2013 Tradição em paralaxe: a novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as "velhas...

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Tradição em Paralaxe A novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as “velhas tecnologias”

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Tradiçãoem Paralaxe

A novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as “velhas tecnologias”

Tradiçãoem Paralaxe

A novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as “velhas tecnologias”

Daniela Kern

[página da ficha catalográfica]

DADOS DA IMAGEM DA CAPA

Camila Borba: Sem título, 2011/2012, goma bicromatada, 30 cm x 27,5 cm.

REVISÃO: Daniela Kern e Éder Silveira

[aqui deve constar também a frase “Distribuição gratuita, proibida a venda”].

Sumário

Tradição em ParalaxeUm passeio pela cidadeRevivais, acumulações tradicionais, obsolescência tecnológicaCrise decisiva do artista, pós-produção, coleção, arquivoSobre Tradição em paralaxe: Questionário

Tradição em Paralaxe: Questionário

RespostasFernanda GassenGuilherme Dable ÍoJander RamaMarielen BaldisseraMarina GuedesMichel ZózimoNara Amelia MeloRafael PagatiniRochele Zandavalli

Agradecimentos

Caderno de imagens

6 | Tradição em Paralaxe

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

7 | Daniela Kern

Tradição em paralaxeDaniela Kern

Um passeio pela cidade

Lembro que, quando criança, eu me punha a imaginar como seriam as cidades do futuro. Prédios muito altos, de me-tal e vidro, veículos aéreos (nada mais de rodas), deslocando-se pelo ar em alta velocidade. Como tantos da minha geração, eu imaginava que o universo dos Jetsons, o famoso desenho da Hanna Barbera, iria em breve se tornar uma realidade histó-rica. Caminhando pelas ruas de Porto Alegre agora, em 2013, a minha impressão, no entanto, é bem outra. Que de alguma forma o “futuro chegou” não há como negar – o smartphone que carrego na bolsa é prova disso. Mas que o passado haveria de se tornar um tema tão onipresente no nosso “futuro”, isso eu não teria sido capaz de prever: podemos ver aqui, acompanhando o ensaio visual All Things Must Pass, realizado pelo fotógrafo Luciano Fernandes especialmente para esta publicação, uma lanchonete especializada em cachorro-quente, com decoração vintage.

Além disso, são vários os bares nos bairros boêmios da ci-dade que procuram reconstituir o clima, o visual e a experiên-cia dos antigos botecos cariocas; nas fachadas de várias lojas de móveis, há um leitmotiv recorrente, a palavra “retrô”.

Em lojas de decoração vejo objetos, brilhantes de tão novos, que chamam a atenção, através da reutilização de convenções visuais de épocas passadas (sobretudo das primeiras décadas do século XX – marcas tradicionais da indústria alimentícia, como a Coca-Cola, são um bom exemplo), para a própria “au-tenticidade” forjada em série.

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Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

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Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

Se passo a observar o que as pessoas estão falando e fazen-do, o tema do passado também não poucas vezes retorna: seja quando acompanho no Facebook trocas de informação sobre a localização dos cada vez mais raros laboratórios de revelação de filmes fotográficos em Porto Alegre, seja quando vejo meus alunos comentando sobre os vinis que descobriram no centro da cidade.

O “passado” se faz presente não apenas na cultura visual das ruas ou nas conversas das redes sociais. Nos últimos anos se multiplicam, em Porto Alegre, as exposições de artes visuais que de algum modo remetem a temas ou procedimentos ou tecnologias do passado. Vejamos apenas algumas.

Vanishing Point (Ponto de Fuga), exposição realizada em 2011 na Galeria Ecarta, reuniu trabalhos em fotografia, vídeo e filme dos artistas Luiz Roque, Cristiano Lenhardt, Gustavo Jahn & Melissa Dullius, com curadoria de Bernardo de Souza.1 Ponto 1 Dois dos artistas envolvidos nesta exposição, Cristiano Lenhardt e Luiz Roque, iriam participar pouco tempo depois, dessa vez ao lado de Leticia

Luciano Fernandes: All Things Must Pass, 2013, fotografia digital.

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comum entre todos os trabalhos apresentados aqui pelos ar-tistas é o recurso a “velhas tecnologias” (ou “tecnologias ultra-passadas”, para usar a expressão de Bernardo de Souza) como as mídias analógicas (super-8, 16 e 35mm). Bernardo de Souza, mais do que uma afinidade tecnológica, identificou nas pro-posições dos artistas um acento nostálgico, como se percebe nesta passagem que escreveu para o catálogo da exposição:

Nostálgico, anacrônico, escapista, rétro, futurista e pas-sadista são alguns dos termos que causaram espécie no processo de construção da mostra. Impregnados pela memória afetiva e mirando o futuro, Roque, Lenhardt, Jahn & Dullius deixam claro que o ingresso no século XXI não necessariamente prescinde de romantismo ou exi-ge recusa à herança cultural. Passado, presente e futuro convivem em suas obras de maneira dialógica, tomam a imagem como corpo escultórico que se impõe no espaço físico desta exposição.2

Ramos e Michel Zózimo, da exposição Futuro do Pretérito, com curadoria de Thereza Farkas, que teve lugar em fevereiro de 2012 na Mendes Wood, em São Paulo. É possível identificar no texto da curadora alguns paralelos conceituais com o texto preparado por Bernardo de Souza para Vanishing Point, como quando ela fala em “estética ultrapassada” ao se referir especificamente aos trabalhos de Cristiano Lenhardt. Cf. Futuro do Pretérito. Curadoria: Thereza Farkas. Disponível em: mendeswood.com/futuro-do-preterito/#press-release. Acesso em: 20 fev. 2013.2 SOUZA, Bernardo de. Vanishing Point (Ponto de fuga). Fundação Ecarta, 20 nov. a 23 dez. 2011, Porto Alegre. [Catálogo da exposição]

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Verboten, exposição de desenhos e fotografias de Samy Sfoggia, ocorreu na Usina do Gasômetro neste ano de 2013. As fotografias exibidas, posadas, foram tomadas com uma câme-ra analógica (Zorki-C), sob luz natural, e fazem alusão a moda-lidades fotográficas mais antigas, em especial aos mugshots, os retratos tirados no momento da prisão, para a constituição dos arquivos policiais.3

3 Cf. Sugestão da Redação: Verboten. Jornal do Comércio, Porto Alegre, 17 mai. 2013. Disponível em: http://jcrs.uol.com.br/site/cultura.php?codn=124234. Acesso em: 02 jun. 2013.

Cristiano Lenhardt: Planetário, 2008, sequência de 80 slides,projeção analógica, dimensões variáveis.Coleção do BNB. Foto: Fernanda Gassen.

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Na melodia dos sais e Olhares, exposições coletivas com tra-balhos dos alunos das disciplinas Processos antigos de fotografia e Laboratório de Processos Fotográficos, ministradas por Luiz Eduar-do Robinson Achutti no curso de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, ocorreram, respectivamente, na Sala Rada-més Gnattali e no espaço expositivo da Biblioteca Lucília Mins-sen da Casa de Cultura Mario Quintana, também em 2013.4

4 A exposição Na melodia dos sais ocorreu entre 23 de maio e 23 de junho de 2013, sendo resultado da disciplina Processos antigos de fotografia e tendo como participantes os seguintes artistas: Aline Zidek Superti, Ana Andueza, Camila Borba, Denis Nicola, Emmanuel Rambo dos Santos, Fabiana Muller Branchina, Gustavo Wolffenbüttel, Marco Escada, Polen Sato, Priscila Kisiolar e Raquel Magalhães. Já a exposição Olhares ocorre entre 30 de agosto e 24 de setembro de 2013, resultado da disciplina Laboratório de Processos Fotográficos, e contando com obras dos artistas Agatha Taylor, Amarílis Barcelos, Andressa P. Lawisch, Carmen Saraiva, Carolina Wudich, Cathia Karin Heuser Wolff,Denis Siminovich, Elisa M. Ziegler, Evelyn Gonçalves Lima, Fábio Alt, Fernanda

Samy Sfoggia: Fiori Guiseppe Permontto (05-08-24)– Smuggler, 2013, fotografia, 40 x 50 cm.

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Achutti coordena, há mais de quatro anos, O Espírito dos Sais, Grupo de Pesquisa em Processos Antigos de Fotografia,5 que se dedi-ca à exploração de técnicas como Cianotipia, marrom de Van Eyck, Goma Bicromatada e Papel Salgado, abrindo-se também à experimentação com fotografias híbridas, aquelas nas quais técnicas analógicas e digitais são mescladas. Os alunos que participaram das exposições mencionadas trabalharam justa-mente com essas técnicas antigas, obtendo resultados como a obra de Tatiana Barbiero Frantz aqui reproduzida.

As exposições recém-mencionadas, é preciso frisar, são apenas algumas das realizadas dentro de um universo bem maior de interesse (seja como meio, seja como fim) pelo “an-tigo”, pelo “nostálgico”, pela “memória”, pelo “obsoleto”, pela

Cristina A. Teixeira, Fernanda Lenzi, Luciana Kingeski Barbosa, Marise Feijó, Natalia Schul, Rafaéli Knabach Andrade, Raquel Boff e Tatiana Barbiero Frantz.5 O grupo dispõe de um blog próprio: http://espiritodossais.wordpress.com/

Tatiana Barbiero Frantz: Sem título, 2013,marrom de Van Dyke sobre papel 300mg, 15 x 20 cm.

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“história” que se configura de modo cada vez mais consistente nos últimos anos, na cidade de Porto Alegre.6 É importante sa-lientar também que de modo algum esse fenômeno se restrin-ge ao sul. Exemplos nacionais e internacionais são variados e, muito provavelmente, incontáveis. Eles podem ser localizados em projetos como o Mão na Lata, realizado por Tatiana Altberg, que desde 2003 ensina jovens do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a técnica da fotografia pinhole. No livro que reúne imagens obtidas pelos jovens integrantes do projeto, Ana Ma-6 Aqui poderíamos ainda acrescentar algumas exposições recentemente realizadas, em Porto Alegre, pelos artistas que responderam o questionário Tradição em Paralaxe (e que serão apresentados ao final deste ensaio): Fernanda Gassen, que participa do projeto Island Sessions da 9ª. Bienal do Mercosul com fotografias analógicas reproduzidas no site do evento; Guilherme Dable, que realizou a performance Tacet em 2012, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, na qual instrumentos “preparados” com materiais tradicionais como papel e carbono filme são tocados, em improvisação livre, pelo artista e por outros músicos, e tal execução deixa suas marcas registradas no papel; a Ío, formada pelos artistas Laura Cattani e Munir Klamt, que em 2008 realizou, no Paço Municipal, em Porto Alegre, a exposição multimídia Zede Etes – O Estranho Equívoco de A. Hilzendeger Feltes, que se vale, entre outras coisas, de elementos que remetem a outras épocas para criar um universo ficcional aberto e de difícil localização temporal; Jander Rama, que realizou a exposição individual Homem-Máquina na galeria da UFCSPA em 2011, apresentando obras que simulam as antigas cianotipias utilizadas em desenhos técnicos a partir do século XIX; Marielen Baldissera, que em 2013 apresentou, na sala de exposições da UFCSPA, a série Impermanências, fotografias em p&b em que o movimento das bailarinas contrasta com os cenários antigos contra os quais elas dançam; Marina Guedes, que participou da edição de julho do Projeto Quadro Branco no StudioClio, em 2012, com desenhos feitos a partir de fotografias antigas; Michel Zózimo, cuja obra na 9ª Bienal do Mercosul, de 2013, constitui-se em um ambiente no qual vários componentes (imagens extraídas de livros científicos defasados, digitalmente trabalhadas; cartas fictícias, projeção de slides, entre outros) contribuem para a criação de um universo paralelo, de localização temporal imprecisa; Nara Amelia, que expôs gravuras que simulam antigas convenções de representação gráfica dos animais na individual O Mundo é uma fábula, no Santander Cultural, em 2012; Rafael Pagatini, que exibiu suas xilogravuras na individual Brumas, no Goethe Institut, em 2010, e Rochele Zandavalli, que realizou a individual Rever no Santander Cultural, em 2012, expondo obras feitas a partir de fotografias antigas apropriadas e bordadas.

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ria Mauad reflete sobre o significado do uso de uma técnica antiga no presente:

A técnica da lata abriu espaço para um exercício criativo e muito contemporâneo. Uma técnica fotográfica ancestral que foi colocada em prática no mundo atual, um aprovei-tamento da herança pelos descendentes desses primeiros fotógrafos.7

Mesmo em grandes exposições internacionais como as Bienais o fenômeno do interesse pelo passado (com suas tec-nologias e temáticas) se faz sentir. Para começarmos com um grande evento internacional sediado em Porto Alegre, a Bienal do Mercosul, na edição de 2011 destaco três artistas, Cristina Lucas e seu vídeo La libertée raisonnée (tableau vivant que se ofe-rece como uma crítica do famoso quadro de Delacroix, A liber-dade guiando o povo, de 1830); Duke Riley, que recorre a vários meios para criar as marcas históricas da família real do impé-rio de Laird – os pratos de cerâmica da Laird Royal Family come-morative plate series, de 2010, são um exemplo, e Pablo Brons-tein e a série de aquarelas Islamic culture in Southern Spain – 1000 years of celebration, exercícios de “arquitetura híbrida”, em que são postos lado a lado monumentos de realidades históricas e culturais diversas – a do norte da África e a do Sul da Espanha.8

Na Bienal de São Paulo, de 2012, os exemplos também são vários: Guy Maddin, cujos filmes são criados com base no ima-ginário dos filmes de vanguarda do cinema mudo da década de 1920; Icaro Zorbar, em cujos vídeos e instalações sonoras as velhas tecnologias, as tecnologias “low” ou “descartadas” (fitas cassete, vinis, monitores, máquinas de escrever, toca-discos, etc.) desempenham papel importante; Iñaki Bonillas, que des-de 2003 cria obras a partir do acervo fotográfico pessoal de seu 7 MAUAD, Ana Maria. Através das imagens. In: ALTBERG, Tatiana (org.). Cada dia meu pensamento é diferente. Rio de Janeiro: Nau, 2013. p. 8.8 Cf. 8ª Bienal do Mercosul: ensaios de geopoética: catálogo. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011, passim.

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avô, e Jerry Martin, que reutiliza o que já existe (papel carbono, livros velhos, etc.) para compor suas cartas e seus ambientes.9

De igual modo, tem sido prática recorrente, em várias gran-des exposições internacionais, a revalorização de obras que em sua época, por variados motivos, não foram necessariamente apreciadas como artísticas ou não foram consideradas elegí-veis para a inserção em um circuito erudito de artes. Na Bienal de São Paulo de 2012 foram apresentadas várias fotografias de August Sender (1876-1964), que dedicou a vida a realizar séries fotográficas sobre os habitantes da Alemanha, além de obras de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), que reaparece agora, em 2013, na Bienal de Veneza. Na Whitney Biennial, ainda em 2012, o artista resgatado foi Forrest Bess (1911-1977), o com suas pinturas visionárias e suas interferências místicas no próprio corpo,10 que acabou merecendo, em seguida, uma individual na The Menil Collection, em Houston, Texas.11

Práticas mais extremas, como a exibição, em meio à pre-dominância de obras contemporâneas, de peças e artefatos arqueológicos, também podem ser notadas. É assim que pode-mos destacar os zoólitos, artefatos arqueológicos encontrados no Estado e exibidos no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) durante a 8ª Bienal do Mercosul,12 e ainda as prince-sas bactrianas, elaboradas entre 2500-1500 a.C. em uma região que compreende os atuais Turcomenistão, Uzbequistão e Afe-ganistão, e exibidas na Documenta de Kassel em 2012.13

9 Cf. Catalogue Thirtieth Bienal de São Paulo: The Imminence of poetics. Curators Luis Pérez-Oramas... [et al.]. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2012, passim.10 Cf. Whitney Biennial 2012: Catalogue. Edited by Elisabeth Sussman, Jay Sanders. New York: Whitney Museum of American Art, 2012. p. 64-69.11 Cf. Forrest Bess: Seeing Things Invisible. The Menil Collection, Houston, Texas. April 19 – August 18, 2013. [Exhibition Program]12 Cf. 8ª Bienal do Mercosul: ensaios de geopoética: catálogo. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011. p. 472.13 Baktrische Prinzessinnen. In: dOCUMENTA (13). Das Begleitbuch/The Guidebook, Katalog/Catalog 3/3. Otsfildern: Hatje Cantz Verlag, 2012. p. 40-41.

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Silas Martí, crítico de artes visuais da Folha de S. Paulo, atento a esse contínuo movimento de volta ao passado nas práticas contemporâneas, chama a atenção especificamente para a atual moda da reconstituição de exposições antigas,14 citando como exemplo a remontagem, na Fundação Prada, pa-ralelamente à Bienal de Veneza, da exposição Quando atitudes se tornam formas, do curador suíço Harald Szeemann, que ori-ginalmente havia sido realizada em 1969, na Kunsthalle de Ber-na. Sobre essa tendência retrô Martí cita Massimiliano Gioni, curador da Bienal de Veneza:

Ou talvez seja coisa de uma geração ‘hiper-histórica’[...] Tudo está ao alcance de um clique no Google [...] É uma memória imediata, que sempre volta à superfície.15

Martí cita ainda a preocupação de João Bandeira, curador do Maria Antonia, diante da possibilidade de popularização e banalização dessa prática de remontagem: “Mas seria um problema se todos passassem a fazer isso, Seria um sarampo retrô”.16

“Sarampo retrô” ou não, fato é que a onipresença do inte-resse pela investigação ou, antes, pela apropriação e reavalia-ção artística do passado na cena contemporânea, ao mesmo tempo em que pode ser relacionada a “revivais” e “renascimen-tos” ocorridos em outras épocas, igualmente pode ser enten-dida, do ponto de vista teórico, enquanto uma voga peculiar-mente atual, marcada pela típica “face de Janus”, uma voltada à crítica da sociedade pós-industrial, e outra voltada ao fetiche do “consumo retrô”, como veremos a seguir.

14 MARTÍ, Silas. Retrovanguardas: remontagens de mostras clássicas e radicais na história da arte dominam circuitos e viram moda. Folha de S. Paulo, Ilustrada, Terça-feira, 18 de junho de 2013, p. E1.15 GIONI apud MARTÍ, op. cit., p. E1.16 BANDEIRA apud MARTÍ, op. cit., p. E1.

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Revivais, acumulações tradicionais,obsolescência tecnológica

No século XIX a Société des acquafortistes, composta por ar-tistas franceses da geração de Manet, recupera a prática da gravura em metal; a mesma geração busca soluções composi-tivas em telas de gênero espanholas e holandesas, alimentan-do os revivais de artistas como Rembrandt,17 Vermeer,18 Frans Hals,19 os irmãos Le Nain20 e Chardin;21 Gauguin esculpe segun-do a ancestral técnica dos taitianos; Picasso estuda a forma de antigas máscaras tribais africanas; os métodos de desenho tradicionais japoneses são intensamente estudados por artis-tas europeus; 22 o Cubismo retira do universo cotidiano uma prática corrente pelo menos desde o século XVIII, a da seleção e montagem de recortes tirados de jornais e revistas;23 Pollock estuda com atenção a técnica dos pintores de areia Navajo.24 Nos exemplos elencados percebemos uma série de situações aparentadas e, ainda assim, distintas: os revivais, isto é, a valo-rização de artistas que antes eram considerados menores, caso típico dos holandeses do século XVII; a recuperação, por par-

17 McQUEEN, Alison. The rise of the cult of Rembrandt. Reinventing an Old Master in Nineteenth-Century France. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2003.18 MELTZOFF, Stanley. The rediscovery of Vermeer. Marsyas, n. 2, p. 145-166, 1942.19 JOWEL, Frances Suzman. Thoré-Bürger and the revival of Hals. The Art Bulletin, v. 56, p. 101-117, 1974.20 MELTZOFF, Stanley. The Revival of the Le Nains. The Art Bulletin, XXIV, p. 295-302, 1942.21 McCOUBREY, John W. The Revival of Chardin in French Still-Life Painting, 1850-1870. The Art Bulletin, v. 46, n. 1, p. 39-53, Mar. 1964.22 GOMBRICH, E. H. The preference for the primitive. Episodes in the History of Western Taste and Art. London: Phaidon, 2002.23 ANTLIFF, Mark; LEIGHTEN, Patricia. Cubism and Culture. London: Thames & Hudson, 2011.24 CRAVEN, David. Abstract Expressionism and Third World Art: A Post-Colonial Approach to ‘American’ Art. In: MERCER, Konena (Ed.). Discrepant Abstraction. Cambridge, MA: The MIT Press; London: inIVA, 2006. p. 30-51.

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te dos artistas, de tecnologias ameaçadas pela obsolescência, caso da gravura em metal no século XIX, deixada de lado pelo mercado gráfico em detrimento de novas técnicas como a lito-gravura, a xilogravura de topo e a fotografia; a apropriação de técnicas, formas e símbolos oriundos de culturas tradicionais, muitas delas não europeias. Em comum a todas essas mani-festações a preocupação, por parte de movimentos artísticos de vanguarda, com a adoção de referências tidas como “anti-gas”, “tradicionais” ou “abandonadas” e o comprometimento com a ideia de que é possível inovar por meio da recuperação, em vários níveis e em sentido amplo, do passado. Esse anseio, entre outras coisas, pela autenticidade, pureza ou mesmo sim-plicidade comumente associadas aos artefatos e práticas do passado, se quisermos ir mais longe, pode ser identificado no mais renomado dos “revivais”, o da arte greco-romana, que se espalha pela Europa, a partir da Itália, já no século XIV.25 Além disso, tampouco se restringe ao universo das chamadas artes visuais. Para ficarmos em apenas um exemplo, Chris Brooks se dedicou a analisar o revival gótico, que já completa mais de dois séculos e que apresenta incontáveis reflexos na cultura ocidental, especialmente na anglo-americana. O advento da internet tornou mais visível e mais espraiada a comunidade dos góticos, formada principalmente por jovens, que, se por um lado, conforme Brooks, apresenta-se como uma “contra-cultura neutralizada”, por outro lado constitui-se como “um líder de mercado na indústria da herança – a dupla herança gótica de radicalismo e conservadorismo talhada de modo a se adequar ao capitalismo de consumo”.26

25 Sobre o impacto do classicismo na cultura europeia a partir do Renascimento, cf. GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn; SETTIS, Salvatore (Ed.). The classical tradition. Cambridge, Massachusetts; London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010.26 BROOKS, Chris. The Gothic Revival. London: Phaidon, 1999. p. 420. No original: “[...] a market leader in the heritage industry – gothic’s dual inheritance of radicalism and conservatism cut down to suit consumer capitalism”. Todas as traduções de trechos que, originalmente, encontram-se

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Ainda que, desde as vanguardas modernas, a cantilena do “novo” na arte tenha se insinuado como um verdadeiro dog-ma em muito do que se escreveu e em parte do que continua se escrevendo sobre as manifestações artísticas que têm lugar desde meados do século XX,27 é visível a tendência a tomar o passado seja como ponto de partida para a criação contempo-rânea, seja como território ainda não de todo explorado, no qual valores podem ser literalmente “descobertos”. Sobre a pri-meira tendência, Alexander Nadel, ele mesmo um historiador da arte comprometido com o desmanche de fronteiras rígidas entre os diferentes períodos históricos, escreve o seguinte, ten-do em mente aqui, sobretudo, o modernismo:

Momentos da história inicial do modernismo se tornam outra vez disponíveis para o pensamento e prática con-temporâneos de um modo que corresponde mais ou me-nos aos modos como reaparecem em retrospectivas, re-constituições e reutilizações que compõem tanto da arte contemporânea.28

Assim como Silas Martí, Nadel também identifica nas bienais internacionais o interesse pela seleção de obras e artis-tas do passado: “Na cultura das bienais das últimas décadas, a mescla de seleções de arte mais antiga com arte contempo-rânea se tornou um modo curatorial familiar, ainda que algo previsível”.29

em língua estrangeira são da autora.27 Sobre o que cunhou como a tradição do novo, Harold Rosenberg continua a ser uma referência incontornável. Cf. ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo: Perspectiva, 1974, e ROSENBERG, Harold. O novo como valor. In: _____. Objeto ansioso. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 229-239.28 NADEL, Alexander. Medieval Modern: Art out of time. London: Thames and Hudson, 2012. p. 23. No original: “Moments from the earlier history of modernism become newly available to contemporary thought and practice in a way more or less corresponding to the ways they surface in the retrospections, reenactments, and reuses that make up so much contemporary art”.29 NADEL, Alexander. Medieval Modern: Art out of time. London: Thames and

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As motivações para uma tal tendência são heterogêneas. Uma crítica mais imediata pode identificá-la com a mera bus-ca por novidades, por modismos e por fetiches que alimentem o interesse do público pelas grandes “exposições blockbuster”, das quais as bienais costumam ser exemplo. Há ainda a pos-sibilidade de que, em alguns casos, faça-se sentir na propos-ta curatorial aquilo que já no modernismo fora conceituado como “antimodernismo”, a atitude apropriada, segundo An-toine Compagnon, para os que realmente queriam ser “moder-nos”, isto é, desencantados com a modernidade, com o custo social de seus avanços técnico-científicos, com o seu processo de mercantilização:

Como Maritain e Du Bos o concebiam, o epíteto antimo-derno qualificava uma reação, uma resistência ao mo-dernismo, ao mundo moderno, ao culto do progresso, ao bergsonismo tanto quanto ao positivismo. Designava uma dúvida, uma ambivalência, uma nostalgia, mais do que uma rejeição pura e simples.30

Uma crítica à potencial submissão da arte contemporânea à lógica de mercado, assim como uma justificativa para a con-vivência entre novas e velhas tecnologias artísticas, entre ve-lhas e novas obras (sejam elas originalmente entendidas como arte ou não) é perceptível, por exemplo, neste trecho do texto que Massimiliano Gioni escreveu para o catálogo da 55ª Bienal de Veneza, intitulado Is everything in my mind?:

A exposição coleta obras do começo do século XX até nosso próprio tempo, mas ao invés de apresentá-las de modo linear, revela uma rede de associações através de

Hudson, 2012. p. 13. No original: “In the biennial culture of the last decades or so, the mingling of selections of older art with contemporary art has become a familiar, if somewhat kneejerk, curatorial mode”.30 COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 13.

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contrastes e afinidades, anacronismos e colisões. […]. A escolha por combinar diversos objetos – obras de arte, documentos, relíquias – não é uma polêmica gratuita, mas uma tentativa de encontrar um modo de escapar do impasse. Não devemos confinar a arte contemporânea a uma área cercada: isolar a arte significa relegá-la ao âm-bito do entretenimento, deixando-a à mercê do mercado, ou a reduzindo à tautologia da obra-prima. Pois para que a arte funcione como uma ferramenta hermenêutica com a qual se possa analisar e interpretar nossa cultura visual, ela precisa deixar seu pedestal e se aproximar mais de ou-tras aventuras existenciais.31

O estabelecimento de anacronismos seria, então, uma das estratégias para garantir a singularização32 da experiência ar-tística e do pensamento sobre arte. Tais anacronismos permi-tiriam o estabelecimento, como ressalta o curador em outra parte do texto, de séries capazes de carregar as imagens “com nova energia”. Sobre esse ponto em particular segue valiosa a teoria proposta por George Kubler em The shape of time. Kubler

31 GIONI, Massimiliano. Is everything in my mind? In: Il Palazzo Enciclopedico/The Encyclopedic Palace. La Biennale di Venezia. 55. Esposizione Internazionale d’Arte, v. I. Venice: Marsilio Editori, 2013. p. 23. No original: “The exhibition gathers works from the early twentieth century to our own time, but rather than presenting them in a linear fashion, it reveals a web of associations through contrasts and affinities, anachronisms and collisions. [...]. The choice to combine diverse objects – artworks, documents, relics – is not a gratuitous polemic, but an attempt to find a way out of an impasse. We must not herd contemporary art into a fenced-off area: isolating art means relegating it to the realm of entertainment, leaving it at the mercy of the market, or reducing it to the tautology of the masterpiece. For art to function as a hermeneutical tool with which to analyze and interpret our visual culture, art must come off its pedestal and come closer to other existential adventures”. 32 Estou pensando aqui no clássico conceito de singularização elaborado por Chklovski, que consiste na descrição de algo como se fora “visto pela primeira vez”, de modo a garantir a novidade da imagem assim criada. Tal conceito é desenvolvido a partir da análise da obra de Tolstoi. Cf. CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. 4. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. p. 46.

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estabelece em sua teoria uma tipologia geral relacionada à vida e à morte dos objetos feitos pelo homem: é deste modo que se ocupa com sequências formais abertas e fechadas, com reno-vações técnicas, obsolescência, fadiga estética, séries expan-didas e valores posicionais. Sem dúvida práticas curatoriais recentes como a defendida por Gioni se propõem a criar séries anacrônicas de obras que alteram seus valores posicionais, e nesse sentido muito do que não pertencia antes à esfera da arte erudita contemporânea passa a ser dotado, também, não ape-nas (para retomarmos uma discussão tradicional da história da arte, como veremos adiante) do valor histórico que even-tualmente já possuía, mas ainda de valor artístico. Mais do que isso, essa perspectiva que elege o anacronismo como prática coaduna-se com a definição do que é “atualidade” oferecida por Kubler, uma resposta à pergunta que já era insistentemen-te colocada por seu mestre, Henri Focillon:

Agora, como no passado, na maior parte do tempo a maioria das pessoas vive por meio de ideias emprestadas e sobre acumulações tradicionais, e ainda assim a cada momento todo o tecido está sendo desfeito e um novo é urdido para substituir o antigo, enquanto de tempos em tempos todo o padrão estremece e racha, fixando-se em novas formas e figuras.33

Na bela imagem de Kubler, que abrange um universo maior do que aquele da arte, o tecido que constitui a vida concreta das pessoas aqui e agora é em parte constituído pelo “antigo”, pelo que chama de “acumulações tradicionais” – podemos lembrar aqui, também de Walter Benjamin, quando, em chave inver-

33 KUBLER, George. The shape of time. Remarks on the history of things. New Haven and London: Yale University Press, 1962. p. 17-18. No original: “Now and in the past, most of the time the majority of people live by borrowed ideas and upon traditional accumulations, yet at every moment the fabric is being undone and a new one is woven to replace the old, while from time to time the whole pattern shakes and quivers, settling into new shapes and figures”.

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sa, fala no “passado carregado de ‘agoras’”.34 Tais acumulações, como pudemos observar, encontram cada vez mais abrigo em propostas curatoriais e em práticas artísticas de nossos dias. Uma parte delas diz respeito, no entanto, não a tradições es-pecificamente artísticas, mas a tradições tecnológicas que en-frentam aquilo a que Kubler já havia feito referência, a obso-lescência.

Antes de tudo, definamos “tecnologia”. Opto aqui pelos con-ceitos bastante abrangentes elencados por Li-Hua, segundo os quais tecnologia é aquilo que corresponde “aos meios através dos quais aplicamos nossa compreensão do mundo natural à solução de problemas práticos” ou ainda algo que “cria coisas que beneficiam os seres humanos”.35 Se tais definições têm como potencial fragilidade justamente a excessiva abrangên-cia, um desafio à precisão, por outro lado, pelo mesmo moti-vo, permitem que coloquemos lado a lado tanto as tecnologias industriais mais sofisticadas como aquelas de natureza e apli-cação mais simples, tradicional e circunstanciada. Podemos aproximar assim, nesse sentido amplo, a tecnologia utilizada para a elaboração da gravura em metal daquela necessária para a produção de filmes super-8.

A obsolescência tecnológica, por sua vez, constitui-se como matéria crescente de reflexão e mesmo de ação política. As transformações sofridas pelo mundo em função da chamada Revolução Industrial foram muito precocemente abordadas por pensadores das mais variadas áreas, entre eles Benjamin, recém citado. Uma das preocupações despertadas por esse novo cenário, segundo Pierre Francastel, era o das “consequên-

34 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: _____. Walter Benjamin: Obras escolhidas, v. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e História da Cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 229-230.35 LI-HUA, Richard. Definitions of technology. In: OLSEN, Jan Kyrre Berg; PEDERSEN, Stig Andur; HENDRICKS, Vincent F. A companion to the philosophy of technology. Oxford, UK: Blackwell Publishing Ltd., 2009. p. 19. No original:

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cias sociais do progresso técnico”.36 Temia-se, como afirma Francastel, que esse processo de mecanização resultasse, entre outras coisas, no “triunfo da preguiça” junto aos integrantes da sociedade.37

Somou-se a preocupações como essas outras, agora asso-ciadas ao destino dos resíduos industriais, aos materiais des-cartados, aos produtos consumidos e tornados obsoletos. A obsolescência programada havia se consumado como prática industrial corrente pelo menos desde 1923, quando a General Motors instituiu a mudança anual de modelos de automóvel, a fim de adquirir vantagem sobre sua concorrente, a Ford.38 Contudo, a expressão “obsolescência programada”, que iria designar essa prática, apenas ganha uso corrente a partir de 1955, quando, como nos explica Jonathan Sterne, um “artigo na Business Week notava que o modelo da GM de design indus-trial, que havia sido tomado da indústria automobilística, esta-va do mesmo modo se transferindo para outras indústrias de consumo”.39 A obsolescência programada colabora para que se

36 FRANCASTEL, Pierre. Art et technique aux XIXe et XXe siècles. Paris: Gallimard, 1956. p. 99.37 Nesse mesmo contexto podemos situar a célebre desconfiança com relação às novas técnicas de reprodução, salientada por Detlev Schöttker, que cita uma crítica particularmente dura de Adolf Behne: “Porém, no seu artigo Das reproduktive Zeitalter [A era reprodutiva] (1917), ele [Adolf Behne] manifestava ressalvas ao novo desenvolvimento: ‘Por que nossa época é tão pobre em matéria de produção? – Porque ela é tão rica na reprodução! Reproduzir é somente técnica. [...] As pessoas não percebem quanto o nosso horizonte tem se estreitado’”. SCHÖTTKER, Detlev. Comentários sobre Benjamin e A obra de arte. In: BENJAMIN, Walter et al. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 49.

38 Cf. STERNE, Jonathan. Out with the Trash: on the future of New Media. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 20-21.39 STERNE, Jonathan. Out with the Trash: on the future of New Media. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 21. No original: “[…] a Business Week article noted that GM’s model of industrial design, which had caught on in the automobile

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instale, nas sociedades contemporâneas, um problema consi-derável, o de como lidar com o acúmulo de objetos produzidos em massa e destinados ao rápido descarte, seja pelo desgaste dos materiais utilizados, seja pela já mencionada obsolescên-cia tecnológica. Conforme Thomas Misa, proliferam os estudos de consumo, a partir da perspectiva do usuário, que procuram detectar de que modo os consumidores desviam criativamente os objetos, muitas vezes obsoletos, de seus usos habituais, en-contrando para eles funções não raro inusitadas.40 Até mesmo sites especializados em itens descartados ganham visibilidade na Internet, como o caso da Found Magazine, descrito por Char-les Acland:

A recuperação e revalorização de artefatos e modas des-cartados podem também ser vistas em locais como Found Magazine e seu website foundmagazine.com, para o qual as pessoas contribuem com polaróides, contas de serviços públicos, fragmentos de áudio, apelos pessoas indecifrá-veis, e uma variedade de outras coisas efêmeras em papel, de listas de compras a ameaças rabiscadas em papel de carta.41

Além do acúmulo de objetos, que podem ou não receber uma sobrevida através de uma destinação criativa, constata--se a convivência, quando se trata especificamente de tecno-

industry, was moving to other consumer industries as well”.40 Cf. MISA, Thomas J. History of Technology. In: OLSEN, Jan Kyrre Berg; PEDERSEN, Stig Andur; HENDRICKS, Vincent F. A companion to the philosophy of technology. Oxford, UK: Blackwell Publishing Ltd., 2009. p. 7-17.41 ACLAND, Charles. Introduction: Residual Media. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. XIV. No original: “The retrieval and revalorization of discarded artifacts and fashions can also be seen in venues like Found Magazine and their Web site foundmagazine.com, to which people contribute Polaroids, utility bills, audio fragments, cryptic personal pleas, and a variety of other paper ephemera from shopping lists to threats scratched on notepaper”.

