes negros do que o número de cotas oferecidas.E5: O candidato apresenta o dado que diz que, no Brasil, de cada 10 estudantes universitários, apenas 1 se forma, concluindo que “o ensino superior ainda é algo que amedronta e não é acessível a todos que um dia tentaram ali se aventurar. Vemos que hoje as cotas tornaram-­se necessárias se bem aproveitadas.”Como vimos em E1, premissas controversas ou contestáveis

não estabelecem conclusões; assim, os candidatos devem ter cuidado com as razões que sustentam suas opiniões12.

E3 afirma que a implementação da política de cotas por parte do governo implica: (a) admissão de uma falha, mas (b) insistência em não corrigir o problema. Essas atitudes suscitam uma pergunta:

12 Muitos candidatos se baseiam inadvertidamente em premissas de senso-comum e aí há um duplo perigo: em primeiro lugar, se a opinião é de senso-comum, é amplamente difundida; o candidato, portanto, apenas repete o que disse grande parte dos demais candidatos. Do ponto de vista do avaliador, quando considera unicamente o terceiro critério, se dois ou dez ou cem candidatos têm a mesmíssima opinião baseados nas mesmíssimas razões, não faz diferença qual deles entrará na universidade, pois, sob este ponto de vista, são todos iguais. Em segundo lugar, o senso-comum é perigoso não porque todas as informações amplamente difundidas estão erradas (todos sabem que a Terra gira em torno do Sol e que a noite se segue ao dia, e estas idéias, até onde sabemos, estão corretas), mas porque exige grau mínimo ou nulo de envolvimento com o assunto. Raciocinamos pelo senso-comum quando não temos suficiente familiaridade com um assunto;; conseqüentemente, o candidato que usa premissas de senso-comum demonstra não conhecer o assunto sobre o qual discorre, e seu nível de informação deverá ser considerado baixo pelo avaliador.

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se tenta corrigir a falha, por que não consegue? E3 responde: porque não corrige o erro pela base. Há, aqui, argumento implícito:

ACPC1: Um problema só pode ser corrigido se atacada sua base (sua causa).PC2: A política de cotas não ataca a base do problema (ao qual se destina a corrigir).CC: Logo, a política de cotas não resolve (não resolverá) o problema. Ou: A política de cotas não é (não será) eficiente. (E, portanto, não deve ser implementada.)

O argumento é fraco, pois o candidato parece aceitar absoluta e inadvertidamente uma máxima da sabedoria popular: um problema só pode ser resolvido se “cortarmos o mal pela raiz”. Não há razão para aceitarmos PA1 sem ressalvas: afinal, se o câncer é uma doença genética, então devemos alterar o DNA dos pacientes para curá-los? Do mesmo modo, não haveria circunstâncias especiais no caso das cotas, que cancelariam o valor geral da premissa? Já há contra-argumentos que sugerem que sim, mas E3, calcado no senso-comum, não os previu, ou talvez não os conheça.

E4 também apresenta informações a partir das quais inferimos argumentos: os fatos de que há pais de baixo poder aquisitivo que matriculam os filhos em escolas particulares e de que há mais negros que cotas estabelecem dois argumentos paralelos, embora diferentes:

AD’PAD’: Nem todos os pobres estão em escolas públicas.CD’: Logo, as cotas de escola pública não são para todos

os pobres.

AD”PAD”: Há mais negros do que cotas.CD”: Logo, as cotas raciais não são para todos os

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negros.As cotas, assim sendo, “privilegiam poucos”; “privilegiar

poucos” é uma expressão que certamente nos remete à justiça: algo que não é para todos não é justo. Assim, temos novamente um argumento implícito:

AEPE1: (O que é justo deve ser para todos.) (Ou: Uma ação justa deve privilegiar igualmente a todos os membros de um grupo.)PE2: As cotas não são para todos. (Ou: As cotas não privilegiam igualmente a todos os membros de um grupo.)CE: Logo, as cotas não são justas. (E, portanto, não devem ser implementadas.)

