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  • CHE GUEVARA: CONTRIBUIOAO PENSAMENTO REVOLUCIONRIO

  • Manolo Monereo Prez

    CHE GUEVARA: CONTRIBUIOAO PENSAMENTO REVOLUCIONRIO

    EXPRESSOPOPULAR

  • Copyright 2001, by Editora Expresso Popular

    Projeto grfico, diagramao e capaZAP Design

    Foto da capaOsvaldo Salas e Roberto Salas

    TraduoAna Corbisier

    ImpressoCromosete

    Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorizao da editora.

    4 edio: agosto de 2002

    EDITORA EXPRESSO POPULAR LTDARua Bernardo da Veiga, 14CEP 01252-020 - So Paulo-SPFone/Fax: (11) 3105-9500Correio eletrnico: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    Biblioteca Central da UEM. Maring - PR.

    Che Guevara: Contribuio ao pensamento revolucionrio /

    Manolo Monereo Pres. - So Paulo : Expresso Popular, 2001.

    128 p.: il.

    Livro indexado em GeoDados http://www.geodados.uem.br

    ISBN 85-87394-43-3

    1. Teoria Poltica (Che Guevara). 2. Guevara, Ernestode la Serna, 1928-1967. 3. Pensamento Revolucionrio. 4.

    Ideologia Poltica. I. Ttulo.

    CDD 21.ed. 320.5

    CIP-NBR 12899

    M742c

  • Breve Meditao sobre um Retrato de Che Guevara .........7Jos Saramago

    O legado de Che Guevara .......................................................11Joo Pedro Stedile

    Agradecimentos ........................................................................23

    Para ler o Che ............................................................................25

    O marxismo do Che: o comunismo como concepo domundo, movimento e finalidade............................................29

    Che Guevara e a Revoluo Cubana .....................................41

    Uma nova fase na luta pela libertao: dasolidariedade internacional dos proletrios ecamponeses contra o inimigo comum ................................55

    Que transio? Transio e transies ...................................65

    Duas formas de organizar a economia:os fins esto nos meios ............................................................75

    Sumrio

  • Manolo Monereo Prez

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    Planejamento, mercado, socialismo ......................................85

    O modelo sovitico:Elementos para uma crtica ....................................................103

    A Transio Socialista: Transformar aSociedade, Emancipar as Pessoas. .........................................111

    CONCLUSES ..........................................................................119

    Bibliografia .................................................................................124

  • Che Guevara: contribuio ao pensamento revolucionrio

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    Breve Meditao sobre um Retratode Che Guevara

    Jos Saramago

    No importa que retrato.Um qualquer: srio, sorrindo, de arma na mo, com Fidel ou semFidel, discursando nas Naes Unidas, ou morto, de tronco nu eolhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quises-se acompanhar o rasto do mundo que teve de deixar, como se nose resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitascrianas que estavam por nascer. Sobre cada uma destas imagenspoder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lrico ou de ummodo dramtico, com a objectividade prosaica do historiador ousimplesmente como quem se disps a falar do amigo que perce-be ter perdido porque o no chegou a conhecer...

    Ao Portugal infeliz e amordaado de Salazar e de Caetanochegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, omais clebre de todos, aquele feito com manchas fortes de ne-

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    gro e de vermelho, que se tornou em imagem universal dos so-nhos revolucionrios do mundo, promessa de vitrias a tal pon-to frteis que nunca antes haveriam de murchar em rotinas ecepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o dobem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobrea necessidade, emoldurado ou seguro parede por meios pre-crios, esse retrato assistiu a debates polticos apaixonados naterra portuguesa, exaltou argumentos, minorou desnimos, aca-lentou esperanas. Foi olhado como um Cristo que tivesse des-cido da cruz para descrucificar a humanidade, como um serdotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de umapedra a gua com que se matariam todas as sedes e transformaressa mesma gua no vinho com que se beberia ao esplendor davida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi,aos olhos de milhes de pessoas, o retrato da dignidade supre-ma do ser humano.

    Mas foi tambm usado como adorno incongruente em mui-tas casas da pequena e da mdia burguesia intelectual portugue-sa, para cujos habitantes as ideologias polticas de afirmao socia-lista no passavam de um mero capricho conjuntural, forma su-postamente arriscada de ocupar cios mentais, frivolidade mun-dana que no pde resistir ao primeiro choque da realidade, quan-do os factos vieram exigir o cumprimento das palavras. Ento, oretrato de Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos infla-mados anncios de compromisso e de aco futura, juiz, agora,do medo encoberto, da renncia cobarde ou da traio aberta, foiretirado das paredes, escondido, na melhor hiptese, no fundode um armrio, ou radicalmente destrudo, como se gostaria defazer a algo que tivesse sido motivo de vergonha.

    Uma das lies polticas mais instrutivas, nos tempos dehoje, seria saber o que pensam de si prprios esses milhares e

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    milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tive-ram algum dia o retrato de Che Guevara cabeceira da cama,ou em frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam osamigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingidoacreditar. Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara,ao perder a sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto eraintil ficar a chorar, como uma criana, o leite derramado. Ou-tros confessariam que se deixaram envolver por uma moda dotempo, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas,como se a revoluo fosse uma questo de cabeleireiro. Osmais honestos reconheceriam que o corao lhes di, que sen-tem nele o movimento perptuo de um remorso, como se asua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhesperguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nemesperana, sem uma idia de futuro que d algum sentido aopresente.

    Che Guevara, se tal se pode dizer, j existia antes de ternascido, Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existirdepois de ter morrido. Porque Che Guevara s o outro nomedo que h de mais justo e digno no esprito humano. O que tan-tas vezes vive adormecido dentro de ns. O que devemos acor-dar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo hu-milde de cada um ao caminho de todos.

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  • Che Guevara: contribuio ao pensamento revolucionrio

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    O legado de Che GuevaraJoo Pedro Stedile

    Este ano celebra-se o 30 ani-versrio do assassinato de Che Guevara nas montanhas da Bol-via, pelas foras militares daquele pas, orientadas pela CIA.Apesar de preso, manter Che Guevara vivo, naqueles idos deoutubro de 1967, era uma temeridade para o imperialismo; ain-da mais na conjuntura que estava criando, com os novos planosde contra-insurgncia e de segurana nacional, que resultariamem golpes de estado e na instalao de ditaduras militares, nasdcadas de 60 e 70, em quase todos os pases da Amrica Latina.

    A figura de Che Guevara sempre foi muito controvertida:odiada pela direita e pelas foras reacionrias em todo o conti-nente; e polmica, mesmo para os setores progressistas e de es-querda.

    Naqueles idos, a esquerda andava muito dogmatizada e acada tese, formava-se um novo grupo. Cada grupo rotulava Chede acordo com seus manuais, e alguns o classificavam apenas

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    de aventureiro, de idealista. Afinal, era mais cmodo seguir atradio burocrtica e pacfica de alguns partidos que se auto-definiam como comunistas. Havia os que se assustavam comsua prtica. Era pedir demais para um militante comum seguirtamanha ousadia. Outros chegaram a deturpar suas idias, trans-formando seu exemplo em mero estmulo a um falso herosmodesvinculado das massas; esse raciocnio foi resumido nas te-ses de Rgis Debray, intelectual francs que defendia a idia deque bastava um pequeno grupo de homens bem armados ecom disposio para subir as montanhas, criando um foco revo-lucionrio, para que as massas exploradas os seguissem. Era ofoquismo.

    Decididamente no eram essas as idias de Che, nem mesmosobre estratgia militar para a tomada do poder. Em seu manualGuerra de guerrilhas, escrito a partir da experincia concretada revoluo cubana, esto presentes claramente os princpios deque a guerrilha s tem sentido como parte da luta de massas, comoum meio, e no um fim. Nele, discorre ainda sobre a necessidadede condies subjetivas, objetivas e da correlao de foras, parao desencadeamento daquele tipo de guerra.

    Mas, sendo Che to polmico e to mal interpretado quantoa estratgia e tticas, e tendo sido vitorioso em Cuba, mas der-rotado no Congo e na Bolvia, qual o seu legado?

    No se pode idealizar sua figura como se fosse um super-homem. Nem dogmatiz-lo como exemplo nico e absoluto.Nem tampouco exorciz-lo, reduzindo-o a um mito. Che repre-senta a sntese de um perodo revolucionrio em nosso conti-nente. Suas idias, seus ideais, sua prtica, formaram asimbologia dos sentimentos e da prtica de todo um movimen-to revolucionrio, de vrias organizaes populares, em Cuba ena Amrica Latina.

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    Portanto, deve-se ter em mente que se tornou refernciapoltica porque representa uma sntese da experincia histricade vrios povos latino-americanos.

    E talvez sua figura tenha sido to forte como sntese, por-que, segundo seus historiadores e seus contemporneos, Chefoi um dos poucos revolucionrios que conseguiu viver inten-samente, coerente e cotidianamente, tudo o que pensava.

    Meu pai, - disse sua filha, Aleidita , procurou viver todosos dias de forma coerente com o que pensava.

    E nessa prtica coerente, cotidiana, que se encontra omaior legado de Che para a atual gerao de idealistas e revo-lucionrios.

    Resumidamente, podem-se identificar dez grandes valoresque representariam o legado de Che para a histria da AmricaLatina.

    1. O HumanismoO homem deve ser o objetivo principal.Seu bem estar, sua superao enquanto ser que busca se

    aperfeioar, que busca a felicidade, que busca viver numa so-ciedade justa. A luta, o partido, a guerrilha, sempre so inter-pretados por Che como meios. O fim alcanar uma socieda-de de homens livres e fraternos. por isso que, mesmo de-pois de tomado o poder, no caso de Cuba, continuava umaluta incessante pela construo de uma sociedade diferente.O humanismo guevariano aprofunda-se os ideais de Marx erecupera a viso mais generosa do objetivo principal de umarevoluo social. Ao contrrio da prtica de alguns partidosde esquerda, que transformaram a conquista do poder, o con-trole do estado e o fortalecimento de sua organizao numfim em si.

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    Esse humanismo est presente tambm quando defende aidia de que o que transforma a pessoa num verdadeiro revo-lucionrio, quando esta movida, permanentemente, por umprofundo sentimento de amor aos seus semelhantes.

    2. Rebelar-se contra qualquer injustia socialEssa frase tornou-se um princpio para qualquer revolucio-

    nrio. Che considerava que toda pessoa que pretendesse serrevolucionria deveria ter suficiente capacidade de indignaopara rebelar-se diante de qualquer injustia social exercida con-tra qualquer ser humano, em qualquer parte do mundo, emqualquer circunstncia.

