A LITERATURA MARGINAL E AS RASURAS DISCURSIVAS NAS NARRATIVAS DA NAÇÃO

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A LITERATURA MARGINAL E AS RASURAS DISCURSIVAS NAS NARRATIVAS DA NAÇÃO Claudia de Azevedo Miranda Linha de pesquisa: Literatura, cultura e política em espaços lusófonos. TÓPICOS EM LITERATURA BRASILEIRA Professores Renato Cordeiro Gomes Paulo Roberto Tonani 1

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A LITERATURA MARGINAL E AS RASURAS DISCURSIVAS

NAS NARRATIVAS DA NAÇÃO

Claudia de Azevedo Miranda

Linha de pesquisa: Literatura, cultura e política emespaços lusófonos.

TÓPICOS EM LITERATURA BRASILEIRA

Professores

Renato Cordeiro Gomes

Paulo Roberto Tonani

1

2013.2

A língua é minha pátria/

E eu não tenho pátria, tenho mátria/E quero frátria.

(Língua. Caetano Veloso)

Este trabalho tem como objetivo introduzir novas

propostas às questões levantadas pelo pesquisador e

professor Renato Cordeiro Gomes em seu texto “Imaginar a

nação em tempo heterogêneo e midiático: herança, espectro, resíduos”

apresentado ao Grupo de Trabalho “Cultura das Mídias”

durante o XXII Encontro da Compós, na UFBA(Salvador - BA),

e que norteou o curso de mesmo título ministrado na

disciplina Tópicos em Literatura Brasileira do programa de

Pós Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da

PUC- RIO, em parceria com o Prof. Paulo Roberto Tonani do

Patrocínio.

A questão central para o autor é a interrogação de

como se constrói o imaginário da nação, enquanto comunidade

imaginada na contemporaneidade, considerando-se a

transformação do papel da literatura como mediadora desse

processo de construção de identidade.

A partir da observação de que a Naçãodeixou de ser o centro de um sistema designificação, que marcou, desde o século XIX, abase geopolítica da cultura,, indaga-se se

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estamos vivendo uma fase final da construçãoromântica da cultura nacional, num contextohistórico marcado pela debilitação do Estado-nação, pela transnacionalização da economia edas culturas, pela expansão das redescomunicacionais que põem em circulação fluxos deinformação, produzindo um novo tipo de espaçoreticulado que debilita as fronteiras donacional e do local. Esta perspectiva permitetraçar algumas hipóteses sobre representações daNação, ou sua ausência, em narrativas midiáticase literárias contemporâneas no Brasil.Articulando nação e narração, trabalham-se osconceitos de herança, resíduos e espectro, paraequacionar uma forte tradição da culturabrasileira em centrada na identidade da Nação.(Gomes, 2013, p.1)

Entretanto, se não podemos afirmar que a literatura

brasileira hoje, se interesse por dar continuidade ao

projeto de porta voz do nacional, como o fez em século

passado, é possível identificar espectros do nacional e

resíduos em obras produzidas na virada do século, como

Herança de Silviano Santiago, Leite Derramado de Chico Buarque

ou mesmo Órfãos do Eldorado de Milton Hatoum.

Apesar destas questões haverem norteado nossas

pesquisas e leituras durante o segundo semestre deste ano

de 2013, o que este trabalho visa questionar, não diz

respeito às possíveis reminiscências ou projeções desse

nacional no cenário literário. Também não se propõe a

identificar como, na atualidade, os discursos pedagógicos

da nação encontram-se difundidos em outras narrativas, como

as midiáticas, sugeridas no texto de Renato Gomes. O que se

pretende abordar é como a produção literária e cultural da

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periferia, a literatura marginal, entendida como a produção

criada por sujeitos que habitam as zonas periféricas das

metrópoles, excluídos e estigmatizados, à margem do cânone

literário, estabelece uma forma discursiva performática,

que rasura a fala pedagógica da nação. Para entendimento

teórico desta questão, serão utilizados textos de autores

representantes dos estudos culturais, como Homi K. Bhabha e

Stuart Hall ao lado de autores brasileiros que pesquisam as

produções culturais da periferia brasileira, como o

professor Paulo Roberto Tonnani, que recentemente publicou

Escritos à margem - a presença de autores da periferia na cena literária

brasileira (2013), resultado de sua tese de doutorado.

