Bakhtin - Para Uma Filosofia Do Ato

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Transcript of Bakhtin - Para Uma Filosofia Do Ato

  • PARA UMA FILOSOFIA DO ATO

    M. M. Bakhtin

    Texto completo da edio americana Toward a Philosophy of the Act

    (Austin: University of Texas Press, 1993 Translation and Notes by Vadim Liapunov

    Edited by Michael Holquist & Vadim Liapunov) Importante: esta traduo, ainda no revisada,

    destina-se exclusivamente para uso didtico e acadmico.

    Traduo de Carlos Alberto Faraco e Cristovo Tezza

  • 2

    NDICE

    PREFCIO Michael Holquist

    3

    PREFCIO DO TRADUTOR DA EDIO AMERICANA Vadim Liapunov

    12

    INTRODUO EDIO RUSSA S. G. Bocharov

    15

    PARA UMA FILOSOFIA DO ATO

    19

    NOTAS

    94

  • 3

    PREFCIO

    Michael Holquist

    Em sua longa vida sob o poder sovitico, Bakhtin experimentou todo o

    espectro de conseqncias que um escritor pode gerar, da censura, priso e

    banimento fama e adulao. O choque de sua priso durante o terror de Stlin

    tornou-o extremamente cauteloso nos ltimos anos. Foi com grande dificuldade

    que um grupo de jovens admiradores no incio dos anos 60 convenceram-no a

    publicar novamente. E foi somente quando ele alcanava aclamao internacional

    como conseqncia dessas publicaes, e j sabendo que sua morte era iminente,

    que ele confessou a seus admiradores a existncia de um esconderijo com seus

    primeiros escritos. Eles estavam ocultos em Saransk, onde ele viveu depois de

    retornar de seu exlio oficial no Cazaquisto. Seus jovens amigos ficaram

    extasiados em 1972 ao saber que Bakhtin tinha, ao longo de suas muitas

    mudanas, conseguido conservar com ele alguns de seus escritos de juventude.

    Mas quando foram Assemblia Legislativa da Mordvia recuperar os

    manuscritos, ficaram horrorizados ao descobri-los empacotados num depsito de

    madeiras, onde ratos e goteiras haviam danificado severamente os blocos de

    notas nos quais Bakhtin sempre escreveu seus livros.

    Depois de um longo perodo de decifrao e retranscrio por um ainda

    outro grupo devotado de jovens discpulos, descobria-se que os blocos de notas

    continham os fragmentos de dois importantes projetos que Bakhtin havia

    empreendido no incio de sua carreira, quando ainda se propunha trabalhar na

    tradio da filosofia alem. O maior dos dois manuscritos foi publicado como Art

    and Answerability pela Editora da Universidade do Texas, em 1990.

    O fragmento menor agora publicado como Para uma filosofia do ato

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    [Toward a Philosophy of the Act], traduzido e anotado por Vadim Liapunov, cujo

    trabalho na edio de 1990 recebeu aclamao universal. O aparecimento do

    presente livro um evento importante para pelo menos dois pblicos: o nmero

    cada vez maior daqueles que se interessam por Bakhtin como a figura fundadora

    do dialogismo, um pensador independente, e o nmero ainda maior daqueles que

    se interessam pelas questes relativas relao da filosofia com a teoria literria,

    particularmente aqueles ocupados com a relao problemtica entre esttica e

    tica.

    Para o primeiro grupo, este texto leitura obrigatria porque se trata do

    mais antigo dos textos confirmados de Bakhtin, datando de 1919-1921. Ele

    estava no centro de todas as privaes e estmulos criados pelos efeitos da

    Revoluo, em Nevel e Vitebsk. Havia falta de mantimentos e um caos

    extraordinrio em volta, mas para os intelectuais e artistas era um perodo de

    grande atividade. Havia muitas orquestras, constitudas por refugiados do antigo

    conservatrio imperial de So Petersburgo; a escola de arte era animada por

    disputas entre Chagall e Malevich. E havia interminveis conferncias pblicas,

    debates em palcos e discusses organizadas que atraam grandes multides que

    discutiam em torno das questes eternas sobre Deus, liberdade, justia e poltica.

    Embora Bakhtin j nesse tempo sofresse de uma grave osteomielite (e de

    complicaes decorrentes de um ataque de tifo), ele era jovem, animado e estava

    totalmente engajado em projetos vrios, tanto privados como pblicos.

    Para uma filosofia do ato o resultado de um desses projetos. Era difcil

    ler o manuscrito original do presente volume no apenas pelos estragos do tempo,

    mas tambm porque, na sua maior parte, foi escrito com pressa, com algumas

    partes mais claras sob a letra de sua esposa, que transcrevia o ditado do marido

    durante os perodos em que sua doena ssea impedia-o de escrever com a

    prpria mo. Nos garranchos meio apagados ns podemos sentir a corrida entre a

    produo das idias e sua transcrio febril. Este volume nos d uma

    oportunidade de ver Bakhtin em todo o calor e urgncia de seu pensamento

    enquanto ele luta consigo mesmo. Em Para uma filosofia do ato ns captamos

    Bakhtin no ato no ato de criao.

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    Alm disso, esse texto ilumina o perfil da obra inteira de Bakhtin, na

    medida em que demonstra a profundidade de seu precoce envolvimento no

    discurso profissional da filosofia. Mais precisamente, ele revela novas filiaes

    entre os temas que pela primeira vez aparecem aqui e que guiaro o pensamento

    de Bakhtin atravs do curso de sua longa vida. Os tpicos de autoria,

    responsabilidade, eu e o outro, o significado moral da exotopia, o estar do

    lado de fora, o pensamento participativo, as implicaes do fato de o sujeito

    individual viver um no-libi na existncia, a relao entre o mundo

    experimentado pela ao e o mundo representado no discurso todos eles so

    discutidos aqui no puro calor da descoberta. Esses temas estaro presentes de

    uma forma mais clara e especfica em trabalhos futuros, mas o seu poder de

    sugesto e de alcance no sero maiores do que eles j so neste volume. Ns

    estamos aqui no corao da matria, no centro do dilogo entre o ser e a

    linguagem, o mundo e a mente, o dado e o criado que estaro no mago do

    dialogismo distintivo de Bakhtin, como ele mais tarde o desenvolver.

    Um modo de estabelecer a importncia desse trabalho contrast-lo com

    o projeto que ele est procurando criticar e corrigir. Muito tem-se discutido sobre

    o interesse do jovem Bakhtin pela escola de Marburg do neo-kantismo. O que

    essas pginas deixam claro a obsesso de Bakhtin no tanto com Hermann

    Cohen e seus seguidores, mas com o prprio Kant. Ns sabemos que durante o

    tempo em que ele trabalhava com Para uma filosofia do ato, Bakhtin

    incessantemente lia, debatia e dava conferncias sobre Kant, como ele

    continuaria a fazer depois de seu retorno a So Petersburgo em 1924. Colocando

    de forma muito crua, este texto uma tentativa de destranscendentalizar Kant, e

    mais particularmente pensar alm da formulao kantiana do imperativo tico.

    Kant argumentava que a tica poderia ser fundada no princpio de que

    todos os agentes morais deveriam fazer julgamentos como se suas

    conseqncias no se aplicassem a um caso particular envolvendo os prprios

    interesses do agente, mas antes como se cada julgamento pudesse afetar

    qualquer pessoa em qualquer tempo. Bakhtin chama esse princpio de a

    universalidade do dever. Tal princpio protege a moral do vcio potencial do

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    relativismo descontrolado. Ele portanto tem muito a dizer num mundo ps-

    iluminismo no mais capaz de invocar a autoridade de um Deus no

    problemtico. O princpio de fato uma verso filosoficamente refinada e

    racionalmente motivada da regra de ouro continua a ser construdo na maior

    parte das nossas teorias correntes do direito, como formalizado, por exemplo, nas

    influentes idias de John Rawl na sua Teoria da Justia de 1971.

    Mas a tica de Kant deixa alguma coisa importante de fora, de acordo

    com Bakhtin. O sistema altamente abstrato: ele ganha autoridade marcando uma

    distncia do especfico, do local de qualquer coisa, em outras palavras, que

    tenha um toque subjetivo em torno de si. Bakhtin neste volume est procurando

    recuperar a imediaticidade nua da experincia como ela sentida de dentro da

    mxima particularidade de uma vida especfica, a lava fundida dos eventos

    enquanto eles acontecem. Ele procura a qualidade pura do acontecer na vida

    antes que o magma de tal experincia esfrie, endurecendo-se em teorias do fogo,

    ou relatos do que aconteceu. E justo como a lava difere da pedra que ela se

    tornar, assim os dois estados da experincia vivida, de um lado, e sistemas para

    registrar tal experincia, de outro, so fundamentalmente diferentes um do outro.

    Bakhtin no est falando sobre o agora familiar abismo entre a ordem dos signos

    e a ordem das coisas, mas meditando sobre a diferena mais primordial entre atos

    (fsicos e mentais) que ns sentimos como unicamente nossos em sua realizao

    eventos ocorrendo no que Bakhtin chama aqui de o evento nico do Ser e

    as conseqncias de tais eventos. Ele quer compreender como a diferena entre o

    que agora e o que depois-de-agora poderia ser vinculada com a relao que

    eu formo entre eles em toda a singularidade do meu lugar nico na existncia.

    A maioria das pessoas reconhecer intuitivamente que alguma coisa

    sempre deixada para fora quando ns descrevemos nossas aes. Bakhtin

    argumenta que isso no meramente uma fraqueza do nosso poder de descrio,

    mas uma desunidade construda na natureza das coisas. Como, ento, podem as

    duas ordens experincia e representao da experincia ser colocadas juntas?

    Esse um problema que outros membros do crculo de Bakhtin em Nevel e

    Vitebsk estavam tambm procurando resolver, e seus encontros eram devotados a

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    interminveis discusses sobre o assunto. O amigo filsofo de Bakhtin, Matvei

    Kagan, estava usando a historiografia como um exemplo de como um evento e

    sua descrio poderiam ser concebidos para ter coerncia; Pumpiansky lutava

    com a questo em suas leituras de Dostoivski. Mas foi Bakhtin quem tentou

    confrontar diretamente o problema.

    Muito da dificuldade da prosa de Bakhtin deriva, portanto, da

    complexidade da tarefa que ele se imps. Num sentido bastante literal, ele volta

    ao ponto em que Kant comeou seu questionamento: como podem conceitos, que

    por definio devem ser transcendentais (no sentido de serem independentes de

    qualquer experincia particular se pretendem organizar a experincia em geral)

    relacionarem-se com a minha experincia subjetiva em toda a sua unicidade?