AE é bom? Para uma redação de vestibular, sim, pois apoiado em informações que vão contra noções de senso-comum (i.e. a de que a escola particular é somente “para os ricos”). Apesar disso, PE1 é apressada e controversa: acaso a miséria e a pobreza são justas porque “pertencem” igualmente a todos os pobres? Se uma ação justa deve ser universal, então os pobres devem ou todos ao mesmo tempo melhorar de condição ou todos juntos permanecer na pobreza? Alguns candidatos que argumentaram favoravelmente às cotas demonstraram consciência disso, bem como conhecimento do significado e do propósito de uma “ação afirmativa”.

E5 é um bom exemplo do que fala o terceiro critério sobre “saber selecionar informações”, e sobre onde e como empregá-las. E5 apresentou um dado interessante, mas mal-empregado: ao argumentar sobre o ingresso na universidade, apresenta como suporte dados sobre estudantes egressos. Interessantes como sejam, exigem inferências demais, ou seja, o leitor deve: (a) compreender que, se a entrada na universidade é restrita, a finalização do curso é ainda mais; (b) supor que, se o número de estudantes ingressos de baixa renda já é escasso, o número de universitários formados de origem humilde talvez o seja ainda mais;; (c) concluir que o acesso

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do estudante de baixa renda ao ensino superior tem um impedimento duplo. É um raciocínio instigante, mas de modo algum

AFPF: A conclusão do ensino superior é bastante restrita (no Brasil).CF: Logo, as cotas são necessárias.

é recuperado com a mesma agilidade que os argumentos dos exemplos anteriores. Se é verdade que, ao lermos, recuperamos informações implícitas e reconstruímos em parte o trajeto cognitivo do texto, também é verdade que, às vezes – e mesmo quando somos capazes de compreender o que está escrito –, sentimos que menos informações foram dadas do que seria necessário para a devida sinalização do pensamento; parece-nos que é o caso aqui.

4.4 Contra-argumentos

E6: A maior parcela da população reivindica apenas melhorias no ensino fundamental e médio, mas não percebem que apenas isso não traz integração social, que pode ser concretizada com as cotas.E7: A essência das cotas é dar aos menos favorecidos economicamente e aos sofredores de preconceito racial, a oportunidade de ingresso à Universidade. Não significa, como muitos pensam, que um aluno vindo de escola pública, onde as condições de ensino e aprofundamento do ensino foram bem inferiores aos serviços prestados por uma particular, será um mal [sic] profissional. Vai caber a [sic] Universidade instituidora das cotas a responsabilidade de formar profissionais tão bem preparados quanto os que entraram sem cotas.E8: Não se pode também resolver o problema através da disponibilização de vagas em universidades privadas dada a diferença de qualidade dessa e da pública. O ensino superior seria comum e no mercado de trabalho os privilegiados seriam

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graduados em federais ou estaduais. Novamente uma brutal exclusão.E9: Em meu modo de ver a situação, a iniciativa da implantação das cotas não deve ser vista como uma alternativa permanente para resolver um problema, uma vez que o aluno, sabendo que terá ajuda decisiva quando tentar ingressar no ensino superior, não se empenhará em se preparar e isso diminuirá a qualidade dos nossos universitários. Esse sistema de cotas deve servir apenas para dar mais tempo às escolas públicas, para que estas possam reestruturar-se. Sou branco, tenho olhos azuis e cabelos louros, mas tenho acima de tudo, consciência social de que essas etnias [negros e índios] merecem ajuda e não tenho medo que elas possam tomar o meu lugar na universidade.

Por si só, o ato de contra-­argumentar já demonstra maior nível informativo por parte do candidato, pois só contra-argumenta quem conhece ao menos um dos argumentos da opinião contrária. Estudemos os exemplos acima.

E6 responde a dois dos argumentos até agora estudados – precisamente, dois dos mais recorrentes –: AB em E1 e, indiretamente, AC em E3. Desautoriza-­os não necessariamente porque rejeita ou problematiza suas premissas, mas porque traz à tona aspectos que os argüidores que os defenderam parecem ignorar. Ainda que, como afirma E3, “um problema só possa ser resolvido se for atacada a sua base” (o que não é necessariamente verdade), E6, como E2 e alguns dos exemplos a seguir, lembra-nos de que há outros aspectos da questão a serem considerados.