    Nesse princpio est presente a idia fundamental das rela-es sociais concebidas por Che. O sentido da igualdade e dajustia. E, ao mesmo tempo, a rebeldia e a coragem de estimulartodos os indivduos a buscarem a igualdade, rebelando-se con-tra qualquer situao de injustia. Essa viso rompe a concep-o individualista de preocupar-se apenas consigo mesmo oucom os amigos. E rompe com a iluso de que para ser revolucio-nrio, necessrio conhecer a teoria, estar numa organizaorevolucionria. Orgulhar-se com dogmas e smbolos e esque-cer-se da prtica cotidiana. Para Che, em qualquer momento eem pequenas coisas, pode-se ser um grande revolucionrio, sese luta contra a injustia, contra as situaes de opresso que associedades de classe e o capitalismo produzem.

    3. O latino-americanismoA idia da identidade latino-americana dos povos que habi-

    tam esse continente, apesar das diferenas culturais e tnicas,esteve presente desde as lutas pela independncia. Com fre-qncia, cita-se Simon Bolvar, e especialmente Jos Mart. Es-

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    ses ideais aparecem em muitas obras literrias, em discursospolticos e programas partidrios, em todos os pases do conti-nente. Mas, certamente, a figura de Che foi a expresso maiscontundente desse carter, pelo exemplo de sua vida.

    A histria deu-lhe a oportunidade de nascer na Argentina,percorrer por terra o continente e assim conhecer mais de pertosuas mazelas. Apaixonou-se pela causa de todos os povos lati-no-americanos. Assim, dedicou-se com o mesmo ardor, naGuatemala, na preparao do Granma, no Mxico, nas monta-nhas de Cuba. E, depois, no governo revolucionrio, nos palan-ques da ONU e no altiplano boliviano.

    Sua vida ps em prtica o iderio de Mart, consolidando oesprito latino-americano. Porque contribuiu para a compreensode que as causas dos problemas sociais do povo nos diferentespases so as mesmas. De que o papel imperialista dos EstadosUnidos oprime a todos. E que a soluo, a longo prazo, vai unirtodos os nossos povos num caminho semelhante e latino-ameri-cano. Nenhum pas, isoladamente, conseguir construir uma so-ciedade justa e fraterna na Amrica Latina. Mesmo no caso da vi-tria da revoluo cubana, note-se os sacrifcios impostos ao povocubano pelo cerco norte-americano; e a derrota recente de outrasrevolues na Amrica Central, no Caribe e na Amrica do Sul.

    4. O esprito missionrioO esprito missionrio presente no iderio de Che e na sua

    prtica est baseado no sentimento da solidariedade, no noda aventura. Che costumava dizer que a mais bela qualida-de da pessoa o sentimento de solidariedade. E foi com essesentimento que ele pregou o esprito missionrio. Despegar-se das tarefas cotidianas, do comodismo da vida organizada.Estar disposto a abandonar esse comodismo e ir a outros lo-

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    cais, outros povoados, e at a outros pases. Contribuir dealguma forma, com humildade, para que outras pessoas pos-sam viver melhor. Esse esprito missionrio o levou a muitoslugares. Mas sempre com o mesmo sentimento de solidarie-dade. Jamais para ensinar, dar ordens, impor, ou tirar algumproveito pessoal.

    Esse sentimento solidrio o que at hoje estimula milharesde revolucionrios cubanos a contriburem com seus conheci-mentos, com sua boa vontade, no campo da sade, das tcnicas,com outros povos, em quase todos os continentes.

    5. O esprito de sacrifcioO esprito de sacrifcio no foi um discurso moralista, falso,

    ou religioso, para buscar em troca o paraso, na vida eterna. Nemum desvio masoquista. Mas fazia parte da vida. A pior tarefa,em qualquer trabalho ou misso, era assumida por Che. E pre-gava que todo militante, que todo revolucionrio deveria assu-mir para si essa obrigao. Com esses valores, haveria moralsuficiente para servir de exemplo a todo o povo e para a cons-truo de uma sociedade diferente.

    6. O exemplo do trabalhoO trabalho sempre foi visto por Che como a fora transfor-

    madora do homem, como a base da construo de toda riquezana sociedade. Mas acima de conceitos tericos e filosficos, olegado dele ter praticado a idia bsica de que ningum podepedir para outro fazer alguma coisa, sem faz-la primeiro.

    Por isso, em muitas ocasies, era o primeiro a realizar as ta-refas, o primeiro a comear o trabalho. Primeiro procurava elemesmo fazer, para depois pedir que os demais tambm pudes-sem faz-lo e seguir adiante.

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    Esse esprito est presente na enorme contribuio que Chedeu organizao dos trabalhos massivos, na forma de mutiro,nos quais toda a populao adulta era convocada a se engajar.

    Esse mesmo esprito estava presente no planejamento enos debates polticos com os trabalhadores e com a socieda-de cubana, no processo de construo do socialismo. Mos-trando que uma sociedade mais justa, com mais bem estar,no se constri com discursos, ou apenas ideais, mas quedepende, fundamentalmente, do aumento da produo debens, de mercadorias, de riquezas. E isso somente seria pos-svel com muito trabalho. Ou seja, uma sociedade mais avan-ada e mais justa somente seria alcanada com muito traba-lho da atual gerao, para que fosse possvel construir umfuturo mais digno para as geraes futuras.

    7. O despojamento dos bens materiaisChe galgou os postos mais importantes no Estado cubano.

    Foi Ministro, Presidente do Banco Central, participou de in-meras delegaes internacionais, representando o Governo e opovo cubanos. Poderia ter se acomodado nos cargos e na vidatranqila que sua trajetria lhe garantia.

    Quando se despediu dos filhos, rumo Bolvia, teve o cui-dado de assinalar que no lhes deixava nada de bens materiais,e que sabia que o Estado revolucionrio lhes garantiria o mes-mo bem estar e educao que a todos os filhos do povo.

    Seus hbitos foram simples e modestos. Quase franciscanos.E esse esprito de despojamento dos bens materiais, a que a

    pessoa se apega, como se fossem a nica fonte de felicidade,esteve presente em sua pregao.

    Contrapunha-se necessidade do homem ter acesso aosconhecimentos, aos bens culturais, educao e a uma vida so-

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    lidria e igualitria, como base da felicidade. Os bens relaciona-dos s necessidades bsicas do homem so fundamentais. Masa prtica do individualismo, do egosmo, da acumulao de benscomo ostentao da diferenciao social, minam a moral, na cons-truo de uma sociedade mais justa.

    Nesse princpio se baseia a prtica do trabalho voluntrio,estimulada por Che. Via no trabalho voluntrio, exercido nashoras de folga, aos sbados, domingos, feriados, uma forma depraticar esse desapego pelas coisas materiais, e a forma de pra-ticar atos concretos de solidariedade social. Acreditava tambmque somente seria possvel resolver os grandes problemas con-cretos da sociedade cubana, de forma mais rpida, se houvesseuma doao, uma entrega maior de todos, no exerccio do tra-balho voluntrio no remunerado.

    8. A crena na fora das massasA fora popular e a capacidade transformadora das massas

    organizadas esto presentes em todo o pensamento poltico deChe. Mesmo na teorizao de estratgias militares, ao contrriodo foquismo, Che pregava que somente seria possvel a vitriarevolucionria, se se conseguisse organizar um verdadeiro exr-cito popular, de todo o povo.

    Nunca estiveram presentes em seu iderio os desvios doputchismo ou do herosmo de um pequeno grupo que poderialibertar o povo.

    Essa mesma concepo est presente quando alia a fora dasmassas ao esprito de sacrifcio e ao trabalho voluntrio. Por issoforam organizados muitos mutires para resolver problemasconcretos da populao. Desde a limpeza pblica, a construode moradias populares e o corte da cana, at a defesa da ptria;por exemplo, quando Cuba foi invadida por foras militares or-

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    ganizadas pelos Estados Unidos, no famoso episdio da Bahiados Porcos, em 72 horas, com a mobilizao de todo o povo emarmas, foi possvel derrotar e prender todos os invasores.

    9. A relao entre os dirigentes e as massasA prtica cotidiana do exemplo de Che representa tambm

    um legado importante no que se refere forma como ele se re-lacionava com as massas. Defendia e praticava a necessriavinculao dos dirigentes com as massas. Estava sempre nomeio delas. E procurava ouvir seus anseios, problemas, dificul-dades e crticas ao processo revolucionrio.

    Teve uma prtica essencialmente anti-burocrtica, anti-ga-binete, anti-vanguardista, anti-dirigista. Evitando e opondo-sea que um ncleo organizado do partido pudesse achar que sa-bia tudo sobre o povo e escolher o melhor caminho para ele.Estar sempre no meio do povo era o melhor caminho para er-rar menos.

    10. A formao de quadrosA experincia da construo do socialismo, a experincia da

    administrao popular de um estado revolucionrio em condi-es de subdesenvolvimento, levou Che a dedicar muita refle-xo necessidade da formao de quadros. H muitas reflexesregistradas em discursos, artigos, ensaios, sobre esse problema.Via a formao de quadros como uma necessidade vital do pro-cesso revolucionrio. E, de novo, manifesta sua vinculao coma fora popular, ao defender a idia de que uma poltica de qua-dros era uma poltica necessariamente dirigida para as massas.Para que entre as massas, especialmente a juventude, se pudes-se formar o maior nmero possvel de pessoas como militantesrevolucionrios, dentro das necessidades tcnicas e polticas do

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    processo cubano. Mas, sobretudo, que, desenvolvendo-se pol-tica, moral e culturalmente, representassem a prtica de valoresdo homem novo e servissem de exemplo a toda a massa.

    Defendia que o quadro devia ser altamente disciplinado,preparado tecnicamente, com amor ao estudo e aos conhecimen-tos cientficos; com disposio para enfrentar qualquer tarefa ecapacidade de anlise dos problemas e suas causas e, ainda, comcriatividade suficiente para buscar uma soluo. Mas, sobretu-do, deveria ganhar o respeito dos trabalhadores e do povo, porseu exemplo e pelo carinho e dedicao aos seus semelhantes.

    Desta forma, as pessoas se transformariam em exemplo, esendo exemplo, poderiam ser chamadas de quadros revolucio-nrios.

    ConclusoA figura de Che Guevara est ainda to presente em nosso

    meio, fundamentalmente pelo legado que nos deixou. A situa-o de vida dos povos da Amrica Latina no se modificou. Asforas produtivas se desenvolveram. Mas os problemas sociaise concretos de nossos povos continuam.

    Cabe s organizaes populares que se pretendem revolu-cionrias, refletirem sobre esse legado. Buscarem a universali-dade que existe nele, independente da categoria social, do meioou do pas em que se atua.

    Acreditar no legado de Che no significa querer copiar es-tratgias ou tticas para a tomada do poder utilizadas em Cubaou na Bolvia. Cada pas, cada povo, cada situao ter sua pr-pria estratgia e tticas, determinadas pelas condies objeti-vas, subjetivas e pela correlao de foras existentes. Acreditarem Che , sobretudo, alimentar permanentemente a possibili-dade de fazermos a revoluo. Fazer a revoluo a cada dia. Pela

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    nossa prtica, pelo nimo permanente da confiana em nossosideais, e na certeza de que possvel derrotar os opressores (in-ternos e externos) e um dia construirmos uma sociedade maisjusta e fraterna. E, certamente, como sonharam Mart e CheGuevara, latino-americana.

