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O Sangue de Pedro Costa
1 Realização Cinematográfica 2013/2014
- O Sangue -
Um filme de Pedro Costa, 1989
Sara Raquel Pinto Pereira - 40483
Profº João Mário Grilo
Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Mestrado em Ciências da Comunicação – Cinema e Televisão
2 de Fevereiro de 2014
Resumo: O Sangue, como primeira longa-metragem de Pedro Costa, constitui-se um
importante marco na carreira cinematográfica do cineasta português. O presente ensaio
pretende analisar e elucidar o trabalho realizado por Costa nesta obra, contextualizando-a na
filmografia do realizador e apontando os seus elementos de maior interesse cinematográfico.
Mais do que uma obra de Costa, com uma beleza inegável, O Sangue é uma projecção do
cineasta onde a composição imagética e a evidente cinefilia se destacam.
O Sangue de Pedro Costa
2 Realização Cinematográfica 2013/2014
Ficha técnica O Sangue / 1989
Um filme de Pedro Costa
Realização e Argumento: Pedro Costa / Direcção de Fotografia: Martin Schafer / Imagem Original:
Negativo Original 35 mm (1, 33:1) / Restauro de Imagem: Tobis Portuguesa / Montagem de Imagem:
Manuela Viegas / Som: Pedro Caldas / Montagem de Som: Ana Silva / Música: The The, Igor Stravinski /
Correcção de cor: Teresa Leite / Chefe de Produção: Ana Luísa Guimarães / Director de Produção: Victor
Gonçalves / Produção: Trópico Filmes / Interpretação: Pedro Hestnes (Vicente), Nuno Ferreira (Nino),
Inês Medeiros (Clara), Luís Miguel Cintra (O Tio), Canto e Castro (O Pai), Isabel de Castro (A mulher),
Henrique Viana (Primeiro Credor), Luís Santos (Segundo Credor), Manuel João Vieira (Zeca), Sara
Breia (Rosa), José Eduardo (Parceiro), Ana Otero (Amante do tio), Pedro Miguel (Menino no armazém),
Miguel Fernandes (Pedro) / Estreia em Portugal: 7 de Dezembro de 1990
Situado no Inverno, na época natalícia e da passagem do ano, numa terra da província, O
Sangue conta a história de dois irmãos, Vicente, 17 anos, e Nino, 10 anos, que carregam um
segredo sobre o desaparecimento do pai. Uma rapariga, Clara, partilha e ajuda a proteger o
segredo. É um filme sobre a morte do pai e das crianças que ficam sozinhas. Mistérios,
promessas, esperas e a aterrorizante ideia de separação perseguem as personagens ao longo
de toda a narrativa. Recheado de sonho e de medo, é um retrato de jovens com um passado
em ajuste de contas e um futuro incerto, ainda sem destino traçado.
O Sangue de Pedro Costa
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O Sangue na obra Pedro Costa Nascido em 1959, Pedro Costa é hoje um dos principais nomes do cinema português, e
com Manoel de Oliveira um dos cineastas portugueses com maior expressão internacional e
nacional. Da sua geração, Costa foi dos poucos cineastas que se afirmou neste contexto, sendo
o que maior projecção do seu trabalho conseguiu (Malveira, 2011).
Após frequentar o curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa, Pedro Costa
ingressou a Escola de Cinema, sendo nesta altura que encontra acalmia na influência do
professor António Reis, responsável pela transmissão de um modelo formal especifico de
prática do cinema ao cineasta. Graças a ele, Costa não abandona o curso e, através da procura
de um saber fazer exigente e de conhecimento e domínio do cinema, vê a necessidade de
encontrar uma linguagem própria, criando a sua marca sólida (Cipriano, s/d). Foi esta calma
para fazer cinema português, que António Reis lhe incutiu, que motivaram Pedro Costa. À
semelhança de outros cineastas do seu tempo, Costa não se sentia apegado às tradições
cinematográficas de Portugal, sendo o cineasta que melhor guarda os ensinamentos de
António Reis, a sua poética própria, a sua exigência formal e afastamento da narrativa
tradicional (Cruchinho, 2010). Segundo Bruno Malveira, “a construção de cada filme de Pedro
Costa reside num profundo conhecimento da tradição cinematográfica” (Malveira, 2011:12).
“Nós não tínhamos pais, não tínhamos tradição. (…) Para um miúdo de vinte anos, o Vasco
Santana e o Ribeirinho não eram modelos. Seriam e foram um James Stewart ou um Cary
Grant ou um Jean-Paul Belmondo” (Costa citado por Cipriano, s/d).
Herdeiro dos ensinamentos de professores que fundaram o Cinema Novo, nos anos 60,
Pedro Costa é um cineasta fortemente marcado pela aprendizagem do cinema (Malveira,
2011). Foi com colegas da segunda geração de alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema
de Lisboa que Pedro Costa funda a produtora Trópico Filmes, produtora do seu primeiro filme
(Cruchinho, 2010). A geração de Costa intitula-se “Geração Suspensa” devido à
heterogeneidade que a marcou. Contudo, o cineasta distancia-se da mesma e do que esta
idealizava, libertando-se do modelo de grande produção cinematográfica e dando prioridade à
absorção dos estilos e cineastas que o inspiravam (Malveira, 2011).
João Bénard da Costa considera os anos 80 como os anos de ouro do cinema português,
a época de maior destaque para esta arte (Malveira, 2011). Foi nesta fase que Pedro Costa
realiza a sua primeira longa-metragem. O Sangue, de 1989, foi recebido como uma das mais
belas primeiras obras do cinema português desde o princípio dos anos 60, tornando-se um
marco na filmografia do cineasta (Malveira, 2011).