    Experincia possvel um fator maior no sistema de Kant, o que incomoda

    Bakhtin, aqui, grandemente. Porque experincia possvel uma ordem de

    experincia que no unicamente minha; ela presume que eu possa totalmente

    me identificar com um outro: A pura empatia, isto , o ato de coincidir com um

    outro e perder o prprio lugar nico no Ser nico, pressupe o reconhecimento de

    que minha prpria unicidade e a unicidade do meu lugar constituem um momento

    no essencial que no tem influncia no carter da essncia do ser do mundo.

    Mas esse reconhecimento da unicidade prpria nica como no essencial para a

    concepo do Ser tem a inevitvel conseqncia de que se perde tambm a

    unicidade do Ser, e, como resultado, ns chegamos concepo do Ser apenas

    como Ser possvel, e no essencial, real, nico, inescapavelmente Ser real. Esse

    ser possvel, contudo, incapaz de devir, incapaz de viver. O significado de um

    Ser para o qual o meu lugar nico no Ser foi reconhecido como no essencial no

    ser jamais capaz de me conferir sentido, nem esse realmente o significado do

    Ser-evento (p. 17 da presente traduo).

    Bakhtin est condenado, desde o incio, pela natureza de seu assunto, a

    realizar uma tarefa impossvel: Todas as tentativas de forar caminho de dentro

    do mundo terico para o Ser-evento real so completamente sem esperana (p.

    13 da presente traduo). Mesmo reconhecendo que todas as descries dos atos

    diferem fundamentalmente dos atos tais como eles realmente so realizados, ele

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    procura descrever o prprio ato. uma maneira particularmente complexa de

    demonstrar a verdade do velho dito segundo o qual voc no pode escapar da

    teoria, porque qualquer oposio teoria em si inelutavelmente terica.

    Tambm, e no por coincidncia, Bakhtin aqui revela alguns dos pathos

    existenciais que repousam nesta inelutabilidade.

    Em sua tentativa de criar uma ponte no abismo entre o ato vivido e a

    representao do mesmo ato (que, claro, no nunca o mesmo), Bakhtin

    ope-se ao princpio kantiano do como se, colocando no lugar um outro

    princpio: aquele do no-libi na existncia. A maior diferena entre os dois

    princpios (pelo menos no nvel formal; h, claro, muitas diferenas em outros

    nveis que no so menos definidoras) pode ser localizada na fundao que cada

    um pressupe como a base da ao tica. Para Kant, a sntese entre

    sensibilidade e razo sobre a qual todo o seu sistema baseado. Esta sntese

    requer de Kant a postulao de duas formas bsicas de intuio, tempo e espao,

    e suas doze categorias (substncia, fora, etc.) como transcendentalmente

    necessrias, na medida em que elas so anteriores a qualquer ato especfico de

    julgamento.

    Bakhtin, tambm, est aqui procurando uma sntese entre sensibilidade (o

    ato vivido, o mundo de postupok1) e razo (nossos sistemas discursivos

    descrevendo ou dando significado ao ato, um mundo sempre aberto ao perigo de

    cair em mero teoreticismo). Mas o todo que ele postula como capaz de conter

    ambos no fundado em uma estrutura pr-existente (a necessria co-

    dependncia entre razo e compreenso, sensibilidade pessoal e categorias extra-

    pessoais que so sempre anteriores a instncias especficas, isto , a sntese

    transcendental de Kant).

    Para Bakhtin, a unidade de um ato e seu relato, uma ao e seu

    significado, se preferir, algo que nunca um a priori, mas que deve sempre e

    em toda parte ser conquistado. O ato uma ao, e no um mero acontecimento

    (como em uma maldita coisa depois da outra), apenas se o sujeito de tal

    1 Postupok: do russo, meu prprio ato ou ao individualmente responsvel. V. nota 10 ao final do

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    postupok, de dentro de sua unicidade radical, tece uma relao com ele em seu

    relato dele. A responsabilidade, ento, a fundao da ao moral, o modo pelo

    qual ns superamos a culpa da ciso entre nossas palavras e nossas aes, mesmo

    que no tenhamos um libi na existncia de fato, porque no temos tal libi:

    apenas o meu no-libi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato

    ou ao responsvel e real... (p. 44 da presente traduo).

    Uma maneira de imaginar a importncia que o no-libi tem para Bakhtin

    pens-lo no como uma carncia que eu deva preencher, mas como uma

    carncia no Ser, um buraco no tecido do mundo. O vcuo que o No-libi parece

    nomear para Bakhtin alguma coisa de que todos ns temos conscincia. o

    espao entre o conhecimento objetivo e subjetivo que, especialmente em face do

    poder indubitvel das cincias exatas desde o sculo XVII, manifesta-se com

    freqncia crescente. A diferena entre a ordem do mundo matemtico e o mundo

    da experincia humana sempre tem sido reconhecida. A impersonalidade do

    mundo objetivo da geometria era justamente o que a recomendava para Plato

    como um modelo de perfeio que poderia proveitosamente se opor ao mundo

    desajeitado dos reflexos no qual os seres humanos reais vivem suas breves

    existncias, confundidos por imitaes degradadas e sombras bruxuleantes. A

    diferena entre o cosmo objetivo e nosso mundo humano foi demonstrada aos

    legionrios romanos cada vez que uma de suas unidades era punida com a

    dizimao: na ordem dos nmeros, a diferena entre nove e dez puramente

    sistmica; para o soldado postado na nona linha significava vida, enquanto o fato

    objetivo de ser o dcimo condenava o prximo homem da linha morte. A

    diferena entre este evento como visto apenas da perspectiva da teoria dos

    nmeros, e como o que significa para um legionrio real num dia particular a

    ciso que a categoria do no-libi de Bakhtin procura conciliar.

    A distino se tornou ainda mais profunda na fsica ps-quntica. Como

    Richard Feynman define o caso com sua clareza costumeira, em todas as leis da

    fsica que ns encontramos at aqui no parece haver qualquer distino entre

    volume. (Nota da trad. brasileira)

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    passado e futuro2. Isto , as leis da gravidade, eletricidade e magnetismo,

    interao nuclear, as leis da partcula beta elas so todas indiferentes ao tempo,

    j que so em si processos que permanecem os mesmos, mesmo que a ordem em

    que ocorram se inverta. Mas apesar disso, se um copo de gua cai da mesa,

    nenhum de ns espera que as gotas se reconstituam, que os cacos estilhaados

    voem juntos de volta forma anterior, ou ento que todo o complexo salte do

    cho de volta mesa.

    O modo mais pungente pelo que manifestamos nossa expectativa de que

    o tempo no reversvel o conhecimento seguro que cada um de ns tem de

    que um dia morreremos. E entretanto o copo e nossos corpos so feitos no

    mais bsico nvel de tomos, molculas e quarks, todos eles comportando-se,

    literalmente, como se no houvesse amanh ou ontem. As frias extenses do

    espao, o cosmo como ele entendido na fsica terica, um espao no qual os

    seres humanos no so necessrios. de fato o caso que, como Bakhtin diz, um

    abismo se formou entre o motivo de um ato ou ao realmente realizados e seu

    produto (...). Ns evocamos o fantasma da cultura objetiva, e agora no sabemos

    como exorciz-lo (pp. 57-58 da presente traduo).

    E entretanto no podemos, como fizeram alguns dos assim chamados

    filsofos da vida (Dilthey, Bergson), ou os existencialistas nos anos 50, ignorar o

    mundo objetivo: nosso mundo como ao responsvel no deve se opor teoria

    e ao pensamento, mas incorpor-los em si como momentos necessrios que so

    totalmente responsveis (p. 58 da presente traduo).

    Isso significa que o mundo no qual um ato ou ao realmente se

    desenvolve, no qual ele realmente completado, um mundo unitrio e nico

    (...). A unicidade unitria desse mundo (...) garantida realidade pelo

    reconhecimento de minha participao nica nesse mundo, por meu no-libi

    nele. (...) Esse mundo dado para mim, do meu nico lugar no Ser, como um

    mundo que concreto e nico. Para a minha conscincia participativa que age,

    esse mundo, como um todo arquitetnico, est disposto em torno de mim como

    2 Richard Feynman, The Distinction of Past and Future, em The World Treasury of Physics,

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    em torno daquele nico centro do qual minha ao flui o aparece: eu dou com

    esse mundo, tanto quanto eu venho ou fluo de dentro de mim mesmo no meu ato

    ou ao de ver, pensar ou fazer alguma atividade prtica (p. 59 da presente

    traduo).

    Para uma filosofia do ato em si um exemplo do que Bakhtin est

    procurando compreender. Sua ao tinha um significado para ele como um ser

    nico da segunda dcada deste sculo sombrio; mas a possvel camada de

    subjetividade que o ato constitua se justifica atravs da ressonncia que ele tem

    em um tempo diferente e em um lugar diferente. argumentativamente o caso de

    que as diferenas entre Itlia e Rssia, Amalia Riznich e Alexander Pushkin,

    analisadas na leitura de Bakhtin do poema de Pushkin de 1830, so nada,

    comparadas s diferenas entre o lugar nico de Vitebsk, em 1920, e os Estados

    Unidos, em 1993, ou entre o ser nico que foi Bakhtin no momento da

    composio deste texto e a unicidade de cada um de ns que l o texto aqui e

    agora. Mas o no-libi que Bakhtin procurava sublinhar neste texto encontra

    (uma de) sua justificativa(s) na nova configurao do mundo unitrio e nico

    constitudo pela apropriao nica que cada um de ns como leitores faremos da

    obra. Num tempo e num lugar dominados pela redescoberta da radicalidade

    potencial da tradio kantiana, por uma nova volta ao criticismo tico, e pelas

    discutidas questes levantadas pelo problema da conhecimento situado,

    Filosofia do ato encontrar sua prpria responsabilidade.

    Astronomy, and Mathematics (Boston: Little, Brown and Company, 1991), p. 148.

  • 12

    PREFCIO DO TRADUTOR DA EDIO AMERICANA

    Vadim Liapunov

    Para uma filosofia do ato uma traduo de um ensaio filosfico

    inacabado de M. M. Bakhtin (1895-1975) que foi publicado na Rssia em 1986

    por S. G. Bocharov sob o ttulo K filosofii postupka.

    De acordo com Bocharov, o manuscrito chegou a ns em pssimas

    condies: faltam as pginas de abertura (e portanto no sabemos que ttulo o

    prprio Bakhtin deu ao ensaio) e muitas palavras e frases so dificilmente

    legveis ou mesmo completamente ilegveis.

    Ns sabemos o que Bakhtin planejava realizar, porque na pgina 56 do

    presente volume ele nos d um esquema de todo o trabalho. Ele compreenderia

    quatro partes, das quais parece que Bakhtin escreveu apenas a primeira (ns no

    sabemos qual a extenso do texto). A Parte I comea na pgina 59 do presente

    volume; o texto que a precede , portanto, uma introduo, com vrias pginas

    faltando no incio.