E7, novamente, não é argumento, mas uma afirmação a partir da qual se infere um. A afirmação final, que versa sobre as obrigações que teriam as universidades perante os alunos cotistas, responde a um raciocínio bastante comum, presente em muitas outras redações:

AGPG1: O aluno cotista (oriundo de escola pública e ingresso na universidade pela política de cotas) é fraco.PG2: O aluno fraco se torna um mau profissional.

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CG: O aluno cotista se tornará um mau profissional.

AG sustenta o pensamento de muitos candidatos que utilizaram expressões como “profissionais das cotas”, referindo-­se ao universitário cotista como um profissional mal-­formado e falando do preconceito que sofreria, e parte da idéia (comum, mas usualmente aceita como verdadeira) de que o sistema educacional público é falho no Brasil. A força de E7 consiste, justamente, em prever uma situação particular que cancelaria a lei geral estabelecida por AG: se as universidades têm obrigações para com seus alunos, também as têm para com os alunos cotistas; portanto, caso cumpra seu papel, não é necessário que os alunos cotistas se tornem maus profissionais. E7 demonstra, assim, maior consciência não só do papel da política de cotas, mas também do papel mesmo da universidade perante a sociedade, trazendo um contra-argumento bastante bom.

Finalmente, é importante atentar para o fato de que E7, embora defenda as cotas, não chega à conclusão-­chave 01;; seu objetivo é desmontar a conclusão-chave 02, ao atacar um argumento bastante comum utilizado para se chegar até ela.

Também em E8, o contra-argumento é uma hipótese; a diferença reside no fato de não responder a objeções gerais, que invalidem a legitimidade da política de cotas como um todo, mas a uma objeção particular, que propõe soluções alternativas. A objeção, que consiste em disponibilizar vagas aos cotistas em universidades privadas, é ardilosa: reconhece as urgências que levam à implementação da política de cotas, mas sugere não ser absolutamente necessário implementar o projeto tal como está ao oferecer uma alternativa;; contra ela, E8 monta as seguintes hipóteses: (a) a educação superior se tornaria comum; (b) os reais benefícios da educação superior estariam disponíveis somente aos estudantes da rede pública (como já se supõe que acontece). O adjetivo “comum”, na primeira hipótese, aciona o seguinte argumento:

AH

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PH1: (A formação universitária é um diferencial.)PH2: Um diferencial aumenta as chances de se obter bons empregos.CH: Logo, o estudante universitário tem maiores chances de obter um bom emprego.

Por sua vez, “no mercado de trabalho os privilegiados seriam graduados em federais ou estaduais”, na segunda hipótese, aciona um segundo argumento (hipotético):

AIPI1: A rede privada de ensino superior é (se tornaria) inferior à rede pública de ensino superior.PI2: O cotista pertenceria à rede privada de ensino superior.CI: Logo, o cotista teria uma formação universitária inferior (à

do não cotista).

Como o estudante que ingressa em universidades particulares já é muitas vezes considerado inferior ao que estuda na rede pública de ensino superior, AH, uma vez em contato com a hipótese de AI, gera

AJPJ1: A formação universitária em instituição pública seria um

diferencial.PJ2: Um diferencial aumenta as chances de se obter bons empregos.CJ: Logo, o estudante universitário formado em instituição pública teria maiores chances de obter um bom emprego.

Como argumentos, devemos notar que as hipóteses AH e AI caem nas armadilhas da generalização apressada: não é necessário