O Sangue de Pedro Costa
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Em entrevista, Pedro Costa admite que este, sendo o seu primeiro filme, foi a sua
primeira vez, considerando-o a possibilidade de classifica-lo como um primeiro amor. “É uma
coisa muito especial, cheia de riscos e erros (…)” (Costa citado por Oliveira, 2012). Sobre o
significado d'O Sangue enquanto seu primeiro filme, o cineasta anuncia o carácter prefacial
nele presente. Ao contrário dos seus últimos filmes, O Sangue está intimamente ligado às
ideias e aos modos de fazer do cinema tradicional (Cipriano, s.d.).
A sua primeira longa-metragem não definiu o estilo rigoroso do cineasta. Nas restantes
obras da sua filmografia, Costa abandona o romantismo presente no seu filme de estreia.
Contudo, Costa não gosta de utilizar a expressão estilo. “Não é estilo, é uma coisinha ao lado.
(…) o estilo é a pessoa. O estilo não é o estilo, não podemos falar do estilo de um filme ou do
estilo de um livro, de uma obra de arte, como falamos do estilo em moda ou em design. A arte
exige o confronto com outras coisas e o estilo é uma palavra muito difícil para mim, não acho
que seja uma palavra boa para quem trabalha em arte. É um trabalho que temos de fazer e uns
fazem de uma maneira e outros de outra” (Costa citado por Oliveira, 2012). Carregado de
referências de outros tempos, conjugando diferentes universos do cinema, O Sangue constitui-
se uma libertação de ideias acumuladas e reprimidas, uma homenagem ao cinema e aos
realizadores favoritos de Costa. “É o cineasta mais xamânico que há, o último feiticeiro a
convocar a magia invisível dos mortos, a sua bruma” (Azoury, 2009:84).
“A essência do cinema é provocar o acto de pensar” (Deleuze citado por Malveira,
2011: 26) Assim, Costa admite que se deve olhar para o cinema como “filmes para pensar, mas
com beleza”, observar um filme como se quadro se tratasse, percebendo os seus gestos e
inclui-lo na função que o personagem ocupa para além da narrativa (Valente, 2010).
Provocar uma reacção emocional no espectador e envolve-lo com as diferentes partes
que o constituem é o objectivo dos realizadores e da forma como a maioria dos filmes são
apresentados. Contudo, pode ainda transcender-nos e não revelar a nossa reacção. O cinema
tem esta vantagem, conseguindo colocar o espectador em situações de inferioridade e de
desconforto e sendo capaz de suspender as suas emoções (Bordwell citado por Malveira,
2011). A íntima relação entre o cinema e a vida afectiva permite que o espectador se
identifique com o filme (Carrol citado por Malveira, 2011).
Pedro Costa admite a existência de um caracter pessoal na sua concentração na família
de O Sangue, nos três órfãos do filme. “ (…) Eu nunca tive uma família a sério. A minha mãe
morreu cedo, e eu fui viver com o meu pai, que depois se foi embora. A partir dos 14 anos
fiquei sozinho (…)” (Costa citado por Rosenbaum, 2009:127). Ao ver O Sangue não vemos
apenas o filme e o seu género, vemos Costa projectado nele. Todos os filmes do cineasta são
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um retrato seu e todos aparentam focar famílias improvisadas, pessoas de fora e a luta dessas
mesmas pessoas para encontrar uma família, mesmo que provisória. Costa considera mesmo
que o objectivo primordial do cinema não deve ser inventar, mas sim reproduzir a realidade
(Costa citado pro Sampaio, 2013). Denota ainda que deve ser sobre sentimentos e que, para
ser realmente bom, o cineasta deve saber trabalhar as suas próprias emoções (Costa, 2010).
Segundo Jonathan Rosenbaum, estes são alguns dos aspectos que constituem
significativamente a metodologia do trabalho do cineasta (Rosenbaum, 2009). Em toda a
filmografia de Costa, o que realmente importa são os sentimentos. Sentimentos de pessoas
perdidas desorientadas, amedrontadas e absolutamente desprotegidas. Pessoas assombradas
pela morte e pela solidão que, mais do que estados físicos, traduzem-se em estados de espírito
(Moutinho, 2005). O Sangue trata o sentir directamente a vida, “sentir como o sangue flui e o
coração bate”. Esta premissa pode ser comprovada, por exemplo, com Nino. As acções da
criança regem-se por este impulso: quando está contente, Nino esta verdadeiramente
contente, quando triste, muito triste (Beringer, 2009).
O último plano do filme mostra Nino no controlo de uma embarcação, como se naquele
momento ele mesmo fosse o homem do leme. Há uma certa segurança e esperança no rosto da
criança, agora aparentemente mais madura. Contudo, até aqui uma sensação de confusão e
incerteza prevalece. Há esperança de salvação mas a ameaça continua presente.
Em O Sangue, uma obra feita por uma pessoa que receia perder o cinema, são a
apresentados um propósito, uma atitude estilística e ainda uma necessidade de viver. O filme
resultou de um trabalho reflectido e minucioso de pensamento desde a pré-produção até à
pós-produção. Na fascinante beleza do produto final, cabeça e sentimento estão igualmente
envolvidos. Johannes Beringer, no seu texto com o mesmo título do filme em análise,
considera mesmo Pedro Costa não poderia ter realizado o filme noutra altura senão naquela
onde, com trinta anos, os assuntos abordados no filme ainda o tocam (Beringer, 2009).
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Abordagem do interesse cinematográfico do filme
Locais da filmagem
Os últimos filmes da filmografia de Costa decorrem num conjunto muito limitado de
pequenos espaços. No entanto, a articulação entre locais distantes e a alternância entre
espaços interiores e exteriores está muito presente em O Sangue.