    O pargrafo de abertura da introduo (em sua forma truncada) uma

    concluso: A atividade esttica tambm incapaz de... Julgando pelo pargrafo

    imediatamente seguinte, podemos assumir que nas pginas precedentes Bakhtin

    tratava no apenas da atividade esttica (intuio esttica, viso esttica), mas

    tambm da atividade do pensamento discursivo terico (realizado pelas cincias

    naturais e pela filosofia) e da atividade da descrio-exposio histrica.

    Todas essas atividades no tm acesso eventicidade do Ser, no tm

    acesso ao Ser como um evento em processo. (Em outro contexto, Bakhtin explica

    que o evento em processo do Ser um conceito fenomenolgico, por estar

    presente para uma conscincia viva como um evento em processo, e uma

  • 13

    conscincia viva ativamente orienta-se e vive nele como um evento em

    processo). Todas essas atividades passam a estabelecer uma ciso radical entre o

    contedo-sentido de um ato dado (isto , seu noema) e a realidade histrica de

    seu ser, vale dizer, a real realizao-experimentao nica desse ato. O dado ato,

    contudo, uma realidade atual (isto , participa no evento nico do Ser) apenas

    como um todo individido: apenas o todo desse ato um participante real, vivo, no

    evento em processo do Ser.

    O resultado ltimo da separao entre o contedo de um ato e a sua

    realizao-experimentao nica que ns nos encontramos divididos entre dois

    mundos no comunicantes e mutuamente impenetrveis: o mundo da cultura (no

    qual os atos de nossa atividade so objetivados) e o mundo da vida (no qual ns

    realmente criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e

    morremos isto , o mundo no qual os atos de nossa atividade so realmente

    realizados uma vez e uma nica vez). (O leitor pode notar aqui a antecipao de

    Bakhtin do conceito de Husserl do Lebenswelt).

    Concentrando-se principalmente sobre a cognio terica e sobre a

    intuio esttica, Bakhtin argumenta que nenhuma das duas tem qualquer meio

    de ganhar acesso (de dentro delas) ao Ser como um evento em processo (isto ,

    ao mundo da vida), porque no h nelas unidade e interpenetrao entre o

    contedo ou produto de um ato e a realizao histrica real desse ato, em

    conseqncia de uma abstrao fundamental e essencial de si mesmo, como

    participante, para estabelecer algum sentido e viso. Na intuio esttica,

    exatamente como na cognio terica, existe a mesma no-comunicao radical

    entre o objeto do ato da viso esttica (o objeto sendo um subiectum e sua vida) e

    o subiectum que o portador-realizador desse ato de ver: no contedo da viso

    esttica ns no encontraremos o ato realmente realizado daquele que v.

    E entretanto o ato inteiro, integral, da nossa atividade, da nossa

    experimentao real, tem dupla face: ele se dirige tanto para o contedo quanto

    para o ser (a real execuo) do ato. O plano unitrio e nico onde ambos as faces

    do ato mutuamente se determinam (isto , onde eles formam um todo individido)

    constitudo pelo evento em processo, nico, do Ser. Para refletir-se em ambas

  • 14

    as direes (no seu sentido e no seu ser) o ato precisa, portanto, ter a unidade da

    responsabilidade ou respondibilidade bilateral: precisa responder tanto pelo seu

    contedo-sentido quanto pelo seu ser. A responsabilidade pelo seu ser constitui a

    sua responsabilidade moral, na qual o responsabilidade pelo seu contedo precisa

    ser integrada como um momento constituinte. A desunio perniciosa e a no

    interpenetrao da cultura e da vida pode ser superada apenas recuperando-se a

    integridade do ato de nossa atividade.

    Porque na realidade cada pensamento meu (cada experincia vivida, cada

    ato), juntamente com seu contedo, constitui uma ao individualmente

    responsvel minha ao ou realizao individualmente responsvel; uma das

    minhas aes individualmente responsveis das quais minha vida nica (unitria,

    singular, exclusiva) composta como uma ao-realizao ininterrupta. A essa

    minha ao individualmente responsvel Bakhtin chama postupok

    (etimologicamente, o nome significa um passo dado ou dar um passo) em

    distino com o mais geral akt (o equivalente russo ao latim actus e actum). Todo

    o ensaio (projetado) de Bakhtin est centrado no fenmeno do meu postupok, da

    minha ao ou realizao individualmente responsvel, e no mundo em que meu

    postupok orienta-se sob a premissa de sua participao nica no Ser como um

    evento em processo (o mundo de uma vida nica, individual, como um postupok).

    Para traduzir Bakhtin necessitei de bastante apoio, encorajamento e

    conselhos de amigos e colegas. Sou especialmente grato a Michael Holquist,

    Savely Senderovich, James Hart, Nina Perlina e Caryl Emerson.

  • 15

    INTRODUO EDIO RUSSA

    S. G. Bocharov

    Entre os trabalhos de Bakhtin publicados postumamente na coleo de

    seus ensaios Estetika slovesnogo tvorchestva [Esttica da Criao Verbal]

    (Moscou: Iskusstvo, 1979), o texto de importncia central o tratado O autor e

    o Heri na Atividade Esttica3. Bakhtin trabalhou nesse tratado no incio dos

    anos 20, mas no o terminou; ele foi publicado de um manuscrito que se

    preservou (infelizmente, de uma forma incompleta) entre seus papis. Os papis

    de Bakhtin tambm incluem o manuscrito de um outro tratado filosfico que

    bastante similar em sua problemtica, idias bsicas e linguagem ao Autor e

    Heri na Atividade Esttica. Esse manuscrito tambm foi preservado de uma

    forma incompleta, que ns estamos publicando aqui sob o ttulo K filosofii

    postupka [Para uma filosofia do ato]4.

    O texto aqui publicado representa apenas a parte inicial de um projeto

    filosfico mais extenso. O texto consiste de dois grandes fragmentos. O primeiro

    aparentemente a introduo a um tratado sobre filosofia moral que consistiria

    de vrias partes, de acordo com o plano esquematizado ao final da introduo.

    3 Os trabalhos que compem a coletnea de 1979, qual Bocharov se refere, foram traduzidos em ingls

    e publicados em duas coletneas separadas: M.M. Bakhtin, Speech Genres and Other Late Essays, trad. Vern W. McGee (Austin, University of Texas Press, 1986), e Art and Answerability: Early Philosophical Essays de M. M. Bakhtin, trad. Vadim Liapunov (Austin, University of Texas Press, 1990). O autor e o heri na atividade esttica aparece nesse ltimo volume. [No Brasil, O autor e o heri na atividade esttica est na coletnea Esttica da criao verbal. So Paulo, Martins Fontes, 1992].

    4 O original russo de Para uma filosofia do ato foi publicado no livro do ano do Conselho Cientfico dos Problemas Sociais e Filosficso da Cincia e da Tecnologia (Academia de Cincias da URSS) em 1986: Filosofiia i sotsiologiia nauki i tekhniki: Ezhegodnik 1984-85 (Moscou: Nauka, 1986, pp. 82-138). Como suplemento, o livro inclui um framento do primeiro captulo de O autor e o heroi na atividade esttica (pp.138-157) que no foi publicado na coletnea de 1979 Estetika slovesnogo tvorchestva [A esttica da criao verbal]. As notas aos dois textos publicados nesse livro do ano so de S. Averintsev (pp. 157-160). A introduo de Bocharov est nas pginas 80-82.

  • 16

    No manuscrito, faltam as primeiras pginas da introduo: as primeiras oito

    pginas de 52, de acordo com a paginao do autor. A introduo seguida

    imediatamente por parte I (que como o autor a intitulou no manuscrito);

    apenas o incio dessa parte se preservou (dezesseis pginas, de acordo com a

    paginao do autor).

    Tanto o contedo do texto aqui publicado quanto o plano previsto de

    todo o tratado provam que a esttica filosfica caracterstica apresentada em O

    Autor e o Heri na Atividade Esttica era apenas uma parte de um projeto

    filosfico maior que ia muito alm dos limites da esttica. Esse projeto diz

    respeito a questes mais gerais que esto na fronteira da esttica com a filosofia

    moral; relaciona-se com o que Bakhtin chamada de mundo da ao humana o

    mundo do evento [mir sobytiia], o mundo do ato realizado [mir postupka]. A

    categoria principal desse tratado projetado responsabilidade [otvetstvennost],

    e a sua concretizao distintiva uma imagem-conceito que Bakhtin introduz

    aqui um no-libi no Ser [ne-alibi v bytii]: um ser humano no tem direito a

    um libi a uma evaso dessa responsabilidade nica que constituda pela sua

    atualizao de seu lugar nico, irrepetvel no Ser; ele no tem direito a uma

    evaso desse nico ato ou ao responsvel que toda a sua vida constitui (cf. a

    antiga parbola do talento enterrado como uma parbola da transgresso moral).5

    com um discurso sobre responsabilidade que Bakhtin entrou na vida

    intelectual do seu tempo nos anos imediatamente ps-revolucionrios: sua mais

    antiga publicao conhecida (1919) foi um artigo intitulado Arte e

    Responsabilidade6. Ele fala em um tom apaixonado sobre superar o velho

    divrcio entre a arte e a vida atravs de sua mtua responsabilidade; e essa

    responsabilidade deveria se realizar na pessoa individual, que precisa se tornar

    totalmente responsvel: Eu tenho que responder com minha prpria vida por

    aquilo que eu experimentei e compreendi na arte...7. Bakhtin provavelmente

    5Bocharov se refere Parbola dos Talentos: Mateus 25:14-30. Cf. Lucas 19:12-27. 6Uma traduo desse artigo em ingls aparece em Art and Answerability, pp. 1-2. [Nota da traduo

    brasileira: esse artigo ainda no foi publido em portugus.] 7V. Bakhtin, Art and Answerability, p. 1.

  • 17

    comeou a trabalhar no tratado Para uma filosofia do ato logo depois desse

    artigo programtico, e ele inspirado pelo mesmo desejo de superar a perniciosa

    no-fuso e no-interpenetrao entre a cultura e a vida. Pode-se sentir essa

    paixo atrs da linguagem tcnica um tanto difcil do tratado, que reflete,

    naturalmente, as linhas filosficas do tempo em que foi escrito. A dimenso

    crtica muito pronunciada no texto publicado aqui: Bakhtin desenvolve uma

    crtica ao teoreticismo fatal da filosofia daquele tempo (na epistemologia, na

    tica e na esttica) e ope a ele, como uma tarefa a ser realizada, a unidade

    responsvel do pensamento e da ao realizada; ele tambm introduz categorias

    tais como pensamento ao-realizao [postupaiushchee myshlenie] e

    pensamento participativo (no-indiferente) [uchastnoe myshlenie]. Um ser

    humano que pensa participativamente no destaca [seu] ato realizado de seu

    produto esta a tese principal deste original filosofia do ato ou ao

    responsvel [filosofii postupka], como o prprio autor define o contedo desse

    tratado no texto aqui publicado. Baseado nessa definio, ns intitulamos esse

    texto Para uma filosofia do ato [K filosofii postupka], j que no conhecemos o

    ttulo dado pelo prprio autor.