    Maio, 1997

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    Agradecimentos

    Este livro uma sntese muitoresumida de um trabalho maior sobre alguns dos temas centraisque ocuparam e preocuparam o Che Guevara em sua existnciacomo revolucionrio. tambm uma obra coletiva. Deve muitoa Fernando Snchez San Martn, a Antonio Jess Garca Garridoe a Olga Leralta Pin; sem suas discusses, esforos e tristezascompartilhadas, este livro seria inimaginvel. Tambm devemuito a Julio Anguita Gonzlez, por seu exemplo pessoal e seuvalor moral, e a Jos Luis Monereo Prez, meu grande irmoparticular que , ao mesmo tempo, muito mais do que isso.

    Por suas crticas, suas contribuies, o nimo e o alento queme deram, tenho que citar obrigatoriamente Jaime Pastor,Michael Lwy, Fernando Martnez Heredia, Aurelio Alonso,Carlos Tablada, Luis Surez, Atilio Born, Mara del CarmenAriet, Papito Serguera, assim como a cumplicidade de meusamigos Janette Habel, Juan Valds Paz e Julio Carranza, por te-

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    rem somado e mesclado militncia e compromisso, saber filo-sfico-enciclopdico e sabedoria poltico-econmica. Este traba-lho se fez rigor e proposta graas a Sheryl Lutjens; com EmirSader se converteu em uma viso cosmopolita, sempre atentaao mundo visto do ponto de vista do Sul. No que possa valer, atodos eles, e inesquecvel memria de Lucia Gonzlez, dedicoeste livro.

    De Paco Fernndez Buey no posso dizer outra coisa senoque foi e uma referncia intelectual e moral obrigatria e, fi-nalmente, quem corre o risco editorial meu companheiro eamigo de tantas aventuras, Miguel Riera.

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    E

    Para ler o Che

    rnesto Guevara de la Serna, conhecido como Che, foi umpoltico. Um revolucionrio profissional no sentido pleno e

    estrito definido por Lenin em Que fazer; e tambm um homemque viveu mltiplas experincias vitais e profissionais, onde aasma, o exerccio da medicina, a paixo pela aventura, as lutaspolticas e as profundas convices revolucionrias formaramum carter e um estilo. Sua morte, para a qual parecia ter se pre-parado durante toda a vida, forjou uma imagem que distorcesua vida real e pouco ajuda a entender uma parte substancial desua existncia: sua paixo pelas idias, sua inquietao intelec-tual a partir de uma militncia e de um compromisso polticoindeclinveis.

    Neste trabalho nos moveremos fundamentalmente nesteltimo plano, que queremos analisar e reivindicar como parteimportante do pensamento emancipatrio moderno. O Che vi-veu todas as contradies do movimento revolucionrio do s-

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    culo XX e tentou, no mnimo, fazer a si mesmo perguntas s quaisprocurou responder, quase sempre, com a falta de preconceitoe com a liberdade de pensamento que o caracterizaram at ofim de sua curta vida.

    A diviso weberiana entre o cientfico e o poltico se apli-cava a ele, com a nuance, sempre discutvel, de que pertencia auma tradio intelectual que pretendeu superar esta diviso,isto , fazer da poltica cincia e da cincia um guia do movi-mento histrico; a que seus fundadores, de maneira semelhan-te, pensaram e chamaram, socialismo cientfico. Outro elementoa ressaltar o seguinte: trata-se de um pensamento revolucio-nrio que enfrentou problemas inditos, dilemas prticos econjunturas polticas no previstas e para os quais no haviasuficiente bagagem intelectual. Os conceitos no Che sofremvariaes; uns so retificados, outros abandonados e outrosapenas entrevistos; questes onde nem sempre existe uma re-lao harmoniosa entre significante e significado e onde os con-ceitos so, em vrios sentidos, imprecisos, o que obriga a umacerta hermenutica de sua obra. No se pode esquecer queestamos falando de um poltico jovem que se deparou com atarefa de construir o socialismo com conhecimentos relativa-mente escassos e com uma experincia internacional quesupervalorizou no princpio e em relao qual, no final, semostrou muito crtico.

    O carter fragmentado da obra do Che, as mudanas, asmodificaes de seu pensamento e a prioridade da agenda pol-tica concreta, impuseram uma certa hierarquia nos temas e prio-ridades a sua reflexo terica e a sua prtica. Isso obriga a umametodologia que propicie uma leitura problematizadora e a umatentativa de sintetizar os elementos determinantes de seu pen-samento.

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    As teses centrais deste trabalho afirmam que o Che era:1. O dirigente revolucionrio cubano de maior formao te-

    rica marxista e o mais comprometido com o comunismo domi-nante em sua poca.

    2. Sua experincia poltica e terica foi convertendo-o emum crtico cada vez mais informado e conseqente do modelosovitico.

    3. O Che viu a necessidade de um novo tipo de construosocialista que, partindo das experincias conhecidas, fosse almdelas.

    4. Sua insistncia em vincular a transio ao socialismo lutacontra a alienao se resume na idia da formao de um novotipo de ser humano que esteja no centro do projeto de emanci-pao.

    Para tentar superar o carter fragmentado de sua obra e aopacidade de alguns de seus termos, junto com a retificao queocorreu naqueles anos sobre elementos bsicos, escolhi, comolinha metodolgica central deste trabalho, situar como guia deinterpretao e como sua referncia a obra do Che: O socialismo eo homem em Cuba (GUEVARA, 1985, VIII). Existem vrias razespara isso:

    a) Porque se trata de um texto tipicamente programtico ecom um nvel de generalizao que o torna extremamente sin-gular.

    b) Porque nele se abordam temas, conceitos e problemas aque o Che chegou depois de anos de duros enfrentamentos coma realidade.

    c) Porque marca um hiato na biografia do Che; encerraum ciclo e abre uma perspectiva diferente em muitos senti-dos.

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    As fontes documentais e testemunhais para estudar o pen-samento do Che so problemticas. Segundo algumas opinies,a parte indita dos escritos do Che pode chegar a 20% do totalde sua obra. Se a isto acrescentarmos que a edio compiladapor Borrego (1966) teve uma tiragem muito limitada, estaremosem condies de ver quo difcil o emprego das fontes no Che.O autor deste trabalho se baseou nas edies disponveis do Cheem Cuba; tambm tive acesso a um texto imprescindvel querelata as reunies bimestrais do Che com sua equipe do Minis-trio da Indstria e que constitui o tomo VI da edio do MINAZ.Circunstancialmente, tambm tive acesso a alguns textos indi-tos que me permitiram iluminar aspectos da evoluo do pen-samento do Che. Na prtica, comparei, diante de cada conceitoproblemtico, as diversas fontes; tambm levei em considera-o os numerosos estudos sobre seu pensamento realizados nasltimas dcadas. Por ltimo, considerei ainda as numerosas bio-grafias escritas sobre o Che, e que permitem contextualizar his-toricamente a evoluo de seu pensamento.1

    1 Uma vez concluda a redao deste trabalho pude consultar, graas aMara del Carmen Airet, coordenadora cientfica do arquivo pessoal doChe, diversos trabalhos inditos que a meu ver no modificam substanci-almente o que foi dito aqui sobre o revolucionrio argentino-cubano masque, sem dvida, trazem elementos que ser necessrio considerar emfuturas pesquisas sobre seu pensamento e sua biografia intelectual.

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    O marxismo do Che: o comunismo comoconcepo do mundo, movimento e finalidade

    xiste concordncia em que o Che que chegou ao Mxicodepois de sua experincia na Guatemala de Arbenz, j

    era um marxista convicto e confesso, tanto do ponto devista terico, como poltico. Como costuma ocorrer, esta op-o poltico-cultural se converte, assim como para muitoshomens de sua gerao, em uma opo de vida, delimitaode campos e determinao precisa da noo de amigo einimigo que ntida no Che daquela poca. Estava conven-cido que:

    a) qualquer tentativa de sada do subdesenvolvimento paraos pases latino-americanos devia articular-se com uma demo-cratizao poltica, econmica e social, que tivesse como centroa reforma agrria;

    b) qualquer tentativa de mudanas a favor dos de baixoenfrentaria, mais tarde ou mais cedo, os Estados Unidos daAmrica, o imperialismo;

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    c) a transformao social exigia uma direo poltica fortee firme que, quando as condies assim o exigissem, no de-veria temer armar o povo e, at chegar a um conflito blico ge-neralizado.

    O poder poltico em geral nos pases da Amrica Latina, aselites subalternas ao imperialismo e, concretamente, o papel doexrcito, j eram definidos com grande preciso pelo Che em1954. Em uma carta a sua me, datada de 4 de julho daqueleano, podemos ler:

    A traio continua a ser patrimnio do exrcito, e uma vezmais se prova o aforisma que indica a liquidao do exrcitocomo o verdadeiro problema da democracia (se o aforisma noexiste, eu o estou criando) (GUEVARA, 2000a).

    Esta opinio tender a tornar-se ainda mais firme no futuro,junto com uma viso cada vez mais crtica das chamadas bur-guesias nacionais e das debilidades da classe operria, nas con-dies de subdesenvolvimento e dependncia que, depois daexperincia da Revoluo Cubana, vai lev-lo defesa da viaarmada, como a nica forma possvel de conseguir a libertaoda Amrica Latina.

    O marxismo do Che estava e estar sempre unido e a servi-o de um compromisso poltico-moral comunista. Por isso po-dia combinar firmeza nos princpios a uma prtica marxistaaberta e crtica, em contato permanente com os problemas darealidade concreta, disposta inovao e defesa de opespolticas prprias. Em um de seus primeiros escritos depois dotriunfo da Revoluo, frente s opinies ortodoxas que critica-vam a Revoluo alegando a falta de uma teoria que a explicas-se e citando o que dissera Lenin sem teoria revolucionria noh movimento revolucionrio afirmava o Che, com odesassombro que o caracterizava:

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    Conviria dizer que a teoria revolucionria, como expres-so de uma verdade social, est acima de qualquer enunciado;isto , que a revoluo pode ser feita desde que se interpretecorretamente a realidade histrica e desde que sejam utilizadascorretamente as foras que nela intervm, ainda que sem conhe-cimento da teoria (GUEVARA, 1985, IV, 201).

    Manteve esta atitude aberta e pouco dada a um marxismofossilizado durante o resto de sua vida. Com certo cientifi-cismo, apenas aparente, argumentava:

    Nossa posio, quando nos perguntam se somos marxis-tas ou no, a que teria um fsico se lhe perguntassem se newtoniano, ou a um bilogo se pasteuriano [] Deve-seser marxista com a mesma naturalidade com que se newtoniano em fsica ou pasteuriano em biologia, conside-rando que se bem novos fatos determinem novos conceitos, tam-bm um fato que no se eliminar nunca sua parte de verdadedaqueles que ficaram (GUEVARA, 1985, IV, 203).