Apesar de as cenas exteriores serem abundantes, o cineasta admite sempre ter preferir
filmar em espaços interiores (Nisa, 2009). O Jardim Zoológico, a baixa (restaurante Império e
Armazéns do Grandela) e o rio Tejo, em Lisboa, foram alguns dos locais que serviram de
cenário ao filme.
Para além disso, os espaços são claramente metafóricos. Pedro Costa recorre à mise-
en-scène para metaforizar a situação das personagens. A paisagem urbana degradada,
presente não apenas neste mas também nos seus restantes filmes, torna-se uma das suas
características. Por um lado, estimulantemente bela, por outro, transmitindo uma forte e
arrepiante impressão.
Personagens e Equipa Técnica
O trabalho de Pedro Costa dá especial destaque ao gesto e à pose, condensando em
cada enquadramento todo o respeito pela pessoa filmada, mais do que por qualquer narrativa.
Atribuindo principalmente interesse ao livre arbítrio das suas personagens, planificava
os seus argumentos de modo a que fossem sendo escritos pelas mesmas ao longo do filme,
incluindo as suas vivências, memórias, desejos e necessidades (Cruchinho, 2010). Contudo, na
medida em que este o filme mais ficcional do cineasta e praticamente o único em que os
actores são profissionais, é também o filme que necessitou de maior encenação e direcção de
actores. O trabalho de actores privilegia uma representação escorreita e contida, perfeita,
praticamente sem imperfeições.
A primeira longa-metragem de Pedro Costa foi elaborada com recurso a uma equipa
ligada à escola de cinema e com um conjunto de actores muito característico da altura. Pedro
Hestnes, que interpretou Vicente, tornou-se um dos rostos mais reconhecíveis e marcantes do
cinema português e Inês Medeiros, a jovem Clara de O Sangue, voltou a participar nas duas
seguintes longas-metragens de Costa. A excepção foi Nuno Ferreira, actor mais novo do
elenco, que interpretou Nino. Na altura, não havia muitas crianças actrizes em Portugal, então,
Pedro Costa dirigiu-se a um orfanato de uma escola católica e realizou um casting. Sem saber
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de onde lhe surgiu a ideia, Costa gostou imediatamente de Nuno e admitiu identificar-me com
ele (Guillen, 2008).
Qualquer uma das obras de Pedro Costa extravasa entusiasmo em fazer cinema e as
três primeiras, onde se inclui O Sangue, serviram de toda a parafernália da produção
tradicional de cinema durante as gravações. Tal como a maior parte de filmes em todo o
mundo, serviram-se de equipas muito grandes, de uma produção standard (Cipriano, s.d.).
Costa via neste envolvimento de dezenas de pessoas e de camiões com equipamento
um problema (Gallagher, 2009). “Vi apenas 20% das coisas que devia ter visto diariamente
porque o meu olhar era atraído para a equipa de filmagem e assim; os meios e os fins não foram
devidamente pensados. Foi então que percebi que tinha que fazer a coisa de outra maneira. E
percebi também que a forma habitual de fazer filmes é completamente errada.” (Costa citado
por Gallagher, 2009:40)
Com os seus restantes filmes o mesmo não se verificou. Costa sentiu uma necessidade
de estabelecer uma nova e diferente relação com o cinema e com as pessoas (Cipriano, s.d.).
Imagem
O tratamento fotográfico d’O Sangue encontra-se muito próximo da perfeição, exigindo
uma predisposição voluntária ao olhar do espectador (Martins, s.d.).
Desde esta longa-metragem que a câmara de Pedro Costa se vai movendo cada vez
menos, sendo que alguns dos seus filmes seguintes são compostos praticamente apenas por
planos fixos (Hasumi, 2009). Contudo, aqui estão ainda presentes vários movimentos de
camara a acompanhar as personagens. São vários os travellings presentes, como o lateral que
acompanha o percurso nocturno de Clara e Vicente à chegada da festa.
Quase sempre parada, a câmara filma sucessivamente todos os gestos e sons que
cercam os planos. Os repetidos planos retrato de cada personagem, invadem a sua
interioridade, procurando dizer tudo o que vai naquelas almas de que os olhos são a montra
(Cruchinho, 2010).
Em cada enquadramento o que realmente importa são os espaços, as personagens, as
situações, os momentos e os rostos, corpos, gestos e vozes que deles fazem parte. Beringer
considera que se pode chamar-lhe a mística do olhar, na medida em que os olhos são quase
tudo para cada os cineastas que inspiram Costa neste filme. Os olhos têm grande destaque em
praticamente todos os planos, saltam á vista. (Beringer, 2009). Costa filma de frente, dá-nos as
personagens a ler, oferece-nos o olhar delas, o medo e a ousadia representados nos seus
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rostos, as imperfeições que revelam as suas personalidades, experiencias e desejos (Azoury,
2009). É difícil afirmar que haja alguém no cinema que retracte melhor que Costa a
complexidade do rosto humano. Para além disso, concordo com Shiguéhiko Hasumi quando
este professor de cinema afirma que “qualquer um dos filmes de Pedro Costa se apodera do
nosso olhar e obriga-nos a viver pessoalmente o movimento do filme” (Hasumi, 2009:134). É
esta obsessão de Costa pelo objecto filmado que resulta na beleza incontestável dos seus
filmes.
O interesse pela pose e pelo gesto é, mais do que o que o filme tem de pictórico, o que
aproxima o cinema de Costa da Pintura e da Figuração Pictural. O que importa filmar são as
pessoas, sendo poucos os poucos os planos gerais do filme, em comparação com planos
médios e grandes planos (Cruchinho, 2010). Há um interesse legítimo no ser humano, nas
suas falhas, dificuldades e alegrias.