    Bakhtin aparentemente trabalhou nesse tratado durante sua estada em

    Vitebsk (1920-1924). muito provvel que o peridico iskusstvo [Arte] (I

    [maro, 1921]:23), de Vitebsk, referia-se a esse trabalho quando noticiou que

    M. M. Bakhtin continua trabalhando num livro devotado aos problemas da

    filosofia moral. No texto aqui publicado ns encontramos o jovem Bakhtin, no

    comeo de sua carreira; e descobrimos aqui as fontes filosficas de algumas

    idias capitais que ele continuar a desenvolver no curso de mais de meio sculo

    de sua atividade como pensador.

    Foi no contexto do trabalho nesse tratado sobre filosofia moral que

    Bakhtin comeou a escrever o ensaio sobre esttica que o leitor conhece O

    autor e o heri na atividade esttica. Esse ensaio foi aparentemente uma

    ramificao do tratado sobre filosofia moral e foi escrito um pouco mais tarde. O

    texto de O autor e o heri que foi publicado em Estetika slovesnogo

    tvorchestva [A esttica da criao verbal] no incluiu um extenso fragmento do

  • 18

    primeiro captulo, que trata de certas proposies preliminares com respeito ao

    ser humano como condio da viso esttica na vida real e na arte. Ns estamos

    tambm publicando este fragmento no presente volume (sob o ttulo de todo o

    tratado, O autor e o heri na atividade esttica)8. O texto de O autor e o heri

    publicado em Estetika slovesnogo tvorchestva segue-se imediatamente depois

    desse fragmento. O leitor notar o modo em que o contedo de Para uma

    filosofia do Ato transborda para o seu tratado sobre esttica; h formulaes em

    ambos os textos que so muito semelhantes, e nos dois textos ns encontramos

    variantes de uma anlise do mesmo poema de Pushkin. Era caracterstico para

    Bakhtin voltar a certos temas capitais constantes no seu trabalho filosfico e

    formular novas variantes de suas idias favoritas. No rascunho de um prefcio

    para uma coletnea de seus trabalhos de vrios anos, Bakhtin anotou: Meu amor

    pelas variaes e pela diversidade de termos para um mesmo fenmeno.9

    Podemos tambm observar esse amor pelas variaes em certos temas e idias

    nos dois textos de juventude publicados no presente volume.

    O leitor dever ter em mente que Bakhtin no preparou esses manuscritos

    para publicao; e por isso que a exposio nesses textos assume s vezes a

    forma de enunciados-teses e sumrios. Os manuscritos chegaram at ns em

    pssimas condies; algumas palavras no puderam ser decifradas, enquanto

    outras foram decifradas como conjecturas (nesse caso, esto indicadas por um

    ponto de interrogao entre colchetes em seguida). O difcil trabalho de decifrar

    os manuscritos e prepar-los para publicao foi realizado por L. V. Deriugina, S.

    M. Aleksandrov e G. S. Bernshtein.

    8 Uma traduo desse fragmento em ingls aparece em Bakhtin Art and Answerability, pp. 208-231.

    [Nota da traduo brasileira: esse fragmento ainda no foi publicado em portugus] 9 Bakhtin, Speech Genres and Other Later Essays, p. 155.

  • 19

    PARA UMA FILOSOFIA DO ATO

    M. M. Bakhtin

    (...) A atividade esttica tambm incapaz de tomar posse daquele

    momento do Ser que constitudo pela transitividade e aberta eventicidade do

    Ser.1 E o produto da atividade esttica no , com relao ao significado, o Ser

    real em processo de devir, e, com respeito ao seu ser, ele entra em comunho

    com o Ser atravs de um ato histrico de efetiva intuio esttica.2 A intuio

    esttica incapaz de apreender a real eventicidade do evento nico, porque suas

    imagens ou configuraes so objetivadas, isto , com relao ao seu contedo,

    elas esto situadas do lado de fora do devir nico real elas no participam dele

    (elas participam dele apenas como um momento constituinte da conscincia viva

    e vivente de um contemplador).3

    O momento que o pensamento terico discursivo (nas cincias naturais e

    na filosofia), a descrio-exposio histrica e a intuio esttica tm em comum,

    e que de particular importncia no nosso estudo, este: todas essas atividades

    estabelecem uma ciso entre o contedo ou sentido de um dado ato-atividade, e a

    realidade histrica do seu ser, a real e nica experincia dele.4 E em

    conseqncia disso que o ato dado perde sua validade e a unidade de seu real

    devir e auto-determinao. Este ato verdadeiramente real (ele participa do Ser-

  • 20

    evento nico) apenas em sua inteireza. Apenas esse ato inteiro est vivo, existe

    completa e inescapavelmente vem a ser, completado. Ele um participante

    real vivo no evento em processo do Ser: ele est em comunho com a unidade

    nica do Ser em processo5. Mas essa comunho ou participao no penetra seu

    aspecto de contedo-sentido, que pretende ser capaz de alcanar plena e

    definitiva auto-determinao dentro da unidade deste ou daquele domnio de

    sentido ou significado (cincia, arte, histria), embora, como mostramos, esses

    domnios objetivos, separados do ato que os pe em comunho com o Ser, no

    so realidades com respeito ao seu sentido ou significado.6

    E como resultado, dois mundos se confrontam, dois mundos que no tm

    absolutamente comunicao um com o outro e que so mutuamente

    impenetrveis: o mundo da cultura e o mundo da vida, o nico mundo no qual

    nos criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos ou

    o mundo no qual os atos da nossa atividade7 so objetivados e o mundo do qual

    esses atos realmente provm e so realmente realizados uma e nica vez.

    Um ato de nosso atividade, de nossa real experincia, como um Jano

    bifronte. Ele olha em duas direes opostas: ele olha para a unidade objetiva de

    um domnio da cultura e para a unicidade irrepetvel da vida realmente vivida e

    experimentada.8 Mas no h um plano unitrio e nico onde ambas as faces

    poderiam mutuamente se determinar com relao a uma nica e singular unidade.

    apenas o evento nico do Ser no processo de realizao que pode constituir

    essa unidade nica; tudo que terico ou esttico deve ser determinado como um

    momento constituinte do evento nico do Ser, embora no mais, claro, em

    termos tericos ou estticos. Um ato deve adquirir um plano unitrio singular

    para ser capaz de refletir-se em ambas as direes no seu sentido ou significado

    e em seu ser; ele deve adquirir a unidade de dupla responsabilidade tanto pelo

    seu contedo (responsabilidade especial) como pelo seu Ser (responsabilidade

    moral).9 E a responsabilidade especial, alm disso, deve ser trazida (deve entrar)

    em comunho com a responsabilidade moral nica e unitria como um momento

    constituinte dela. Esse o nico meio pelo qual a perniciosa diviso e no-

    interpenetrao entre cultura e vida poderia ser superada.

  • 21

    Cada pensamento meu, junto com o seu contedo, um ato ou ao que

    realizo meu prprio ato ou ao individualmente responsvel [postupok]10.

    um de todos aqueles atos que fazem da minha vida nica inteira um realizar

    ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode

    ser considerada um complexo ato ou ao singular que eu realizo: eu realizo, isto

    , executo atos, com toda a minha vida, e cada ato particular e experincia vivida

    um momento constituinte da minha vida da contnua realizao de atos

    [postuplenie]. Como um ato executado, um dado pensamento forma um todo

    integral: tanto seu contedo-sentido quanto o fato de sua presena na minha

    conscincia real a conscincia de um ser humano perfeitamente determinado

    em um tempo particular e em circunstncias particulares, isto , toda a

    historicidade concreta de sua realizao ambos os momentos (o momento do

    contedo-sentido e o momento histrico-individual) so unitrios e indivisveis

    na avaliao desse pensamento como minha ao ou ato responsvel.

    Mas pode-se tomar o momento do contedo-sentido abstratamente, isto

    , um pensamento como um juzo universalmente vlido. Para esse aspecto

    abstrato do sentido do pensamento, o aspecto histrico-individual (o autor, o

    tempo, as circunstncias e a unidade moral de sua vida) completamente

    imaterial, porque esse juzo universalmente vlido pertence unidade terica do

    domnio terico apropriado, e seu lugar nessa unidade determina exaustivamente

    sua validade. A avaliao de um pensamento como um ato ou ao individual

    leva em considerao e inclui em si, completamente, o momento constitudo pela

    validade terica de um pensamento como juzo, isto , uma avaliao da validade

    do juzo constitui um momento necessrio na composio do ato realizado,

    embora ele ainda no esgote esse ato. Para a validade terica de um juzo, por

    outro lado, o momento histrico-individual a transformao de um juzo em um

    ato ou ao responsvel de seu autor completamente imaterial. Eu mesmo

    como aquele que est realmente pensando e que responsvel pelo seu ato de

    pensar eu no estou presente no juzo teoricamente vlido. O juzo teoricamente

    vlido, em todos os seus momentos constituintes, impenetrvel minha auto-

    atividade individualmente responsvel. Independentemente dos momentos que

  • 22

    distinguimos num juzo teoricamente vlido tais como forma (as categorias da

    sntese) e contedo (o assunto, o dado experimental e sensual), ou objeto e

    contedo a validade11de todos esses momentos permanece completamente

    impenetrvel ao momento constitudo por um ato individual uma ao realizada

    por aquele que pensa.

    A tentativa de conceber o dever12 como a mais alta categoria formal (a

    afirmao-negao de Rickert)13 est baseada num equvoco. O dever capaz de

    fundar a presena real de um juzo dado na minha conscincia sob dadas

    condies, isto , a concretude histrica de um fato individual, mas no a terica

    veridicidade em si14 do juzo. O momento da veridicidade terica necessrio,

    mas no suficiente, para fazer de um juzo um juzo de dever para mim; que um

    juzo seja verdadeiro no suficiente para transform-lo num ato de dever

    [postupok] do pensamento. Permita-me uma analogia um tanto crua: a irretocvel

    correo tcnica de um ato realizado no resolve ainda a questo de seu valor

    moral. A veridicidade terica tcnica ou instrumental em relao ao dever. Se o

    dever fosse um momento formal de um juzo, no haveria ruptura entre vida e

    cultura como criao, entre o ato do julgamento como uma ao realizada (um

    momento na unidade do contexto da minha nica vida) e o contedo-sentido de

    um julgamento (um momento em alguma unidade terica objetiva da cincia), e

    isso significaria que existiria um contexto unitrio e nico da cognio e da vida,

    da cultura e da vida (o que no o caso, claro). A afirmao de um juzo como

    um juzo verdadeiro relacion-lo a uma certa unidade terica, e essa unidade

    no de modo algum a unidade histrica nica da minha vida.