Soma-se a esses autores, Mássimo di Felice, que em seu

livro Paisagens Pós- urbanas – O fim da experiência urbana e as formas

comunidades do habitar, desenvolve uma nova tipologia das

formas comunicativas do habitar e que trará sua

contribuição de uma forma oblíqua para esse trabalho. Ao

propor novas perspectivas teóricas a partir das formas

múltiplas e deslocativas do habitar eletrônico

metropolitano, questiona as noções de centro e periferia

pautadas em uma perspectiva urbanística. Para Mássimo, as

redes telemáticas globais criam novas espacialidades

informativas, dissolvendo fronteiras entre cidades e

nações. A partir dessa nova espacialidade contemporânea,

pode-se sugerir que os limites imaginários da nação

apresentam suas fronteiras esgarçadas. Sob essa ótica,

surge uma outra questão a ser explorada neste trabalho: de

que forma as narrativas das periferias são atravessadas na

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contemporaneidade por outras narrativas culturais,

transnacionais. Ao lado disso, pretende-se analisar como

“outras” comunidades imaginadas (Benedict Anderson) se

incorporam e se mesclam ao imaginário da nação, como a

cultura hip hop disseminada nas periferias, que possibilita

uma identidade compartilhada (Stuart Hall) entre sujeitos

excluídos e marginalizados em suas pátrias de origem.

Para dialogar com esses autores teóricos, foram

selecionados textos extraídos do livro Literatura Marginal -

Talentos da escrita Periférica, com poemas, contos e crônicas,

produzidos por autores em situação de marginalidade social.

Esta coletânea literária publicada em 2005, pela editora

Agir, contém crônicas, poesias e testemunhos de autores,

textos que foram publicados em edições especiais da revista

Caros Amigos/literatura marginal, idealizadas e organizadas

por Ferrez. A grande receptividade desses exemplares na

época, com uma tiragem vendida de aproximadamente 30 mil

exemplares favoreceu que uma editora como a Agir se

interessasse em publicar uma seleção destes textos em

livro. O grupo de autores, formado por rappers,

presidiários, escritores iniciando carreira, sob a

liderança de Ferrez, inaugurou, a partir dessas

publicações, acima citadas, um movimento literário com um

projeto comum, o de “retratar o que é peculiar aos espaços

e sujeitos marginais” (Nascimento, 2009, p. 9).

A coletânea foi questionada pela crítica por conter

textos muito heterogêneos quanto ao seu valor literário. Em

resposta à crítica, a doutora da USP, Érica Pessanha do

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Nascimento, pesquisadora de produção cultural da periferia,

escreveu em defesa de um novo lugar para a produção

marginal do grupo, no prefácio do livro Crônista de um tempo

ruim, de Ferrez,

A prosa é seca e a poesia é ácida, como ensina a tradição do hip hop. As questões políticas estão sempre presentes nos textos, ainda que se fale de amor, esperança, solidariedade, sonhos. Os elementos documentais,biográficos e descritivos são predominantes, mastrata-se de literatura e por isso é preciso sensibilidade para reconhecer como legítima estaprodução, mesmo quando ela se mostra assumidamente engajada ou calcada em construçõestextuais que destoam da norma culta, abusando deregras próprias de regência e concordância, neologismos e gírias periféricas.” (Nascimento, 2009, p.10)

O que, então, interessa a este trabalho é a análise

dessa produção marginal como discurso performativo que

questiona e rasura o discurso pedagógico da nação, dentro

da perspectiva de Hommi K. Bhabha. A importância da

utilização dos conceitos de Bhabha para a compreensão de

como os textos da literatura marginal ou periférica

questionam a fala hegêmica é exposta por Paulo Tonani

Patrocínio, em seu projeto,

Para compreender a especificidade destedesejo de diferenciação da margem, se faznecessário formar um referencial teórico quepossibilite lançar novas luzes sobre estadisputa discursiva. Os conceitos “pedagógico” e“performático”, formulados por Homi K. Bhabhaa partir de sua análise sobre a formação dasnações modernas, são úteis para vislumbrar aparticularidade destes discursos marginais