O elemento fotogénico, a totalidade da imagem, o peso da fotografia, tem uma grande
importância neste filme. Ao longo de toda a sua filmografia é notável a colecção de
enquadramentos que Costa desenvolveu. Há um equilíbrio estudado em cada plano onde
estão presentes “diagonais marcadas, linhas de perspectiva acentuadas e conjuntos de formas
que definem fortemente cada imagem” (Martin, 2009:95). Os seus enquadramentos têm uma
geometria dinâmica, uma solidez angular e são compostos como sequências de montagem
(Martin, 2009). Assim, são unidades minuciosamente estruturadas e autónomas, onde a
composição precede sempre a acção.
Como primeiro filme, O Sangue traduz-se no mais barroco de Costa pois é o que tenta
incorporar um pouco de tudo. Na medida em que a composição imagética é a protagonista no
desenvolvimento da narrativa do filme e que a história não possui grande importância no
conjunto do filme, é plausível afirmar que O Sangue se trata de um acto de materialismo
cinematográfico. Segundo Malveira, O Sangue é “o primeiro ensaio visual que funde a posição
romântica e materialista do cinema de Pedro Costa, uma visão do mundo centrada no
indivíduo dissolvida num olhar realista e esteticamente belo lançado sobre o objecto”
(Malveira, 2011:13).
Um das características do seu trabalho que Costa apresenta na sua primeira longa-
metragem é a duração dos planos, o trabalho de camara que privilegia os planos fixos e
longos. Em Costa, cada plano não dura nem mais nem menos do que o necessário para
provocar um efeito no espectador. A duração dos planos é de uma óptima precisão. Se fossem
menores, não provocariam efeito, se fossem maiores, seriam aborrecidos. Esta estaticidade
das sequências de planos permite ao espectador observar as cenas de uma forma mais
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aprofundada, permite que este seja capaz de participar mais na experiência cinematográfica e
envolver-se nela ao observar a composição da cena e da mise-en-scène como um todo. A
câmara de Costa assume um papel de observadora e a durabilidade dos seus planos capta com
naturalismo o verdadeiro conteúdo do filme, a espontaneidade das acções. É errado
considerar o cinema de Costa como parado ou estático. Sem durações impostas, o seu cinema
tem movimento, deixa acontecer a realidade tal como ela é dentro da ficção que o cineasta
produziu (Martins, s/d). Mesmo que, aparentemente, haja um plano que dure, nunca nada se
perde. O tempo que o filme pede ao espectador é fundamentado e apropriado, todos os planos
são uteis e a duração de cada um deles não é mais nem menos do que a que deveria ser. Pedro
Costa sabe rigorosamente qual o limite até onde pode ir. Há uma metodológica de tempo e
atenção que lhe permite registar adequadamente o que se passa (Lafosse, 2009).
Produzido sobre a memória da vida e do cinema, mais que um filme inaugural, é um
filme fundador de uma estética e de um ponto de vista (Ferreira, s/d).
Cor
Através do preto e branco com um tom inebriante, Martin Schafer, o director de
fotografia alemão considerado o trunfo e o luxo desta produção, tornou O Sangue ainda mais
deslumbrante.
Na época em que fora filmado, a opção de Pedro Costa de filmar a Preto e Branco foi
uma surpresa e admirou muitos. “Não pelo vulgar brilho da pobreza nem o ardor banal da
originalidade. Era mesmo pela raridade da pelicula e pelo recurso ao grande operador alemão
Martin Schafer, o luxo dessa produção barata” (Costa, 2009:19).
A cor do filme não tem por base efeitos de moda, modernismos ou pós-modernismos. O
sonho e o pesadelo que O Sangue exibe não poderiam ser representados por nenhuma cor a
não ser por um preto e branco quase fantasmagórico que atribui ao filme uma atmosfera
praticamente irreal. “Em noites dessas não se vêem cores” (Costa, 2009:19). O preto é, aqui,
uma cor estritamente necessária. Pedro Costa não inventou um novo preto e branco, mas a
fotografia de Martin Schafer, carregada de contrastes e percorrida por efeitos de
luminosidade e escuridão, torna-se visionária e singular: brancos que queimam, pretos que
devoram. Um preto e branco tão carregado que o dia se confunde com a noite pois a luz do dia
parece frequentemente noite cerrada. Assim como necessitava do preto, por oposição,
também o branco era essencial para a sua evocação e invocação. “Imediatamente, os rostos
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são desfigurados e os corpos deformados por este trabalho onírico sobre a luz, a escuridão,
sombra e encenação” (Martin, 2009:91).
O primeiro plano do filme é negro. Um negro muito negro acompanhado apenas por
ruídos de passos, motores, ventos e trovões. É a primeira coisa que o filme nos mostra, é a
primeira coisa que vemos antes de saber qualquer aspecto sobre o mesmo. É vinda do escuro
que, em seguida, surge a primeira personagem. Este negro é muito utilizado e procura
transmitir um efeito de surpresa, efeito também transmitido pela luz. Philippe Azoury afirma
mesmo conhecer poucos filmes a coragem de iniciar desta forma. Considera que o negro é
definitivamente a cor de O Sangue. “Duplamente negro. Obscuro, tenebroso e sombrio.
Assemelha-se a um oceano à noite (…)” (Azoury, 2009:89). Contudo, muito mais do que um
filme obscuro, é um filme escuro. O negro e o escuro prevalecem mas não podem ser
comparados. Enquanto o negro é uma cor, o escuro não é uma cor, mas é a origem das cores e
a origem do visível (Costa, 2009). É uma escuridão ajustada, tanto literal como
metaforicamente, à atmosfera do filme (Moutinho, 2005). Trata-se de um filme a preto e
branco, um filme a escuro e claro.