    No h sentido em falar de alguma espcie de dever terico; enquanto eu

    estou pensando, eu devo pensar veridicamente; veridicidade ou ser-verdadeiro o

    dever de pensar. Ser mesmo o caso de que o momento do dever-ser seja inerente

    prpria veridicidade?15 O dever surge apenas na correlao da verdade (vlida

    por si) com nosso ato real de cognio, e esse momento de estar correlacionado

    historicamente um momento nico: ele sempre um ato ou ao individual

    [postupok] que no afeta em nada a validade terica objetiva de um juzo, um ato

    ou ao individual que avaliado e atribudo dentro do contexto unitrio da vida

  • 23

    real, nica, de um sujeito. A veridicidade sozinha no suficiente para o dever-

    ser. Mas, por outro lado, o ato responsvel que vem do interior do sujeito, o ato

    de reconhecimento de que o dever verdadeiro esse ato, tambm, no penetra

    de modo algum na composio terica e validade de um juzo. Por que, enquanto

    eu estou pensando, devo pensar veridicamente? O dever-ser da veridicidade no

    decorre em nada da determinao terico-cognitiva da veridicidade. O momento

    do dever-ser est completamente ausente do contedo dessa determinao e no

    pode derivar dela; ele pode ser apenas ser introduzido de fora e fixado nela

    (Husserl)16. No todo, nenhuma determinao e proposio terica pode incluir no

    seu interior o momento do dever-ser, nem esse momento derivvel delas. No

    existe dever esttico, dever cientfico, e ao lado deles um dever tico; h

    apenas aquilo que esteticamente, teoricamente, socialmente vlido, e tais

    validades17 podem ser reunidas pelo dever, do qual todas elas so instrumentos.

    Essas asseres ganham sua validade no interior de uma unidade esttica,

    cientfica ou sociolgica: o dever ganha sua validade dentro da unidade da minha

    vida responsvel nica.

    Realmente, no se pode falar de nenhuma espcie de normas morais,

    ticas, de nenhum dever com um determinado contedo (ns vamos desenvolver

    esse tema em detalhe mais adiante)18. O dever no tem um determinado

    contedo; ele no tem um contedo especificamente terico. O dever pode descer

    sobre qualquer coisa vlida em seu contedo, mas nenhuma proposio terica

    contm no seu contedo o momento do dever, nem fundada pelo dever. No h

    dever cientfico, esttico, ou outro, mas no h tambm um dever

    especificamente tico, no sentido de uma totalidade de normas com um contedo

    determinado. Tudo que possui validade, tomado pelo aspecto de sua validade,

    fornece o cho para vrias disciplinas especiais, no sobra nada para a tica (o

    que se chama de normas ticas so principalmente asseres sociais, e quando

    forem fundadas cincias sociais apropriadas, tais normas se incorporaro a elas).

    O dever uma categoria caracterstica de atos ou aes em processo

    [postuplenie] ou do ato realmente realizado (e tudo um ato ou ao que eu

    realizo at mesmo o pensamento e o sentimento); uma certa atitude de

  • 24

    conscincia, cuja estrutura ns propomos desvelar fenomenologicamente.19 No

    existem normas morais que sejam determinadas e vlidas em si como normas

    morais, mas existe um sujeito moral com uma determinada estrutura (no uma

    estrutura psicolgica ou fsica, claro), e nele que ns temos de nos apoiar: ele

    saber o que est marcado pelo dever moral e quando, ou, para ser exato: pelo

    dever como tal (porque no h dever especificamente moral).20

    Que minha auto-atividade21 responsvel no penetre no aspecto

    conteudstico de um juzo parece ser contraditado pelo fato de que a forma de

    um juzo (o momento transcendente na composio de um juzo)22 que constitui o

    momento da atividade da nossa razo, isto , de que somos ns que produzimos

    as categorias da sntese. Devemos ser lembrados de que esquecemos a conquista

    copernicana de Kant.23 Ser realmente o caso de que a auto-atividade

    transcendente seja a auto-atividade individual e histrica do meu ato realizado

    [postupok], a auto-atividade pela qual eu sou individualmente responsvel?

    Ningum, claro, afirmaria algo do gnero. A descoberta de um elemento a

    priori na nossa cognio no abre um caminho para fora da cognio, isto , de

    dentro de seu aspecto conteudstico, para o ato real cognitivo, historicamente

    individual; ele no supera a sua dissociao e mtua impenetrabilidade, e da

    preciso criar um subiectum puramente terico par essa auto-atividade

    transcendente, um subiectum historicamente no-real uma conscincia

    universal, uma conscincia cientfica, um subiectum epistemolgico.24 Mas,

    claro, esse sujeito terico teria de se incorporar a cada vez em algum ser humano

    pensante real, atual, de modo a entrar (junto com o mundo inteiro imanente a ele

    enquanto objeto de sua cognio) em comunho com o evento histrico, real, do

    Ser, apenas como um momento dele.

    Assim, na medida em que ns destacamos um juzo da unidade

    constituda pelo ato-ao historicamente real de sua atualizao25 e o

    transferimos a alguma unidade terica, no h modo de sair do interior de seu

    aspecto conteudstico e entrar no dever e no evento real nico do Ser. Todas as

    tentativas de superar de dentro da cognio terica o dualismo da cognio e

    da vida, o dualismo do pensamento e da realidade nica concreta, so totalmente

  • 25

    sem esperana. Tendo destacado o aspecto conteudstico da cognio, do ato

    histrico de sua realizao, ns s podemos sair de seu interior e entrar no dever

    por meio de um salto. Olhar para o ato cognitivo real como uma ao realizada

    no contedo-sentido o mesmo que tentar puxar-se a si mesmo pelos prprios

    cabelos. O contedo destacado do ato cognitivo passa a ser governado por suas

    prprias leis imanentes, de acordo com as quais ele se desenvolve como se

    tivesse vontade prpria. Na medida em que ns entramos nesse contedo, isto ,

    realizamos um ato de abstrao, ns somos agora controlados por suas leis

    autnomas, ou, para ser exato, ns simplesmente no estamos mais presentes nele

    como seres humanos individualmente e responsavelmente ativos.

    Isso como o mundo da tecnologia: ele conhece sua prpria lei

    imanente, e se submete a essa lei em seu desenvolvimento impetuoso e

    irrefrevel, apesar do fato de que h tempos fugiu da tarefa de compreender o

    propsito cultural desse desenvolvimento, e pode servir antes ao mal que ao bem.

    Assim, os instrumentos so perfeitos de acordo com sua lei interna, e, como

    conseqncia, eles se transformam, a partir do que era inicialmente um meio de

    defesa racional, numa fora terrvel, mortal e destrutiva. Tudo que tecnolgico,

    quando divorciado da unidade nica da vida e entregue vontade da lei imanente

    de seu desenvolvimento, assustador; pode de tempos em tempos irromper nessa

    unidade nica como uma fora terrvel e irresponsavelmente destrutiva.

    Na medida em que o mundo autnomo abstratamente terico (um mundo

    fundamentalmente e essencialmente26 alheio historicidade nica e viva)

    permanea dentro de seus limites, sua autonomia justificvel e inviolvel. Tais

    disciplinas filosficas especiais como lgica, teoria da cognio, psicologia da

    cognio, biologia filosfica (todas elas procurando descobrir teoricamente,

    isto , por meio da cognio abstrata a estrutura do mundo teoricamente

    conhecido e os princpios desse mundo) so igualmente justificveis. Mas o

    mundo como objeto de cognio terica procura se fazer passar como o mundo

    inteiro, isto , no apenas como um Ser abstratamente unitrio, mas tambm

    como um Ser concretamente nico em sua possvel totalidade. Em outras

    palavras, a cognio terica tenta construir uma filosofia primeira (prima

  • 26

    philosophia)27, seja como epistemologia, seja como terico [1 palavra ilegvel]28

    (de vrias espcies biolgico, fsico, etc.). Seria uma injustia dizer que isso

    representa a tendncia predominante na histria da filosofia; antes uma

    peculiaridade especfica dos tempos modernos, e podemos mesmo dizer que

    exclusivamente uma peculiaridade dos sculos XIX e XX.

    O pensamento participativo29 predomina em todos os grandes sistemas

    de filosofia, ou conscientemente e distintamente (especialmente na Idade Mdia),

    ou de uma forma inconsciente e mascarada (nos sistemas dos sculos XIX e XX).

    Pode-se observar um brilho particular nos prprios termos Ser ou Realidade.

    O exemplo clssico de Kant contra a prova ontolgica, de que cem tleres reais

    no so iguais a cem tleres pensados, deixou de ser convincente.30 Aquilo que

    esteve presente uma vez e apenas uma vez na realidade determinada por mim de

    uma maneira nica , de fato, incomparavelmente mais pesado. Mas quando

    pesamos nas escalas tericas (mesmo com o acrscimo de uma constatao

    terica de sua existncia emprica), separadamente de sua unicidade

    historicamente valorativa31, altamente improvvel que acabe por se revelar mais

    pesado do que apenas pensado. Historicamente, o Ser nico real maior e mais

    pesado que o Ser unitrio da cincia terica, mas essa diferena em peso, que

    auto-evidente para uma conscincia viva que a experimente, no pode ser

    determinada em categorias tericas.32

    O contedo-sentido abstrado do ato-ao pode ser formado em um certo

    Ser aberto e unitrio, mas isso, claro, no aquele Ser nico no qual ns

    vivemos e morremos, no qual se realizam nossos atos ou aes responsveis; ele

    fundamentalmente e essencialmente33 alheio historicidade viva. Eu no posso

    incluir meu eu real e minha vida (como momento) no mundo constitudo pelas

    construes da conscincia terica, em abstrao do ato histrico individual e

    responsvel. Mas tal incluso necessria, se esse mundo o mundo inteiro,

    todo o Ser (todo o Ser em princpio ou como projetado34, isto ,

    sistematicamente; o sistema do Ser terico pode permanecer aberto, claro).

    Nesse mundo, ns nos descobriramos determinados, predeterminados, passados

    e terminados, isto , essencialmente no vivos. Ns teramos nos retirado da vida

  • 27

    como vida responsvel, plena de riscos e transformando-se atravs de aes

    realizadas para um indiferente e, fundamentalmente35, completado e terminado

    Ser terico (que s est incompleto e para ser determinado no processo de

    cognio, mas para ser determinado precisamente como um dado). Deveria estar

    claro que isso s pode ser feito se ns abstramos aquilo que absolutamente

    arbitrrio (responsavelmente arbitrrio) e absolutamente novo, que est sendo

    criado e ainda est-por-ser num ato realizado, isto , se ns abstramos

    precisamente aquilo de que um ato realizado realmente vive.