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logias, entre as novas e as velhas.42 Para analisar tal situação, conforme explica Michelle Henning, surge o conceito de “re-midiação”:

Essa familiarização do novo ou do recente é um aspecto do que J. David Bolter e Richard Grusin haviam denomi-nado “remidiação”. Esse conceito chama a atenção para os modos como o novo e o velho se interceptam e coexis-tem. Refere-se tanto ao conteúdo como aos processos das mídias, ao ato de retrabalhar o conteúdo de uma mídia em outra mídia, à transformação de uma mídia em outra, e à hibridização de mídias.43

O exemplo dado por Henning é o da fotografia: a fotografia digital, segundo ela, mais do que suprimir a fotografia quími-ca (por alguns chamada hoje de tecnologia alternativa), acaba por transformá-la e relocalizá-la; além disso, tem se tornado corrente a reinserção comercial de “câmeras obsoletas” (caso da Lomo) em culturas alternativas.44 42 Sobre esse ponto específico, cf. NORONHA, Fábio Jabur de. Por todas as partes: um medo compartilhado de viver nas redes, a partir do campo da arte, pela distribuição audiovisual (não) mediada por especialistas. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2013 (tese de doutorado). p. 21: “De qualquer forma, a coexistência de aparelhos de diferentes épocas não nos é estranha. Os menos recentes são cultivados, muitas vezes como objeto de fetiche, como versões desatualizadas mas que continuam exercendo suas funções programadas de maneira particular, com rastros de algumas das partes mecânicas instaladas no seu corpo [...]”.43 HENNING, Michelle. New lamps for old: Photography, obsolescence and social change. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 49. No original: “This familiarization of the new or novel is one aspect of what J. David Bolter and Richard Grusin have termed ‘remediation’. This concept draws attention to the ways old and new intersect and coexist. It refers to both the content and the processes of media, to the reworking of one medium’s content in another medium, the transformation of one medium into another, and the hybridization of media”.44 HENNING, Michelle. New lamps for old: Photography, obsolescence and social change. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 56. Para um exemplo da

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A coexistência física de artefatos e de tecnologias com origem temporal distinta ocorre em paralelo com o convívio virtual anacrônico entre “artefatos”, artísticos ou não, de dife-rentes épocas, possibilitado pela Internet. Will Straw chama a atenção para o fato de que as novas tecnologias da comunica-ção têm contribuído enormemente para o aprofundamento do interesse pelo passado, à medida que disponibilizam ao gran-de público, em escala inédita, uma série de conteúdos (filmes, gravações musicais, imagens, livros, etc.) que, de outro modo, permaneceriam fechados em arquivos e acessíveis a poucos. Segundo Straw, então,

o CD, o DVD, e a Internet são tecnologias cuja “novidade” não deve obscurecer seu papel na renovação da vida eco-nômica e semiótica de artefatos mais antigos. Revigoran-do o passado, e desacelerando processos de obsolescên-cia, as novas tecnologias tornaram, de modo consistente, o passado mais ricamente variado e denso.45

A observação da convivência entre as diferentes gerações tecnológicas suscitou mesmo a proposta de que as próprias distinções entre “nova” e “velha” tecnologia sejam abandona-das, como argumenta Lisa Parks:

Frequentemente esconder-se na diferenciação entre ve-lhas e novas mídias é também uma aceitação negligente da lógica capitalista (tal como a da obsolescência progra-mada) usada para regular os ciclos de vida dos hardware de eletrônicos e computadores. Ao continuar a usar ter-

difusão da “lomografia” no Brasil. cf.: http://www.lomography.com.br/45 STRAW, Will. Embedded Memories. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 12. No original: “The CD, the DVD, and the Internet are technologies whose ‘newness’ should not obscure their role in renewing the economic and semiotic life of older artifacts. Reinvigorating the past, and slowing down processes of obsolescence, new technologies have consistently rendered the past more richly variegated and dense”.

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mos como velhas e novas mídias sem nossa reflexão ou análise, os estudiosos da mídia crítica correm o risco de inadvertidamente reforçar os imperativos dos fabrican-tes e vendedores de eletrônicos, que têm tudo a ganhar com tal distinção.46

Veremos a seguir que tanto a discussão sobre a obsolescên-cia tecnológica, aqui muito brevemente comentada, quanto a internet, para o artista Ernesto Neto esse “acontecimento do futuro que abriu uma porta gigantesca para o passado”,47 com seus milhões de bancos de dados e arquivos das mais variadas dimensões e finalidades, vão afetar muito diretamente o traba-lho do artista na contemporaneidade.

46 PARKS, Lisa. Falling Apart: Electronics Salvaging and the Global Media Economy. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. 33. No original: “Often lurking within the differentiation of old and new media is also an idle acceptance of capitalist logics (such as structured obsolescence) used to regulate the life cycles of electronic and computer hardware. By continuing to use terms such as old and new media without our reflection or analysis, critical media scholars risk inadvertently reinforcing the imperatives of electronics manufacturers and marketers who have everything to gain from such distinction”.47 NETO apud MARTÍ, Silas. Retrovanguardas: remontagens de mostras clássicas e radicais na história da arte dominam circuitos e viram moda. Folha de S. Paulo, Ilustrada, Terça-feira, 18 de junho de 2013, p. E1.

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Crise decisiva do artista, pós-produção, coleção, arquivo

Aby Warburg (1866-1929), autor particularmente revalori-zado pelos estudos visuais, é hoje, na verdade, como sabemos, um dos elos entre as disciplinas da História da Arte e da Cultu-ra Visual. Para o seu famoso Atlas Mnemosyne, o bem conheci-do projeto de exposição de fotografias e reproduções que ele, a partir de 1924, levou a cabo com a ajuda de seu assistente Fritz Saxl, Warburg escreveu uma pequena introdução, da qual ex-traio a passagem seguinte, particularmente relevante para o tema que proponho discutir agora:

A necessidade de tratar com o mundo das formas corres-pondentes a valores expressivos pré-definidos – proce-dam eles do passado ou do presente – significa para todo o artista que queira fazer valer sua particularidade a crise decisiva. A consciência de que este processo teve uma sig-nificação de uma magnitude inusitada, e até agora vista por alto, para a formação dos estilos no Renascimento europeu conduziu ao presente ensaio de Mnemosyne, que em sua base material de imagens não pretende ser outra coisa do que um inventário dessas formas demonstravel-mente pré-existentes, que exigiam do artista, ou o distan-ciamento, ou a reanimação dessa massa de impressões duplamente agrupadas.48

Warburg cunha uma imagem de grande valor para o mo-mento contemporâneo, marcado pela hiperprodução de obje-tos, hiperprodução essa em boa parte regida por aquilo que, como acabamos de ver, já há muito tempo vem sendo denomi-nado de “obsolescência programada”. Warburg fala em “crise decisiva”, a crise que o artista enfrenta ao se deparar com uma multidão de objetos, em termos concretos, ou com o legado do 48 WARBURG, Aby. Mnemosyne: Introducción. In: _____. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2010. p. 4.

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passado, para falarmos metaforicamente.49 O Atlas Mnemosyne é a tentativa de dar corpo a essa crise em um contexto histó-rico específico, o do renascimento italiano, mediante o agru-pamento de imagens que estavam ali, disponíveis, soluções potenciais para os dilemas criativos dos artistas. As obras dos artistas podem ser entendidas assim como o resultado da cri-se, como a consolidação de escolhas, opções e, sobretudo, des-cartes em meio a um legado variado e complexo de imagens, de fontes visuais. O grande interesse de Warburg é, portanto, agora conforme o entendimento de Fernando Checa, “a figura do artista, a psicologia da criação, e o processo de produção de imagens e ideias, que concebe como algo mental [...]”.50 Ob-servando a tentativa de Warburg de procurar reconstituir uma 49 Quando penso no modo como a hiperprodução e o acúmulo de objetos alteram e complexificam nosso campo de observação, não posso deixar de lembrar daquele grau a mais de complexificação de tal cenário, o conceito de inconsciente óptico elaborado por Benjamin a partir da constatação de que as então novas tecnologias como a câmera captam maior número de detalhes do objeto focado, afetando nossa percepção: “Por meio de grandes planos, do foco em detalhes ocultos nos objetos familiares e da investigação de ambientes comuns graças à direção genial da câmera, o filme amplia a visão sobre as coerções que regem o nosso cotidiano e é capaz de nos assegurar um campo de ação enorme e insuspeitável! Bares e avenidas, escritórios e quartos mobiliados, estações de trem e fábricas pareciam nos aprisionar irremediavelmente. Então vem o cinema, com a dinamite dos seus décimos de segundo, e explode esse mundo prisional, permitindo que empreendamos viagens aventureiras no meio desses escombros. Com primeiros planos amplia-se o espaço; com a câmera lenta, o movimento. Por meio da ampliação, temos acesso não apenas a uma visão mais nítida daquilo que normalmente vemos, mas também aparecem novas configurações estruturais da matéria. Da mesma maneira, a câmera lenta tampouco nos traz somente os padrões de movimento conhecidos, mas descobre nisso, que é conhecido, o desconhecido, ‘que não aparece como o retardamento de movimentos rápidos, mas como movimentos deslizantes, oscilantes, sublimes’”. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter et al. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 25-26.50 CHECA, Fernando. La idea de imagen artística em Aby Warburg: el Atlas Mnemosyne (1924-1929). In: WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2010. p. 138.

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série de crises decisivas de artistas da Idade Moderna, torna--se particularmente significativa a interpretação dada por Didi-Huberman para seu deslocamento de interesse de uma Kunstwissenschaft, algo que perseguia na juventude, para uma Kulturwissenschaft. A remontagem do cenário disparador da cri-se decisiva exigia, como bem percebeu Warburg, uma gama de imagens maior do que aquela oferecida pelo universo da arte, pois já na Idade Moderna uma série de elementos que pode-riam ser considerados extra-artísticos estavam, no entanto, aptos a potencialmente contribuir para a elaboração de uma obra de arte. Didi-Huberman conclui, assim, que a “Kulturwis-senschaft de Warburg acabou, portanto, por abrir o tempo dessa história”.51

Recorri, até aqui, em alguns momentos, ao conceito de imagem, e é necessário esclarecê-lo. Se por um lado Whitney Davis, em A general theory of Visual Culture, a certa altura define a imagem panofskiana como eminentemente óptica (referin-do-se aqui ao termo inglês image, e não picture),52 Annie Duprat em Images et Histoire: outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques, chama a atenção para a multiplicidade de sen-tidos comportada pelo termo, identificando “a imagem como representação mental, a imagem como metáfora e a imagem figurada”.53 É esta multiplicidade que tenho em mente ao utili-zar a palavra imagem aqui.

Retomando agora o fio da meada, André Malraux, em sua famosa obra Le musée imaginaire, dedicou-se a analisar o fenô-meno dos “museus portáteis”, do acesso às imagens de obras de arte, amplamente possibilitado pelo mercado editorial e gráfico. Uma das consequências dessa portabilidade e acessi-

51 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. p. 41.52 DAVIS, Whitney. A general theory of Visual Culture. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2011. p. 204.53 DUPRAT, Annie. Images et Histoire: outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques. Paris: Éditions Belin, 2007. p. 3.

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bilidade seria a possibilidade de aproximações inusitadas en-tre obras de contextos diversos, algo que Malraux explora em seu texto. Assim sendo, poderíamos entender, talvez, como uma das possibilidades da “abertura do tempo” da história da arte, que Didi-Hubermann atribui a Warburg, essa abertura de um museu imaginário a que Malraux se refere.54

Diante de tantas imagens, mesmo que nos restrinjamos aqui à acepção apresentada por Malraux, estreitamente asso-ciada à reprodutibilidade técnica da indústria gráfica (e outras terminologias podem ser acionadas, como veremos, amplian-do a complexidade do cenário), permanece candente o pro-blema formulado por Warburg, o da crise decisiva do artista. Tal problema permite, e mesmo pede que pensemos em outro núcleo de interesse da história e da historiografia da arte, em especial, a saber, aquele relacionado ao julgamento de valor da obra de arte. A obra será o resultado das escolhas do artista a partir de sua crise decisiva; após sua execução, agora partici-pante do mundo (o esquema que estou apresentando aqui se adequa bem aos objetos tradicionais da história da arte, bem entendido, e não tão bem a diversas manifestações contempo-râneas que prescindem da materialidade), caberia a historia-dores e críticos de arte estabelecer seu “valor”. Esse problema ocupava Lionello Venturi e seu discípulo Argan, que discutiu detidamente a questão no ensaio História da Arte.55 Uma outra leitora atenta de Argan, a historiadora da arte Hanna Levy, que no Brasil, atuando junto ao Sphan, também dedicou um ensaio

54 MALRAUX, André. Le Musée Imaginaire. Paris: Gallimard, 2008. p. 15-16: “Aujourd’hui, un étudiant dispose de la reproduction en couleurs de la plupart des oeuvres magistrales, découvre nombre de peintures secondaires, les arts archaïques, les sculptures indienne, chinoise, japonaise et précolombienne des hautes époques, une partie de l’art byzantin, les fresques romanes, les arts sauvages et populaires. [...]. Car un Musée Imaginaire s’est ouvert, qui va pousser à l’extrême l’incomplète confrontation imposée par les vrais musées [...]”. 55 ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte. In: _____. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 13-72.

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ao tema, intitulado Valor artístico e valor histórico: um importante problema da história da arte (1940, Revista do SPHAN).

Hanna Levy, não nos esqueçamos, uma historiadora da arte de formação moderna, herdeira de teorias gerais baseadas em princípios complementares (pensemos nas alternâncias entre clássico e barroco, de Wölfflin, que, aliás, foi tema de sua tese de doutorado em Paris56), propõe que o valor artístico da obra é intrínseco por natureza, dizendo respeito sobretudo a seus méritos formais, técnicos e mesmo simbólicos. Já o valor histó-rico é extrínseco, e pode ser avaliado pelo impacto que a obra causa ao longo do tempo. Assim sendo, podemos ter obras com grande valor artístico e baixo valor histórico, e vice-versa.57

O valor histórico, bem entendido, não é atributo exclusivo do mundo da arte, muito pelo contrário. Precisamos ter isso em mente para o próximo passo de meu argumento. Recorro agora a W. J. T. Mitchell, um dos principais teóricos ameri-canos da chamada cultura visual, que também se manifestou sobre a questão do valor, pensando agora em nosso cenário contemporâneo:

A razão para tanta incerteza em torno do que é o valor da arte deriva do fato de que muito frequentemente toma-mos a decisão de antemão sobre algo ser ou não valioso – isto é, como se já dispuséssemos de uma metodologia para chegar a uma decisão. Penso que de fato aprende-mos o que são as melhores coisas, o que são as boas coisas, quando realmente olhamos as obras de arte, e às vezes mudamos nossas opiniões sobre o que vale como ‘bom’.58

56 Cf. LEVY, Hanna. Henri Wölfflin. Sa théorie. Sés prédécesseurs. Rottweil: Rothschild, 1936. 57 Cf. LEVY, Hanna. Valor artístico e valor histórico: importante problema da História da Arte. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n. 4. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, p. 181-192, 1940.58 W. J. T. MITCHELL apud DIKOVITSKAYA, Margaret. Visual Culture. The study of the visual after the Cultural Turn. Cambridge, Massachusetts; London, England: The MIT Press, 2006. p. 71.

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Ele apresenta aqui um entendimento não essencialista de valor (divergindo assim de Levy), mas antes nominalista. O valor da arte depende de nossa decisão, ao invés de ser uma característica inerente à obra. Em sua afirmação fica evidente, mais uma vez, o entendimento de valor como algo formulado a posteriori, por quem observa a obra. Mas eu gostaria de retroce-der aqui à crise decisiva do artista, mencionada por Warburg, a fim de abordarmos um outro fator que pode, de algum modo, iluminá-la: a superabundância contemporânea de imagens à disposição do artista, por um lado, bem como a superabun-dância de procedimentos e objetos resultantes da obsolescên-cia tecnológica programada, de velhas tecnologias que, grosso modo, não eram usadas em seu período áureo necessariamen-te com finalidade artística. Um dos aspectos da crise decisiva do artista contemporâneo parece dizer respeito ao julgamen-to do valor histórico de uma série de imagens e de tecnologias que, de outra maneira, seriam legadas ao esquecimento. São inúmeros os artistas que, hoje, utilizam, de modo direto ou in-direto, velhas tecnologias ou seus resultados como meios, ou mesmo como objetos de suas obras. A revista americana Octo-ber, que prima por detectar, muito precocemente, tendências intelectuais e artísticas no cenário contemporâneo,59 em 2002 propôs a um grupo de vinte e um artistas, como William Ken-tridge (que em 2013 realizou grande exposição na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre), Richard Serra, Allan Sekula e Luis Camnitzer, entre outros, um pequeno questionário jus-tamente sobre o tema da obsolescência, que resultou no dossiê intitulado Obsolescence, publicado em seu volume 100.60 Logo na Introduction o pensamento de Walter Benjamin sobre a obsoles-cência é evocado:

59 Por exemplo, tornou-se um divisor de águas o questionário sobre cultura visual publicado pela revista em 1996. Cf. ALPERS, Svetlana et al. Visual Culture Questionnaire. October, v. 77, p. 25-70, Summer, 1996. 60 BAKER, George et al. Artist Questionnaire: 21 Responses. October, Vol. 100, Obsolescence, p. 6-97, Spring, 2002.

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Entremeada em seus escritos sobre novas mídias como a fotografia, e em seu encontro com o Surrealismo, Benja-min encontrou um potencial liberador na experiência da obsolescência, ou, como ele a chamava, do “fora de moda” – liberador porque oferecia um ponto de vista exterior ao que alguns viam como as ambições totalizadoras de cada nova ordem tecnológica.61

Esse elogio ao “ponto de vista de fora” da “nova ordem tec-nológica”, representado pela própria obsolescência, é também identificado em parte das respostas do grupo de artistas ao questionário. Foi realizado, de igual modo, a partir de tais res-postas, um breve mapeamento do posicionamento dos artistas frente à obsolescência:

[…] uma adoção de objetos rejeitados contrapostos aos im-perativos funcionais do design contemporâneo (Robbins + Becher, Christian Philipp Mfiller, Silvia Kolbowski, Luis Camnitzer, Martha Rosler); uma exploração de espaços marginais, vernaculares, ou de algum modo especiais, co-locados contra as potenciais homogeneizações do global (Allan Sekula, Judith Barry, Zoe Leonard, Gerard Byrne); uma reconexão com modelos de política radical amea-çados em uma era do espetáculo (Nils Norman, Nancy Davenport, Matthew Buckingham and Joachim Koester); uma intensificada mineração da história e da especifici-dade dos agora putativamente descartados meios recupe-rados das presas de sua erradicação (Richard Serra, Ta-cita Dean, Tom Burr, Pierre Huyghe, William Kentridge, Liisa Roberts).62

61 Introduction. October, v. 100, Obsolescence, p. 3-5, Spring, 2002. p. 3. No original: “Threaded through his writings on new media such as photography, and through his encounter with Surrealism, Benjamin found a liberating potential within the experience of the obsolescent, or, as he called it, the “outmoded”-liberating because it offers a point of view outside what some see as the totalizing ambitions of each new technological order”.62 Introduction. October, Vol. 100, Obsolescence, p. 3-5, Spring, 2002. p. 3-4.

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A orientação política do dossiê sobre o tema é reforçada no parágrafo conclusivo, que chama a atenção para a potencial radicalidade política da obsolescência, fenômeno privilegiado por teoricamente ocorrer às margens dos discursos que reafir-mam a necessidade de constante inovação tecnológica:

Esta é uma edição especial, oferecida com a esperança e a convicção de que a condição da obsolescência pode ter um papel crítico a desempenhar neste momento históri-co, particularmente se a obsolescência funcionar em rela-ção às aspirações totalizadoras com frequência atribuídas à tecnologia de uma maneira mais radical do que o modo como o consumo tem sido posicionado (dentro dos Estu-dos Culturais) em relação ao espetáculo, isto é, como um espaço de resistência.63

Mais recentemente vários outros pesquisadores norte--americanos têm se debruçado sobre o tema, para ele propon-do outros enfoques além desse de obsolescência como “espaço de resistência”. Tal é o caso de Kelly Baum, Kaskell Curator of Modern and Contemporary Art no Princeton University Art No original: “[…] an embrace of cast-off objects poised against the functional imperatives of contemporary design (Robbins + Becher, Christian Philipp Mfiller, Silvia Kolbowski, Luis Camnitzer, Martha Rosler); an exploration of marginal, vernacular, or otherwise particular spaces set against the potential homogenizations of the global (Allan Sekula, Judith Barry, Zoe Leonard, Gerard Byrne); a reconnection with threatened models of radical politics in an age of spectacle (Nils Norman, Nancy Davenport, Matthew Buckingham and Joachim Koester); an intensified mining of the history and specificity of now putatively discarded mediums salvaged from the teeth of their eradication (Richard Serra, Tacita Dean, Tom Burr, Pierre Huyghe, William Kentridge, Liisa Roberts)”.63 Introduction. October, v. 100, Obsolescence, p. 3-5, Spring, 2002. p. 5. No original: “It is a special issue offered with the hope and belief that the condition of obsolescence might have a critical role to play at this historical moment, particularly if obsolescence functions in relation to the totalizing aspirations often attributed to technology in a manner more radical than how consumption has been positioned (within Cultural Studies) in relation to spectacle, i.e., as a site of resistance”.

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Museum. Baum está preparando uma exposição prevista para 2015, intitulada New Ruins, cujo tema será, segundo suas pró-prias palavras, “o uso de tecnologias obsoletas e motivos ana-crônicos na arte contemporânea”.64 Ela apresentou em Atenas, no ano de 2011, uma palestra homônima sobre esse projeto, de-finido por ela, no texto de divulgação do evento, nos seguintes termos:

Ao longo das últimas duas décadas, artistas demonstra-ram um fascínio não apenas pela história e pelo passa-do, mas mais especificamente pelo incongruente e não--síncrono – isto é, por estilos, mídias, e temas que são deliberadamente deslocados e conscientemente fora do tempo. Para esses artistas, o fora de moda é uma forma, bem como um meio e um tema. O apelo do fora de moda manifesta-se na arte que utiliza técnicas como silhuetas, teatro de sombras, stop animation, clay-mation, filmes de 16 mm, projetores de slide e cartuchos 8 bit Nintendo, entre outras – técnicas que são associadas, falando em termos gerais, a desqualificação, constrangimento e valores de baixa produção. As melhores dentre essas obras são auto--reflexivas, com o que quero dizer que abarcam e refletem sobre a obsolescência simultaneamente. Tais obras são importantes para o campo da história da arte por outras razões também: não apenas sugerem os modos pelos quais os artistas se posicionam vis-à-vis ao passado a fim de melhor compreender tanto o presente como o futuro da arte, como também abordam a relação da arte contem-porânea com o tempo – especificamente com o presente ou com o que é, com frequência, denominado contempo-raneidade.65

64 Lecture by Kelly Baum curator of Modern and Contemporary Art at Princeton University Art Museum. Disponível em: http://www.benaki.gr/index.asp?lang=en&id=203000001&sid=1085 Acesso em: 20 jun. 2013.65 Lecture by Kelly Baum curator of Modern and Contemporary Art at Princeton University Art Museum. Disponível em: http://www.benaki.gr/index.asp?lang=en&id=203000001&sid=1085 Acesso em: 20 jun. 2013. No original: “Over the last two decades, artists have demonstrated a fascination not only with history and

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A ênfase aqui, mais do que no uso político da obsolescência ressaltado no dossiê da October, é no emprego anacronístico de objetos, equipamentos e técnicas “fora de moda” e no que isso pode representar para a concepção temporal do momento ar-tístico contemporâneo.

Um outro exemplo é Garnet Hertz, que publicou no Leonar-do Eletronic Almanac, em 2012, o artigo Art after New Media. Ex-ploring Black Boxes, Tactics and Archaeologies. Hertz concentra-se especificamente na reutilização das tecnologias obsoletas da informação, reconhecendo uma variada gama de motivações para essa exploração da “caixa preta da tecnologia” pelos artis-tas: desejo de mudança social, desejo de “provocar curto-cir-cuito e reconectar o passado histórico ao presente”.66 A análise de Hertz, além de reafirmar o potencial criativo associado ao recurso a velhas mídias, também toca em outro tópico impor-tante quando se investiga esse tema, a questão do problema so-cial em que se constituiu a destinação do lixo eletrônico, como se pode ler a seguir:

Juntas, estas táticas de reutilização são úteis para repen-sar o papel da tecnologia nas media arts e desafiar critica-mente conceitos culturais mais amplos de progresso e de

the past, but more specifically with the incongruous and non-synchronous—that is, with styles, media, and themes that are deliberately out of place and consciously out of time. For these artists, the outmoded is a form as well as a medium and a subject. The appeal of the outmoded manifests itself in art that utilizes techniques such as silhouettes, shadow puppets, stop animation, clay-mation, 16 mm film, slide projectors, and 8 bit Nintendo cartridges, among others—techniques that lend themselves, generally speaking, to deskilling, awkwardness, and low production values. The best of these works are self-reflexive, by which I mean they embrace and reflect on obsolescence simultaneously. Such works are important to the field of art history for other reasons as well: not only do they suggest the ways in which artists position themselves vis-à-vis the past in order to better understand both the present and future of art, they also address the relationship of contemporary art to time—specifically to the present or to what is often referred to as contemporaneity”.66 HERTZ, Garnet. Art after New Media. Exploring Black Boxes, Tactics and Archaeologies. Leonardo Electronic Almanac, v. 17, n. 2, p. 212.

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obsolescência programada. Ainda que o problema cultu-ral do lixo eletrônico seja uma questão que não possa ser resolvida unicamente através de redefinição criativa, ar-ticular e explorar o tópico da reutilização é essencial para mudar os pressupostos do avanço tecnológico, do que sig-nifica ser inovador, e de como conceitualizar o excedente eletrônico como uma plataforma rica para o desenvolvi-mento criativo.67

A muito ampla questão do uso contemporâneo de velhas tecnologias, em alguns momentos, portanto, cruza com outros pontos fortes na pauta política contemporânea, como a preo-cupação com a poluição do planeta, com o desenvolvimento de tecnologias limpas e, sobretudo, com a defesa da reciclagem e do reaproveitamento de bens fabricados com materiais não biodegradáveis.

Um outro enfoque ao tema é dado por Daniela Pérez, Cura-dora da Nuvem da 9ª Bienal do Mercosul, no artigo que publi-cou, em 2012, na revista Fahrenheit: Art Contemporain. Nouvelles Technologies, intitulado Old Technologies in contemporary art. Ali, depois de constatar o uso, por uma grande quantidade de ar-tistas contemporâneos, de tecnologias agora “velhas” como os filmes em super-8 e os projetores de slides, Pèrez conclui que

Certamente a relação entre a arte contemporânea e a his-tória é cada vez mais recorrente e visível. Através disso, na produção corrente mostramos o conteúdo que prioriza um constante resgate de histórias remotas e negligencia-

67 HERTZ, Garnet. Art after New Media. Exploring Black Boxes, Tactics and Archaeologies. Leonardo Electronic Almanac, v. 17, n. 2, p. 212. No original: “Together, these tactics of reuse are useful in rethink ing the role of technology in the media arts and critically challenging wider cultural concepts of prog ress and planned obsolescence. Although the social problem of electronic waste is an issue that cannot be solved solely through creative repurposing, articulating and exploring the topic of reuse is essential in shift ing assumptions of technological advancement, what it means to be innovative, and how to conceptualize electronic surplus as a rich platform for creative devel opment”.

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das, novos pontos de vista sobre eventos e histórias que aguardam por ser retranscritas, e mesmo meios e mídias audiovisuais específicas que também estabelecem uma relação com a revisão contemporânea das narrativas his-tóricas que estão sendo analisadas.68

Na análise de Pérez maior espaço é dado a outra ques-tão premente na arte contemporânea, aquela relacionada às narrativas. Trata-se, para ela, então, não apenas de apropria-ção formal, por parte dos artistas, de objetos obsoletos ou tec-nologias superadas ou de arquivos (tema sobre o qual tornare-mos a falar, por ter-se constituído como área de investigação própria), mas de reavaliação e recriação de “narrativas históri-cas”, que precisam ser vistas sob novos ângulos.

Para podermos retornar a essa questão crucial quando se trata de reutilização de velhas tecnologias, qual seja, a da “re-criação de narrativas” por meio de tais tecnologias, é preciso antes acompanharmos mais alguns poucos exemplos escolhi-dos dentro do vasto universo de artistas que aderiram ao inte-resse geral pelo “obsoleto”.

Comecemos pela entrevista realizada por Eleanor Whitney com Bridget Elmer e Emily Larned, as artistas americanas res-ponsáveis pelo Impractical Labor in the Service of the Speculative Arts (ILSSA), cujo objetivo maior é congregar os interessados, oriundos de diversas áreas, no desenvolvimento de usos ino-vadores para “tecnologias obsoletas” (Obsolete Technologies, ou 68 PÉREZ, Daniela. Old Technologies in contemporary art. Fahrenheit: Art Contemporain. Nouvelles Technologies. Année 9, n. 60, p. 105-107, 10 Feb. 2012. p. 106. No original: “Certainly, the relationship between contemporary art and history is evermore reoccurring and visible. Through this, in current production we show content that prioritizes a constant rescue of remote and neglected histories, new points of view on events and stories that are looking to be retranscribed, the reevaluation and interpretation of archives and documents, and even, means and specific audiovisual mediums that also establish a link to the contemporary revision of the historical narratives that are being analyzed”.

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OT). Como desdobramento desse projeto, de 2008, Elmer e Larned conceberam, no ano seguinte, o Obsolete Technology Lab. Na entrevista elas definem, antes de mais nada, quais são exa-tamente as OT utilizadas com maior recorrência pelos mem-bros da ILSSA:

OT empregados por nossos membros incluem ferrotipias, cerâmica, robótica, caligrafia, histórias em quadrinhos, fibras, máquinas de escrever, livros descartados, vídeo analógico, escrita de cartas, Polaróides, tubos de vácuo, gravura, encadernação artesanal, e coleção de sementes.69

As artistas também refletem sobre o que as atraiu ao uso de OT, e sobre que mensagem tal uso pode enviar a uma socie-dade de consumo baseada na rápida rotatividade de “produtos novos”:

Gostamos da qualidade lenta, meditativa do processo, da reutilização de um velho equipamento, da caçada e da co-leta de tal equipamento ao longo de uma vida de prática, do autodidatismo envolvido em aprender algo que comu-mente não é ensinado, de seu ceticismo embutido com relação à nova novidade baseada no consumidor, do fato de que o tempo nele depositado nunca pode ser adequa-damente compensado e de que essa compensação não era o objetivo da atividade. Foi então que nos demos conta, “Aha! Tecnologia obsoleta!. Temos que encontrar outros criadores que usem Tecnologia Obsoleta (OT)”.70

69 WHITNEY, Eleanor. An Interview with Impractical Labor in the Service of the Speculative Arts by Eleanor Whitney. 23/05/13 NYFA News. Disponível em: www.nyfa.org/nyfa_current_detail.asp?id=17&fid=1&curid=924&print=true ¼. Acesso em: 30 abr. 2013. No original: “OT employed by our membership includes tintypes, ceramics, robotics, calligraphy, comic books, fibers, typewriters, deaccessioned books, analogue video, letter writing, Polaroids, vacuum tubes, printmaking, hand bookbinding, and heirloom seed saving”.70 WHITNEY, Eleanor. An Interview with Impractical Labor in the Service of the Speculative Arts by Eleanor Whitney. 23/05/13 NYFA News. Disponível em: www.nyfa.org/nyfa_current_detail.asp?id=17&fid=1&curid=924&print=tr

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Outros projetos e exposições de natureza semelhante estão em andamento nos Estados Unidos. No momento em que este texto está sendo escrito, por exemplo, ocorre em Elmsford, pe-quena cidade do estado de Nova York, na Greenburgh Public Library, a exposição Artists in the Archives: A Collection of Card Catalogs, composta por três instalações. Uma delas, concebida pela artista Carla Rae Johnson, chama-se Alternet e consiste em um armário de biblioteca, em madeira, daqueles usados para arquivar fichas com o registro da localização dos livros na bi-blioteca, contendo cinquenta gavetas. No lugar das fichas, no entanto, ela colocou 15.000 obras de arte originais, de tamanho padronizado (7,6 x 12,7 cm), de um total de 75 artistas. Susan Hodara, autora da resenha sobre a exposição recentemente publicada no The New York Times, apresenta-a justamente como “uma exposição que revitaliza os equipamentos de biblioteca tornados obsoletos pela tecnologia digital em meados dos anos 1990”.71

Nicolas Bourriaud já havia apontado, como característica forte da geração de artistas que atua a partir, sobretudo, da dé-cada de 1990, o que chama de “pós-produção”, isto é, a iniciati-va de criar obras de arte a partir da apropriação de objetos, ain-da tendo no horizonte o modelo representado por Duchamp. A questão da narrativa reaparece, com força, em sua análise: “Desse modo, Duchamp completa a definição do termo: criar ue ¼. Acesso em: 30 abr. 2013. No original: “We like the slow, meditative quality of the process, the reuse of old equipment, the hunting and gathering of such equipment over a lifetime of practice, the self-education involved in learning something uncommonly taught, its embedded skepticism of new consumer-based novelty, the fact that the time poured into it could never be adequately compensated and that compensation wasn’t the point of the activity. This is when we realized, “Aha! Obsolete technology. We should find other makers who use obsolete technology (OT)”.71 HODARA, Susan. An old technology, transformed. The New York Times, May 18, 2013. Disponível em: wap.nytimes.com/2013/05/19/nyregion/artists-in-the-archives-at-greenburgh-public-library-in-elmsford.html?from=arts. Acesso em: 23 mai. 2013. No original: “an exhibition that revitalizes library tools rendered obsolete by digital technology in the mid-1990s”.

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é inserir um objeto num novo enredo, considerá-lo como um personagem numa narrativa”.72

Também é sugestivo o subtítulo escolhido para O uso dos objetos, primeiro capítulo de sua obra Pós-Produção, a saber, A feira de usados, forma dominante da arte dos anos 1990. Neste sub-capítulo Bourriaud coloca como lugar privilegiado nesse novo cenário, por se constituir como marco zero da criação contem-porânea, como ponto de origem e de inspiração para as obras que estão por ser concebidas, a feira de usados, repleta de ob-jetos de segunda mão, disponíveis para a realocação em novas obras e, por conseguinte, em novas narrativas:

A feira de usados, portanto, é o lugar para onde con-vergem produtos de várias procedências, aguardando novos usos. A velha máquina de costura pode se tornar uma mesa de cozinha, um objeto publicitário de 1975 ou um enfeite para a sala. Numa homenagem involuntária a Marcel Duchamp, trata-se de atribuir “uma nova ideia” a um objeto. Um item antes utilizado de acordo com o con-ceito com que fora produzido encontra novas possibilida-des de uso nas bancas de artigos de segunda mão.73

Briques, sebos, mercado de pulgas, brechós, lojas de anti-guidades são as novas “Passagens” por onde trafega uma mul-tidão de jovens artistas que, em plena “crise decisiva”, busca materiais para seus projetos. Linda Fregni Nagler procurou, nesse tipo de local, ao longo de quase dez anos os 997 instan-tâneos, daguerreótipos, impressões em albumina e ferrotipias, produzidas entre as décadas de 1840 e 1920, que compõe a ins-talação The Hidden Mother (2006-13), atualmente em exibição

72 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 22.73 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 27. É importante salientar que esta obra foi originalmente publicada em francês em 2004.