Luz
É na chamada “hora mágica”, no limite da luz, que O Sangue inicia, no instante imediato
após o sol se por ou antes de nascer. “ (…) quase de dia ou quase de noite, à hora indistinta do
escurecer e do clarear” (Costa, 2009:17). Após o negro, antes de sabermos mais alguma coisa,
apenas isto é exibido. É claramente um filme onde as cenas passadas à noite ou entre o
anoitecer e o amanhecer prevalecem.
O limite está sempre muito presente em todo o filme. Todos os planos foram rodados
em situações caracterizadas por esta ideia, levando a que haja uma constante procura de
encontrar a situação ideal para cada enquadramento.
A luz é pontual e divide os cenários, os planos, em segmentos de importância. Com o
noir sempre presente, aproxima-se dos personagens que mais se destacam pela ausência de
profundidade de campo. Também a luz procura evidenciar qual o assunto filmado que, como
já referido, são os rostos presentes em cada enquadramento (Martins, s/d). A imagem escura
e sombria é marcada por escassas fontes de luz visíveis nos planos, servindo essencialmente
para delimitar espaços (Ferreira, 2009). Para além disso, a luta entre a luz e as sombras
procura evidenciar a disputa entre o bem e o mal tão presente na narrativa.
O Sangue de Pedro Costa
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Pedro Costa desvia-se do artifício da iluminação e aproxima-se mais uma vez da
Pintura e dos pintores da luz através da procura da singularidade deste elemento, seja ele
filmado de forma directa ou indirecta, seja filmado de frente ou de costas.
Amos Vogel, cineasta americano, afirmou um dia que “a essência do cinema não é a luz,
mas sim um pacto secreto entre a luz e a escuridão”. Segundo John Gianvito, esta citação
traduz com perfeição a mise-en-scène e o trabalho de planificação de Costa (Gianvito, 2009).
Costa é um cineasta que não tem medo da escuridão que advém das sombras e a
composição de luz de O Sangue comprova-o. A luz ajuda-o a escrever a totalidade da narrativa
e poderia facilmente ser apontada como um dos elementos principais do filme. Ao iluminar os
rostos, por exemplo, através do reflexo da água, Costa dá ainda mais vida à fotografia a preto e
branco do director alemão (Sampaio, 2013). As constantes sombras dramáticas e cenas em
chiaroescuro, em conjunto com os grandes contrastes do preto e branco, aproximam o filme
do cinema noir.
Composição sonora
Não só o enquadramento dos planos é um elemento fundamental num filme. O som
constitui-se também um componente essencial na construção da atmosfera do mesmo.
Segundo Malveira, “os realizadores recorrem a temas musicais ou outros sons como forma de
alimentar e intensificar a relação com o espectador” (Malveira, 2011:55). O mundo não é feito
apenas de imagens, mas também de sons. Deste modo, os elementos sonoros complementam
a componente visual do filme, ajudando mesmo a criar e intensificar ambientes. Em Costa,
tudo o que se ouve ao longo do filme torna-se tão visual como cada imagem apresentada. O
som “revela tudo aquilo que não se encontra no espaço do plano” (Malveira, 2011:55). Ao
recorrer a estes elementos o cineasta alarga o campo de percepção do espectador,
oferecendo-lhe outra dimensão que o ajude a visualizar e entender os espaços de forma mais
aprofundada, para além do que é visualmente exibido (Malveira, 2011).
Pedro Costa disse uma vez que, antes de começar a pensar em cinema, gostava era de
música, sendo talvez por isso que lhe atribui uma relevância maior neste seu primeiro filme.
Contudo, Mark Peranson considera que se tem dedicado pouca atenção às bandas sonoras dos
filmes do cineasta português, “a todos os sons, seja uma voz que tosse ou que diz os diálogos,
um ruido de fundo – gravado ao vivo na cassete enquanto se está a rodar uma cena ou
gravado como som ambiente, no local das filmagens – e por último, mas não menos
importante, aquelas canções inesquecíveis” (Peranson, 2009:290).
O Sangue de Pedro Costa
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Pedro costa apenas trabalhou elementos musicais em dois filmes: O Sangue e Ne
Change Rien, filmes com 20 anos de diferença. Na sua primeira longa-metragem, para além da
banda sonora composta por músicas de Igor Stravinski e da banda inglesa The The, há no
filme uma massa sonora abundantemente de estúdio, podendo mesmo observar-se
fragmentos de vídeos musicais, “como o travelling á beira-rio ao som de “Perfect” dos The
The” (Paranson, 2009:297).
O cineasta admite que o esquema sonoro de O Sangue é bastante simples. O som do
filme foi desenhado por Pedro Caldas, amigo de Costa, que recorreu à forma convencional de
combinar som directo das cenas filmadas, sons diegéticos, com sons extra adicionados na
edição, sons estra-diegéticos. (Guillen, 2008). “Tal como as imagens de Costa, os seus sons
combinam o artificial e o real, inclinando-se bastante para o artifício” (Peranson, 2009:290).
O orçamento para filmar O Sangue era muito baixo e o tempo para edição muito pouco.
O ambiente era de grande agitação e, por isso, para facilitar, Costa recorreu a elementos
musicais. O cineasta admite que, em parte, as suas escolhas neste sentido foram tomadas por
estar completamente encantado com filmes americanos e suas músicas. Contudo, Costa afirma
que cometeu alguns crimes e que o uso de Stravinsky foi um deles (Guillen, 2008).
