As funções da ironia na obra literária "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS - UEMG FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DO VALE DO JEQUITINHONHA - FEVALE FACULDADE DE FILOSOFIA E LETRAS DE DIAMANTINA - FAFIDIA DEPARTAMENTO DE LETRAS As funções da ironia na obra literária Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Waniamara J. Santos Diamantina 2009

Transcript of As funções da ironia na obra literária "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS - UEMG

FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DO VALE DO JEQUITINHONHA - FEVALE

FACULDADE DE FILOSOFIA E LETRAS DE DIAMANTINA - FAFIDIA

DEPARTAMENTO DE LETRAS

As funções da ironia na obra literária Orgulho e

Preconceito, de Jane Austen.

Waniamara J. Santos

Diamantina

2009

2

WANIAMARA J. SANTOS

As funções da ironia na obra literária Orgulho e

Preconceito, de Jane Austen.

Dissertação monográfica apresentada ao Departamento de

Letras da Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina

(FAFIDIA) como requisito parcial para obtenção de

Licenciatura em Letras.

Orientador: Professor Dr. Carlo Sandro de Oliveira Campos

Diamantina

2009

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SANTOS, Waniamara J.

As funções da ironia na obra literária Orgulho e Preconceito, de Jane Austen – 2009.

Orientador- Professor Dr. Carlo Sandro de Oliveira Campos.

Dissertação (Graduação em Letras) - Universidade do Estado de Minas Gerais, Fundação

Educacional do Vale do Jequitinhonha, Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina,

Departamento de Letras.

4

Aos meus sobrinhos Mateus e Theo.

Por simplesmente existirem...

5

AGRADECIMENTOS

É sempre importante agradecer a todos que contribuíram (e contribuem) em nossa

vida: as conversas informais, o compartilhar de conhecimentos, a troca de idéias e motivação

ou a compreensão nas “horas difíceis”. A dificuldade, portanto, reside em agradecer de forma

adequada a todas essas “participações especiais”, no entanto, é necessário agradecer

nominalmente a algumas dessas:

À Professora Elizabeth Gomes que, sutilmente, possibilitou o desvelar de uma nova

perspectiva acerca da análise da obra literária.

Ao Professor Carlo Sandro que, com paciência (e um pouco de ironia e maiêutica

socrática), conduziu e orientou a pesquisa possibilitando a realização desta monografia.

Aos professores do Curso de Letras da FAFIDIA e da PUCMINAS: Rubinho, Iara,

Remi, Lourdes, Lúcia, Olinda Angélica, Roberta, Weber, Elzira, Raquel, Jane, Juliana,

Daniela, Vera, Malu, Pedro Perini e Evângela, que foram fundamentais no decorrer da

graduação em Letras.

À amiga (e tia) Dária pelas conversas constantes sobre a Educação e sobre o ambiente

escolar, pela transmissão da paixão pela profissão e os incentivos constantes, imprescindíveis

para a finalização do curso.

A “Roi” e Mércia pelo carinho e pelo “pouso seguro” no início da caminhada em

Diamantina.

E por fim, àquela que é a responsável pelo meu ingresso no Curso de Letras, minha

mãe. A prova de vestibular feita sem compromissos levou-me a percorrer um mundo

totalmente novo, sem limites e repleto de possibilidades...

Aos demais não citados, mas sentidos presentes no decorrer de toda a graduação de

Letras, um grande obrigada!

6

“It is a truth universally acknowledged that a single man in

possession of a good fortune must be in want of a wife.”

Jane Austen

7

RESUMO

Jane Austen, escritora inglesa do final do séc. XVIII e início do séc. XIX, apresenta

como característica distintiva de seu texto o uso da ironia. Um dos efeitos dessa ironia é o

humor, a comicidade, no entanto, esse fenômeno estilístico possui uma intencionalidade

dentro da obra literária. Adotando-se como corpus de estudo o romance Orgulho e

Preconceito, sua mais famosa obra literária, o presente trabalho de pesquisa visou a

categorizar dez exemplos de ironia, no intuito de perceber a função dessa ironia na produção

de sentido da obra. Com base no estudo teórico de Linda Hutcheon, foi observada a presença

de cinco categorias funcionais de ironia, a saber: atacante, autoprotetora, complicadora, lúdica

e de oposição. Esse resultado vem corroborar com a crítica sobre a obra que afirma que Jane

Austen, ao adotar a ironia, evidencia uma crítica à sociedade de seu tempo. Essa crítica é

mostrada por meio da provocação, do deboche, da promoção de reflexão, da autodepreciação,

da promoção do riso, entre outras funções que se relacionam com as categorias encontradas.

Ressalta-se que a ironia buscada na obra tem como ponto de partida a perspectiva discursiva –

dialogismo e polifonia de Bakhtin- a linguagem na concepção sociointeracionista e na

manifestação irônica enquanto inserida (e relacionada com) num contexto sócio-histórico-

cultural.

Palavras-chave: Ironia, discurso, Literatura Inglesa, Jane Austen, Sociedade Inglesa

vitoriana.

8

ABSTRACT

Jane Austen, English writer of the latest Eighteenth century and early Nineteenth

century, presents as a distinctive feature of your text the irony. One effect of this irony is the

humor, comedy; however, this stylistic phenomenon has an intention within the literary work.

Adopting as a corpus of study the novel Pride and Prejudice, her most famous literary work,

the present research aimed to categorize ten examples of irony to realize the function of irony

in the production of meaning in work. Based on the theoretical study of Linda Hutcheon, we

observed the presence of five functional categories of irony, namely: forward, self-protective,

complex, playful and opposition. This result corroborates with the critically about Jane

Austen, by adopting the irony, she shows a critique of society of her time. This criticism is

shown by means of provocation, of debauchery, the promotion of reflection, self-deprecation,

the promotion of laughter, among other functions that relate to the categories found. It is

noteworthy that the irony is sought in the work as a starting point the discursive approach -

polyphony and dialogism of Bakthin, the language in interactionist conception and the ironic

manifestation as inserted (and related) in the social, cultural and historical contexts.

Key-words: Irony, discourse, English Literature, Jane Austen, Victorian English society.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: JANE AUSTEN ______________________________________________________ 1

FIGURA 2: JANE AUSTEN _______________________________________________________ 4

FIGURA 3: FOLHA DE ROSTO DA EDIÇÃO DE PRIDE AND PREJUDICE, EM 1907. ____________ 11

10

LISTA DE TABELAS

TABELA 1: QUADRO RESUMO - DEFINIÇÕES DE IRONIA _____________________ 17

TABELA 2: FUNÇÕES DA IRONIA E SUAS AVALIAÇÕES, COM BASE EM

HUTCHEON (2000) ___________________________________________________ 18

TABELA 3: CATEGORIZAÇÃO FUNCIONAL DOS EXEMPLOS DE IRONIAS. ______ 30

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 1

CAPÍTULO 1 ______________________________________________________________ 4

JANE AUSTEN: A FORMAÇÃO DE UMA ESCRITORA. _________________________________ 4

1.1. Jane Austen: contexto sócio-histórico ____________________________________ 8

1.2. Jane Austen e Orgulho e Preconceito ___________________________________ 10

CAPÍTULO 2 _____________________________________________________________ 13

APRESENTANDO O CONCEITO DE IRONIA E A SUA EVOLUÇÃO AO LONGO DO TEMPO ______ 13

2.1. Metodologia de trabalho _____________________________________________ 20

CAPÍTULO 3 _____________________________________________________________ 22

A CATEGORIZAÇÃO FUNCIONAL DE EXEMPLOS DE IRONIA PRESENTES EM ORGULHO E

PRECONCEITO, DE JANE AUSTEN. ____________________________________________ 22

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________________ 35

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________________ 38

7. ANEXOS ______________________________________________________________ 40

1

INTRODUÇÃO

Figura 1: Jane Austen

Fonte: Memoir of Jane Austen (The Project Gutenberg eBook)

A escritora inglesa Jane Austen, autora dos romances: Razão e Sensibilidade, A

Abadia de Northanger, Persuasão, Mansfield Park, Emma e Orgulho e Preconceito,

apresenta como característica distintiva de seu texto o uso da ironia. Essa ironia é um traço da

escrita de seu tempo, compartilhada com grandes autores como Henry Fielding (e Machado

de Assis, no Brasil), e que se faz entender como uma forma de libertação artística e de

posicionamento crítico dentro da obra literária. Um dos efeitos dessa ironia é o humor, a

comicidade que por diversos trechos pode ser resgatado em sua obra.

O presente trabalho de pesquisa propõe-se a categorizar a função de diferentes

exemplos de ironias percebidas na obra literária de Jane Austen, com base nas categorias

2

propostas por Hutcheon (2000) e Seixas (2006), adotando-se como corpus de análise o seu

romance mais conhecido Orgulho e Preconceito - Pride and Prejudice - no intuito de

perceber a intencionalidade da autora ao apresentar essa ambigüidade em sua “fala”,

promovida pelo uso da ironia, analisando-se aquilo a que Austen diz, não dizendo (o dito e o

não dito, o declarado e o não-declarado) em relação ao seu contexto histórico e sua

experiência de mundo.

Para avaliação da ironia presente no corpus de análise adota-se o conceito sob a

perspectiva discursiva, tendo como embasamento teórico as discussões sobre linguagem,

polifonia discursiva e o uso da ironia, trazidos por Bakhtin, Maingueneau, Brait, Ducrot,

Hutcheon, entre outros. Dessa forma, a ironia é percebida como uma construção de linguagem

dotada de subjetividade e liberdade criativa, manifestada pelo autor enquanto consciente do

poder de agir, refletir e produzir. É, ainda, uma manifestação do coletivo histórico enquanto

percebida a relação entre sujeitos, a interação e o contexto sócio-histórico em que é criado (e

interpretado) o discurso.

O trabalho é organizado em quatro capítulos em que se apresenta a autora, o corpus de

estudo, os conceitos de ironia, a categorização de suas funções dentro do discurso, a avaliação

de exemplos em Jane Austen e as justificativas para suas categorizações.

O primeiro capítulo apresenta a autora inglesa, o seu contexto histórico e a obra

escolhida para análise. Esse movimento de escrita surge da necessidade de identificar-se o

lugar de importância de Jane Austen na Historiografia da Literatura Inglesa e Mundial e da

sua distinção característica: o uso da ironia em seus romances. É, portanto, uma introdução ao

cenário escolhido como objeto de pesquisa e uma justificativa para a realização deste

trabalho.

O segundo capítulo mostra o suporte teórico levantado sobre a figura da Ironia dentro

da literatura e como se definem as categorias de função/uso que serão utilizadas para o

3

desenvolvimento da pesquisa do corpus eleito. E, ainda, vem mostrar a metodologia de

trabalho adotada para o desenvolvimento da pesquisa literária.

O terceiro capítulo, cerne da monografia apresentada, mostra as escolhas de exemplos

e as discussões embasadas nos pressupostos teóricos observados, identificando a utilização da

ironia e as suas categorias.