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frente à pretensa fala hegemônica da nação. Aleitura produzida por Bhabha, está amparada nasformulações de Benedict Anderson e Ernest Renanque destacam a nação enquanto um aparatodiscursivo, cujo objetivo é construir umacomunidade imaginada, para citar a expressão deAnderson. (Patrocínio, 2013, p. 35)

Em “Disseminação. O tempo, a narrativa e as margens da

nação moderna”, Bhabha define o performativo como uma

intervenção na soberania da auto geração da nação. É um

discurso que lança uma sombra entre o povo como “imagem” e

sua significação como um signo diferenciador do Eu,

distinto do Outro ou do exterior. O discurso performativo

introduz um entre lugar e desestabiliza o significado de

povo como homogêneo.(Bhabha,1998, p.209) A dialética de

temporalidades e espacialidades diversas, ocultas no

pedagógico se torna aparente no performativo. A nação aqui

se encontra também marcada pelos discursos de minorias, as

histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades

antagônicas e por locais tensos de diferença cultural.

Como exemplo dessas formas discursivas, o texto-

manifesto que abre a coletânea Literatura Marginal - Talentos da

escrita Periférica, intitulado “Terrorismo literário”, de

Ferrez, demarca um lugar de enunciação próprio, não mais

mediado por escritores intelectuais de classe média.

Percebe-se a intenção de Ferrez em reforçar sua diferença e

utilizar o lugar de exclusão e a revolta como estratégia de

reconhecimento. O autor declara que ao invés da capoeira, é

a palavra que surge como arma. E que agora não vai mais se

calar,7

Cala a boca, uma porra, agora agente

fala, agora agente canta, e na moral agora

agente escreve. Quem inventou o barato não

separou entre literatura boa/feita com caneta de

ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a

regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o

retrato, pelo contrário, mudamos o foco e nós

mesmo tiramos nossa foto. (Ferrez, 2005,

Caberia então aqui, a pergunta de Spivak (1995),

“pode o subalterno falar”? Essa questão pode ser associada

às resistências ou incertezas da recepção. Pois, se o

subalterno fala, pretende-se que seja ouvido, ou lido e

para que isso aconteça, deve ultrapassar as barreiras do

circuito de produção e distribuição mediados pelo cânone,

mesmo quando seu principal objetivo significa falar e ser

ouvido por seus pares. O que não se deseja neste caso, é

que os intelectuais sejam os mediadores dessa voz. Dessa

forma, cabe lembrar que as novas tecnologias da informação

ocupam um importante papel nestes novos cenários,

estimulando a existência de novos circuitos de produção e

distribuição em territórios de difícil acesso ou acesso

diferenciado, como é o caso das periferias. O grupo de

autores liderados por Ferrez se encontra liberto das

antigas negociações de acesso ao circuito cultural apenas

mediadas pelas leis do mercado. Aproveita, inclusive, para

denunciar essas antigas formas de dominação e controle. Ao

desafiar como no texto manifesto de Ferrez, “os donos da

casa grande”, proclama não ser mais necessário aguardar que

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as portas sejam abertas, pois elas já foram arrombadas por

eles, os autores da literatura marginal. (Ferrez, 2005,

p.10) Ainda nesse diálogo performativo com a tradição, o

autor escreve:

Estamos na rua, loco, estamos na favela,no campo, no bar, nos viadutos, e somosmarginais mas antes somos literatura, e issovocês podem negar, podem fechar os olhos, viraras costas, mas, como já disse, continuaremosaqui, assim como o muro social invisível quedivide este país. (...)

Ao contrário do bandeirante que avançoucom as mãos sujas de sangue nosso território, earrancou a fé verdadeira, doutrinando nossosantepassados índios, ao contrário dos senhoresdas casas grandes que escravizaram nossos irmãosafricanos e tentaram dominar e apagar toda acultura de um povo massacrado mas não derrotado.