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na 55ª Bienal de Veneza.74 Nagler selecionou um tipo específi-co de retrato, aquele que mostra crianças pequenas que eram seguradas pelas mães (ou, bem mais raramente, pais) ocultas por tecidos variados – cortinas, véus, etc. Os longos tempos de exposição exigiam esse recurso, a fim de que a criança se mantivesse tranquila durante a tomada do retrato, e passava despercebido aos observadores da época. A atenção do obser-vador costumava se concentrar no milagre técnico do retrato realista da criança, e a mãe escondida que a segurava não era percebida como ruído na imagem.75 O trabalho da artista con-sistiu, então, em selecionar e dispor essa grande quantidade de retratos como uma coleção, de modo a colocar em primeiro plano, como elemento agregador do conjunto, precisamente o que antes ficava escondido, a figura da mãe (ou do pai).

Tanto a associação ILSSA, fundada por Bridget Elmer e Emily Larned, quanto as instalações Alternet, de Carla Rae Johnson, e The Hidden Mother, de Linda Fregni Nagler, estru-turam-se a partir disso que é chamado por Bourriaud de “pós--produção” e por Charles Achland de “estratégias de acomoda-ção”. Este procedimento recoloca em outros termos a questão proposta por Hanna Levy, relacionada ao valor histórico da obra de arte. O valor histórico nominalmente negado ao obje-to, à tecnologia ou à imagem por sua obsolescência, é reafirma-do pela escolha feita pelo artista, que introduz esses elementos em outra cadeia de sentido, em outra série. Achland chama a atenção para essa característica de parte do trabalho artístico contemporâneo, remetendo a Bourdieu:

74 Cf. Il Palazzo Enciclopedico/The Encyclopedic Palace. La Biennale di Venezia. 55. Esposizione Internazionale d’Arte, v. I. Venice: Marsilio Editori, 2013. p. 316-319.75 Cf. NICOLAO, Federico. The Hidden Mother. Linda Fregni Nagler’s research at the Venice Biennale is made up of 997 images of women: hidden by their children, they reveal women’s role in society between nineteenth and twentieth centuries. Domus, Veneza, 21 June 2013. Disponível em: http://www.domusweb.it/en/art/2013/06/17/the_hidden_mother.html. Acesso em: 01 jul. 2013.

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Pierre Bourdieu notou que talvez não haja indicação mais reveladora de capital cultural do que a habilidade de con-ferir valor ali onde antes se presumia não haver nenhum. Mercados de arte desempenham um papel importante aqui, e os artistas há muito reorquestram suas práticas em relação a materiais descartados e técnicas de antiquá-rio. De modo similar, connoisseurs de todos os tipos, tudo estimando, de partituras a globos de neve, convertem modos de apreciação e expertise em uma organização de gosto e valor.76

Uma das maneiras privilegiadas para essa reinserção é a adoção do formato da coleção ou do arquivo. O recurso da cole-ção é, aliás, brilhantemente descrito por Walter Benjamin, em Passagens:

É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desliga-do de todas as suas funções primitivas a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completu-de. O que é esta “completude”? É uma gloriosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção. [...].77

76 ACLAND, Charles. Introduction: Residual Media. In: ACLAND, Charles (Ed.). Residual Media. Minneapolis, London: University of Minneapolis Press, 2007. p. xiii-xxvii. No original: “Pierre Bourdieu noted that there is perhaps no more telling indication of cultural capital than the ability to bestow value where there had previously been presumed to be none. Art markets play an important role here, and artists have long reorchestrated their practices in relation to discarded materials and antiquarian techniques. Similarly, connoisseurs of all types, cherishing everything from sheet music to snow domes, convert modes of appreciation and expertise into an organization of taste and value”. Acland se refere aqui a A distinção. Cf. BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. Porto Alegre: Zouk, 2007.77 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 239.

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A questão da inserção do objeto em um novo sistema ou série, analisada, como vimos, por Bourriaud e Achland através de diferentes conceitos, é antecipada aqui por Benjamin. Se a “arte de colecionar” a que se refere Benjamin, que também im-plica necessariamente no desenvolvimento de uma nova “nar-rativa” para o conjunto de objetos coletados, pode ser praticada por qualquer pessoa, fato é que, talvez precisamente por isso, por ser compatível com a noção de que o trabalho do artista é algo próximo ao cotidiano, algo não “extraordinário”, mas “or-dinário”, acaba por fim sendo incorporada com força ao arse-nal de práticas artísticas contemporâneas.

O arquivo é outro dispositivo de “acumulação de ob-jetos” que se apresenta como tema conexo ao da coleção. Luiz Cláudio da Costa, no entanto, faz uma observação importante: “Colecionar e arquivar, ainda que próximas, são duas opera-ções distintas”.78 A coleção tradicionalmente envolve a elei-ção de um padrão estruturador, e pode ter uma intenção de mapeamento temático, tipológico ou formal. Assim podemos entender as coleções de selos, de moedas, de postais, etc., que normalmente são organizadas e realizadas a partir de determi-nadas regras estabelecidas pelo colecionador: selos alusivos às Olimpíadas, moedas do período do Império no Brasil, postais do Rio de Janeiro da década de 1950. O arquivo, por outro lado, do modo como vem sendo entendido contemporaneamente, é um “acúmulo” de objetos com valor documental que desperta discussões sobre o próprio tecido da narrativa da história de si e do mundo. Ruth Rosengarten percebe mesmo uma transição da preferência geral pela coleção para aquela pelo arquivo, res-saltando seu uso na reconstrução de histórias pessoais:

O interesse pela coleção e pela categorização, tal como herdado das epistemologias dos séculos XVIII e XIX, e das demandas com vista à ordenação e compreensão do

78 COSTA, Luiz Cláudio da. O artista an-arquivista: os dispositivos de coleção na arte contemporânea. Revista Porto Arte, v. 18, n. 30, p. 77-89, Maio 2011. p. 81.

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mundo empírico, é agora declinado a favor da narrativa e da história. Com as teorias da fusão das esperas políti-ca e pessoal importadas do feminismo e das políticas de identidade, e com o aumento do interesse pela história e pela semiótica da vida quotidiana, todas as matérias se tornam, necessariamente, matérias históricas, e a tarefa de recordar e arquivar faz de cada indivíduo o historiador de si próprio [...].79

Luiz Cláudio da Costa, por outro lado, chama a atenção para outra dimensão do arquivo que tem atraído artistas e teó-ricos, a dos arquivos institucionais, com as questões de poder a eles inerentes:

Do Iluminismo à crise do documento na Moder-nidade, um longo processo estendeu-se até que o arquivo pudesse ser compreendido como espaço discursivo junto ao qual são desenvolvidas práticas de poder e mecanismos de organização, disposição e autorização do saber.80

O chamado “giro” (ou “viragem”) arquivístico também foi abordado por Anna Maria Guasch, que, amparada em Fou-cault, esboça uma breve genealogia dessa tendência:

Desde o final da década de 1960 até a atualidade se cons-tata entre artistas, teóricos e curadores de exposições uma constante criativa ou um “giro” em direção à con-sideração da obra de arte “enquanto arquivo” ou “como arquivo”, que é o que melhor encaixa com uma geração de artistas que compartilham um interesse comum pela arte da memória, tanto a memória individual como a memó-ria cultural, a memória histórica e que buscam introduzir

79 ROSENGARTEN, Ruth. Entre memória e documento: a viragem arquivística na arte contemporânea. Lisboa: Museu Coleção Berardo, 2012. p. 22.80 COSTA, Luiz Cláudio da. O artista an-arquivista: os dispositivos de coleção na arte contemporânea. Revista Porto Arte, v. 18, n. 30, p. 77-89, Maio 2011. p. 81.

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significado no aparentemente hermético sistema concei-tual e minimalista do qual partem – a maioria dos artis-tas foi etiquetada como «conceituais», mas seu recurso ao índice, aos sistemas modulares, à fotografia objetiva, à coleção, à acumulação, à sequencialidade, à repetição, à série,..., nada tem de “tautológico”, buscando antes transformar o material histórico oculto, fragmentário ou marginal em um fato físico e espacial. E nesses casos, o arquivo, tanto de um ponto de vista literal quanto de um metafórico, é entendido como o lugar legitimador para a história cultural. Como afirma o filósofo Michel Foucault, o arquivo é o sistema de “enunciabilidade” através do qual a cultura se pronuncia sobre o passado.81

É possível notar nesse trecho também que Anna Maria Guasch parece subordinar a coleção ao princípio, para ela mais geral, do arquivo. Não é minha intenção aqui aprofundar a discussão em torno das definições de coleção e de arquivo. Há uma imensa bibliografia especializada sobre esses temas e não pretendo apontar distinções muito rígidas entre ambos. Em alguns momentos tais conceitos acabam sendo fundidos e nem sempre as fronteiras entre eles aparecem de modo mui-to claro. Prefiro mencioná-los aqui dentro de uma perspectiva paraláctica, sobre a qual discorrerei um pouco na última parte deste ensaio. Coleções, arquivos e o interesse pelas velhas tec-nologias parecem, de todo modo, convergir em um mesmo ho-rizonte de pensamento, sendo arriscado, e talvez inócuo, ten-tar ainda estabelecer distinções hierárquicas entre tais tópi-cos. Coleções e arquivos podem ser princípios organizacionais em uma obra artística (meio), ou ainda a fonte de materiais para a obra (origem), ou, então, o próprio foco de interesse do trabalho (fim). Com frequência os que recorrem a esses verda-deiros sistemas têm interesse por questões teóricas comparti-lhadas com a história (como a memória) ou com as ciências (a

81 GUASCH, Anna Maria. Os lugares da memória: a arte de arquivar e recordar. Trad. Daniela Kern. Revista-Valise, v. 3, n. 5, p. 237-264, Jul. 2013. p. 238.

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categorização do conhecimento). Também é recorrente a aten-ção dada à obsolescência e às velhas tecnologias por aqueles artistas que escolhem semelhantes modelos estruturantes. Em outras palavras, tais temas configuram uma parcela importan-te da “crise decisiva” de muitos artistas contemporâneos. Re-corrência não significa, no entanto, coincidência total entre os temas, bem entendido. A grande variedade de possibilidades de aproximação (e de distanciamento) de todas essas questões correlatas poderá ser percebida de modo privilegiado nas res-postas ao questionário Tradição em Paralaxe, dadas por um gru-po de jovens artistas atuantes em Porto Alegre e reproduzidas adiante. Mas antes é preciso dar a conhecer os artistas partici-pantes deste projeto, o que será feito agora.

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Sobre Tradição em paralaxe: questionário

Como pudemos acompanhar na primeira parte deste en-saio, nos últimos anos vem ocorrendo em Porto Alegre uma série de exposições de jovens artistas que trabalham, sob pers-pectivas diversas, com velhas tecnologias, oriundas tanto do universo específico da história da arte quanto de outras áreas da cultura. Tal tendência, como vimos em nossa breve explo-ração de alguns exemplos internacionais, predominantemente norte-americanos, tem recebido crescente atenção de críticos e de historiadores de arte. Ao trazer à tona esse cenário mais amplo, pretendo aqui precisamente enfatizar a inserção das práticas locais contemporâneas relacionadas à incorporação de velhas tecnologias nas experimentações e produções artís-ticas em uma visada histórica mais ampla e mais recuada, de forma a tornar possível relacionar, associar e contrastar dife-rentes modos artísticos de lidar com o legado histórico, cada vez maior e melhor documentado. Revisitar o passado é, bem entendido, um procedimento peculiar às renovações sistemá-ticas das práticas artísticas no Ocidente, que assume maior vulto a partir do século XIX, quando se acentua a busca, em sentido bastante amplo, pelas “velhas tecnologias” por parte de jovens artistas que desejam se contrapor às práticas vigen-tes em seu meio. O recurso às “velhas tecnologias” é um dos possíveis “reversos da medalha” da obtenção de novos efeitos e de novos conceitos em Artes Visuais, e também uma estrutu-ra subterrânea que se apresenta como constitutiva do sistema das artes, sob as mais variadas configurações, praticamente desde o seu surgimento.

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Assim sendo, ainda que tenha há pouco explorado sucin-tamente o conceito de arquivo, bastante corrente hoje, e que tenha tocado de igual modo em conceitos tradicionais, como o de revival, ou autorais, como o de pós-produção, prefiro usar agora como mote a noção que dá título ao projeto, a de “tradição em paralaxe”, que pode ser entendida, tomando de empréstimo a Slavoj Zîzek a forma como define este último termo em seu livro Visão em paralaxe, como um “confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento neutro comum”.82 A reto-mada de “velhas tecnologias” pela novíssima geração de artis-tas contemporâneos poderia ser entendida, assim, como uma prática que, ao mesmo tempo em que apresenta afinidades com práticas artísticas passadas, mais evidentes talvez quan-do técnicas artísticas tradicionais, como a gravura, são persis-tentemente empregadas, ancora-se, por outro lado, em bases diversas, particularmente marcadas pela rápida ascensão das novas tecnologias da comunicação e da informação, pelo po-sicionamento, muitas vezes crítico ou nostálgico, com relação à obsolescência programada e por um interesse acentuado em temas como narrativa e memória.

É importante destacar, antes de prosseguirmos com o de-talhamento deste projeto e com a apresentação dos artistas selecionados para integrá-lo, que uma das peculiaridades da história da arte no Rio Grande do Sul é o fato de que o moder-nismo chegou tarde ao Estado. Além disso, uma de suas facetas não seria propriamente a busca de novas linguagens ou mate-riais, mas sim uma proposta de “volta ao passado”, pelo recur-so a “velhas tecnologias”, como a gravura, e a velhas temáticas, como a vida no campo, ambas características tão presentes no

82 ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. A metáfora da paralaxe já havia aparecido, por exemplo, em Hal Foster, a fim de questionar as alegadas fronteiras entre o modernismo e o pós-modernismo. Cf. FOSTER, Hal. Postmodernism in Parallax. October, n. 63, p. 4-20, Winter 1993.

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trabalho, por exemplo, do Clube de Gravura proposto pelo Gru-po de Bagé, que se inspirou no realismo socialista e no Taller de Gráfica Popular (TGP).83 Semelhante precedente torna ain-da mais instigante revisitar o tema da força do interesse pelas “velhas tecnologias” no sul do país,84 mais especificamente na cidade de Porto Alegre, que atrai jovens artistas de todo o Es-tado.

Com isso em mente, e por considerar fundamental dar vi-sibilidade à reflexão crítica que está sendo produzida contem-poraneamente por jovens artistas atuantes em Porto Alegre, elaborei um questionário com cinco questões que deveriam ser respondidas por e-mail. A primeira delas diz respeito à formação da cultura visual de cada um dos artistas, e solicitei também que enviassem uma imagem que, nesse contexto de constituição da própria visualidade, fosse por eles considerada marcante. A segunda questão explora o que pensam os jovens artistas sobre os revivais que observam na história da arte, fa-

83 KERN, Maria Lúcia Bastos. A emergência da arte modernista no Rio Grande do Sul. In: GOMES, Paulo. Artes plásticas no Rio Grande do Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007. p. 50-75; AMARAL, Aracy. A experiência dos Clubes de Gravura. In: _____. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970. 2. ed. São Paulo: Nobel, 1987. p.173-225; GRUPO DE BAGÉ. Trajetórias. Porto Alegre: CEF – Projeto CEF Resgatando a Memória, 1996 (Curadoria e texto de Marilene Burtet Pietá). [Catálogo] 84 Muitas vezes nesse texto, a começar pelo próprio título, faço referência ao sul do país. Os artistas escolhidos para responder ao questionário Tradição em paralaxe, contudo, são todos atuantes, como o próprio ensaio deixa claro, na cidade de Porto Alegre. Essa relação paraláctica entre o sul geral, expresso, e a constatação implícita de que os artistas na verdade atuam predominantemente em uma das localizações permitidas por essa definição é proposital. O adjetivo “gaúcho” é, a nível local, fortemente conotado, associado a inúmeras questões, como aquela que diz respeito à busca, algo essencialista, da definição de uma identidade única, muitas vezes contrastante com a do restante do país. Neste trabalho, no entanto, por pretender deixar mais evidentes as relações entre parte do que é feito aqui no momento por jovens e o que se pensa globalmente, em especial a respeito das velhas tecnologias e da obsolescência tecnológica, opto por evitar, para designações gerais, o adjetivo “gaúcho”, já consagrado pelo uso.

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tor integrante da complexa equação que envolve o interesse pelas velhas tecnologias. A terceira questão procura esclarecer em que medida o ambiente visual anacrônico da Internet tem impacto no processo criativo dos jovens artistas selecionados. A quarta questão destina-se às poéticas pessoais dos jovens ar-tistas, enfatizando a maneira como se relacionam com as ve-lhas tecnologias. A última questão, por fim, visa averiguar se o fenômeno do emprego de velhas tecnologias na arte contem-porânea é percebido por esse grupo de artistas como predomi-nantemente local ou global.

As respostas às questões são acompanhadas por retratos e currículos resumidos dos artistas, por imagens de suas refe-rências visuais, de seu ambiente de trabalho e de algumas de suas obras.

Os artistas selecionados para este projeto têm em comum, além do interesse pelas velhas tecnologias, pela faixa etária e pelo fato de, presentemente, atuarem em Porto Alegre, o in-vestimento na formação acadêmica. Todos eles cursam ou con-cluíram cursos de pós-graduação em Artes Visuais (mestrado e/ou doutorado) no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UFRGS, e são autores, portanto, de reflexões teó-ricas sobre as próprias poéticas artísticas. É importante notar que curso de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, ao qual está vinculada a maior parte dos professores que atuam no PPGAV e pelo qual passaram muitos dos artistas aqui en-trevistados, abre grande espaço ao trabalho artesanal em ate-liê, oferecendo um amplo conjunto de disciplinas em desenho, pintura, gravura, escultura, cerâmica e técnicas antigas de fotografia, fazendo-se presentes também novas tecnologias como fotografia digital e computação gráfica. Além disso, to-dos esses jovens artistas estão envolvidos em uma ativa agenda (local, nacional e/ou internacional) de exposições individuais e coletivas. Se tantos fatores os aproximam, acompanhando suas respostas teremos a oportunidade de constatar a peculiaridade de suas poéticas e o modo próprio como cada um deles se si-

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tua no âmbito do fenômeno do uso contemporâneo das velhas tecnologias. Veremos que muitos deles dominam tecnologias obsoletas (fotografia analógica, gravura, super-8, slides, etc.), ou então optam por simulá-las com o auxílio de novas tecnolo-gias, ou de mesclá-las entre si, gerando resultados híbridos. Os artistas podem recorrer à apropriação de objetos ou artefatos antigos, que muitas vezes são modificados para a construção de nova obra, ou ainda podem inseri-los em uma série de ob-jetos com os quais se relacionam a partir de algum padrão co-mum (uma “coleção”). Os artistas, em tom irônico ou poético, podem propositalmente assumir a “carga histórica” que vem com a adoção de uma velha tecnologia, ou podem deixá-la em segundo plano, colocando-a a serviço da construção de uma realidade poética ficcional ou alternativa, de uma proposição anacrônica ou paraláctica. Sejamos, agora, brevemente apre-sentados a eles.

Fernanda Gassen (1982) reverbera em suas fotografias en-cenadas antigas poses e estruturas compositivas da tradição da História da Pintura europeia, coletadas em obras do barro-co holandês e do impressionismo francês.85 Para a 9ª Bienal do Mercosul contribuiu com fotografias analógicas.

Guilherme Dable (1976) em suas performances sonoras cria desenhos mediante “instrumentos preparados” (instrumentos forrados com papel carbono, “velha tecnologia” recuperada para a elaboração de desenhos), e em sua dissertação de mes-trado se mostrou particularmente atento à questão do tempo e da memória.86

85 Cf. a publicação da artista que é resultado da Bolsa Iberê Camargo, com a qual foi contemplada em 2011: GASSEN, Fernanda. Cidade-Jardim: direção de passeios e parques para refeições ao ar livre. Porto Alegre, Buenos Aires: Gráfica Trindade, 2013, e ainda GASSEN, Fernanda. Banquetes e Convescotes: traços da pintura e da literatura na proposição de foto-eventos. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (texto de qualificação de doutorado).86 Cf. DABLE, Guilherme Figueras. Tempo como matéria, tarefa como possibilidade: música improvisada e imagens despojo. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (dissertação de mestrado).

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Laura Cattani (1980) e Munir Klamt (1970), artistas multi-mídia do grupo Ío, constroem complexas realidades alternati-vas a partir de uma série de elementos, alguns deles remetendo à estética do cinema p&b, como aquele das décadas de 1920, 1930 e 1940.87

Jander Rama (1978) produz linóleogravuras de fundo azul e tracejado branco, que simulam antigos projetos de engenha-ria; recorrendo conscientemente à cianotipia como metáfora da obsolescência tecnológica, tema tratado em sua dissertação de mestrado, com base, entre outros, em Georges Simondon.88

Marielen Baldissera (1990) cria fotografias em p&b que investigam as técnicas fotográficas de representação do mo-vimento empregadas no século XIX, e também tem interesse, em sua reflexão teórica, por tópicos como tempo, memória e nostalgia.89

Marina Guedes (1985) desenvolve novas histórias, em seus desenhos, muitos deles efêmeros, a partir de velhas coleções de fotografias familiares coletadas em vários pontos do Rio Gran-de do Sul,90 abordando, em sua pesquisa teórica, vinculações possíveis entre memória e narrativa.

Michel Zózimo (1977) elabora sofisticadas construções ficcionais a partir do imaginário presente nas ilustrações de

87 Cf. CATTANI, Laura. O Estranho Equívoco de A. Hilzendeger Feltes: A convergência de narrativas incompossíveis. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (dissertação de mestrado), e SOUZA, Munir Klamt de. Autotélico. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2011 (dissertação de mestrado).88 Cf. RAMA, Jander. (IM)PROVÁVEIS: processos híbridos envolvendo o desenho técnico e a gravura na construção da metáfora do homem-máquina. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2013 (dissertação de mestrado).89 Cf. BALDISSERA, Marielen. Impermanências: o rastro que inscreve a lembrança. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2013 (trabalho de conclusão de curso).90 Cf. GUEDES, Marina. Entre Apagamentos e Contundências: Desenho/Fotografia/Memória. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (texto de qualificação de mestrado).

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textos de divulgação científica publicados em enciclopédias, manuais, livros e cartilhas entre as décadas de 1940 e 1970,91 concebendo tal literatura obsoleta como uma “potente máqui-na de desvios”.92

Nara Amelia Melo (1982) borda e grava em um estilo que alude diretamente à ilustração do século XIX, como aquela praticada por Grandville, uma série de animais em situações oniricamente perturbadoras, revelando preocupação tanto com a noção de anacronismo quanto com a de nostalgia de um passado sem localização definida.93

Rafael Pagatini (1985) elabora, através de referenciais da fotografia contemporânea, pungentes imagens obtidas por meio de xilogravura, tradicionalíssima “velha tecnologia” da História da Arte,94 sendo central em sua poética o conceito de memória.

Rochele Zandavalli (1980) se apropria de retratos fotográ-ficos antigos e neles intervém com bordado, criando um con-traste não apenas formal, pois a cor da linha se destaca junto ao preto e branco da fotografia, mas de sentido, pois a imagem resultante permite novos percursos narrativos.

Em suma, com o intuito de contribuir para o mapeamento dessa jovem geração de artistas visuais do sul do Brasil, o pro-

91 Cf. ROCHA, Michel Zózimo da. Assim que for editado, lhe envio. Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2013; ROCHA, Michel Zózimo da. ARQUIVO EDITADO: O imaginário na ciência e em outros fluxos. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (texto de qualificação de doutorado) e ZÓZIMO, Michel. O Reino das Fontes. Porto Alegre: Museu Portátil, 2009.92 ZÓZIMO, Michel. Resolução de equilíbrio. Disponível em: http://www.michelzozimo.com/fluxorama.html. Acesso em: 20 mai. 2013.93 Cf. SILVA, Nara Amélia Melo da. Alegorias do Estranho. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (texto de qualificação de doutorado), e NARA AMÉLIA. O Mundo é uma Fábula. Porto Alegre: Santander Cultural – Projeto RS Contemporâneo, 2012 (Curadoria e texto de Orlando Maneschy). [Catálogo] 94 Cf. PAGATINI, Rafael. Marcas e transposições da memória: reflexões sobre procedimentos utilizando a gravura. Porto Alegre: PPGAV/Instituto de Artes/UFRGS, 2012 (dissertação de mestrado).

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jeto Tradição em Paralaxe: A novíssima arte contemporânea sul-bra-sileira e as “velhas tecnologias”, contemplado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais 2012, procurou, aci-ma de tudo, registrar sua reflexão sobre as velhas tecnologias, a fim de favorecer a formação de um panorama mais complexo e nuançado do atual cenário artístico brasileiro, que leve em conta a estreita relação da contemporaneidade com sua cultu-ra visual e tecnológica pregressa. Assim sendo, e uma vez que já foram apresentados nosso tema e questões teóricas essen-ciais, a estruturação do questionário e a nominata de artistas que a ele gentilmente responderam, passemos agora às respos-tas em si, o coração pulsante de Tradição em paralaxe.

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TRADIÇÃO EM PARALAXE: QUESTIONÁRIO

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1. Falar que vivemos em um mundo superpovoado de ima-gens já se tornou um truísmo, e mesmo disciplinas acadêmicas relativamente jovens, como os Estudos Visuais, partem desse pressuposto. Com essa afirmação em mente, te pergunto, para começarmos nossa entrevista, como se deu, em linhas gerais, a formação da tua própria “cultura visual”. O que visualmente te chamou e chama a atenção? Gostaria que discorresses um pouco sobre como percebes essa jornada pessoal de formação do próprio olhar, considerando o tipo de “matéria visual” com a qual já te deparaste.

2. Há um fenômeno recorrente na história da arte que me interessa em particular e que se encontra na origem deste pro-jeto, o dos chamados “revivais”. O revival da arte greco-romana pelo Neoclassicismo é bastante conhecido; outro caso de desta-que, no século XIX, é o florescimento do interesse pela pintura de gênero holandesa e espanhola, interesse que migra da esco-la realista para a institucionalização acadêmica. Há um sem--número de revivais na história da arte moderna, e a tendên-cia continua perceptível nas correntes contemporâneas, ainda que agora possamos pensar em revivais mais abrangentes, que podem se referir não apenas aos domínios da história da arte, mas ainda aos de inúmeras outras áreas suscetíveis de serem incorporadas pela arte atual, como as ciências. Considerando que hoje somos todos também “observadores de revivais”, não apenas no mundo das artes, mas ainda em outros territórios da cultura, te ocorrem exemplos de artistas que trabalham com algo recuperado do passado, em sentido mais geral (um tema, uma forma, uma ideia, uma técnica), ou especificamente com revisitações à história da arte? Nos exemplos que escolheste te parece que essa relação com o passado que os artistas estabele-cem em suas obras poderia ser um fim em si mesmo (um retor-no nostálgico ou uma recuperação da memória, por exemplo), ou seria antes um meio para a proposição de questões diversas

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(sendo aqui os elementos do passado usados como peças dis-poníveis para a construção de novos sentidos)?

3. Não me parece exagero afirmar que a Internet alterou ra-dicalmente o acesso que temos às imagens. Esse ambiente vir-tual permite a pesquisa e a descoberta de uma aparentemente infindável miríade de imagens das mais variadas naturezas, vinculadas à cultura popular ou à alta cultura, ou ainda o que James Elkins chama de imagens não-arte. Os tantos bancos de dados virtuais acessíveis através da Internet permitem, assim, um amplo acesso a imagens e a documentos que podem, em sentido geral, ser classificados como “históricos”. Em teu pro-cesso criativo que espaço ocupa a consulta a esse “museu ima-ginário” virtual, que torna sempre presentes o contemporâneo e o antigo?

4. Gostaria agora que falasses sobre os teus próprios traba-lhos, sobretudo sobre aqueles que, de um modo ou outro, lidam de algum modo com “materiais do passado” (documentos, tec-nologias, referências visuais ou teóricas, ou mesmo temas tais quais a “memória”).

5. Para concluirmos esta conversa, entre tantas outras ten-dências visíveis no complexo cenário da arte contemporânea, pensas que poderíamos identificar uma “globalização” do inte-resse pelo passado? Ou te parece que esse diálogo que alguns artistas estabelecem hoje com fontes mais antigas, com tecno-logias obsoletas, com documentos históricos caracterizariam um fenômeno nacional, ou mesmo local?

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RESPOSTAS

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Fernanda Gassen [1982, São João do Polêsine, RS]

Artista, pesquisadora e professora de artes visuais no Cap-UFRGS. É doutoranda em artes visuais pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul – UFRGS e editora da Revista-Valise. Exposições e pro-jetos recentes incluem: 9º Bienal do Mercosul, 2013; Mostra Conti-nuum – Espacio de Arte Contem-poráneo, Montevidéu, Uruguai, 2013; 64º Salão Paranaense, 2012-2013; Foto-Eventos Picnic, Centro Cultural Kavlin, Punta del Leste, 2011; Bolsa Iberê Camargo, Porto

Alegre, 2011; Ficciones: encuentro bienal de fotografía e nuevos medios, Fundación Pablo Atchugarry, Maldonado, Uruguai; Plataforma Diálo-gos Abertos - Perdidos no Espaço, Porto Alegre, 2011; Conversações – Coleção Especial de Livros de Artistas, Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG, Belo Horizonte, 2010.Foto: acervo da artista

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FERNANDA GASSEN

1. Em minha trajetória, essa superdosagem de imagens chegou relativamente tarde. Durante boa parte de minha for-mação elas não eram percebidas ou tão conscientemente no-tadas como atualmente. Muito embora, hoje, as imagens que realmente me chamam atenção sejam as constantes em livros ou revistas e as mediadas por um ecrã. Algumas coisas que se perpetuam, desde a infância, são a atração pelos retratos anti-gos em preto e branco e imagens de férias familiares. Alguns destes já viraram material de trabalho. Quando criança tinha a mania de bisbilhotar as caixas de fotos de família e hoje elas estão comigo, quase todas. Meu imaginário fotográfico vem daí. Faz algum tempo recuperei uma imagem específica que guardava na minha memória, uma foto de um velório que fica-va na casa da minha avó, junto desta encontrei muitas outras. Hoje tenho uma pequena coleção destas imagens mórbidas que via na infância em meio aos retratos de família e tantas ou-tras ocasiões registradas. Aos doze anos ganhei uma máquina fotográfica de aniversário, uma automática simples que tenho até hoje. Minha relação com a fotografia se deu por aí, inicial-mente. Nesta época, a televisão era o espaço midiático para ter contato com imagens, os filmes da sessão da tarde, as novelas que ainda não estavam sob o julgo do politicamente correto, a estética dos anos 90, os super-heróis japoneses, a Caverna do Dragão, os Thundercats, o programa da Xuxa, dentre outros. Não havia cinema na minha cidade, minha primeira experiên-cia com a grande tela foi aos treze anos, aqui em Porto Alegre. As revistas e enciclopédias ou coleções de livros infantis esta-vam muito presentes. Ainda tinha acesso às coleções de livros dos meus pais, muito material ilustrado de botânica, de culi-nária, etiqueta, coisas que hoje figuram na minha produção artística. Lembro também que a professora de artes da escola

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me levou até a UFSM, durante o Ensino Fundamental, para ver uma exposição, conhecer o Centro de Artes e Letras, esse foi meu primeiro contato com artes visuais. Alguns anos depois voltei para lá como aluna.

Como formação direcionada para as artes, penso muito mais no quanto a imaginação se prestou a dar conta disso. Durante a faculdade, tínhamos muito acesso a imagens, nos livros de arte pelas mãos de Suzana Gruber. Mas as suas histó-rias longas, ficcionalizadas ou não, sempre foram um grande material, além das suas coleções de objetos, obras, artefatos indígenas. Dentro do atelier tínhamos muito material visual e a produção de vídeo, fotografia e desenho da própria Suza-na. Além disso, as viagens para visitar as grandes exposições como a Bienal de São Paulo, a Bienal do Mercosul, dentre ou-tras, fizeram parte dessa formação imagética. Neste período, a internet não tinha tanta abrangência, nunca foi uma fonte de contato com imagens.

Neste percurso, a imagem foi se tornando um bem inevi-tável, certas qualidades percebidas nas imagens antigas me chamam muita atenção, ilustrações de livros, todo esse imagi-nário que hoje é tão difundido em distintas vias. Inicialmente, não tinha grande apreço pelas imagens da História da Arte, sobretudo a pintura, todavia, no interior dos meus percursos elas foram se tornando estrutura compositiva, formal, con-figurando o ideário dos meus procedimentos e contextos de invenção. As imagens que chamam minha atenção, hoje, são as desbotadas pelo tempo, como as fotografias predominan-temente azuladas dos anos 80-90, livros de receitas antigos e suas formas de composição de quase-naturezas mortas mais ou menos elaboradas, retratos em P&B, retratos em grupo, ce-nas de gênero. Atualmente, folheio livros e passeio por sites em busca de ideias, para mim, é do já feito que elas vêm.

2. Acho interessante iniciar esta resposta com uma frase de Cortázar em suas Estranhas Ocupações: “Temos um defeito:

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a falta de originalidade. Quase tudo o que resolvemos fazer foi inspirado – digamos francamente, copiado – de modelos cé-lebres”. Escolho aqui comentar alguns artistas em cuja obra tenho interesse e que me parecem partidários das atitudes descritas por Cortázar, com as quais compactuo totalmente. Cito Jeff Wall com as suas fotografias encenadas, cujas com-posições recorrem a imagens da História da Arte, sobretudo a Moderna, retomando questões críticas amortecidas pelo apelo do contexto institucional no qual as obras estão inseridas. Jeff Wall frequentemente se apoia nas relações entre o sujeito mo-derno retratado, conectando tais referências com um certo es-tado contemporâneo de afazia. Suas obras retomam o sentido das referências imagéticas de seu arcabouço e imprimem uma nova perspectiva através de uma nova imagem.

Cristina Lucas, em seu vídeo La Liberté Raisonneé, traz à tona uma série de questões relativas à liberdade e ao femi-nismo (bandeira que carrega com recorrência). A presença de uma jovem mulher que ativa a imagem silenciosa de Delacroix, Liberdade Guiando o Povo. Cristina deriva da imagem de Dela-croix uma ação possível e falível de um acontecimento poste-rior à imagem original. A artista proporciona tempo fílmico para uma imagem do passado estática, tendo como disparador um desconcerto diante da imagem de Delacroix, um estranha-mento diante de um símbolo tão forte da liberdade que não reverbera da imagem. Renata, assim, não parte da imagem somente como referente compositivo ou estético, insere um comentário irônico e dramático em uma figura tão forte no imaginário artístico.