E, por último, o quarto capítulo constitui-se no fechamento da pesquisa apontando as

principais discussões e conclusões observadas acerca do uso da ironia em Orgulho e

Preconceito. Na conclusão do trabalho, além da apresentação dos resultados obtidos no

desenvolvimento da pesquisa, são feitas considerações específicas sobre a obra e a autora

vistas como necessária para o desvelo de Orgulho e Preconceito, posicionando a autora em

relação ao seu contexto histórico e ao seu lugar social, com base em pesquisas históricas e

leituras biográficas provenientes de textos escritas por familiares, trechos de correspondências

pessoais deixadas pela autora ou de informações provenientes de pesquisas que tratam da

figura da escritora inglesa Jane Austen.

4

CAPÍTULO 1

JANE AUSTEN: A FORMAÇÃO DE UMA ESCRITORA.

Figura 2: Jane Austen

Fonte: www.janeausten.com.br

Jane Austen - juntamente com George Elliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) e

Charlotte Brontë - é considerada uma das mais importantes escritoras da Literatura clássica

Inglesa. Austen conseguiu publicar e ter reconhecimento em vida por suas obras literárias,

lugar prioritariamente masculino.

Sétima filha, segunda mulher, seu pai um pastor anglicano e sua mãe descendente da

nobreza, Jane Austen iniciou sua carreira de escritora dentro do círculo familiar com o

5

costume de ler romances, sendo possível recuperar dentre os exemplares lidos pelos Austens

clássicos de Shakespeare e obras de Henry Fielding, Richardson, Sir Walter Scott, George

Crabber, Maria Edgeworth e Cecília Frances Burney.

“Os Austens não apenas eram assinantes de gabinetes de leitura1, mas também

grandes compradores de livros e participantes de clubes de leitura e o empréstimo de

obras entre membros da família era uma prática freqüentemente adotada.”

(COLASANTE, 2006, p.15).

Foi por meio dessas leituras constantes que Austen desenvolveu o gosto e o talento

para produzir textos que circulavam entre os membros da família. Os primeiros trabalhos da

escritora foram condensados na obra denominada Juvenília, datados de 1787 a 1793.

O contexto histórico vivenciado pela escritora estava repleto de mudanças de

paradigmas, mesmo assim, Austen retrata em suas obras o mundo “calmo e pacato” da

sociedade rural burguesa na Inglaterra, Gentry society. Jane Austen é criticada por retratar

situações comuns e cotidianas dessa camada social, porém, defensores da escritora

evidenciam o caráter universal de sua literatura, como Genilda Azevedo (2003), que afirma,

conforme se apresenta na íntegra, o seguinte:

“Parte da própria fortuna crítica escrita sobre a autora, no século XIX, foi bastante

dura com Jane Austen, ou com o que se considerava a representação, em seus

romances, de um mundo demasiadamente restrito, o da então chamada “gentry

society”, aquela classe social rural inglesa, proprietária de terras, mas menos

abastada, e considerada menos nobre do que a aristocracia. E dentro desse mundo já

tão estreito e confinado, atenção especial é dada às personagens femininas e seus

anseios. Esse confinamento em termos de espaço tendia a se confundir na visão de

alguns críticos e escritores, com a experiência vivenciada pelos personagens de

Austen. Ou seja, por analogia, se o espaço era estreito, pequeno, a experiência de

vida retratada em seus romances também o seria. A esse propósito, duas opiniões

são significativas. Edward Fitzgerald disse certa vez com ironia: “Austen é grande

até onde consegue ir: mas ela nunca vai além da sala”. Elizabeth Barrett Browning

comentou algo semelhante: “Seus romances são perfeitos até onde conseguem

chegar – isto é certo. Só que eles não vão muito longe, creio”. O que tais opiniões

ignoram é que a sala constitui metonímia da preocupação da autora com o universo

doméstico – não só no que diz respeito às visitas, às danças, aos jogos, às conversas,

aos encontros – mas também no que concerne às relações entre as pessoas que

habitam, ou que freqüentam a casa; relações conflitantes em sua maioria,

envolvendo questões de poder, autoridade e submissão, principalmente no que

dizem respeito às mulheres. Portanto, falar de Austen significa falar, dentre outras

1 Os gabinetes de leitura, que possuíam salas de leitura ou proporcionavam a leitura domiciliar por meio do

empréstimo do livro, constituíam-se de locais em que aconteciam a divulgação e propagação da leitura na

sociedade dos anos oitocentos, justamente pela democratização e socialização da prática de leitura.

6

coisas, do que Deborah Kaplan denomina “ideologia da domesticidade”, ou seja, um

tema que inclui a família, a necessidade do casamento (principalmente para as

mulheres), as relações com parentes, vizinhos e amigos, tudo aquilo que constitui o

universo doméstico e seus valores. Valores inicialmente domésticos que se

imbricam com o social e o público ao abarcarem noções de civilidade, direitos, boas

maneiras, decoro e respeito.” (AZEVEDO, 2003, p. 21-23).

Independente das críticas contrárias, os romances de Austen são mundialmente

consagrados pela forma como a autora deprecia os valores da sociedade vitoriana na qual se

insere, valendo-se da figura da ironia. Frequentemente, os comentários irônicos em seus

romances servem para expor as personagens e auxiliam na condenação de normas sociais

vigentes. Além da crítica à sua sociedade contemporânea, seus livros caracterizam-se pela

força da narrativa e pela interação entre as personagens.

“Esta brilhante escritora é aclamada não somente pela crítica que faz à sociedade

inglesa do início do século XIX, mas por adotar “diferentes técnicas narrativas [que

vão] desde o narrador onisciente até o comentário direto da autora, passando por

diálogos dramáticos, descrições minuciosas e pelo discurso indireto livre”. (ALVES

apud SONEGO, 2006, p.1).

Evidencia-se, ainda, a importância de Jane para a Literatura Inglesa e Universal pela

diferenciação de seus romances aos demais pertencentes ao Romantismo Inglês. Para

Vasconcelos (2007), a escrita característica das novels2 de Jane Austen, combinando as

técnicas utilizadas por Richardson e Fielding - ícones do Romantismo Inglês – possibilitou a

revitalização do gênero na Inglaterra. É importante lembrar que, há essa época, a novel

encontrava-se em declínio, devido à exaustão da repetida “fórmula” utilizada pelos escritores

ingleses e divulgada, amplamente, por meio dos gabinetes e clubes de leitura.

“A autora de fato sabia bem onde estava seu maior talento literário. Após ter

experimentado em sua juventude a escrita através de diversos gêneros, entre os quais

estão os romances epistolares, poemas, preces, sermões, chegando até mesmo a

esboçar uma História da Inglaterra, ela encontra sua veia artística num tipo de

romance do qual viraria precursora. Conforme afirma Watt, Jane Austen teria

conseguido unir a proximidade psicológica de Richardson e Defoe à análise irônica

e distanciada empregada por Fielding, conseguindo conjugar numa “unidade

harmoniosa as vantagens do realismo de apresentação e as do realismo de avaliação,

das abordagens, interior e exterior, da personagem.” (COLASANTE, 2006, p.25).

2 Termo cunhado na Inglaterra para designar o gênero literário romance.

7

De maneira notável, Jane Austen utiliza-se de suas personagens para promover

reflexão dos seus leitores acerca de seu tempo. É, pois, uma escritora que se utiliza de seus

romances com fins pedagógicos. Parte da atração pela leitura de Austen reside na fidelidade

com que aborda os elementos da vida real, partindo-se de um detalhado planejamento para a

elaboração de seus romances. A autora buscava apresentar aspectos da escrita ficcional,

considerados como fundamentais para a criação de obras literárias: a organização da narrativa

a partir do enredo, o ponto de vista, a caracterização das personagens, a preocupação com a

verossimilhança, etc. Esse planejamento permite resgatar a existência da figura de uma leitora

experiente e atenta.

O alcance dos textos austenianos pode ser comprovado a partir da avaliação de obras

que sofreram sua influência, destacando-se na Literatura Brasileira, Iaiá Garcia, de Machado

de Assis, e em Portugal A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Diniz. É grande o número de

leitores dos romances de Jane e é vasta a literatura e pesquisa acadêmica acerca dessa

escritora, justificando-se, dessa forma, o estudo de sua obra literária

A título de curiosidade, os livros de Austen têm sido utilizados para a elaboração de

roteiros e produção de filmes como: Emma, Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito, A

casa do Lago, O diário de Brigitte Jones, As patricinhas de Bervely Hills, etc.

Conforme Thornley & Roberts (2002):

“Jane Austen brought the novel of family life to its highest point of perfection. Her

works were untouched by the ugliness of the outside world; she kept the action to

scenes familiar to her through her own experience. Her first novel were refused by

publishers, and she had to wait fifteen or twenty years after beginning to write

before any novel was accepted.(…) Her knowledge, within her own limits, was deep

and true; but her performance in writing these novels was astonishing. She manages

her characters with a master´s touch. “3 (THORNLEY & ROBERTS, 2002, p. 115-

116).

3 “Jane Austen trouxe o romance de vida familiar a seu mais alto ponto de perfeição. Seus trabalhos foram

intocados pela feiúra do mundo externo; ela manteve ação às cenas familiares por meio de sua própria

experiência. Seu primeiro romance foi recusado por editores e ela teve de esperar quinze ou vinte anos após

iniciar a escrita para que alguns de seus romances fossem aceitos. (…) Seu conhecimento, dentro de seus

próprios limites, era profundo e verdadeiro; mas o seu desempenho em escrever esses romances foi

8

É importante considerar o contexto histórico em que se encerra o conhecimento de

mundo de Jane Austen. Isto, porque é esse contexto social, político e econômico que a

escritora busca retratar, refletir e criticar por meio de suas obras literárias. Jane é,

marcadamente, uma figura dentro da Literatura Inglesa que soube observar e retratar a visão

de mundo em seu tempo. E mais, soube rir das situações consideradas inadequadas e sorrir de

tudo o que considerava um erro. Sua literatura volta-se, em todo momento, a questionar a

situação feminina de sua época: a educação doméstica (ou domesticada?), a necessidade do

matrimônio por conveniência, as relações de poder entre homens e mulheres, o lugar das

instituições religiosas, entre outros. Dessa forma, busca-se na subseção consecutiva, pontuar,

de forma sucinta, o contexto sócio-histórico retratado (e criticado) nas obras de Austen.

1.1. Jane Austen: contexto sócio-histórico

O contexto histórico da escritora coincide com o período conhecido como pré-

Vitoriano e Vitoriano – referência ao reinado da Rainha Vitória. Esse período é conhecido

como a segunda Renascença Inglesa, marcado por grande expansão econômica, política e

cultural, além de uma estruturação social (e familiar) peculiar. É, ainda, um período vinculado

ao puritanismo, a repressão e ao tradicionalismo.

A era Vitoriana é conhecida em razão da ocorrência de grandes mudanças no cenário

mundial (Revolução Francesa, Independência dos Estados Unidos, ocorrência de avanços

científicos – Darwinismo, por exemplo - ideológicos e mudanças de padrões

comportamentais). Essas mudanças geraram uma sociedade questionadora e combativa.

surpreendente. Ela administra suas personagens com um toque de mestre.” [A tradução dessa e de outras citações

utilizadas no trabalho para as quais não existam traduções em português publicadas são minhas]

9

Sob a ótica do puritanismo, da repressão e do tradicionalismo é importante lembrar-se

do papel fundamental desempenhado pela religião (tanto a Católica quanto a Anglicana),

enquanto fundante da moralidade e dos princípios que regiam a sociedade.