Uma coisa é certa, queimaram nossosdocumentos, mentiram sobre nossa história,mataram nossos antepassados.

Outra coisa também é certa: mentirão nofuturo, esconderão e queimarão tudo que proveque um dia a classe menos beneficiadas com odinheiro fez arte. (Ferrez, 2005, p.10)

Além da denúncia, a produção literária de Ferrez que

tem como característica a crônica, o realismo brutal dessas

regiões de fronteira, demonstra o ressentimento e a

desconfiança no projeto nacional, onde o poder, através das

classes dominantes, é capaz de escravizar, enganar, mentir,

esconder, anular, queimar a memória de grupos

desfavorecidos. Como assinala Angela Maria Dias no texto “A

estratégia da revolta: literatura marginal e construção da

identidade”, há na linguagem heterogênea dos escritos desse

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grupo que integra o volume de Literatura marginal – Talentos da

escrita periférica, “uma tematização da história como servidão,

mentira e terror” (Dias, 2006, p. 13). Outros textos da

coletânea voltam-se para o memorialismo, a relação

histórica entre escravidão e miséria a miséria e o

testemunho de experiências da vida de cada autor nas

regiões da periferia. Em “Plano Senzala”, Ridson, autor que

pertence à movimento de cordel urbano família Extremamente,

através de um “eu lírico”, criar um paralelismo entre o

Brasil e a situação carcerária. A nação passa a ser

entendida como uma imensa prisão dos pobres. (Dias, 2006,

p.15)

Estes homens e mulheres são meus pais eavós / Estas crianças são meus filhos, meusirmãos, / esta multidão sou eu, eu sou estamultidão / Prisioneira no Brasil casa dedetenção / (...) Barraco é cela, cadeia é favela/ Viela é corredor, quarteirão é pavilhão e viceversa / Que horas é essa? Interminável era /Mais de cinco séculos de plano Senzala secompletam (Ridson, p.72)

Esta temática é reforçada em outros dois textos de sua

autoria que integram a publicação. Em “Epidemia”, Ridson

invoca o poder da palavra, nos versos: “Minha palavra é o

incêndio que se alastra, / É conflagra e fraga / Abre as

chagas/ Oxigênio não se acaba.” (Ridson, 2005, p. 75) O

autor, ainda no texto em forma de poesia, ameaça os filhos

da burguesia, os playboys, informando sobre a

possibilidade de um levante das favelas. Como se houvesse

no ar, a promessa de um guerra, “Promessa de terror,

horror, incêndio.” (Ridson, 2005, p.80) Para o autor, onde

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há violência, há rebeldia e declara existir uma

“guetofobia” da burguesia um medo em função da extensão e

crescimento do contingente humano nas periferias. Em

“Memórias do futuro: mitos do Brasil moderno” André Bueno

demonstra como essas tensões, expressas na criação de

Ridson, se relacionam com os processos migratórios do

campo para as cidades,

(...)Como vetor do processo, uma rápidapassagem do campo para a cidade, urbanizando opaís, que há um século tinha mais de 75% vivendono campo e hoje tem quase 80% vivendo emmetrópoles ou em cidades grandes e de médioporte. Passagem cuja linha de força foi amodernização conservadora de nosso capitalismodependente, incapaz de integrar a maioria dapopulação aos direitos e benefícios de uma vidacivilizada e protegida da violência. Com isso,agravaram-se as diferenças e desigualdades,(...) porque a miséria apenas migrou para asáreas de grande concentração urbana, reunindo-seem favelas, em ocupações e em periferias pobres.Aguçando com isso as tensões sociais e a relaçãoentre as classes, já que os bárbaros, as classesperigosas, esse outro intratável que é o povoposto à margem, agora vivem dentro dasfronteiras da cidade, causando um mal-estaracentuado, difícil de resolver e que se refletede maneira marcada nos novos modos de narrar aexperiência brasileira urbana, tanto naliteratura quanto no cinema, com resultados quevale a pena pensar. (Bueno, 2004, p.16)

Outro texto da coletâna Literatura Marginal - Talentos da escrita

Periférica “Faveláfrica”, de Gato Preto, explora o espectro do

Navio Negreiro como uma eterna ameaça, uma ideia que

contamina gerações, pois os descobridores, invasores,

torturaram as raízes (Preto, 2005, p. 58) O autor utiliza a

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palavra raiz, como metáfora da origem árvore-pessoa,

também com o sentido de arvore-genealógica, estabelecendo

a marca da violência da dominação em diversas gerações e

por isso justifica como contrapartida, a revolta.