A filmografia de Peter Greenaway traz também a pintura como dado imagético, sobretudo a renascentista e barroca e, por vezes, cenas das mesmas são inseridas no interior da nar-rativa. Greenaway traz a estrutura pictórica e a luz barroca para um novo modelo, o modelo de uma narrativa quase épica e desacertada.

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Partindo destes artistas, não há como considerar o retorno ou a retomada de questões como fins em si mesmos, são antes estratégias para trazer questões emergentes de tais imagens, as quais são possíveis de serem assimiladas na atualidade. Diferentemente do neoclassicismo que buscava reposicionar um ideal anterior, me parece que as atitudes artísticas atuais tratam os revivais como modelos a serem transgredidos sem nunca perder sua referência. Ou ainda, construir procedimen-tos diversos a partir de uma situação presente nas imagens originais, constituir ações decorridas das mesmas, buscar ins-truções de elaboração, reativar pontos de crise, dentre outras formas possíveis de recuperar ideias da tradição.

3. Meu processo criativo está parcialmente ancorado nesse espaço virtual. É onde flutuo nas buscas por referências, an-tecedentes, estruturas. Mas o espaço original, disparador das intenções de busca ainda são os livros. Em geral, a partir de leituras, seja História da Arte ou Literatura é que elaboro um certo roteiro de trabalho. A internet disponibiliza um rápido acesso aos meios visuais que necessito para organizar meus procedimentos, ela acelera todo o processo. Tenho muito apre-ço pelas imagens impressas, mas em termos de reprodução a internet fornece a amplificação das possibilidades de trânsito, no sentido de ter um dado específico a ser explorado. As fer-ramentas de busca da internet possibilitam uma bela viagem pelas imagens, inclusive quando nos chegam outras que nada têm a ver com as que buscamos, coisas que vão alimentando o espectro de referências visuais. Igualmente, possibilitam aces-so a uma série de documentos, textos, bibliografia, dificilmen-te tangíveis em termos físicos, como se pudéssemos estar em diversos lugares ao mesmo tempo. Hoje, para mim, se trata de um espaço de construção, de uma espécie de esqueleto de pes-quisa, que vai se ampliando por meio de livros físicos e mais e mais links. O que mais tem me chamado a atenção nestes úl-

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timos tempos são os acervos digitalizados de diversos museus ao redor do mundo.

4. Grande parte de minha produção se relaciona com mate-riais do passado. Inicio pelos procedimentos que tomam como referência momentos da História da Arte, e comentarei sobre quatro séries fotográficas. A primeira delas intitula-se Estudos de Composição: natureza-morta, para a qual utilizava objetos em miniatura na elaboração de naturezas-mortas, produzindo fundos para os cenários, buscando objetos miniaturizados, o mais próximo possível dos reais, para as composições, mon-tando as cenas em um micro-estúdio fotográfico. Neste pe-ríodo comecei a trabalhar com fotografia digital. Para estas imagens eu tinha como referência uma certa construção vin-da, sobretudo, das naturezas-mortas barrocas. Este foi meu primeiro contato com pintura para essa finalidade, extrair al-gum tipo de estrutura, instrução, modelo para produzir uma outra imagem. Em decorrência de minhas pesquisas para esta série iniciei Agenciamentos de Visita para Estudos de Composição: natureza-morta, onde fiz um deslocamento de minha casa, meu micro-estúdio, para a casa de outras pessoas. Realizava visitas para elaborar uma cena de natureza-morta, com os objetos pes-soais encontrados na residência somados a um jarro de prata que levava comigo em todos os deslocamentos. Na sequência das pesquisas me deparei com Vermeer e as cenas cotidianas dos holandeses do século XVII, as quais desdobraram o traba-lho na série Agenciamentos de Visita para Estudos de Composição: cenas de gênero. Passei então a incluir o visitado na imagem, de-senvolvendo alguma atividade que lhe era cotidiana junto de certos objetos, no interior de uma cena construída. No contex-to destas séries foi a pesquisa inicial em livros de História da Arte que construiu um panorama de referência. Das imagens pesquisadas, me interessava em princípio a composição, so-bretudo no caso das naturezas-mortas, mas no interior do per-

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curso a situação e o contexto foram tomando força, daí a ideia de visitar pessoas, entrar em suas casas e solicitar que me dei-xassem mexer em seus objetos e em alguns casos posar juntos destes elementos. Assumi assim uma sorte de procedimentos e modos de fazer dados a partir da observação de reproduções das imagens da História da Arte. Em um processo que se origi-nou do ideal compositivo e foi paulatinamente se acercando do contexto de criação das imagens que originaram o percurso.

A última série que comentarei, que se relaciona direta-mente com a História da Arte, chama-se Convescotes. Para tal trabalho organizei onze foto-eventos piquenique, para os quais convidava um certo número de pessoas para que participas-sem de um convescote, o qual teria uma interrupção momen-tânea para a realização de uma fotografia. A pausa solicitada relacionava-se a um dos objetivos do foto-evento, a realização de uma imagem diretamente relacionada a uma pintura impres-sionista de piquenique, seja em termos compositivos, seja nas poses reproduzidas. Neste contexto, a imagem da História da Arte fornece um tipo de instrução ou sugestão de ação a ser desenvolvida. A ideia de utilizar um dado tipo de ação visto em uma imagem já pronta para construir um procedimento que termina por registra-se em uma fotografia emerge do contato com uma determinada imagem, no caso Le Dejeuner sur l´Herbe, de Monet. Nesta série, além de tomar partido de uma imagem do passado para reconstituí-la em um evento, utilizo uma câ-mara analógica, médio formato, para a realização da fotogra-fia. Mesmo que os negativos quadrados sejam escaneados para a impressão, ainda resta um certo tipo de “sujeira” na imagem que é parte de meus objetivos na realização das mesmas.

Já na série Método, me afasto da relação com a História da Arte para me apropriar de coleções de livros antigos, aquelas que tratam de ensinar os bons costumes, os bons modos, e so-bretudo como se forma uma “boa mulher”. Faço uso de ma-nuais da década de 60, os quais ensinam como a mulher deve se portar diante de determinadas situações ou mesmo como

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executar bem ações cotidianas. Deste tipo de bibliografia, ex-trai as instruções para realizá-las performaticamente dian-te da câmera, estas se dividem em: como andar e como sentar. A princípio, chamou minha atenção o fato de ser necessário um livro para ensinar a realizar estas duas ações tão automáti-cas, parti desse pressuposto para a realização da série. Assim, a cada instrução realizava uma ou mais ações que deveriam dar conta de exemplificar o texto, as mesmas foram registra-das fotograficamente. Na apresentação da série, encontram-se as exemplificações visuais e textuais de cada atitude/ação, são fotografias em P&B e fundo infinito com a instrução descrita logo abaixo da(as) imagem(ns).

Em Contra-método de análise fisiognômica, também há a rela-ção entre fotografia e texto, sendo que a mesma parte da rea-lização de retratos. A elaboração dos referidos retratos segue a estrutura da fotografia criminalista de Bertillon (séc. XIX), rosto de frente e rosto de perfil, acompanhados por textos fic-cionais de análise destas faces com base em teorias da fisio-nomia mesclados com textos de literatura fantástica de Jorge Luis Borges. Os textos criados para as fotografias partem iro-nicamente de uma leitura moral e psicológica dos fotografa-dos, recorrendo a uma escrita técnica mesclada com a literária. Assim, os textos dedicados à leitura facial dos indivíduos são cruzados com diferentes contos de Jorge Luis Borges, desen-cadeando uma leitura ficcional de cada um dos fotografados.

Em ambas as séries de trabalhos os procedimentos seguem uma lógica que parte de imagens prontas, instruções ou textos, geralmente recorrendo a algum tipo de material antigo, seja para construir a composição, a ideia de uma ação, ou mesmo a tonalidade geral da proposta.

5. Acredito que esse interesse pelo passado sempre este-ve presente no âmbito da arte, seja para destruí-lo, copiá-lo, reconfigurá-lo, reestruturá-lo, dentre outras ações possíveis. No cenário atual, é quase impossível restringir uma determi-

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nada atitude ou forma a um espaço específico, também pelo acesso que a rede proporciona. Pode-se perceber que esse inte-resse pelo passado, seja qual for esse passado, constitui-se de distintas formas. Lembro-me do trabalho da artista japonesa Yuko Mohri, a qual utiliza objetos antigos e tecnologias obso-letas para construir um universo complexo de ações e reações sonoras e visuais, como pequenas operetas que funcionam em uma sincronia fina. Quase como uma instalação. Para cons-truir tudo isso recorre a objetos antigos, caixas de música, pássaros de metal, antigos brinquedos, dentre outros artigos de segunda mão. Utiliza para dar coesão a toda sua estrutura tecnologias atuais, que ficam quase desaparecidas em uma si-tuação de comando. Neste caso, vemos uma concatenação de pequenas ações, de materiais do passado, colocados em fun-cionamento por técnicas mais avançadas.

Pode-se perceber estratégias semelhantes de recorrência a técnicas antigas na obra do artista sul-africano William Ken-tridge, de maneira distinta. Kentridge utiliza técnicas antigas de reprodução e visualização de imagem em suas obras, e, em suas palavras, utiliza ferramentas que ele mesmo pode gerir.

É importante demarcar que há sim um certo fenômeno, di-gamos nacional, onde podemos citar uma série de artistas bra-sileiros que utilizam materiais e técnicas antigas, como Letícia Ramos, Luiz Roque, Cristiano Lenhardt, Michel Zózimo, Jona-thas de Andrade, dentre outros. Mas acredito que apontar esse fato como limitador espacial seria muito complexo na medida em que há diversos exemplos em outros pontos territoriais. Me parece, mesmo sendo arriscado delimitar, que neste momen-to, há um certo revival de uma estética do analógico, e, de todas as características visuais e formais que andam junto dela. Isso não somente é detectável no campo da arte, mas na televisão, cinema, música. Diante disso, ousaria dizer que o fenômeno se expande para além de nossas possibilidades de mapeamento.

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Materiais de trabalho. Foto: Fernanda Gassen.

Uma referência visual: Fotografia familiar. Foto: acervo da artista.

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Guilherme Dable [1976, Porto Alegre/RS]

Artista visual. Co-gestor do Atelier Subterrânea, espaço independente de artes visuais ativo desde 2006, onde tam-bém leciona desenho. Mes-tre em poéticas visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, trabalha com a linguagem do desenho e seus desdobramen-tos. Entre as individuais rea-lizadas, destacam-se Álibis, Desvios e Atos Falhos (Galeria Eduardo Fernandes, São Pau-lo/SP, 2013), Latentes (Sala Recife, Recife/PE, 2013), De-senho em Obra (Casa Parale-la, Pelotas/RS, 2012) e Alguns

Desenhos (Galeria Gestual, Porto Alegre/RS, 2009). Entre as princi-pais exposições coletivas, destacam-se: Rumos Artes Visuais 2011-2013 (Itaú Cultural), Coleção Gilberto Chateaubriand: Novas Aquisições (MAM, Rio de janeiro/RJ, 2012), Alien: Manifestações do Disforme (MARGS, Porto Alegre/RS, 2012), Instâncias do Desenho (EAV Parque Lage, Rio de Janeiro/RJ, 2012), Silêncios e Sussurros (Fundação Vera Chaves Barcellos, Viamão/RS, 2010), entre outras. Recebeu o Prêmio Aquisição do 19º Salão da Câmara Municipal de Porto Alegre em 2009, e tem trabalhos nos seguintes acervos e coleções: Coleção Gilberto Chateaubriand, Coleção Aldo Locatelli/Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Fundação Vera Chaves Barcellos e Museu de Arte Contemporâ-nea do Rio Grande do Sul. Vive e trabalha em Porto Alegre.Foto: Raul Krebs/Estúdio Mutante.

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GUILHERME DABLE

1. Como muita gente da minha geração, minha cultura vi-sual começou a se formar pela cultura pop do final dos anos 70 e início dos 80; TV e quadrinhos. Eu aprendi a ler muito cedo e li quadrinhos compulsivamente na infância. E, como sempre fui péssimo nos esportes, encontrei no desenho uma maneira de ser notado enquanto criança. Das minhas lembranças de infância tem também a quantidade enorme de livros e revistas na casa dos meus avós maternos. Lembro muito bem de uma coleção da versão brasileira da National Geographic, a Revista Geográfica Universal, e do escritório lotado de livros – astrono-mia, muitos atlas, enciclopédias. Lembro de uma coleção com capa marrom que me fascinava, com seções sobre cada país, onde eu via fotos desses lugares, mapas, bandeiras. Eu gostava de desenhar essas bandeiras. A casa onde eles moravam era um projeto modernista, bem dentro da cartilha da arquitetura dos anos 50, e a convivência com essa casa certamente influenciou muito o meu olhar. Do lado da família do meu pai, íamos ao sí-tio nos arredores de Porto Alegre, onde havia um contato com o horizonte, com uma outra ideia de espaço. Havia a visão do rio à frente, em uma faixa muito larga de água. E havia o silêncio, e um tempo radicalmente diferente do da cidade. Outras coisas para ver, outros cheiros e sensações. O fato de ter tido um avô que era meio cientista foi sem dúvida determinante para uma tendência a querer entender como as coisas se constroem, de explorar e tentar esmiuçar as coisas – e, também, de gostar de períodos de um certo isolamento. Acho que essa coisa de ficar sempre tentando puxar um fio em busca de uma origem tem uma relação forte com a maneira que eu trabalho e organizo o meu pensamento, no meu trabalho. E essa sobreposição de imagens voltadas pro público infantil com esses tantos estí-mulos mais esquisitos para uma criança fizeram um estrago e tanto.

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Nesses quase dez anos que se passaram desde que eu dei-xei o design gráfico para me dedicar ao desenho também hou-ve, de minha parte, um movimento bastante intenso de minha parte para aumentar meu repertório de imagens. Me organizei para viajar e ver o máximo de coisas que eu pudesse, investi em livros e formação, buscando ampliar meu repertório visual e também tentar compreender questões e recorrências na his-tória da arte. Essa dedicação sistemática fez com que muitos preconceitos fossem quebrados, o que terminou por enrique-cer demais a experiência de atelier. Claro que tem muita coisa que eu vi antes de imaginar que fosse trabalhar como artista, e que eu adoraria rever com o olhar de hoje. Mesmo assim, o impacto dessas imagens certamente foi muito grande, ainda que eu não tivesse ferramentas para poder tirar delas o que eu tiraria hoje. E, ainda na época do design gráfico, arte era um interesse muito grande para mim – e o design é, até hoje, uma área onde eu atuo, ainda que de modo mais esporádico, mas que sigo olhando com atenção, como estratégia para manter o olhar em forma.

2. Um revival que me chama a atenção é o do interesse pela paisagem, que se apresenta de diversas formas. É um assunto que me interessa muito, e que parece estar com um interesse renovado por um número muito expressivo de artistas atual-mente. Vou citar três que me vieram à cabeça que trabalham com essa questão.

Um deles é o Marcelo Moscheta, que vive em Campinas. O trabalho dele tem muitos procedimentos e questões que tan-genciam a geografia, a arqueologia, a astronomia e a época das grandes explorações, mas ele lida com tudo isso de forma muito sensível. No final de 2012 eu visitei uma exposição no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, chamada Norte, que era re-sultado de uma residência que ele fez na região do Ártico. Nela, havia uma referência muito forte a esse clima das explorações

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do começo do século XX (eu tenho um fascínio por essas ex-plorações, pela história do Robert Falcon Scott, Amundsen, Shackleton, todo esse pessoal), essa necessidade de esquadri-nhar o planeta mesmo que ao custo de dificuldades absurdas. Dessa forma, a questão da paisagem, que é muito presente no trabalho do Marcelo, era apresentada com esse viés da explora-ção, mas de forma muito atraente visualmente. Eu enxerguei, na exposição, além dessas referências aos conquistadores dos pólos, referências a Richard Long, Smithson, até a Sugimoto (mas isso são coisas do meu olhar, nunca falei com ele a res-peito). A maneira que o Marcelo aponta para essas ciências me parece sempre como uma referência ao passado, como uma fotografia preto e branco de um iceberg onde cartelas de cor da Pantone estão como um guia das cores que existem naquele lugar. Isso tudo montado com um cuidado exemplar, em uma caixa de acrílico, que é um dos aspectos que não deixam o tra-balho ter uma aparência nostálgica. É mais uma coisa de olhar para o passado e apontar para a frente a partir disso.

Outro artista, que eu conheci recentemente o trabalho, é o belga Thierry de Cordier. Vi uma sala com uma série de pin-turas dele na Bienal de Veneza e me impressionei muito. Era uma série de mares e montanhas, onde algumas vezes esses dois elementos se fundiam de modo bastante dramático, mo-nocromáticos, muito escuros, que me remeteram a imagens de pintura oriental. E, nelas, haviam pequenos textos, escritos com uma caligrafia muito delicada, sinuosa, remetendo nova-mente a esse clima dos exploradores - espero não estar sen-do repetitivo falando novamente desse tema; aliás, acho que o Moscheta faria um belo par com o Cordier em uma exposição. Voltando ao trabalho do Cordier, ele trabalha de forma bem di-ferente do Marcelo, a abordagem é completamente outra, mas o olhar retrospectivo - e acho que isso fica evidente na fatura da pintura e do desenho dele, além desse uso da caligrafia - está lá, de modo bastante claro.

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Por fim, a Marina Camargo tem um olhar bem particular sobre questões de paisagem, que eu acompanho faz tempo e que faz das suas explorações pela paisagem exercícios onde ela utiliza o desenho, a tipografia e a cartografia com uma perso-nalidade muito forte. Em um trabalho em vídeo recente, ela desenha com tesoura uma montanha que está à sua frente, por exemplo. O vídeo tem, pra mim, uma referência ao Caspar Da-vid Friedrich, mas de modo singelo, até com um certo humor. Outro trabalho dela que eu gosto muito é a série de mapas, que olha para os atlas impressos [e pensar em mapas impressos em tempo de GPS parece tão estranho]. Neles, todas as infor-mações estão espelhadas sobre imagens de céus, como se es-tivéssemos deitados no solo e, da mesma forma que vemos as estrelas, veríamos as informações cartográficas. Nestes e em outros trabalhos dela, eu enxergo uma relação forte com um olhar que, de forma similar ao olhar do Marcelo Moscheta, se volta para algumas coisas do passado (é bom deixar claro que esse olhar opera de modo totalmente distinto em cada um), mas com um propósito que não é de discutir o passado; este é ferramenta para o presente.

3. Essas consultas podem acontecer em diversos momen-tos. No dia-a-dia do ateliê, desenhando, há períodos onde é muito frequente que eu busque imagens relacionadas à arqui-tetura e design para destravar algum momento onde o proces-so de construção de um desenho empacou. No processo de tra-balho eu uso os desenhos que faço de espaços arquitetônicos, mas tenho utilizado cada vez mais a câmera do celular como caderno de anotações, e a internet acaba sendo naturalmente uma extensão desse caderno. Sites como Flickr, Tumblr ou Ins-tagram me trazem muitas provocações visuais para o trabalho. Posso redesenhar em algum rascunho o que encontro na rede, ou projetar sobre um trabalho, ou ainda sobrepor com a ima-gem fotografada do desenho em andamento; as possibilidades são muitas.

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Por outro lado, há a possibilidade do acesso instantâneo à história da arte, outro recurso sensacional. Eu acesso fre-quentemente sites de museus, galerias e portais como Artsy e o Google Art Project para calibrar o olhar com um pouco de história da arte, já que não temos a facilidade de acesso que outros países possuem de um embate frente a frente com a obra. Perde-se muito, é claro, mas acho que algumas possibi-lidades da tecnologia, como algumas ferramentas de zoom, já são um avanço em relação a olhar imagens apenas em reprodu-ções impressas. Eu gosto muito da possibilidade, por exemplo, de colocar Masaccio ao lado de Brice Marden – os bancos de dados virtuais nos permitem aproximar e montar genealogias com infinitas possibilidades de contato. Eu pratico esse tipo de aproximação com frequência, no ateliê. É um exercício que eu gosto muito, e que eu acho que podia ser muito mais pensado no ensino de arte. Me parece que muita gente sai da faculdade de artes visuais achando que não precisa olhar para a histó-ria da arte; ou pior, sai sem sequer saber olhar para a história da arte, sem a menor ideia de como se lê uma imagem, com o argumento de que isso não interessa no seu processo. Isso me soa tão presunçoso, na medida em que estamos falando de um campo que tem seus séculos de história, e que eles foram fundados exatamente em imagens. Querer negá-las agora me parece negar um passado, e, assim, baseado no que as discus-sões sobre esse campo pretendem ser?

4. Eu acho que todo o meu trabalho lida com essas questões que apontaste. A questão da memória é interessante, porque eu acho que acesso a minha memória meio à distância, no sen-tido de que eu me dou conta da presença de alguma questão, procedimento, conceito operacional ou mesmo referências vi-suais geralmente muito depois de eu ter iniciado o trabalho. Eu não vou, pelo menos conscientemente, atrás desse passado, mas chega um momento onde eu o reconheço no trabalho. Ou, o que já aconteceu, alguém me aponta. Na série Tacet, a utiliza-

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ção de materiais “do passado” (carbono filme para máquinas de escrever) era a possibilidade que havia à mão, em um primeiro momento. Mas não havia a necessidade de se procurar uma al-ternativa, e o trabalho não é sobre o carbono filme, ele é ape-nas o material que melhor se prestava para o procedimento. O próprio procedimento, aliás, é bastante rudimentar: carbono filme sobre papel, dentro ou sobre os instrumentos. Já na ques-tão poética do trabalho, na medida em que o trabalho cresceu e, com ele, eu fui percebendo que eu buscava, na montagem, sensações e imagens que remetiam àquelas que me referi na primeira pergunta. A ideia de espaço que eu experimentava no sítio, à noite, sob um céu que me absorvia e me permitia en-trar nele por diversos caminhos, e o aparente silêncio da noite, que na verdade, é cheio de sons que saem de lugares que não vemos. E eu só me dei conta de que eu queria, de alguma for-ma, mexer com essas sensações da minha infância depois de alguns anos trabalhando nele, experimentando possibilidades de montagem, até chegar em um formato que me agradou. Foi depois do trabalho montado que essas referências do passado vieram à tona de modo mais claro para mim. E não pretendo que essas referências fiquem claras, não no sentido de tentar transmitir as sensações de minha infância tal qual quando o trabalho é montado. Não é o caso de simular o falso silêncio da noite no campo; isso é um local de partida, não de chega-da. Os livros de desenhos feitos do que sublinhei de leituras também tem sua origem, de certa forma, em um procedimento que encontrei na família: ao retornar a livros que pertenceram a meu bisavô, constatei que ele também sublinhava todos os seus livros – e eu, na adolescência, havia lido alguns deles. Não que isso seja um dado fundamental do trabalho, mas (re)des-cobrir isso um ano depois de ter realizado o trabalho foi muito interessante, e levantou muitas questões pessoais sobre como eu lido com essas reminiscências. O interesse pela arquitetu-ra também havia aparecido muito antes dos desenhos que eu realizo, desde o tempo que trabalhei como designer. Em um

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conversa, certa ocasião, uma pessoa apontou o fato de eu ter passado tanto tempo da minha infância em uma casa moder-nista como um fator para o meu desenho falar sobre esse tipo de arquitetura - o que talvez faça sentido. O fato é que esse pas-sado todo é algo que eu prefiro acessar sem olhar diretamente para ele. Ele me parece feito de um material muito fugidio para ser encarado diretamente. Creio que, ao colocá-lo em visão pe-riférica, as distorções que fatalmente ocorrem são benéficas para a construção de outro tipo de memória.

5. Acho que há essa espécie de globalização, sim. Não creio que eu tenha competência ou conhecimento para falar sobre isso, mas talvez estejamos em um presente tão saturado de tecnologias que padronizam a saída da produção – no sentido de que tudo hoje tem uma cara homogênea, bem acabada, pa-dronizada, que me parece criar uma certa angústia pela falta de opções para isso. Talvez tenha muita gente sentindo falta de um pouco de ruído, de algo que não fique alinhado o tem-po todo. E aí vamos atrás de documentos antigos, de tecnolo-gias obsoletas – e a própria indústria simula isso, por exemplo, com os filtros para fotografia em celulares. Ou livros que tem manchas de tinta como parte do projeto gráfico. Esse tipo de produto me parece um indício de que essa busca por uma sen-sação do passado é, de fato, uma questão global e que vai muito além do campo da arte. Parece que quanto mais a indústria, a mídia e o consumo, de modo geral, apresentam o “novo”, há um movimento em direção ao “antigo” – mas este, muitas ve-zes, é um falso antigo, preparado pela mesma indústria.

Por outro lado, no campo da arte, eu vejo uma busca pelos objetos, tecnologias e documentos do passado, não pela emu-lação (vestir um objeto novo como antigo é, como falei, papel da indústria de consumo). Talvez tenha a ver com essa satura-ção de imediatismos, ou talvez com uma vontade de reorga-nizar, de tentar fundar um lugar mais fixo no mundo através

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desse passado que, paradoxalmente, é lembrança, e, portanto, imaterial, mas ao mesmo tempo o fato de serem físicos – docu-mentos históricos, tecnologias analógicas, coisas que muitas vezes trazem junto uma certa fisicalidade, uma questão tátil – nos pareçam ainda mais confiáveis para que possamos nos ancorar neles.

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Local de trabalho. Foto: acervo do artista.

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Laura Cattanie Munir Klamt

[1980, Les Lilas/FR;1970, Porto Alegre/RS]

Ío é o alter ego do casal de ar-tistas Laura Cattani & Munir Klamt. Laura Cattani é formada em Artes Dramáticas – UFRGS (2003), possui especialização em Gestão de Projetos pela ESPM (2007) e é mestre em

Poéticas Visuais – UFRGS (2012). Munir Klamt é licenciado em Artes Visuais (1993), possui especialização em Economia da Cultura (2008), mestrado em Poéticas Visuais (2010) e é doutorando em Poéticas Vi-suais, todos pela UFRGS. Desde 2002, a Ío vem realizando experimen-tações e pesquisas artísticas, buscando promover diálogos e integra-ção entre diversas formas de expressão. Intervenção urbana, web arte, fotografia, instalação, performance, música experimental e videoarte são alguns dos elementos que a Ío utiliza. A trajetória de Ío inclui sete exposições individuais, sendo uma (Zede Etes) premiada na categoria Destaque em Mídias Tecnológicas no III Prêmio Açorianos de Artes Plásticas; três projetos multidisciplinares, a realização de uma obra de web arte (www.io.art.br), participação em onze exposições coletivas e salões, dentre as quais se destaca Artesul Contemporánea – Exposi-ção coletiva com os vencedores do 1º Prêmio IEAVI, realizada na Ga-leria XL do Espaço SUBTE, em Montevidéu, Uruguai; diversas ações, performances e intervenções; seis indicações ao Prêmio Açorianos de Artes Plásticas; quatro projetos multimídia selecionados pelo Fum-proarte de Porto Alegre, seleção no 1º Prêmio IEAVI de Incentivo às Artes Visuais, pelo qual receberam Menção Honrosa e seleção para o 2º Prêmio IEAVI. Inclui ainda a seleção para uma residência artística no EAC, em Montevidéu, a ser realizada em 2013; bem como a partici-pação em diversas publicações e catálogos sobre arte contemporânea. Munir Klamt foi também convidado a participar de um dos projetos da 9ª Bienal do Mercosul, “Island Sessions”. Vivem e trabalham em Porto Alegre. Foto: Ío.

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ÍO

1. As respostas, talvez, exijam um certo deslocamento da questão porque, menos relevante do que uma arqueologia pes-soal da imagem, é a estrutura pela qual esta se organiza, e uma pergunta de prelúdio: Qual a função de um artista visual (e a construção de seu imaginário) em um período de hiperinfla-ção da imagem?

“Em uma hora nós produzimos mais imagens do que em todo o século XVII”. Este comentário de Peter Greenaway95 su-gere, por exemplo, que a minuciosa dedicação que uma gra-vura de Dürer recebia, ao ser observada por seus contempo-râneos, certamente não mais existe entre os nossos. Há uma ânsia da imagem, e nesta ecologia da reprodutibilidade técnica nenhuma imagem parece relevante o suficiente a ponto de não poder ser substituída por outra, e assim sucessivamente. Logo, a questão que nós, como artistas visuais, nos fazemos é: que tipo de imagética um artista deve gerar para ficar simultanea-mente à margem deste ecossistema e em seu cerne?

Esta pergunta – e o tipo de questão que nos interessa – tal-vez seja consequência da cultura visual que constituiu nossa formação. Apesar de termos crescido assombrados pela ima-gem, não somos nisso muito diferentes de nossos pares gera-cionais: uma mescla de referências pop (desenhos animados, histórias em quadrinhos), filmes variados, reproduções de obras de arte em livros com baixa qualidade de impressão (e muitas vezes em preto e branco) e, mais recentemente, a rápi-da evolução da oferta visual fornecida pela internet.

95 Comentário feito em uma palestra no evento Fronteiras do Pensamento realizado em Porto Alegre em 2007. Essa informação certamente já está desatualizada, dada a proliferação de dispositivos de produção e compartilhamento de imagens.

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Porém, o que mais reiteradamente nos interessou, e nos fundou como artistas, é o que pode ser definido como imagem ausente. Isto é, algo que, apesar de dedutível, passível de uma configuração mental específica aproximada, pode se arranjar de diversas formas plausíveis e prescindir de uma visualização direta. Uma imagem mental polimorfa e evasiva presente na literatura fantástica (como ilustração, o Horla de Maupassant), mas também na especulação científica (e das pseudociências) de alguns fenômenos de causa imprecisa (por exemplo, o uni-verso antes do big bang). A tradição Romântica entende que o invisível se manifesta através do visível. Há, também, um inegável neoplatonismo nesta concepção, onde uma imagem ideal que nunca se apresenta é substituída por uma constela-ção indeterminada de outras em permanente câmbio.

Logo, a formação de nosso olhar, nossa cultura visual mais emblemática, totêmica e, por consequência, nossa poética, é decorrência de uma imagem imprecisa que não se encerra em si, tende a não conter seu fluxo – e serve como índice ou sig-no polissêmico para outras imagens em uma troca promíscua, uma imagem-labirinto (não é coincidência que esta definição particular de imagem também poderia ser aplicada ao erotis-mo e às especulações sobre a morte).

Tunga, um tardio protagonista Romântico (ou um anteci-pado Neorromântico), que tem também fundações poéticas no fantástico, afirma sobre a imagem em sua obra:

Não acredito que eu faça imagens (...) Acredito que ima-gens são geradas a partir das estruturas que o trabalho constrói. Portanto, essas estruturas geram imagens que por sua vez tem potência de irradiação capaz de capturar e de evocar histórias, narrativas e figuras. Esta estrutura é o que faz o artista.96

96 Tunga em entrevista a Felipe Scovino. SCOVINO, Felipe. Arquivo Contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p.192-193.

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Portanto, nossa concepção visual é da imagem mistério, ou fan-tasmática, que mesmo quando se apresenta ao observador, este desconfia de sua existência. É um ver para descrer, e esta descrença é a função da imagem e uma forma de entendimen-to mais íntimo e basilar: uma imagem-convite à especulação, pois ela existe através das conexões que estabelece, dos seus vestígios, de sua força gravitacional. Walter Benjamin, ao pen-sar a aura, nos ajuda no entendimento de nossa (da Ío) cultura visual mais essencial:

O que é aura? É uma figura singular, composta de ele-mentos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós significa respirar a aura dessas montanhas, desse ga-lho.97

2. Podemos pensar dois modelos temporais para a História da Arte (entre outros possíveis). O primeiro modelo, que chama-remos de spenceriano,98 possui uma ideia subjacente de evolu-ção, segundo a qual cada momento histórico de algum modo supera o anterior. Este conceito parece mais evidente e aceitá-vel nas ciências e explícito nos dispositivos tecnológicos. Nes-te modelo, quando uma teoria, por alguma razão específica, é abandonada, desaparece do corpo de seu campo e entra em sua história. À ciência, de modo geral, não interessa o que era e sim o que é, por mais momentâneo que o seja. Este modelo spen-ceriano evolutivo (lembrando que a ênfase de Darwin é adap-tativa, o que é sensivelmente diferente) parece desconfortável quando aplicado às artes, porque esta, através de seus agentes, se insurge continuamente. E o sintoma mais evidente deste 97 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 170.98 Inspirado nas ideias de Herbert Spencer. SILVERS, Robert B.(Org). Histórias Esquecidas da Ciência. Ed. Paz e Terra, 1997.

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processo é o surgimento dos revivais.

Outro modelo seria o do Torus99 (modelo em que a Ío pen-sa sua poética): zona de um espaço-tempo cosmológico, não simpático à linearidade, em que a arte se modifica sincrônica com o mundo (sua ideologia e tecnologia) em chronos, enquan-to estabelece trilhas ou rastros com diversas temporalidades e espaços, seu kairós. Neste modelo não existe o revival a priori, os agentes se conectam indefinidamente, apesar de passível de largas elipses de tempo e lugar. O vírus nos serve de alegoria para esse modelo (o meme seria outra opção), por contemplar em sua natureza a inatividade, a suspensão, retornando à vida quando há condições ambientais propícias. Neste modelo, a arte não revive, apenas desperta de seu sono.

Quando Picasso, na fase azul, ativa El Greco, é porque uma tecnologia poética está à margem do tempo e aberta a cone-xões ou contágio. Um artista, ao agenciar elementos do Barro-co (como a Ío faz, por exemplo), gera um Barroco ucrônico, es-tetizado e esvaziado de sua ideologia – uma vez que parece im-possível ao artista emular as condições e perspectivas sociais e históricas que levaram ao Barroco, tendo acesso apenas à sua aparência. Com isto, o artista gera um modelo de Barroco sim-plificado e manipulável (mas não um simulacro). Uma teoria sobre o Barroco, por consequência, cria um Barroco como uma tecnologia válida e passível de aplicação. O revival seria, então, o outro nome destas conexões e transmutações, e a própria na-tureza deste modelo em que a há um presente e um passado contínuo, em fluxo e se transformando.

99 Torus é “uma superfí cie plana cujas bordas opostas são conectadas (...) que pode ser vista na lógica de jogos de videogame antigos, nos quais um personagem se movimenta por uma tela plana mas, ao sair pelo lado esquerdo, volta imediatamente pelo direito ou vice-versa, como se ambos estivessem interligados”. CATTANI, Laura. O Estranho Equívoco de A. Hilzendeger Feltes: A convergência de narrativas incompossíveis. Dissertação de Mestrado em Poéticas Visuais. PPGAV – IA – UFRGS. Porto Alegre, 2012.

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Logo, este tempo-espaço é como um sabor, ou um jogo de armar, passível de combinações insuspeitas. Ao reinstaurar uma temporalidade, um artista não altera o tempo,100 mas a percepção e a concepção de seus pares sobre ele. Neste proces-so, é produzida uma paralaxe histórica, geradora de uma visão anacrônica e, em gradações diversas, ficcional: um tempo al-ternativo, mas real em sua virtualidade e em sua imanência, palco onde o artista estabelece e é investido de uma genealogia com esta temporalidade, na qual deposita simpatia e da qual ele é agente entre seus pares (voltamos à alegoria do vírus). Neste momento, para nos lembrar de que vivemos na arte a simultaneidade do tempo cosmológico do modelo do Torus e o tempo circadiano de nosso corpo, recriamos Novalis à nossa frente, e ao abrir seus lábios, ele diz (em bom português):

Tudo é rastro, vestígio ou fóssil. Toda forma sensível, des-de a pedra ou a concha, é falante. Cada uma traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação”. A escrita literária se esta-belece, assim, como decifração e reescrita dos signos de história escritos nas coisas.101

Julgamos que, sob estas condições, todo artista é uma má-quina de tempo (todos nós o somos, apenas nos artistas isto se evidencia com mais clareza) estabelecendo ligações ininter-ruptamente, conscientes ou não. Assim, o revival seria apenas uma caricatura deste processo multicíclico – afirmação esta feita sem nenhuma intenção pejorativa pois, às vezes, uma caricatura é mais reveladora e precisa sobre a identidade de um indivíduo ou grupo do que análises formais. Em resumo, os revivais são os fenômenos extremados que sinalizam estes alçapões.