    O marxismo do Che est marcado por dois elementos fun-damentais: de um lado, a idia de que a contribuio de Marxconsiste em construir uma teoria e uma prtica polticas em tor-no da necessidade de unir conhecimento da realidade com suatransformao; de outro, que a especificidade do comunismomarxista consiste em mostrar a possibilidade de construir umasociedade nova, partindo das contradies existentes no capita-lismo e pondo o ser humano, pela primeira vez na histria, emcondies de determinar conscientemente o seu futuro. O pla-nejamento social no para o Che mais um instrumento, apossibilidade de domar o destino. O mrito de Marx , para oChe, sua capacidade de conhecer e interpretar a histria, paradetectar os conflitos sociais bsicos e projetar tendncias polti-cas alternativas numa perspectiva transformadora:

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    O homem deixa de ser escravo e instrumento do meio ese converte em arquiteto de seu prprio destino (GUEVARA,1985, IV, 203).

    Encerra a argumentao com graa e num tom que lhe muito prprio diante das dificuldades:

    A Revoluo Cubana retoma Marx onde este deixou a ci-ncia para empunhar seu fuzil revolucionrio; e o retoma ali,no por esprito de reviso, de luta contra o que se segue a Marx,de reviso do Marx puro, mas, simplesmente, porque at ali,o cientista, de fora da histria, estudava e vaticinava. Depois, oMarx revolucionrio, dentro da histria, lutaria. Ns, revolucio-nrios prticos, iniciando nossa luta, simplesmente cumprimosleis previstas pelo Marx cientista (GUEVARA, 1985, IV, 204).

    Esta concepo de um marxismo aberto, que distancia dosmanuais, continuamente reafirmada pelo Che, combatendoqualquer degenerescncia dogmtica ou economicista. Em umainterveno pblica realizada em 24 de maro de 1963 diz ex-pressamente:

    Por isso o marxismo somente um guia para a ao. Foramdescobertas as grandes verdades fundamentais, e a partir de-las, utilizando-se o materialismo dialtico como arma, vai-se in-terpretando a realidade em cada lugar do mundo. Por isso ne-nhuma construo ser igual; todas tero caractersticas peculia-res sua formao (GUEVARA, 1985, VII, 46).

    No de estranhar que, com esta concepo do marxismo,visse a transio socialista em Cuba e interpretasse a Revolu-o Cubana explicitando suas singularidades e buscando apartir delas os elementos de carter mais geral que poderiamservir de ajuda a outros povos da Amrica Latina ou do Tercei-ro Mundo. No perdia nenhuma oportunidade para destacareste elemento:

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    A tarefa da construo do socialismo em Cuba deve serenfrentada fugindo-se do mecanicismo como da peste. Omecanicismo s conduz a formas estereotipadas, a ncleos clan-destinos, ao favoritismo e a toda uma srie de modos de organi-zao revolucionria (GUEVARA, 1985, VII, 47).

    necessrio lembrar que este tipo de marxismo tem antece-dentes no que foi chamado de marxismo da subjetividade oumarxismo clido, prprio do jovem Lukacs, do jovem Gramsciou de Ernest Bloch e que teria Maritegui como destacada refe-rncia latino-americana. Manuel Sacristn, comentando estesassuntos, precisamente em um artigo sobre Lukacs, afirma queforam trs as solues dadas crise do marxismo dogmtico daII Internacional. A primeira seria uma sada equilibrada entre ojogo de fatores objetivos e subjetivos que se entrelaam nos pro-cessos revolucionrios (protagonizada por Lenin); a segunda,muito minoritria, que tentava unir os pressupostos cientficosde Marx e a vontade revolucionria do proletariado (como refe-rncias podemos citar Bogdnov e Korsch); e, a terceira, que fazdo predomnio do fator subjetivo o elemento determinante doprocesso revolucionrio (os autores citados quando nos referi-mos anteriormente ao marxismo clido) (SACRISTAN, 1983).Esta tenso entre fatores objetivos e subjetivos determinanteno Che e explica muito sobre sua concepo da transio para ocomunismo, iluminando o protagonismo do indivduo concre-to nos processos de transformao social.

    A organizao poltica da subjetividade, a conscincia socia-lista, determinante para o Che em vrios sentidos:

    Primeiro, como j vimos, o socialismo, a sociedade alternati-va, situa o ser humano como arquiteto de seu destino, isto ,coloca-o em condies de libertar-se da alienao e das contra-dies da lei do valor no capitalismo.

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    Segundo, o socialismo no surge espontnea ou automati-camente da conquista do poder poltico e da nacionalizao dosmeios fundamentais de produo e de mudana; chega-se aosocialismo consciente e planejadamente.

    Terceiro, para que a sociedade socialista possa se reprodu-zir, so necessrios indivduos, pessoas que, subjetiva e objeti-vamente, lutem contra as sutis formas de alienao capitalista esejam capazes de transformar a si mesmas e sociedade.

    O primeiro tema que ser desenvolvido ao longo de todoeste trabalho uma constante no Che e, tambm, uma preocu-pao, no sentido de que controlar social e democraticamente odestino obriga ao predomnio dos mecanismos conscientes e areduzir as articulaes no intencionais que determinam e mo-vem os indivduos. Em um discurso pronunciado em janeiro de1964 na Entrega de certificados de trabalho comunista expli-cava, em uma linguagem inteligvel para as maiorias, estas com-plicadas questes; primeiro exps a idia de como se chega aocomunismo:

    O comunismo um fenmeno social que s se pode atingirmediante o desenvolvimento das foras produtivas, a supres-so dos exploradores, a grande quantidade de produtos postosa servio do povo e a conscincia de que se est gestando estasociedade (GUEVARA, 1970, II, 246).

    Segundo, dando um salto que podemos considerar como umtriplo mortal, passa a falar da importncia da Revoluo deOutubro e de Lenin; para explicar melhor o fundo do assunto,compara as tarefas do socialismo de seu momento com os revo-lucionrios franceses e diz:

    Aqueles homens da Revoluo Francesa que deram tantascoisas belas humanidade, que tantos exemplos deixaram e cujatradio se conserva, eram, no entanto, simples instrumentos da

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    histria. As foras econmicas se moviam e eles interpretavamo sentimento popular, o sentimento dos homens daquela poca;e alguns intuam at mais longe, mas ainda no eram capazesde dirigir a histria, de construir sua histria conscientemente.(GUEVARA, 1970, II, 246).

    V-se, com clareza, que diferentemente das revolues bur-guesas, a revoluo socialista pe o ser humano em condiesde dirigir seu destino.

    O segundo assunto tem a ver com uma convico arraigadado Che: chega-se sociedade alternativa por meio de um pro-cesso consciente e, por conseguinte, no h automatismo, sen-do o processo sempre reversvel. Para diz-lo com mais clareza,a luta entre o socialismo e o capitalismo continua durante toda alonga transio ao comunismo. Lwy em seu ensaio sobre o Che,tratou bem do assunto que nos ocupa:

    Estas transformaes so uma condio necessria, mas nosuficiente, para a citada liquidao, a qual exige uma interven-o consciente e especfica * a nvel das superestruturas. Poroutro lado, esto seriamente ameaadas se os mtodos econ-micos de construo do socialismo levam o carimbo da socieda-de antiga (LWY, 1973, 26).

    Outro aspecto do problema tem a ver com a especificidadeda transio para o socialismo diante de outras transies entremodos de produo anteriores. Como sabido, a transio para osocialismo e para o comunismo, embora encontre suas condiese sua possibilidade nas contradies do capitalismo, exige umaruptura poltica, uma revoluo social que concentre nos traba-lhadores o poder poltico e econmico. A leitura do Che a se-guinte: em certo sentido, a subjetividade politicamente organiza-

    *sublinhado pelo autor no original

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    da o elemento determinante de todo o processo de construodo comunismo. Martnez Heredia, em sua excelente monografia,prope este problema com muita perspiccia porque o relaciona,no apenas com o capitalismo em geral, mas com o capitalismomenos desenvolvido, notando que o socialismo:

    Implica no predomnio do fator subjetivo, como na pocada vigncia do capitalismo predominara o fator objetivo. Mas oChe considera que para toda a poca de transio do capitalis-mo para o socialismo e para o comunismo rege uma dialtica deambos os fatores, em que o plo dominante tem que ser o subje-tivo *, sob pena de no se avanar a curto ou longo prazo e, porconseguinte, no chegar (MARTINEZ HEREDIA, 1989, 61).

    O terceiro assunto tem a ver mais diretamente com a contri-buio especfica que o Che pretende dar ao socialismo dedi-caremos uma parte deste trabalho a esta contribuio. Aqui bastamencionar, como aproximao, aquela resposta to conhecida auma pergunta de Jean Daniel:

    O socialismo econmico sem a moral comunista no meinteressa. Lutamos contra a misria, mas ao mesmo tempo luta-mos contra a alienao. Marx se preocupava tanto com os fatoseconmicos como com sua traduo na mente. Chamava issode um fato de conscincia. Se o comunismo descuida os fatosde conscincia pode ser um mtodo de distribuio, mas deixade ser uma moral revolucionria (TABLADA, 1997b, 126).

    Esta tenso a que reiteradamente fizemos referncia entre rea-lidades objetivas e processos de interveno subjetivos, agua apercepo sobre certos problemas tericos do Che, distinguindo,num primeiro momento, a teoria da revoluo em Marx paraum capitalismo desenvolvido da teoria derivada do Lenin ana-

    * sublinhado pelo autor no original.

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    lista do imperialismo para, depois, propor duas estratgias dife-renciadas para o socialismo segundo este se d nas condiesde Marx ou nas condies de Lenin.

    Em um discurso, refere-se contribuio de Marx enquantoanalista dos diferentes modos de produo e, sobretudo, suaprofunda anlise do capitalismo, destacando o que consideravasua contribuio mais significativa:

    Marx fez algo mais importante ainda: demonstrou que,historicamente, o capitalismo deveria desaparecer e dar lugara uma nova sociedade: a sociedade socialista (GUEVARA,1985, VII, 48).

    Como costumava fazer, d um salto e fala da contribuiode Lenin:

    Aprofundou mais a anlise e chegou concluso que a pas-sagem de uma sociedade para outra no era uma passagemmecnica, que as condies podiam ser aceleradas ao mximo,mediante alguns catalizadores, poderamos dizer (no umafrase de Lenin, mas minha, mas a idia, a idia central)(GUEVARA, 1985,VII, 48).