Apesar da combinação das duas formas de captação de som, Costa deu preferência ao
som extra-diegético. “O som é gravado separadamente. Em vídeo, hoje em dia, o som é
gravado na câmara, som directo. No meu caso, eu gravo o som à parte porque sinto que o som
das câmaras não é suficiente bom, tenho mais confiança em alguém que capte o som a parte,
digital. O som normalmente é directo. Em algumas ocasiões tive um som muito mau, e tive que
melhorá-lo na medida do possível. Mas não é um trabalho como o do Straub. Mas é...não posso
explicar como é feito pois depende da situação, da composição poética, dos ritmos” (Costa
citado por Guimarães e Ribeiro, 2007).
Montagem
João Bénard da Costa afirma que o filme começa no meio do verbo ser, na medida em
que a definição do “quem é quem”, que normalmente é apresentado nos primeiros momentos
de um filme, é aqui substituído (Costa, 2009). No início de O Sangue, o espectador encontra-se
no meio do nada. A única coisa que lhe é apresentada é uma série de rostos sem nome,
retalhos visuais sem qualquer conexão. Não se sabe quem é Nino e a menina a seu lado, não se
sabe quem é Vicente nem quem é o homem que lhe bate. Não se sabe nada acerca das
personagens pois Costa nada nos diz sobre isso. Com o cineasta, ao filmar sem nos fornecer
O Sangue de Pedro Costa
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qualquer informação a cerca do passado dos rostos que capta, vivemos apenas o presente
(Sampaio, 2013).
Por outro lado, a ficção, aparentemente, dá-se, entrega-se repentinamente logo no
início. O resto do filme parece ser composto por meras repercussões da primeira acção. É
aquela primeira cena entre Vicente e o pai que indica que intriga e mistério estão envolvidos
na narrativa (Martin, 2009).
A montagem analítica, composta por variados cortes dentro de uma mesma cena, e as
elipses, formas de resumir as acções ao suprimir quantidades consideráveis de elementos
narrativos e descritivos, presentes na montagem de O Sangue, tornam-no um filme
narrativamente complexo. Para além disso, estas técnicas pressupõem que grande parte dos
factos, em vez de serem apresentados, se construam na mente dos espectadores, obrigando-os
a transpor os acontecimentos omitidos (Martins, s/d). Somos forçados a dar e processar
“saltos”, racional e emocionalmente, pois nem sempre somos capazes de perceber de
imediato, por exemplo, quanto tempo passou depois de uma determinada elipse. Este tipo de
montagem serve para deixar elementos em aberto. Por um lado, “ (…) o espectador é instado a
mover-se ao longo da linha predefinida racionalmente (os planos sucedem-se uns atrás dos
outros como um rol), mas, ao mesmo tempo, existe uma multiplicidade de sentidos; por vezes
gera-se uma afluência de significados, é disponibilizado um mundo de possibilidades”
(Beringer, 2009:80).
Na medida em que o que importa na filmografia de Costa são os sentimentos, a forma
como a narrativa é contada e construída visualmente, a forma como se apresenta, está
intimamente relacionada com esta preocupação de inclusão das emoções no filme (Beringer,
2009)
As pessoas desaparecem entre cenas, entre os cortes que Pedro Costa faz. Vivem e
morrem de plano para plano, como, por exemplo, o pai doente que morre, passando
rapidamente de uma cena em que fala e respira a uma cena em que é já corpo morto. “A
câmara não pode tudo. (…) Mostra-se sem se revelar nada” (Eduardo, 2010). Quando uma
sequência termina, nunca sabemos se aquela personagem vai ou não regressar. Também a
questão do encontro é aqui distorcida. Ele não está presente entre as sequências e torna-se
perturbante a sensação que se sente quando duas personagens supostamente se encontram
pela primeira vez. Suspeitamos pois não se sabe se é essa a realidade. Há ao longo de todo o
filme uma tensão constante (Martin, 2009). Sempre que um novo plano surge o espectador é
virado do avesso. É um filme completamente imprevisível onde nunca se pode antecipar a
acção, nunca se sabe o que vai acontecer.
O Sangue de Pedro Costa
14 Realização Cinematográfica 2013/2014
Com um fluxo bastante impulsivo, O Sangue é um filme líquido a que convêm verbos
irrompidos pois tudo aparece de repente (Azoury, 2009). É um filme que desafia o nosso
próprio interesse.
A primeira marca que o cineasta português nos deixa na sua primeira longa-metragem,
reforçada em todas as suas obras seguintes, é a rejeição da narrativa tradicional, a
impossibilidade de antecipação das acções, a inibição da técnica de causa-efeito. O Sangue é
um filme que não recorre a uma linearidade narrativa, confrontando o espectador com a
ausência de uma coerência na composição dos elementos que constituem e narrativa e que
deveriam reforçar a continuidade da mesma (Malveira, 2011). Tal como o percurso das
personagens, que é o de escapar à autoridade, Costa procura no seu projecto escapar à
autoridade narrativa. Em O Sangue não há a ilusão de continuidade espacial e temporal. É este
afastamento da narrativa realista que aproxima o cineasta do princípio da soberania do plano.
No filme, a existência de raccords directos é muito escassa, o que faz que cada plano
afirme o sue próprio território, a sua própria presença. Cada plano entra em confronto com o
plano que se segue. É nesta maneira de atropelar os planos que o filme encontra o seu próprio
folego e funcionamento.
Citando Costa, “(…) o que acontece é no meio dos planos e é a possibilidade de uma
coisa se tornar viva ou não, de acordar ou de nascer. E, para mim, o cinema é mesmo isso: a
possibilidade de que algo desperte. Quando se faz um plano, sacrificam-se imensas coisas,
mata-se uma data de coisas. (...)” (Costa citado por Moutinho, 2007:28).