100 Pelo menos que o saibamos – pois, se o fizesse, não o saberíamos, pelas questões de paradoxo. Não é mesmo, McFly?101 RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente Estético. São Paulo: Ed. 34, 2009. p. 35.

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3. A maior questão envolvendo o acesso a esse repositório virtualmente infinito (uma vez que está em constante expan-são e é impossível abarcá-lo todo), é o processo de escolha de acesso às imagens. Existem, é claro, os meios diretos: movidos pelo interesse em uma obra ou artista específico, ou em deter-minado tipo de imagem, utilizamos um mecanismo de busca para encontrá-la. Ou ainda, buscamos em bancos de imagens específicos (acervo de determinado museu, por exemplo). Porém, essa forma de pesquisa “tradicional” é cada vez mais rara, devido a uma característica inerente à estrutura da rede: o seu próprio formato de rede. Ou seja, não há um caminho único e direto. Relacionamo-nos com um estímulo constante de desvios, referências mais ou menos relacionadas à pesquisa original ou conteúdos totalmente díspares. Para a Ío, esse é o maior problema e a maior virtude desse tipo de pesquisa: ao mesmo tempo em que é quase impossível (para nós) concluir uma pesquisa – seja ela de conteúdo textual, imagético ou ou-tro – sem passar por inúmeros desvios, é justamente neles que encontramos conteúdo instigante, fazemos conexões inespe-radas, descobrimos novos artistas, pontos de vista, conjuntos de informações relevantes, etc. O tornar presente, no entanto, não nos parece ser algo provocado pela Internet, mas apenas facilitado por ela. Conforme mencionado na resposta anterior, as relações de tempo são maleáveis e subjetivas, e o papel da internet é apenas o de tornar acessíveis os conteúdos. Sua uti-lização e (re)significação são feitas no recipiente do conteúdo (vulgo artista/interagente).

Em nosso processo criativo, a consulta à internet passa por dois papeis antagônicos: intenso e escasso. Em um momento que antecede a realização de trabalhos, os bancos de dados são um bosque idílico. Um lugar de passeio e de diálogo com mortos e vivos. Não há um rigor metodológico, mas a liberdade da satisfação dos prazeres, das curiosidades pontuais. A for-tuna crítica é uma espécie de hobby. Deve-se ressaltar que, de

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modo geral, dedicamos à internet mais características de flâ-neur, enquanto que os livros, com diz Caetano Veloso, “(...) são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarro”102 – logo, uma relação mais passional, profunda e ordenada. Na rede, disposições momen-tâneas geram blocos de afetos e pesquisas que se alargam ines-peradamente. O interesse por feltro para um futuro trabalho, por exemplo, pode conduzir a Tunga, Beuys e Robert Morris, a fabricantes de feltro, a Deleuze, à história do vestuário, ao seu uso industrial e à fabricação de bichinhos infantis; mas tam-bém a bobagens desconectadas e percursos insuspeitos. Há nestas pesquisas uma disposição à deriva criativa, ao erro ou à total inutilidade. Mas, fundamentalmente, estes bancos de dados, como outros elementos na formação de um artista, ser-vem para que ele forme uma espécie de instinto, um condicio-namento que se manifeste abrangente, complexo e sofisticado quando lhe for exigido.

Em um segundo momento, que envolve as maquinações diretas que conduzirão à realização da obra, este gênero de consulta se torna escasso. Ocorre apenas para retificar percur-sos – por exemplo, os plágios inconscientes – e inventariar so-luções anteriores para um problema especifico. Neste segundo momento, até mesmo uma atenção metódica, equivalente à que se dedica ao aprendizado de uma língua ou às pesquisas acadêmicas, atrapalha. É necessário, pelo menos para a Ío, um foco difuso: ficar parado olhando os elementos constituintes do trabalho, ou deixar estes equilibrados e suspensos entre sinapses (algo como uma incubação) para que o inconsciente nos brinde com soluções e associações inesperadas.

A consciência e aquele instinto referido anteriormente são cocheiros liberais. Com grande frequência a concepção fun-damental dos trabalhos é rápida e, em alguns casos já nasce

102 VELOSO, Caetano. Livros. Segunda faixa do álbum Livros, Gravadora Nonesuch,1998.

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pronta, mesmo que sua realização exija a erosão desta ideia tão sólida pela grosseira realidade.

4. No percurso da ideia em direção de sua materialização como trabalho, não nos parece que lhe é dado o direito à ino-cência. Obras nascem do conflito com seus pares e, assim, mol-dam caráter. Seja por uma ordenação estética, o tipo de mate-rial, a lógica utilizada, o que se pretende abarcar e concepções de mundo contidas nelas, familiaridades vão sendo estabeleci-das e abandonadas, a partir de um conjunto de critérios, que chamamos de poética artística. Este conduzir a obra na ioni-zante noosfera é administrar temporalidades e não permitir que uma obra seja derrotada pela insidiosa semelhança ou ma-caquear de um discurso já formalizado. Não cabe a uma amei-xa originalidade, apenas um conjunto de índices que apontem suas virtudes. Uma obra é este índice de trajetos para desejos, referências culturais e similitudes possíveis. É uma orquestra-ção de sua polissemia sem significado estável – e assim deve permanecer.

Não vemos normas que definam as categorias para que os trabalhos se manifestem. Cada um deles gera uma forma ideal ou um objetivo nebuloso que vai gradualmente se materiali-zando (a metáfora da jardinagem seria bastante adequada). O tipo de lógica da criação e da estrutura (que muitas vezes não é detectável na obra pronta) nos serve tanto para discutir suas temporalidades e genealogias como para organizar o trabalho plástico. A Ío tem, sim, uma certa constituição poética que de-fine regras mais amplas que, de modo geral, são seguidas. Va-mos comentar algumas destas antes de nos referir a exemplos específicos:

Temos certo desapreço pela tecnologia quando ela é uma informação que se sobrepõe à obra e, por ser o cerne da mes-ma, está sujeita à obsolescência, correndo o risco de se tornar uma informação cultural que muda, de maneira imprevisível, de status e significado no decorrer do tempo.

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Também temos uma lânguida preguiça a uma referência direta e indispensável a algo. Este endereçamento a outro es-paço-tempo nos é fundamental, mas ele é o osso e só em con-dições excepcionais deve ser visto (em caso de fratura exposta ou decomposição). A citação deve ser mais uma fenotipia do que um emblema, por nos remeter de forma vaga a qual am-biente ou ecossistema cultural ela pertence; ou como um jogo de sedução, no qual os sinais são ambíguos e esta própria zona nebulosa consiste em parte de seu mérito.

Anacronismo é outro princípio que louvamos. Em condi-ções ideais, um trabalho deve ficar à margem do tempo, ser impreciso em relação ao momento histórico ao qual perten-ce. Logo, ele deve dialogar com seus pares e seu tempo com comedimento e com a educação que a vida civilizada exige, mas não mais que isto. É importante para uma obra viajar no tempo com segurança. Tom Waits lançou, em 1987, um disco chamado Franks Wild Years, que é exemplar para ilustrar este argumento: não parece um disco dos anos 80, seria crível se disséssemos que ele tivesse sido lançado por um exótico indi-víduo em, por exemplo, 1952, ou que outro de mesma estirpe o lançasse hoje. Se o cantor fosse negro isso também não seria inusitado – o que nos remete ao próximo item.

Nossa identidade pessoal não nos interessa enquanto uma informação pública nas obras. Se nos utilizamos como prota-gonistas, em algumas situações, é por conveniência técnica e com valor arquetípico, pois não nos interessa partilhar nossa memória particular, nossa vivência, para nós não significa nada poeticamente o culto à personalidade, à individuação, à visão do artista como alguém no qual os acontecimentos têm algum significado especial (não que alguns artistas que o fa-çam não sejam fascinantes). Interessa-nos o denominador co-mum de nossas experiências, o quanto elas podem se transfor-mar em uma tecnologia poética partilhável, um módulo. Mas nada impede de transformarmo-nos em personagens de nós mesmos, porque esta é uma memória de outra natureza.

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Esta lista poderia ser ampliada, mas se pode aceitar estas três regras como os principais parâmetros que utilizamos.

O tipo de lógica que será a seguir demonstrada através de alguns exemplos de obras é o que organiza a sua criação, sua estrutura, e muitas vezes não é detectável na obra pronta, mas tem a função de organizar seus significantes. Essa lógica é co-mum nos trabalhos da Ío e nos serve tanto para discutir suas temporalidades e genealogias, como para organizar o traba-lho plástico. A História da Arte, mesmo sendo um gigantesco arquivo, está inserida em um banco de dados maior que é a História da Cultura e todo trabalho deve ser alocado em uma taxonomia, por mais fantasiosa que seja, para entender sua identidade.

O primeiro exemplo é um texto-obra de nome Passado Díptico.

Inicialmente, escolha um parente ou amigo mais velho que conte repetidamente uma mesma história que seja, sob algum aspecto, fascinante. Perceba suas inflexões, cada gesto e ênfase, escute a história atentamente até que você lembre cada detalhe. Por alguns dias, esqueça completamente o assunto. E en-tão, sem intenção precisa, evoque pequenas partes: um lugar e sua luz, uma pessoa envolvida, a temperatura, a textura de um objeto ou uma voz – como se fosse um pen-samento involuntário, ou a lembrança sem sentido de um sonho. Espere quarenta dias. Um dia, casualmente, conte a história a alguém, repro-duzindo cuidadosamente a forma que ela lhe foi original-mente contada – inclusive a entonação e os gestos – com uma única alteração: você está inserido nela. Procure lembrar a sua participação de forma concreta: sua reação aos acontecimentos, suas atitudes ou comentários.Repita para pessoas distintas, com pequenas variações. Um dia, quando aquele que lhe contou a história pela pri-

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meira vez estiver narrando-a novamente, corrija-o gentil-mente, ou acrescente um detalhe, lembrando-lhe de sua participação ou presença naquela ocasião. Insista quan-tas vezes for necessário. Então, espere calmamente enquanto o passado é trans-formado.

O texto de Passado Díptico busca emular um conjunto de técnicas e tecnologias de áreas distintas, sem o objetivo explí-cito de paródia. Com a ênfase nas propriedades visuais, ima-gens sólidas e passíveis de construção pelo leitor são articula-das (como em outros textos da Ío). Seu modelo textual é o dos manuais de instruções de equipamentos, associados aos méto-dos para angariar simpatia de outrem. A sua ênfase na memó-ria não é vaga e poética, mas parte de um conceito de atribui-ção errada de recordação para construir uma sólida memória falsa em seus pares. Faz, também, uma referência inócua ao Novo Testamento. Passado Díptico, por fim, tem pretensões de agenciar um comentário irônico sobre a má-fé de alguns pro-cessos históricos ou de grupos detentores de poder hegemôni-co ao sedimentar eventos específicos na memória coletiva.

Gramatologia é um tríptico de fotografias de três corpos femininos, mostrados parcialmente, com ênfase em suas cica-trizes. O título se refere ao conceito de mesmo nome de Derri-da. Há uma aproximação entre a dimensão de arquiescrita do autor e as cicatrizes entendidas como signos gráficos de um acontecimento indefinido. Uma dimensão erótica e fetichi-zante está intencionalmente unida a uma morbidez ligada à iconografia dos martírios religiosos da cristandade. As repre-sentações pictóricas do barroco foram referências iniciais para a construção das fotos e se evidenciam em sua conclusão. Há, também, uma certa desidentificação da especificidade dos cor-pos, o que os estetiza, os coisifica e remete a uma das referên-cias para a obra enquanto projeto: as bonecas de Hans Bellmer.

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Princípios do Mundo é uma escultura de chocolate derreti-do sobre vidro e veneno de rato. Primeiro, o título – que, para a Ío, é fundamental para definir as regras pelas quais o trabalho será executado, uma forma benéfica de restrição que delimita o campo de atuação da obra – que ecoa um mundo cíclico não judaico-cristão, sendo que o veneno de rato é passível de apon-tar as condições inóspitas em que este gênesis ocorre, como em nosso planeta em estado primevo. A palavra princípios insi-nua também uma discussão moral em relação à possibilidade traiçoeira de envenenamento. O famoso quadro de Courbet, de título semelhante (Origem do Mundo), é referido, com cer-to humor Duchampiano. O vidro é feito com pontas e bordas cortantes ressaltando as possibilidades de violência deste pro-cesso. O vidro revela e isola, permite o através – comum às si-tuações eróticas. Há uma oposição entre o chocolate derretido e escorrido pensado em termos do informe (Bataille), de uma não-forma (Robert Morris) que pode se arranjar de diversas maneiras ao escorrer, como um principio orgânico, e o vidro geométrico como um princípio cultural. O chocolate, por seu cheiro intenso, possui valor escultórico não visível, por existir como um volume perceptível pelo olfato na sala e ativador das papilas gustativas, que não excluem a disposição ritual, ou de-predativa, de comer a obra. O veneno possui uma força repres-sora, uma crueldade covarde e mesquinha que mitologiza esta cosmologia. Há nessa obra, como um princípio motor (desta e de muitas das obras da Ío), um equilíbrio ou uma tensão cons-tante entre o eros e o tânatos que move este artefato cíclico.

5. Julgamos que este fenômeno tem mais a ver com uma realocação das identidades regionais em reação a um modelo econômico transnacional. A constituição de um estado-nação ou uma identidade nacional não é um processo que tenha se concluído em boa parte do planeta e ao qual esse processo de globalização, mais generalista e abrangente, se sobrepôs. Isto

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se reflete nas especulações sobre as identidades artísticas. Tomemos os integrantes da Ío: Munir, particularmen-

te, sabe que é brasileiro e gaúcho, mas provavelmente ficaria desconfortavelmente constrangido se precisasse explicar a al-guém, de forma convincente, porque não comunga com algu-mas simplificações ou cristalizações destas identidades. Tam-bém descende de cafuzos, mamelucos, portugueses e austría-cos, o que não lhe dá nenhuma homogenia étnica-espacial (o que, de modo geral, facilitaria uma suposta identidade). Lau-ra, por outro lado, tem raízes familiares ítalo-arábicas, porém uma identidade particular moldada também pela influência da cultura francesa, por conta de seu histórico pessoal, o que du-rante certo tempo provocou um afastamento de sua identida-de latino-americana, mais recentemente resgatada – não sem questionamentos e conflitos (é curioso observar que, para um francês, nós, brasileiros, não somos ocidentais)103. Santo Agos-tinho afirma que ele sabe de que se constitui o tempo desde que não precise explicar. Nós sabemos o que somos, desde que ninguém nos pergunte.

O modelo de indivíduo em um centro urbano (e também a de indivíduo em uma sociedade de consumo que atende de-mandas particulares e estratificadas) se dá ao abandonar as relações mais rígidas, que aqui chamamos de modelo-clã, em direção a uma identidade construída (ou impingida) por si mesmo. Não nos interessa avaliar aqui se identidade de um clã é mais ou menos legítima do que a que um indivíduo urbano agencia, o que nos interessa é que, para este último, as possibi-lidades de mudança e a fluidez identitária são exponenciais – em especial quando se inclui suas relações sociais e as redes te-lemáticas. Julgamos que, nesse cenário (bastante simplificado na verdade), a ausência de identidades monolíticas (que pode ser bastante desconfortável) gera como subproduto o fato de que uma parcela considerável de seus agentes – dentre os quais

103 Comentário de Ernesto Neto em entrevista a Felipe Scovino. SCOVINO, Felipe. Arquivo Contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 178.

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alguns que serão artistas – busquem estabelecer as fundações de seus sernomundoqueaconteceagora através de vínculos, raízes que podem tanto ser etnicamente legítimas (“trabalho com in-tervenções no pampa em decorrência de minha ascendência Charrua”), como constructos, invenções de temporalidades, de genealogias.

Outra questão, que é paralela à anterior, se fundamenta na consideração de que cada período gera demandas específicas para uma população (ou um subgrupo), em uma equação esté-tica (ou forma cultural) que inclui as suas vontades particula-res, o seu conjunto de crenças, suas condições ambientais e os desígnios da história. Esses elementos podem gerar o que po-deríamos chamar de modelos ótimos, isto é, formas definidas e reconhecíveis de um grupo ou de um período. Alguns destes modelos ótimos, em um universo capitalista, poderíamos dizer que são os Top of Mind da cultura:104 identidades reconhecíveis por boa parte da população para a qual a vaidade da cultura é relevante. O simbolismo, o romance de cavalaria, o flamenco, o construtivismo ou samba são exemplos destas unidades. As redes telemáticas ampliaram este catálogo de unidades de cul-tura ao agregar acesso e dados a modelos ótimos que tinham representação regional e acesso mais restrito (em nossa pers-pectiva), como as pinturas Jodhphur da Índia ou a música dos balcãns de Goran Bregovic e seus pares, entre outros casos.

O que nos interessa nesta equação é que nossa identidade tem uma dupla manifestação que, de um lado, tem uma relati-va liberdade (maior que em outros períodos, pelo menos) para se construir identitariamente, de outro uma disposição natu-ral de criar vínculos, laços familiares de afetos culturais, em um universo de complexas e múltiplas estruturas de disposi-ção que nos ligue e nos torne parte de um grupo. Há a possibi-lidade curiosa de criarmos um clã de nossa invenção. Pegando novamente Munir como exemplo:

104 Há também os modelos semiótimos e os bem mais ou menos que, nesta especulação, podemos desconsiderar.

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Concepções do Zen Budismo me foram muito influentes na juventude, não nego a casaca de veludo do Romantis-mo e os ambientes promíscuos e de um misticismo ana-crônico do Simbolismo ou do Surrealismo, me fascina a lógica materialista de mundo despovoada de qualquer entidade (mas também a patafísica de Jarry ou a percep-ção de mundo de um Cortázar), ao mesmo tempo o valor arquetípico de certas mitologias e religiões me emocio-nam, assim como a música do Estoniano, Arvo Pärt. A lis-ta pode se ampliar longamente, mas o que nos interessa é que a minha identidade se estabelece em uma curiosa ponte entre estas teorias culturais que são socialmente constituídas e que eu individualmente as assimilo (res-posta da questão 1) através dos modelos ótimos (ou os bem mais ou menos, que para mim, individualmente, podem ser ótimos) e como se dá a digestão destas que recebe o pom-poso nome de: Este Sou Eu.

Logo, por esta lógica, do indivíduo agente de sua identida-de em um mundo flutuante e sem fundações regionais sólidas, sua identidade se dá pela construção de sua família sanguínea cultural, o conjunto de indivíduos, grupos e manifestações cul-turais que o constituem. Logo, este interesse pelo passado que a pergunta sugere é o interesse por desvelar a si mesmo, um si mesmo projetivo que se espelha e se espalha no tempo e no espaço e que o individuo constrói, em condições excelentes, in-definidamente. Afinal, a invenção de nossa identidade cultural é uma forma de bootstrap do Barão de Münchausen.

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Laura no atelier. Foto: Ío.

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Uma referência visual: Arnold Boecklin, Island of the Dead, 1883, p&b.

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Jander Rama[1978, Porto Alegre – RS]

É artista visual e mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV--UFRGS. Participou de editais do meio artístico e cultural, sendo selecionado, dentre ou-tros, para: 6º e 8º Arte + Arte na CCMQ - RS (2009 e 2011), 9º Salão Nacional de Arte de Jataí no MAC-Jataí - GO (2010); 40º Salão Novíssimos IBEU no Instituto Brasil Estados Uni-

dos - RJ (2010); editais da PMPA-SMC para ocupação de espaços ex-positivos com a exposição individual (Im)prováveis, na galeria do 4º andar da Usina do Gasômetro - RS (2010), e individual O corpo pós--humano, na Sala da Fonte do Paço Municipal – RS (2013); individual Homem-Máquina na galeria da UFCSPA – RS (2011), 19º Salão de Artes da Câmara Municipal de Porto Alegre - RS (2010); 8ª Bienal Nacional de Gravura Olho Latino - SP (2011); exposição coletiva Natureza da/na Arte no Memorial Meyer Filho em Florianópolis – SC (2011); exposição coletiva itinerante Sobre Amanhã na ECARTA, em Porto Alegre, e Casa Paralela, em Pelotas – RS (2012); mostra coletiva Idades Contempo-râneas no MAC-RS – RS (2012); XIII Concurso Goethe-Institut com a exposição individual De androide e ciborgue todo mundo tem um pouco – RS (2012). Foi indicado ao V, VI e VII Prêmio Açorianos de Ar-tes Plásticas – RS, na categoria Destaque em gravura (2011, 2012 e 2013) e recebeu Menção Honrosa por trabalhos expostos no XX Encontro de Artes Plásticas de Atibaia - SP (2011). Tem experiência na área de Artes, com ênfase na pesquisa em linguagens híbridas em Desenho e Gravu-ra. Vive e trabalha no RS. E-mail: [email protected]: hibridosimprovaveis.blogspot.com.Foto: acervo do artista.

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JANDER RAMA

1. Bom, uma boa forma de analisar um percurso é lançar um olhar atento aos vestígios remanescentes do mesmo. No caso da produção plástica que realizo, inúmeros desenhos guardados em pastas indicam o que pensava e desenhava na minha infância, adolescência e vida adulta. Disponho de dois mil desenhos que guardei destas etapas da vida. Lembro-me que desenhava quase que diariamente e, mesmo tendo muitos desenhos extraviados, o que sobrou apresenta um panorama da produção gráfica despretenciosa que realizava. Acredito que estes materias constituem-se como documentos ligados ao trabalho que realizo hoje.

Nos desenhos guardados, principalmente da infância, ha-via uma grande preocupação em catalogar o mundo que co-nhecia e que estava conhecendo. Havia desenhos de objetos, pessoas, casas, automóveis, navios, aviões e etc. Todos muito esquemáticos, realizados com réguas. Na adolescência, esta “catalogação” ainda era presente, porém muito mais narrati-va e ilustrativa. As relações entre os objetos representados nos desenhos eram muito mais complexas, muito ligadas à ilustra-ção. Já nos desenhos após os vinte anos de idade, parece haver uma ligação muito mais forte com aqueles esquemas da infân-cia, ou ainda representações muito pontuais da realidade, po-rém com maior complexidade.

Mesmo havendo muitas diferenças e o próprio desenvol-vimento do traço e da representação nestas etapas, alguns elementos estão sempre presentes. E alguns destes elemen-tos, sempre presentes, são: as representações esquemáticas de máquinas e de invenções; e a representação de ciborgues. São criações que acompanham meu repertório visual desde a in-fância. Apesar de uma certa facilidade para realizar desenhos a partir de observações, desde cedo, meu grande interesse em

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desenhar estava na mera criação como exercício da imagina-ção.

Observando estes desenhos é possível ver as diversas refe-rências que me influenciaram durante a vida. Particularmen-te, foi pelo viés das animações, cinema e literatura que meu in-teresse por ciborgues e androides, recorrentes na minha pro-dução atual, se manifestou inicialmente. A década de 1980 foi inundada por produções de ficção científica, contendo seres tecnológicos, tanto no cinema como também nas animações exibidas em horário matutino na televisão.

Isso me levou a fazer um pequeno levantamento dessas animações, exibidas na televisão brasileira de 1980 até o início dos anos 1990. A indústria de brinquedos estava no seu auge naquela década, e a televisão era, na maioria dos casos, o veí-culo de comunicação de massas mais influente sobre o publi-co infanto-juvenil. Como forma de despertar o consumo para inúmeros brinquedos, estes eram associados ao lançamento de animações criadas especificamente com este intuito.

Mutantes, alienígenas, androides e ciborgues povoavam a televisão nesta época, em animações criadas por estúdios estadunidenses em parceria com estúdios japoneses. Inicial-mente recordava-me apenas de animações como SilverHawks e Galaxy Rangers que abordavam estes temas mais especifica-mente. Porém, através de um levantamento em sites especia-lizados, recuperei os nomes de vinte e uma dessas animações que seguiam a mesma receita mercadológica, com uma série infindável de episódios, compreendidos em várias tempora-das, associadas ao lançamento de brinquedos dos personagens e veículos presentes nos mesmos. Seria impossível sair imune a estas influências.

Como assíduo telespectador mirim, consumia diariamen-te estes produtos televisivos e seus duplos de plástico injetado (bonecos e veículos). Atualmente é possível encontrar os regis-tros de patentes de alguns destes brinquedos disponíveis na

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internet. É bem interessante! Certamente fazem parte do des-pertar de um repertório visual atrelado a estes seres tecnológi-cos. Outro fato importante ligado a estas animações e brinque-dos, é que estes últimos vinham acompanhados de manuais de instruções de montagem. Não tenho mais estes manuais, mas recentemente encontrei na internet diversos exemplares semelhantes aos que possuía (ver Uma referência visual: Assault Copter). O que podemos notar ali é que o desenho técnico era utilizado como linguagem didática. E este tipo de imagem foi muito presente na minha infância, através de todos os ma-nuais de instruções que acompanham esses brinquedos. Estas influências imagéticas não ficaram isoladas no tempo, mas participam da produção que realizo em consonância com as influências atuais de que disponho, ainda no cinema, na litera-tura e também na arte.

Mas não foi só. Na vida adulta, a minha vivência em áreas técnicas ligadas à informática – através do curso técnico em in-formática industrial (SENAI) e o trabalho com manutenção de computadores, e à engenharia – curso de engenharia mecânica na UFRGS, enriqueceram meu repertório. Todas estas fontes de conhecimento acabaram bem presentes nos desenhos.

Com 17 anos de idade, me interessei muito por mecânica e eletrônica e era absolutamente obcecado por autômatos. Com esta idade comecei a elaborar um pequeno robô com os conhe-cimentos que havia obtido em manuais e na literatura espe-cializada. Sozinho, consegui elaborar a estrutura mecânica do robô, porém tinha dificuldades com os elementos eletrônicos do mesmo. Com o auxílio de um engenheiro, conseguimos fa-zer o robô funcionar. Na verdade não passava de um robusto carro a controle remoto. O braço mecânico que havia concebi-do nunca chegou a ficar pronto. Mas o pequeno robô era muni-do de suspensão independente nas quatro rodas e era movido com uma bateria de 12V de motocicleta. Possuía três motores, dois para a tração e um para girar as rodas.

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Aos 19 anos de idade já cursava informática industrial (SE-NAI) e pude ampliar meus conhecimentos em eletrônica, me-cânica e automação. Com esta base, pude conceber e construir um verdadeiro robô, um autômato. Esta nova criação tinha apenas três rodas e também era movido por uma bateria de motocicleta. Desta vez não havia controle remoto. Havia um chip que recebia uma programação específica e a executava. O robô deveria seguir um determinado trajeto pré-programado e desviar de um obstáculo, caso encontrasse algum. Logo após o desvio, deveria corrigir sua rota e voltar ao trajeto original. Sua percepção da presença de obstáculos era realizada por cinco sensores fotossensíveis na parte dianteira do robô. Este autô-mato nunca chegou a funcionar como o planejado, mas con-seguiu seguir o trajeto pré-programado e parar diante de um obstáculo.

Após o SENAI, ingressei na Engenharia Mecânica (UFRGS). O curso inicialmente compreendia disciplinas de cálculo, física básica, geometria descritiva e desenho técnico. No início tudo se apresentava fascinante, porém gradativamente as disci-plinas de cálculo se tornaram enfadonhas, porém superáveis, enquanto que as disciplinas de geometria e desenho técnico ficavam cada vez mais interessantes.

Depois de findadas as disciplinas de desenho técnico e geometria na universidade, percebi que o que realmente me interessava não eram os cálculos e proposições da engenharia, mas simplesmente a forma empregada em máquinas e equipa-mentos. Foi neste momento que meu interesse voltou-se para as artes visuais e pôde, então, haver este cruzamento de ques-tões ligadas à engenharia (desenho técnico e máquinas) com a construção gradual de uma poética.

É verdade que outras questões puderam ser exploradas nesta passagem da engenharia para o campo da arte. Não ha-vendo mais o limite do “executável”, o desenho técnico pôde ser usado por mim de forma indiscriminada.

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Tratando da impossibilidade ou simplesmente do impro-vável, através do desenho foi possível elaborar esquemas de engenhocas, máquinas, próteses e implantes sem a menor preocupação quanto à viabilidade operacional dos mesmas, ou quanto a sua existência física no mundo. Os desenhos que ela-borei desde então não procuram ser representações do visível ou do viável, mas elaborações do imaginário.

2. Sim, imediatamente vem à memória os trabalhos de Walmor Corrêa e seu trânsito por uma visualidade que tem como referência os relatos de artistas viajantes do século XVII ao XIX, como Rugendas ou Thomas Ender, e ainda a lingua-gem utilizada para realizar os Atlas de anatomia fictícios, que lembram muito os compêndios que catalogavam a flora e fau-na tropicais do século XIX, realizados por cientistas e ilustra-dores. É como se o artista entrasse em uma máquina do tempo visitando estas épocas e, volta e meia, nos trouxesse algo de lá, tal a verossimilhança que emprega em seus desenhos, pin-turas e esculturas. O que também me chama a atenção é este casamento que o artista faz entre um determinado conceito e uma certa linguagem visual, mantendo sempre coerência nes-ta relação.

Outro artista que lembro é Joan Fontcuberta. Este artista já trabalhou com temas semelhantes ao de Walmor Corrêa, criando animais fictícios através da taxidermia, associando a estes toda uma documentação forjada sobre supostas notícias de jornais e laudos de pesquisadores que teriam descoberto as criaturas. Admiro o trabalho árduo na construção pontual de uma ficção sobre o passado que, apesar de inventada, torna--se crível pela presença de diversos indícios e documentos. Na obra Sputnik, o artista tenta comprovar a partir de supostos registros fotográficos a existência de uma tragédia espacial, ocorrida nos anos 1960, ocultada pelos governos envolvidos na corrida espacial. O astronauta Ivan Istochnikov teria morrido

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durante uma das primeiras missões tripuladas ao espaço e seu corpo estaria atualmente vagando na órbita da Terra. Deste modo, o artista cria uma ficção envolvente e bem elaborada através de registros fotográficos forjados. As fotografias origi-nais são apresentadas pelo artista como tendo sido manipula-das por Moscou para ocultar o cadáver do astronauta.

Nestes dois casos, os artistas revisitam o passado para buscar substratos para suas obras, não necessariamente na história da arte, mas em qualquer tipo de registro escrito, do-cumental ou histórico. Estes registros se tornam material para criações ficcionais que transitam entre a realidade e a fantasia. Trabalham nas lacunas, encontradas ou criadas, da história.

3. O acesso virtual a uma infinidade de documentos de ori-gens distintas e de diferentes épocas e nacionalidades é funda-mental para a minha produção. Mantenho arquivos digitais de tudo que me interessa, tanto como referências para trabalhos que desenvolvo, como para me inteirar de produções de outros artistas.

Como trabalho com referências ligadas a desenhos de má-quinas, fotos de equipamentos ou plantas sobre os mesmos, estas fontes de informação são fundamentais. Esta rede de in-formação me permite criar com maior precisão, ampliando as possibilidades. Tenho um arquivo grande com imagens deste tipo.

Recentemente fiquei fascinado com a possibilidade de acesso a acervos de registros de patentes que estão sendo dis-ponibilizados na internet. Dentro da poética que desenvolvo, ligada à invenção, este acesso está sendo catalisador para as novas produções que estou elaborando. O acesso a registros de patentes do século XIX, que obtive recentemente, torna-se substrato para futuras proposições.

Gosto de guardar todas as imagens que considero úteis ou interessantes, pois talvez nunca mais as encontre. Quando o

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site WikiLeaks disponibilizou manuais de instruções e de mon-tagem de máquinas de guerra estadunidense, contendo mui-tos desenhos técnicos, imediatamente os guardei, pois nada garantiria o acesso a estas informações no futuro. Assim vou montando uma espécie de banco de imagens, ao qual retorno diversas vezes.

4. A minha pesquisa em poéticas visuais trata, de certa for-ma, da reflexão sobre a obsolescência (das técnicas e do cor-po) e da pesquisa com processos híbridos para a construção de imagens. Da impessoalidade digital à marca das operações manuais, a imagem situa-se no “entre” de diversos períodos históricos marcados por suas tecnologias.

Na série (im)prováveis, conjunto de trabalhos que venho de-senvolvendo vinculado ao programa de mestrado em poéticas visuais (PPGAV-UFRGS), há este cruzamento de linguagens, próprias de dois sistemas distintos. Estes sistemas entrelaçam o desenho técnico industrial e a gravura. Entre eles ocorre a tensão da imagem produzida digitalmente (o desenho técnico através de CAD) e a imagem artesanal da gravura.

O ponto central que potencializa oposições e tensões entre estes sistemas é dado basicamente pela utilização/não utili-zação da máquina. Historicamente, o registro do desenho de plantas baixas e manuais técnicos passou por processos re-produtivos diversos como a xilogravura, a gravura em metal, a litografia, a cianotipia e a heliografia. Cada processo repro-dutivo foi sendo substituído pelo sucessor, tornando-se tecni-camente mais complexos e, cada vez mais, operados por má-quinas. Isso ocorreu pela necessidade de se produzir diversas cópias de uma planta baixa com custos cada vez mais baixos. Na transição do artesanal ao digital, a máquina assumiu um papel preponderante como ferramenta na produção de cópias. As máquinas geraram gradativas rupturas, finalmente levando o desenho técnico a ser totalmente produzido e reproduzido

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por ferramentas digitais e processos eletrônicos de impressão. Atualmente, devido à demanda, seria impensável reproduzir desenhos para engenharia e arquitetura do modo como ocor-ria no século XIX.

Como exemplo inicial, o trabalho intitulado Implante para motoboys, trabalho pertencente à série (im)prováveis, é iniciado pela construção de imagens através de software CAD e edi-tores de imagens. Sempre há a união de figuras mecânicas e biológicas. Alguns desenhos que compõem o projeto são rea-lizados à mão livre, posteriormente digitalizados, como as fi-guras humanas. Neste trabalho específico, a figura central é uma espécie de centauro tecnológico: meio homem, meio mo-tocicleta. É um trabalho que é um pouco crítico em relação ao aumento da rotina de trabalho dos cidadãos comuns de uma cidade qualquer. É como se o trabalho consumisse de tal forma o tempo de um trabalhador que este poderia ter sua fisiologia alterada para suportar a árdua rotina. Neste contexto, por que não existir motoboys que fossem um pouco dos seus instru-mentos de trabalho, ou ainda trabalhadores da construção civil hibridizados com retroescavadeiras a diesel, como no Implante para construção civil?