    Estes catalizadores de que fala o Che eram, fundamental-mente, um forte partido de vanguarda e a conscincia das mas-sas que, nas condies histricas de que ele partia, contava, ain-da, com a presena de um campo socialista desenvolvido, compossibilidades de apoiar ativamente os processos revolucion-rios em marcha. Convm pois tomar nota de dois aspectos domarxismo do Che:

    1) A comparao entre as teorias sobre a revoluo de Marxe de Lenin.

    2) O papel da conscincia e da vanguarda revolucionriaem condies de luta internacional entre o socialismo e o ca-pitalismo.

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    Na citao de Lenin falava-se da passagem de uma socieda-de para outra, explicitando-se que no era uma passagem me-cnica. Em uma pgina posterior o Che volta a insistir sobre arevoluo nos pases subdesenvolvidos:

    No se chega ao socialismo nas condies atuais de nossopas, e em muitos outros que o fizeram, pela exploso das con-dies sociais anteriores. Ou seja, por uma mudana mecnica,porque havia tantas condies objetivas que era, simplesmente,uma questo de forma (GUEVARA, 1985, VII, 49).

    Como se pode ver, a chave de ambas as frases est napassagem ou mudana mecnica e na forma. Para o Che podemos diz-lo assim as condies que Marx previa para arevoluo nos pases capitalistas desenvolvidos ocorriam comum supervit de objetividade, fruto do desenvolvimentoconcreto das contradies bsicas e superestruturais; a mudanaera entendida de forma mecnica em condies objetivas queamadurecem automaticamente para condies subjetivas.Enquanto a revoluo em pases que no tinham seguido aevoluo contraditria do capitalismo, o subjetivo era deter-minante, a mudana ocorria com um dficit de condiesobjetivas que teria que ser superado mediante a organizaodas condies subjetivas; isto , organizao + conscincia; aoque haveria que acrescentar o Che era bastante realista oapoio ativo do campo socialista para proporcionar parte dosrecursos necessrios superao do subdesenvolvimento2.

    Em seu clebre artigo O socialismo e o homem em Cuba, pode-mos ler, a este respeito:

    2 Tal como me disse criticamente Fernando Martnez Heredia, isto no sig-nifica que o Che fizesse uma leitura objetivista de Marx, talvez, ao con-trrio, ele sempre o viu vinculado luta de classes e revoluo.

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    No esquema de Marx se concebia o perodo de transiocomo resultado da transformao explosiva do sistema capita-lista dilacerado por suas contradies; na realidade posteriorviu-se como se desprendem da rvore imperialista alguns pa-ses que constituem os ramos dbeis, fenmeno previsto porLenin (GUEVARA, 1985,VIII, 258).

    A questo dos catalizadores de que fala o Che deve nos porem contato com um elemento que no se costuma considerarquando se discute com o revolucionrio argentino-cubano. Paraele o fundamental era a contraposio entre socialismo e capita-lismo em escala mundial; de onde caberia deduzir que as rup-turas sucessivas na cadeia imperialista podiam criar, no ape-nas uma aliana estratgica entre os pases socialistas e os capi-talistas liberados, como, dialeticamente, poderiam ser geradasdinmicas muito mais avanadas de desenvolvimento social epoltico. A conscincia e a combatividade das massas teriam queser decorrncia, no apenas do plano nacional, mas, sobretudo,do internacional. Esta mesma situao daria oportunidades paraalgo obsessivo no Che que queimar e abreviar etapas nodesenvolvimento econmico e social, acelerando os ritmos e tor-nando a conscincia social e politicamente produtiva.3

    Enfim, o Che apresenta um marxismo sempre aberto eproblemtico, num esforo permanente para deixar-se instruirpela realidade, buscando explicar os acontecimentos e, sobretu-do, tirando lies operativas para o que entendia ser a chave dofuturo: a atualidade da revoluo. O comunismo aparecia as-sim como um movimento que se desenvolvia em uma fase his-

    3 O Che refere-se seguidamente a isso, como pode-se ver literalmente na pg.49 do tomo VI e na 99 e 140 do tomo VIII (GUEVARA, 1985) e, implicita-mente, em inmeros artigos.

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    trica definida pela luta contra o imperialismo e, em muitos sen-tidos, diferenciada das anlises de Marx que, para o Che, privi-legiavam um capitalismo que no tinha em seu centro a relaoimperialista. Por sua vez, e assumindo a contradio, a concep-o do comunismo de que fala a do Marx jovem e velho e a doLenin sovietista do Estado e a Revoluo. Um comunismo que, alm do mais, exigente, porque pressupe uma mudanacivilizatria. O mais tremendo poder-se-ia falar em dramtico a enorme distncia entre o dficit objetivo fruto da acumula-o primitiva capitalista e do desenvolvimento pleno de suascontradies e as transies para o socialismo realmente exis-tente, em marcos civilizatrios caracterizados pelo atraso, pelosubdesenvolvimento e pela dependncia.

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    C

    Che Guevara e a Revoluo Cubana

    omo j disse no captulo anterior, o Che que saiu daGuatemala depois da experincia de Arbenz tinha um

    projeto poltico definido, forjado durante a etapa guerrilheira edepois do triunfo da Revoluo Cubana, a partir da esquerdado Movimento 26 de Julho, tanto em seus aspectos internoscomo em suas definies internacionais (TAIBO II, 1996). Os con-flitos do prprio processo revolucionrio, as urgncias dram-ticas diante de desafios inditos para os quais se estava poucoou nada preparado, as dimenses internacionais cada vez maisprofundas de uma revoluo que tinha alcance continental, maldeixavam tempo para a reflexo. Como ele dizia:

    Continuamos caminhando muito mais rpido do que aqui-lo que podemos pensar e estruturar nosso pensamento; estamosem um movimento contnuo e a teoria vai caminhando muitolentamente, to lentamente que depois de escrever, nospouqussimos momentos que tenho, este manual que lhe envio,

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    cheguei concluso que quase j no serve para Cuba (...) Porisso tenho medo de tentar descrever a ideologia do movimento;quando fosse public-la, todo o mundo pensaria que uma obraescrita h muitos anos (GUEVARA,1970, II, 677).

    Destacamos este aspecto porque o pensamento do Che tudo menos um sistema acabado: contradiz-se, avana e retifi-ca, reconhece erros e se reafirma no que considera elementossubstanciais.

    Outra tese que ser defendida neste captulo a seguinte:para o Che a Revoluo Cubana abre uma etapa histrica emescala continental, marcada pela atualidade da revoluo naAmrica Latina e caracterizada por trs elementos bsicos:

    a) crise de dominao poltica e equilbrio instvel entre asclasses;

    b) ascenso da luta popular e possibilidade de traduzir estaslutas em enfrentamento poltico-militar;

    c) declnio relativo do potencial econmico e militar dos Es-tados Unidos.

    A estes trs elementos dever-se-ia acrescentar mais um, quefoi aparecendo lentamente e sem o qual seria muito difcil en-tender a pressa do revolucionrio, isto , uma acelerao con-tnua dos ritmos que o Che personifica. Estou me referindo sua percepo, cada vez mais firme, de uma URSS que estavaperdendo a batalha tecnolgica e que, ao mesmo tempo, estavaincubando em seu seio uma profunda crise estrutural.

    Mas h algo mais: esta anlise correspondia s prprias ne-cessidades da Revoluo Cubana; quando se lanava a consig-na de criar vrios Vietnam, apostava-se em uma frente anti-im-perialista e, ao mesmo tempo, defendia-se a Revoluo Cuba-na, necessitada de conflitos que distrassem a ateno do inimi-go de seu prprio curso e o obrigassem a dispersar suas foras.

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    Em um de seus primeiros livros, A Guerra de Guerrilhas4, oChe tenta tirar concluses da rica e como ele disse tantas ve-zes heterodoxa experincia revolucionria cubana. Para eleeram trs as contribuies fundamentais desta revoluo:

    1. As foras populares podem ganhar uma guerra contra oexrcito.

    2. Nem sempre preciso esperar que se dem todas as con-dies para a revoluo, o foco insurrecional pode cri-las.

    3. Na Amrica Latina subdesenvolvida o terreno da lutaarmada deve ser fundamentalmente o campo (GUEVARA,1970, I. 31)

    Este texto como quase todos os do Che polmico. Estdirigido, sobretudo em suas duas primeiras concluses, contraa atitude quietista de alguns revolucionrios ou pseudo-revo-lucionrios que, em suas prprias palavras:

    ...refugiam sua inatividade no pretexto de que contra o exr-cito profissional nada se pode fazer, e alguns outros que se sen-tam para esperar que, de uma forma mecnica, se dem todasas condies objetivas e subjetivas necessrias, sem preocupar-se em aceler-las (GUEVARA, 1970, I, 32).

    A terceira concluso est dirigida contra os dogmticos quecentralizam:

    ...a luta das massas nos movimentos das cidades, esque-cendo totalmente a imensa participao das pessoas do campona vida de todos os pases subdesenvolvidos da Amrica(GUEVARA, 1970, I, 32).

    Apesar dos comentrios de Castaeda5, a anlise do Che

    4 O manual a que se referia na carta anteriormente citada.5 Nesta questo, Castaeda demonstra claramente que no soube ler o

    Che e que no foi capaz de abandonar seus pre-conceitos. A respeito, verVALDES PAZ, 2000.

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    bastante comedida. Talvez o problema esteja na interpretaodo segundo pargrafo; onde diz que: nem sempre precisoesperar que se dem todas as condies e que no pode serinterpretado no sentido de que no fazem falta nenhuma ou deque as condies existentes possam ser mnimas. O focoinsurrecional no cria todas as condies, mas acelera e d im-pulso s que existem; por isso, o Che afirma que deve haver ummnimo de condies para tornar vivel o estabelecimento e aconsolidao do primeiro foco. Neste, que foi seu primeiro gran-de texto, Guevara tremendamente explcito:

    Onde um governo tenha chegado ao poder por alguma for-ma de consulta popular, fraudulenta ou no, e se mantenha aomenos uma aparncia de legalidade constitucional, imposs-vel produzir o surto guerrilheiro porque no se esgotaram aspossibilidades de luta cvica (GUEVARA, 1970, I, 32).

    A legalidade democrtica no s no sub-valorizada peloChe, como expressamente considerada quando se trata deimplementar uma estratgia revolucionria. Seu cuidado bempreciso; fala de consulta popular fraudulenta ou no; mas a cri-se de dominao que, segundo ele, ocorria na Amrica Latinatinha como efeito a tendncia ao autoritarismo poltico e rup-tura dos marcos constitucionais democrticos. No se deve es-quecer que uma condio fundamental para esse primeiro focoinsurrecional era:

    demonstrar claramente ao povo a impossibilidade demanter a luta pelas reivindicaes sociais no plano da contendacvica (GUEVARA, 1970, I, 32).

    O carter polmico da obra do Che faz que, em funo dosdiferentes adversrios, destaque um aspecto ou outro desta com-plexa realidade e que nem sempre fiquem claras as definiesda nova etapa histrica, nem as conjunturas concretas e espec-

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    ficas em que se expressa, correndo o risco de minimizar os as-pectos nacionais e entrar em confuses entre estratgia revolu-cionria e vias (armadas ou no) de acesso ao poder. Voltare-mos mais adiante a esta questo.