Com relação à mulher, nessa era perpetua-se a ideologia do feminino voltado para os

papéis familiares ditados pela Bíblia. Nesse sentido, o sexo feminino é reduzido ao espaço do

lar. Existe uma desigualdade bastante grande entre a posição social ocupada por homens e

mulheres. O sexo masculino é imbuído de poder e superioridade, caracterizando-se a

sociedade como patriarcal. À mulher, prevalece a concepção de submissão e doçura, a figura

angelical devotada ao marido, aos filhos e ao lar, sempre representada de forma passiva,

obediente, singela, casta, doce e graciosa, sempre pronta a sacrificar-se pelo bem-estar da

família. A educação feminina volta-se para a aquisição de “virtudes” relacionadas com a

moral, a conduta e a etiqueta.

O matrimônio e a maternidade são o objetivo a ser alcançado por todas as mulheres do

período vitoriano visto que nesse período não lhes é dada condições de educação para a

promoção de oportunidades no mercado de trabalho. O casamento tratava-se de um contrato

econômico estabelecido e acordado entre os homens envolvidos - o pai da noiva e o futuro

marido – baseando-se na obtenção ou manutenção de bens materiais e status social.

A legislação da época também desprivilegia o sexo feminino que não possui direito de

possuir bens, divorciar-se ou ter a custódia de seus próprios filhos em caso de separação. O

sexo feminino não tinha muito que fazer de concreto e produtivo, relegando-se a atividades

como música, bordado, cuidados com a casa e os filhos. É importante ressaltar que a educação

dispensada às mulheres consistia no treinamento nas artes do bem receber, do entreter, dos

cuidados com a casa e com a família, sempre visando a um bom partido para se unirem em

casamentos altamente vantajosos para ambas as famílias. É conceito da época que as mulheres

10

não possuíam condições intelectuais e físicas para desempenharem papéis de relevância

social.

1.2. Jane Austen e Orgulho e Preconceito

Apresentada a relevância da autora e a importância em situá-la dentro dum contexto

sócio-histórico, nesta seção, vimos discutir sobre a escolha (e a importância) da obra elencada

para análise, Orgulho e Preconceito.

Dentre os seus romances completos, o romance Orgulho e Preconceito configura-se

como o mais conhecido de seus livros, inclusive, constando como o preferido da autora,

conforme afirmado por Jane em cartas dirigidas a seus familiares, notadamente sua irmã

Cassandra, a que atribuía de forma carinhosa como seu “querido filho”.

Em inglês Pride and Prejudice, essa obra literária foi escrita, em 1797, e publicada,

somente, em 1813. O texto original, denominado por First Impressions4 foi exaustivamente

reelaborado antes da publicação. Depois de publicado, o livro, no decorrer de menos de quatro

anos - antes de maio de 1816 - transformou-se no romance da moda na Inglaterra. É por meio

de Pride and Prejudice que Jane Austen sai do anonimato e transforma-se numa das mais

conhecidas escritoras da literatura inglesa em seu tempo.

Em Orgulho e Preconceito a escritora inglesa cria uma narrativa em que se discute o

matrimônio por conveniência, os julgamentos equivocados resultantes de primeiras

impressões, o preconceito além de temas universais como as relações de gênero, a instituição

familiar, o lugar (e o papel) das Instituições Religiosas, a Sociedade, Tradições culturais e

costumes, etc.

4 Primeiras impressões.

11

Figura 3: Folha de Rosto da Edição de Pride and Prejudice, em 1907. Fonte: www.janeausten.com.br

A narrativa criada pela autora utiliza do cenário de uma pacata área rural inglesa (o

condado de Hertfordshire) em que se configura a vida de uma pequena sociedade burguesa.

Nesse cenário descortina-se a história central do amor entre Elizabeth Bennet, segunda filha

de um total de cinco moças, e Fitzwilliam Darcy, homem rico e filho da nobreza da Inglaterra.

A complicação do romance reside na questão dos julgamentos equivocados baseados em

primeiras impressões e nos preconceitos configurados em razão desses julgamentos. Ele

orgulhoso, vaidoso e intransigente. Ela sarcástica, ágil no falar, preconceituosa. No entanto,

ao longo da trajetória do texto, Austen mostra a transformação dos sentimentos das

personagens centrais e aponta para a realização do amor, como seria de se esperar no caso de

um romance romântico.

12

Paralela a narrativa central Austen cria uma trama voltada para a necessidade de bons

matrimônios numa família de cinco moças, em que a herança paterna de terra e bens estava

destinada a um herdeiro masculino, no caso, o filho de um primo distante. Diante da

perspectiva de que suas filhas (e dela própria) ficassem em má situação após a morte do

marido, a Sra. Bennet vê-se na obrigação de “empurrar” suas filhas para o casamento,

independente da questão dos sentimentos. A chegada de novo morador para a vizinhança,

rapaz solteiro e de posses, configura para essa mãe a possibilidade de uma união do rapaz a

uma de suas filhas. Ironicamente, o rapaz - Mr. Bingley - apaixona-se pela sua filha mais

velha, Jane Bennet, contudo, por artimanhas tramadas pelas irmãs de Bingley e pelo amigo

Mr. Darcy, Bingley acaba acreditando na indiferença de Jane e volta para Londres. O casal

separado reencontra-se ao final da narrativa e o matrimônio é consumado.

O romance é aparentemente simples e retrata uma situação comum da época

vivenciada por muitas mulheres. No entanto, a autora cria uma narrativa bem humorada,

beirando a comicidade, ao retratar situações e criar personagens que promovem esse ar de

gracejo à narrativa. A opinião de Austen sobre o próprio trabalho é brincalhão e ressalta a

visão da escritora sobre a literatura (e seus textos). Em uma das cartas5 escritas à sua irmã

Cassandra, logo após a publicação, Jane Austen afirma estar satisfeita com sua obra “leve e

brilhante”. O tom de brincadeira característico da escritora é mostrado no uso de ironias e do

sarcasmo trazidos na voz de Mr. Bennet, Elizabeth Bennet e Mr. Darcy, ou criados a partir da

figura caricata de personagens como Mr. Collins, Sir. William Lucas e Mrs. Bennet.

Em virtude do exposto, justifica-se, portanto, o desenvolvimento do trabalho de

pesquisa na perspectiva de identificação da função do “irônico” utilizado pela escritora em

Orgulho e Preconceito, no intuito de desvelar a obra literária.

5 As cartas pessoais de Jane Austen, enviadas aos familiares e amigos durante os quarenta e um anos de vida,

exceto aquelas destruídas pela irmã Cassandra Elizabeth, foram compiladas por Deirdre La Faye, em 1995, e

divididas conforme o conteúdo e temática. A edição conta com cerca de 160 cartas, escritas entre 09 de janeiro

de 1796 e 28 de maio de 1817.

13

CAPÍTULO 2

APRESENTANDO O CONCEITO DE IRONIA E A SUA EVOLUÇÃO AO

LONGO DO TEMPO

Não é fácil recuperar a ironia em Orgulho e Preconceito, entretanto a sua percepção

auxilia na leitura e na produção de sentidos pelos leitores. Auxilia, ainda, na localização de

Austen enquanto ser sócio-histórico sob a influência de ideologias e tradições culturais

provenientes da sociedade burguesa de seu tempo. Lembre-se que é a partir da observação

aguçada dessa sociedade que ela compõe as suas personagens. É, portanto, imprescindível o

estudo sobre o tema no intuito de compreender-se o efeito de sentido decorrente da utilização

da ironia por Austen em Orgulho e Preconceito. Essa identificação de conceitos, teorias e

categorias de funções para a ironia é o que se propõe neste capítulo.

Inicialmente, cabe buscar o conceito de ironia. Contudo, essa conceituação não é algo

direto e fácil. Teóricos como Muecke (1995) compreendem o conceito como algo instável,

vago e plural. O conceito de ironia é mais amplo do que “dizer o contrário daquilo que se

pensa sobre algo”.

É antiga a utilização da ironia como recurso para a construção de discursos, sendo

Sócrates considerado como o marco para a sua utilização. Sócrates não deixou obra escrita,

porém, os relatos de sua época identificam a ironia socrática enquanto a arte de expor a

presunção e a ignorância das pessoas. Sócrates utilizava-a primeiramente fazendo-se humilde

e, por meio da argumentação, conduzindo as pessoas, suavemente, à contradição sob a

pretensão de obter esclarecimento. Utilizada dessa forma, a ironia constituía-se numa arma de

polêmica e construção dogmática.

14

Desde Sócrates até os nossos tempos o conceito da ironia vem sendo transformado.

Muecke (1995) observa que a evolução semântica da palavra aconteceu de forma acidental,

sendo o resultado cumulativo de seu uso de maneira intuitiva, negligente ou deliberada.

A lista de escritores que se utilizaram dessa estratégia é grande e inclui nomes como:

Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Tucídides, Platão, Cícero, Horácio,

Catulo, Juvenal, Tácito, Luciano, Boccacio, Chaucer, Villon, Ariosto, Shakespeare,

Cervantes, Pascal, Moliére, Racine, Swift, Pope, Voltaire, Johnson, Gibbon, Diderot, Goethe,

Stendhal, Jane Austen, Byron, Heine, Baudelaire, Gogol, Dostoievski, Flaubert, Ibsen,

Tolstoi, Mark Twain, Henry James, Tchekov, Shaw, Pirandello, Proust, Thomas Mann,

Kafka, Musil e Brecht.

O vocábulo ironia provém do verbo grego eiren, significando dizer, (ou palavra, ou

boa palavra - dicterium). O primeiro registro do uso da eironeia, com a significação de “uma

forma lisonjeira, abjeta de tapear as pessoas”, é encontrada em República, de Platão.

Aristóteles também se utilizou da eironeia em seus textos, porém de forma diversa a de

Platão. Daí, temos que a expressão assume duas significações ainda na era clássica: a primeira

significando um modo de comportamento, e a segunda como um uso enganoso da linguagem,

como mentira.

Temos, ainda, Cícero utilizando-se da ironia como figura de retórica. Para Quintiliano

o vocábulo aparece como “elaboração de uma figura de linguagem num raciocínio completo”

(Muecke, 1995, p. 32).

Sob o viés da Retórica Clássica, a ironia (ou antífrase) pode configurar-se enquanto

uma figura de pensamento utilizada pelo enunciador que busca a persuasão do enunciatário.

No estabelecimento do diálogo concebe-se um jogo de manipulação por meio da linguagem

em que o enunciador utiliza-se de “ferramentas e estratégias” para produzir o efeito desejado.

Nessa concepção, segundo Maingueneau (2001), a ironia

15

“faz parte tradicionalmente dos “tropos” da Retórica, como a metáfora, a hipérbole,

a litotes. Considera-se que há um “tropo” em todos esses casos porque o enunciado

deve ser interpretado como portador de um sentido diferente do que ele libera

“literalmente”. No que lhe diz respeito, a ironia consistiria “em dizer por uma

derrisão, ou humorística, ou séria, o contrário do que se pensa ou do que se quer que

se pense” (MAINGUENEAU, 2001, p. 94)

Cabe ressaltar que nos primórdios a ironia era utilizada embora sem um conceito claro

ou uma denominação própria. O vocábulo ironia costumava confundir-se com os termos

antífrase, sarcasmo e alegoria há época do Renascimento. Esses foram usados como

sinônimos por alguns autores até que se estabeleceu uma diferença entre elas, significando a

alegoria “uma similitude entre as coisas faladas e pretendidas” e a ironia, “uma contrariedade

entre elas”.