Com a ideia pronta, o trabalho necessita ser transferido para o universo da gravura. Uma vez finalizados os elementos e a planta baixa, a mesma é impressa em jato de tinta de forma invertida, como é necessário ao processo de gravação. A técni-ca de gravação que utilizo é a linóleografia. A imagem inverti-da, então, é transferida de forma manual para uma matriz de borracha com canetas e papel carbono, e logo após crio sulcos com a goiva acompanhando as linhas desenhadas. Os passos seguintes são respectivamente a entintagem, usando rolo de borracha, e a impressão para o papel, através de contínuos mo-vimentos da colher de madeira. Deste modo, no momento da impressão, tem-se o resultado visual de uma prancha azul com linhas brancas geradas pelos sulcos. Há variações significati-vas de textura e tonalidades, pois o processo de impressão ma-

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nual cria estas distorções.Nos trabalhos desta série, a figuração e elementos gráficos

como linhas, hachuras, pontos e traços são trazidos do dese-nho técnico e somam-se às sutilezas das texturas e marcas deixadas pelos processos artesanais da gravura. Visualmen-te, neste caso, a gravura não contribui com o tradicional jogo entre claros e escuros, mas sim com as texturas e marcas das ferramentas próprias do processo de gravação e impressão. As-sim, o processo artesanal da gravura somado à imagem digi-tal produzida no CAD acabam por unir as figuras do artesão e do engenheiro: figuras utilizadas por Gilbert Simondon em El modo de existencia de los objetos técnicos e que são sujeitos de uma metáfora sobre a obsolescência tecnológica.

As operações manuais da gravura acabam contribuindo para uma visualidade forjada e que, a meu ver, alude às ciano-tipias que eram utilizadas do final do século XIX ao início do século XX. Apesar de utilizar a linóleografia, o resultado visual assemelha-se muito às antigas cópias realizadas pelo processo Blueprint (aplicação da cianotipia para projetos de engenharia).

A cianotipia foi inventada em 1842, fruto das pesquisas do cientista inglês John Herschel. O aspecto das cópias, pro-venientes desse processo, apresentava desenhos através de li-nhas brancas sobre uma superfície com coloração azulada.

Este invento foi possível devido ao desenvolvimento do azul da Prússia, como ficou conhecido o primeiro pigmento azul produzido de forma sintética no século XVIII. Devido à produção de custo acessível, o azul da Prússia logo se tornou o pigmento azul mais popular do século XIX. Herschel utili-zou este pigmento no processo fotográfico, tornando-se um processo de custo baixo. A cianotipia consistia em um papel sensibilizado através de processos químicos sobre o qual per-maneceria um desenho realizado em superfície transparente (ex: papel vegetal). O conjunto então era exposto à luz solar, gerando uma cópia, a partir do desenho original, sobre o papel sensibilizado. Após a transferência do desenho para a cópia,

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esta recebia um banho para a retirada dos resíduos químicos fotossensíveis

Por volta de 1870, o processo de cianotipia foi aperfeiçoado e muito difundido entre engenheiros e arquitetos. Nesta épo-ca, foram criadas empresas especializadas em realizar cópias de projetos com esta técnica. Basicamente as cópias eram re-produzidas em dois modos distintos. O primeiro era conheci-do como Processo Blueprint e consistia em um processo negativo de impressão, ou seja, apresentava uma imagem a partir de li-nhas brancas sobre um fundo azul. O segundo seria o Processo Pellet, processo positivo, onde as linhas do desenho eram azuis sobre um fundo branco.

Deste modo, a gravura representa para mim este caráter duplo. Por um lado o meio para alcançar uma visualidade que na verdade é um simulacro do processo de cianotipia, por ou-tro lado, surge como uma metáfora da obsolescência tecnoló-gica. Neste ultimo caso, trabalhar com um processo que saiu há muito tempo do meio comercial de reprodução de imagens (gravura por entalhe) é um indicador de que os processos coti-dianos e a própria vida mudam.

E, na atualidade, as mudanças tecnológicas ocorrem muito mais rápido, forçadas por interesses mercadológicos. Imagine alguém na década de 1990 que, até então, sempre utilizou má-quina de escrever para redigir seus textos. Em um determina-do dia sua máquina de escrever elétrica estragou e o indivíduo verificou que não havia mais peças para consertar sua máqui-na. O mesmo se vê obrigado a adquirir um microcomputador com impressora matricial. Algum tempo depois, a impressora matricial também deixa de funcionar. O conserto vai sair mais caro do que comprar uma novíssima impressora a jato de tinta. A nova impressora é comprada. Mas, se esta impressora estra-gar, o consumidor vai descobrir que terá que comprar outra, pois não interessa ao fabricante que se obtenha peças baratas para consertar o equipamento. Quando comprar a nova im-pressora, vai descobrir também que os cartuchos da anterior

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não servem mais, pois são de uma tecnologia ultrapassada. E estas tecnologias, que somos forçados a consumir, vão grada-tivamente mudando nossos hábitos.

Fazer gravura, para mim, tem este caráter de retorno ao passado, talvez um pouco de resistência, apesar de ter conhe-cido a gravura após o acesso ao microcomputador e ao desenho vetorial. É uma espécie de retorno a um contexto pouco conhe-cido por mim, com toda uma visualidade própria. As ideias, máquinas e invenções do final do século XIX, início do XX, são fascinantes e representam um otimismo em relação à capaci-dade inventiva do homem. Naquela época tudo parecia possí-vel, até voar com máquinas mais pesadas que o ar. Os registros de patentes da época atestam isso. E mais, os homens daquela época não conheciam ainda o que a humanidade seria capaz de produzir, em termos de máquinas destrutivas, nas duas gran-des guerras que viriam, muito menos a bomba atômica.

5. Acredito que esta visita ao passado que alguns artistas realizam em suas produções é parte de um fenômeno global. Talvez seja mesmo a busca por imagens que sumiram ou que são mais rarefeitas diante da inundação de imagens do coti-diano. As imagens com as quais nos bombardeiam todos os dias acabam exprimindo uma visualidade pasteurizada. O que posso ver hoje, através das fontes de informação, mídia e entretenimento, vão ser praticamente as mesmas coisas que verei na semana que vem. Há uma certa monotonia resultan-te da produção em série destas imagens. As próprias notícias parecem se repetir. Terremotos, assassinatos, lançamento de foguetes e outros eventos podem ocorrer hoje na China e ama-nhã também poderão ser noticiados a partir do México, da Di-namarca ou do Brasil, gerando imagens semelhantes. Talvez olhar para o passado, para antigas tecnologias e para eventos passados seja mais interessante para a produção artística. O passado passa a ser um lugar rico para a criação, um verdadei-ro terreno para a ficção.

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Local de trabalho, sala 53 do Instituto de Artes da UFRGS.Foto: acervo do artista.

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Uma referência visual: Assault Copter,manual de instruções de montagem.

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Marielen Baldissera[1990, Erechim/RS]

Bacharela em Artes Visuais pelo Instituto de Artes Visuais da UFRGS, formada no ano de 2012, e mestranda em Poéticas Visuais no Programa de Pós--Graduação em Artes Visuais, na mesma universidade. Du-rante a graduação foi estagiá-ria no estúdio fotográfico Bee Happy (2010), bolsista de pes-quisa pela SEAD (2011), bolsis-ta na cobertura fotográfica do Congresso Brasileiro de Exten-são Universitária (2011) e bol-sista de fotografia do Departa-mento de Difusão Cultural da UFRGS (2012), quando foto-

grafou todos os eventos culturais realizados pelo departamento. Parti-cipou de exposições coletivas com obras fotográficas em Porto Alegre, Canoas, Erechim e Rio Grande. Em 2012 teve sua primeira exposição coletiva, intitulada Fotografei o Sobre, realizada no saguão da reitoria da UFRGS. Em 2013, a segunda exposição individual aconteceu na sala de exposições da UFCSPA, com a série Impermanências, fotografias resul-tantes de seu trabalho de conclusão de curso. Atualmente atua como fotógrafa free lancer. Trabalha e reside em Porto Alegre - RS.Foto: acervo da artista.

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MARIELEN BALDISSERA

1. Desde criança sempre desenhei e me interessava por arte. Acho que as primeiras imagens de arte a que tive acesso estavam nas ilustrações dos livros didáticos de história da mi-nha mãe, que é professora de história. Também folheava os li-vros de arte de uma tia que tinha interesse pelo assunto. Todas as mulheres da família fizeram um curso de desenho e pintura na escola de “Belas Artes” da cidade, e eu segui a tradição. Lá iniciaram meus estudos de arte propriamente ditos, apesar de a didática ser mais experimental, algumas professoras traziam coleções de livros de arte para as aulas. Mas sempre livros de arte clássica e moderna, sendo assim, meu primeiro contato com arte contemporânea se deu na faculdade. A partir desse momento identifiquei o que realmente me interessava, que é a fotografia, e comecei a focar mais.

As fotografias que me chamam a atenção não são necessa-riamente parecidas com as que faço. Gosto muito dos antigos fotógrafos documentais como Cartier Bresson, Walker Evans, Paul Strand, Diane Arbus. Quanto a isso sou antiquada, pois gosto da fotografia bem tirada, bem composta, bem focada segundo os padrões documentais. Não consigo me adaptar a alguns estilos de fotografia contemporânea em que a constru-ção visual da imagem não parece importante. Também gosto de fotografia de moda, com fotógrafos como Annie Leibovitz e Helmut Newton, fotografia de pessoas, em geral. Para não dizer que não citei nada de fotografia no mundo das artes, o estilo que mais me interessa é de fotografias em que há a re-petição de elementos e formas, como faz Andreas Gursky e, de uma maneira diferente, Vik Muniz.

2. Como minha área é a fotografia, a primeira artista que me veio à mente ao ler essa pergunta foi Irina Werning, fotó-

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grafa argentina que trabalha a questão do retorno ao passado. Irina fez – e continua fazendo – uma série de fotos que ficou famosa e se tornou viral na internet em 2011, a chamada Back to the future. Ela recria fotografias antigas com a pessoa retrata-da usando roupas parecidas, no mesmo espaço em que a foto foi feita, e com a mesma expressão no rosto. É necessária uma pesquisa constante para achar e produzir objetos, roupas e ce-nários que pareçam idênticos aos da foto antiga. O trabalho é minucioso, nenhum detalhe é deixado de lado.

Em suas fotos vemos claramente a passagem do tempo e seus resultados, as mudanças que ocorreram, e também o que permaneceu igual. Segundo o que ela fala em seu site, a ideia surgiu devido ao seu amor por fotos antigas (algo que compar-tilho) e pela curiosidade em saber como as pessoas pareceriam e se sentiriam ao reencenar tais fotografias. Irina procura bus-car fotografias que digam algo sobre a pessoa, que contenham alguma expressão ou gesto interessantes de recriar, seu objeti-vo é tocar as pessoas e as fazer rir.

Não creio que nesse caso a artista use desse jogo de revisi-tação do passado como um meio de propor novas questões. Ela diz que as fotos falam por si mesmas, é apenas uma questão de como as pessoas eram antes e como estão agora, não há nada por trás disso. Mas não é por ter um fim em si mesmo que o tra-balho se torna menos interessante. Irina diz que a fotografia é uma ótima desculpa para entrar na vida das pessoas, conhecê--las e fazer parte da sua história por alguns momentos, entrar em suas casas e entrar em seu mundo particular. As pessoas querem contar suas histórias, e as histórias que existem por trás das fotografias. Acho que a fotografia se presta para o re-torno da memória e recuperação do passado como ferramenta perfeita, pois toda fotografia tem uma história.

3. A Internet é essencial para a minha pesquisa artística, quase tudo o que se precisa saber pode ser achado em algum

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site. Em minha pesquisa sobre os locais em ruínas de Porto Alegre, praticamente toda a informação histórica que conse-gui, achei na Internet. Existem muitas fotos da cidade de épo-cas passadas em bancos virtuais, além de informações sobre sua história. Também pesquisando a história da fotografia de dança, encontrei fotos em bancos de imagens na Internet, fo-tos que não encontrei nem encontraria em livros. Há muitos bancos de imagens de bibliotecas e instituições culturais que possuem imagens em resolução razoável e disponíveis para download. Muitos deles estão organizados em plataformas como o Flickr, a qual utilizo muito. Além de obras de referên-cia que não temos oportunidade de ver pessoalmente e na rede podemos encontrar. Agora mesmo, para responder essa entre-vista, procurei informações sobre a artista Irina Werning na internet e achei coisas que não havia visto antes, sempre há conteúdo novo, a todo o momento.

Claro que a busca muitas vezes não é fácil e é preciso des-trinchar e seguir vários links até conseguir encontrar o que deseja. Apesar disso, acaba sendo muito mais prático e rápi-do que uma pesquisa em biblioteca, mas ainda não substitui o conhecimento que se tem em um livro. Muitas vezes, quando não está em artigos ou documentos de sites oficiais, o conteú-do que está na rede é muito leviano e não se sabe suas origens. É preciso saber separar o que pode ser usado e do que se deve desconfiar.

4. Eu me interesso muito pelo tema do passado, da história e da memória. Em meu trabalho de conclusão de curso pelo Instituto de Artes Visuais da UFRGS, esses foram meus temas de pesquisa. No projeto intitulado Impermanências – o rastro que inscreve a lembrança fiz uma relação da fotografia com a ruína e com a passagem do tempo, para isso dançarinas foram fo-tografadas nesses lugares executando movimentos de dança. Esses movimentos foram captados pela fotografia, de modo

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que sua sequência foi representada pelo “borrão” do caminho traçado pelo bailarino durante a execução do movimento. O borrão representa a passagem do tempo, assim como as mar-cas nas paredes das ruínas representam a impermanência da vida e sua fugacidade.

Ballet e ruínas sempre foram dois assuntos do meu interes-se. Fiz ballet durante oito anos na minha cidade natal, Erechim. Nesse meio tempo surgiu o interesse pela fotografia e o pri-meiro contato com uma câmera digital. Desse modo, registra-va os bastidores das apresentações e o cotidiano das aulas e dos ensaios. A delicadeza do ballet, suas formas e movimentos pa-recem ter sido feitos para a fotografia. Já os lugares abandona-dos me chamam e sempre chamaram a atenção, ainda mais se deslocados em meio à cidade dividindo o espaço com prédios modernos. Eles remetem à memória, à passagem do tempo e às transformações que com ela vêm.

As ruínas que utilizo são contemporâneas, estão no meio da cidade ou mais afastadas, mas de qualquer forma, esquecidas. Junto desse resgate, há a ação simbólica de preservar os pré-dios na memória fotográfica, antes que a ação do tempo se dê por total, ou até mesmo a ação do homem, por meio de demoli-ções ou reformas que tiram toda personalidade e originalidade do local. Assim retratei situações expressivas contemporâneas em cenários que remetem a diferentes momentos históricos. O resultado obtido pode ser visto nas imagens em anexo, a pri-meira foto foi feita no Museu Júlio de Castilhos, no centro de Porto Alegre e, a segunda, na Ilha das Pedras Brancas, em um presídio abandonado no meio do lago Guaíba.

5. Creio que há uma globalização no interesse ao passado e pesquisa sobre o tema da memória no campo das artes visuais. Penso que esse movimento esteja relacionado ao nosso modo de viver atual, sempre na correria do dia-a-dia e sem tempo para nada. Queremos economizar tempo e nos são dispostos

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instrumentos para isso, precisamos ter tempo para fazer to-das as atividades as quais nos propomos, o que às vezes parece impossível.

O resgate ao passado vem como uma forma de parada, de querer mostrar que não é só o aqui e agora que interessam e são verdadeiros. O tempo hoje é vivido de maneira diferente, muito mais rápido e instantâneo, no passado ele demorava mais a passar, e essa demora faz falta em alguns momentos. A fugacidade e o excesso de estímulos exigem um momento de descanso, a contemplação exige tempo. A valorização do tempo que se foi pode ser uma maneira de lançarmos um novo olhar para o que nos forma como seres humanos e como indivíduos. Tanto as grandes histórias como os pequenos relatos íntimos são modos de falar do passado, ambos possuem sentimento de nostalgia. Diferentemente das obras da vanguarda modernista que buscavam recusar e se diferenciar do passado, nesse mo-mento temos vários artistas interessados em voltar atrás.

Em meu trabalho Impermanências, citado anteriormente, quis trabalhar essa questão do tempo também no modo de fa-zer as fotografias. Com o obturador aberto por segundos a fio – o que é muito, considerando que as fotografias normalmente são feitas em décimos e até milésimos de segundos –, o resul-tado também exige tempo de contemplação para “entender” a foto. Também faço o resgate da memória de locais do passado, buscando valorizá-los. Não podemos deixar o passado esque-cido, pois dele depende o rumo que o futuro irá tomar. Não podemos perder nossas referências.

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Material de trabalho. Foto: Marielen Baldissera.

Marielen Baldissera: Impermanências, 2012, fotografia digital,impressão em papel matte, 75 x 50 cm.

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Marielen Baldissera: Impermanências, 2012, fotografia digital,impressão em papel matte, 75 x 50 cm.

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Marina Guedes[1985, Porto Alegre/RS]

Bacharel em Artes Visuais pela UFPel. Possui especia-lização em Poéticas Visuais pela FEEVALE. Atualmente é mestranda, com bolsa CA-PES, em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRGS

(2011-2013). Últimas exposições coletivas: Pós-Paisagem – Arte Londri-na, em 2013, na Divisão de Artes Plásticas da UEL em Londrina-PR; XI Bienal do Recôncavo, em 2013, no Centro Cultural Dannemann em São Félix-BA; e Arte Sul Contemporânea na Galeria Xico Stockinger/MAC--RS; Lapsos na Associação Riograndense da Artes Plásticas Francisco Lisboa; e Pintura e Desenho – A Novíssima Geração no Museu do Trabalho, em Porto Alegre-RS. Em 2011 participou da última edição da série de exposições Arte no Porto (quinta edição), realizada no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo em Pelotas-RS, da terceira (em 2009) e segunda (em 2007) edições da mesma. Em 2010 participou de exposição coletiva do projeto Portas Abertas, na galeria A Sala do Centro de Artes da UFPel. Participou da edição de julho do Projeto Quadro Branco no StudioClio, Porto Alegre-RS, em 2012.Foto: acervo da artista.

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MARINA GUEDES

1. Procuro evitar pensar em inquietações que possivelmen-te me impulsionaram durante a infância, o contato inicial mais profundo que tive com as artes visuais foi durante a gradua-ção. Entretanto, não posso ignorar as influências e contamina-ções que minha “cultura visual” sofreu desde a minha primeira “memória” (acredito ter sido aos 4 anos de idade, e segundo parcas leituras sobre amnésia infantil posso afirmar que aconte-ceu como naturalmente acontece – exceto uma peculiaridade que pode ser comentada em outra oportunidade). A partir daí posso falar sobre uma de minhas principais questões: a já men-cionada memória. Mas antes, inevitavelmente, devo falar um pouco sobre minha vida a partir dos 10 anos.

Nasci em Porto Alegre, mas quando eu tinha 10 anos de idade, minha família mudou-se para Pelotas, cidade em que morei por 14 anos. Nossa primeira morada foi um sobrado muito antigo, que hoje deve ter uns 100 anos. Na sala de estar sempre existiu um lustre daqueles enormes, com presença vi-sual marcante, portas estreitas, pé direito muito alto (mais de 3 metros). Minha mãe sempre gostou muito de antiguidades e povoava o sobrado com elas. Normalmente eu estava presen-te no momento das compras ou trocas que ela fazia – ainda faz, e muito – nestas versões mais acessíveis de antiquários. Desta forma eu acabava perambulando por estes estabeleci-mentos que vendem e trocam tais peças – locais vulgarmente conhecidos por “briques”, se me perguntar a origem do termo não saberei responder –, e estes, muitas vezes, possuem uma atmosfera tomada pela desordem, amontoamento de móveis, grande diversidade de objetos, revistas, LPs, peças de vestuá-rio, armas, receptáculos... Todos cobertos por teias de aranha, poeira... São ambientes que me instigam, porque descubro pe-ças que considero valiosas.

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Além deste contato com antiguidades, Pelotas é uma cida-de impregnada desta memória. Existem casarões antigos res-taurados ou não, bem conservados ou não. Portanto, absorvi um pouco desta atmosfera e vejo que isto conduziu o que pro-duzo hoje. Tenho um apreço por estes e procuro olhar com cui-dado para fotografias antigas, mobiliário antigo, casarões an-tigos, ruínas geradas pelo tempo e abandono... Todos eles têm uma história e ela chama minha atenção. Entretanto, esta não é uma história baseada em fatos explícitos, mas uma história que emana, presente nas marcas do abandono, nos arranhões, no lento desvanecimento, nos ornatos danificados pelo tempo, vejo que estes elementos funcionam como documentos dentro destes objetos que também podem ser documentos. Não tenho interesse em investigar as origens de cada objeto que colecio-no, mas de imaginar por onde ele andou e qual sua relevância para alguma pessoa que talvez já não esteja mais viva. Não é delírio acreditar que uma fotografia antiga ou um objeto obso-leto pode ter um silêncio.

2. Considero um ato corajoso adentrar outras disciplinas, e continuar utilizando arte como mecanismo para problemati-zação de determinada ideia em outras disciplinas e na própria arte, sem deixar de enfatizar a visualidade como principal con-tato inicial. Dos artistas que mantenho contato, da minha ge-ração – eu inclusa – e de gerações anteriores, por vezes identi-fico uma contaminação positiva nos trabalhos, devido à orien-tação que recebem de seus professores. Artistas que buscam na academia, ou em outras escolas, diretrizes e subsídios para o desenvolvimento de possíveis obras, estão sujeitos a isto e con-sidero esta contaminação uma grande contribuição por parte de nossos professores e também por parte das gerações ante-riores. E o surgimento e consolidação da pós-graduação em artes, oportunizando um rigor teórico, e em como este even-to influenciou a maneira de pensar a arte pelos jovens artistas que estudaram mais densamente movimentos que precede-

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ram sua época, podendo lançar um olhar crítico e embasado sobre o período em que viveram e produziram, é um dado de permanente importância, como já é sabido. E como já mencio-naste isto ainda acontece e não apenas tendo a graduação em artes visuais como geradora deste conhecimento, que impul-siona à crítica, e também a responsável pelo surgimento das problematizações propostas pelos artistas, mas também há o interesse do artista autodidata. Entretanto não mencionarei um artista que não tenha experienciado a academia como par-te de sua formação e profissionalização, porque hoje também fazem parte de minha “cultura visual” e lentamente vou com-preendendo o que eles tratam em suas obras de acordo com o repertório que adquiri frequentando a academia, bem como o conhecimento que procuro ter sobre o discurso deles a respeito de suas próprias obras.

Ambos os artistas trabalham com pintura a partir de foto-grafias. Um deles é Michaël Borremans, que costumo mencio-nar como uma possível referência para meus trabalhos. Nasci-do em 1963, em Geraardsbergen na Bélgica, concluiu o mestra-do em 1996, pela Hogeschool voor Wetenschap en Kunst, Cam-pus St. Lucas, em Ghent, Bélgica. Borremans também tem uma produção conhecida em desenho, mas vou falar um pouco sobre as pinturas e o que elas transmitem. Nas obras deste ar-tista os títulos direcionam o olhar para um sentido outro; di-ferente seria se tais imagens não fossem intituladas de forma tão contundente, não teriam mesmo sentido e dubiedade. Um exemplo é The Bodies 3, pintura em que dois homens são retra-tados, deitados, em primeiro plano (enquadramento do peito para cima) e com olhos fechados. Em entrevista concedida em 2009 a David Coggins, Art in America (http://www.artinameri-camagazine.com/features/michael-borremans/), Borremans afirma que desejou se referir à morte ou à “brincar de morto”, o que causa estranhamento, porque “na história da pintura os homens vão à guerra e lutam”, desta forma há uma tensão no sentido de alterar a “psicologia masculina”, colocando o ho-

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mem como um ser frágil no lugar da mulher. Outro exemplo deste é Thunder, de 2006, pintura que já apresentei em breves experiências com docência e nelas os ouvintes mencionaram diferentes interpretações para a forma como os elementos es-tão colocados, projeção de sombras, organização de planos... (A primeira vez que vi esta pintura, pensei ter me deparado com um ato de violência).

Mesmo na pintura de Borremans estando preocupada com a representação e suas dubiedades – as quais inevitavelmente relacionamos ao surrealismo belga –, também é possível iden-tificar uma certa gestualidade e liberdade nas pinceladas, al-gumas transparências, e uma preocupação com a luz como ele-mento cênico, como facilmente encontramos em pinturas de Édouard Manet e Diego Velázquez – que Borremans assume como referências.

O outro artista é mais jovem e encontrei muito recente-mente em buscas na internet, enquanto pesquisava sobre ar-tistas que pensaram e ainda pensam sobre procedimentos que também tomo como meus. Marin Majić nasceu em Frankfurt, Alemanha, em 1979. Em 2011 concluiu mestrado na Academy of Fine Arts em Zagreb, Croácia. Trabalha também com pinturas a partir de fotografias. Segundo o próprio artista, em uma bre-ve conversa via e-mail, a colagem é seu procedimento. Ele uti-liza um software de edição de imagens, para justapor figuras de diferentes fontes e contextos. No entanto esta justaposição é visível devido à clareza com a qual o artista organiza o que vai pintar – se tornando uma sobreposição. Em algumas obras não há preocupação com coerência entre as cores dos objetos, defi-nição de limites etc. – como em Munson and Wunson de 2012, e Study for a Cursing Horseman de 2013 –, além do anacronismo e a colagem como um mecanismo gerador de anedotas. E algu-mas têm um apelo perturbador de acordo com a representação das figuras, e como estas pinturas podem apresentar códigos que não são positivamente absorvidos – como em Hundstag 1 de

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2012, Hundstag 2 de 2012, e Father and Son de 2012.Ambos os artistas assumem sua preferência pela pintura

de grandes mestres holandeses (inserindo aqui a pintura de gênero, que mencionaste na pergunta). Ambos se apropriam da técnica – e acho que posso me referir a ela como representa-ção – para pensar as imagens que utilizam e como essa descri-ção gera um sentido.

E vejo este “revival” apresentado por estes dois artistas como um mecanismo gerador de novos sentidos. A imagem e o título à primeira vista, por vezes, podem não tratar da mesma coisa, e quando tratam conduzem o olhar e o entendimento do que está sendo visto por um outro caminho que não o da ob-viedade.

3. Mesmo navegando na Internet, utilizando como ferra-menta de pesquisa, opto por não buscar nela subsídios ima-géticos para minha produção. Prefiro encontrar as fotografias em lugares que não as expõem em algum ambiente virtual. É um dos raros momentos em que me permito excentricidades – vindas daquela, felizmente, combatida imagem do artista como ser puramente expressivo –, considerando que a Inter-net é uma ferramenta que oferece grande praticidade. Busco ir em direção oposta a esta facilidade. Talvez esteja distorcendo o conceito, mas acredito que fotografias antigas – as quais fo-ram concebidas por equipamentos analógicos – expostas em um web site perdem sua aura. Quando digitalizadas perdem características visíveis somente em sua presença física e a dis-seminação e reprodução das mesmas é incontrolável.

4. Meus trabalhos são desenhos feitos a partir de fotogra-fias antigas, que normalmente têm em média 60 a 40 anos de existência e possuem marcas além de sinais do tempo visíveis no esmorecimento dos contrastes da imagem. São fotografias com autoria desconhecida e que, aparentemente, fizeram par-te de arquivos familiares. Esta memória, que não me pertence, me conduz por jornadas imaginativas. Ao ver tais fotografias

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me questiono sobre as pessoas ali retratadas, até sobre seus gestos e personalidade.

Com a memória presente nas imagens que elejo e nos dese-nhos que produzo, busco conduzir o olhar para estas vivências materializadas nestas imagens e nestes objetos. Estes “mate-riais do passado”, como mencionaste, não são apenas os mate-riais, os subsídios, que utilizo para a construção de meus tra-balhos, mas também tempos, ideias, modelos que trago à tona por datas presentes nas imagens, os títulos que muitas vezes têm a conjugação dos verbos no passado, como se apresentas-sem algo que realmente acontecera, mas simultaneamente se entregam tão facilmente que tais afirmações podem ser ques-tionadas enquanto “verdade” (e até acredito que a própria ob-solescência, enquanto algo ultrapassado é questionável a res-peito do que foi superado, um exemplo disto é a obsolescência planejada).

Inevitavelmente as fotografias que utilizo para a feitura de meus trabalhos evocam memórias de quem vê. Posso afirmar porque já ouvi espectadores comentando sobre o que veem no desenho: “esta imagem lembra uma foto de minha infância”; “tenho fotos assim de quando eu era criança”; “minha família também tinha uma Kombi e certa vez alguém fez uma foto muito parecida”. Elas retratam momentos comuns, de um pas-sado não muito distante. E nestes momentos, normalmente, ouço histórias que possivelmente ocorreram. Essa maneira como a memória é mediada, como ela sofre interferências ex-ternas, me interessa. Tais fragilidades como um mesmo ocor-rido pode ser rememorado de formas diversas por pessoas diferentes, tudo de acordo com as expectativas e o posiciona-mento de cada um em uma mesma situação, e também, como esta memória se transforma de acordo com o momento em que é acessada, também chamam a minha atenção.

Produzindo estas imagens, intento provocar tais memó-rias. Às vezes como uma projeção, para que o espectador possa acessar algo que ocorreu em seu passado ou não, podendo ser

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uma construção ficcional.

5. Consigo compreender que existem interesses diversos, mas que não são genuínos – ou puros – devido às interferên-cias que os artistas sofrem durante a formação (como já men-cionei anteriormente) dentro e fora da academia; e tais inte-resses podem mudar de acordo com a localização geográfica. Mas não é algo que eu localize como fenômeno exclusivo da-qui. Acredito que as fontes antigas e essas tecnologias obsole-tas fascinam pela curiosidade que geram em relação ao signi-ficado e uso (das fontes), bem como advento da criação gerado em seu passado (das tecnologias). A documentação completa do passado, além de improvável, nos impediria dar um passo à frente porque, desta forma, ficaríamos presos às evidências do que ocorreu (um exemplo que poderia explicar minha afirma-ção é a tentativa de Bill Viola em gravar, ininterruptamente, os sons de um espaço. Posteriormente o artista percebeu que se-ria impossível ouvir toda a gravação porque precisaria de todo o tempo disponível para isto, tornando a realização do traba-lho impossível). É necessário que haja um abismo entre o que aconteceu e o que se sabe que aconteceu. Gosto de imaginar que é por isso que muitas vezes fantasio pequenos aconteci-mentos, que não foram documentados. O interesse pelo pas-sado, e o desejo por voltar atrás são uma utopia, quando o que ocorreu não acarretou em um trauma. Gera um devaneio sobre o que aconteceria: seria melhor, pior ou indiferente, mas que mudaria o curso das coisas. Claro que se pensarmos de forma geral, nas artes o passado tem um grande peso, possibilitando mudanças de paradigmas, mas no momento é como se ela ca-minhasse em outra direção e com outro objetivo.

Contudo, não acredito que seja uma globalização, porque desta forma estaria afirmando que todos os artistas cultivam interesse pelo passado e materializam isto em sua produção. Vejo que no atual cenário existe um dispersar, como uma poli-nização deste interesse.

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Local de trabalho.Foto: acervo da artista.

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Marina Guedes: Memória II - Praia, da série Desenhar, Esfumar, Apagar ou não, 2012, desenho sobre papel, 150 x 183,7 cm.

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Michel Zózimo[1979, Santa Maria/RS]

É artista, pesquisador e professor de artes visuais no Cap-UFRGS. Desenvol-ve doutorado em poéticas visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Em 2013, integra a 9ª Bienal do Mercosul, foi selecionado

para o 18º Festival Internacional de Arte Contemporânea/Vídeo Bra-sil e contemplado pelo edital Conexão Artes Visuais Minc/Funarte/Petrobras-2012, com o projeto do livro Assim que for editado, lhe envio. Em 2012, participou de residência artística no Hangar, Barcelona, pelo prêmio do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo. Realizou exposições na Temporada de Projetos do Paço das Artes, São Paulo, 2012; Rumos Artes Visuais, Itaú Cultural, São Paulo, Rio de Ja-neiro, 2011- 2013; Futuro do pretérito, galeria Mendes Wood DM, São Paulo, 2012. Em 2011 foi selecionado entre os 30 finalistas do prêmio Marcantonio Vilaça, 2011-2012 e participou da 3ª Codex Internatio-nal Book Fair & Symposium Borders and Collaborations, The Codex Foundation, São Francisco, EUA. Em 2010, publicou o livro Estratégias expansivas da arte: publicações de artistas e seus espaços moventes, receben-do o prêmio Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais pela Funarte.Foto: Fernanda Gassen.

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MICHEL ZÓZIMO

1. É estranho pensar nessa questão, tentando articular com a minha formação em cultura visual. Mas, foi o cinema. Dos 9 aos 12 anos, assisti muitos filmes em um cinema de rua, quase todos os dias da semana. Incontáveis vezes, os mesmos filmes. No início dos anos 1980, meu avô havia reformado o Cinema Independência, na cidade de Santa Maria/RS, estabelecendo um vínculo de amizade com o proprietário e com os seus funcio-nários. Tínhamos livre acesso ao Cine Independência. Como as minhas aulas do ensino fundamental aconteciam pela manhã, as tardes eram vazias. Em virtude deste fato e para não ficar sozinho em casa, quase todos os dias eu era levado ao cinema. Na parte da tarde, ao ir para o trabalho, a minha mãe deixava--me na primeira exibição. Naquela época, se podia ficar após a exibição do filme, para assisti-lo novamente. Eu fazia isso, pois não conseguia acompanhar as legendas. A primeira exibi-ção era para olhar as imagens, a segunda era para ler o texto. Também, se o filme não me agradava, eu mudava de sala. Ha-via três salas de exibição. Às vezes, entrava no meio de uma sessão. Quando o filme não era adequado para a minha idade, o lanterninha não permitia a minha entrada.

Era também a possibilidade de ver em cores. Não possuía-mos em casa tv colorida. Todos os filmes que foram exibidos no Cine Independência, de 1986 até 1990, eu tenho a certeza convic-ta de ter assistido. Inclusive os inapropriados, pois conseguia burlar os lanterninhas, após o início das sessões.

Havia um certo pavor de ficar sozinho dentro do cinema. Certas vezes, algumas sessões eram exibidas para poucas pes-soas. Eu sempre procurava uma fila em que não tivesse nin-guém e que fosse perto do corredor.

Em 1988, com 11 anos de idade, assisti um filme que mar-cou muito a minha lembrança visual: A insustentável Leveza do Ser. Não lembro de toda a história. Nunca mais revi este filme.

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Mas lembro de imagens impregnantes. Era sobre uma história de amor. Alguém fotografa no filme. Não sei se era ela ou o seu amante. Gostava do nome filme, ficava pensando nesse título.

É essa a imagem que escolho para ilustrar a minha resposta e é através dela que penso em todas as possíveis relações que hoje estabeleço com a minha poética.

No início dos anos 1990, o Cine Independência mudou de proprietário. Então, não era mais levado ao cinema.

Agora ficava em casa e via televisão.

2. Na pergunta número 5 acredito responder esta questão de uma forma mais interessante com nomes de artistas que, de certo modo, trabalham com questões do passado. Entretanto, os artistas mencionados apenas ilustram um modo de observa-ção, entre tantos outros infinitos que partem de um ponto de perspectiva – o passado como referência contextual ou como repositório de materiais e imagens. Outras tantas abordagens poderiam ser efetivadas através das poéticas de tais artistas que, possivelmente, abririam outras leituras.

Sobre tal fenômeno, onde formas, características ou ele-mentos do passado retornam com força por meio de resgates artísticos, acredito ser um acontecimento recorrente em artes visuais. Além dos mencionados na pergunta, lembro também aqui da retomada de valores e ideologias da arte grega pelo Renascimento e do retorno de artistas ou autores do início do século XX pela Arte Conceitual, nos anos 1960.