    No pode causar estranheza o fato da Revoluo Cubana eas posies de seus dirigentes terem significado uma viravoltano debate poltico da esquerda da Amrica Latina. A autocons-cincia do grupo dirigente cubano especialmente do Che eraque com este processo se inaugurava, no apenas um caminhooriginal para construir-se uma sociedade socialista mas, de umaou outra forma, uma mudana fundamental na estratgia revo-lucionria, ao menos na Amrica Latina. Convm levar muitoem conta este aspecto; diante das tradicionais estratgias da IIIInternacional, a Revoluo Cubana vinha latino-americanizara prpria idia de socialismo e o modo historicamente determi-nado de alcan-lo. A nfase posta nas condies especficas,nos traos histricos genunos, nas caractersticas socioecon-micas e na etapa de construo nacional que atravessavam asdistintas formaes sociais, mais do que em importar teorias,conceitos e prticas fora de contexto, com pretenses de univer-salidade. Neste assunto pode-se dizer, como se tem afirmadoem diversas ocasies, que a Revoluo Cubana foi tambm umfato decisivo do ponto de vista terico.

    A polmica no era outra seno esclarecer o que de especifi-camente cubano teve esta revoluo e quais aqueles elementosque poderiam ser generalizados no quadro dos conflitos sociaise polticos da Amrica Latina. Guevara que j extrara algu-mas lies da Revoluo entraria rapidamente na polmica comum ensaio intitulado, precisamente, Cuba: exceo histrica ou van-guarda na luta anticolonialista? (GUEVARA, 1970, II), a que de-ram seqncia, nos anos seguintes, diversas intervenes que

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    se encerrariam, ao menos publicamente, com sua conhecidaMensagem Tricontinental (GUEVARA, 1970, II).

    O Che, com a honestidade intelectual que o caracterizava,foi direto ao assunto e tentou mostrar os aspectos que pareciamespecficos, excepcionais, na experincia cubana, e os quepodiam ser generalizados para uma grande parte da AmricaLatina. O temor do Che estava em que se tentasse ignorar osaspectos relevantes, as lies da Revoluo Cubana para aAmrica Latina, destacando-se excessivamente o carter excep-cional de seus elementos bsicos.

    Ainda que hoje possa parecer um tanto excessivo, paraGuevara, a primeira excepcionalidade da Revoluo se encon-trava em seu dirigente mximo, Fidel Castro. Sua grandezamoral, sua capacidade de direo e de liderana na sociedadecubana eram e so elementos que o Che considerava difceis detransferir para outras realidades. A segunda exceo estava naincapacidade norte-americana de perceber o verdadeiro alcan-ce da revoluo. Como ele disse:

    Antes do triunfo, suspeitavam de ns, mas no nostemiam; apostavam em dois baralhos, com a experincia quetm neste jogo, onde habitualmente nunca se perde6 (GUE-VARA,1970, II, 679).

    Uma terceira exceo, exagerando as coisas, era que em Cubaos antigos escravos e os camponeses tinham se proletarizadopaulatinamente, devido s exigncias do cultivo capitalista, e

    6 Escreveu algo parecido a Ernesto Sbato: ... os norte-americanos, queso os grandes construtores de testes para tudo medir, usaram um deles,verificaram a pontuao e arquivaram-no... nunca lhes ocorreu que oque Fidel Castro e nosso movimento afirmavam to ingnua e drastica-mente, fosse a verdade do que amos fazer.

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    que a luta social empreendida por eles aumentara sua capaci-dade organizativa e sua conscincia.

    H um aspecto que Guevara explicitamente no considera-va excepcional: o apoio que uma parte da burguesia cubanadeu luta guerrilheira contra a tirania de Batista. Como ocorreoutras vezes na obra do revolucionrio argentino, esta afirma-o aparecer matizada nas pginas finais do prprio ensaio,assim como em escritos ulteriores. A razo disso foi a experin-cia que a Revoluo Cubana inaugurou e a nova etapa histricaque inaugurava: a chamada burguesia nacional, posta frente aodilema de suas contradies com o imprio e do ascenso domovimento popular que questionava seu domnio de classe, ter-minou (algumas vezes mais abertamente e outras menos) porrestabelecer um pacto oligrquico em torno da estratgia impe-rialista definida pela administrao norte-americana.

    Estabelecidos assim os aspectos especficos da RevoluoCubana, o Che tenta linha aps linha situar os elementosdaquela experincia que pudessem ser generalizados e que ti-nham situado a revoluo na vanguarda pela libertao doContinente. O ncleo do raciocnio estava no subdesenvolvi-mento latino-americano, caracterizado por uma industrializa-o dbil e dependente, complementar ao centro capitalista,distorcida e desarticulada internamente, monoprodutora,monoexportadora e subordinada a um nico mercado. O lati-fndio e a existncia de uma massa majoritria de campone-ses representavam a outra face desta realidade que tinha suaexpresso mxima em uma aliana de classes entre a oligar-quia proprietria de terras e o imperialismo norte-americano.Um elemento decisivo foi que depois da experincia cubana, oimperialismo tomou conscincia do desafio a que estava e iacontinuar estando submetido e j no poderia ser surpreendi-

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    do com tanta facilidade como na ilha caribenha. O carter daluta explica, como j se disse, que a burguesia fosse se alinhan-do, cada vez mais, ao lado do imperialismo.

    O Che define a situao com muita preciso:Um imperialismo desesperado e histrico, decidido a em-

    preender todo tipo de manobra e a dar armas e at tropas aseus tteres para aniquilar qualquer povo que se levante; lati-fundirios ferozes, inescrupulosos e experimentados nas for-mas mais brutais de represso e uma grande burguesia dis-posta a fechar, por qualquer meio, os caminhos da revoluopopular, so as grandes foras aliadas que se opem direta-mente s novas revolues populares da Amrica Latina(GUEVARA, 1970, II, 413).

    Guevara termina seu raciocnio, dadas estas condies, prog-nosticando, sem desdenhar outras possibilidades, que a via ar-mada seria a forma predominante que assumiria o conflito declasses nessa etapa histrica.

    Do ponto de vista do Che, a Revoluo Cubana trouxe paraa esquerda latino-americana dois elementos subjetivos funda-mentais que seriam decisivos nesta nova fase:

    Primeiro: a prpria possibilidade do triunfo; demonstrar que possvel, que se pode vencer o exrcito regular e conquistar opoder poltico.

    Segundo, a necessidade da mudana, isto , a incapacidadedo prprio sistema de assegurar nveis de vida dignos, sua ne-cessidade de condenar superexplorao e misria as maio-rias sociais que pem em crise o modelo de dominao prevale-cente.

    J fizemos referncia s relaes existentes entre a etapahistrica (atualidade da revoluo) e conjunturas histricasque concretizam e articulam em cada marco nacional os movi-

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    mentos polticos, sociais e culturais de fundo, assim como osperigos de uma configurao excessivamente mecnica que re-lacione a estratgia revolucionria a uma forma concreta deluta. Definir uma etapa histrica como revolucionria no sig-nifica, necessariamente, que este processo ocorra simultanea-mente e com a mesma intensidade em todos e cada um dospases, embora todos se vejam afetados (isso depender dacorrelao de foras em cada um deles). Tampouco cabe pen-sar que as formas de luta e a estratgia revolucionria tenhamque ser, obrigatoriamente, comuns e idnticas. Quando o Cheenumera o que ele chama de aspectos excepcionais da Revo-luo Cubana, diz coisas muito importantes que no podemser tomadas levianamente e que j no ocorrero em outrasrevolues na Amrica Latina:

    Primeiro, a atitude do imperialismo norte-americano. Depoisda Revoluo Cubana, a Administrao imperial converteu-seem sujeito poltico e militar no conjunto da Amrica, fazendo dacontra-insurgncia um elemento chave da chamada doutrina desegurana nacional vigente em todos e cada um dos Estados daregio, aprofundando a relao militar e policial entre os EUA eas classes dominantes latino-americanas.

    Em segundo lugar, a atitude das chamadas burguesias nacio-nais mudou radicalmente. Em Cuba, uma parte apoiou os revo-lucionrios e outra foi embora do pas quando aqueles triunfa-ram; no resto do continente as coisas no ocorreram assim: asburguesias nacionais passaram a uma nova etapa de aliana,praticamente sem fissuras, unidas em torno das prioridadesdefinidas pelos Estados Unidos.

    certo que o processo de reestruturao do domnio polti-co, tanto por meios econmicos como militares e culturais, re-presentou um obstculo extremamente importante para os re-

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    volucionrios da Amrica Latina, em condies em que a neces-sidade, de um lado, e a possibilidade revolucionria, de outro,significavam, para uma parte significativa das populaes, umestmulo subjetivo de grande importncia, a ponto de definir umanova etapa histrica. O assunto torna-se menos claro, como an-tes se disse, quando se trata de definir como afetam, e a eficciadesses elementos e estruturas, segundo a correlao de forasexistente em cada cenrio nacional; e se obscurece ainda maisquando so relacionadas estreitamente a formas determinadasde luta.

    Poderamos afirmar que, para o Che, a estratgia revolucio-nria para esta etapa foi se concretizando na necessidade da lutaarmada como mtodo mais adequado. Sua argumentao podeser resumida do seguinte modo:

    1) O carter continental da luta e o protagonismo militar dosEUA.

    2) O agravamento das condies de vida das maiorias so-ciais camponesas.

    3) O autoritarismo poltico derivado da crise e das necessida-des prprias do modelo e a ruptura com a ordem legal vigente.

    Guevara conclua que a luta armada era inevitvel e que setratava de construir uma fora material alternativa ao aparatopoltico-militar do estado burgus dependente.

    Com relao a esta questo preciso entender que, quan-do o Che falava de via pacfica ele o fazia num sentido muitopreciso:

    Trnsito pacfico no conquista de um poder formal emeleies ou mediante movimentos de opinio pblica sem com-bate direto, mas a instaurao do poder socialista, com todos osseus atributos, sem o emprego da luta armada (GUEVARA,1970, II, 497).