Costa aprendeu esta precisão do corte na montagem e a ligação do mesmo com a elipse
com Robert Bresson. Tanto para Bresson como para Costa, o importante no cinema é o que
não nos dizem nem mostram, é aquilo que não vemos, o que existe entre os planos. “A história
está no plano. E depois de um plano está outro plano, e o que se passa entre esses dois planos
é que é importante. É aí que tudo se joga (...) – o que é que dizes, o que é que deixas, o que é
que filmaste e o que é que não filmaste, o que está ou não entre esses dois planos: o raccord.
(...)” (Costa citado por Moutinho, 27)”. Todo o cinema de Costa está marcado por um carácter
fortemente elíptico.
Adrian Martin considera que é fácil gostar dos filmes de Pedro Costa mas que se torna
muito difícil interpretá-los, sendo talvez esse o motivo pelo qual se gosta tantos deles (Martin,
2009).
O Sangue de Pedro Costa
15 Realização Cinematográfica 2013/2014
A magia da evocação do cinema Como já referido anteriormente, O Sangue é um primeiro filme que liberta ideias
reprimidas e acumuladas ao longo do tempo por Pedro Costa. É uma homenagem ao cinema e
aos seus realizadores predilectos. É um filme sobre herança, sobre a dívida. Este é um dos
aspectos que estimula o seu estudo e análise e as tornam tão interessantes. Saber até que
ponto a cinefilia ocupa o lugar de uma paternidade, procurar compreender qual a necessidade
e importância de conhecer filmes e o cinema de outros, sabendo até que ponto isso nos
influencia ou nos destaca. As pessoas nunca se descartam e esquecem o que viram.
Interiorizam-no e mantêm-no na memória. Então até que ponto somos capazes de nos
libertarmos disso para nos afirmarmos?
Na década de 80 e 90, período em que O Sangue fora produzido, a quantidade
significativa de referências cinematográficas existentes permitia que novas abordagens
surgissem constantemente. Pedro Costa destacava-se por se ter distanciado dos ideais da sua
geração e por ter aproveitado estas referências, privilegiando a apreensão de diversos estilos
e autores do passado, “revisitando-os pontualmente nas suas obras” (Malveira, 2011:13).
James Quandt aponta The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955), El espirito de la
colmena (Victor Erice, 1973) e Boys Meets Girl ( Leos Caraz, 1984) como apenas alguns dos
filmes que O Sangue faz lembrar (Quandt, 2009). A primeira longa-metragem de Costa evoca
ainda outros cineastas como Murnau, Coqteau, Yasujiro Ozu, Michelangelo Antonioni ou Jean
Renoir, permitindo reviver a ideia de uma comunidade cinematográfica (Gallengher, 2009).
Há um forte drama cinéfilo presente em O Sangue e comtempla-lo convoca
naturalmente a uma experiencia cinéfila. A necessidade da evocação de algumas bases e
alicerces que fundamentassem o seu trabalho era uma grande preocupação de Costa
(Malveira, 2011). “Eu pensava que tinha encontrado o cinema quando tinha feito o primeiro
filme e tinha apenas cumprido uma dívida, uma dívida para com os cineastas todos que
admirava” (Costa citado por Paradelo e Axias, s.d.).
É a obra que melhor comprova que o realizador português assimilou de forma perfeita
o trabalho de outros ao trazer-nos o mundo dos mesmos (Malveira, 2011). Cada plano que
Costa apresenta está coberto de referências de outros tempos que comparamos e cruzamos.
Para além de séculos de pintura, somos confrontados com fragmentos da Hollywood de Lang,
de Nicholas Ray e de Charles Laughton, o Japão de Mizogushi, noir e efeitos de estilo de Jaques
Touneur, a poética da luz de Dreyer ou um corte de Jean-Luc Godard, “filmes antigos e
contemporâneos, clássicos e malditos” (Martin, 2009:91) que constituem parte da tradição
artística que paira sobre O Sangue.
O Sangue de Pedro Costa
16 Realização Cinematográfica 2013/2014
Um dos planos mais fortes e marcantes do filme encontra-se directamente relacionado
com Bresson. A bofetada da abertura do filme, a primeira cena de Vicente e do pai, é uma clara
referência de Mouchette, de 1967 (Quandt, 2009). A própria narrativa, sobre o pesadelo da
infância e um rapaz solitário, é uma história à Truffaut.
Outra influência pode ainda ser apontada. A primeira longa-metragem de costa
assemelha-se em determinados aspectos a Persona, de Igmar Bergman de 1966. Em certo
ponto O Sangue parece ser uma espécie de Persona realizado por um cineasta português.
Ambos os filmes são sobre emoções, sobre sentimentos. São filmes que colocam o cinema no
meio das emoções humanas, são filmes sobre o cinema e sobre a história das personagens, são
filmes que traduzem um cinema que procura as suas próprias regras. Os próprios títulos dos
filmes se aproximam. Ambos representam coisas fora do filme sendo que em nenhuma das
longas-metragens há algum aspecto que indique o motivo do título ser assim designado.
Ambos os filmes se poderiam chamar cinema.
Costa afirma que o que pretendia fazer com os filmes “ (…) era mostrar, não explicar,
mas mostrar uma maneira de fazer cinema que não é comum, que é muito bonita, muito
estranha e nova, sempre nova porque esta sempre viva, que as pessoas não conhecem
infelizmente. As pessoas pensam que o cinema é fácil, que é caro, que é rico, que é um luxo.
Desde o Griffit, Chaplin ou Stroheim, não há cineastas de ontem e de hoje, há o cinema e há
pessoas que trabalharam em momentos diferentes. Eu trabalho hoje mas tenho a convicção de
que faço o mesmo trabalho que o Straub ou que o Chaplin, exactamente o mesmo. É muito
confortante o forte para mim esse sentimento”1.