Em todos os períodos, os artistas olham para as coisas que os rodeiam. A natureza antes como modelo. A religião depois como guia. As novas tecnologias de imagens. A indústria como futuro anunciado. O cinema como retrato de massa. A lingua-gem como estrutura do pensamento. A arquitetura como for-ma limpa. A natureza, novamente, agora como espaço de inter-venção local. O lixo como material potente. Isso tudo parece se repetir em ciclos que retornam constantemente em intervalos de tempo, mais ou menos, iguais. O mundo parece não avançar

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em uma linha reta, mas sim em uma curva. Mudam os nomes das minorias. Mudam os partidos. As

grandes questões ainda são as mesmas. As instituições alteram seus modos de operar, mas seus produtos continuam os mes-mos. Surgem novas profissões para velhos cargos e ocupações antigas. Agora, são os curadores. Ontem, foram outros.

No contexto atual, os artistas que trabalham com elemen-tos ou materiais antigos, ao meu ver, diferem de outros mo-vimentos ou períodos históricos, os quais já foram menciona-dos. Hoje, eles estão sozinhos, como ilhas. Não caracterizam movimentos, com interesses comuns. E não retomam o passa-do como modelo idealizado, como estrutura para pensar nos-talgicamente velhas questões ou como problemas ainda atuais. Acredito, e agora não respondo pelos outros, que: o que ficou no tempo remoto e distante ainda está disponível. No sentido lato da palavra: aquilo que está livre.

Estando livre, o passado deixa de ser modelo de uma deter-minada época e aponta para o futuro. Mas, somente, quando o presente é urgente.

3. Acredito que tenha alterado sim o acesso às imagens. Mas, em meu processo de trabalho, a internet não é utilizada para acessá-las. Vou direto aos livros impressos. Tenho inte-resse pela materialidade da página do livro. Sem saber o que encontrarei, começo a folhear livros e enciclopédias. Encontro imagens estranhas, padrões, equívocos de cor, erros de im-pressão, retículas, imagens fora de registro, formas abstratas, desvios de paralaxe. Coleto as imagens, destacando-as dos li-vros. Passado um certo tempo, tenho uma série. Volto aos li-vros e busco os contextos destas imagens. E tenho o material para criar as ficções. São também “imagens-não arte”, mas per-tencem ainda aos livros impressos. A internet é usada apenas para conferir informações e pesquisas de caráter bibliográfico ou técnico. Nunca utilizei imagens captadas da web. O meu “museu imaginário” é aquele mesmo que foi para Malraux: o

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livro impresso. No meu caso, a internet funciona para ver fil-mes, ouvir música, pesquisar livros e escrever e ler e-mails. Claro que as imagens estão sempre ali, mas em um outro plano de interesse.

4. Faço agora um exercício que retoma algumas passagens importantes de meus encontros com esses materiais, as quais vão além de minha experiência artística. A impressão que te-nho, ao lembrar de alguns contatos com imagens do passado, materiais ou tecnologias defasadas, é que sempre vivi atrasado no tempo.

Fomos ter televisão a cores quando eu tinha 14 anos. Isto era 1991. Passei a minha infância inteira imaginando as cores dos desenhos animados. Me acostumei com o baixo contraste do preto-e-branco. A cor passou a não ser importante. A tele-visão muito menos. O telefone foi instalado em nossa casa em 2000. Ano em que entro para a Universidade e que este meio de comunicação passa a ser necessário. Antes disso, pulava o muro de minha casa e me deslocava ao vizinho que empres-tava sempre o seu telefone. Todos os trabalhos acadêmicos da graduação foram escritos com máquina de datilografar, pois os professores não aceitavam trabalhos redigidos à mão. Esta foi a solução que encontrei para burlar a falta de computador. Os trabalhos em vídeo que produzi, entre 2002-2005, eram em VHS, uma tecnologia já defasada nessa época. Hoje, as minhas experiências em vídeo são em super-8.

Fui ter um computador usado, um 286, em 2006, ano em que me mudava para Porto Alegre e que entrava no Mestra-do. De 2006 a 2007, não tínhamos internet. Os trabalhos e pes-quisas eram feitos em lan houses e em casas de amigos que nos emprestavam os seus computadores. Para adiantar o “serviço”, eu levava os trabalhos escritos à mão e apenas os transcrevia. Em 2007, ao levar um trabalho para apresentar em uma aula do Mestrado, salvo em disquete, percebo que os computadores da Universidade já não possuíam drives para este formato de

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mídia. Somente a partir de 2008 instalamos internet em nos-sa casa e compramos um computador novo. A televisão a cabo foi instalada apenas em 2009. Antes disto, lembro de combinar com amigos, aqui em Porto Alegre, para assistir em suas casas o seriado Lost.

Quando relato isso, penso o quão defasado eu era em re-lação aos novos meios e tecnologias e reflito também sobre o meu contato com imagens. Ainda não alcancei o presente. Não faço parte de redes sociais. Não sei mexer em programas de editoração de imagem. Tenho um celular com aplicativos que não uso, somente comprado neste ano.

Fico na dúvida, se o que escrevo aqui pode parecer dema-siado pessoal. Ou se isso é realmente importante para quem o lê. Ao mesmo tempo, faço apenas uma retomada de alguns aspectos que, sim, impregnaram o meu modo de articulação com o futuro. Um conceito que eu nunca estive perto mate-rialmente. Portanto, refiro-me a algumas lembranças pessoais, para deslocar o foco de minha percepção para o pressuposto presente. E é neste momento de escrita que misturo os tempos, para poder pensá-los.

A partir desse exercício, relatando tais fatos, penso agora em como se dá a minha relação com tais imagens e materiais. Como intuo aquilo que faço e como estruturo os meus métodos de invenção a partir de imagem. Tenho um fascínio por quase tudo que é antigo. Arquitetura, mobiliário, automóveis e livros. Até as músicas novas que gosto parecem músicas velhas. Os livros são as peças mais importantes. É através deles que tomo contato com todas as outras representações antigas. Os livros velhos contêm todas as coisas velhas. São espécies de portais para um outro tempo. E são eles que servem de plataforma para os meus trabalhos.

O que faço atualmente, em artes visuais, é a mesma coisa que fazia há 13 anos atrás, quando entrei na graduação e come-cei a desenvolver uma pesquisa mais elaborada. Neste período, livro-objetos e livro de artistas eram construídos com páginas

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de livros antigos. Era uma fase barroca, muito ainda ligada à materialidade das peças, à estrutura física dos trabalhos e ao seu caráter tátil. Essas peças eram manuseáveis. Montava li-vros que passavam a existir a partir de outros livros. Inventava autores, trechos de livros inexistentes, citações, notas de roda-pé, editoras...

Ao longo de toda a graduação, Suzana Gruber, minha orientadora e hoje amiga, fornecia-me todo o material de que eu necessitava: livros muito antigos, alguns raros, os quais ha-viam pertencido ao seu pai Jorge Arthur Gruber.

Em 2008, criei uma série, em processo até hoje, chama-da Fluxorama, a qual parte de uma ficção, onde um cientista, mergulhado nas décadas de 60/70, desenvolve pesquisas que transitam entre diferentes campos: ciência, arte e questões de-rivadas daquilo que pode ser nomeado por natureza. A fonte destas pesquisas são livros didáticos e enciclopédias da década de 1930 até os anos 1970. Portanto, as imagens são imagens do passado, com todos os ruídos que lhes são inerentes.

Ao mesmo tempo, essas são as imagens do meu presente. Na época de suas edições, muitas imagens apontavam para o futuro. Os livros científicos devem tratar de um presente recen-te e apontar ao futuro. Pelo menos é isso que se espera de um li-vro que tem como assunto a ciência. A atualidade e o frescor da informação. Observo que muitos dos volumes que manuseio tratavam do futuro. Exemplificando, tais volumes apresentam novas máquinas, tratamentos revolucionários, elementos quí-micos recentemente descobertos (…). Isso lá em 1970.

O estranho de tudo isso é que continuo lendo velhos livros como novidade. Porque para mim essas imagens, apesar de já vistas, são inéditas. Faz sentido essa lógica de pensamento?

Esboço essa pergunta para pensar se o que digo é coerente com aquilo que faço. Ao mesmo tempo, penso nas minhas re-ferências teóricas (…).

Enquanto isso, leio ficções de escritores argentinos.

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5. A arte antecipa muita coisa. O que vem depois é subpro-duto de um pensamento que estava adiante. Recentemente, a Brastemp produziu uma linha retro de geladeiras. A LG, há uns três anos atrás, lançou uma tv de tubo, em pb e modelo futurista da década de 1970. A Chevrolet começou a fabricar, em 2009, um modelo atualizado de um carro da década de 1960. A cada ano, a Adidas relança modelos antigos de tênis. O Ins-tagram, aplicativo digital, simula filtros “podres” com defeitos analógicos em fotografias digitais. No Brasil, em 2012, foi lan-çada, pela Fuji, a máquina fotográfica Instax, um modelo atual de uma máquina polaroid. Inúmeros vídeo-clipes recentes são filmados em super-8. Há alguns anos atrás, o músico Deven-dra Branhart produziu um disco seminal com o áudio original todo gravado em fita cassete, com o som captado em ambiente caseiro.

Essas informações que menciono aqui são alguns dados que chamam a minha atenção para algo mais amplo que a arte e, portanto, muito mais genérico. Trata-se, ao meu ver, de um fenômeno generalizado de retorno ao passado e de revisão daquilo que poderíamos chamar, grosseiramente, de arquéti-pos retros. Talvez, demasiado superficial e muito mais ligado às características estéticas das coisas. Apelando para o visual, apenas. E para algo que não nos interessa tanto, como a moda ou como a publicidade. Pelo menos é isto que penso. Portanto, falo aqui de amenidades para poder pensar naquilo que real-mente nos instiga e que nos cabe discutir: a arte. Como esse campo influência todas as outras esferas. E, igualmente, como os acontecimentos periféricos e generalizados contaminam a arte.

A Bauhaus influência até hoje o pensamento em design. A

arquitetura moderna ainda é futuro. O livro impresso ainda é uma tecnologia que funciona. Michel Gondri ainda, brilhante-mente, faz uso de baixas tecnologias em seus filmes. Salas de

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cinema que apresentam filmes em película lotam de pessoas que querem ver esse tipo de imagem.

A partir desse panorama, penso sobre o interesse da arte pelo passado e chego ao pensamento de que a arte contempo-rânea não está ligada ao tempo, no que se refere à fontes, tec-nologias obsoletas ou documentos históricos, da mesma ma-neira que todos os outros campos estão. Entendo essa pergun-ta e todos os indícios que levam para essa direção. Entretanto, penso que há um grande número de artistas trabalhando com esses elementos ligados, de certa forma, ao passado. Isso im-pregna a leitura ou a abordagem que podemos efetuar sobre este escopo de produção. Ao mesmo tempo, esse dado pode servir para analisarmos todos os outros trabalhos que não fa-lam disso. Que são muitos.

(…)

(…) é como se algo não tivesse sido bem resolvido em deter-minadas épocas do tempo. Como se os elementos referenciais históricos e os repertórios de imagens de uma década qualquer não tivessem sido totalmente explorados. Talvez, nunca serão esgotados. Como se alguns artistas buscassem, nesse tempo passado, os materiais de seus trabalhos, os quais se projetam no futuro que hoje é presente. Gosto de pensar nisso, imagi-nando alguns artistas como a personagem Stephane do filme Ciência do Sonho de Michel Gondri, o qual inventa uma máqui-na que viaja no tempo. A máquina tem a capacidade de viajar para o futuro e para o passado, mas o seu tempo sempre é o de 1 (um) segundo para frente ou para trás. Na prática, ela não funciona, pois esse espaço temporal é muito curto para resul-tar em alguma mudança. Em um piscar de olhos já fomos e voltamos.

Assim, ao meu ver, os artistas de hoje que trabalham com materiais, técnicas, conceitos ou qualquer outra coisa do pas-sado são como Stephane. Há algo que os move, mas não se

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refere ao passado e sim ao presente, lugar de onde ele nunca sai. Hoje não há um interesse em retomar modelos do passado, como em outros períodos artísticos. E sim rever, revisitar, por mais desgastadas que essas expressões possam ser.

Finalmente, pensando na questão de um grupo de artis-tas brasileiros que, de alguma forma, trabalha com esses ma-teriais, respondo melhor a pergunta número 2 (dois) e uma parte da pergunta número 5 (cinco), em relação aquilo que poderíamos pensar como uma geração, relativamente jovem, de artistas brasileiros fora de seu tempo, olhando para coisas que já foram: Luiz Roque, Letícia Ramos, Cristina Ribas (A Ar-quivista), Fernanda Gassen, Jonathas de Andrade, Cristiano Lenhardt, Rochele Zandavalli, Marina Polidoro, Rafael Pagati-ni, Romy Pocstaruk, Denise Helfenstein, Gustavo Diehl, Nara Amelia, Gustavo Ian e Melissa Dulius, Avalanche, entre tantos outros nomes que não lembro (…). E percebo que, com a exce-ção de Jonathas de Andrade, todos os outros nomes que foram mencionados são de artistas que nasceram ou viveram no Rio Grande do Sul.

Não sei, mas tenho a impressão de que aqui há muita coisa velha. Arquitetura, livros, móveis, hábitos, costumes (…). De al-guma forma, isto deve influenciar a percepção destes artistas. A minha é alterada. Há um filtro que capta, como uma visão periférica todas essas informações.

Entretanto, não sinto total segurança para discorrer sobre a efetividade de uma espécie de movimento de artistas que dialogam com o passado, no sentido de caracterizarem um fe-nômeno. Ainda que exista, seja, ao meu ver, local. Necessitaria de uma pesquisa mais densa.

(…)

Porto Alegre, 9 de junho de 2013 Michel Zózimo

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Local e materiais de trabalho.Foto: acervo do artista.

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Uma referência visual: frame do filme Insustentável Leveza do Ser, Philip Kaufman, 1987.

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Nara Amelia[1982, Três Passos/RS – 1982]

Vive e trabalha em Porto Ale-gre. Doutoranda em Poéticas Visuais pelo PPGAV, Instituto de Artes da UFRGS, com bolsa de pesquisa CAPES. Mestre em Artes Visuais pelo PPGART/UFSM (2009) e Bacharel em Desenho e Plástica pela UFSM (2006). Recentemente recebeu os prêmios: Prêmio FUNARTE de Arte Contemporânea, 2012, Ocupação dos Espaços Funar-

te, Sala Nordeste de Artes Visuais - Recife; Prêmio Aquisitivo 18º Salão Unama de Pequenos Formatos, 2012; I Prêmio Ibema de Gravura, 2011; Prê-mio Aquisitivo Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, 2010; Prêmio Aquisitivo Salão de Artes de Mato Grosso do Sul, Campo Grande/MS, 2010. Realizou as exposições individuais: O melhor dos mundos pos-síveis!, Sala Nordeste de Artes Visuais, Recife/PE, 2013; O Mundo é uma fábula, Santander Cultural, Porto Alegre/RS, 2012; O melhor dos mundos possíveis!, Goethe Institut, Porto Alegre/RS, 2011; Sob a natureza, Centro Cultural São Paulo - Edital de Exposições, São Paulo/SP, 2010; Um céu feito de abismo, Galeria Arlinda Corrêa Lima, Edital de Exposições Fun-dação Clóvis Salgado, Belo Horizonte/MG, 2009. Entre as principais mostras coletivas se destacam: Convite à viagem, Rumos Itaú Cultural, São Paulo, SP, 2012; Labirintos da Iconografia, Museu de Artes do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, Porto Alegre, RS, 2011; Hong Kong Graphic Art Fiesta, Hong Kong, 2011; 62º Salão de Abril, Fortaleza-CE, 2011.E-mail: [email protected]: acervo da artista.

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NARA AMELIA

1. Posso sustentar que meu trabalho se desenvolve em tor-no de um imaginário construído a partir de um amplo universo referencial, composto pelas imagens que já vi e que vejo, pela literatura ou pelas imagens que leio, e também pelas imagens que sonho. Mas quando me pergunto sobre o processo de for-mação do meu imaginário pessoal – aquele identificado com a criação, e de onde vêm essas imagens, a resposta é mais ou menos como aquela de Santo Agostinho sobre o tempo: se não me perguntam eu sei, e se me perguntam e tento explicar, já não sei muito bem. No entanto, não saber exatamente de onde vêm as imagens que crio me dá evidências de como funciona o processo criativo, ou melhor, confirma a existência da parte obscura deste processo, que muitos autores relacionam à me-mória – voluntária e involuntária, individual e coletiva, outros aos arquétipos, ao inconsciente coletivo, às musas, ao espírito da época, ao museu imaginário, aos meios de comunicação, etc. Eu acredito que há um pouco de tudo isso na formação do meu imaginário e da minha cultura visual.

Hoje, como consequência da minha pesquisa sobre o meu processo de criação, consigo identificar algumas relações e re-ferências, mas essas relações se referem ao presente, aos meus interesses e experiências atuais, ou de um período de tempo, digamos, os dez últimos anos. Talvez essas referências já exis-tissem antes, mas se tornaram mais evidentes quando comecei a desenvolver meu trabalho em artes visuais e quando comecei a trabalhar com a gravura.

Meu interesse pela gravura e pelas imagens narrativas, pelas mitologias, pelas metáforas e alegorias, despertou quando vi pela primeira vez as gravuras de Rembrandt e Dürer. Eu estava descobrindo a gravura na graduação em Desenho e Plástica na UFSM (antes disso eu associava a gravura às ilustrações de

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livros antigos), e as gravuras destes artistas me comoveram muito. Foi como um encantamento quando percebi na gravura de Dürer, Adão e Eva, um animalzinho, um cabritinho sobre um rochedo distante. Estes artistas despertaram o interesse que me conduziu a descobrir um universo de imagens e artistas que compõem meu universo de referências e com os quais meu trabalho estabelece confluências: Pieter Brueghel o Velho, Dürer, Rembrandt, Gustave Doré, Francisco Goya, Max Ernst, José Guadalupe Posada, Paula Rêgo, Evandro Carlos Jardim, Gilvan Samico, Walmor Corrêa, e também as imagens da literatura ilustrada, dos bestiários, das fábulas. E esse conhecimento veio através do livro, do museu imaginário. Poderia ainda citar como determinantes do meu imaginário antes da graduação, a casa dos meus avós no interior com os animais típicos da colônia – vacas, cavalos, galinhas, o galo, as lebres e corujas, o entardecer que hoje me parece muito nostálgico, e as histórias de assombração e de lobisomem que eram contadas lá.

Assim, identifico nestas imagens que fazem parte da mi-nha cultura visual e que despertaram a minha sensibilidade, e nas imagens que busco conhecer hoje, uma relação muito estreita com o livro, com a literatura, e de forma mais ampla, com a narrativa, com a tradição de contar histórias e trans-mitir experiências. Hoje reconheço a literatura como a maior responsável pela formação do meu imaginário, pela formação da minha opinião, da minha sensibilidade e do meu gosto. O que antes (da pesquisa de mestrado e doutorado) parecia natu-ral – a necessidade de leitura, a comoção e a imaginação que a literatura me proporciona, agora percebo como determinante no meu processo criativo, na forma como penso e comunico minhas ideias sobre o mundo através do meu trabalho.

Entre os autores com os quais me identifico, os princi-pais são Jorge Luis Borges (1899-1986), João Guimarães Rosa (1908-1967), Franz Kafka (1883-1924), Italo Calvino (1923-1985) e Gabriel Garcia Marques (1927). Estes são os meus autores de

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cabeceira, juntamente com a Bíblia, ou alguns textos muito es-peciais como o Livro de Jó e o Eclesiastes. A esse conjunto de referências – de memórias, artes visuais e literatura, se deve a formação da minha cultura visual, que determina, juntamen-te com os apetrechos materiais, técnicos e simbólicos com que trabalho, a minha poética.

2. Estamos habituados à ideia de que a relação com o pas-sado é parte intrínseca da arte. Toda técnica, forma, sistema simbólico, pressupõe uma tradição, um vocabulário compar-tilhado, rememorado, identificado. Mesmo quando se opõe ao passado e propõe inovações técnicas ou estéticas, a arte evoca necessariamente o passado com o qual propõe uma ruptura. Genericamente, a arte tem uma relação com o passado como consequência natural do fato de que o homem (o artista) é fei-to de memória, e o seu trabalho é determinado por sua cultu-ra visual, que implica experiência, tempo e memória. Borges acreditava que cada escritor, ou artista, possui fatalmente um universo pessoal que determina o seu trabalho, e que esse uni-verso é composto por “uma memória individual do coletivo”, da qual o artista é um mero “amanuense”.105

O passado se manifesta na arte por meio das apropriações, coleções, mementos, arquivos, arqueologias, e também na re-sistência de técnicas artesanais, das manufaturas e procedi-mentos arcaicos, como objetos de arte em si, ou como subsídios para o processo de criação. Para alguns autores, a apropriação do passado pela arte pós-moderna se caracteriza pelo pastiche, pelo retorno vazio a formas do passado, pela incapacidade de nossa época de criar algo novo. Para outros, a nostalgia pelo passado da cultura contemporânea seria um indício da nossa incapacidade de perceber e historicizar nosso próprio tempo (me pergunto se esse não seria um motivo de caráter universal, ou anacrônico, já que seria uma dificuldade “eterna” para ho-105 BORGES, Jorge Luis. Sobre os sonhos e outros diálogos. São Paulo: Hedra, 2009. p. 104-105.

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mem entender o seu próprio tempo). Da mesma forma, a de-claração do fim de muitas histórias, o desapego a valores como tradição e experiência, e a dificuldade de divisar o futuro, po-deria levar o homem contemporâneo a buscar suas referências no passado.

Por outro lado, podemos identificar uma presença do pas-sado, especialmente na arte contemporânea, através da qual alguns artistas afirmam o passado como seu objeto, mas com um objetivo crítico ou poético, e de ressignificação desse pas-sado a partir do presente. Trata-se de buscar no passado ou nas tradições o seu potencial de despertar sensibilidades dife-renciadas, para experiências de tempo e espaço diferentes das que estamos habituados hoje, em um mundo dominado pela tecnologia, pela velocidade e obsolescência imediata de bens culturais. Porém, não acredito que o interesse da arte que se apropria de formas e sentidos do passado seja apenas criticar as formas de viver e perceber contemporâneas, mas criar espa-ço também para outras formas de perceber as coisas, despertar outras sensações e sugerir outros significados.

Como pressuposto da minha pesquisa de doutorado, estou investigando a produção de alguns artistas com as quais meu trabalho dialoga, do ponto de vista processual e poético, e que fizeram ou fazem algum tipo de referência ao passado. Entre as minhas principais referências estão Max Ernst (1891-1976), especificamente a série de colagens Uma semana de bondade, de 1933-1934; Walmor Corrêa (1961), especificamente a série Unheimlich de 2006; e Cláudio Mubarac (1959), especialmente a série A dança da morte, de 2004. Na obra desses artistas identi-fico afinidades temáticas e processuais e, assim como no meu processo de criação, reconheço em seus processos o cruzamen-to de um pensamento formal ancorado em técnicas artesanais tradicionais, como o desenho, a gravura ou impressão, e de um pensamento poético que se desenvolve em torno de um imagi-nário criado a partir da apropriação de formas e sentidos rela-

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cionados ao passado. As colagens de Max Ernst – Une semaine de bonté, são cons-

truídas a partir da apropriação, passando pelo recorte e reor-ganização de imagens de periódicos, ilustrações de romances populares, catálogos comerciais e técnicos, livros de divulga-ção científica, relatos de viagens e memórias. Essas imagens eram ilustrações obtidas a partir da gravura em madeira, abundantes na literatura popular francesa, em livros e periódi-cos do final do século XIX. Ernst se apropria dessas imagens e as reorganiza em suas colagens, num procedimento que evoca constantemente o contexto de origem das imagens, a literatu-ra ilustrada do final do séc. XIX, e evoca ainda a tradição da gravura como matriz para ilustração e sua origem relativa aos meios de comunicação e à popularização da imagem, ou do co-nhecimento de modo geral. Através da montagem, Ernst cria seres fantásticos, híbridos de humanos e animais, de animais com outros animais, de seres animados e objetos inanimados, que remetem a mitos e alegorias que habitam o imaginário co-letivo ou da literatura ilustrada. Esta evocação de temas mito-lógicos antigos é reforçada muitas vezes pelos títulos das ima-gens, e pela atmosfera moralizante das suas narrativas.

A série Unheimlich, de Walmor Corrêa, apresenta criaturas mapeadas pelo artista, mestiças de humanos com animais, oriundas do imaginário popular do país, e que de certa forma remetem às projeções fantásticas dos europeus acerca da na-tureza do novo mundo na época dos descobrimentos. Walmor cria suas imagens num processo semelhante à ilustração cien-tífica, em uma configuração que imita a estética das tradicio-nais enciclopédias de ciências naturais, onde imagem e texto eram articulados com o fim didático de esclarecimento e veri-ficação científica do que estava sendo exposto.

Na série A dança de morte de 2004, Mubarac cria uma sé-rie de variações nas impressões a partir das mesmas imagens gravadas. Partindo da reprodução de uma escultura de Elna

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Borch Erlöst (1869-1950), La Mort – uma imagem alegórica da morte –, Mubarac cria uma fotogravura que imprime em um processo em que associa a outras impressões, como imagens de radiografias obtidas pelo mesmo processo de fotogravura, crânios e esqueletos obtidos por processos que misturam a fo-togravura com procedimentos tradicionais como a água-forte, buril e ponta-seca. Mubarac então se apropria de uma imagem alegórica tradicional, relacionada à antiguidade, e a relaciona com outras imagens que constituem um universo simbólico convencionado pelo artista, como um vocabulário particular, que compõem sua poética. Desta relação, entre passado e pre-sente, nascem novas possibilidades de interpretação.

Pensando na obra desses artistas e nas minhas próprias motivações, identifico na evocação do passado que propomos com nossos trabalhos, tanto uma relação de afetividade pelo vivido ou pelo que se gostaria de ter vivido, quanto uma forma de poetizar e propor novos sentidos para essas formas e senti-dos a partir do presente.

3. A internet é também uma forma de conhecer o passado, uma ferramenta de pesquisa que uso constantemente e que me dá subsídios para a criação das minhas imagens. Através da internet crio um banco de imagens que uso para exercitar o desenho de observação. Antes de criar um desenho para uma gravura faço muitos projetos, ensaios sobre a imagem que pre-tendo criar, e a internet é um dos meios de obter imagens que me ajudam a resolver problemas técnicos. Os desenhos de ob-servação feitos a partir de imagens pesquisadas em bancos de imagens ou livros, ou ainda de imagens coletadas, apropria-das de diversas fontes e guardadas, têm a finalidade de estudo para a elaboração das gravuras.

A internet é também uma forma de povoar o imaginário, de aguçar a curiosidade e proporcionar relações entre tempos, culturas e contextos diferentes. Mesmo quando não buscamos

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certas imagens, elas se impõem por um processo associativo misterioso, mas que muitas vezes parece fazer sentido e parece corresponder às nossas buscas.

4. Analiso o meu trabalho como uma unidade marcada pela ambiguidade. Ele relaciona um imaginário particular e uni-versal, memórias particulares e memória coletiva, animais e homens, seres reais e fantásticos, convenções e obscuridades, imagem e texto, artes visuais e literatura, técnicas tradicionais e artesanais – como a gravura, o desenho, a aquarela, o borda-do –, e ferramentas de pesquisa atuais – como a internet. Se por um lado meu trabalho resgata ou evoca formas e sentidos do passado, por outro lado ele reflete as minhas questões sobre o mundo em que eu vivo hoje.

A opção por procedimentos como a gravura, os bordados, a manufatura, que são muitas vezes reconhecidos como antigos e obsoletos nos nossos dias, vem, antes de tudo, de uma neces-sidade interior, ou anterior à reflexão sobre a relação desses procedimentos com o tempo. O meu interesse nesses procedi-mentos é por suas qualidades universais, eternas, independen-tes do contexto em que são criadas, ou melhor, suas qualidades autorreferentes, reconhecidas igualmente em outras técnicas. Mas o passado, e as marcas do tempo que passou me interes-sam como estética e como poesia, e a necessidade de recupera-ção dessas técnicas e formas do passado é motivada tanto pelo afeto quanto pela reflexão.

O que me interessa não é remeter a acontecimentos vividos ou criar um trabalho autobiográfico, mas explorar um imagi-nário universal, evocado pelas imagens e pelas construções formais: pela aparência de envelhecido, pela aparência de ilus-tração literária e pela memória processual da gravura em sua relação original com o universo literário, mas também pela ico-nografia que relaciona seres originários de fábulas, bestiários e mitos que evocam certa familiaridade e estranhamento, ou

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que remonta ao “há muito tempo conhecido”, “há muito tempo familiar”, conforme observado por Freud.

O uso de materiais apropriados no meu trabalho, especial-mente para a impressão das gravuras e para a montagem dos trabalhos, é um procedimento que evoca o tempo e o contex-to original desses materiais. Eu procuro por materiais que te-nham marcas do passado, porque minha intenção é criar um objeto ou uma visualidade de uma coisa que existe há muito tempo, ou que promova a remissão a outro tempo, talvez não a um passado específico, datado, mas que inserido no contex-to do trabalho e em relação com outros elementos e imagens possa produzir uma sensação de anacronismo, no sentido de “criar uma nova história para esse passado a partir da posse da coisa apropriada”, conforme proposto por Flávio Gonçalves.106

Quando afirmo que meu trabalho evoca o passado, quero dizer também que seus procedimentos e temas propõem sig-nificados postulados pela experiência e pela tradição: os obje-tos e relíquias do passado que são vestígios de experiências, as narrativas nas formas de estórias, mitos, fábulas, provérbios, que são tradicionalmente passados das gerações mais antigas para as mais jovens. A evocação do passado no meu trabalho é também de natureza afetiva na medida em que alegoriza aqui-lo que se gostaria de ter vivido, e que se conhece somente como quem olha para o passado como algo muito valioso que foi es-quecido, ou como lembra Benjamin a respeito do olhar que o homem moderno, mediado pela tecnologia, dirige ao passado, “(...) como nossos telescópios, aviões e foguetes transformam os homens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de serem vistas e amadas”.107

106 Flávio Gonçalves. Fragmentos e transportes imperfeitos: Algumas estratégias de construção de imagens. Manuscrito inédito apresentado na disciplina Documentos de Trabalho 2011/1, PPGAVI/UFRGS.107 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 117.

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5. Acredito que o interesse pelo passado é universal, por-que é o mesmo homem lidando com o mundo, com coisas que transcendem as imagens ou tecnologias do seu tempo, e é di-fícil ignorar o que outros já fizeram ou disseram a respeito das mesmas questões que temos hoje, de forma que o que Salomão já dizia há muito tempo – “nada há de novo debaixo do sol”, sempre fará sentido.

Sempre existiram artistas trabalhando na mesma época com meios ou tecnologias diferentes, desenvolvidas em épocas diferentes, relacionando-as ou não com novas tecnologias, e produzindo novidades que não dependem do meio ou da for-ma com que trabalham. Neste sentido, acredito que a novidade é possível, e compartilho com a concepção de novidade propos-ta por Goeldi, quando interrogado a respeito de uma suposta necessidade imposta ao artista que trabalha com a gravura, de extrair alguma novidade de seu processo:

Fala-se muito hoje em inovações, em abrir cami-nhos, etc... Mas não se deve confundir experimen-tos técnicos com a verdadeira inovação. Todo artis-ta realmente criador inova, e isso porque ele amplia seus meios técnicos na proporção de suas necessi-dades de expressão. Só essa inovação é legítima – a inovação que é ditada por uma necessidade inte-rior.108

Acredito que, independente dos meios que o artista uti-liza para construir seu trabalho, se trabalha com tecnologias de última geração ou com técnicas arcaicas, a novidade da sua criação reside no seu potencial de encantamento, de sensibili-zação, de fazer pensar ou sentir.

108 GULLAR, Ferreira. Entrevista. In: BRITO, Ronaldo. Goeldi. Rio de Janeiro: S. Roesler: Instituto Cultural The Axis, 2002. p. 208.

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Ambiente de trabalho.Foto: acervo da artista.

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Referências visuais: Albrecht Dürer, Adão e Eva, 1504. Gravura em metal – buril, 25,1 x 20 cm. Metropolitan Museum of Art.

Max Ernst, Édipo, Prancha 141 da série “Une Semaine de bonté”, 4º livro, Quarta-feira, Elemento: Sangue, Exemplo: Édipo, 1933 – 1934, colagem sobre papel.

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Rafael Pagatini[1985, Caxias do Sul/RS]

Artista Plástico, realizou sua formação universitária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em bacharelado em artes visuais e mestrado em poéticas visuais. Sua produção contempla principalmente

pesquisas utilizando as linguagens da gravura, fotografia e desenho, articulando relações com as ideias de deslocamento, fixação, apaga-mentos e memória. Atualmente é professor assistente das disciplinas de gravura e desenho na Universidade Federal do Espírito Santo. Re-cebeu prêmios nacionais como a Bolsa Funarte de Estímulo à Produ-ção em Artes Visuais, FUNARTE-RJ, Bolsa Iberê Camargo – Ateliê de gravura, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre-RS, Prêmio Energisa Artes Visuais, João Pessoa-PB, V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, Porto Alegre-RS, e Prêmio Ibema Gravura, Curitiba-PR. Participou de exposições individuais e coletivas em diversas regiões do Brasil e no exterior, entre as quais se destacam: 2013 – Convite à Viagem: Rumos Artes Visuais, Paço das Artes, Rio de Janeiro-RJ. 2012 – Ana Muglia e Rafael Pagatini, curadoria de Agnaldo Farias, Escritório de Arte Gaby Indio da Costa, Rio de Janeiro-RJ. Prêmio EDP nas Artes. Instituto To-mie Ohtake, São Paulo-SP. Convite à Viagem: Rumos Artes Visuais. Itaú Cultural, São Paulo-SP. Galeria Virgilio 10 Anos, Galeria VirgIlio, São Paulo-SP. Hong Kong Graphic Art Fiesta 2011, Hong Kong. Possui obras em coleções públicas e particulares como Itaú Cultural, coleção João Carlos de Figueiredo Ferraz, MAC-RS e MARGS.

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RAFAEL PAGATINI

1. A construção de meu olhar se estabeleceu através das pai-sagens nas quais passei e desenvolvi minha percepção tanto da relação de cada um desses locais com uma cultura visual es-pecífica, quanto pela formação universitário que me levou até esses espaços. Desde pequeno sempre fiquei encantado por cartazes, ingressos, cédulas, moedas, camisetas, livros, carim-bos, tudo que se apresentasse como instrumento de troca e que pudesse ser multiplicado, dividido, colecionado.

Ao mesmo tempo sentia que existia uma exigência para que tudo o que fosse produzido por mim tivesse que ser re-sultado de muito trabalho. Meu pai, como marceneiro, sempre deu muito valor a isso, ao detalhes bem finalizados, produzi-dos ao longo de jornadas que muitas vezes se prolongavam aos finais de semana. Frequentei a marcenaria desde pequeno, lá aprendi que algumas linhas esboçadas em uma folha de papel poderiam gerar os mais variados objetos. A serra, o martelo, a plaina, a emparafusadeira eram instrumentos que transfor-mavam os grosseiros traçados de meu pai em algo concreto. Os tempos daquelas imagens eram outros, não se estruturavam em desenhos traçados através do desejo, mas pelo tempo que levaria transformar aqueles traçados em materialidade. Lem-bro de meu pai mudando o arredondado de um banquinho de madeira que eu havia esboçado para ângulos retos, pois essa pequena mudança iria poupá-lo de algumas horas de trabalho. Meu olhar observava aqueles desenhos pelo tempo que eles le-variam para saírem do plano e ganharem o espaço.