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    Ou seja, seria possvel uma estratgia poltico-institucionalde massas capaz de combinar trabalho nas instituies e lutassociais, mas sabendo-se que quanto a isso o Che no tinhamuitas dvidas a ruptura com o aparato e as instituies doestado burgus exigiria um momento militar. Sem eludir o pro-blema real do poder, que o problema de toda revoluo, po-der-se-ia pensar para diferentes pases da Amrica Latina umaestratgia revolucionria que no comeasse ou que no se arti-culasse com a criao de um foco insurrecional de origem e com-posio camponesa, enfrentando o aparato militar do Estado.Este aspecto no fica totalmente claro na obra do Che e suasobservaes crticas sobre as vias de massa na luta poltico-institucional nem sempre so coerentes com seus prprios pos-tulados, isto , com sua idia bsica de que, para construir umfoco revolucionrio, necessrio o esgotamento da via civil, queos trabalhadores e as trabalhadoras entendam que no restaoutro caminho, seno a via armada. A meu ver, como escrevi emoutra ocasio (MONEREO, 98), a tenso entre os aspectos obje-tivos e os subjetivos no processo revolucionrio, que to cen-tral no pensamento do Che, sempre acaba se rompendo do ladosubjetivo, pelo fator voluntrio. Tudo indica que os processossociais necessitam de uma massa de vontade crtica que, seno alcanada, termina por arruin-los. Em meu entender, existeuma razo poderosa para esta dramtica tenso em que se de-senvolvia a ao e o pensamento do Che Guevara: tinha pres-sa creio que esta uma hiptese defensvel porque s ha-via um tempo determinado para fazer as coisas. Esse tempo noera biolgico; era o tempo da conjuntura histrica.

    O aspecto que vamos tratar pode ser um dos mais contro-vertidos do pensamento do Che, mas, tambm, da poltica se-guida pela direo revolucionria cubana. As acusaes feitas,

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    veladamente, ao Che, dentro e fora de Cuba, sobre seu supostomaoismo ou aquelas que o tachavam de trotskista, por sua con-cepo do socialismo, expressavam o profundo incmodo quetodos os ortodoxos sentiam diante dele; no entanto, parado-xos do destino, tinham encontrado nele um aliado infatigveldesde os primeiros tempos da luta guerrilheira. Como quasesempre acontece, o Che nem era trotskista nem maosta, sim-plesmente tinha cabea prpria e a usava indicando contradi-es objetivas que era necessrio enfrentar, raciocinar e resol-ver; e no simplesmente desqualificar.

    O problema no era o Che ou no era apenas ele, o proble-ma estava no conjunto da direo revolucionria do pas e tinhaa ver com a estratgia internacional das foras socialistas. Asdiferentes intervenes pblicas do Che, e as conversas que hojeconhecemos com dirigentes do PCUS*, evidenciavam uma preo-cupao muito sria com a atitude dos pases socialistas em re-lao aliana com os movimentos de libertao nacional e asforas revolucionrias em nvel mundial.

    As diferenas eram, em primeiro lugar, de apreciao, deanlise da realidade. Para o Che, a etapa que se iniciava se ca-racterizava por um declnio relativo dos EUA e por um ascenso(na sia, frica e Amrica Latina) dos movimentos de liberta-o nacional de orientao socialista. Esta conjuntura histricafavorvel tinha que ser aproveitada. A direo cubana e o Che,como parte dela, estavam dispostos, em funo desta conjuntu-ra, a arriscar at um enfrentamento nuclear, ainda que o custofosse a imolao do povo cubano. Nas palavras do Che:

    * O livro de Castaeda, a mais ideolgica das biografias escritas sobre oChe nos ltimos anos, tem elementos que nos so teis: a transcrio deconversas com o Che, mantidas com, fundamentalmente, os soviticos,assim como opinies destes sobre o Che.

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    o exemplo arrepiante de um povo que est disposto aimolar-se atomicamente para que suas cinzas sirvam de alicer-ce para as novas sociedades e que, quando se realiza, sem queseja consultado, um pacto em funo do qual os foguetes at-micos so retirados, no suspira de alvio, no agradece a tr-gua; sai a campo para fazer ouvir sua voz prpria e nica, suaposio combatente prpria e nica, e mais, sua deciso de luta,ainda que sozinho, contra todos os perigos e contra a mesmssi-ma ameaa do imperialismo ianque (GUEVARA, 1970, II, 500).

    Esta Revoluo no brincava com balas de festim; por isso,sua direo, diante da atitude dos soviticos no que se conhececomo a crise dos msseis, repudiou o fato, tanto de no tersido consultada, como, o que pior, de terem aceito as posiesnorte-americanas em um assunto to decisivo como era odireito dos cubanos de dispor de armas nucleares paradefender-se, num momento em que sua soberania estava emperigo iminente.

    lgico que essas diferenas de apreciao tivessemconseqncias quando se tratava de definir a estratgiainternacional e que estas divergncias se concentrassem noconceito de coexistncia pacfica. Como ficou claro durante acrise dos msseis, o grupo dirigente cubano tinha umainterpretao muito diferente da sovitica quanto a estacoexistncia. O conflito, a luta entre o socialismo e o capitalismo,tinha que se impor limites quanto ao emprego de armamentonuclear; isto, que no plano terico parecia razovel, entrava emchoque com graves questes prticas e com inumerveisproblemas, tambm, no plano terico. O Che se opunharadicalmente a um conceito de coexistncia pacfica como acordoentre as grandes potncias, que deixava o resto do mundo aoarbtrio das intervenes poltico-militares dos Estados Unidos.

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    Coria, Congo, Vietnam, os dilemas de Cuba e outros erammarcos dessa coexistncia por cima, que mantinha conflitos eopresso imperialista por baixo.

    O Che podia entender que se fizessem todos os esforospossveis para evitar uma contenda nuclear, mas estes tinhamque ser compatveis com uma frente anti-imperialista mundialque fosse cercando, econmica, poltica e militarmente, os EUA.

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    A

    Uma nova fase na luta pela libertao: dasolidariedade internacional dos proletrios

    e camponeses contra o inimigo comum

    Revoluo Cubana significava para o Che a entrada em umanova fase, caracterizada pela atualidade da revoluo. Do

    jovem Lukacs ao Gramsci autor da Revoluo contra O Capital,com o subjetivismo ideal e a participao eufrica em um mun-do que parecia mudar a cada minuto, a problemtica dos pero-dos excepcionais, de crise e de transformao histrica acelera-da se converteu em um elemento discriminante e definitrio.Discriminante, diante do evolucionismo objetivo de um capita-lismo em expanso e de um reformismo que melhorava condi-es de vida e de trabalho, mas que adiava o momento revolu-cionrio. Definitrio, enquanto premissa objetiva que concreti-zava uma fase em que o questionamento do poder capitalistaera o elemento comum de referncia. Da as vrias expressesde um mesmo capitalismo singularizado pela evoluo nor-mal de suas condies sociais de produo; e de um capitalis-mo anormal onde, em determinadas condies, aparecia a pos-

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    sibilidade de uma transformao poltico-social de carter re-volucionrio.

    O Che intuiu, por meio de dados e de anlises de seu pre-sente, que se iniciava uma etapa de exceo no capitalismo quedevia ser aproveitada. Pode-se entend-lo, desde este momen-to at o trgico fim de sua vida, como um homem com pressa,que teme que se venam os prazos e que, em certo sentido, temque enfrentar o tempo. Aqui, como se viu anteriormente, existeno Che um realismo revolucionrio muito acentuado, em que aatualidade da revoluo poderia ser justificada por trs elemen-tos chaves:

    1) o ascenso dos processos de libertao nacional e social nochamado Terceiro Mundo;

    2) o declnio relativo da capacidade de domnio do imperia-lismo norte-americano;

    3) a decadncia do modelo sovitico.Estes trs elementos vo se superpondo; os dois primeiros

    com muita fora desde o princpio, e o terceiro, fruto de umaviso cada vez mais pessimista sobre o futuro do que na pocase chamou campo socialista, marcado ento pelas contradieschino-soviticas. A pressa do Che, como j dissemos, tinha umfundamento objetivo: o declnio temporal da capacidade de do-mnio dos Estados Unidos da Amrica podia ser reduzido emfuno crise, j avanada, do campo socialista. A luta contra otempo consistia em estimular, coordenar e dirigir uma amplafrente, capaz de tirar partido, a curto prazo, dessa crise de do-mnio.

    Outro aspecto do assunto refere-se s necessidadesestratgicas de uma revoluo como a cubana, ameaada e comuma recentssima experincia de abandono e retrocesso doprincipal aliado (a crise dos msseis soviticos). Jorge Serguera

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    (Papito), em um livro imprescindvel (SERGUERA, 1997), notanto sobre o Che, mas sobre a poltica internacional daRevoluo na poca, explicita algo que muitos analistas,revolucionrios ou no, j sabiam: os interesses da RevoluoCubana, sua defesa e consolidao, estavam unidos aoprogresso revolucionrio do Terceiro Mundo em geral e daAmrica Latina em particular. Cuba precisava distrair e dividirao mximo as foras poltico-militares do adversrio norte-americano; ao mesmo tempo, o processo revolucionrio emescala internacional favorecia uma correlao de foras maisbenfica para a Revoluo Cubana. A direo poltica da ilhasempre soube tirar vantagem dessa tenso, no apenas frenteaos EUA mas, o que fundamental, frente ao bloco sovitico.

    vista do que se acaba de dizer, pode-se compreender aenorme importncia que o internacionalismo teve para o Che,em seu pensamento e em sua ao concreta como revolucion-rio; mas, alm disso, o Che em certo sentido cumpriu tam-bm funes de embaixador e representante da RevoluoCubana em diversos lugares do mundo e de terico e idelogodaquela fase, frente ao movimento revolucionrio internacional.Em um de seus primeiros textos e um dos mais importantes,Cuba: Exceo histrica ou vanguarda na luta anticolonialista(GUEVARA, 1970, II), polemiza com aqueles que pensavam quea Revoluo Cubana era um fato excepcional na Amrica Latinada poca e, portanto, sem transcendncia para a ttica e a estra-tgia das foras revolucionrias no continente. O Che pensavaque, como em qualquer revoluo de verdade, havia elementospeculiares e tambm elementos de carter mais geral. Impor-tantes eram os no excepcionais, que inauguravam uma novafase para a luta revolucionria na Amrica Latina. No captuloanterior analisamos as distintas vertentes deste problema, ra-

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    zo pela qual apenas nos referiremos aqui a sua insistncia so-bre a importncia da Revoluo Cubana:

    Nunca na Amrica ocorrera um fato com caractersticas toextraordinrias, razes to profundas e conseqncias totranscendentais para o destino dos movimentos progressistasdo continente, como nossa guerra revolucionria. A tal extremo,que foi qualificada por alguns como o acontecimento cardeal daAmrica, que segue em importncia a trilogia constituda pelaRevoluo Russa, o triunfo sobre as armas hitlerianas, com astransformaes sociais subseqentes, e a vitria da RevoluoChinesa (GUEVARA, 1970, II, 503).

    Uma questo importante consiste na anlise que o Che faziasobre as relaes internacionais em geral e sobre o imperialis-mo em particular que, como se sabe, era um dos debates maisimportantes do movimento comunista internacional e um doseixos do nascente conflito chino-sovitico. As anlises do Che como sempre, de modo fragmentado podem ser rastreadasem seu Discurso em Punta del Este (GUEVARA, 1970, II), em Tticae estratgia da revoluo latino-americana (GUEVARA, 1970, II), emseu Discurso de Genebra e, sobretudo, em seu clebre Discursode Argel, assim como na Mensagem aos povos do Mundo, naTricontinental. preciso destacar, entretanto, que tambm nes-te tema h, no Che, retificaes e avanos de posies, embrio-nrias s em princpio e, do mesmo modo, alguns silnciosclamorosos que devemos desvendar para conhecer com preci-so seu pensamento.