O aparecimento da palavra latina ironia em inglês acontece apenas em 1502 e seu uso

literário geral acontece apenas no início do século XVIII. No entanto, ao inglês relacionam-se

termos coloquiais considerados embrionários do vocábulo, tais como fleer, flout, gibe, jeer,

mock, scoff, scorn, taunt, significando mofa, escárnio, zombaria, motejo, chasco e sarcasmo.

Vemos, portanto, que:

“O conceito de ironia desenvolveu-se lentamente, tanto na Inglaterra como nos

demais países da Europa. [...] por mais de duzentos anos a ironia foi tratada

principalmente como figura de linguagem, deixando-se de lado os significados mais

interessantes em Cícero (ironia como um modo de tratar o oponente num debate) e

em Quintiliano (ironia como estratégia verbal de um argumento completo). Definia-

se o termo como algo que “diz uma coisa, mas significa outra”, como uma forma de

“elogiar a fim de censurar e de censurar a fim de elogiar”, e como um modo de

“zombar e escarnecer”. Era também usado para significar dissimulação, mesmo

dissimulação não-irônica, subentendidos, e paródia (uma vez ao menos, por Pope)”.

(MUECKE, 1995, p.33).

No período compreendido entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o

vocábulo passou a receber novos significados sob aspectos variados. Em 1748, Fielding

passou a empregar o vocábulo como uma estratégia satírica, inventando ou apresentando

personagens idiotas que defendiam (ou retratavam) pontos de vista que o autor desejava

16

condenar. Essa forma de ironizar é identificada como autotraidora, sendo bastante utilizada

em textos ficcionais, como no caso de Jane Austen, em Persuasão, por exemplo.

Atualmente, o traço básico da ironia consiste na identificação de um contraste entre

uma realidade e uma aparência, é o simulacro, o dissimulatio. O ironista moderno dissimula

ou finge não para ser desacreditado, mas para ser entendido. Assim, o significado real na

ironia deve ser inferido pelo leitor. Caso esse entendimento não se estabeleça, a ironia não

acontece, mas sim um embuste ou um equívoco.

E, ainda, a concepção de ironia como algo intencional e instrumental passou a ser

encarada como algo não-intencional, algo observável e, portanto, representável na arte. A

ironia passou a ser concebida numa perspectiva dual. As duas grandes categorias de ironia

são, portanto, a instrumental e a observável.

Segundo Muecke (1995), na ironia instrumental (ou verbal, no caso da linguagem

como instrumento) alguém é irônico, diz alguma coisa para vê-la rejeitada como falsa ou por

outro motivo, é unilateral. A observável apresenta as coisas vistas ou apresentadas como

irônicas.

Dentre a categoria observável, podemos identificar subdivisões em função da

atribuição do irônico pelo ironista, para: uma situação, uma seqüência de eventos (em que se

nota uma troca de papéis entre os participantes na avaliação de um antes e um depois), uma

personagem e uma crença. Deve-se perceber, no entanto, que a ironia observável depende de

um observador humano que estabeleça um sentido irônico para qualquer um desses casos e o

represente ou o exponha via linguagem para alguém. De certa maneira, a ironia observável

seria também verbal.

Segundo Seixas (2006), as principais definições de ironia registradas até o século

XVIII podem ser agrupadas em quatro grupos distintos, sendo:

17

TABELA 1: QUADRO RESUMO - DEFINIÇÕES DE IRONIA

DEFINIÇÃO DESCRIÇÃO

Dizer o contrário do que significa

- forma mais popular de definir ironia derivada de Cícero, Quintiliano

e dos retóricos medievais. A definição apareceu em Thordynary of

Crysten Men, de 1506.

Dizer coisa diferente do que se significa - definição bastante presente entre as pessoas no cotidiano e nos textos

de jornais

Censurar com falso elogio e elogiar sob a

simulação de censurar

- forma mais proveitosa que as duas primeiras e exposta por

Quintiliano. Bastante usada por escritores

Zombar ou caçoar

- a definição parece refletir os usos reais da ironia. Cícero e

Quintiliano descreveram ironia como um tipo de gracejo, mas eles não

ampliaram a referência da palavra nesta linha.

Desde o período clássico até os dias de hoje, o conceito de Ironia têm sido estudado

sob diferentes abordagens, que vão da linha filosófica (socrática e romântica) às: retórica,

pragmática, discursiva, cognitivista e psicanalítica. Cabe ressaltar que as contribuições de

uma abordagem às vezes são retomadas por outra, apontando para uma interposição entre

elas. Essa multiplicidade de linhas teóricas evidencia a complexidade do tema.

Para fins de simplificação, a análise do corpus elencado para o desenvolvimento deste

trabalho adota a noção de ironia sob a perspectiva discursiva, segundo Hutcheon e Seixas,

tendo a noção de linguagem sob o viés do sociointeracionismo, conforme as teorias trazidas

por Mikhail Bakhtin. Assim, o fenômeno da ironia configura-se como um processo de

entrecruzamento de discursos.

E, ainda, por meio do viés discursivo, não existe a possibilidade de desvinculação do

fenômeno irônico com os aspectos sócio-histórico-cultural de seus contextos de criação e

emprego (seja numa situação de conversa ou na leitura de um romance). Os sujeitos, falando

de um determinado lugar histórico-social e cultural, sujeitados às normas sociais e, também,

dotados de sua própria subjetividade, deixam marcas de sua posição naquilo que diz,

prevendo a interação que se estabelece com o outro, sejam para concordar ou discordar dele,

18

conforme o princípio dialógico da linguagem proposto de forma recorrente pelo teórico

Bakhtin.

O processo interpretativo da ironia inclui a interação do interpretador com o trabalho.

Assim, o significado irônico implica no diálogo entre a tríade: autor (ironista, enunciador),

obra (discurso) e leitor (interpretador, interlocutor, co-enunciador). Dessa forma, o processo

de atribuição de ironia tem também o aspecto do ponto de vista do co-enunciador, que no

papel de analista desenvolve o trabalho de reconhecimento e de atribuição de efeitos irônicos.

A atribuição de ironia é uma questão de intenção tanto por parte do ironista quanto por parte

do interpretador. Nesse movimento, vemos que a linguagem constitui-se na interação dos

sujeitos.

Ressalta-se que sob essa visão, retira-se do enunciador o seu poder sobre a linguagem

promovendo uma instabilidade em termos de relações de poder entre esse e os interlocutores.

A manifestação da ironia ocorre em diferentes graus de envolvimento afetivo,

portanto, podendo produzir efeitos positivos ou negativos como a diversão, o prazer, a raiva, a

dor, o escárnio, a indiferença, etc.

A partir da análise da manifestação da ironia, Hutcheon elaborou um resumo

esquemático em que se explicam as funções e a avaliação do efeito da ironia - positivo ou

negativo. A partir desse resumo esquemático, Seixas (2006) desenvolveu o quadro-resumo

(vide tabela 2) que apresenta a categorização funcional proposta pela autora e que servirá de

parâmetro para o desenvolvimento da pesquisa em discussão, a saber:

TABELA 2: FUNÇÕES DA IRONIA E SUAS AVALIAÇÕES, COM BASE EM HUTCHEON (2000)

DESCRITOR CARACTERÍSTICA AVALIAÇÃO POSITIVA AVALIAÇÃO NEGATIVA

REFORÇADORA

Usada para destacar

algo na conversação

cotidiana

Necessária para ênfase e maior

precisão de comunicação,

especialmente de uma atitude.

Haveria comunidades discursivas

em que o uso e a atribuição de

ironia teriam o papel de provar

competência comunicativa.

Puramente decorativa,

subsidiária, não essencial.

19

DESCRITOR CARACTERÍSTICA AVALIAÇÃO POSITIVA AVALIAÇÃO NEGATIVA

COMPLICADORA Verbal ou

estruturalmente

Ironia como modalidade reflexiva,

emitindo chamado para

interpretação e suas delícias.

Complexidade desnecessária

pode gerar incompreensão,

confusão e falta de clareza na

comunicação.

LÚDICA Função relativamente

benigna

Ironia afetuosa de provocação

benevolente, humor e

espirituosidade; característica

valiosa de jocosidade.

Superficial, irresponsável,

vazia e tola, banalizante.

DISTANCIADORA

Tropo do

desinteressado e da

testemunha.

Nova perspectiva a partir da qual as

coisas podem ser mostradas.

Indiferença, desdém e

superioridade.

AUTOPROTETORA Função de veste

protetora Um tipo de mecanismo de defesa.

Autodepreciação como forma

de autopromoção indireta e

também como jogada

defensiva.

PROVISÓRIA

Sempre contém

estipulação condicional

que impede posições

firmes e fixas.

Duplicidade da ironia como

neutralizador de posição categórica

da verdade: admissão da incerteza

como intrínseca e essencial, e não

uma evasão ou falta de coragem.

Ironia associada com evasiva

do equívoco, hipocrisia e

logro.

ATACANTE

Do latim assilire,

“saltar sobre” para

alcançar algo.

Função corretiva da ironia satírica,

onde há um conjunto de valores que

se tenta alcançar.

Humilhação agressiva que

mantém as pessoas em seus

lugares, necessidade de

registrar desprezo e zombaria.

AGREGADORA Ironia criada por

comunidades.

A ironia que exclui também inclui,

criando comunidades amigáveis

entre ironista e interpretador.

Ironia produzida para grupos

fechados que podem ser

elitistas e excludentes.

Fonte: Seixas (2006)

Ao considerar as múltiplas funções da ironia, Hutcheon consegue dar conta de seus

usos cotidianos além de englobar as diversas possibilidades de manifestação desse fenômeno

discursivo. E, ainda, essa forma de percepção da ironia independe da linha teórica adotada

para avaliação, sendo ideal para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa proposto.

Enfatiza-se que o entendimento da ironia segue no sentido convencional de perceber a

ironia como algo diferente do que se significa e enquanto efeito de sentido produzido com a

20

participação do leitor, sem deixar de relacionar o fenômeno com um determinado lugar

histórico e social.

Ressalta-se que o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa, embasado nos

presentes pressupostos teóricos, foi desenvolvido conforme a metodologia de trabalho

apresentada na seção que se segue.

2.1. Metodologia de trabalho

A metodologia de trabalho elencada para o desenvolvimento da pesquisa consistiu na

coleta de dados proveniente do corpus de análise. Para tanto, foram efetuadas leituras (e

releituras) do romance Orgulho e Preconceito, buscando-se identificar pelo menos uma ironia

representante de cada uma das categorias funcionais propostas por Hutcheon (2000) e Seixas

(2006). O período de coleta de dados compreendeu os meses de setembro e meados de

outubro de 2009.

Identificados exemplos de ironia na obra promoveu-se a escolha daquelas

consideradas significativas. A notação utilizada para nomear os exemplos é simples e consiste

de sua numeração entre 1 e 10 (ex.: Ironia 1, Ironia 2, etc.). Cabe lembrar que não foram

observados exemplos para todas as categorias funcionais. Assim, foram retirados do texto dez

exemplos para análise e discussão embasada em considerações trazidas pelos teóricos

estudados quando do levantamento bibliográfico. Ressalta-se que o valor de dez exemplos

constitui-se num dimensionamento de caráter aleatório, apenas levando-se em consideração

que na constituição de uma amostra considerada significativa aceitam-se valores acima de

cinco unidades.