Em Caxias do Sul minha visualidade artística era limitada a alguns poucos centros culturais com exposições e uma igreja no centro da cidade, que possuía algumas pinturas. No terceiro ano do segundo grau fui pela primeira vez a Porto Alegre, em uma excursão da escola que visitou o Santander Cultural. Não

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lembro do nome da exposição, mas recordo que ela me marcou profundamente. Além da imponência da construção, fiquei seduzido pelas obras de Nelson Lerner, observar seus bone-quinhos de plástico e a dimensão reflexiva que o artista con-seguia produzir em elementos tão corriqueiros; foi incrível, da mesma forma como fiquei emocionado com a obra “Doador”, da artista Elida Tessler. Quando descobri que a artista era pro-fessora de artes na UFRGS, me senti hipnotizado e seduzido, queria conviver com aquilo. Ao mesmo tempo a arquitetura da cidade me cativou pelos prédio e ruas antigas para meu olhar, até então acostumado com construções que, no máximo, não superavam cem anos.

Em Porto Alegre comecei realmente a conviver e estudar arte, ir a exposições, fazer cursos, trocar com pessoas que ti-nham o mesmo interesse. Pela ausência de repertório visual e de história da arte tive algumas dificuldades. Talvez por isso o local no qual inicialmente me sentia mais a vontade era o ate-lier de gravura. O labor dos processos de gravação e impres-são se relacionava com uma relação com a matéria com a qual sentia afinidade. O tempo de produção de uma estampa não se limitava à criação de uma imagem, mas a todo o processo de criação.

Em 2008 estudei na Universidade de Porto, Portugal, e tive contato com um repertório visual totalmente distinto do qual eu estava acostumado. No Porto cursei disciplinas de estética, fotografia e vídeo, a faculdade disponibilizava o equipamento, o que me encorajou a pensar meus trabalhos nessas novas mí-dias. Minhas caminhadas para conhecer a cidade eram acom-panhadas da câmera de vídeo que me mostrava diferentes re-lações, enquadramentos, edições, narrativas que poderiam ser desenvolvidas através do novo aparelho. A paisagem da cidade foi o que mais despertou minha atenção, as construções an-tigas, as famosas pontes, o rio, o clima e a névoa familiar que me fazia recordar Caxias do Sul foram elementos latentes na

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construção do meu olhar durante a minha estada. A paisagem se transformava para mim em cenário de vivências, memórias, histórias, de forma que eu conseguia encontrar uma série de questões sociais e políticas ao mesmo tempo em que me sentia cativado pelo simples prazer de observar aquelas construções e não pensar em nada.

Ao voltar para o Brasil encontrei na paisagem de Caxias do Sul-RS um espaço de memória que parecia se decompor. O grande número de prédios construídos exigiam a remodelação do plano urbanístico e o horizonte da cidade se transformava em torres de concreto. As tradicionais casas de madeira ape-nas serviam como entulho – percebi nessas ruínas o seu valor simbólico. A série de xilogravuras “Brumas” foi gerada a partir desse cenário no qual a neblina, como a chuva, se apresenta-vam como metáforas da ideia de apagamento e passagem.

Meu olhar está em constante transformação, formação, descobrindo em cada paisagem um novo interesse por locais de passagem e vivências.

2. Acredito que os artista mais interessantes são aqueles que utilizam a memória como elemento pulsante para pensar o contexto histórico no qual eles estão inseridos. Entre os que mais me interessam posso citar o artista japonês Hiroshi Su-gimoto e a carioca Brígida Baltar. Sugimoto desenvolve uma poética na qual proliferam questões relacionadas ao tempo e à memória. Utilizando essencialmente a fotografia em preto e branco, Sugimoto seduz-nos com o brilho da luz em seus tra-balhos. A ideia central em sua produção é pensar a fotografia como uma máquina do tempo, um método de preservação da memória. A história, no trabalho do artista, é vista a partir da forma como o observador altera o próprio objeto olhado. Ne-nhum olhar é imparcial, a escala de cinzas das fotografias do artista parece nos dizer isso, as nuances do grão de prata em sua paleta evidenciam a infinidade de relações entre o preto e

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branco, e toda sua obra é como uma pintura minuciosamente produzida. Na era do digital, Sugimoto fotografa com gran-des máquinas fotográficas do século XIX e, posteriormente, no laboratório, revela e retoca suas imagens, para nos oferecer sua melhor percepção sobre o tempo. Em seu processo, primei-ramente existe um pensamento sobre o que fotografar e uma problematização conceitual, mas Sugimoto explora também os recursos da fotografia para, a partir dela, apresentar os con-ceitos de tempo e memória em seus trabalhos.

Em Seascapes, série iniciada em 1980, o artista fotografa a relação entre dois elementos essenciais para a origem da vida: o ar e a água. Nessa série, na qual o artista registrou a mes-ma cena em diferentes pontos do globo, notamos a visão pri-mordial do homem observando o horizonte. Essas fotografias transmitem uma sensação de profunda espiritualidade, em que sentimos, por um momento, a existência de um tempo muito além daquele que podemos vivenciar. Acredito que a memória, neste trabalho de Sugimoto, é o observar metafísico de milhões de olhares que examinam silenciosamente a linha do horizonte em busca de um ponto em que a água e o ar pos-sam tocar-se. Em algumas fotografias dessa série, notamos que a névoa se interpõe entre a água e o ar, e é com essa ima-gem que saciamos a nossa curiosidade, é através da névoa que ar e água tocam-se e viram um só, em um instante guardado na memória através da fotografia.

A artista carioca Brígida Baltar desenvolve um conjunto de trabalhos em que articula a memória como elemento condu-tor de sua poética. Com extremo lirismo, Brígida parte de suas experiências pessoais para criar suas obras. A casa é o gran-de centro propagador de sua individualidade, um elemento simbólico importante em sua produção, e é também onde a artista busca refúgio. Seus trabalhos criam uma relação entre ficção e realidade, através de elementos corriqueiros como, por exemplo, os tijolos. Eles dão estrutura à casa e, ao mesmo tem-

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po, nos separam do mundo lá fora, formam o nosso perímetro e acumulam, com os anos, as marcas das nossas vivências. Não é a toa que Brígida confere especial atenção a este material. No trabalho Abrigo, de 1995, Brígida documenta a ação de quebrar a parede e construir um repositório para seu corpo, um abrigo que a incorpore à casa, que faça com que seu corpo se ligue ao corpo-casa. Neste trabalho, refletimos sobre o habitar como a extensão do nosso corpo e de nossas memórias. É como se a casa carregasse todas as marcas das vivências de Brígida, cada marretada é como uma tentativa de fixar lembranças. Em ou-tros trabalhos, a artista utiliza o pó dos tijolos para construir imagens que têm ligação com sua vida íntima, como um retra-to dedicado a seus pais, reforçando a ligação entre a casa e a família como estruturas primárias no nosso desenvolvimento.

Existe uma série de trabalhos do artista Nuno Ramos que aprecio muito, no qual ele faz uma homenagem a Oswaldo Goeldi. Ao utilizar o imaginário do artista, Ramos torna pre-sente elementos importantes na poética do artista, como a uti-lização da cor como matéria e a visão trágica do mundo, e as in-corpora em suas produções. Ao revisitar Goeldi, Ramos faz ao mesmo tempo uma releitura da história da arte brasileira e do papel do gravador nesse contexto. Sua abordagem dá um novo sentido para a obra de Goeldi ao tratá-la como elemento visce-ral de uma modernidade decadente, ampliando leituras como referências para outras linguagens que não apenas a gravura.

3. Em meu processo criativo a utilização da internet se es-tabelece através de pesquisas sobre assuntos que não encontro, principalmente pela falta de bibliografia na língua portuguesa. Com certeza a internet possibilita acesso a artistas de diferen-tes pontos do globo, mas ao mesmo tempo é uma procura pe-rigosa por a maioria das vezes apenas se observa os aspectos formais do trabalho e não se consegue perceber as questões que estão sendo alvo de discussões. Ainda que seja interes-

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sante esse acesso, acredito que ainda falta uma relação mais harmônica entre as informações sobre a poética do artista e a imagem das suas obras.

4. A relação com a memória se estabelece inicialmente pelo desejo de tentar manifestar através dos trabalhos minha pas-sagem por espaços e vivências. Em cada local visitado, em cada paisagem percorrida sempre existe um olhar de perda, como se tudo ao meu redor fosse aos poucos se transformando e in-dicando um caminho enevoado. A relação com a memória se estabelece através dessa consciência da perda e do desejo de tentar estender experiências para além dos seus instantes de fruição. Para isso os materiais que utilizo não fazem referência a tecnologias do passado, mas a procedimentos como a cria-ção de marcas e a transposição de memórias. Cada processo demanda tempo que, muito mais do que a produção de uma imagem, se estrutura como relação de maturação de um tra-balho. A fotografia se estabelece como elemento importante, pois serve de registro, ao mesmo tempo em que, através dela, constituo um arquivo ao qual retorno constantemente. Muitas vezes uma imagem é utilizada depois de anos, sem existir uma definição precisa do por quê a guardei no computador. Algu-mas precisam de descanso para que consiga observá-las com alguma distância e para que não viciem meu olhar. Esse tempo transforma o visto em uma nuvem opaca que embaça a visão e reativa meu interesse pela fotografia. Em alguns processos que envolvem a gravura o que direciona minha percepção é o questionamento de como indicar que aquele material que se estrutura como matriz, ao produzir uma imagem, possa criar relações com a própria história do que está sendo apresentado. O que me seduz na gravura é como ela enfatiza o processo de criação sobre os resultados obtidos, não me refiro ao processo no sentido de aparelhagem técnica de trabalho, mas ao respei-to pelo tempo de produção do artista.

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5. Não acredito que esse fenômeno seja local, essas ques-tões estão presentes em várias partes do globo e penso serem influenciadas pela globalização. Um elemento que acredito ser importante nesse processo é o papel do mercado globalizado que utiliza o passado como estratégia de consumo. A efeme-ridade tornando-se elemento importante em suas manobras, aliada às incertezas em relação ao futuro, geraram uma preo-cupação com ganhos imediatos. A atualização do passado ra-pidamente se deteriora pelas regras da obsolescência da eco-nomia, como o sociólogo alemão Andreas Huyssen destaca no livro “Seduzidos pela memória” dos fenômenos:

das modas retro e dos utensílios reprô, a comercialização em massa da nostalgia, a obsessiva auto musealização através da câmara de vídeo, a literatura memorialística e confessional, o crescimento dos romances autobiográfi-cos e históricos pós-modernos (com as suas difíceis nego-ciações entre fato e ficção.109

O mercado utiliza-se desse desejo pelo passado através da criação de imagens que distorcem relações com a nossa consciência crítica de um momento histórico. Existem mui-tos exemplos desse processo de referências ao imaginário dos anos 40 e 50 sem a reflexão em torno do contexto no qual essas imagens estavam inseridas. Ademais, volta-se no tempo para comprar uma mercadoria com a imagem dos anos 50, mas com a obsolescência controlada contemporânea.

Além dessa utilização da memória pelo mercado, práticas como a auto musealização de si afloram com o espírito de nos-so tempo. Assim, podemos criar ilusões sobre a nossa própria identidade e esperar que outras pessoas, além de nós mesmos, visitem as nossas memórias agora “sacralizadas”. Outro ele-mento importante para o aprofundamento dessas questões

109 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

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foi o aumento do nível educacional na sociedade a partir dos anos 60. Como afirma Jay Winter, o chamado boom da memória é também decorrente do aumento da demanda por bagagem cultural. O crescimento do número de pessoas com nível supe-rior em países como a Inglaterra foi exponencial, e a demanda por educação promove preocupações com a constituição de um lastro cultural que transcenda as disciplinas tradicionais, e que reflitam e contextualizem seu conhecimento. Em um mer-cado onde a acumulação flexível é o modelo de investimento, o conhecimento requerido se faz necessário por meio de itens interdisciplinares. A valorização dada às artes plásticas, à mú-sica e ao cinema fez com que se tornassem itens obrigatórios para a constituição de um grande potencial educacional e re-flexivo. Somado a essas preocupações, podemos observar um grande nicho de mercado, no qual a indústria cultural promo-ve o seu desenvolvimento, através de museus idealizados pelo estado ou mesmo pelo capital privado. Esses fatos evidenciam como o bem cultural também se transformou em mercadoria. Winter afirma:

No ocidente uma pré-condição do “boom da memória” tem sido a abundância. O aumento real de renda e o au-mento dos gastos com educação desde a Segunda Guerra Mundial ajudaram a reverter para a direita a curva de-manda por bens culturais.110

Huyssen analisa como esse revisionismo da memória teve, na imagem do Holocausto, um dos seus elementos latentes mais fortes. Várias manifestações ocorridas nos anos de 80 e 90, como uma série de eventos internacionais relembrando desde a ascensão de Hitler ao poder até o desembarque das tro-pas aliadas na Normandia, foram incorporadas no pensamen-

110 WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 67-90.

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to cultural. Temas que são recorrentes até hoje, e que podem ser observados no grande número de livros, filmes e exposi-ções que envolvem o tema.

Apesar desse desejo do mercado pelo passado, acredito que a referências a essas fontes bem como a utilização de tec-nologias obsoletas devem ser analisadas individualmente nas artes visuais. Não existem fórmulas que definam como esses elementos devem ser empregados. Todavia, os trabalhos que mais aprecio são aqueles que utilizam essas referências pela forma como conseguem desenvolver alguma particularidade ao trabalho que não se conseguiria com outras referências e como isso se acrescenta às questões que estão sendo discutidas nas poéticas.

O que acredito que deva ser combatido é a utilização desses processos apenas pelo efeito visual ou mesmo pela defesa de uma possível pureza do meio. Essas questões se apresentam em muitos artistas que utilizam principalmente a gravura ou a fotografia analógica, justificando suas utilizações pela obso-lescência técnica.

Como professor de gravura identifico esse problema na própria constituição da ementa das disciplinas que envolvem a linguagem. A grande maioria do ensino aplicado em ateliers de obra gráfica nas universidades se estrutura a partir de uma súmula que tem como objetivo inicial o aprendizado da gravu-ra de arte dita tradicional para, posteriormente, desenvolver possibilidades de experimentação. Essa metodologia se espe-lha em uma evolução linear da gravura na história da arte e não problematiza a verdadeira complexidade da linguagem. Acredito que seu ensino devia estabelecer-se a partir de pro-vocações aos alunos, os quais, antes mesmo de entalharem o primeiro sulco entre as fibras de um taco de madeira, devem ter consciência de que o jornal que leem todos os dias, o carim-bo do carteiro e a placa de transito são gravuras, ou seja, devem ter consciência de que o meio gráfico os envolve e transforma

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as suas próprias relações com o mundo. Devemos nos questionar se há necessidade de apresentar

ao aluno quais são as subcategorias da gravura para, talvez, conseguirmos perceber que o mais pertinente seria analisar a importância de suas estruturas e de como ela nos envolve. Saliento, no entanto, que a importância dos procedimentos tradicionais não deve ser diminuída, mas que esses sejam con-sequência da necessidade dos trabalhos desenvolvidos, e não apenas como se faz usualmente, disponibilizar a técnica para que o aluno consiga desenvolver algo com essa aparelhagem. É preciso oferecer ao discente a responsabilidade pelas suas escolhas, pelos seus caminhos e, se for necessário, estimular a pesquisa relacionada às questões técnicas, quando elas forem uma necessidade do trabalho, de suas investigações, e não ape-nas pelo seu efeito visual.

Local de trabalho.Foto: acervo do artista.

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Uma referência visual: Registro de caminhada, 2009. Foto: Rafael Pagatini.

Rafael Pagatini: Neblina, 2010, xilogravura, 200 x 70 cm, ed. 6.

Rafael Pagatini: Rua tronca, 2011, xilogravura, 200 x 70 cm, ed. 6

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Rochele Zandavalli[1980, Garibaldi/RS]

Vive e trabalha em Porto Ale-gre. É Mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV do Insti-tuto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, com bolsa de pesqui-sa CAPES, através do projeto Rever: retratos ressignificados. Bacharel em Artes Visuais pelo

mesmo Instituto. Possui obras na Coleção Joaquim Paiva de fotografia em comodato com o MAM/RJ, nos acervos da Fundação Vera Chaves Barcellos, MARGS, e MAC/RS. Além de fotografia, seus trabalhos in-cluem desenhos, pinturas, gravuras e produções na área da anima-ção e cinema. É professora de Extensão do Núcleo de Fotografia da UFRGS. Também atua como professora nos cursos de Fotografia e Audiovisual, na Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e na Fluxo – Escola de Fotografia Expandida. Teve exposições e mostras importantes como as Individuais: Rever, no Santander Cultural, Porto Alegre, 2012; e OCULTO, Galeria Lunara, Usina do Gasômetro, Porto Alegre, 2009. Também participou de ex-posições coletivas como: De Humani Corporis Fabrica, no MARGS, em Porto Alegre, 2013; O Melhor de cada um, Gal. Mascate, em Porto Alegre, 2013; Idades Contemporâneas, pelo MAC/RS,Porto Alegre,2012; Labirintos da Iconografia, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Porto Alegre, 2011; Panorâmica, Usina do Gasômetro, Porto Alegre, 2009; Xi-rugravuras, Choque cultural, São Paulo/SP, e Museu do Trabalho, Porto Alegre, 2009; Sobreimagem, Galeria ECARTA, Porto Alegre, 2007. Suas imagens podem ser vistas em www.labareda.art.br.Foto: Marina Chiapinotto

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ROCHELLE ZANDAVALLI

1. O acesso às imagens era muito menor do que acontece na contemporaneidade. Por isso tive uma relação bem mais eco-nômica com elas do que podemos observar ocorrer agora. As experiências e ambientes pelos quais passamos, moldam nos-so o olhar. Ele é mutante e vai sempre englobando novos in-teresses. O meu trabalho com fotografia reapresenta diversos suportes, artefatos e tecnologias consideradas obsoletas como filmes 35mm, cromos e álbuns. Hoje assistimos à desmateria-lização da imagem, sua intensa produção, circulação e repro-dutibilidade. Fatores que irão modificar a formação do olhar das novas gerações. A fotografia, quando projetada ou vista em um monitor, passou a ter condições de deixar de ser um objeto palpável, não estando mais sujeita a sofrer arranhões, rasgar, amassar ou apresentar marcas temporais. As cópias, graças também à tecnologia digital, possuem a mesma definição que seu original, não havendo mais distinção entre original e có-pia. Esses fatos modificaram nossa relação sensorial com a fo-tografia, o que acaba modificando nossa relação estética com ela. O afeto que sentimos pelo momento eternizado na foto-grafia faz com que nos relacionemos também afetivamente com o artefato fotográfico que nos representa essa lembrança, quando ele existe fisicamente.

A construção do meu olhar se deu em cima deste tipo de re-lação com a imagem, com os artefatos imagéticos, uma relação que leva em conta a materialidade da imagem, e trago isto para o meu trabalho artístico. Penso, por exemplo, para ilustrar de maneira bem óbvia esta afetividade, nos pingentes para cola-res usados por mulheres, em formato de coração e que servem para guardar pequenas fotos do casal. Este tipo de artefato fo-tográfico, assim como os álbuns, os porta-retratos, os monó-

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culos para visualização de diapositivos, e tantos outros, entrou em desuso e agora raramente é encontrado. Muitas foram as mudanças envolvidas na captação e reprodução das imagens fotográficas, que se deram no sentido de tornar a técnica cada vez mais rápida, eficaz, prática, acessível e barata. Chegamos ao momento digital, no qual a fotografia prescinde de todos estes materiais e pode ser contemplada apenas virtualmente. O artefato fotográfico viu enfraquecer, assim, a sua materia-lidade. Minha relação com as imagens e a formação de meu olhar se deu de outra forma e em outro ritmo. Talvez por isso minha produção artística busque preservar a materialidade da fotografia. Livros, revistas, álbuns, caixas plenas de fotografias de família, e um retroprojetor faziam parte do meu universo íntimo e me inspiravam a desenhar. Algumas das fotografias que ficavam na caixa de recordações da minha mãe também me influenciaram e exerceram grande fascínio, e eu inclusive as utilizei em meu trabalho. Um exemplo é a fotografia do meu tio com seus amigos, diante de um carro, com seus pés descal-ços. Sempre gostei dessa imagem e fiz um bordado sobre ela. Eu desenhava usando papel carbono, papel vegetal, o mimeó-grafo do meu pai, que era professor, e lembro que pulava de alegria quando podia fazer cópias xerográficas dos meus dese-nhos na máquina copiadora com a qual ele trabalhava.

Talvez a última geração a ter um contato cotidiano com materiais e aparelhos analógicos de projeção, difusão e repro-dução das imagens tenha sido a minha. O ritmo de apreciação e leitura das imagens também era diferente, muito mais ligado à contemplação, distinto da assimilação frenética e desatenta de hoje. As crianças que vivem hoje em grandes cidades têm a for-mação de seu imaginário e sua bagagem imagética constituída pela cultura midiática. Podemos perceber que a relação senso-rial destas crianças com o mundo é outra, os sentidos podem dissociar-se uns dos outros, como se não fossem coexistentes. Sabemos que o mundo não é apenas imagem, não é apenas vi-

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são. Descobrir o mundo também é sentir frio ou calor, é sentir o vento no rosto, ou o suor escorrendo pela pele, o cheiro das frutas, da poeira na calçada quando começa a chover, é ouvir um chamado ao longe, o barulho dos pássaros, dos cachorros ou do trânsito, é ver uma bolha de sabão que flutua e sair cor-rendo para tocá-la. Os sentidos não estavam dissociados uns dos outros assim como estão hoje, quando comecei a construir meu olhar e meu imaginário. Esse imaginário, portanto, foi ex-tremamente influenciado pela oportunidade que tive de expe-rimentar o mundo sem a mediação excessiva de imagens. Foi uma relação muito direta, de descoberta da paisagem e do en-torno. Meu repertório visual, no entanto, tem sido expandido pela cultura visual e pela circulação das imagens na rede, assim como o destas crianças. Minha produção imagética e artística leva em conta essas mudanças e busco, assim como muitos ar-tistas na contemporaneidade, refletir sobre a produção, a des-materialização e o trânsito das imagens e deixar esta reflexão clara na própria constituição do trabalho.

Algumas séries fotográficas que produzi, como a série Rever: retratos ressignificados, não são criadas a partir de novas imagens, e sim a partir de fotografias de época, abandonadas em antiquários, briques e em fundos de gavetas. A utilização e manipulação dessas fotografias propõem pensarmos sobre sua excessiva produção contemporânea, que leva a redundâncias e recorrências. Numa postura pós-moderna, já não preocupa aos artistas a originalidade e o novo, pois têm consciência da frustração inerente à busca deste ideal no momento contem-porâneo, assim, nos resta trabalhar com o uso de referências e, em alguns casos, com releituras, apropriações e citações gera-das a partir do imenso acervo imagético pré-existente.

2. Estes “revivais” me parecem acontecer para que as gera-ções se conheçam e se reconheçam. A humanidade sempre pre-cisou criar arquivos, acervos, bibliotecas, museus e todo o tipo

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de estrutura capaz de armazenar e preservar a cultura criada. Mas acho que, enquanto uma parcela da humanidade se preo-cupa em preservar a memória, outra boa parte faz um conside-rável esforço para soterrar as camadas históricas. O Museu Ima-ginário de André Malraux, os estudos de Aby Warburg sobre o Renascimento, as investidas atuais de Didi-Huberman sobre o pensamento de Warburg, são evidências de que estes “revivais” sempre aconteceram mesmo, e os teóricos da arte, bem como os artistas também se empenham nessa construção.

No Brasil, na atualidade eu me interesso pelos trabalhos do artista Jonathas de Andrade, cuja preocupação com uma ar-queologia da imagem se relaciona com essa ideia de revivais. A escolha deste artista por trabalhar com os maquinários e ar-tefatos considerados obsoletos ou “arcaicos” se torna tão mar-cante e recorrente que acaba sendo um elemento constituinte da poética. Em seu projeto Documento Latinamerica: condução à deriva, Jonathas trabalha a partir destas camadas soterradas, “partindo de um sentimento de amnésia histórica, que faz desta lati-namerica tão una quanto descontínua”.111 Essa sensação de nostal-gia e de utopia fracassada remete a uma recuperação e interes-se pela memória coletiva, mas creio que não seja um fim em si. Assim como em meu trabalho, quando opto por utilizar essas fotografias de época, ao invés de fotografar, há na produção de Jonathas de Andrade uma carga mnemônica muito forte, que é importante, mas que não se fecha em si. Ela é uma porta de en-trada para uma reflexão maior, para pensarmos nosso próprio tempo. Para pensarmos em como aproveitamos pouco os es-forços feitos no passado. Percebo no trabalho dele, assim como busco fazer no meu, o uso dos arterfatos passados para pensar-mos nossa relação com a atualidade, para pensarmos na nossa relação com os espaços, com a cidade, com a cultura, e com as imagens agora, no momento em que vivemos. Em outro traba-111 ANDRADE, Jonathas de. Jonathas de Andrade. Entrevistadora: Georgia Quintas. In: PERSPECTIVA. Disponível em: <http://www.olhave.com.br/perspectiva/?p=411>. Acesso em: 20 jun. 2012.

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lho, uma instalação fotográfica intitulada Ressaca tropical , Jo-nathas articula fotografias com páginas de um diário amoroso encontrado no lixo do Recife. As fotografias também exploram o cruzamento de temporalidades, pois oferecem imagens obti-das em diversas datas, dentro do mesmo cenário de cidade. As fotografias que compõem a série foram coletadas em quatro diferentes acervos. Isoladamente, os componentes de Ressaca tropical podem ser vistos como documentos históricos. Mas agora juntos, compõem uma grande ficção sobre a cidade; um cenário que confunde, assim como a série Rever, o processo de destruição com o de construção. Eu busquei, ao criar a série Rever, ressaltar essa capacidade da fotografia em evidenciar a passagem do tempo, mas também busquei gerar cruzamentos temporais. Essa é uma capacidade inerente à técnica fotográfi-ca que vem me interessando cada dia mais.

3. Em minha produção o cruzamento temporal é um ponto importante. A principal série criada a partir desse ponto, até agora, foi a Série Rever: retratos ressignificados, na qual me apro-prio de retratos de época abandonados. No caso dessa série, não interessava buscar esses retratos de época a partir do ban-co de dados da internet, eu preferi salientar a existência destes bancos de dados esquecidos, entregues às traças, literalmente, que são os briques e antiquários, ou os fundos de gavetas. Não significa que eu não tenha interesse no acesso à história da fotografia via bancos de dados virtuais e não possa utilizá-los para outros trabalhos. Muitos artistas, como eu, trabalham em cima dessas imagens que tinham um caráter documental e os utilizam como fonte para intervenções que as ficcionalizam ou que, ao menos, adicionam uma carga poética a elas, em detri-mento de sua origem de viés documental. É justamente devido à credibilidade que se atribui ao documento fotográfico que a potência ficcional das obras produzidas a partir deles aflora. Assim, a visão tradicional da fotografia como técnica capaz de

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produzir um documento portador de uma verdade, de ser um atestado de presença de alguém ou de um acontecimento, é re-vista e utilizada sim, mas no sentido de justamente explicitar a dificuldade que a fotografia encontra ao tentar fazê-lo. Pois, ao mesmo tempo em que a fotografia nos apresenta o seu obje-to, seu referente, ela paradoxalmente também nos apresenta a sua falta, o seu distanciamento. Na elaboração de meus traba-lhos, esse paradoxo é importante, e ele acontece graças à pas-sagem do tempo, por isso me utilizo de tecnologias e artefatos fotográficos antigos. Assim como ocorre na série Rever, grande parte dos artistas contemporâneos, como o francês Christian Boltanski e a brasileira Rosangela Rennó, geram imagens, ou se utilizam de imagens de bancos de dados virtuais, acervos, arquivos públicos e particulares, para que, construindo novas séries fotográficas, possam abordar temas como a morte, a vida, o tempo, os conflitos e a memória. A presença e, dialetica-mente, a ausência do objeto ou pessoa fotografada são evoca-das através do registro, na poética desses artistas, assim como na poética envolvida neste meu trabalho. Isto leva os especta-dores a refletir sobre questões íntimas, ligadas a narrativas de caráter mais pessoal, como os afetos e os relacionamentos, ou ainda sobre questões mais amplas, ligadas à nossa relação com as imagens e o tempo. Estas reflexões também podem se vol-tar para o contexto social, político e territorial. Estes artistas assim o fazem em consonância com o conceito envolvido na série Rever, procurando algumas vezes, assim como eu, gerar um comentário que enfatize o anônimo, o desconhecido ou o longínquo, bem como o seu potencial poético enquanto discur-so entre o ficcional e o verdadeiro.

4. Esse interesse por materiais do passado sempre ocorreu em meu trabalho. A sobreposição via projeção de slides já era um indicativo do meu interesse por imagens pré-existentes e foi utilizada em séries como a Futuro Revisitado: projeções fotográ-

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ficas, 2005, na qual me apropriei de frames de filmes futuristas produzidos na década de vinte e sessenta, mas ganhou força quando passei a trabalhar com as imagens originais, antigas e descartadas. Foi nesse sentido que eu organizei a série Rever, considerando essa ausência, essa perda, esse distanciamento do referente sofrido pela imagem – que foi sendo acumulado, assim como as marcas e oxidações ao longo das décadas. Este é um ponto importante para que aconteça a ressignificação des-ses retratos.

Para as imagens outrora descartadas e utilizadas em Re-ver, não busco a reconstituição ou resgate dos afetos perdidos, mas a substituição por um novo afeto e uma nova significação. Ao rever estas imagens, no entanto, estes afetos perdidos pa-recem nos sussurrar algo vindo do passado, mas com pouca clareza. Algo que é difícil ou quase impossível de compreender. A mensagem cristalizada na cópia de época transparece e se deixa rever, mas ao mesmo tempo serve como substrato para novas camadas de informação.

Surge um híbrido entre a carga mnemônica e sua reapre-sentação, que contribui para a ressignificação dessas imagens. Pelo fato de serem retratos vindos de um tempo relativamen-te longínquo, é maior ainda a tensão que se estabelece com a questão da memória, da ausência, da eternização dos momen-tos diante do fluxo desenfreado do tempo e da vida. Aparece, assim, no trabalho a relação com a questão da morte, outro tema incontornável na fotografia. Em Rever, “vemos o desejo pitoresco pelo outro, o luto de sua ausência, e mais: a noção de que a verdade se constitui no desejo vivo que motiva cada encontro”.112 Então, como conversamos antes, penso que a uti-lização destes materiais do passado em meu trabalho acontece ao mesmo tempo, para suscitar questões relativas à memória e também para repensarmos nossa situação atual. Por isso o nome da série é Rever, trata-se de uma palavra que é palíndro-112 BARTHOLOMEU, Cezar. Rêver. In: ZANDAVALLI, Rochele. Rever. Porto Alegre: Imago Escritório de Arte, 2012. s/p.

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mo, ou seja, lida de trás para frente, continua sendo Rever.

5. Penso que cabe ao pesquisador em arte e ao artista, prin-cipalmente no momento contemporâneo, prezar pelo aprovei-tamento e preservação do conhecimento já adquirido ao longo da história da arte e de produção de imagens, e saber utilizar--se dele quando for pertinente à elaboração da poética de seu trabalho. Podemos agora selecionar uma tecnologia que nos seja útil, dentre o enorme leque de possibilidades das já exis-tentes.

Minha produção artística, por exemplo, na área fotográfi-ca, acontece a partir de diferentes processos, o digital, o ana-lógico 35 mm, o 120 mm, a fotografia stenopéica ou pinhole, o cianótipo, o marron Van Dyke, a fotografia lomo, a polaroid, o daguerreótipo. Produzi vídeos digitais, animações, stop-mo-tion, super-8, dentre os exemplos que poderia citar. Desta for-ma, assim como muitos artistas contemporâneos, acredito na vantagem da coexistência entre tecnologias e invisto contra a ideia de que uma nova tecnologia possa substituir e descartar plenamente a utilidade de uma tecnologia anterior. Percebo que muitos artistas contemporâneos, e posso me incluir aqui, trabalham com tecnologias obsoletas, manuais, de caráter até mesmo artesanal, para escolher um caminho alternativo à tec-nologia imposta e dominante, buscando para a poética de seus trabalhos questões de caráter mais afetivo, lírico e subjetivo, do que um refinamento técnico. O Leonilson sempre foi um exemplo pra mim nesse sentido. Acredito, ainda, que há tam-bém uma crítica à situação econômica e cultural que vivemos atualmente no mundo. A descartabilidade das tecnologias e de seus produtos é incentivada pelo capitalismo e é fruto da ideia de evolução ou progresso tecnológico.

O uso de tecnologias obsoletas pelos artistas é, então, um fenômeno mundial. Ele acontece com mais força nos grandes centros, pois é neles que se concentra a cultura do descartável, criticada muitas vezes por estes artistas. Em nível nacional eu poderia citar a Rosangela Rennó, em diversos trabalhos, como

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a série A última foto, e o já citado Jonathas de Andrade, com ins-talações como a Ressaca Tropical. São artistas que parecem se dedicar a uma arqueologia da imagem e do olhar. Este uso me parece fazer parte do “revival” que comentaste e que ocorre no momento contemporâneo com muita força, mas inúmeros são os exemplos de artistas que se valeram das tecnologias obso-letas associando-as ao precário mesmo na arte moderna. No caso do Brasil, e da América Latina como um todo, pela difi-culdade econômica enfrentada, o acesso à tecnologia de pon-ta e a materiais mais refinados é pequeno. Diversos foram os artistas brasileiros que se valeram do precário, do barato, da manualidade, no sentido de até mesmo explicitar a situação social, os problemas políticos e econômicos locais. É o caso de boa parte das obras conceituais e neoconcretas. Hélio Oiticica, Lygia Clark, Anna Bella Geiger e Artur Barrio foram importan-tes neste sentido.

Local de trabalho.Foto: acervo da artista.

Agradecimentos

À Funarte, por tornar esse projeto possível.À Roberto Schmitt-Prym, pelo pronto apoio do Museu Júlio

de Castilhos e de sua editora às várias etapas do projeto.À Fernanda Gassen, Guilherme Dable, Jander Rama, Laura

Cattani, Munir Klamt, Marielen Baldissera, Marina Guedes, Michel Zózimo, Nara Amelia Melo, Rafael Pagatini e Rochele Zandavalli pelo investimento de tempo, energia e fé no projeto, por todo o material enviado, por todas as mensagens trocadas e por todas as sugestões para o aperfeiçoamento da proposta.

À Camila Borba, pela bela imagem utilizada na capa. À Cristiano Lenhardt, Samy Sfoggia e Tatiana Barbiero

Frantz, pela disponibilidade em ceder imagens de seus trabalhos para o ensaio Tradição em Paralaxe.

À Luciano Fernandes, pela inestimável criação do ensaio visual especialmente para essa publicação.

À Ana Maria Mauad, José Augusto Avancini e Carolina Etcheverry, pelas preciosas contribuições bibliográficas.

À Éder Silveira, por todo o apoio e por todas as longas conversas sobre este projeto.

À Sofia, pela alegre impaciência (sim, agora vamos brincar de boneca).

Este projeto foi contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no Edital Bolsa

Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais 2012.