Outra questão que merece atenção ao se analisar o

discurso performático que está no viés da literatura

marginal ou periférica é o fato de que esses sujeitos que

habitam as zonas à margem dos grandes centros urbanos,

vivenciam o que Bhabha nomeia de disseminação, a escrita

dupla, que contempla o pedagógico e o performático. Ao

lado dos discursos pedagógicos da nação, veiculados

através de narrativas diversas, principalmente através dos

veículos midiáticos, destacando-se a TV, há um contra

fluxo provocado por discursos contra hegemônicos, como as

narrativas performáticas, que muitas vezes também criam

uma pedagogia local. Como ilustração, podemos citar o fato

de que esse mesmo grupo de autores que interroga, denuncia

o pedagógico nacional, realiza diversas ações de formação

de leitores nas suas comunidades, assim como promovem

saraus estimulando a produção de novos autores,

estimulando a visão crítica para a realidade, criando uma

nova pedagogia do olhar. Em Cronista de um tempo ruim, no

capítulo intitulado “Vida jovem em promoção”, Ferrez

critica o uso da periferia como mercadoria:

Agora é assim, simples assim, a periferiaestá na moda. Mas que moda é essa que não trazevolução para seus moradores?

Que moda é essa que traz crime, abandono eo cheiro insuportável do córrego a céu aberto?

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É estranho se falar em moda, para quem sósabe pegar ônibus lotado, deixar seu lar demadrugada e voltar à noite, quando todos jáestão cansados demais para viver.

E a juventude é quem paga o maior preço,veja os índices de violência para conferir aidade das vítimas. ( Ferrez, 2009, p.13)

A crítica ao consumo é um tema recorrente nos autoresmarginais e aparece em diversos textos em forma dedenúncia. O capitalismo selvagem é representado atravésdos comerciais de TV veiculados 24 horas por dia, como oagente deste consumo desenfreado. Em “Colombo, pobrema,problemas”, Gato Preto questiona:

Ah, mas é assim mesmo, né assim que amerda da TV prega que você tem que consumir? Temque ter? A nossa mente é bombardeada vinte equatro horas por dia pelos comerciais de consumoe os comerciais vêm anunciando: saiu o tênisnovo! saiu carro novo! roupa nova, perfume,creme, moto, relógio...saiu até comida nova, umatal da genérica. E a propaganda nos dá aentender que: se você não tiver o melhor não vaiser ninguém. Aí cê tá sabendo né? o moleque nãotem não tem nada pra fazer (...) ele vê asmaravilhas da tela mágica, ele é humano e temsuas ambições, seus desejos, os olhos brilham eele desperta e diz: “Também quero!”. Agora vemaí a pergunta: se ele não tem nada com disso quefoi citado, como é que ele vai conseguirconsumista deste perverso mundo capitalista?(Preto, 2005, p. 67)

Esse mandato de consumo, como se o indivíduo tivesse

que conseguir ser consumista para ser gente, poderia ser

considerado uma esquizofrenia, entretanto se for acessada a

imagem do Brasil, enquanto nação, e sua identidade a partir

do início do século XX, com o mito do progresso,

justifica-se que o desejo de consumo possa ser13

interpretado como um sintoma viralizado pela globalização,

como se fosse a nova identidade do cidadão. Bueno em

“Memórias do Futuro: mitos do Brasil moderno” sugere o

progresso como a “a chave mágica, que nos traria da

barbárie para a civilização, que superaria o atraso

histórico do país, que nos tiraria do Terceiro Mundo, (...)

promessa de felicidade jamais cumprida”. (Bueno, 2004,

p.19) Em sua análise, Bueno a performance do presidente

Lula da Silva deste engajado neste projeto, definindo da

seguinte forma sua atuação: “vendendo como mercadoria no

pátio dos milagres, um tal espetáculo de crescimento”. (Bueno,

2004, p. 19). Segundo o autor, o país continua dependente e

subalterno e todas as estratégias hegemônicas, que tiveram

como objetivo apenas o progresso da nação, parecem ter

apenas desempenhado um papel suspeito em uma comédia

ideológica de trágico fim.