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que os estudantes de uma rede de ensino tenham individualmente a mesma competência (baixa ou alta) da rede de ensino13. Não obstante, a hipótese, além de instigante e pouco comum, é menos apressada ou infundada que as que vimos acima; primeiramente, como um dos principais objetivos de uma instituição de ensino superior é a formação adequada de profissionais, uma universidade pode ser, sim, estatisticamente julgada pela qualidade profissional da maioria de seus egressos (daí a existência de medidas como o chamado “provão”), mesmo que, ao nos depararmos com um estudante em particular, a transferência imediata das propriedades do grupo (a universidade) a seu integrante (o estudante) siga um padrão errôneo de raciocínio. Em segundo lugar, há, sim, certas oportunidades que em sua maioria esmagadora só são proporcionadas pela rede pública de ensino superior (como, por exemplo, bolsas de pesquisa e de extensão) e que aumentam as chances de os egressos da rede pública apresentarem melhor qualificação profissional. Finalmente, devemos levar em consideração que a opinião que se possa ter a respeito da instituição onde estudamos pode ter impacto independente de nossa real capacidade quando da busca por um emprego (mesmo que esse impacto, como vimos, deva-se a raciocínio falho). Percebemos, portanto, que se, por um lado, o esquema argumentativo do candidato tem uma fraqueza comum aos demais, por outro, tem elementos que o fortalecem, de modo que não seria necessário muito esforço para que fosse refinado, reestruturado e fortalecido.

E9 possui, interligados, dois argumentos explícitos, um contra-argumento e um argumento implícito. Os argumentos explícitos

13 Este seria um exemplo de falácia de composição: pressupõe indevida-mente que todos os membros de um grupo/elementos de um conjunto/partes de um todo (os estudantes universitários) têm individualmente as mesmas características que o grupo/o conjunto/o todo (a universidade).

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sustentam a conclusão-chave 01, ligeiramente alterada14. Não nos ocuparemos deles – embora assinalemos que ter dois argumentos sustentando uma mesma conclusão seja muito bom –;; interessa-­nos uma particularidade do contra-argumento.

Diz o candidato em E9: “Sou branco, tenho olhos azuis e cabelos louros, mas tenho acima de tudo, consciência social de que essas etnias merecem ajuda e não tenho medo que elas possam tomar o meu lugar na universidade.” Por que essa afirmação tem valor contra-argumentativo? Porque prevê a possibilidade de um argumento do tipo ad hominem circunstancial15. Assim, não só se previne contra argumentos “irracionais”, mas também, ao falar em “consciência social”, aciona um argumento implícito:

AMPM1: Em um sociedade, o bem estar coletivo deve vir em primeiro lugar.PM2: Em nossa sociedade, certas etnias (discriminadas e marginalizadas) merecem ajuda.CM: Logo, é legítimo implementar a política de cotas.

14 AK e AL, aqui explicitados: AK: PK: O estudante (o candidato) não se esforça quando conta com ajuda decisiva. CK: Logo, as cotas não devem ser uma solução permanente. Ou: É legítimo implementar temporariamente a política de cotas. AL: PL: As escolas públicas necessitam de tempo para se estruturar. CL: Logo, as cotas devem ser uma solução temporária. Ou: É legítimo implementar (tempora-riamente) a política de cotas.15 Argumentos ad hominem são falaciosos, pois buscam denegrir o imagem do argüidor como forma de invalidar suas opiniões, o que não é logicamente aceitá-vel: o valor de verdade de uma idéia independe de quem a descubra ou profira. No caso do ad hominem circunstancial, afirma-­se que certas circunstâncias a respeito do argüidor fazem com que suas opiniões sejam “interessadas” e não-­idôneas. Não nos esqueçamos de que nossos argüidores são vestibulandos pleiteando vagas: não é descabido supor que a defesa ou o ataque à política de cotas se devam ao interesse pessoal de ingresso; não obstante, muitos candidatos argumentaram de um ponto de vista puramente racional e desinteressado – é o que parece apontar E9, ao afirmar que é favorável à política de cotas, mesmo correndo o risco de ser prejudicado por ela.

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AM é forte: PM1 e PM2 dificilmente seriam abertamente negadas; também, PM1 é de conhecimento anterior a AK e AL, e ajuda a fortalecê-­los. E9, portanto, demonstra um complexo esquema de inter-relação entre argumentos que não só defendem seu ponto de vista, mas também se resguardam contra argumentos contrários.

4.5 Argumentação e literariedade

Para completar este estudo, analisaremos uma redação inteira. Diferentemente dos exemplos anteriores, trata-se de uma redação de caráter mais literário. Desejamos demonstrar que mesmo uma redação que fuja de uma estrutura claramente dissertativa pode argumentar, e bem.