Costa trabalha as suas influências de maneira notável, sabendo precisamente qual
ressuscitar em cada cena. O cineasta recorre às suas referências, convoca a magia deste
cineastas, mas sabe exactamente qual o limite até ao qual se pode estender. Sabe o que
enfrenta e o terreno que calca. Costa sabia também que teria de se afastar destas referências e
parar de invocar outros tempos. Para traçar o seu próprio caminho no cinema, como aponta
Azoury, inventar a sua própria magia. “Há um Pedro Costa que exuma (os fantasmas do
cinema lendário) e um Pedro Costa que enterra, que queima (por todos os meios: O Sangue é
um filme em fogo, a febre em O Sangue), que liquida, que queria ser de uma vez por todas
órfão, e já não herdeiro” (Azoury, 2009:84). Diferente dos restantes filmes que compõem a
filmografia de Costa, O Sangue evoca os mortos e as memórias do cinema uma última vez.
Após a realização do filme que iniciou a sua carreira, Costa avança para uma nova relação com
1 Pedro Costa em entrevista em http://www.youtube.com/watch?v=IZ59NIun1dE
O Sangue de Pedro Costa
17 Realização Cinematográfica 2013/2014
o cinema e com a imagem. Para além de ter sido pensado como homenagem ao cinema,
Philippe Azoury considera que este tributo se traduziu num adeus ao mesmo (Azoury, 2009).
Nas palavras do próprio Pedro Costa, O Sangue “é uma espécie de prefácio, um filme muito
protegido pelo cinema. Estava muito dentro do cinema, muito cinéfilo. Pouco a pouco fui-me
libertando um pouco mais dessa protecção do cinema. É o mais tradicional no sentido de que
recorria ao cinema para tudo”2.
Ninguém melhor que o próprio Costa para esclarecer este aspecto. Quando
questionado sobre o assunto, admite que o seu primeiro filme estava muito protegido pela
sétima arte. “Os filmes que eu faço, ou tento fazer, cada vez mais vêm menos do cinema. O
primeiro filme que eu fiz, desse ponto de vista, tinha muito mais pais. Tinha o Chaplin,
Nicholas Ray, Fritz Lang, enfim, imensos cineastas americanos, imensos cineastas europeus,
alemães, do princípio do seculo, do cinema mudo, ou mais recentes, como o Godard. Mas, cada
vez mais, os meus filmes dependem menos do cinema (…). Aquela “capa” de cineastas e da
história do cinema, das influências e das referências, é mais diluída. A gente pratica, trabalha,
é normal que seja assim. Nos primeiros filmes vê-se muito mais “de onde é que ele vem, para
onde é que ele vai” e depois, pouco a pouco, se o trabalho for relativamente consistente, pode-
se construir qualquer coisa que seja um bocadinho diferente” (Costa citado por Oliveira,
2012).
Apesar do filme possuir um estatuto à parte na filmografia do cineasta e de muitos
aspectos do seu cinema terem sofrido alterações, a experiência de O Sangue está muito
presente em todas as obras de Pedro Costa, tendo auxiliado e preparado o trabalho que
posteriormente explorou. Cada filme ocupa o seu próprio espaço mas o realizador não cortou
de forma absoluta e radical com O Sangue. Foi com esta longa-metragem, no meio de todos
aqueles espelhos de referências, que Costa se descobre como cineasta. “Em sete longas-
metragens tudo mudou, mas nada mudou” (Duarte, 2010:12).
Apesar de fortemente marcado por cineastas de todos os universos do cinema, Pedro
Costa foi capaz de permitir que os elementos originais do filme invadissem o mapa de
referências nele presentes. O filme não é uma cópia das suas referências mas sim um reflexo
de Costa. Todas as linguagem apreendidas foram fundidas e permitiram o nascimento do um
método de criar próprio.
2 Pedro Costa em entrevista em http://www.snpcultura.org/vol_o_cinema_e_um_oficio_como_ser_pedreiro.html
O Sangue de Pedro Costa
18 Realização Cinematográfica 2013/2014
Considerações Finais James Quandt classifica O Sangue simultaneamente como conto de fadas, film noir,
história de amor e mistério policial. Mas, mais do que isso, o filme traduziu-se numa falsa
partida na medida não estabeleceu o caminho que Costa seguiu nas suas obras posteriores
(Quandt, 2009). Por um lado, marcado por uma homenagem ao cinema, por outro, uma
espécie de adeus à evocação da memória desta arte (Azoury, 2009).
Costa consegue algo extraordinário com O Sangue. Ao mesmo tempo que cria uma
ficção e que lhe dá vida, torna-a também abstracta e vazia, acabando por lhe retirar o corpo
que antes lhe tinha entregue. “Costa consegue momentos que são cinema puro, ficção pura,
intriga pura, ao mesmo tempo que lhes conserva o mistério, o lado secreto” (Martin, 2009:93).
O Sangue de Pedro Costa
19 Realização Cinematográfica 2013/2014
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O Sangue de Pedro Costa
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Índice
Ficha técnica ................................................................................................................................................................. 2
O Sangue na obra Pedro Costa .............................................................................................................................. 3
Abordagem do interesse cinematográfico do filme ...................................................................................... 6
Locais da filmagem ................................................................................................................................................ 6
Personagens e Equipa Técnica ......................................................................................................................... 6
Imagem ...................................................................................................................................................................... 7
Cor ............................................................................................................................................................................... 9
Luz ............................................................................................................................................................................. 10
Composição sonora ............................................................................................................................................. 11
Montagem ............................................................................................................................................................... 12
A magia da evocação do cinema ......................................................................................................................... 15
Considerações Finais .............................................................................................................................................. 18
Referências Bibliográficas .................................................................................................................................... 19