21

Os trechos retirados de Orgulho e Preconceito e que compõem a amostra (constantes

em anexo), não necessariamente apresentam somente trechos de ironia. São, na realidade,

partes da obra literária elencada que contribuem para o entendimento da ironia como um todo.

De forma complementar e para fins de facilitação na leitura, os trechos que apresentam apenas

a ironia nomeada vêm transcritos no capítulo relativo às discussões e constante no corpo do

trabalho.

A amostra identificada foi discutida e examinada a partir da identificação de elementos

comuns entre os exemplos de ironias relacionados e as descrições trazidas na tabela 2 para as

funções da ironia. Constitui-se no fechamento da pesquisa a construção de um quadro-resumo

representativo dos resultados obtidos, sendo esses de natureza qualitativa.

Deve-se esclarecer que não se procurou, neste trabalho de pesquisa, esgotar a obra

literária em termos da identificação de todas as possibilidades de ironias existentes no corpus.

Essa tarefa é praticamente impossível quando entendemos que, sob o viés da perspectiva

discursiva, a identificação de ironia consiste num movimento de co-participação entre o

ironista e o interpretador e que, dessa forma, ao deslocar-se para a figura do leitor

(interpretador) parte da responsabilidade pela constituição da ironia, temos que diferentes

leitores podem gerar a identificação de diferentes ironias, exceto daquelas que são salientes

dentro da obra.

E, por fim, com base nas discussões e justificativas desenvolvidas ao longo do terceiro

capítulo, retoma-se o objetivo proposto na intenção de verificar o seu cumprimento integral

ou parcial.

Ressalta-se que a pesquisa proposta passou por algumas alterações ao longo de seu

desenvolvimento resultantes da dificuldade encontrada em desenvolver-se uma linha de

pesquisa focada na Análise do Discurso Francesa conforme proposta inicial para a realização

dessa monografia.

22

CAPÍTULO 3

A CATEGORIZAÇÃO FUNCIONAL DE EXEMPLOS DE IRONIA

PRESENTES EM ORGULHO E PRECONCEITO, DE JANE AUSTEN.

O presente capítulo visa a apresentar as discussões relativas à avaliação do corpus de

estudo, a saber, os dez exemplos de ironias escolhidos para figurar como amostra para a

realização da pesquisa acadêmica. Essa amostra foi comparada com as descrições constantes

da tabela 2 preparada por Seixas (2006), com base em Hutcheon (2000), identificando-se o

descritor que categoriza a ironia. Faz-se uma diferenciação da amostragem quanto à forma

como são concebidas, se instrumental ou se observável. E, ainda, faz-se uma avaliação quanto

à presença do sarcasmo na obra literária, buscando-se diferenciar esses fenômenos estilísticos

constitutivos da escrita de Jane Austen.

Inicia-se a avaliação a partir do “mote” utilizado por Jane Austen e que encerra nas

primeiras linhas do romance o tom irônico e a trajetória da narrativa, sendo esse trecho

identificado como ironia 1, a saber:

“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna deve estar necessitando de uma esposa.” (AUSTEN, 2009, p. 13)

Essa ironia é verbal e ao longo da narrativa é desvelada por meio da conversa entre o

casal Bennet. Na realidade, não é um homem solteiro e rico que precisa de uma esposa, mas

sim, a mulher dentro da situação imposta pela sociedade inglesa vitoriana que necessita casar-

se, de preferência, com um homem de posses. A situação apresenta-se invertida conforme a

fala do narrador. Em termos de categorização, a ironia 1 tem a função de promover

23

questionamento, a intenção de emitir juízo de valor e visa à reflexão do leitor. Observa-se que

a ironia 1 é uma ironia complicadora. Austen é uma observadora perspicaz de seu tempo e

questiona, com maestria, as situações que lhe parecem inadequadas quanto à condição da

mulher no contexto da sociedade vitoriana. O questionamento encerrado nessa ironia é o que a

autora pretende apontar ao leitor e (por que não?) promover uma ação de reflexão e mudança.

A ironia 2 trata especificamente da figura criada por Austen da terceira filha dos

Bennet, Mary. É uma ironia verbal trazida em cena pelas palavras sarcásticas de seu pai, Mr.

Bennet, a saber:

Qual a tua opinião, Mary? Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extraís ensinamentos. Mary quis dizer algo sensato, mas não sabia como

6.

–– Enquanto Mary põe em ordem as suas idéias –– continuou ele –– voltemos a Mr. Bingley.” (AUSTEN, 2009, p. 16).

A ironia 2 é uma crítica à condição de suposta erudição, mas que na realidade, em

todo o momento e por diferentes falas, o próprio Mr. Bennet ou o narrador desconstroem. A

personagem Mary não possui nem beleza nem inteligência, nada há de positivo que justifique

sua salvação por meio do matrimônio. Resta tão somente a Mary ocupar-se de seu

conhecimento e buscar por meio dos livros e de seu esforço pessoal, no caso o treino com o

piano, a distinção entre as demais irmãs na família e na sociedade local, no entanto, seus

esforços são insuficientes. Mr. Bennet a considera uma tola, o narrador a considera uma tola,

a figura que se desvela no texto é de uma jovem vaidosamente tola. A fala destacada

proveniente de Mr. Bennet é uma provocação desse pai com relação à personagem e sua

suposta preparação e educação. É, portanto, uma ironia que destaca a função de zombaria, de

sátira, de apontar um conjunto de valores que a autora tenta evidenciar como insatisfatórios. A

ironia 2 é categorizada, portanto, como atacante. Cabe lembrar que essa é também uma forma

de mostrar aos leitores que a condição da educação feminina no contexto sócio-histórico de

6 grifo nosso

24

Jane Austen apresenta falhas, que são ressaltadas nessa passagem e em outras diferentes

ocasiões. A educação para o lar é um dos questionamentos trazidos à tona por meio da

narrativa criada por essa escritora inglesa na obra em discussão e em outras como Persuasão e

Razão e Sensibilidade, por exemplo.

O trecho mostrado a seguir encerra a ironia 3, uma ironia observável de eventos.

“Ocupada em observar as atenções de Mr. Bingley para com sua irmã, Elizabeth estava longe de suspeitar que ela própria se tornara em um objeto de certo interesse aos olhos do amigo. Mr. Darcy, a princípio, fora quase com relutância que lhe admitira uma certa beleza; no baile olhara para ela sem admiração, e na vez seguinte olhou-a apenas para a criticar. Porém, ainda mal ele se certificara a si e aos amigos da quase inexistência de um traço bonito naquele rosto, quando começou a achá-la invulgarmente inteligente pela bonita expressão de seus olhos pretos.” (AUSTEN, 2009, p.29).

Essa construção aponta para a mudança gradual ocorrida na percepção da personagem

central Mr. Darcy com relação à figura da heroína Elizabeth Bennet. É observável na medida

em que a autora processa uma transformação ao longo da narrativa, orientando os eventos no

sentido de promover o final “romântico” onde o amor acontece e se concretiza. É, ainda, a

forma de Austen trabalhar a questão central da narrativa onde questiona a formação do caráter

de um indivíduo baseado em julgamentos prévios e fundamentada em preconceitos. O par

romântico - Mr. Fitzwilliam Darcy e Miss Elizabeth Bennet - passa por um processo de

conhecimento em que, no início, reinam as primeiras impressões guiadas por preconceitos de

classes, por julgamentos inadequados e pela interferência de terceiros. São visões

extremamente negativas criadas tanto de Mr. Darcy quanto de Lizzy Bennet. A grande ironia

da obra consiste nessa mudança gradual de percepção dos enganos, da extinção dos

preconceitos e do surgimento do amor verdadeiro entre duas personagens que inicialmente se

detestam. Com base em Seixas podemos categorizá-la em complicadora, visto que a sua

função é a de provocar a reflexão, de questionamento, de suscitar ação e mudança.

25

A ironia 4, de oposição, é uma mostra do posicionamento de Mr. Darcy com relação à

sociedade da época. O trecho, um diálogo entre Sir Lucas e Mr. Darcy, encerra uma postura

crítica e contrária aos costumes da sociedade da época em relação aos bailes e a dança. O uso

da ironia por Darcy mostra uma fala bastante enfática e agressiva.

“–– Que encantador divertimento este para os jovens, Mr. Darcy! Não há nada como a dança, no fundo; considero-a até um dos principais requintes das sociedades cultas. –– Perfeitamente de acordo, meu senhor; e tem também a vantagem de estar em voga entre as sociedades menos cultas do mundo. Qualquer selvagem sabe dançar.”

7 (AUSTEN, 2009, p.30)

É necessário ressaltar que os bailes constituíam-se numa situação importante dentro da

sociedade inglesa da época, consistindo dum momento único de conversação entre rapazes e

moças sem a vigia dos familiares. É também o único modo de se tocar numa pessoa, visto que

a formalidade e a etiqueta da época não permitiam qualquer tipo de contato ou manifestação

de interesse. Os bailes eram preteridos pelas moças – e mães dessas – em necessidade de

casar-se. Ao categorizá-la como de oposição temos que a ironia 4 funciona como uma

transgressão da regra vigente, tendo em seu cerne um “quê” de insulto e ofensa ao

personagem de Sir Lucas.

A ironia 5 é verbal, lúdica e traz humor para a narrativa. Já na parte final da obra, os

casais Mr. Bingley e Jane Bennet e Mr. Darcy e Lizzy Bennet tomam conhecimento de suas

paixões e comprometem-se com o noivado e o casamento. O trecho apresentado na seqüência

é uma fala da personagem, Mr. Bingley, fazendo alusão ao acontecimento que sucedeu entre o

casal principal.

“–– Mrs. Bennet, não tem em seu parque outros caminhos por onde Lizzy se possa perder de novo hoje?” (AUSTEN, 2009, p.303).

7 grifo nosso

26

Elizabeth Bennet e Mr. Darcy acompanhados do outro casal e da penúltima filha dos

Bennet, Kitty, resolvem passear pelos bosques ao redor de Longbourn, a moradia dos

Bennets. O casal oficialmente comprometido fica para trás “discutindo sobre o futuro”, Kitty

adianta o passo e o casal restante tem o seu momento de descoberta e de diálogo quanto às

transformações ocorridas ao longo da narrativa com relação às percepções de um sobre o

outro. Nesse processo de conhecimento e de promessas eles se demoram mais do que os

demais acompanhantes e acabam se “perdendo” em si mesmos. A fala do amigo de Darcy

constitui-se na promoção de uma nova condição ao casal de exprimir o seu amor e de

programar as ações necessárias ao matrimônio. É uma ironia afetuosa, benevolente,

espirituosa e que não deixa de mostrar a comicidade própria da obra de Jane Austen.

O próximo trecho retirado da obra relaciona-se à ironia 6. Esse trecho é um diálogo

entre as personagens Miss Caroline Bingley e Mr. Darcy, que faz referência à figura de

Elizabeth Bennet.

–– Bem, se é com tal seriedade que encara o assunto, considerá-lo-ei definitivamente arrumado. “Terá, na verdade, uma sogra encantadora, e, naturalmente, ela passará a vida em Pemberley.” (AUSTEN, 2009, p.32).