A globalização, porta voz do capitalismo avançado,

transfigura as paisagens urbanas mundiais. Os processos

globais, segundo Stuart Hall, “passam a enfraquecer ou

solapar formas nacionais de identidade nacional” (Hall,

2011, p.73) E esse enfraquecimento se caracteriza pela

possibilidade de surgimento de outros laços que podem

nascer, estabelecendo novas lealdades culturais.

Os fluxos culturais, entre as nações, e oconsumismo global criam possibilidades de“identidades partilhadas’ – como consumidorespara os mesmos bens, “clientes” para os mesmosserviços, “públicos” para as mesmas mensagens eimagens,- entre pessoas que estão bastantedistantes umas das outras no espaço e no tempo.À medida em que as culturas nacionais torna-se

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mais expostas a influências externas, é difícilconservar as identidades culturais intactas ouimpedir que elas se tornem enfraquecidas atravésdo bombardeamento e da infiltração cultural.(Hall, 2011, p.74)

A categoria de “identidade compartilhada” é vivenciada

por esse grupo de autores marginais ou periféricos, a

partir da influência da cultura do hip-hop que, originária

da Jamaica, ganha as ruas do Bronx em Nova York, se

estabelecendo como forma de resistência. A partir deste

núcleo, irradia-se como a ideologia dos grupos

marginalizados para diversas regiões do planeta. Segundo

a professora de história e pesquisa do African Studies

Program, da New York University, Tricia Rose,

A cultura hip hop emergiu como fonte deformação de uma identidade alternativa e destatus social para os jovens numa comunidade,cujas antigas instituições locais de apoio foramdestruídas, bem como outros setores importantes.(...) A identidade do hip hop está profundamentearraigada à experiência local e específica e aoapego a um status em um grupo local ou famíliaalternativa. Esses grupos formam um novo tipo defamília, forjada a partir de um vínculointercultural que, a exemplo das formações dasgangues, promovem isolamento e segurança em umambiente complexo e inflexível. E, de fato,contribuem para as construções das redes decomunidade que servem de base para os novosmovimentos sociais.(...) No contexto urbano, dehabitações de baixa renda, de empregos pífiospara os jovens, de brutalidade policial emascensão e de crescentes descrições demoníacasda juventude das cidades do interior, o estilodo hip hop é uma “restauração negra” do urbano.(Rose, 1997, p.202)

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A cultura hip hop é constituída de três elementos, o

rap, o break, o graffiti , além dos Djs/os Mcs, mestres de

cerimônia. O rap é a música hip-hop, o break, é a dança

hip-hop (Vianna, 1977, p.21). Segundo Patrocínio,

O traço que une esses três elementos e,dessa forma, possibilita sua apresentação comoum movimento é o sentido de protesto, de criaçãode uma fala contrária ao estabelecido, rasurandodiscursos hegemônicos e rasurando e produzindoum interstício. (...)rap é a sigla do termorhythm and poetry, uma forma de expressãomusical em batidas eletrônicas sequenciadase uma melodia que enquadra versos maisfalados que cantados pela rima.”(Patrocínio, 2013, p.105).

Essa cultura chega ao Brasil, no início no final dos

anos 70, se instalando como uma nova linguagem para os

jovens das periferias urbanas, ao lado de outros estilos

culturais, como o funk e o pagode, que passam a

experimentá-la como um exercício de entretenimento e ao

mesmo tempo resistência. As canções são interpretadas pelos

rappers, que passam a ser vistos como forma identitaria e

se distinguem de outros novos estilos que também emergem

nas periferias, como o funk e o pagode. Os rappers são

vistos como sujeitos “cheios de marra”,

Não há motivos para sorrisos nem paramanemolência: o rapper de favela também tem quese diferenciar de outras formas de expressãosurgidas no mesmo espaço, como funk e o pagode,cuja performance tem um quê de afeminado do quala atitude dos rappers procura distanciar-se: atéagora pelo menos, o hip hop tem sido o reino domasculino (no que esse conceito tem de maisestereotipado). (Salles, 2007, p.134).