    O Che partia de um princpio muito comum no pensamentooficial comunista, que consistia em definir a poca como umafase de transio entre o capitalismo e o socialismo. As diferen-as surgiam quando este princpio geral era aplicado e relacio-nado s lutas de libertao dos povos do Terceiro Mundo. Se

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    tomarmos seu Discurso em Genebra, de 25 de maro de 1964,(Conferncia Mundial de Comrcio e Desenvolvimento, daONU), vemos como vo se perdendo os elementos bsicos quecaracterizam a etapa mencionada anteriormente; a linguagem convencional, mas as nfases e os silncios anunciam um pen-samento prprio. Em primeiro lugar, aparece a contradio en-tre os pases socialistas e os capitalistas desenvolvidos; em se-gundo lugar, a contradio, tambm fundamental, entre os pa-ses desenvolvidos e os povos subdesenvolvidos; e em terceirolugar, a contradio entre os pases capitalistas desenvolvidosque lutam entre si pela repartio do mundo.

    A primeira coisa que surpreende na enumerao destascontradies o fato de ter desaparecido uma, que nopensamento comunista da poca era decisiva: a contradio entreo capital e o trabalho. Poder-se-ia supor que est implcita namais geral, entre capitalismo e socialismo; ora, no assim,porque, quando se analisam os componentes, os sujeitos, asforas matrizes dessa etapa revolucionria, nunca aparece emseus escritos ou discursos uma referncia direta classe operriados pases capitalistas desenvolvidos; fala de alianas entremovimentos de libertao nacional e entre estes e os pasessocialistas, mas nunca explicita que papel desempenhavam naluta anti-imperialista, as foras sociais, polticas e revolucionriasdos pases capitalistas desenvolvidos, especialmente, oseuropeus. Esta questo e algumas mais tm a ver com a anliseque o Che fazia sobre o funcionamento do imperialismo. Estesistema de dominao manifesta diversas formas e mecanismosque polarizam, exploram e desenvolvem desigualmente umespao scio-econmico em todo o planeta. Trata-se a outraface no s de um domnio poltico exercido extra-economica-mente, mas de relaes de explorao econmica fundadas na

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    lei do valor, de mbito mundial, cujo principal mecanismo ointercmbio desigual. Dizia o Che:

    A chamada deteriorao dos termos de troca no seno oresultado do intercmbio desigual entre pases produtores dematria-prima e pases industriais que dominam os mercados eimpem a aparente justia de um intercmbio de valores(GUEVARA, 1970, II, 550).

    O fundamento terico dessa posio tem a ver com algo quevimos no primeiro captulo e que desenvolveremos no quinto, eque a crtica do Che a Marx quanto a dois elementos para elefundamentais: a teoria do imperialismo e a da pauperizao.Considera que um dos erros mais graves de Marx no levarem conta, em sua anlise do capitalismo, o imperialismo e seucarter polarizador; e, portanto, no situar no centro a contradi-o entre pases imperialistas e pases subdesenvolvidos oudependentes e como esta contradio afeta a contradio entrecapital e trabalho nos pases centrais. O Che partia da anlise deLenin quanto a uma ordem hierrquica e um desenvolvimentodesigual da cadeia imperialista.

    O Che, seguindo novamente Lenin e vinculando a questo problemtica anterior, nota que a teoria da pauperizao queMarx define, embora funcione para o sistema capitalista em seuconjunto, no funciona nos pases centrais, e procura indagarporque; sua resposta fica definida pelo mecanismo do intercm-bio desigual que extrai uma parte do excedente dos pases doSul e o transporta para o Norte, dando burguesia imperialistauma maior capacidade econmica para responder s demandasefetivas de suas sociedades:

    (Caberia aqui uma digresso sobre como, nos pases imperia-listas, os operrios vo perdendo seu esprito internacional de clas-se sob a influncia de uma certa cumplicidade na explorao dos

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    pases dependentes e como este fato, ao mesmo tempo, lima oesprito de luta das massas no prprio pas, mas este um temaque escapa inteno destas notas) (GUEVARA, 1985, VIII, 257).

    Em um trabalho indito, o Che argumenta com muita clare-za sobre tudo o que acabamos de afirmar dizendo, sobre o in-tercmbio desigual:

    Essa a forma bsica de explorao dos povos: extrai-sedeles maiores riquezas em grau extraordinrio, podendo-se criarento a aristocracia operria de tipo geral, digamos de toda umanao, que era o que acontecia com os operrios franceses naguerra da Arglia (GUEVARA, 2000b).

    O Che no s d este exemplo como refere-se, expressamen-te, aos operrios ingleses, alemes etc. Voltou a este mesmo temaem uma entrevista que concedeu revista RvolutionAfricaine (GUEVARA, 1964b).

    Em um texto que escreveu depois da derrota de suaexperincia no Congo, inexplicavelmente indito at fins de 1999,o Che aprofundou ainda mais as anlises anteriores, chegandoa perguntar-se:

    Qual a principal contradio da poca? Se fosse a dos pa-ses socialistas e imperialistas, ou entre estes e suas classes ope-rrias, o papel do chamado Terceiro Mundo estaria muito redu-zido. No obstante, h cada vez mais srias razes para consi-derar que a contradio principal est entre naes explorado-ras e povos explorados. No estou em condies de iniciar aquiuma tentativa de demonstrao deste fato e de como no se ope caracterizao da poca como de transio ao socialismo(GUEVARA, 1999, 267).

    A questo que acabamos de expor serve para explicar as cr-ticas do Che ao campo socialista; ora, convm no se equivocar:as crticas do Che so feitas de dentro e buscando uma aliana

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    estreita com o campo socialista. Neste sentido, Rafel Poch nosmostrou em seu recente livro, ao comentar a lembrana deNikolai Leonov de como sua vida foi mudando depois que en-trou em contato com os revolucionrios latino-americanos como se sabe, foi amigo pessoal de Ral Castro e do prprioGuevara assim como a influncia que teve na poltica exteriorda URSS para esta zona a Revoluo Cubana, do mesmo modo,v-se com nitidez a autonomia de Cuba no momento de definiras grandes opes internacionalistas7. Em seu clebre Discursode Argel de 24 de fevereiro de 1965, o Che criticava os pasessocialistas desenvolvidos porque vendiam armas aos movimen-tos de libertao, enquanto ele considerava que deviam consti-tuir uma doao revolucionria; criticava-os tambm porquerealizavam seu comrcio com os pases subdesenvolvidos nabase dos preos do mercado mundial e, portanto, sob mecanis-mos de intercmbio desigual:

    No caso desse tipo de relao entre os dois grupos de na-es, devemos convir que os pases socialistas so, de certa ma-neira, cmplices dos pases capitalistas []. Os pases socialis-tas tm o dever moral de liquidar sua cumplicidade ttica comos pases exploradores do ocidente (GUEVARA, 1970, II, 574).

    Mas, o Che tambm criticava aqueles pases que, desleal-mente, pretendem aproveitar-se em benefcio prprio das con-tradies entre o capitalismo e o socialismo. Para concluir, po-demos ler no mesmo discurso:

    O imperialismo um sistema mundial, ltima etapa do ca-pitalismo, que preciso derrotar em um grande confronto mun-

    7 Tal como assinalou Paco Fernndez Buey, estas memrias sobre Leonov,que chegou a ser general da KGB, qualificam a posio leal e conflituosado Che sobre o papel da URSS.

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    dial. A finalidade estratgica dessa luta deve ser a destruio docapitalismo.A participao que corresponde a ns, atrasados eexplorados do mundo, eliminar as bases de interveno doimperialismo: nossos povos oprimidos, de onde extraem capi-tais, matrias-primas, tcnicos e operrios baratos e de ondeexportam capitais instrumentos de dominao , armas e todotipo de artigos, mergulhando-nos em uma dependncia absolu-ta (GUEVARA, 1970, II, 594).

    Como vimos assinalando, o Che buscava realmente umacoordenao efetiva das foras revolucionrias em escala mun-dial, tanto para ajudar como se ver mais adiante as revolu-es realizadas em condies de subdesenvolvimento e de de-pendncia, como para viabilizar a criao de um exrcito inter-nacional de revolucionrios.

    Este ltimo aspecto est relacionado a uma intuio do Che,presente com muita nfase em sua clebre Mensagem aos Povosdo Mundo, onde, junto com a criao de vrios Vietnam, expsuma idia que desenvolveria plenamente em sua Passagem daGuerra Revolucionria: Congo:

    Cada gota de sangue derramado em um territrio sobcuja bandeira no se nasceu, experincia que ganha quemsobrevive para us-la depois na luta pela libertao em seulugar de origem. E cada povo que se liberta, uma fase dabatalha pela libertao do povo que foi ganha (GUEVARA,1970, II. 526).

    No segundo texto, falando da derrota sofrida, o Comandan-te revolucionrio destacava que o mais importante foi:

    O processo de decomposio de nossa moral combativa, jque a experincia inaugurada por ns no deve ser desperdiada,e a iniciativa do Exrcito Proletrio Internacional no deve mor-rer no primeiro fracasso (GUEVARA, 1999).

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    Esta posio poltica supe um salto qualitativo e expressacom total nitidez a coerncia do pensamento do Che; mas ex-pressa, tambm, as dificuldades para executar uma estratgiaque exige grandes esforos dos participantes; deixa claro, ain-da, que, quase com toda certeza, esperava demais do bloco so-vitico.

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    J

    Que transio? Transio e transies

    assinalamos que, para o Che, a concepo socialista cient-fica ou, simplesmente, o marxismo, significava, sobretudo,

    a possibilidade historicamente determinada de controlar o pro-cesso histrico; de ordenar conscientemente o tempo de vidados humanos. Este ncleo central de seu pensamento teria quese concretizar na prtica poltica cotidiana, na prxis que d ori-gem s estratgias de construo de uma sociedade alternativa.

    Vimos tambm que em uma passagem de sua argumenta-o, e seguindo a novidade da anlise leninista do imperialismoque identifica dois tipos previsveis de revolues, no centro ena periferia; encontrou a base para estratgias diferenciadas deconstruo do socialismo, sempre preciso destacar em con-dies internacionais determinadas. Vamos por partes.

    Um primeiro assunto est relacionado ao problema tericode sempre, sobre a transio ao socialismo ou do socialismo comotransio ao comunismo. Como sabido, nos anos 70 ganhou

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    importncia na esquerda marxista o debate sobre se o socialismoera a primeira etapa da sociedade comunista, no sentido