Durante a construção da narrativa, o leitor evidencia as tentativas de Caroline em

desconstruir as qualidades de Elizabeth em virtude de seu interesse em tornar-se Mrs. Darcy.

A utilização da ironia por essa personagem é uma constante e configura a personalidade de

Caroline Bingley. O seu ciúme de Elizabeth é extravasado por meio do uso da ironia atacante.

A função é a de depreciar a personagem central, de registrar seu desprezo pela figura de Lizzy

Bennet. A alusão aos olhos de Lizzy é uma forma encontrada por Caroline de atacar a

qualidade que primeiro chamou a atenção de Darcy para sua pessoa. O seu ataque continua

quando Miss Bingley põe em evidência os motivos considerados negativos por Mr. Darcy

para buscar o relacionamento com Lizzy: a inconveniência da origem de sua mãe, a sua falta

de educação, compostura e tato. Ao contrário da colocação de Caroline, Mrs. Bennet não é

27

nada encantadora, na opinião de Mr. Darcy – do narrador, de Mr. Bennet e de outros

diferentes personagens, incluindo Elizabeth Bennet, que embora ame a mãe, percebe as suas

inconveniências.

O exemplo 7 é uma ironia verbal, bastante direta e compreendida de forma clara por

todos os leitores da obra de Austen.

“–– É verdade, Miss Eliza, que o destacamento de milícia foi removido de Meryton? Deverá ter sido uma grande perda para sua família.

8” (p. 220).

Mais uma vez Caroline Bingley “lança seu veneno” sobre Elizabeth Bennet, fazendo

uma alusão ao inconveniente de suas duas irmãs mais novas, Kitty e Lídia, “caçarem” de

forma persistente e “desajuizada” maridos entre os oficiais do batalhão que se encontrava

acampado em Meryton, cidade vizinha ao local da residência dos Bennets. A ironia 7 tem a

função de depreciar, agredir e humilhar a heroína numa última tentativa de manter Elizabeth

separada de Mr. Darcy. Essa ironia registra desprezo e zombaria, sendo, portanto, atacante.

A ironia 8 é verbal e autoprotetora. No diálogo estabelecido entre Elizabeth, Bingley,

Darcy e Caroline, Austen deixa entrever a crítica à condição da mulher em sua sociedade

contemporânea:

“–– Espanta-me –– disse Mr. Bingley –– que as moças tenham paciência para se tornarem tão prendadas como todas elas o são. –– Todas elas prendadas! Meu caro Charles, que queres dizer? –– Sim, todas elas, creio eu. Todas elas pintam mesas, forram biombos e tecem bolsinhas. Não conheço nenhuma que não faça tudo isso, e tenho certeza de nunca ter ouvido falar pela primeira vez de uma moça sem ser informado de que ela era muito prendada. –– A tua lista de talentos comuns –– disse Darcy –– tem muito de verdade. A palavra é aplicada a mais de uma mulher que não a merece para além de tecer uma bolsinha ou forrar um biombo. Mas estou longe de concordar contigo na tua apreciação das mulheres em geral. De todas as que conheço, não me posso gabar de conhecer mais de meia dúzia verdadeiramente dotadas. –– Nem eu, posso afirmá-lo –– disse Miss Bingley. –– Nesse caso –– observou Elizabeth –– exige bastante de uma mulher para a considerar perfeita. –– Assim é, de fato –– disse Mr. Darcy. –– Oh, mas com certeza! –– exclamou sua fiel aliada –– Nenhuma se poderá considerar perfeita se não ultrapassar de longe a média. Uma

8 grifo nosso

28

mulher, para merecer tal qualificação, deve ter um conhecimento profundo sobre música, canto, desenho, dança e línguas modernas; e, além de tudo isso, deve possuir ainda um quê na maneira de se mover e estar, no tom da voz, trato e expressões, ou só merecerá a qualificação em parte. –– Tudo isso ela deve possuir –– acrescentou Darcy –– e a tudo isso ela deve juntar ainda algo de mais substancial, que é a prática assídua da leitura para o desenvolvimento de seu espírito. –– Por isso não admira que o senhor conheça apenas seis mulheres completa. Chego mesmo a duvidar que conheça alguma.

9

–– Julgas com tanta severidade seu sexo, que duvide da possibilidade de tudo isso? –– Nunca encontrei tal mulher. Nunca encontrei tanta capacidade, gosto, aplicação e elegância juntas, tal como o senhor o descreve. [...] Como a conversa encontrara assim seu termo, Elizabeth pouco depois abandonou a sala.” (AUSTEN, 2009, p. 42).

Conforme apresentada, a ironia 8 consiste em um diálogo acerca das virtudes

femininas consideradas fundamentais e definidoras de uma educação de qualidade. Enquanto

Bingley considera “prendada” toda moça que sabe pintar, costurar e fazer miudezas, Darcy

mostra-se contrário a visão de Bingley enumerando atividades que ele considera essenciais a

figura feminina. Caroline Bingley, no desejo de manter-se favorável a Mr. Darcy, continua

enumerando mais algumas qualidades. Elizabeth Bennet, de forma bastante sarcástica, afirma

que desconhece uma mulher com essas virtudes e que tal mulher inexiste. Ao colocar-se numa

posição de inferioridade, ao autodepreciar-se Lizzy faz uma jogada defensiva.

O trecho de Orgulho e Preconceito que configura a ironia 9 é parte de um diálogo

entre Jane e Elizabeth Bennet, em que Jane afirma que sua felicidade seria completa caso

Elizabeth também encontrasse seu verdadeiro amor. Elizabeth retruca que para que ela tivesse

a felicidade de sua irmã teria de ser igual a ela em benevolência e vontade. Como não é o

caso, resta-lhe permanecer sozinha e aguardar até que um próximo Mr. Collins resolva fazer-

lhe uma proposta de casamento.

“–– Mesmo que me arranjassem quarenta desses homens, nunca seria tão feliz como tu. Para ter a tua felicidade, teria de ter também o teu temperamento e a tua bondade. Não, não, deixa-me entregue a meu próprio destino; e quem sabe se, com um pouco de sorte, não me aparecerá um dia um outro Mr. Collins pela frente.” (AUSTEN, 2009, p. 283)

9 grifo nosso

29

A ironia traz menção à figura cômica, esdrúxula e caricata de Mr. Collins. Ao colocar-

se na condição de inferioridade e de depreciação de sua própria pessoa, a ironia assume a

função de proteção, configurando-se como um mecanismo de autodefesa. É, portanto, uma

ironia autoprotetora.

A última ironia discutida, a ironia 10, é claramente uma forma verbal e lúdica. A

menção da indiferença entre Mr. Bingley e Jane Bennet, afirmada por essa última personagem

é desfeita por meio da situação em que se encontram e pela fala de sua irmã Elizabeth. É fato

para Lizzy que ambos permanecem apaixonados e que a manifestação desse amor é esperada

(com ansiedade) por ela. O seu uso traz um pouco de humor e comicidade a cena enunciada.

“–– Agora –– disse ela –– que o primeiro encontro passou, sinto-me perfeitamente à vontade. Conheço minhas forças e não mais me sentirei embaraçada na presença dele. Alegra-me que ele venha jantar na terça-feira; pois, nessa altura, todos terão a ocasião de ver que nos damos apenas como bons amigos e indiferentes um ao outro. –– Oh, sim. Muito indiferente, de fato –– disse Elizabeth, sorrindo. –– Toma cuidado, Jane! –– Minha querida Lizzy, não me julgarás tão fraca que me consideres em perigo agora. –– Considero que mais do que nunca estás em perigo de ele se apaixonar irremediavelmente por ti.” (AUSTEN, 2009, p. 274).

Outros tantos exemplos de ironia podem ser destacados do corpus de análise, tanto

formas instrumentais como observáveis.

De maneira geral, notadamente, evidencia-se que a personagem Miss Caroline Bingley

é a que mais se utiliza do jogo verbal presente na ironia. Conforme observado nos dois

exemplos discutidos em que figura Miss Bingley, e a partir da leitura e releitura de Orgulho e

Preconceito, tem-se que as ironias relacionadas com essa personagem têm sempre a função

atacante e são direcionadas contra Elizabeth Bennet ou os seus familiares. Elizabeth e Darcy

também são personagens que trazem muitos exemplos de ironia em suas falas. Amostras

dessa utilização foram apresentadas no decorrer da discussão sobre as ironias.

Uma observação feita durante a leitura do obra de Austen e que deve figurar no corpo

deste trabalho acadêmico é a constância no decorrer da narrativa quanto à criação de falas e

30

situações que, ao longo do tempo, evidenciam aquilo a que chamamos de “ironia do destino”.

Uma dessas situações reside na figura de Mrs. Catherine De Bourgh, tia de Mr. Darcy. Essa

personagem é criada como uma representante da nobreza inglesa, porém, sua nobreza reside

apenas no título de Lady. Ela é vaidosa, orgulhosa, intrometida, preconceituosa, às vezes

grossa e desagradável. Tem uma necessidade vital de ter conhecimento de tudo e de todos que

a cercam. Conforme Mr. Collins, seu “apadrinhado” (e capacho), ela gosta de ser útil. A

maior das ironias é que, ao tomar posicionamento contrário ao casamento entre Darcy e Miss

Bennet, sua atitude é o que evidencia a Darcy a mudança de perspectiva de Elizabeth a seu

respeito e que lhe infunde a coragem necessária para procurá-la e, novamente, declarar seu

amor. Em uma conversa entre Darcy e Elizabeth essa sua “utilidade” é afirmada de forma

sarcástica e bastante irônica.

“–– Lady Catherine foi-nos de imensa utilidade, e isso deverá torná-la feliz, pois ela

gosta de ser útil. Mas diga-me, por que veio a Netherfield? Foi apenas para passear

até Longbourn e ficar embaraçado? Ou terá pensado na possibilidade de

conseqüências mais sérias?” (AUSTEN, 2009, p. 308).

Para fechamento das considerações realizadas neste capítulo, tem-se, com base nas

avaliações efetuadas, o quadro-resumo com a identificação das formas de apresentação e das

categorias de função identificadas na amostragem composta pelos dez exemplos de ironias.

TABELA 3: CATEGORIZAÇÃO FUNCIONAL DOS EXEMPLOS DE IRONIAS.

IDENTIFICADOR FORMA CATEGORIA FUNCIONAL

Ironia 1 Verbal Complicadora

Ironia 2 Verbal Atacante

Ironia 2 Observável de eventos Complicadora

Ironia 4 Verbal De oposição

Ironia 5 Verbal Lúdica

Ironia 6 Verbal Atacante

Ironia 7 Verbal Atacante

Ironia 8 Verbal Autoprotetora

Ironia 9 Verbal Autoprotetora

Ironia 10 Verbal Lúdica

31

Como se vê, há uma predominância de ironias atacantes, autoprotetoras, lúdicas e

complicadoras. A ironia de oposição aparece apenas uma vez, dentre as demais. Não foi

observada a presença de ironias das categorias: reforçadora, distanciadora, provisória e

agregadora.