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Paulo Tonani do Patrocínio, em “Hip-hop e Literatura

Marginal: por uma pedagogia própria”, estabelece a relação

de influência e parceria que o grupo rapper, Racionais MC

´s, que se torna o principal grupo brasileiro de rap,

liderado pelo rapper Mano Brown vai estabelecer.

Além da utilização do aparato críticoformado pelo rap em textos literários, éigualmente possível identificar na postura dosautores marginais, a influência do discurso decontestação do movimento hip-hop. Estes, emsemelhança aos rappers, apresentam-se comodetentores de um saber sobre a realidade daperiferia urbana. Alçados à missão de portar asvozes de uma massa silenciosa que habita espaçosmarginalizados, estes autores são agorarealizadores de uma complexa trama que envolveprodução literária, ativismo social e formasdistintas de associatismo. (Patrocínio, 2013)

Um exemplo direto da estrutura rítmica do rap é o

poema “A Bahia que Gil e Caetano não cantaram “, de Gato

Preto, que ao invés de apresentar o lado festa baiano,

solar, da alegria e do carnaval, faz uma ruptura com o que

há de canônica e imagem turística, para mostrar um povo

massacrado, violentado em sua miséria.

Iludidos, vê só quem chegou/ Pode me chamar deGato Preto, o invasor./ Vou mostrar a Bahia queGil e Caetano nunca cantaram/ Bahia regada asangue real/Que jorra com intensidade em épocade Carnaval.

Falo do pescador que sai às três da manhã/Pedindo força a Iemanjá e Iansã/ Sai cortando aságuas do mar da vida/ Querendo pescar umasolução, uma saída.

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A Bahia da guerreira baiana que chora/Que travouuma luta e perdeu na batalha seu filho pradroga. (...)Falo da prostituição infantil/ DaBahia que o cartão postal nunca mostrou....(Preto, 2005, p.51-53)

A literatura marginal do séc. XXI, feita por minorias

raciais ou socioeconômicas, vai disseminando uma pedagogia

própria, e atravessa periferias, criando uma identidade que

rasura o conceito de pátria, para ser “frátia”, um

deslocamento identitário que compensa o vazio dos discursos

homogêneos da nação e recria os laços imagéticos de

pertencimento. Narrativas da “frátia imaginada”, como propõe

Carolina de Oliveira Barreto no título de sua de

dissertação de mestrado (Juiz de Fora, 2011), que foi

inspirada no texto de Maria Rita Kehl, “A frátria órfã: o

espaço civilizatório do rap na periferia de São Paulo. Para

Kehl, o conceito de “frátria” traz implícito o significado

de horizontalidade da relação entre o rapper e seu público,

ao invés de submissão. Segundo Barreto, também estaria

contemplado em “frátia”, a multiplicidade de discursos, o

lugar onde há coexistência de discursos divergentes e

convergentes.

A narrativa do contemporâneo que emergeda frátria imaginada”não constituem um todofechado, mas uma construção em contínuoprocesso, pelas trocas, pelo diálogo,constituindo, desse modo, uma narrativa quepermite a relação em seu interior, sem que hajadiluição das individualidades , para que não setorne um bloco monolítico que silencie asidentidades que abarca em nome de umarepresentação identitária única. (Barreto,2011).

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Pode-se então concluir que as narrativas da literatura

marginal que se caracterizam como discursos performativos,

contracenam com os discursos de poder e rasuram seu discurso

hegemônico. Por outro lado, o cosmopolitismo e as redes

informacionais contemporâneas, ultrapassam as fronteiras

geopolíticas das nações, e permite que outras narrativas

culturais, transnacionais, atravessem as culturas locais,

como é o caso da cultura hip-hop, criando derivas e

identidades partilhadas para os sujeitos que habitam os

territórios das periferias urbanas.

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