    Qualquer espcie de orientao prtica da minha vida impossvel no

    interior do mundo terico: impossvel viver nele, impossvel realizar aes

    responsveis. Nesse mundo eu sou desnecessrio; eu sou essencialmente e

    fundamentalmente36 no-existente nele. O mundo terico alcanado atravs de

    uma abstrao essencial e fundamental do fato do meu ser nico e o sentido

    moral desse fato como se eu no existisse. E esse conceito de Ser

    indiferente ao fato central central para mim da minha comunho nica e real

    com o Ser (eu, tambm, existo), e ele no pode por princpio acrescentar nada a

    ele ou subtrair nada dele, porque ele permanece igual a si mesmo e idntico em

    seu sentido e significncia, independentemente de eu existir ou no; ele no pode

    determinar minha vida como uma realizao responsvel de aes, no pode

    fornecer nenhum critrio para a vida prtica, a vida da ao, porque ele no o

    Ser no qual eu vivo, e, se ele fosse o nico Ser, eu no existiria.

    O que decorre disso no , claro, nenhuma espcie de relativismo, que

    nega a autonomia da verdade e tenta torn-la alguma coisa relativa e

    condicionada (em algum momento alheio a ela um momento constituinte da

    vida prtica, por exemplo) precisamente com respeito sua veracidade. Quando

    considerada do nosso ponto de vista, a autonomia da verdade, sua pureza e auto-

    determinao do ponto de vista do mtodo esto completamente preservadas.

    precisamente na condio de ser pura que a verdade pode participar

    responsavelmente no Ser-evento; a vida-como-evento no precisa de uma verdade

    que seja internamente relativa. A validade da verdade suficiente por si, absoluta

    e eterna37, e um ato ou ao de cognio responsvel leva em conta essa

  • 28

    peculiaridade sua; isso que constitui sua essncia. A validade de uma assero

    terica no depende de ter sido conhecida ou no por algum. As leis de Newton

    eram vlidas em si mesmo antes de Newton t-las descoberto, e no foi essa

    descoberta que as tornou vlidas pela primeira vez. Mas essas verdades no

    existiam como verdades conhecidas como momentos participantes do Ser-

    evento nico, e isso de essencial importncia, porque isso que constitui o

    sentido da ao que as conhece. Seria um erro grosseiro imaginar que essas

    verdades eternas existissem antes que Newton as descobrisse, do mesmo modo

    que a Amrica existia antes de Colombo descobri-la. A eternidade da verdade

    no pode ser contraposta nossa temporalidade como uma durao sem fim, para

    a qual o nosso tempo apenas um mero momento ou segmento.

    A temporalidade da historicidade real do Ser apenas um momento da

    historicidade abstratamente conhecida. O momento abstrato da validade extra-

    temporal da verdade pode ser contraposto ao momento igualmente abstrato

    constitudo pela temporalidade do objeto da cognio histrica. Mas essa

    contraposio inteira no vai alm dos limites do mundo terico, e possui sentido

    e validade apenas dentro desse mundo, enquanto a validade extra-temporal de

    todo o mundo terico da verdade entra, em sua totalidade, na historicidade real

    do Ser-evento. Entra nela no temporalmente ou espacialmente, claro (porque

    esses so todos momentos abstratos), mas como um momento que enriquece o

    Ser-evento. S o Ser da cognio em categorias cientfico-abstratas , por

    princpio, alheio teoricamente ao significado abstratamente conhecido. O ato

    real da cognio no do interior de seu produto terico-abstrato (isto , do

    interior de um juzo universalmente vlido), mas como um ato ou ao

    responsvel incorpora toda validade extra-temporal ao Ser-evento nico.

    Contudo, a contraposio comum entre a verdade eterna e a nossa temporalidade

    perniciosa tem um significado no-terico, porque essa proposio inclui no seu

    interior um leve sabor valorativo e assume um carter emocional-volitivo: aqui

    est a verdade eterna (e isso bom), e aqui est nossa transitria e deficiente vida

    (e isso mau). Mas nesse caso temos uma instncia de pensamento participativo

    (que procura superar seu prprio carter de dado, em favor daquilo que-est-para-

  • 29

    ser-alcanado)38, sustentada em tom penitente; esse pensamento participativo,

    contudo, provm de dentro da arquitetnica do Ser-evento que afirmado e

    fundado por ns. Essa a natureza da concepo de Plato.39

    Uma instncia ainda mais grosseira de teoreticismo a tentativa de

    incluir o mundo da cognio terica do Ser unitrio na capacidade do ser

    psquico. O ser psquico um produto abstrato do pensamento terico, e

    totalmente inadmissvel conceber o ato-ao do pensamento real como um

    processo psquico, e ento incorpor-lo no Ser terico com todo o seu contedo.

    O ser psquico um produto abstrato na mesma medida da validade

    transcendente. Nesse caso ns cometemos um absurdo palpvel, dessa vez

    puramente terico: ns tornamos o grande mundo terico (o mundo como o

    objeto de todas as cincias, de toda cognio terica) um momento do pequeno

    mundo terico (do ser psquico como o objeto da cognio psicolgica). A

    psicologia se justifica dentro de seus prprios limites na medida em que ela

    reconhea a cognio apenas como um processo psquico e traduza para a

    linguagem do ser psquico tanto o momento conteudstico do ato de cognio,

    quanto a responsabilidade individual da execuo real de tal ato. Mas ela comete

    um erro grosseiro tanto do ponto de vista puramente terico, quanto do ponto de

    vista da prtica filosfica, quando pretende ser cognio filosfica e apresenta

    sua transcrio psicolgica como se ela fosse o Ser real nico, recusando-se a

    admitir ao seu lado a igualmente legtima transcrio lgico-transcendente.

    O ser psquico no tem nada a ver com a minha vida-ao (exceto

    quando eu ajo [postupaiu] como um psiclogo terico). Quando agindo

    responsvel e produtivamente na matemtica trabalhando, por exemplo, em

    algum teorema eu posso conceber mas nunca realizar a tentativa de operar com

    um conceito matemtico como se ele fosse uma instncia do ser psquico. O

    trabalho da ao no se realizar, claro: a ao vive e se move num mundo que

    no um mundo psquico. Quando eu estou trabalhando em um teorema, eu me

    oriento para o seu significado, que eu responsavelmente incorporo no Ser

    conhecido (o objetivo real da cincia), e eu no sei nada e no tenho de saber

    nada sobre uma possvel transcrio psicolgica deste ato responsvel que eu

  • 30

    realmente realizo, embora para o psiclogo, do ponto de vista de seus objetivos,

    essa transcrio seja responsavelmente correta.40

    Uma instncia similar de teoreticismo so as vrias tentativas de

    incorporar a cognio terica na vida nica, concebida em categorias biolgicas,

    econmicas e outras, isto , todas as tentativas de pragmatismo em todas suas

    variedades. Em todas essas tentativas, uma teoria se transforma num momento de

    uma outra teoria, e no num momento do Ser-evento real. Uma teoria precisa

    entrar em comunho no com construes tericas e vida imaginada, mas com o

    evento realmente existente do ser moral com a razo prtica, e isso

    responsavelmente completado por quem quer que conhea, na medida em que ele

    aceita a responsabilidade por cada ato integral de sua cognio, isto , na medida

    em que o ato de cognio esteja includo como minha ao, com todo o seu

    contedo, na unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu

    realmente vivo executo aes. Todas as tentativas de forar caminho de dentro

    do mundo terico para o Ser-evento real so completamente sem esperana. O

    mundo teoricamente conhecido no pode abrir-se de dentro da prpria cognio

    ao ponto de se tornar aberto ao mundo real nico. Mas do ato executado (no da

    sua transcrio terica) h um caminho para o seu contedo-sentido, que

    recebido e includo do interior daquele ato realmente executado; porque o ato

    realmente executado no Ser.

    O mundo como o contedo do pensamento cientfico um mundo

    particular: um mundo autnomo, mas no um mundo separado; antes um

    mundo que se incorpora no evento unitrio e nico do Ser atravs da mediao de

    uma conscincia responsvel, em uma ao real. Mas o evento nico do Ser no

    mais algo que pensado, mas algo que , alguma coisa que est sendo real e

    inescapavelmente completado atravs de mim e de outros (completado, inter alia,

    tambm na minha ao de conhecer); ele realmente experimentado, afirmado de

    uma maneira emocional-volitiva, e a cognio constitui apenas um momento

    desse experimentar-afirmar. A unicidade nica ou singularidade no pode ser

    pensada; ela s pode ser participativamente41 experimentada ou vivida. Toda a

    razo terica em sua totalidade apenas um momento da razo prtica, isto , a

  • 31

    razo da orientao moral nica do sujeito, no interior do evento do Ser nico.

    Esse Ser no pode ser determinado nas categorias da conscincia terica no

    participante ele pode ser determinado apenas nas categorias da comunho real,

    isto , de um ato realmente realizado, nas categorias da efetiva-participativa

    experincia42da unicidade ou singularidade concreta do mundo.

    Um trao caracterstico da filosofia da vida [lebensphilosophie] 43contempornea, que procura incluir o mundo terico no interior da unidade da

    vida-em-processo-de-devir, uma certa estetizao da vida, e isso mascara at

    certo ponto a bvia incongruncia do puro teoreticismo (a incluso do grande

    mundo terico dentro de um pequeno mundo, tambm terico). Como regra, os

    elementos tericos e estticos se fundem nessas concepes de vida. isso que

    caracteriza a tentativa mais significativa de construir uma filosofia da vida

    aquela de Bergson.44 A fraqueza principal de todas as suas construes

    filosficas (um defeito freqentemente notado na literatura sobre ele) a

    indiscriminao, no seu mtodo, dos componentes heterogneos de sua

    concepo. O que tambm permanece obscuro no seu mtodo sua definio de

    intuio filosfica, que ele ope cognio intelectual, analtica. No pode haver

    dvida de que a cognio intelectual (teoreticismo), entretanto, entra como um

    elemento necessrio na construo da intuio tal como realmente usada por

    Bergson; isso foi exaustivamente mostrado por Losskii em seu livro excelente

    sobre Bergson.45 Quando esses elementos intelectuais so subtrados da intuio,

    o que permanece puramente contemplao esttica, com uma mistura

    insignificante, uma dose homeoptica, de pensamento participativo real.46 Mas o

    produto da contemplao esttica tambm abstrado do efetivo ato de

    contemplao, e no essencialmente necessrio47 para esse ato. Portanto, a

    contemplao esttica tambm incapaz de agarrar o Ser-evento nico em sua

    singularidade. O mundo da viso esttica, obtido em abstrao do sujeito real da

    viso, no o mundo real em que eu vivo, embora seu contedo esteja inserido

    em um sujeito vivo. Mas exatamente como na cognio terica, existe a mesma

    no-comunicao essencial e fundamental48 entre o sujeito e sua vida como

    objeto da viso esttica, de um lado, e o sujeito como portador do ato da viso

  • 32

    esttica, de outro.