E10: SOLILÓQUIO DE UMA ESTUDANTE BRASILEIRA

[§1] Até que enfim chegou o dia de inscrição para o Vestibular. Nossa, como está caro! Ainda bem que eu economizei um dinheirinho...[§2] Vamos ver: nome? OK! Endereço? OK! Curso? OK! Hum... essa universidade tem cotas para negros, pardos e pessoas que estudaram em escolas públicas. Que top! Será que eu posso assinalar as duas opções? Acho que não! Vou ter que escolher.[§3] Nós, negros, buscamos sempre o fim do preconceito, lutamos pelo respeito da nossa raça. Será que se eu marcar cotas para negros vou estar me descriminando [sic]? Afinal, pelo o que eu sei, 90% dos brasileiros são mestiços, ou seja, querendo ou não, eles tem [sic] sangue negro na veia.[§4] Agora me lembrei da filha da patroa da minha mãe que ano passado chegou chorando em casa porque ela tinha feito mais pontos no Vestibular do que muitos que conseguiram uma vaga por causa das cotas. coitada [sic]![§5] Eu tenho consciência de que essas cotas também é [sic] uma forma de mascarar a situação precária que é a educação nesse país. Eu também não acho justo “tirar” a vaga de alguém que fez mais pontos do que eu, mas essa é a minha

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única opção, pois a patroa da minha mãe teve condições de pagar as melhores escolas para a filha dela, enquanto a minha mãe teve que ficar um dia inteiro numa fila, embaixo de sol pra tentar conseguir uma vaga numa escola pública pra mim e pros meus irmãos. Isso sim é injusto! Se muitas pessoas acham injusto as cotas, eu também acho injusto não poder ter os mesmos privilégios que elas. Eu não posso ficar mais um ano estudando, tenho que trabalhar e se eu quero vencer na vida tenho que agarrar todas as oportunidades, é a minha única alternativa. Ah, tenho que marcar uma das alternativas. Cotas para negros ou para escolas públicas? Acho que vou marcar cota para escolas públicas, mas com caneta de tinta preta.

Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa: quem fala consigo mesma é uma jovem, negra, filha de doméstica, formanda do ensino médio pela rede pública e de situação financeira ruim. Quando a encontramos, concentra-se no preenchimento dos dados de inscrição do Concurso Vestibular; ao se deparar com a possibilidade de ingressar na universidade como cotista, volta-se para a tomada de uma decisão. Antes, porém, de se decidir, precisa se convencer de que fará algo adequado não só à sua condição de vida, mas também a seu modo de pensar. Ou seja, como AM em E9, pensa na relação entre sua condição individual e a sociedade; a diferença é que, enquanto em E9 o candidato se alinhava à classe média, aqui o alinhamento é com a classe menos favorecida.

O terceiro parágrafo marca o início de seu processo de escolha, levantando argumentos contrários às cotas. Muitos candidatos afirmaram que o sistema de cotas discriminaria os negros ao invés de ajudá-­los;; a estudante brasileira não desconhece a afirmação, e se questiona se sua luta contra o preconceito seria prejudicada. Menciona, a seguir, o argumento do mérito intelectual, visto em E1, e aqui retratado no caso da “filha da patroa”.

O quinto parágrafo traz seu contra-argumento a E1: essa é sua única chance de ingresso na universidade. Como nos contra-argumentos acima estudados, o aspecto intelectual do problema é

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respondido pelo aspecto social: se é verdade que as cotas ferem o princípio de ingresso por excelência acadêmica, também é verdade que nem todos os estudantes têm acesso aos melhores cursos preparatórios, nem podem prestar o Concurso Vestibular indefinidamente. E9 fala em dar tempo para as escolas públicas se reestruturarem; E10 complementa essa idéia de modo bastante interessante: ao criar personagens – ao atribuir pessoalidade aos problemas da estudante, de sua mãe e da filha da patroa –, possibilita a empatia do leitor com pessoas “de verdade” e seus problemas “reais” e urgentes. Ou seja: as escolas públicas precisam de tempo, mas seus estudantes não têm tempo algum. A estudante brasileira de classe baixa de hoje não pode esperar para ingressar na universidade, pois se veria forçada a trabalhar, e talvez perdesse a chance em definitivo;; não é o caso da filha da patroa, que poderá pagar mais um ano de curso preparatório. Ou seja, o contraste entre os critérios social e intelectual levam sua decisão a recair sobre o primeiro: coerente com sua posição ideológica de não coadunar com um possível ato discriminatório, opta pelas cotas para estudantes de escolas públicas. Não obstante, a frase final retoma simbolicamente a posição abandonada;; de certo modo, afirma (para si mesma) que é como negra que se inscreve nas cotas para egressos de instituições públicas: não deseja incorrer em preconceito, e, portanto, evita a opção sobre a qual apresentou dúvidas mas não contra-argumentos, mas ainda não deseja coadunar com a opinião de que não há preconceito em um país “mestiço”. Assim, a redação nos mostra uma personagem suficientemente forte, com princípios claros e com vontade de superar a situação econômica precária sem os abandonar.