Outra consideração deve ser feita acerca da obra de Austen. Há que se identificar a

presença constante e ostensiva do sarcasmo nas falas trazidas da personagem de Mr. Bennet

(do narrador, de Mr. Darcy e de Elizabeth, em menor grau). Para um leitor “desavisado” esse

sarcasmo pode ser confundido com a ironia. Lembremos que por muito tempo os dois

fenômenos permaneceram identificados pelo mesmo nome. É importante lembrar que o

sarcasmo, proveniente do grego sarkasmos (ou Sarkázein) relaciona-se a um tipo de zombaria

ou escárnio mordaz e cruel, não deixando margem para duvidas quanto à interpretação feita

pelo leitor. Encontra-se intimamente relacionada à ironia, porém, apresenta um caráter mais

ferino, mais provocador e direto, enquanto a ironia é sutil, menos áspera, mais elegante e

emprega o contraste de forma inteligente, conduzindo o leitor a considerar os significados

implícitos do não-dito (há uma tensão entre o enunciado e suas múltiplas interpretações). Com

base nessas considerações e, para fins de esclarecimento, vem-se apresentar exemplos de

sarcasmo em trechos retirados do texto literário, a saber:

Exemplo 1 (Mr. Bennet):

“–– Pelo que concluo de vossa conversa, deveis ser as duas moças mais tolas do

país. De algum tempo para cá que já suspeitava, mas estou agora plenamente

convencido. [...]

–– Estou deveras surpreendida, meu caro – disse Mrs. Bennet -, pela rapidez com

que o senhor classifica de tolas as nossas filhas. Se eu desejasse criticar os filhos de

alguém, não escolheria decerto os meus.

–– Se minhas filhas são tolas, espero nunca me iludir a esse respeito.

–– Sim, mas acontece que elas são até todas muito espertas.

–– É esse o único ponto de que me gabo de discordar da senhora. Sempre diligenciei

por uma paridade de opiniões entre os dois, mas devo diferir da senhora o bastante

para considerar as nossas duas filhas mais novas como invulgarmente imbecis.”

(AUSTEN, 2009, p. 34)

32

Como é possível observar no trecho destacado, a figura de Mr. Bennet é extremamente

direta e ostensivamente violenta ao apresentar sua opinião desfavorável sobre o caráter de

suas duas filhas mais novas, Kitty e Lydia Bennet. Ele não apresenta escrúpulos em

evidenciar que as consideram as duas moças mais imbecis a quem teve conhecimento. Essa

fala é repetida ao longo da narrativa e enfatiza na obra uma preferência explícita pela figura

da heroína Lizzy Bennet em detrimento das demais filhas, inclusive Jane Bennet, por parte do

pai.

Continuando a discussão sobre os casos de sarcasmo na obra literária, tem-se:

Exemplo 2 (Mr. Bennet):

“–– Ora aí está uma atitude –– exclamou ele –– que conforta uma pessoa; dá um

toque de elegância ao infortúnio. Um dia destes farei o mesmo. Ficaria sentado em

minha biblioteca, de touca e camisa de dormir, e darei aos outros o maior trabalho

possível, ou talvez aguarde até Kitty fugir também, para fazer isso.” (AUSTEN,

2009, p. 244).

Essa passagem é extremamente sarcástica e evidencia a crítica aberta da personagem

Mr. Bennet aos arroubos de sua esposa Mrs. Bennet. Durante toda a narrativa, o narrador traz

ao texto o comportamento extremamente inadequado de sua esposa. Esse comportamento

configura-se como um dos fatores para o insucesso do casamento entre os pais de Elizabeth

Bennet.

Exemplo 3 (Elizabeth Bennet):

“–– E depois, quando regressassem, poderiam deixar comigo uma ou duas de

minhas irmãs. Garanto-lhes que arranjaria maridos para todas elas antes do fim do

inverno.

–– Agradeço de minha parte –– disse Elizabeth –– mas não aprecio a tua maneira de

arranjar maridos.” (AUSTEN, 2009, p. 257).

Esse trecho evidencia um pouco da personalidade sarcástica com que Jane Austen

constrói sua heroína romântica. Elizabeth Bennet revela uma característica que a distingue das

demais irmãs, notadamente, a crítica explicita às pessoas, a sociedade e aos costumes

33

apresentados em Orgulho e Preconceito. Essa distinção de caráter é o que possibilita perceber

uma escrita além de sua época. Por meio desse tom ferino e direto, Lizzy configura-se como

uma mulher diferente das de seu tempo. É a sua voz que se faz ressaltar dentre as demais,

mesmo que equivocada pelo preconceito e orgulho. No entanto, é uma voz que transcende às

demais vozes femininas dentro do texto (e do contexto histórico) para evidenciar e discutir

acerca de seu tempo e de suas construções de mundo.

Exemplo 4 (Elizabeth Bennet):

“–– E se eu não tivesse também uma carta a escrever, sentar-me-ia a seu lado e

admiraria a regularidade de sua caligrafia, como certa jovem, um dia, já o fez; mas

acontece que também tenho uma tia e estou em falta para com ela.” (AUSTEN,

2009, p. 309).

Essa fala de Elizabeth Bennet retoma uma das situações do texto em que Caroline

Bingley busca evidência aos olhos de Mr. Darcy, elogiando-o quanto à caligrafia e à extensão

de uma carta direcionada à sua irmã, Georgiana Darcy. Na ocasião em que Mr. Darcy

permanecia escrevendo a referida carta, Lizzy encontrava-se presente e observava a cena com

olhos de reprovação. Na realidade, Miss Bingley tinha a intenção explícita de aborrecer

Elizabeth e mostrar-lhe sua preferência aos olhos de Mr. Darcy. Aqui, no exemplo quatro, fica

claro o tom de escárnio com o qual Lizzy relembra Mr. Darcy o fato ocorrido, quando em

situação semelhante e já comprometidos com o casamento por amor.

Exemplo 5 (narrador):

“Sir William Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde fizera uma fortuna

razoável e se tornara cavaleiro graças a um discurso ao rei, feito durante seu

mandato como prefeito. A distinção impressionara-o, talvez, demais. Com ela

perdera o gosto pelo negócio e por sua residência na pequena vila de passagem;

e, abandonando ambos, transferiu-se com a família para uma casa a uma milha

de distância de Meryton, onde poderia entregar-se ao pleno gozo de sua

importância, e, liberto dos negócios, ocupar-se unicamente com a sociedade.10

10

grifo nosso.

34

Se bem que, maravilhado por sua nova dignidade, não tornara de modo algum altivo,

mas, pelo contrário, desfazia-se em atenções para com todo o mundo. Inofensivo,

amistoso e obsequioso por natureza, sua apresentação em St. James tornara-o

educado e cortês.” (AUSTEN, 2009, p. 24).

O exemplo supracitado é apresentado ao leitor na voz do narrador em terceira pessoa.

Esse narrador evidencia o tom mordaz e direto da escritora Jane Austen, ressaltando uma

crítica ao comportamento da época, notadamente, voltado para a importância com títulos de

nobreza e para a ociosidade proveniente dessa camada social.

Exemplo 6 (Mr. Bennet):

“- Nenhuma delas é especialmente dotada – replicou ele – São todas umas tolas e

ignorantes, como a maioria das moças; Lizzy, no entanto, tem uma vivacidade que

as outras irmãs não têm.” (AUSTEN, 2009, p.15).

O exemplo 6 é mais uma agressão explícita às personalidades das filhas feitas na voz

da personagem Mr. Bennet, que é extremamente sarcástica durante todo o desenvolvimento

da narrativa.

Vemos, desse modo, que Jane Austen utiliza-se de ambos os recursos estilísticos, a

ironia e o sarcasmo, de forma valorosa, para promover uma crítica social. No entanto,

evidencia-se que esses recursos guardam diferenças significativas que devem ser recuperadas

dentro do contexto da obra (e em qualquer texto, como um todo).

35

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A princípio cabe destacar que a identificação de exemplos de ironia no corpus não se

constitui em tarefa fácil, considerando que essa surge no texto desde algo quase

imperceptível, em nível verbal ou observável e, às vezes, salta do texto até mesmo ao nível de

zombaria.

A partir dos resultados obtidos, pode-se afirmar que inexiste uma estruturação

discursiva específica, um modelo que caracterize o fenômeno irônico em Orgulho e

Preconceito. Essa falta de uniformidade configura-se, com base na avaliação dos dados, como

uma liberdade da escritora para usar a linguagem de modo criativo, desempenhando a ironia

múltiplas funções.

No levantamento das funções do fenômeno irônico, conforme Seixas (2006) e

Hutcheon (2000), procurou-se identificar ocorrências de categorias que apresentariam uma

maior incidência dentro do corpus analisado. A pesquisa mostrou que não existe uma única

categoria predominante, porém há ocorrências significativas das seguintes categorias:

assaltante, complicadora, autoprotetora e lúdica. Apenas um exemplo foi categorizado como

de oposição. É imprescindível lembrar que o tom das ironias no decorrer de toda obra segue a

orientação dos exemplos escolhidos. Como é sabido, por meio de estudos críticos sobre

Orgulho e Preconceito, Jane Austen buscou, de maneira intencional, desenvolver uma crítica

social suave utilizando-se de sua obra literária. Esperava-se, portanto, que a ironia, enquanto

uma “arma” utilizada para promover a crítica, para suscitar questionamentos, para

proporcionar a reflexão e a mudança, fosse orientada nesse sentido. Assim, as categorias

funcionais encontradas no corpus de análise e as funções definidas conforme Tabela 2,

36

compilada por Seixas (2006) vêm corroborar com o posicionamento crítico a respeito dessa

obra.

Com base no resultado da pesquisa pode-se dizer que a ironia em Austen tem as

funções: corretiva, de chamar a atenção, provocadora, insultante, autodepreciativa (protetora),

satírica; humorística, transgressora e subversiva (ironia de oposição).

Durante a leitura da obra, muitas vezes, percebe-se que o uso da ironia é feito como

uma forma de desabafo da escritora, mas também, pode-se dizer que essa ironia é parte de seu

estilo como escritora, o qual é bastante atrativo aos seus leitores.

Nos textos analisados, os casos de ironia encontrados são predominantemente críticos,

mas houve também ocorrência de outros valores, como os apontados por Muecke (1995) e

Hutcheon (2000), entre os quais humor e deboche.

Em resumo, na obra Orgulho e Preconceito, Jane Austen busca evidenciar sua crítica

acerca do matrimônio por conveniência, embora esse não se constitua na linha mestre da

narrativa. Em destaque, Austen desenvolve o texto literário mostrando as implicações dos

julgamentos baseados em primeiras impressões e discute a questão do preconceito que surge a

partir dessas impressões equivocadas e sem fundamentação. No decorrer da narrativa, a

escritora aborda a discussão de temas variados e universais (relações de gênero, relações

familiares, religião, sociedade, tradições, costumes, etc.), utilizando-se da figura da ironia

para desvelar e evidenciar determinadas situações usuais dentro da sociedade vitoriana. Nessa

perspectiva, nota-se que essa ironia não é mostrada somente por meio do jogo de palavras, do

dito e do implícito, mas também diante do próprio contexto da história. O tom irônico que

reside em todo o texto inicia-se nas linhas introdutórias da novel e mostra o seu

posicionamento frente à sociedade vitoriana: "É universalmente uma verdade reconhecida,

que um único homem em posse de boa fortuna deve estar desejando uma esposa” (AUSTEN,

1997, p.1). Essa frase introdutória é descortinada no decorrer da narrativa.