    No contedo da viso esttica ns no encontraremos o ato realmente

    realizado daquele que v. O que no penetra no contedo da viso esttica a

    reflexo bilateral unitria do ato unitrio que ilumina e atribui a uma

    responsabilidade nica tanto o contedo quanto o ser-como-ao do ato. De

    dentro dessa viso, no h sada para a vida. Isso de modo algum contraditado

    pelo fato de que algum possa tornar-se e tornar a prpria vida um contedo da

    contemplao esttica. O prprio ato-ao de tal viso no penetra no contedo; a

    viso esttica no se transforma em uma confisso49, e se isso ocorre, ela deixa

    de ser viso esttica. E, de fato, existem obras que esto na fronteira da esttica

    com a confisso (orientao moral no interior do Ser nico).

    Um momento essencial (ainda que no o nico) da contemplao esttica

    a identificao (empatia)50 com um objeto individual da viso v-lo de dentro

    de sua prpria essncia. Esse momento de empatia sempre seguido pelo

    momento de objetivao, isto , colocar-se do lado de fora da individualidade

    percebida pela empatia, um separar-se do objeto, um retorno a si mesmo. E

    apenas essa conscincia de volta a si mesma d forma, de seu prprio lugar,

    individualidade captada de dentro, isto , enforma-a esteticamente como uma

    individualidade unitria, ntegra e qualitativamente original. E todos esses

    momentos estticos unidade, integridade, auto-suficincia, originalidade so

    transgredientes51 individualidade que est sendo determinada: de dentro dela,

    esses momentos no existem para ela em sua prpria vida, ela no vive por eles

    em si. Eles tm significado e so realizados por quem se identifica, que est

    situado do lado de fora dos limites daquela individualidade, atravs do ato de

    formar e objetivar a matria cega obtida pela empatia. Em outras palavras, a

    reflexo esttica da vida viva no , por princpio, a auto-reflexo da vida em

    movimento, da vida em sua real vivacidade: ela pressupe um outro sujeito, um

    sujeito da empatia, um sujeito situado do lado de fora dos limites dessa vida.52

    No se deve pensar, claro, que o momento de pura empatia seguido

    cronologicamente pelo momento de objetivao, pelo momento de formao. Na

    realidade, ambos os momentos so inseparveis. A empatia pura um momento

  • 33

    abstrato do ato unitrio da atividade esttica, e no deveria ser pensada como um

    perodo temporal; os momentos de empatia e de objetivao interpenetram-se

    mutuamente.

    Eu me identifico ativamente com uma individualidade e,

    conseqentemente, eu no me perco completamente, nem perco meu lugar nico

    do lado de fora dela, sequer por um momento. No o objeto que

    inesperadamente toma possesso de mim como algum passivo. Sou eu que me

    identifico ativamente com o objeto: criar empatia um ato meu, e apenas isso

    constitui sua produtividade e novidade (Schopenhauer e a msica).53 A empatia

    realiza alguma coisa que no existia nem no objeto de empatia, nem em mim

    mesmo, antes do ato de identificao, e atravs dessa alguma coisa realizada o

    Ser-evento enriquecido (isto , ele no permanece igual a ele mesmo). E esse

    ato-ao que traz alguma coisa nova no pode mais ser uma reflexo esttica em

    sua essncia, porque ela se transformaria em algo localizado do lado de fora da

    ao-realizadora e sua responsabilidade. A pura empatia, isto , o ato de coincidir

    com um outro e perder o prprio lugar nico no Ser nico, pressupe o

    reconhecimento de que minha prpria unicidade e a unicidade do meu lugar

    constituem um momento no essencial que no tem influncia no carter da

    essncia do ser do mundo. Mas esse reconhecimento da unicidade prpria nica

    como no essencial para a concepo do Ser tem a inevitvel conseqncia de

    que se perde tambm a unicidade do Ser, e, como resultado, ns chegamos

    concepo do Ser apenas como Ser possvel, e no essencial, real, nico,

    inescapavelmente Ser real. Esse Ser possvel, contudo, incapaz de devir,

    incapaz de viver. O significado de um Ser para o qual o meu lugar nico no Ser

    foi reconhecido como no essencial no ser jamais capaz de me conferir sentido,

    nem esse realmente o significado do Ser-evento.

    Mas a pura empatia como tal impossvel. Se eu realmente me perdesse

    no outro (em vez de dois participantes haveria um um empobrecimento do Ser),

    isto , se eu cessasse de ser nico, ento esse momento do meu no-ser nunca

    poderia se tornar um momento do ser da conscincia; o no-ser no pode se

    tornar um momento do ser da conscincia ele simplesmente no existiria para

  • 34

    mim, isto , o ser no se completaria atravs de mim nesse momento. Empatia

    passiva, ser-possudo, perder-se isso nada tem em comum com o ato-ao

    responsvel da auto-abstrao ou auto-renncia. Na auto-renncia eu realizo com

    a mxima atividade, plenamente, a unicidade do meu lugar no Ser. O mundo no

    qual eu, do meu prprio lugar nico, renuncio a mim mesmo no se torna um

    mundo no qual eu no exista, um mundo indiferente, em seu significado, minha

    existncia: a auto-renncia um ato ou realizao que abrange o Ser-evento. Um

    grande smbolo da auto-atividade, a descida [?] de Cristo [32 palavras

    ilegveis].54 O mundo do qual Cristo partiu jamais ser o mundo no qual ele

    nunca existiu; ele , por princpio, um mundo diferente.

    Este mundo, o mundo no qual se completou o evento da vida e da morte

    de Cristo, tanto no fato como no significado de sua vida e morte este mundo

    fundamentalmente e essencialmente indeterminvel, seja em categorias tericas,

    seja em categorias da cognio histrica, ou atravs da intuio esttica. No

    primeiro caso, ns conhecemos o sentido abstrato, mas perdemos o fato nico da

    realizao histrica real do evento; no segundo caso, ns captamos o fato

    histrico, mas perdemos o sentido; no terceiro caso, ns temos tanto o ser do fato

    quanto o seu sentido como o momento de sua individuao, mas ns perdermos

    nossa prpria posio em relao a ele, nossa participao de dever-ser. Isto ,

    em nenhum caso ns temos a realizao em sua plenitude na unidade e

    interpenetrao do fato-realizao-sentido-significncia nico e nossa

    participao nele (porque o mundo dessa realizao unitrio e nico).

    A tentativa de encontrar-se a si mesmo no produto do ato-ao da viso

    esttica uma tentativa de lanar-se no no-Ser, uma tentativa de abandonar

    tanto minha auto-atividade do meu lugar prprio nico situado do lado de fora de

    qualquer ser esttico, quanto a sua plena realizao no Ser-evento. O ato

    realizado da viso esttica se eleva acima de qualquer ser esttico um produto

    desse ato e parte de um mundo diferente: ele entra na unidade real do Ser-

    evento, incorporando no Ser tambm o mundo esttico, como um momento

    constituinte. A pura empatia seria, de fato, uma queda do ato-ao em seu prprio

    produto, e isso, claro, impossvel.

  • 35

    A viso esttica uma viso justificada enquanto no v alm de seus

    prprios limites. Mas na medida em que ela pretenda ser uma viso filosfica do

    Ser unitrio e nico em sua eventicidade55, a viso esttica est inevitavelmente

    condenada a fazer passar uma parte abstratamente isolada como o todo real.

    A empatia esttica (isto , no a pura empatia em que algum se perde,

    mas a empatia que objetiva) no pode fornecer o conhecimento do Ser nico em

    sua eventicidade; pode fornecer apenas uma viso esttica do Ser que est

    localizada do lado de fora do sujeito (e do prprio sujeito localizado do lado de

    fora de sua auto-atividade, isto , em sua passividade). A identificao esttica

    com o participante de um evento no ainda a consecuo de uma compreenso

    plena do evento. Mesmo que eu conhea inteiramente uma dada pessoa, e

    tambm conhea a mim mesmo, eu ainda tenho de captar a verdade de nossa

    interrelao, a verdade do evento nico e unitrio que nos liga e do qual ns

    somos participantes. Isto , o lugar e a funo meus e dele, e nossa interrelao

    no evento do Ser em processo, isto , eu mesmo e o objeto da minha

    contemplao esttica devem estar [1 palavra ilegvel] determinados dentro do

    Ser unitrio e nico [dentro da unitria unidade do Ser?] que nos abrange

    igualmente e no qual o ato da minha contemplao esttica realmente

    executada; mas isso no pode mais ser um ser esttico.56 apenas de dentro

    desse ato como minha ao responsvel que pode haver um caminho para a

    unidade do Ser, e no de seu produto, tomado em abstrao. apenas de dentro

    da minha participao que a funo de cada participante pode ser compreendida.

    No lugar de um outro, exatamente como em meu prprio lugar, eu estou no

    mesmo estado de falta de sentido. Compreender um objeto compreender meu

    dever em relao a ele (a atitude ou posio que devo tomar em relao a ele),

    isto , compreend-lo em relao a mim mesmo no Ser-evento nico, e isso

    pressupe minha participao responsvel, e no uma abstrao de mim mesmo.

    apenas de dentro da minha participao que o Ser pode ser compreendido como

    um evento, mas esse momento de participao nica no existe dentro do

    contedo, visto em abstrao do ato como ao responsvel.

    Contudo, o ser esttico est mais prximo da real unidade do Ser-como-

  • 36

    vida do que o mundo terico. por isso que a tentao do esteticismo to

    persuasiva. Pode-se viver no ser esttico, e h aqueles que o fazem, mas eles so

    outros seres humanos e no eu mesmo. Essa a vida passada de outros seres

    humanos, amorosamente contemplada, e tudo que est situado fora de mim est

    correlacionado com eles. Mas eu no me encontro nessa vida; eu vou encontrar

    apenas um duplo de mim mesmo, apenas algum pretendendo ser eu. Tudo que

    eu posso fazer a representar um papel, isto , assumir, como uma mscara, a

    carne de um outro de algum morto. Mas a responsabilidade esttica do ator e

    de todo o ser humano pela adequao do papel representado permanece na vida

    real, porque a representao de um papel como um todo uma ao responsvel

    executada por aquele que interpreta, e no por quem representado, isto , o

    heri. O mundo esttico inteiro como um todo apenas um momento do Ser-

    evento, incorporado legitimamente no Ser-evento atravs de uma conscincia

    responsvel atravs de uma ao responsvel de um participante. A razo

    esttica um momento da razo prtica.