Um possível problema de E10 seria o nível de informação, explicitamente baixo. Há a informação percentual (certamente aproximativa e imprecisa) acerca da mestiçagem do povo brasileiro, e as informações vivenciais acerca da situação das escolas públicas de ensino fundamental e médio no Brasil – ambas comuníssimas. Mas lembremo-­nos do que ficou dito acima: uma boa argumentação supre a necessidade de boas ou extensas informações (o contrário, no

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entanto, não acontece: boas informações não suprem a necessidade de uma boa argumentação). Em E10, o baixo nível de informação é apenas aparente: para ser capaz de escrever como escreveu, o candidato deve ter entrado em contato com uma realidade distinta da sua e ter refletido a seu respeito: caso seja um estudante de classe média escrevendo do ponto de vista de uma estudante de classe baixa, isso fica evidente;; caso seja mesmo um estudante de classe baixa, ainda assim teve de se colocar, temporariamente, no lugar de estudantes de classe média para elaborar alguns dos argumentos aos quais responde. De um jeito ou de outro, o candidato demonstrou domínio de mais informações do que o texto deixa transparecer, além de grande capacidade inventiva.

5 Conclusões

A exposição dos exemplos reforça algumas das idéias defendidas na seção 2: os níveis de informação e de argumentação estão adequadamente imiscuídos no terceiro critério de avaliação, pois para se argumentar são necessários conhecimento sobre o assunto, capacidade de selecionar os dados mais adequados e cuidado com as premissas que suportam nossas conclusões.

Como a exposição dos exemplos deve haver evidenciado, argumentar é uma tarefa necessariamente intertextual; pa Embora um candidato que apresenta um nível mais amplo de informação histórica tenha rece natural que avaliar argumentos também o seja. O conjunto das redações permite ao avaliador averiguar a freqüência dos argumentos e estratégias apresentados pelos candidatos, e conseqüentemente determinar quais informações devem ser consideradas pertencentes ao senso comum, e negativamente valoradas; também lhe possibilita encontrar em algumas redações contra-­argumentos ao que outras (não raro, a maioria) afirmam. O candidato deve ter em mente que seus argumentos correm o risco de ser antecipados e respondidos por outros, mais bem informados, e que isso pode lhe ser prejudicial. Idealmente, o candidato deveria possuir mais informações do que disponibiliza explicitamente

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ao leitor, para, baseado nelas, poder elaborar argumentos fortes e responder a (ou seja: prever) contra-­argumentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________ABBAGNANO, Nicolà. Dicionário de filosofia (revisão da trad. Alfredo Bosi). São Paulo: Martins Fontes, 2000.BLACKBURN, Simon. Oxford dictionary of philosophy. Oxford University Press, 1996. COPI, Irving M. Introdução à lógica (trad. Álvaro Cabral). 2.ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.COSTA VAL, Maria da Graça. Texto, textualidade e textualização. In: CECCANTINI, J. L. Tápias; PEREIRA, Rony F.; ZANCHETTA JR., Juvenal. Pedagogia Cidadã: cadernos de formação. Língua Portuguesa, vol.01. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004, pp.113-28.GROARKE, Leo. Informal Logic. In: ZALTA, Edward N. (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Outono/1997. URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall1997/entries/logic-­informal/>.LALANDE, Andre. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. vol.01. Paris: Quadrige, 1999.