37

Embora não se constitua em objetivo principal, cabe destacar o uso do sarcasmo

dentro da obra escolhida para figurar como objeto de estudo. Antes de constituir-se como um

recurso estilístico, vê-se que há uma intencionalidade de Jane Austen em utilizá-lo visando a

promover uma crítica social. Observa-se, também, que esse recurso guarda uma diferença

significativa com o da ironia, que deve ser recuperada para melhor entendimento do contexto

da obra.

Diz-se, portanto, que a identificação dos recursos estilísticos da ironia e do sarcasmo,

em Jane Austen, é necessária, assim como a percepção de sua função dentro do texto, afim de

que o leitor produza o sentido previsto pela escritora quando da criação de sua obra, qual seja,

promover uma crítica acerca de sua sociedade contemporânea.

38

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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documentação – Trabalhos acadêmicos – Apresentação. NBR 14724 -. Rio de Janeiro: ABNT,

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Martin Claret, 2009. 318p. (Coleção a obra-prima de cada autor).

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<www.gutenberg.org>. Acesso em 8 de junho de 2009.

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GUILHERME, Marsia Antonieta de S. Leitura e Leitores em Pride and Prejudice. In: 60

SIMPÓSIO DE ENSINO DE GRADUAÇÃO. Piracicaba (SP): Universidade Metodista de

Piracicaba, 2008.4p.

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Acesso em 4 de maio de 2007.

39

MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. Trad. Augusta

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MUECKE, Douglas Collin. A ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. SP:

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ROCHA, Patrícia Carvalho. A Estética da dissonância nas obras de Charlotte Brontë. Tese

(Doutorado em Estudos Literários) BH: UFMG, 2008. 236 p.

SEIXAS, Netília Silva dos Anjos. Jornalismo e ironia: produção de sentido em jornais

impressos no Brasil. Tese (Doutorado em Lingüística) Recife (PE): UFPE, 2006. 271 p.

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moderna historiografia inglesa. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais: UFU, ano III,

nº 2, v. 3, p. 1-22, abril/maio/junho. 2006.

40

7. ANEXOS

41

ANEXO A - Exemplos de ironia em Orgulho e Preconceito, de Jane Austen.

Exemplo n0 1: Ironia 1

. “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna deve estar necessitando de uma esposa Por muito pouco que sejam conhecidos os sentimentos ou o modo de pensar de tal homem ao entrar pela primeira vez em uma localidade, essa verdade encontra-se de tal modo enraizada no espírito das famílias vizinhas que ele é considerado como propriedade legítima de uma de suas filhas.[...] - Oh, solteiro, naturalmente, meu caro! Um homem solteiro e de grande fortuna, com rendimento no valor de 4 ou 5 mil libras anuais. Que coisa maravilhosa para nossas filhas! - Como assim? Em que isso poderá afetá-las? - Meu caro Mr. Bennet – retorquiu sua mulher – que enfadonho o senhor é! Sabe perfeitamente que estou pensando em o casar com uma delas. - Será essa a intenção dele ao vir instalar-se aqui? - Intenção! Que disparate é esse que está dizendo! É bem possível que ele se apaixone por uma delas, e exatamente por isso o senhor deve ir visitá-lo logo que ele chegue. - Não vejo razão para isso. Podem perfeitamente ir a senhora e as meninas, ou mandá-las sozinhas, o que talvez fosse preferível, pois, uma vez que a senhora é bonita como qualquer uma delas Mr. Bingley poderia escolhê-la.” (AUSTEN, 2009, p. 13-14)

42

Exemplo n0 2: Ironia 2

Exemplo n0 3: Ironia 3

“Mary não tinha nem talento nem gosto; e, embora a vaidade lhe tivesse dado perseverança, emprestara-lhe um tal ar de superioridade e pedantismo nos modos que por si só prejudicariam um grau de perfeição mais elevado que o que ela atingira.” (AUSTEN, 2009, p.30). “[...] Qual a tua opinião, Mary? Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extrais ensinamentos. Mary quis dizer algo sensato, mas não sabia como. –– Enquanto Mary põe em ordem as suas idéias –– continuou ele –– voltemos a Mr. Bingley.” (AUSTEN, 2009, p. 16).[grifo nosso] “–– O orgulho –– observou Mary, que se vangloriava da solidez de suas reflexões –– é um defeito muito comum, creio eu. Depois de tudo o que li, estou deveras convencida de que é comum, que a natureza humana manifesta uma tendência bastante acentuada para o orgulho, e que são raros aqueles entre nós que não nutrem um sentimento de condescendência própria baseado em uma ou outra qualidade, real ou imaginária. Vaidade e orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam freqüentemente usadas como sinônimos. Pode-se sentir orgulho sem ser vaidoso. O orgulho diz respeito mais à opinião que temos de nós próprios, enquanto, a vaidade, ao que pretendemos que os outros pensem de nós.” (AUSTEN, 2009, p.26).

“–– É razoável, mas não suficientemente bonita para tentar-me. No entanto não me sinto disposto a consolar as jovens que outros desprezaram. Vai tu para junto do teu par e desfruta-lhe os sorrisos, que comigo perdes o teu tempo.” (AUSTEN, 2009, p. 20). “Ocupada em observar as atenções de Mr. Bingley para com sua irmã, Elizabeth estava longe de suspeitar que ela própria se tornara em um objeto de certo interesse aos olhos do amigo. Mr. Darcy, a princípio, fora quase com relutância que lhe admitira uma certa beleza; no baile olhara para ela sem admiração, e na vez seguinte olhou-a apenas para a criticar. Porém, ainda mal ele se certificara a si e aos amigos da quase inexistência de um traço bonito naquele rosto, quando começou a achá-la invulgarmente inteligente pela bonita expressão de seus olhos pretos.” (AUSTEN, 2009, p.29). “–– Receio, Mr. Darcy –– observou Miss Bingley em um sussurro –– que esta aventura tenha de certo modo afetado sua admiração por seus lindos olhos. –– De maneira nenhuma –– replicou ele –– os olhos estavam, graças ao exercício, mais brilhantes do que nunca.” (p.39).

43

Exemplo n0 4: Ironia 4

Exemplo n0 5: Ironia 5

Exemplo n0 6: Ironia 6

“–– Que encantador divertimento este para os jovens, Mr. Darcy! Não há nada como a dança, no fundo; considero-a até um dos principais requintes das sociedades cultas. –– Perfeitamente de acordo, meu senhor; e tem também a vantagem de estar em voga entre as sociedades menos cultas do mundo. Qualquer selvagem sabe dançar. Sir William apenas sorriu: –– Seu amigo dança maravilhosamente –– continuou ele após uma pausa, ao ver Bingley juntar-se ao grupo ––; e não duvido de que até o senhor seja um adepto de tal arte, Mr. Darcy. –– Viu-me dançar em Meryton, creio eu. –– Sim, de fato, e não foi sem um certo prazer que o fiz. Dança com freqüência em St. James? –– Nunca, Sir Williams. –– Não acha que seria um ato lisonjeador para com tal local? –– É essa uma homenagem que, sempre que posso, evito fazer a um local, seja ele qual for.” (AUSTEN, 2009, p.30-31).[grifo nosso]

“–– Está pensando que insuportável seria ter de passar mais de uma noite assim... com tal gente; [...] –– Está redondamente enganada, asseguro-lhe. Pensava em coisas bem mais agradáveis. Pensava, por exemplo, no imenso prazer que um par de lindos olhos no rosto de uma mulher bonita podem nos dar. [...] –– Bem, se é com tal seriedade que encara o assunto, considerá-lo-ei definitivamente arrumado. Terá, na verdade, uma sogra encantadora, e, naturalmente, ela passará a vida em Pemberley.” (AUSTEN, 2009, p.32). [grifo nosso].

‘–– Mrs. Bennet, não tem em seu parque outros caminhos por onde Lizzy se possa perder de novo hoje?” (AUSTEN, 2009, p.303).

44

Exemplo n0 7: Ironia 7

Exemplo n0 8: Ironia 8

“–– Espanta-me –– disse Mr. Bingley –– que as moças tenham paciência para se tornarem tão prendadas como todas elas o são. –– Todas elas prendadas! Meu caro Charles, que queres dizer? –– Sim, todas elas, creio eu. Todas elas pintam mesas, forram biombos e tecem bolsinhas. Não conheço nenhuma que não faça tudo isso, e tenho certeza de nunca ter ouvido falar pela primeira vez de uma moça sem ser informado de que ela era muito prendada. –– A tua lista de talentos comuns –– disse Darcy –– tem muito de verdade. A palavra é aplicada a mais de uma mulher que não a merece para além de tecer uma bolsinha ou forrar um biombo. Mas estou longe de concordar contigo na tua apreciação das mulheres em geral. De todas as que conheço, não me posso gabar de conhecer mais de meia dúzia verdadeiramente dotadas. –– Nem eu, posso afirmá-lo –– disse Miss Bingley. –– Nesse caso –– observou Elizabeth –– exige bastante de uma mulher para a considerar perfeita. –– Assim é, de fato –– disse Mr. Darcy. –– Oh, mas com certeza! –– exclamou sua fiel aliada –– Nenhuma se poderá considerar perfeita se não ultrapassar de longe a média. Uma mulher, para merecer tal qualificação, deve ter um conhecimento profundo sobre música, canto, desenho, dança e línguas modernas; e, além de tudo isso, deve possuir ainda um quê na maneira de se mover e estar, no tom da voz, trato e expressões, ou só merecerá a qualificação em parte. –– Tudo isso ela deve possuir –– acrescentou Darcy –– e a tudo isso ela deve juntar ainda algo de mais substancial, que é a prática assídua da leitura para o desenvolvimento de seu espírito. –– Por isso não admira que o senhor conheça apenas seis mulheres completa. Chego mesmo a duvidar que conheça alguma. –– Julgas com tanta severidade seu sexo, que duvide da possibilidade de tudo isso? –– Nunca encontrei tal mulher. Nunca encontrei tanta capacidade, gosto, aplicação e elegância juntas, tal como o senhor o descreve. [...] Como a conversa encontrara assim seu termo, Elizabeth pouco depois abandonou a sala.” (p. 42).[grifo nosso]

“–– É verdade, Miss Eliza, que o destacamento de milícia foi removido de Meryton? Deverá ter sido uma grande perda para sua família.” (p. 220).[grifo nosso]

45

Exemplo n0 9: Ironia 9

Exemplo n0 10: Ironia 10

“–– Mesmo que me arranjassem quarenta desses homens, nunca seria tão feliz como tu. Para ter a tua felicidade, teria de ter também o teu temperamento e a tua bondade. Não, não, deixa-me entregue a meu próprio destino; e quem sabe se, com um pouco de sorte, não me aparecerá um dia um outro Mr. Collins pela frente.” (p. 283).[grifo nosso]

“–– Agora –– disse ela –– que o primeiro encontro passou, sinto-me perfeitamente à vontade. Conheço minhas forças e não mais me sentirei embaraçada na presença dele. Alegra-me que ele venha jantar na terça-feira; pois, nessa altura, todos terão a ocasião de ver que nos damos apenas como bons amigos e indiferentes um ao outro. –– Oh, sim. Muito indiferente, de fato –– disse Elizabeth, sorrindo. –– Toma cuidado, Jane! –– Minha querida Lizzy, não me julgarás tão fraca que me consideres em perigo agora. –– Considero que mais do que nunca estás em perigo de ele se apaixonar irremediavelmente por ti.” (p. 274).[grifo nosso]