    Assim, nem a cognio terica nem a intuio esttica podem fornecer

    uma abordagem ao Ser real nico de um evento, porque no h unidade e

    interpenetrao entre o contedo-sentido (um produto) e o ato (uma ao

    histrica real) em conseqncia da essencial e fundamental57 abstrao-de-mim-

    mesmo, como participante de processo de afirmar significado e viso. isso que

    leva o pensamento filosfico, que em princpio procura ser puramente terico, a

    um estado peculiar de esterilidade, no qual sem dvida alguma ele se encontra

    atualmente. Uma certa mistura de esteticismo produz a iluso de uma vitalidade

    maior, mas no mais do que uma iluso. Para aqueles que desejam e sabem como

    pensar participativamente58, parece que a filosofia, que deveria resolver os

    problemas ltimos (isto , que coloca os problemas no contexto do Ser unitrio e

    nico na sua integridade), fracassa em falar daquilo que deveria falar. Mesmo

    que suas proposies tenham alguma validade, elas so incapazes de determinar

    um ato-ao responsvel e o mundo em que ele real e responsavelmente

    executado uma e nica vez.

    O que est em tela aqui no s uma questo de diletantismo, que

  • 37

    incapaz de avaliar a grande importncia das aquisies da filosofia moderna no

    campo da metodologia de domnios particulares da cultura. Pode-se e deve-se

    reconhecer que no domnio das tarefas especiais a que ela se imps, a filosofia

    moderna (e o neo-kantismo em particular) obviamente alcanou grandes alturas e

    foi capaz, finalmente, de articular mtodos perfeitamente cientficos (algo que o

    positivismo, em todas as suas variedades, incluindo o pragmatismo, foi incapaz

    de fazer). O nosso tempo merece plenamente o crdito de trazer a filosofia para

    mais perto do ideal de uma filosofia cientfica. Mas essa filosofia cientfica pode

    ser apenas uma filosofia especializada, isto , uma filosofia dos vrios domnios

    da cultura e de sua unidade na forma de uma transcrio terica do interior dos

    objetos de criao cultural e da lei imanente de seu desenvolvimento.59 E por

    isso que essa filosofia terica no pode pretender ser uma filosofia primeira60,

    isto , um ensinamento no sobre a criao cultural unitria, mas sobre o Ser-

    evento unitrio e nico. Uma filosofia primeira assim no existe, e mesmo os

    caminhos que levam sua criao parecem estar esquecidos. Da a profunda

    insatisfao com a filosofia moderna da parte daqueles que pensam

    participativamente, uma insatisfao que leva alguns deles a recorrer a outros

    meios, tais como a concepo do materialismo histrico, que, apesar de todos os

    seus defeitos e lacunas61, atraente conscincia participativa62 por causa de seu

    esforo em construir seu mundo de tal modo a reservar um lugar nele para a

    execuo de aes reais determinadas, concretamente histricas; uma conscincia

    que luta e age pode realmente orientar-se no mundo do materialismo histrico.

    No presente contexto ns no lidaremos com a questo das [substituies

    ilegtimas? faltas?] particulares e incongruncias63 metodolgicas por meio das

    quais o materialismo histrico realiza a sua sada de dentro do mundo terico

    mais abstrato e sua entrada no mundo vivo da ao responsvel realmente

    realizada. O que importante para ns, contudo, que ele completa essa sada, e

    nisso que est sua fora, a razo do seu sucesso. Outros ainda procuram

    satisfao filosfica na teosofia, na antroposofia64, e em outras doutrinas

    similares. Essas doutrinas absorveram muito da sabedoria real do pensamento

    participativo da Idade Mdia e do Oriente; mas elas so profundamente

  • 38

    insatisfatrias, contudo, como concepes unitrias, mais do que como simples

    compilaes de abordagens particulares do pensamento participativo atravs dos

    tempos, e cometem o mesmo pecado metodolgico que o materialismo histrico

    comete: uma indiscriminao metdica entre o que dado e o que colocado

    como tarefa, entre o que e o que deve ser.65

    Minha conscincia participativa e exigente pode ver que o mundo da

    filosofia moderna, o mundo terico e teorizado da cultura, em certo sentido

    real, que ele tem validade. Mas o que ela tambm pode ver que esse mundo no

    o mundo nico no qual eu vivo e no qual eu executo responsavelmente meus

    atos. E esses dois mundos no se intercomunicam; no h um princpio para

    incluir e envolver ativamente o mundo vlido da teoria e da cultura teorizada no

    Ser-evento nico da vida.66

    O homem contemporneo sente-se seguro de si, prspero e inteligente,

    quando ele prprio no est essencialmente e fundamentalmente67 presente no

    mundo autnomo de um domnio da cultura e de sua lei de criao imanente. Mas

    ele se sente inseguro, deficiente e destitudo de compreenso, quando se trata

    dele mesmo, quando ele o centro emissor de atos ou aes responsveis, na

    vida real e nica. Isto , ns agimos com segurana apenas quando o fazemos no

    como ns mesmos, mas como algum possudo pela necessidade de significado

    imanente de algum domnio da cultura.

    O trajeto de uma premissa a uma concluso percorrido sem falhas,

    irrepreensivelmente, porque eu mesmo no existo nesse trajeto. Mas como e onde

    se deveria incluir esse processo do meu pensamento, que internamente puro e

    irrepreensvel, e totalmente justificado de ponta a ponta? Na psicologia da

    conscincia? Ou talvez na histria de uma cincia correspondente? Ou no meu

    oramento material como pago de acordo ao nmero de linhas que o

    constituem? Ou talvez na ordem cronolgica do meu dia, como minha ocupao

    das cinco s seis? Ou nas minhas obrigaes como um cientista ou um professor?

    Mas todos esses contextos e possibilidades de dar sentido esto por si mesmos

    flutuando num espao peculiarmente sem ar, e no esto enraizados em nada,

    nem em alguma coisa unitria, nem em alguma coisa nica.

  • 39

    A filosofia contempornea tem sido incapaz de criar um princpio para

    uma incluso assim, e isso que constitui o seu estado de crise. O ato realizado

    ou ao cindido em um contedo-sentido objetivo, e um processo subjetivo de

    realizao. Do primeiro fragmento se cria uma nica unidade sistmica da cultura

    que realmente esplndida em sua rigorosa clareza. Do segundo fragmento, se

    ele no descartado como completamente intil (ele pura e inteiramente

    subjetivo, uma vez que o seu contedo-sentido foi retirado), pode-se no mximo

    extrair e aceitar alguma coisa esttica e terica, como a dure ou lan vital de

    Bergson [12 palavras ilegveis]. Mas nem no primeiro mundo nem no segundo h

    espao para a execuo real e responsvel de uma ao.

    Mas a filosofia moderna, afinal, conhece a tica e a razo prtica. Mesmo

    a primazia da razo prtica de Kant devotamente observada pelo neo-kantismo

    contemporneo. Quando ns falamos do mundo terico e o opomos ao ato

    responsvel, no dissemos nada sobre as construes ticas contemporneas, as

    quais tm a ver, depois de tudo, precisamente com o ato responsvel. Mas a

    presena do significado tico na filosofia contempornea no acrescenta [1

    palavra ilegvel] nada; quase toda a crtica do teoreticismo pode ser estendida

    tambm aos sistemas ticos. por isso que no entramos numa anlise detalhada

    das doutrinas ticas existentes; falaremos de algumas concepes ticas

    (altrusmo, utilitarismo, a tica de Cohen, etc.)68e das questes especiais ligadas a

    elas nos contextos correspondentes do nosso estudo. O que ainda precisamos

    fazer nesse ponto mostrar que a filosofia prtica em suas linhas bsicas difere

    da filosofia terica apenas quanto ao seu objeto, no no seu mtodo ou modo de

    pensar, isto , mostrar que est tambm completamente impregnada de

    teoreticismo, e que para a soluo desse problema no h diferena entre os

    vrios ramos.

    Todos os sistemas ticos so normalmente, e corretamente, subdivididos

    em tica material (tica do contedo) e tica formal.69 Ns temos duas objees

    fundamentais e essenciais70 contra a tica material (conteudstica) e uma contra a

    tica formal. A tica material procura encontrar e fundar normas morais especiais

    que tenham um contedo definido normas que so algumas vezes

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    universalmente vlidas e algumas vezes primordialmente relativas, mas em

    qualquer caso universais, aplicveis a qualquer um. Um ato realizado tico

    apenas quando governado completamente por uma norma moral apropriada que

    tenha um contedo universal71 definido.

    A primeira objeo fundamental contra a tica material (ns j tocamos

    nesse ponto anteriormente) esta: no h especificamente normas ticas. Cada

    norma que tenha um contedo definido deve ser fundada especificamente na sua

    validade por uma disciplina correspondente lgica, esttica, biologia, medicina,

    uma das cincias sociais. Claro, se ns subtramos todas as normas

    especificamente fundadas por uma disciplina correspondente, ns descobriremos

    que a tica contm um certo nmero de normas (geralmente passando por

    fundamentais, alm do mais) que no foram fundadas em lugar nenhum ( s

    vezes mesmo difcil dizer em que disciplina elas poderiam possivelmente estar

    fundadas), mas que, apesar de tudo, soam perfeitamente convincentes. Na sua

    estrutura, contudo, essas normas em nada diferem das normas cientficas, e o

    acrscimo do epteto tico no diminui ainda a necessidade de provar

    cientificamente que elas so verdadeiras. Em relao a tais normas, o problema

    da prova permanece forte, independentemente de ser ou no resolvido algum dia:

    cada norma que tenha um contedo particular deve ser levantado ao nvel de uma

    proposio cientfica especial. Antes disso, ela continuar sendo no mais que

    uma conjectura ou generalizao prtica til. As cincias sociais futuras

    filosoficamente fundadas (elas esto hoje num estado altamente deplorvel)

    reduziro consideravelmente o nmero de tais normas flutuantes no enraizadas

    em nenhuma unidade cientfica (a prpria tica no pode constituir tal unidade

    cientfica; pode apenas ser uma compilao de proposies prticas teis, s

    vezes no comprovadas).

    Na maioria dos casos tais normas ticas representam, do ponto de vista

    do mtodo, um aglomerao indiscriminada de vrios princpios e avaliaes.

    Assim, a proposio mais alta do utilitarismo, quanto sua validade cientfica,

    est sujeita competncia e crtica de trs disciplinas especiais: psicologia,

    filosofia do direito e sociologia. O dever como tal (a transformao